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VIOLNCIA E MEDIAO: IMPRESSES JUSFILOSFICAS
VIOLENCE AND MEDIATION: JUSTICE AND PHILOSOPHICAL
IMPRESSIONS
GUILHERME ROMAN BORGES
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2011). Bolsista doutoral anual
do governo brasileiro na Shol Anthropstikon kai Koinonikon Epistmon Tmma
Philosophas Universidade de Patras Grcia (2008). Pesquisador-Bolsista junto
ao Max Planck Institut fr europische Rechtsgeschichte de Frankfurt Alemanha
(jun/2010jan/2011set/2012). Pesquisador-Visitante junto ao Max Planck Institut
fr auslndisches und internationales Strafrecht de Freiburg Alemanha (jul/2010).
Pesquisador-Visitante Facolt di Giurisprudenza dellUniversit di Bologna Itlia
(set-dez/2008). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2006). Mestre
em Sociologia do Direito na UFPR (2005); ex-Professor de Economia e Direito
Econmico na Universidade Positivo (2003/2011). Juiz Federal (TRF3).
RESUMO
A violncia marca a sociedade atual de uma forma nunca verificada em outros
tempos. Seu espao nos caminhos do homem atual tem se intensificado de modo a
exigir uma reflexo de fundo, com vistas sua aniquilao, ou, ao seu controle.
notvel o insucesso da teoria moderna com alicerces greco-romanos, juntamente
com a ideia de contrato social, de instrumento normativo como regulao da
violncia. Diante desta impossibilidade de resposta violncia pela norma, e todo o
aparato jurdico, o velho tema grego da mediao tem reaparecido e se colocado,
como um lugar interessante de dilogo com a violncia, voltado muito mais a
redescobrir mecanismos para que a violncia seja falada e metabolizada, ao invs,
como sempre o quis a racionalizao da modernidade, silenciada. Diante disso,
113
torna-se necessrio estudar a fundo a origem da mediao, desde suas bases
gregas e seu lugar ps-positivista de elemento de regulao da violncia.
Palavras-chave: violncia; mediao; ps-positivismo.
ABSTRACT
The violence marks the current society in a way never seen at other times. The
space taken in the ways of modern man has intensified, requiring deep reflection,
seeking its annihilation, or at control. It is notable failure of the modern theory with
Greco-Roman foundations, along with the idea of social contract normative
instrument to regulate violence. Given this inability to respond to violence by the
standard, and the entire legal apparatus, the old Greek theme of mediation has
reappeared and is placed as an interesting place for dialogue with violence, geared
more to rediscover mechanisms that violence is spoken metabolized and, instead, as
usually wanted, rationalization of modernity, silenced. Therefore, it becomes
necessary to study in depth the origin of mediation, from the Greek basis and its
place post-positivist as the element of regulatory of violence.
Keywords: violence; mediation; post-positivist.
INTRODUO
A sociedade contempornea marcada por um trao peculiar: a violncia. Por
certo que outras sociedades e em outros momentos tambm o foram, mas talvez
no do modo como a violncia tem se apresentado aos olhares cotidianos, no com
o sublinhado e com a feio que rompe as relaes sociais e enrijece as virtudes
individuais. Seu espao nos caminhos do homem atual tem se intensificado de modo
a exigir uma reflexo de fundo, desde sua essncia at planos mais concretos com
vistas sua aniquilao, ou, quando muito, ao seu dbil controle.
A teoria moderna apresentou, com alicerces essencialmente greco-romanos, o
instrumento normativo como elemento de regulao das pulses, das emoes, dos
114
sentimentos de conservao, de subsistncia, e de autopreservao. Contudo, no
de todo invisvel que a histria recente tem demonstrado o seu insucesso e que
nem mesmo a fico medieval do contrato social foi capaz de alcanar este objetivo,
a no ser superficialmente, a ver-se pelas constantes irracionalidades e pelas
interminveis erupes violentas, seja por atos individuais (massacres, homicdios
banais, inconsequncias no trnsito), seja por atos estatais (desde os genocdios e
as guerras aos atos de controle da criminalidade operado pelas mais diversas
instncias pblicas).
