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112 VIOLÊNCIA E MEDIAÇÃO: IMPRESSÕES JUSFILOSÓFICAS VIOLENCE AND MEDIATION: – JUSTICE AND PHILOSOPHICAL IMPRESSIONS GUILHERME ROMAN BORGES Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2011). Bolsista doutoral anual do governo brasileiro na Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon Tméma Philosophías – Universidade de Patras – Grécia (2008). Pesquisador-Bolsista junto ao Max Planck Institut für europäische Rechtsgeschichte de Frankfurt – Alemanha (jun/2010–jan/2011–set/2012). Pesquisador-Visitante junto ao Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht de Freiburg – Alemanha (jul/2010). Pesquisador-Visitante Facoltà di Giurisprudenza dell’Università di Bologna – Itália (set-dez/2008). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2006). Mestre em Sociologia do Direito na UFPR (2005); ex-Professor de Economia e Direito Econômico na Universidade Positivo (2003/2011). Juiz Federal (TRF3). RESUMO A violência marca a sociedade atual de uma forma nunca verificada em outros tempos. Seu espaço nos caminhos do homem atual tem se intensificado de modo a exigir uma reflexão de fundo, com vistas à sua aniquilação, ou, ao seu controle. É notável o insucesso da teoria moderna com alicerces greco-romanos, juntamente com a ideia de contrato social, de instrumento normativo como regulação da violência. Diante desta impossibilidade de resposta à violência pela norma, e todo o aparato jurídico, o velho tema grego da mediação tem reaparecido e se colocado, como um lugar interessante de diálogo com a violência, voltado muito mais a redescobrir mecanismos para que a violência seja falada e metabolizada, ao invés, como sempre o quis a racionalização da modernidade, silenciada. Diante disso,

VIOLÊNCIA E MEDIAÇÃO: IMPRESSÕES JUSFILOSÓFICAS … · notável o insucesso da teoria moderna com alicerces greco-romanos, juntamente ... que crie a mulher perfeita e a envie

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  • 112

    VIOLNCIA E MEDIAO: IMPRESSES JUSFILOSFICAS

    VIOLENCE AND MEDIATION: JUSTICE AND PHILOSOPHICAL

    IMPRESSIONS

    GUILHERME ROMAN BORGES

    Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2011). Bolsista doutoral anual

    do governo brasileiro na Shol Anthropstikon kai Koinonikon Epistmon Tmma

    Philosophas Universidade de Patras Grcia (2008). Pesquisador-Bolsista junto

    ao Max Planck Institut fr europische Rechtsgeschichte de Frankfurt Alemanha

    (jun/2010jan/2011set/2012). Pesquisador-Visitante junto ao Max Planck Institut

    fr auslndisches und internationales Strafrecht de Freiburg Alemanha (jul/2010).

    Pesquisador-Visitante Facolt di Giurisprudenza dellUniversit di Bologna Itlia

    (set-dez/2008). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2006). Mestre

    em Sociologia do Direito na UFPR (2005); ex-Professor de Economia e Direito

    Econmico na Universidade Positivo (2003/2011). Juiz Federal (TRF3).

    RESUMO

    A violncia marca a sociedade atual de uma forma nunca verificada em outros

    tempos. Seu espao nos caminhos do homem atual tem se intensificado de modo a

    exigir uma reflexo de fundo, com vistas sua aniquilao, ou, ao seu controle.

    notvel o insucesso da teoria moderna com alicerces greco-romanos, juntamente

    com a ideia de contrato social, de instrumento normativo como regulao da

    violncia. Diante desta impossibilidade de resposta violncia pela norma, e todo o

    aparato jurdico, o velho tema grego da mediao tem reaparecido e se colocado,

    como um lugar interessante de dilogo com a violncia, voltado muito mais a

    redescobrir mecanismos para que a violncia seja falada e metabolizada, ao invs,

    como sempre o quis a racionalizao da modernidade, silenciada. Diante disso,

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    torna-se necessrio estudar a fundo a origem da mediao, desde suas bases

    gregas e seu lugar ps-positivista de elemento de regulao da violncia.

    Palavras-chave: violncia; mediao; ps-positivismo.

    ABSTRACT

    The violence marks the current society in a way never seen at other times. The

    space taken in the ways of modern man has intensified, requiring deep reflection,

    seeking its annihilation, or at control. It is notable failure of the modern theory with

    Greco-Roman foundations, along with the idea of social contract normative

    instrument to regulate violence. Given this inability to respond to violence by the

    standard, and the entire legal apparatus, the old Greek theme of mediation has

    reappeared and is placed as an interesting place for dialogue with violence, geared

    more to rediscover mechanisms that violence is spoken metabolized and, instead, as

    usually wanted, rationalization of modernity, silenced. Therefore, it becomes

    necessary to study in depth the origin of mediation, from the Greek basis and its

    place post-positivist as the element of regulatory of violence.

    Keywords: violence; mediation; post-positivist.

    INTRODUO

    A sociedade contempornea marcada por um trao peculiar: a violncia. Por

    certo que outras sociedades e em outros momentos tambm o foram, mas talvez

    no do modo como a violncia tem se apresentado aos olhares cotidianos, no com

    o sublinhado e com a feio que rompe as relaes sociais e enrijece as virtudes

    individuais. Seu espao nos caminhos do homem atual tem se intensificado de modo

    a exigir uma reflexo de fundo, desde sua essncia at planos mais concretos com

    vistas sua aniquilao, ou, quando muito, ao seu dbil controle.

    A teoria moderna apresentou, com alicerces essencialmente greco-romanos, o

    instrumento normativo como elemento de regulao das pulses, das emoes, dos

  • 114

    sentimentos de conservao, de subsistncia, e de autopreservao. Contudo, no

    de todo invisvel que a histria recente tem demonstrado o seu insucesso e que

    nem mesmo a fico medieval do contrato social foi capaz de alcanar este objetivo,

    a no ser superficialmente, a ver-se pelas constantes irracionalidades e pelas

    interminveis erupes violentas, seja por atos individuais (massacres, homicdios

    banais, inconsequncias no trnsito), seja por atos estatais (desde os genocdios e

    as guerras aos atos de controle da criminalidade operado pelas mais diversas

    instncias pblicas).

    Diante desta impossibilidade de resposta violncia pela norma, e todo o

    aparato jurdico, o velho tema grego da mediao tem reaparecido e se colocado, ao

    menos nas ltimas duas dcadas, como um lugar interessante de dilogo com a

    violncia, voltado muito mais a redescobrir mecanismos para que a violncia seja

    falada e metabolizada, ao invs, como sempre o quis a racionalizao da

    modernidade, silenciada. Trata-se de tema denso e com certa caracterstica de

    atualidade, cuja tecnologia contempornea ainda est sendo construda e abre

    espaos para reflexes como a que segue.

    O conhecimento tcnico da mediao e seus programas autocompositivos, cdigo

    de tica, comunicao conciliatria, polticas pblicas alternativas etc., embora

    fundamentais, exigem antes a compreenso do fenmeno da mediao desde uma

    perspectiva abstrata, de base, essencialmente filosfica, voltada reflexo do seu

    lugar enquanto instrumento de regulao social de condutas e no apenas de

    resoluo de conflitos no mbito jurdico.