Diante desta impossibilidade de resposta violncia pela norma, e todo o
aparato jurdico, o velho tema grego da mediao tem reaparecido e se colocado, ao
menos nas ltimas duas dcadas, como um lugar interessante de dilogo com a
violncia, voltado muito mais a redescobrir mecanismos para que a violncia seja
falada e metabolizada, ao invs, como sempre o quis a racionalizao da
modernidade, silenciada. Trata-se de tema denso e com certa caracterstica de
atualidade, cuja tecnologia contempornea ainda est sendo construda e abre
espaos para reflexes como a que segue.
O conhecimento tcnico da mediao e seus programas autocompositivos, cdigo
de tica, comunicao conciliatria, polticas pblicas alternativas etc., embora
fundamentais, exigem antes a compreenso do fenmeno da mediao desde uma
perspectiva abstrata, de base, essencialmente filosfica, voltada reflexo do seu
lugar enquanto instrumento de regulao social de condutas e no apenas de
resoluo de conflitos no mbito jurdico.
Esta apreenso do tema da mediao e seu lugar no plano da justia consensual
poderia ser feita a partir de uma srie interminvel de pontos de vistas,
especialmente pela dimenso que tem ocupado no horizonte das cincias humanas
e seu alcance material no mbito do Poder Judicirio. Leituras sociolgicas,
antropolgicas, polticas, pedaggicas, psicanalticas entre outras poderiam dar
ensejo a indagaes com grande riqueza de perspectivas, contudo, necessrio
fazer um recorte antes de discutir o tema, a fim de evitar contradies, excessivas
superficialidades, confuses conceituais, enganos etiolgicos.
115
Num primeiro plano, afastam-se, portanto, investigaes de outra ordem que no
sejam essencialmente filosficas, dada a necessidade de inquirir a mediao de
maneira especulativa, zettica, de compreenso de suas causas, de sua origem, e
de seu papel desempenhado diante do tema da violncia. Num segundo, separam-
se as vises possveis da violncia no plano das relaes intersubjetivas em relao
violncia no plano das relaes entre indivduo e Estado, dado o interesse
momentneo de compreenso desta ltima forma1.Num derradeiro, faz-se marcar na
investigao da violncia (porque vista na perspectiva indivduo-estatal) o eco de
Walter Benjamin e seu texto Crtica da Violncia2 e da mediao o de Jacqueline
Morineau (porque de forte cunho reflexivo greco-antigo) e seu texto Sobre o Esprito
da Mediao3.
Feitas tais escanses, possvel abrir o ensaio com o seguinte percurso
metodolgico: uma especulao sobre a violncia na sociedade contempornea, em
seguida, sobre o papel desempenhado pelo ordenamento jurdico no seu controle,
para, ao final, discutir a mediao desde suas bases gregas e seu lugar ps-
positivista de elemento de regulao da violncia.
1. VIOLNCIA: TRAOS FILOSFICOS
Para os grecistas, o nascimento do homem, todos os seus atributos e toda a
construo de sua subjetividade esto intimamente ligados separao original com
o plano divino. da ruptura desta unidade que o esprito humano se separa do
esprito absoluto e passa a vivenciar a mundanalidadade em todas as suas
dimenses. Tem-se a a violncia inicial, que funda o humano e o torna dbil,
poroso, dctil, frgil, insustentvel. Impem-se-lhe, ento, a insegurana do vazio, o
medo da fragmentariedade, a inquietao da reproduo de novas fraturas, o temor
1 A presente reflexo motivada, em parte, pela tentativa de compreenso do movimento de mediao, que ganha espaos crescentes nos conflitos judiciais operados dentro da Justia Federal, cujo duelo histrico ope homens e instituies pblicas. Eis, porque, convm centrar-se na violncia indivduo-estatal ao final da reflexo sobre a violncia.
2 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt (1920/1921). In.: Walter Benjamin Gesammelte Schriften. (org. R. Tiedemann e H. Schweppenhuser) v. II.1. Frankfurt: Suhrkamp, p. 179-204, 1999. 3 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation. Ramonville Saint-Agne: rs, 1998.
116
da fora natural. No lugar da plenitude e da universalidade divina, coloca-se o
homem sorte de seu caminho, sem mais um fim especfico, sem mais um sentido
dado. Est, assim, consagrado vida, inteira na exterioridade, partida na essncia.
Sua histria ser a de recolher seus pedaos no plano material, e, no plano
espiritual a reconstruir a unidade primeira.