    Esta apreenso do tema da mediao e seu lugar no plano da justia consensual

    poderia ser feita a partir de uma srie interminvel de pontos de vistas,

    especialmente pela dimenso que tem ocupado no horizonte das cincias humanas

    e seu alcance material no mbito do Poder Judicirio. Leituras sociolgicas,

    antropolgicas, polticas, pedaggicas, psicanalticas entre outras poderiam dar

    ensejo a indagaes com grande riqueza de perspectivas, contudo, necessrio

    fazer um recorte antes de discutir o tema, a fim de evitar contradies, excessivas

    superficialidades, confuses conceituais, enganos etiolgicos.

  • 115

    Num primeiro plano, afastam-se, portanto, investigaes de outra ordem que no

    sejam essencialmente filosficas, dada a necessidade de inquirir a mediao de

    maneira especulativa, zettica, de compreenso de suas causas, de sua origem, e

    de seu papel desempenhado diante do tema da violncia. Num segundo, separam-

    se as vises possveis da violncia no plano das relaes intersubjetivas em relao

    violncia no plano das relaes entre indivduo e Estado, dado o interesse

    momentneo de compreenso desta ltima forma1.Num derradeiro, faz-se marcar na

    investigao da violncia (porque vista na perspectiva indivduo-estatal) o eco de

    Walter Benjamin e seu texto Crtica da Violncia2 e da mediao o de Jacqueline

    Morineau (porque de forte cunho reflexivo greco-antigo) e seu texto Sobre o Esprito

    da Mediao3.

    Feitas tais escanses, possvel abrir o ensaio com o seguinte percurso

    metodolgico: uma especulao sobre a violncia na sociedade contempornea, em

    seguida, sobre o papel desempenhado pelo ordenamento jurdico no seu controle,

    para, ao final, discutir a mediao desde suas bases gregas e seu lugar ps-

    positivista de elemento de regulao da violncia.

    1. VIOLNCIA: TRAOS FILOSFICOS

    Para os grecistas, o nascimento do homem, todos os seus atributos e toda a

    construo de sua subjetividade esto intimamente ligados separao original com

    o plano divino. da ruptura desta unidade que o esprito humano se separa do

    esprito absoluto e passa a vivenciar a mundanalidadade em todas as suas

    dimenses. Tem-se a a violncia inicial, que funda o humano e o torna dbil,

    poroso, dctil, frgil, insustentvel. Impem-se-lhe, ento, a insegurana do vazio, o

    medo da fragmentariedade, a inquietao da reproduo de novas fraturas, o temor

    1 A presente reflexo motivada, em parte, pela tentativa de compreenso do movimento de mediao, que ganha espaos crescentes nos conflitos judiciais operados dentro da Justia Federal, cujo duelo histrico ope homens e instituies pblicas. Eis, porque, convm centrar-se na violncia indivduo-estatal ao final da reflexo sobre a violncia.

    2 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt (1920/1921). In.: Walter Benjamin Gesammelte Schriften. (org. R. Tiedemann e H. Schweppenhuser) v. II.1. Frankfurt: Suhrkamp, p. 179-204, 1999. 3 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation. Ramonville Saint-Agne: rs, 1998.

  • 116

    da fora natural. No lugar da plenitude e da universalidade divina, coloca-se o

    homem sorte de seu caminho, sem mais um fim especfico, sem mais um sentido

    dado. Est, assim, consagrado vida, inteira na exterioridade, partida na essncia.

    Sua histria ser a de recolher seus pedaos no plano material, e, no plano

    espiritual a reconstruir a unidade primeira.

    Por isso, a subjetividade se constri desde sempre com a elasticidade

    fundamental para se adaptar a qualquer forma de segurana, de rigidez, de

    completude. prprio do humano, para os gregos, esta necessidade de se

    recodificar desde a identidade original, de lutar incansavelmente pelo regozijo da

    unicidade da qual foi despojado violentamente, e que lhe causa um imenso e

    constante sofrimento4. Seu destino , portanto, a histria de seu regresso ontolgico,

    de sua viagem de retorno do que entende jamais poder ter partido.

    No foram poucos os mitos que procuraram, com toda a riqueza de suas

    fantasias, reconstruir esse momento em que o homem criado. Suas narrativas

    exploram exatamente o tempo de ruptura e sua ntima relao com o aparecimento

    da violncia. Aproximam-se a violao original, a violncia fundadora5 e a violncia

    incrustada na essncia humana.

    Separada a terra do cu, e tendo sido as coisas arranjadas e dispostas em ordem

    (rios, animais, montanhas), foi Prometeu incumbido de construir o mais nobre dos

    animais o homem, preferencialmente a partir das sementes celestiais ocultas que

    permaneceram da diferenciao entre cu e terra, para que pudesse ter a marca do

    divino. Por isso afirma Ovdio que o homem, ao contrrio dos outros animais, seria

    posto ereto, para que pudesse a todo instante olhar o cu e as estrelas. Ento

    Prometeu pede a seu irmo Epimeteu que atribua a cada animal dons variados, e, o

    que entendesse de mais relevante, ao homem. Epimeteu acaba gastando todos os

    seus recursos e nada mais resta ao homem seno um pouco de gua e terra.

    Prometeu, assim, com a ajuda de Minerva (sabedoria divina), sobe aos cus e

    acende uma tocha no carro do sol, trazendo o fogo para o homem, a fim de que este

    pudesse ser o mais forte, o mais temido e mantivesse a sua preservao diante dos 4 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 23. 5 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 117.

  • 117

    tantos dons dos outros animais. pelo fogo e o poder sobre os outros animais que a

    vida humana aparece. Eis porque a vida se entrelaa desde a origem com o poder

    de preservao. A manuteno do homem s passava a ser possvel porque o fogo

    lhe dava a fora para fabricar as suas prprias armas, para subjugar os animais,

    para forjar o ferro e ter as ferramentas necessrias ao cultivo da terra e sua

    alimentao, para aquecer o lugar em que vivesse, tornando-se independente do

    clima da natureza, do destino do divino. A vida humana est, portanto, liga sua

    autopreservao, e, consequentemente, ao poder (representado pelo fogo que

    Minerva ajudou a encontrar) de a tudo submeter, dominar.

    No toa, ao que bem cairia a um mitlogo, a palavra vida no grego antigo (,

    ) tem o mesmo radical que a palavra poder ().6 Sua proximidade grfica e

    fontica leva compreenso de que ambos esto intimamente ligados, desde o

    plano mais concreto, ao plano mais abstrato. A vida institui o poder e este a vida,

    num amlgama de fontes, instantes iniciais, caminhos, fins. Do mito compreenso

    do mundo pela linguagem, vida e poder dividem os mesmos traos, de modo que o

    viver expresso de poder, manifestao de violncia, e estes implicam na

    criao e na reproduo da vida. Viver, no sentido mais puro, desde sempre,

    preservar-se, e, logo, exteriorizar seu sofrimento mundano pela violncia sobre os

    outros; duelar com a natureza; transformar tudo s suas necessidades.

    Prometeu, aps forjar o homem e dar-lhe o fogo e o poder necessrios

    autopreservao, seria ento alvo de punio de Zeus, justamente por ter exposto o

    segredo do fogo que deveria ter sido mantido no plano divino. Zeus pede a Hefesto

    que crie a mulher perfeita e a envie a Epimeteu, o irmo de Prometeu. Pandora, a

    que tem todos os dons ( ) recebe de Crites, Atena, Afrodite, Hermes as

    mais diversas qualidades (sexualidade, beleza, fala, encanto), mas guarda consigo

    uma caixa de todos os males (violncia, insanidade, senilidade, vcio, fome, doena),

    que no poderia ser aberta. Epimeteu, embora advertido pelo irmo de jamais

    receber presente dos deuses, admira-se com a sua beleza e com ela se esposa.