Por isso, a subjetividade se constri desde sempre com a elasticidade
fundamental para se adaptar a qualquer forma de segurana, de rigidez, de
completude. prprio do humano, para os gregos, esta necessidade de se
recodificar desde a identidade original, de lutar incansavelmente pelo regozijo da
unicidade da qual foi despojado violentamente, e que lhe causa um imenso e
constante sofrimento4. Seu destino , portanto, a histria de seu regresso ontolgico,
de sua viagem de retorno do que entende jamais poder ter partido.
No foram poucos os mitos que procuraram, com toda a riqueza de suas
fantasias, reconstruir esse momento em que o homem criado. Suas narrativas
exploram exatamente o tempo de ruptura e sua ntima relao com o aparecimento
da violncia. Aproximam-se a violao original, a violncia fundadora5 e a violncia
incrustada na essncia humana.
Separada a terra do cu, e tendo sido as coisas arranjadas e dispostas em ordem
(rios, animais, montanhas), foi Prometeu incumbido de construir o mais nobre dos
animais o homem, preferencialmente a partir das sementes celestiais ocultas que
permaneceram da diferenciao entre cu e terra, para que pudesse ter a marca do
divino. Por isso afirma Ovdio que o homem, ao contrrio dos outros animais, seria
posto ereto, para que pudesse a todo instante olhar o cu e as estrelas. Ento
Prometeu pede a seu irmo Epimeteu que atribua a cada animal dons variados, e, o
que entendesse de mais relevante, ao homem. Epimeteu acaba gastando todos os
seus recursos e nada mais resta ao homem seno um pouco de gua e terra.
Prometeu, assim, com a ajuda de Minerva (sabedoria divina), sobe aos cus e
acende uma tocha no carro do sol, trazendo o fogo para o homem, a fim de que este
pudesse ser o mais forte, o mais temido e mantivesse a sua preservao diante dos 4 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 23. 5 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 117.
117
tantos dons dos outros animais. pelo fogo e o poder sobre os outros animais que a
vida humana aparece. Eis porque a vida se entrelaa desde a origem com o poder
de preservao. A manuteno do homem s passava a ser possvel porque o fogo
lhe dava a fora para fabricar as suas prprias armas, para subjugar os animais,
para forjar o ferro e ter as ferramentas necessrias ao cultivo da terra e sua
alimentao, para aquecer o lugar em que vivesse, tornando-se independente do
clima da natureza, do destino do divino. A vida humana est, portanto, liga sua
autopreservao, e, consequentemente, ao poder (representado pelo fogo que
Minerva ajudou a encontrar) de a tudo submeter, dominar.
No toa, ao que bem cairia a um mitlogo, a palavra vida no grego antigo (,
) tem o mesmo radical que a palavra poder ().6 Sua proximidade grfica e
fontica leva compreenso de que ambos esto intimamente ligados, desde o
plano mais concreto, ao plano mais abstrato. A vida institui o poder e este a vida,
num amlgama de fontes, instantes iniciais, caminhos, fins. Do mito compreenso
do mundo pela linguagem, vida e poder dividem os mesmos traos, de modo que o
viver expresso de poder, manifestao de violncia, e estes implicam na
criao e na reproduo da vida. Viver, no sentido mais puro, desde sempre,
preservar-se, e, logo, exteriorizar seu sofrimento mundano pela violncia sobre os
outros; duelar com a natureza; transformar tudo s suas necessidades.
Prometeu, aps forjar o homem e dar-lhe o fogo e o poder necessrios
autopreservao, seria ento alvo de punio de Zeus, justamente por ter exposto o
segredo do fogo que deveria ter sido mantido no plano divino. Zeus pede a Hefesto
que crie a mulher perfeita e a envie a Epimeteu, o irmo de Prometeu. Pandora, a
que tem todos os dons ( ) recebe de Crites, Atena, Afrodite, Hermes as
mais diversas qualidades (sexualidade, beleza, fala, encanto), mas guarda consigo
uma caixa de todos os males (violncia, insanidade, senilidade, vcio, fome, doena),
que no poderia ser aberta. Epimeteu, embora advertido pelo irmo de jamais
receber presente dos deuses, admira-se com a sua beleza e com ela se esposa.
Pandora e seu marido abrem a caixa, e de l saem os males para perseguir toda a 6 ROMIZI, Renato. Greco antico: vocabolario greco etimologico e ragionato. 3 ed. Bologna: Zanichelli, 2007, p. 265-66. Aponta o lingista que a raiz de poder/violncia , , , a mesma que vida , .
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humanidade. Instalam-se, ento, todas as aflies de que o homem havia sido
isento no momento de sua criao7.
Embora tenham conseguido fechar a caixa e guardar a nica criatura alada, a
Esperana, que marcar a existncia humana da preservao, o que fica claro no
mito que a violncia se coloca tambm lado-a-lado do poder, posto que uma forma
de punir o homem pela ousadia de fazer o que no lhe tinha sido permitido. Tem-se,
ento, um novo aspecto da violncia, agora no apenas a original pela separao
com o divino, mas aquela que vcio, negatividade e pena imposta ao destino do
homem. pelo uso do poder de ter se atrevido a ter o fogo dos deuses, que a
violncia acompanhar as vicissitudes humanas. violncia original (a mesma
que atribuiu a vida ao homem e lhe deu o poder de
autopreservao) vem associar-se a violncia desvirtude8 (a que vincula o exerccio
do poder a lhe confere a punio da violncia ) .
Convenientemente tambm a palavra grega poder () tem a mesma grafia da
palavra violncia (). Vinculao essa que Walter Benjamin se utilizar do mesmo
modo no alemo, que l estrategicamente em Gewalt a traduo tanto de poder
quanto de violncia. Se na mitologia, so irmos, no plano da especulao filosfica,
o entrelaamento oportuno. Na origem, a violncia a desvirtude, o produto do
excesso da fora fsica9, o exerccio desvairado do poder. Poder que expresso da
autopreservao, que reproduz a violncia inaugural, em que o homem foi lanado
ao destino, sem as armas divinas, para a vida. Tudo, de maneira extraordinria e
sintaticamente simples e prximo em grego antigo: (Violncia, Vida, Poder).
Esse emaranhado de significantes traz, como dito, a marca de uma ausncia
original, uma falta original que a psicanlise freudiana soube muito bem explorar no
incio do sc. XX. O homem posto a relembrar incessantemente o temor pelo
7 HESODO, Teogonia, 590-593; 604-607. HESODO, Os trabalhos e os dias, 67-68; 81-82. 8 O uso da palavra desvirtude cumpre dualidade da violncia, punio humana, punio divina. Tanto que a Marte, que teve o azar de ser o ltimo a escolher a virtude de que se esposaria, coube-lhe a (violncia), filha da ocenide Palas e de Estige. Curiosamente, a Violncia, antes de passar a viver com Marte, teria sido bem-aventurada, ao aliar-se aos Deus Olmpicos na Titanomaquia, juntamente com seus irmo (poder), (vitria) e (grandeza), cuja proximidade no passada despercebida na mitologia. Veja-se a referncia em ESQUILO, Prometeu acorrentado e PLATO, Protgoras. 9 HESODO, Teogonia, 383.
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desconhecido e o sentimento de reverncia, a crise do distanciamento do divino e
desejo de regresso unidade, passa a ter consigo a violncia-preservao, a
violncia que conduz vida ao tempo que morte, sempre num estranho e
inelutvel espelho da violncia inaugural.
O homem marcado, como bem apraz a Morineau10, pela escalada da violncia
com os outros, pela preservao; consigo, pelo retorno origem e vida. A
violncia marca a subjetividade humana, sem limites,11 permitindo, por um lado, ao
homem o progresso, o caminhar, a consecuo da vida; por outro, a punio
daquele que exerce o poder em seu excesso no plano da individualidade e impede o
caminhar conjunto no plano comunitrio. Essa dplice natureza da violncia, como
necessria e como indesejada, traz tona aquela insegurana da ruptura, de modo
a conduzir o homem constantemente a encontrar subterfgios, ancoradouros,
suportes, cujos deuses outrora lhe serviram.
A violncia avizinha-se da insegurana (da preservao, da separao) e passa
a se apresentar associada quase sempre a manifestaes pblicas de desrespeito,
de fora bruta, de aniquilamento, de crueldade. Seus traos se sobrepem ao
simples humano e ganham foros de origem. A necessidade de preservao
aproxima a vida da violncia, e a violncia do poder, de modo a exteriorizar-se
constantemente em atos, gestos, palavras, impresses, sons. A violncia
cotidianamente se verbaliza, comunica-se, expande-se por si mesma. A
impossibilidade do retorno renova o desagrado original, e implica de maneira
exponencial a violncia na violncia.