    Pandora e seu marido abrem a caixa, e de l saem os males para perseguir toda a 6 ROMIZI, Renato. Greco antico: vocabolario greco etimologico e ragionato. 3 ed. Bologna: Zanichelli, 2007, p. 265-66. Aponta o lingista que a raiz de poder/violncia , , , a mesma que vida , .

  • 118

    humanidade. Instalam-se, ento, todas as aflies de que o homem havia sido

    isento no momento de sua criao7.

    Embora tenham conseguido fechar a caixa e guardar a nica criatura alada, a

    Esperana, que marcar a existncia humana da preservao, o que fica claro no

    mito que a violncia se coloca tambm lado-a-lado do poder, posto que uma forma

    de punir o homem pela ousadia de fazer o que no lhe tinha sido permitido. Tem-se,

    ento, um novo aspecto da violncia, agora no apenas a original pela separao

    com o divino, mas aquela que vcio, negatividade e pena imposta ao destino do

    homem. pelo uso do poder de ter se atrevido a ter o fogo dos deuses, que a

    violncia acompanhar as vicissitudes humanas. violncia original (a mesma

    que atribuiu a vida ao homem e lhe deu o poder de

    autopreservao) vem associar-se a violncia desvirtude8 (a que vincula o exerccio

    do poder a lhe confere a punio da violncia ) .

    Convenientemente tambm a palavra grega poder () tem a mesma grafia da

    palavra violncia (). Vinculao essa que Walter Benjamin se utilizar do mesmo

    modo no alemo, que l estrategicamente em Gewalt a traduo tanto de poder

    quanto de violncia. Se na mitologia, so irmos, no plano da especulao filosfica,

    o entrelaamento oportuno. Na origem, a violncia a desvirtude, o produto do

    excesso da fora fsica9, o exerccio desvairado do poder. Poder que expresso da

    autopreservao, que reproduz a violncia inaugural, em que o homem foi lanado

    ao destino, sem as armas divinas, para a vida. Tudo, de maneira extraordinria e

    sintaticamente simples e prximo em grego antigo: (Violncia, Vida, Poder).

    Esse emaranhado de significantes traz, como dito, a marca de uma ausncia

    original, uma falta original que a psicanlise freudiana soube muito bem explorar no

    incio do sc. XX. O homem posto a relembrar incessantemente o temor pelo

    7 HESODO, Teogonia, 590-593; 604-607. HESODO, Os trabalhos e os dias, 67-68; 81-82. 8 O uso da palavra desvirtude cumpre dualidade da violncia, punio humana, punio divina. Tanto que a Marte, que teve o azar de ser o ltimo a escolher a virtude de que se esposaria, coube-lhe a (violncia), filha da ocenide Palas e de Estige. Curiosamente, a Violncia, antes de passar a viver com Marte, teria sido bem-aventurada, ao aliar-se aos Deus Olmpicos na Titanomaquia, juntamente com seus irmo (poder), (vitria) e (grandeza), cuja proximidade no passada despercebida na mitologia. Veja-se a referncia em ESQUILO, Prometeu acorrentado e PLATO, Protgoras. 9 HESODO, Teogonia, 383.

  • 119

    desconhecido e o sentimento de reverncia, a crise do distanciamento do divino e

    desejo de regresso unidade, passa a ter consigo a violncia-preservao, a

    violncia que conduz vida ao tempo que morte, sempre num estranho e

    inelutvel espelho da violncia inaugural.

    O homem marcado, como bem apraz a Morineau10, pela escalada da violncia

    com os outros, pela preservao; consigo, pelo retorno origem e vida. A

    violncia marca a subjetividade humana, sem limites,11 permitindo, por um lado, ao

    homem o progresso, o caminhar, a consecuo da vida; por outro, a punio

    daquele que exerce o poder em seu excesso no plano da individualidade e impede o

    caminhar conjunto no plano comunitrio. Essa dplice natureza da violncia, como

    necessria e como indesejada, traz tona aquela insegurana da ruptura, de modo

    a conduzir o homem constantemente a encontrar subterfgios, ancoradouros,

    suportes, cujos deuses outrora lhe serviram.

    A violncia avizinha-se da insegurana (da preservao, da separao) e passa

    a se apresentar associada quase sempre a manifestaes pblicas de desrespeito,

    de fora bruta, de aniquilamento, de crueldade. Seus traos se sobrepem ao

    simples humano e ganham foros de origem. A necessidade de preservao

    aproxima a vida da violncia, e a violncia do poder, de modo a exteriorizar-se

    constantemente em atos, gestos, palavras, impresses, sons. A violncia

    cotidianamente se verbaliza, comunica-se, expande-se por si mesma. A

    impossibilidade do retorno renova o desagrado original, e implica de maneira

    exponencial a violncia na violncia.

    No foram poucas as expresses histricas da violncia dos homens contra os

    homens, do homens consigo mesmos, em todas as fases, em todas as epistemes. A

    histria da humanidade reproduziu, ao menos em termos especulativos, a mesma

    essncia da violncia original, mudando apenas a sua roupagem, os seus atores

    (ora indivduo, ora grupos, ora instituies pblicas) ou o modo como se expressou e

    foi trabalhada.

    10 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation, p. 51. 11 FERRAZ JNIOR,Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexes sobre o poder, a liberdade, a justia e o direito. So Paulo: Atlas, 2002, p. 70.

  • 120

    No mundo contemporneo, como no poderia ser diferente, a violncia tambm

    tem seu lugar fundamental. A ela vem se atrelar uma caracterstica do homem de

    hoje, que traz essncia da violncia um dado singular, qual seja, a de ser um

    homem do dbito, destinado a dever tempo, estudo, esforo, valores, tudo em razo

    do apressamento do mundo atual. A tecnologia desenvolvida em ritmo acelerado, a

    alcance estendido do conhecimento, o rigor do trabalho, a insubsistncia dos meios

    de vida, a materializao da vida em detrimento de sua abstrao essencial,

    conduzem disseminao de uma cultura de violncia talvez no antes vivida deste

    modo.

    No plano intersubjetivo, abre-se espao para um homem gravado pela reduo

    gradativa do plano simblico; do imprio da satisfao dos sentidos; da inverso

    entre o concreto e o abstrato; do magistrio das mdias e a reduo da reflexo; da

    diminuio da espiritualidade; da incapacidade de trabalhar com o tempo; da

    excessiva retribuio econmica de seus atos; do retorno condio de estado

    natural; da desagregao de valores sociais e familiares; da perda de objetivos de

    longo prazo; das relaes rpidas e infrutferas; das personalidades flexveis e

    elsticas; do elogio do espetculo e da imagem; da porosidade das relaes sociais;

    do incremento do preconceito oculto.

    Visto de modo abrangente, o homem contemporneo substitui lentamente as

    abstraes construtivas (as destinadas a compreender a si, aos outros, seu lugar no

    mundo, em suma, essencialmente de ordem filosfica) por abstraes destrutivas

    (refutando saberes abstratos, incrementando prazeres sensoriais). No apenas por

    reduzir o abstrato ao concreto, tem-se uma inverso ontolgica no prprio abstrato,

    ora no mais gravado pela construo, mas pela destruio. Com isso, o que era

    autopreservao, e, portanto, vida, torna-se exclusivamente a manuteno da vida

    material, e se opera a perda daquelas sementes celestiais ocultas que bem aprouve

    a Prometeu, de modo a se perder a dimenso da vida imaterial. A vida, ento,

    aproxima-se no apenas lingisticamente do poder e da violncia, mas a eles se

    reduz semanticamente em seu elemento negativo, no como Eros, mas como

    Thanatos.