No foram poucas as expresses histricas da violncia dos homens contra os
homens, do homens consigo mesmos, em todas as fases, em todas as epistemes. A
histria da humanidade reproduziu, ao menos em termos especulativos, a mesma
essncia da violncia original, mudando apenas a sua roupagem, os seus atores
(ora indivduo, ora grupos, ora instituies pblicas) ou o modo como se expressou e
foi trabalhada.
10 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation, p. 51. 11 FERRAZ JNIOR,Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexes sobre o poder, a liberdade, a justia e o direito. So Paulo: Atlas, 2002, p. 70.
120
No mundo contemporneo, como no poderia ser diferente, a violncia tambm
tem seu lugar fundamental. A ela vem se atrelar uma caracterstica do homem de
hoje, que traz essncia da violncia um dado singular, qual seja, a de ser um
homem do dbito, destinado a dever tempo, estudo, esforo, valores, tudo em razo
do apressamento do mundo atual. A tecnologia desenvolvida em ritmo acelerado, a
alcance estendido do conhecimento, o rigor do trabalho, a insubsistncia dos meios
de vida, a materializao da vida em detrimento de sua abstrao essencial,
conduzem disseminao de uma cultura de violncia talvez no antes vivida deste
modo.
No plano intersubjetivo, abre-se espao para um homem gravado pela reduo
gradativa do plano simblico; do imprio da satisfao dos sentidos; da inverso
entre o concreto e o abstrato; do magistrio das mdias e a reduo da reflexo; da
diminuio da espiritualidade; da incapacidade de trabalhar com o tempo; da
excessiva retribuio econmica de seus atos; do retorno condio de estado
natural; da desagregao de valores sociais e familiares; da perda de objetivos de
longo prazo; das relaes rpidas e infrutferas; das personalidades flexveis e
elsticas; do elogio do espetculo e da imagem; da porosidade das relaes sociais;
do incremento do preconceito oculto.
Visto de modo abrangente, o homem contemporneo substitui lentamente as
abstraes construtivas (as destinadas a compreender a si, aos outros, seu lugar no
mundo, em suma, essencialmente de ordem filosfica) por abstraes destrutivas
(refutando saberes abstratos, incrementando prazeres sensoriais). No apenas por
reduzir o abstrato ao concreto, tem-se uma inverso ontolgica no prprio abstrato,
ora no mais gravado pela construo, mas pela destruio. Com isso, o que era
autopreservao, e, portanto, vida, torna-se exclusivamente a manuteno da vida
material, e se opera a perda daquelas sementes celestiais ocultas que bem aprouve
a Prometeu, de modo a se perder a dimenso da vida imaterial. A vida, ento,
aproxima-se no apenas lingisticamente do poder e da violncia, mas a eles se
reduz semanticamente em seu elemento negativo, no como Eros, mas como
Thanatos.
121
Isto implica que a subjetividade humana est resumida, sintetizada, e sua
duplicidade se fundiu, no mais unidade original, mas unidade da prpria vivncia
material, na expresso pblica de abstraes destrutivas. Come-se
desvairadamente, pratica-se sexo desatinadamente, satisfaz-se famelicamente. O
culto do dbito sensorial, imagtico, e no do simblico abstrato, compreensivo,
especulativo. Com isto, o homem reduz-se dimenso desumana da simples
sobrevivncia, quando a fora e o poder tm apenas um sentido: preservar-se
(talvez fosse hoje mais fcil a Epimeteu atribuir um dom ao homem, se no o tivesse
deixado para o final).
O poder torna-se violncia pura, cultura de violncia, que aniquila subjetividades e
passa a estar a servio da dimenso material da vida. O humano torna-se uno, no
mais uno-divino, mas uno-consigo, uno-individual, essencialmente privado (ao que
bem explorou Tercio Sampaio no esboo de Arendt)12, de satisfao de
necessidades. Naturalmente, o homem desagregou-se no sabor aristotlico, sua
vida poltica, gregria ( ) se tornou apenas vida (), e, ao fim,
violncia ().
Por isso, a marca da contemporaneidade o desapego, o esquecimento do outro,
o egosmo, a centricidade. O que era espordico se tornou cotidiano, o que era vcio
se tornou virtude elogivel, o que era destruio se tornou herosmo. Homicdios
banais, violncias furtivas, desrespeitos gratuitos tudo no plano da
superficialidade, sobreposta terra, na mundanidade.