  • 121

    Isto implica que a subjetividade humana est resumida, sintetizada, e sua

    duplicidade se fundiu, no mais unidade original, mas unidade da prpria vivncia

    material, na expresso pblica de abstraes destrutivas. Come-se

    desvairadamente, pratica-se sexo desatinadamente, satisfaz-se famelicamente. O

    culto do dbito sensorial, imagtico, e no do simblico abstrato, compreensivo,

    especulativo. Com isto, o homem reduz-se dimenso desumana da simples

    sobrevivncia, quando a fora e o poder tm apenas um sentido: preservar-se

    (talvez fosse hoje mais fcil a Epimeteu atribuir um dom ao homem, se no o tivesse

    deixado para o final).

    O poder torna-se violncia pura, cultura de violncia, que aniquila subjetividades e

    passa a estar a servio da dimenso material da vida. O humano torna-se uno, no

    mais uno-divino, mas uno-consigo, uno-individual, essencialmente privado (ao que

    bem explorou Tercio Sampaio no esboo de Arendt)12, de satisfao de

    necessidades. Naturalmente, o homem desagregou-se no sabor aristotlico, sua

    vida poltica, gregria ( ) se tornou apenas vida (), e, ao fim,

    violncia ().

    Por isso, a marca da contemporaneidade o desapego, o esquecimento do outro,

    o egosmo, a centricidade. O que era espordico se tornou cotidiano, o que era vcio

    se tornou virtude elogivel, o que era destruio se tornou herosmo. Homicdios

    banais, violncias furtivas, desrespeitos gratuitos tudo no plano da

    superficialidade, sobreposta terra, na mundanidade.

    A essa caracterstica, sempre se construram por reflexo as instituies pblicas,

    a depender do seu tempo e do contexto histrico. Caminharam o poder no plano

    individual e o poder no plano pblico com certos traos semelhantes, nem sempre

    no mesmo compasso e no mesmo tempo, mas sempre com caractersticas muito

    prximas. Ainda que o reducionismo corra o risco do erro grosseiro, aos homens de

    maior complexidade de vida (), violncias () dirigidas no plano pblico com

    caractersticas semelhantes; aos homens com menor complexidade de vida,

    violncia dbeis de fundamento. 12 FERRAZ JNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 2 ed. So Paulo: Atlas, 1994, p. 28.

  • 122

    Contudo, a violncia praticada pelo coletivo, e no mundo moderno, pelo Estado,

    alcana digresses que vo um pouco alm daquelas que exps essencialmente o

    homem nas linhas acima. Ganha-se um incremento diverso, que no se reduz

    violncia do homem contra o homem, na autopreservao, mas a violncia de todos

    ao mesmo tempo contra o homem, personificado no Estado.

    Por certo que a questo no to simples, ou, ao menos, no pode ser

    sintetizada como se o modelo de Estado houvesse sido sempre o mesmo,

    ignorando-se as razoveis e profundas diferenas do liberalismo ao

    intervencionismo. Contudo, se a reflexo poderia ser lanada nestes termos no

    plano da cincia poltica, da sociologia, da teoria do estado, no o pode em termos

    filosficos. A questo da violncia indivduo-estatal opera-se no plano ontolgico

    com caractersticas muito prximas, independentemente das formas exteriores de

    manifestao poltica do Estado. Evidentemente que Estados Liberais e Estados

    Sociais aproximam-se e se distanciam do homem de maneira e com intensidades

    distintas, mas a relao da violncia original ganha, na essncia, o mesmo contorno:

    da violncia do homem contra todos e de todos contra o homem.

    Essa nova dualidade da violncia, no mais da separao original, nem mais da

    punio como desvirtude, mas ento como violncia do homem contra todos e

    destes contra o homem faz supor que o relacionamento entre o indivduo e o espao

    pblico (reduzido no mundo moderno ao Estado, sem qualquer sentido subjetivo,

    diversamente do que o fora entre os gregos), obrigatoriamente baseado na

    violncia recproca. Em sendo o Estado produto das vontades individuais, desde os

    tempos de Francisco Suarez ou do contratualismo dos scs. XVI e XVII, o certo

    que sua configurao representa o mecanismo coletivo de restrio de violncias

    isoladas, ao tempo que proteo de individualidades, mas, tambm, mecanismo

    coletivo de implementao de violncias setorizadas destinada a fazer cumprir o

    bem-pblico.

    Instaura-se no plano da relao indivduo-estatal um campo pervertido da

    violncia, por que a instituio pblica se coloca como um grande instrumento de

    coeso de todos com todos, restringindo violncias individuais, enquanto mecanismo

  • 123

    de desagregao ao colocar todos contra o homem. pervertida porque o Estado

    est a servio e contra o homem, ao mesmo tempo fundante, diversamente do que

    ocorre no plano intersubjetivo. A violncia que se reproduz, imagem da violncia

    inaugural, na luta pela sobrevivncia, ope o homem contra o homem de maneira

    intermitente, eis porque as relaes so de amor e de dio, porm cada uma ao seu

    tempo. Diversamente do plano indivduo-estatal, em que o coletivo violenta o homem

    e este violenta individualmente o Estado porque v nele o algoz de sua privacidade,

    do lugar do exerccio de sua violncia privada.

    Cria o Estado mecanismos constantes para o exerccio de sua violncia contra

    o indivduo, de maneira ostensiva, omissiva, indiferente, ao evitar que promova sua

    autopreservao, ao impedir que faa o regresso unidade inicial, ao retirar sua

    estreita relao entre o poder e a vida. Desfalece o humano, predestina-o

    impotncia, sacrifica sua mundanalidadade. Homem e Estado opem-se, mutilam-

    se, necessria e desnecessariamente, numa costura doentia que retira a prpria

    essncia do homem e o distancia de seu plano abstrato ao conduzi-lo a relaes

    subjetivas foradas, domsticas, com tempo, valor e fundamentos estranhos

    subjetividade. Dentre estes mecanismos, opera o direito um tributo destacado.

    2. VIOLNCIA E DIREITO: COSTURAS JUSPOSITIVISTAS DO JUSTO

    NORMATIVO

    Coloca-se ento o problema difcil de ser superado que o da possvel

    conciliao do homem com o Estado13, seja na perspectiva de um direito que

    contraditoriamente lhe defendeu da violncia pela violncia, seja na perspectiva de

    um processo de mediao, que no deixa de ser, tambm, um instrumento mediato

    de violncia. Se o Estado em especial, mas tambm as demais instituies pblicas,

    pode ser visto (como aqui se escolhe) como expresso da violncia de todos contra

    o homem numa perspectiva especulativa, possvel procurar compreender o papel 13 Em especial no mbito da Justia Federal, j que os conflitos so essencialmente de ndole indivduo-estatal, seja tambm no plano da justia criminal, quando, em suma, tambm se ope o uso da violncia legtima Estado e o indivduo. Eis o foco de tantas crticas, em grande medida louvveis e com grande capacidade de inquietao, do uso da medidao no plano federal e no plano criminal (estadual ou federal).

  • 124

    que a normatividade exerce nesse captulo, seu lugar privilegiado de estar na

    dplice funo repressiva e instituidora da violncia estatal e do prprio direito.

    O direito moderno nasce com a marca do aniquilamento da violncia isolada, e,

    logo, como um grande instrumento de traduo da desordem em ordem, do natural

    em positivo, da barbrie em civilizao. Sua fora j entre os gregos tinha um

    sentido especfico, que, embora tenha a modernidade aprimorada, desde sempre

    guardou uma caracterstica essencial: forjar personalidades (para as virtudes, como

    queria o direito grego ricamente constitutivo, para o til, como o querem o direito

    moderno e o contemporneo robustamente manipuladores).

    A normatividade, vista na sua essncia clssica, cujos traos ainda permanecem

    em grande medida vivos, traz no ninho a marca da violncia, posto que antes,

    positividade, porque implica numa dimenso material, real, efetiva, segura, que

    afirma e infirma prticas, atos, e, logo, manifestao de vontade. Defendia os gregos

    que o normativo estava vinculado perquirio do justocomo excluso do excesso,

    da destemperana. Ao exigir do homem o respeito social e o dever comunitrio

    como forma de acalmar-lhe a violncia original, tal como bem trabalhara Antifonte,14

    redefine-se a violncia como reforo de contradio natureza. Violncia e norma

    esto presas desde sempre ao velho debate (natureza) - (norma), em

    que a normatividade violenta a natureza do homem e o submete aos anseios da

    construo coletiva do espao pblico.15

    O debate (natureza) - (norma), apresentado de maneira muito clara

    no Oxyrhynchus Papyri XI n. 1364 de Antifonte consegue sintetizar a noo que

    diferencia ambas: i) aquela se torna fundamental na ausncia de testemunhas,

    enquanto esta na sua presena; ii) a punio pela violao daquela ocorre ainda

    quando no for vista por algum, enquanto por esta apenas se presenciada por

    algum; iii) aquela inevitvel e necessria, j esta subsidiria e secundria; iv)

    aquela decorre da natureza, independentemente do acordo, enquanto esta nasce do

    contrato social; v) aquela est relacionada verdade, eis porque punir o homem por 14 DIELS, H.; KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin, 1952. E BLASS. Antiphon. Orationes. Leipzig, 1973. 15 Certamente toda uma discusso sobre a relao (natureza) - (norma) poderia ser posta, mas que no convm neste ensaio, apenas no que diz com a positividade.

  • 125

    seu desrespeito reestabelecer o homem na condio de verdade, enquanto esta

    se relaciona s opinies, ao aceito, sem se preocupar com a verdade das coisas; vi)

    aquela est no plano da liberdade, enquanto esta no plano da proibio.

    Com isto, Antifonte pretende demonstrar, dentre tantas questes essenciais,

    segundo Gerard Pendrick16 e George Keferd,17 que a violncia se expe pela

    punio que a norma impinge quele que opta por seguir a natureza, seus

    instintos, suas paixes, e,consequentemente, o excesso.18 A leitura feita visualiza

    no (norma) uma forma de restrio imposta (natureza). Apesar das

    diferenas, Clicles tambm sugere que a norma est vinculada com a fora e a

    violncia medida que expe que o melhor prevalece sobre o pior, tal qual o mais

    capaz sobre o menos, de modo que o critrio de justia nada mais representa que o

    domnio da supremacia do mais dotado sobre o mais fraco. V Clicles que o Estado

    e o (norma) um meio usado pelos fracos e medocres para neutralizar os

    mais fortes por natureza, e, sobre eles, sobreporem-se. Por isso o (norma)

    injusto, porque contraria a (natureza) e representa apenas o elogio da

    vaidade e da insegurana. H, enfim, uma relao inevitvel entre os homens e os

    outros animais, posto que a (natureza) se faz presente pelo instinto. Mesmo

    Trasmaco afirma que o poder exposto na norma reduzido a simples fora que

    procura submeter o mais fraco ao mais forte. Ao ser um produto artifical do homem,

    o (norma) uma forma de impedimento natureza humana de perseguir o

    seu prprio interesse.

    Essa caracterstica da normatividade permanece, por certo que com contornos

    distintos, com a mesma marca da violncia essencial da positividade. O direito, e,

    modernamente o ordenamento jurdico, so criados a servio do coletivo (hoje

    estatal), para reprimir manifestaes isoladas de violncia, ao passo que

    16 PENDRICK, Gerard. The sophistic antithesis - and natural law.; PIERRIS, Apstolos L. The order of existence: , , , , . In.: and : power, justice and the agonistical ideal of life in high classicism. (ed. Apstolos L. Pierris). Patras: Institute for Philosophical Research, p. 261-268, 2007. 17 KEFERD, George B. The sophistic movement. Cambridge, 1981, p. 114. 18 Evidentemente que outras leituras so possveis, como a de Clicles no Grgias de Plato, em que a marca de um verdadeiro sofista expressa-se ao deixa transparecer, por uma perspectiva biolgica e naturalstica, um viso que v o homem como um ser submetido natureza a qual no pode modificar. Haveria um princpio de conduta externo ao homem que lhe daria um tom instintivo. PLATO, Grgias, 482, e 484, c.

  • 126

    implementa condies existncias de autoreproduo. Seguindo Benjamin, a

    violncia legal um mecanismo destinado manuteno do direito, eis porque se

    fala de uma violncia conservadora do direito (rechtserhaltende Gewalt), assim

    como tambm o uma violncia fundadora do direito (rechtsetzende Gewalt). A

    violncia considerada como um meio que abre espao para o aparecimento de

    uma nova fundao de direito, destruindo o existente (vejam-se as greves no

    exemplo benjaminiano, as guerras etc.) e reformulando o estatuto do poder.

    Por isso, se ao direito natural cumpre o exerccio legtimo da violncia a fins

    naturais justos, ao direito positivo cumpre sustentar a justia dos fins pela

    legitimidade dos meios: o direito natural tende a justificar os meios legtimos com a

    justia dos fins, e o direito positivo a garantir a justia dos fins com a legitimidade

    dos meios19 Isto representa que os fins esto a depender dos meios, de sua

    legitimidade. Se num primeiro momento, consagra um processo de racionalizao

    do poder, por outro, legitimidade que se atribui ao direito de poder fazer uso da

    violncia para atingir seus prprios fins. A normatividade posta pelo recurso da

    violncia, j que os fins naturais das pessoas singulares se chocam

    necessariamente com os fins jurdicos 20. Por isso que a violncia do homem

    vista pelo direito com uma ameaa de perigo (Gefahr) para o ordenamento jurdico.

    No est, ento, o direito propriamente na tentativa de implementar condies

    humanas, e, logo, de fins jurdicos, seno de proteger a si mesmo enquanto

    instituio carter nitidamente de violncia consciente e produtora:

    possibilidade de que o interesse do direito por monopolizar a violncia em relao

    pessoa isolada no tenha como explicao a inteno de salvaguardar fins jurdicos,

    seno, sobretudo, de salvaguardar o prprio direito.21 Tem-se o que se pode dizer

    como o justo normativo, tanto esmiuado pelo positivismo, justo enquanto jurdico e

    19 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 180. Das Naturrecht strebt, durch die Gerechtigkei der Zwecke die Mittel zu > rechtfertigengarantieren

  • 127

    como reprodutor de seu prprio sentido. Por isso se criaram pelos mais variados

    mecanismos figuras simblicas ao longo da histria com vistas a expurgar

    abstratamente (s vezes fisicamente por vtimas sacrificveis) toda manifestao do

    humano que fosse capaz de trazer ameaas a esse fim da violncia: reproduzir-se

    enquanto instituio jurdica.