A essa caracterstica, sempre se construram por reflexo as instituies pblicas,
a depender do seu tempo e do contexto histrico. Caminharam o poder no plano
individual e o poder no plano pblico com certos traos semelhantes, nem sempre
no mesmo compasso e no mesmo tempo, mas sempre com caractersticas muito
prximas. Ainda que o reducionismo corra o risco do erro grosseiro, aos homens de
maior complexidade de vida (), violncias () dirigidas no plano pblico com
caractersticas semelhantes; aos homens com menor complexidade de vida,
violncia dbeis de fundamento. 12 FERRAZ JNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 2 ed. So Paulo: Atlas, 1994, p. 28.
122
Contudo, a violncia praticada pelo coletivo, e no mundo moderno, pelo Estado,
alcana digresses que vo um pouco alm daquelas que exps essencialmente o
homem nas linhas acima. Ganha-se um incremento diverso, que no se reduz
violncia do homem contra o homem, na autopreservao, mas a violncia de todos
ao mesmo tempo contra o homem, personificado no Estado.
Por certo que a questo no to simples, ou, ao menos, no pode ser
sintetizada como se o modelo de Estado houvesse sido sempre o mesmo,
ignorando-se as razoveis e profundas diferenas do liberalismo ao
intervencionismo. Contudo, se a reflexo poderia ser lanada nestes termos no
plano da cincia poltica, da sociologia, da teoria do estado, no o pode em termos
filosficos. A questo da violncia indivduo-estatal opera-se no plano ontolgico
com caractersticas muito prximas, independentemente das formas exteriores de
manifestao poltica do Estado. Evidentemente que Estados Liberais e Estados
Sociais aproximam-se e se distanciam do homem de maneira e com intensidades
distintas, mas a relao da violncia original ganha, na essncia, o mesmo contorno:
da violncia do homem contra todos e de todos contra o homem.
Essa nova dualidade da violncia, no mais da separao original, nem mais da
punio como desvirtude, mas ento como violncia do homem contra todos e
destes contra o homem faz supor que o relacionamento entre o indivduo e o espao
pblico (reduzido no mundo moderno ao Estado, sem qualquer sentido subjetivo,
diversamente do que o fora entre os gregos), obrigatoriamente baseado na
violncia recproca. Em sendo o Estado produto das vontades individuais, desde os
tempos de Francisco Suarez ou do contratualismo dos scs. XVI e XVII, o certo
que sua configurao representa o mecanismo coletivo de restrio de violncias
isoladas, ao tempo que proteo de individualidades, mas, tambm, mecanismo
coletivo de implementao de violncias setorizadas destinada a fazer cumprir o
bem-pblico.
Instaura-se no plano da relao indivduo-estatal um campo pervertido da
violncia, por que a instituio pblica se coloca como um grande instrumento de
coeso de todos com todos, restringindo violncias individuais, enquanto mecanismo
123
de desagregao ao colocar todos contra o homem. pervertida porque o Estado
est a servio e contra o homem, ao mesmo tempo fundante, diversamente do que
ocorre no plano intersubjetivo. A violncia que se reproduz, imagem da violncia
inaugural, na luta pela sobrevivncia, ope o homem contra o homem de maneira
intermitente, eis porque as relaes so de amor e de dio, porm cada uma ao seu
tempo. Diversamente do plano indivduo-estatal, em que o coletivo violenta o homem
e este violenta individualmente o Estado porque v nele o algoz de sua privacidade,
do lugar do exerccio de sua violncia privada.
Cria o Estado mecanismos constantes para o exerccio de sua violncia contra
o indivduo, de maneira ostensiva, omissiva, indiferente, ao evitar que promova sua
autopreservao, ao impedir que faa o regresso unidade inicial, ao retirar sua
estreita relao entre o poder e a vida. Desfalece o humano, predestina-o
impotncia, sacrifica sua mundanalidadade. Homem e Estado opem-se, mutilam-
se, necessria e desnecessariamente, numa costura doentia que retira a prpria
essncia do homem e o distancia de seu plano abstrato ao conduzi-lo a relaes
subjetivas foradas, domsticas, com tempo, valor e fundamentos estranhos
subjetividade. Dentre estes mecanismos, opera o direito um tributo destacado.