    Benjamim fala da clssica figura do grande delinqente (grossen Verbrechers)22,

    tanto explorado pela crimonologia positiva do sec. XIX, cuja admirao popular

    sempre conquistou. Ao torn-lo um bode expiatrio (bouc missaire nas palavras de

    Morineau),23 probe-se violentamente que pessoas isoladas pratiquem a violncia

    destrutiva do direito, que , em ltima instncia, dado o monismo jurdico, voltada

    contra o Estado. Mas no mesmo compasso a violncia tambm instituidora de

    direito, com um imenso carter de criao jurdica (ein rechtsetzender Charakter)24,

    a qual temida pelo Estado, como nas greves, nas guerras, a que no lhe resta

    outra sada se no aceit-las.25

    Mas o temor desta violncia fundadora do direito (rechtsetzende Gewalt),

    desdobra-a em violncia conservadora do direito (rechtserhaltende Gewalt), que

    procura alcanar fins jurdicos e no fins naturais. Um poder exercido pelo direito

    enquanto ameaa jurdica atravs, sobretudo, dos aparelhos estatais. Coloca-se o

    Estado numa matriz militarista que se deixa expressar especialmente pela polcia e

    seu poder de no apenas manter a existncia do normativo (eis porque no

    verdadeiramente submissa ao direito), mas de dispor no seu limite sobre o prprio

    contedo normativo, ocupando espaos que caberiam hermenutica cientfica.

    uma violncia ao mesmo tempo fundante e mantenedora, que age

    por razes de segurana nacional (der Sicherheit wegen),26 como meio espectral

    22 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 184. 23 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation, p. 39. 24 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 186. 25 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 186. Der Staat aber frchtet diese Gewalt schlechterdings als rechtsetzend (Porm, o Estado teme esta violncia em seu carter de criao de direito) 26 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 190.

  • 128

    (gespenstische), difuso (allverbreitete)27 inserida sorrateiramente nos corpos e nas

    almas.

    Trata-se de uma violncia microfsica, pulverizada, que coloca todo o aparato

    estatal sua consecuo. E nisso, nem mesmo o Poder Judicirio, com sua

    desejada independncia consegue fugir: esto, assim, juzes a servio da polcia, a

    servio da violncia estatal. O que Michel Foucault diria em outros termos, pensando

    sobre casos clnicos. Ao colocar-se no papel de resolver os conflitos, mascara-se no

    propsito supremo de aplicar o direito, e, nesse instante, reprime com suas decises

    a violncia individual, e obriga violentamente a reafirmao da normatividade.

    Nessa mesma linha28, sustentou anos mais tarde Michel Foucault29 a existncia

    de um poder jurdico-discursivo, operado tambm pelo estado a servio da

    governabilidade de maneira difusa, atravs de um grande empreendimento sobre o

    corpo e sobre a alma dos cidados, numa espcie de regularidade micromecnica

    que ocupa cada vo comunicativo e opera toda sorte de dominao, represso,

    estratgia e artimanha, e, consequentemente, abre caminho para mecanismos de

    excluso, vigilncia, medicalizao da sexualidade, da loucura, da delinqncia. Um

    grande empreendimento ttico e tcnico de dominao, que faz da violncia

    silenciosa seu grande ferramental.

    Se o poder difuso e se exerce globalmente sobre os indivduos, com a violncia

    da tcnica e da cincia (como Foucault trabalha em outros campos), haveria ento

    outro papel ao direito seno ser sempre violncia? Ao que Benjamim

    descrentemente responde: no. Toda expresso da normatividade um exerccio

    inevitvel de violncia. Mesmo os acordos formalizados nos contratos pelos

    particulares so sempre expresso de violncia, seja porque a origem do ajuste

    fruto da violncia entre particulares, seja porque sempre permitem, na sua

    insolvncia, o uso da violncia recproca.30

    27 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 191. 28 Apesar da riqueza foucauldiana, no convm aqui avanar por questo exclusiva de mtodo e centralidade na violncia antes do que no poder. 29 FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique. Cours au Collge de France (1978-1979). Paris: Gallimard et Seuil, 2004. 30 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 191.

  • 129

    Em sendo o direito, portanto, um instrumento intimamente ligado violncia em

    sua origem, em sua positividade, bem assim em sua forma de resolver conflitos,

    ficam as vsceras expostas, de modo a demonstrar que a forma cotidiana de manter

    a ordem e inibir conflitos frgil, dbil, seno intil em seu papel regulador. Torna-se

    assim mais cristalino, apenas, que o papel do Estado face o homem, por meio do

    direito (e a todos os institutos e todo aparato legislativo, executivo e judicirio esto

    ao seu dispor) infecundo no seu propsito declarado, mas nada estril em seu

    papel de reformulao da prpria crena no direito, de salvaguard-lo como quisera

    Benjamin.31 A violncia cria, em suma, uma rusga irreconcilivel na relao

    indivduo-estatal, o que torna sempre beligerante e agressiva qualquer forma de

    investida recproca, ainda que voltada ao apaziguamento esperado.

    3. VIOLNCIA E MEDIAO: PROPOSIES PS-POSITIVISTAS DO JUSTO

    METBOLE

    Ainda nos 1920, Benjamin j se perguntava se, sendo a relao infrutuosa entre o

    direito, o indivduo e o Estado, seria possvel uma regulao no-violenta dos

    conflitos?32 Em resposta, aceita-a, desde que a cultura dos sentimentos (Kultur des

    Herzens) coloque a questo de dispor os homens por meios puros de entendimento

    (reine Mittel der Einigung). pela verdadeira esfera do entender-se

    (Verstndigung)33 pela linguagem, pela conversao que o conflito pode deixar de

    existir sem ser violento.

    Aparece, assim, algo que os gregos souberam muito bem explorar, que a arte

    do dilogo, ou, mais especificamente ao aqui interessa, a arte da mediao

    indiretamente exposta nas tragdias de modo mais significativo, nas festas

    populares, nos jogos olmpicos. A mediao, embora se feita pelo Estado (como tem

    31 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 184. 32 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 193. Ist berhaupt gewaltlose Beilegung von Konflikten mglich? 33 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 193-94. Benjamin avana e afirma que somente pelo meio puro do entender-se que o conflito poderia se extinguir, especialmente pelo fato de que h uma regra essencial: a impunidade da mentira (an der Straflosigkeit der Lge).

  • 130

    ocorrido recentemente)34 guarde ntida marca de violncia, no deixa de ser uma

    forma diversa de trabalhar com os conflitos, e, mais ainda, de ser um instrumento

    de regulao social, capaz de reformular o justo normativo num justo metbole.

    Nesta linha, vista desde uma perspectiva trgica, a mediao opera um papel no

    homem e suas relaes intersubjetivas fundamental, imagem do que a anistia

    () tambm permitiu, que o fazer a violncia falar, para poder ser

    trabalhada, metabolizada, levada a um consenso por meio do jogo entre a memria

    e o esquecimento.

    A violncia, naquela origem que os gregos esboaram, de uma ciso inicial que

    leva insegurana e busca incessante pelo retorno unidade, ao contrrio do

    mundo moderno, teve seu espao simblico por meio, especialmente, da tragdia.

    na trama da tragdia que se permite a liberao da alma,35 a harmonia entre os

    seres pela reconstruo do espao vazio criado pelo conflito, que isola os homens

    uns dos outros e com o espao pblico ( poca cidade, hoje ao

    Estado). A tragdia seria um grande mecanismo, tal a mediao, a procurar

    reconstruir a passagem da dualidade unidade, a partir da reatualizao da

    separao original pela vivncia de cada separao entre os homens.36

    Em sendo a vida uma sucesso de passagens, que deixa sempre percalos,

    experincias mal resolvidas, desejos irrealizados, decepes e feridas no

    estancadas, inevitavelmente opera-se no homem um feixe de sensaes mesclado

    que causa um imenso sofrimento. Assim, ao vir tona o conflito, vm consigo as

    emoes mais escondidas, e se mostram ao conflitante como gravidade necessria

    34 A mediao operada no mbito do Poder Judicirio certamente guarda uma crtica essencial, pois no deixa de ser uma forma de manifestao do jurdico, e, conseqentemente, da violncia. A mediao judicial sim uma forma fecunda de violncia qualificada, ao que prprio Benjamin j reconhecia (pensando especificamente quando feito pelo Estado), e por isso a dificuldade de ser refletida no plano criminal, e, de igual modo (o que explica o atraso de sua cultura) na Justia Federal. Ao duelarem Estado e Indivduo, a questo se torna confusa, amorfa, mas ainda assim parece neste ltimo caso uma sada, seno violncia original, a algo diverso do que se apresenta, com toda a insuficincia e as deficincias do modelo atual de jurisdio. Na primeira parte: BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 199. 35 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation, p. 20. Tambm, p. 30. A violncia uma fora de vida que habita em cada um de ns; importante reconhecer que ela est l, que ela se exprime a cada vez que se encontra confrontada com a oposio. (La violence est une force de vie qui habite en chacun de nous; il est important de reconnatre quelle est l, quelle sexprime chaque fois que lon se trouve confronte lopposition.) 36 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 24.

  • 131

    da discrdia. no palco da tragdia, e ao que a mediao procura assemelhar-se,

    que tais mal-entendidos consigo e com o outro se apresentam e permitem, pela

    verbalizao, o reencontro da individualidade e da alteridade. Uma espcie de

    reencontro da ligao perdida com o outro e consigo mesmo. Nesse sentido, a

    mediao abre espao para acolher o sofrimento37 e para que tambm possa se

    tornar uma sucesso de passagens em busca do apaziguamento, j que o homem

    no est condenado a ser violento, podendo saber trabalhar com seus instintos

    destrutivos e sair da confuso em busca da liberdade de ao construtiva.38

    A tragdia entre os gregos (no momento parecido com que se vive hoje, de

    insuficincia do fenmeno regulatrio), especialmente pela reproduo dos

    sacrifcios rituais, permitia que a desordem momentaneamente operada pelos

    homens se tornasse novamente ordem e coeso comunitria. Como a violncia est

    necessariamente ligada s idias de preservao e de destruio, como visto, de

    vida e de morte, os sacrifcios operados nos rituais (fossem nas festas cvicas, nos

    jogos, nos espetculos, nas peas tragicmicas) permitiam a transio desta

    passagem, e, logo, da desordem ordem pela exorcizao do mal. A possibilidade

    dos contendores reviverem sua violncia punindo a vtima (bode expiatrio) de todo

    o mal que eles mesmos produziram, garantia com que a

    vtima maldita se transformasse em vtima sagrada, e, conseqentemente, seus

    prprios algozes estariam prontos a se purificar.39 O simbolismo do sacrifcio

    permitia uma relao direta entre culpabilidade e punio de modo a tornar a vtima

    o depositrio de toda a violncia coletiva.

    Nos rituais de sacrifcio, todo um conjunto de gestos organizadores do espao e

    do tempo garantia a necessria definio de lugares entre homens e deuses (que

    curiosamente no espao poltico permitia a diferenciao dos homens e suas

    classes), e a matana oferecida por um particular ou pelo prprio estado (nas

    praas, nos santurios, nos banquetes pblicos) seguia rigorosamente um

    procedimento. A definio inicial das vtimas (em grau de importncia: frutas,

    manufaturas, animais: da galinha ao boi), a escolha do mal a ser exorcizado 37 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 26. 38 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 30. 39 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 38.

  • 132

    (ofensas individuais, familiares), a importncia econmica dos conflitantes (maior o

    prestgio, maior o sacrifcio), a definio da ordem de oferenda (aos deuses, aos

    guerreiros, ao povo), o fim das oferendas (queimadas, depositadas, divididas,

    libadas) os passos seguidos (exaltao coletiva, ofensas pblicas, sacrifcios

    expiatrio), o processo de desmaterializao da vtima (separao das melhores

    carnes, do fmur e do msculo para os deuses postos no altar embebido no leo;

    das vsceras parte viva aos guerreiros, e o resto entre os participantes, numa

    verdadeira reproduo da isonomia pblica)40.

    Ao seguir o rito, o objetivo do sacrifcio era, em suma, oferecer aos deuses

    () a vtima, e, com sua emulao, sobretudo quando eram sacrifcios cruentos,

    consagrar a sacralidade da violncia praticada, acalmando os espritos conflitantes

    e permitindo o rearranjo do lao social. As tragdias, quando os sacrifcios j no

    mais se realizavam, passaram a rememor-los como forma de os reviver

    publicamente e produzir o mesmos efeitos transmutadores que a morte da vtima

    sacrificvel oferecia.41 Ao assistirem as tragdias, e, logo, aos sacrifcios, os

    homens liberavam suas violncias emocionais, verbais, fsicas atravs de seus

    fantasmas, vivendo, por procurao42 e por reflexo os seus prprios problemas:

    o incesto, a loucura, a morte, a ofensa, a leso etc. O sacrifcio representado

    permitia a catarse () de todo o mal, evitando a proliferao da escalada da

    violncia.

    A tragdia permite, atravs da representao e do elemento simblico, ao homem

    de circular nos mais variados nveis do real, medida que transforma todos os

    fenmenos humanos em mensagens para o imaginrio.43 Atravs do recurso ao

    espao exterior, ela decodifica o conflito dos smbolos, e, logo, do sofrimento que

    cada um consegue visualizar numa determinada personagem. Cria a tragdia um

    momento de confrontao do homem com os seus prprios atos, por isso ocorre no

    40 PANTEL, Pauline Schmitt; ZAIDMAN, Luise Bruit. La religion griega en la polis de la poca clsica (trad. Maria de Ftima Zez Platas) Madrid: Akal, 2002, p. 25-38; 92-95. 41 Dentre as referncias trgicas, ver: ESQUILO, As coforas, 123-150; ARISTFANES, Las tesmoforias, 295-350; ESQUILO, Os sete contra Tebas, vv. 262-279; SQUILO, As suplicantes, 630-710. Tambm em HOMERO, Odissia, III, 418-472; HESODO, Trabalhos e dias, 465-468; HOMERO, Ilada, I, 449-458 42 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 43. 43 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 73.

  • 133

    exato momento em que o direito grego comeava a falar em culpa-bilidade (-

    );44 em purificao do esprito pela pena ( )45. Seu percurso

    permite a exteriorizao do no-dito atravs dos seguintes passos: inicialmente, a

    teoria (), na qual cada personagem, como um espelho, expe os seus

    dramas e se obriga a escutar o sofrimento dos outros momento em que o coro e o

    corifeu repetem em tons distintos o dito, fazendo ecoar no pblico e do pblico

    recebendo as suas emoes particulares, de modo que os gritos, os medos, as

    interrogaes aparecem por provocao; em seguida, a crise (), instante em

    que a exposio do que foi vivenciado provoca intensas reaes nos opositores, que

    passa a ser trabalhada pelo coro atravs de seu distanciamento proposital a garantir

    a transformao do comportamento de cada um; por fim, a catarse (),

    quando se expressa o reconhecimento do sofrimento da crise, e permite que a ele

    se supere pelo seu acolhimento, e a sua transformao ocorra pelo reconhecimento

    e pela tomada de conscincia individual.46 Cria-se, ento, um ambiente favorvel

    para a purificao do homem atravs da purificao da personagem.

    O problema em parte das sociedades atuais, segundo Morineau47, que j no

    h mais o sacrifcio, e, tampouco a tragdia, capaz de reviver a violncia de faz-la

    explorar as razes, as causas, o conflito consigo mesmo, razo pela qual a

    mediao pode ocupar o seu espao.48 Ambas se colocam num momento de crise,

    sendo aquela na passagem da dominao dos deuses para a dominao do

    normativo, da razo, do homem; esta, na passagem da segurana, do privilgio dos

    valores irracionalidade das respostas, da banalizao dos vnculos sociais, do

    44 A tragdia soube bem explorar o aparecimento da culpabilidade. Ver nesse sentido: ESQUILO, Prometeu acorrentado. SFOCLES, dipo-rei. EURPEDES, Media. EURPEDES, Os persas. 45 GERNET, Louis. Recherches sur le dveloppement de la pense juridique et morale en Grce: tude smantique. 2 ed. Paris: Michel Albin, 2001, p. 313 e segs. 46 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 82-88. 47 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 42. 48 Por certo que se poderia pensar que os espetculos, hoje, continuam a existir, ainda que de modo atualizado, pelos shows, pelos programas de lutas explorados nas televises etc. Todavia, ao contrrio das tragdias, falta-lhes o estmulo atividade, ao agir, ao envolvimento psicolgico consigo mesmo que a tragdia permitia. No h nestas manifestaes propriamente o reencontro pela abstrao do indivduo consigo mesmo seno um simples instante de satisfao sensorial e insana de emoes, sem qualquer carga reflexiva. Com isso, o homem diante da media no se pe a refletir, a especular sobre o mundo e sobre si mesmo, de maneira a metabolizar sua violncia, mas apenas a revive e a reproduz, tal como os lutadores o fazem despudoramente dentro do ringue. No por outra razo, tais espectculos somente servem ao regozijo momentneo e a reproduzir o estmulo violncia. No h qualquer expresso mnima de catarse, quando muito expiao.

  • 134

    enfraquecimento das virtudes. A mediao cumpre a funo de romper a escalada

    da violncia mediante o acolhimento da desordem, a representao verbalizada de

    cada momento do drama pessoal, a criao de um novo espao e a transformao

    dos indivduos conflitantes. Por ter tambm um forma ritualstica, abre-se um lugar

    privilegiado para que o sofrimento se expresse na retomada gradativa e lenta dos

    acontecimentos passados, dolorosos e considerados individualmente injustos.

    A mediao, ao permitir a violncia falar, busca antes do que o mtuo

    entendimento a teraputica da doena do esprito (-), por isso, alm do

    elemento da alteridade, tem ela uma funo de metabolizao de sentimentos

    malficos, de cura de inseguranas, de conforto de traumas. No toa os gregos

    fizeram derivar a palavra crime (-) do mesmo radical da doena do

    esprito. Esse sofrimento, ao invs de ser olhado dentro do passado, como o faz o

    direito, trazido tona ao presente, de modo a expor para o homem conflitante a

    imagem e a responsabilidade pela parcela de seus atos e de seu sofrimento no

    outro. Regula-se, com isso, a si mesmo pelo mesmo rito trgico da teoria, da crise,

    e da catarse, no qual o coro, o pblico e o corifeu so substitudos pelo mediador.

    Cumpre ao mediador, tais as mscaras das festas cvicas, os seguintes recursos

    essenciais: o espelho reencontrando o outro pelo que ele mesmo , refletindo as

    emoes dos protagonistas para que se encontrem consigo mesmo; o silncio

    garantindo um espao vazio de potencialidade e liberdade, entre o eu-interior e o eu-

    exterior; a humildade manifestada pela ausncia de julgamento, apenas como

    facilitao, a explorao de vozes interiores.49

    Permite-se na altura e na intensidade necessria que o no-dito no conflito seja

    verbalizado, facilitando a expresso da violncia perpetrada mutuamente. Ao

    colocar questionamentos, mantendo um duplo e contraditrio papel cooperativo-

    distante, permite recomear a base do conflito, tal a violncia original. Assim, a

    mediao traz consigo elementos que permitem a cada um a tomada de

    responsabilidade por seus prprios atos, desvendam a duplicidade do humano (ora

    do amor, ora da raiva, ora da honra, ora da traio); confrontando mistrios pela

    49 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 96-99.

  • 135

    abertura de um ao outro, com vistas ao reconhecimento de seus erros e

    evacuao do mal ()50. Ao fazer do mediador a imagem da vtima

    sacrificvel, cria um momento de transformao, em que a desordem d novamente

    lugar ordem.51

    Por certo que esse processo no to simples de ser perpetrado quando os

    conflitantes so, de um lado, o homem, e, de outro, o Estado, e toda a violncia

    historicamente praticada na essncia, como visto, independentemente do modelo de

    poltica adotado. De qualquer modo, ainda que questionamentos pudessem ser

    feitos sobre haver ou no espao para uma verdadeira mediao indivduo-estatal,

    quando sentimentos existem apenas de um lado, e o sofrimento no dialogar seno

    ser to somente exposto diante do prprio algoz, numa perspectiva continua a ter a

    mesma funo, qual seja, fazer que o no-dito individual seja verbalizado e permita

    que haja uma transformao pessoal. Talvez seja nesta espcie de conflito um

    processo de mediao no to violento no plano exterior quanto o entre

    particulares, mas certamente mais duro, rigoroso e profundamente dolorido no plano

    interno de ser alcanado, j que vinculado muitas vezes a questes essenciais

    (como direitos de moradia, de previdncia pblica, de crimes polticos, de sade

    pblica etc.). Cumprir antes serem resolvidas questes simples, como a permisso

    integral de mediao por agentes pblicos, mudana na prpria atuao do Estado

    para com os indivduos, redefinio da viso particular sobre o papel do Estado etc.

    Porm, sempre haver uma transformao necessria a ser feita consigo mesmo,

    num repensar suas responsabilidades, sua culpa e o verdadeiro alcance de sua

    subjetividade.

    Espera-se, assim, numa fase ps-positivista, que a mediao, como a anistia

    () numa perspectiva individual, possa operar um verdadeiro esquecimento

    do conflito ao deix-lo falar, transformando a raiva exteriorizada pela violncia

    recproca num consenso (-), no apenas num sentido poltico, mas num

    verdadeiro consenso entre esprito. Quer-se, ento, que ao fazer falarem os males

    pelo recurso da memria na mediao, e no toa, como bem observa Brbara

    50 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 111. 51 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 123.

  • 136

    Cassin, ambos tm proximidade lingustica do verbo rememorar (),52a

    violncia no seja silenciada pela normatividade, em prol de um justo normativo,

    que renova os grilhes da violncia, mas seja dialogada, falada, capaz de permitir

    uma verdadeira converso individual mutao (-) por um processo de

    autocompreenso e de compreenso do outro, a ponto de se atingir um elevado

    estgio (como em Xenofonte, Plato), cuja metabolizao (-) da angstias,

    do sofrimento, dos medos, das emoes leve ao encontro do justo consigo mesmo,

    o justo pela transformao interior, o justo pela reconciliao espiritual com o outro,

    em suma, um justo metbole.

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