2. VIOLNCIA E DIREITO: COSTURAS JUSPOSITIVISTAS DO JUSTO
NORMATIVO
Coloca-se ento o problema difcil de ser superado que o da possvel
conciliao do homem com o Estado13, seja na perspectiva de um direito que
contraditoriamente lhe defendeu da violncia pela violncia, seja na perspectiva de
um processo de mediao, que no deixa de ser, tambm, um instrumento mediato
de violncia. Se o Estado em especial, mas tambm as demais instituies pblicas,
pode ser visto (como aqui se escolhe) como expresso da violncia de todos contra
o homem numa perspectiva especulativa, possvel procurar compreender o papel 13 Em especial no mbito da Justia Federal, j que os conflitos so essencialmente de ndole indivduo-estatal, seja tambm no plano da justia criminal, quando, em suma, tambm se ope o uso da violncia legtima Estado e o indivduo. Eis o foco de tantas crticas, em grande medida louvveis e com grande capacidade de inquietao, do uso da medidao no plano federal e no plano criminal (estadual ou federal).
124
que a normatividade exerce nesse captulo, seu lugar privilegiado de estar na
dplice funo repressiva e instituidora da violncia estatal e do prprio direito.
O direito moderno nasce com a marca do aniquilamento da violncia isolada, e,
logo, como um grande instrumento de traduo da desordem em ordem, do natural
em positivo, da barbrie em civilizao. Sua fora j entre os gregos tinha um
sentido especfico, que, embora tenha a modernidade aprimorada, desde sempre
guardou uma caracterstica essencial: forjar personalidades (para as virtudes, como
queria o direito grego ricamente constitutivo, para o til, como o querem o direito
moderno e o contemporneo robustamente manipuladores).
A normatividade, vista na sua essncia clssica, cujos traos ainda permanecem
em grande medida vivos, traz no ninho a marca da violncia, posto que antes,
positividade, porque implica numa dimenso material, real, efetiva, segura, que
afirma e infirma prticas, atos, e, logo, manifestao de vontade. Defendia os gregos
que o normativo estava vinculado perquirio do justocomo excluso do excesso,
da destemperana. Ao exigir do homem o respeito social e o dever comunitrio
como forma de acalmar-lhe a violncia original, tal como bem trabalhara Antifonte,14
redefine-se a violncia como reforo de contradio natureza. Violncia e norma
esto presas desde sempre ao velho debate (natureza) - (norma), em
que a normatividade violenta a natureza do homem e o submete aos anseios da
construo coletiva do espao pblico.15
O debate (natureza) - (norma), apresentado de maneira muito clara
no Oxyrhynchus Papyri XI n. 1364 de Antifonte consegue sintetizar a noo que
diferencia ambas: i) aquela se torna fundamental na ausncia de testemunhas,
enquanto esta na sua presena; ii) a punio pela violao daquela ocorre ainda
quando no for vista por algum, enquanto por esta apenas se presenciada por
algum; iii) aquela inevitvel e necessria, j esta subsidiria e secundria; iv)
aquela decorre da natureza, independentemente do acordo, enquanto esta nasce do
contrato social; v) aquela est relacionada verdade, eis porque punir o homem por 14 DIELS, H.; KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin, 1952. E BLASS. Antiphon. Orationes. Leipzig, 1973. 15 Certamente toda uma discusso sobre a relao (natureza) - (norma) poderia ser posta, mas que no convm neste ensaio, apenas no que diz com a positividade.
125
seu desrespeito reestabelecer o homem na condio de verdade, enquanto esta
se relaciona s opinies, ao aceito, sem se preocupar com a verdade das coisas; vi)
aquela est no plano da liberdade, enquanto esta no plano da proibio.
Com isto, Antifonte pretende demonstrar, dentre tantas questes essenciais,
segundo Gerard Pendrick16 e George Keferd,17 que a violncia se expe pela
punio que a norma impinge quele que opta por seguir a natureza, seus
instintos, suas paixes, e,consequentemente, o excesso.18 A leitura feita visualiza
no (norma) uma forma de restrio imposta (natureza). Apesar das
diferenas, Clicles tambm sugere que a norma est vinculada com a fora e a
violncia medida que expe que o melhor prevalece sobre o pior, tal qual o mais
capaz sobre o menos, de modo que o critrio de justia nada mais representa que o
domnio da supremacia do mais dotado sobre o mais fraco. V Clicles que o Estado
e o (norma) um meio usado pelos fracos e medocres para neutralizar os
mais fortes por natureza, e, sobre eles, sobreporem-se. Por isso o (norma)
injusto, porque contraria a (natureza) e representa apenas o elogio da
vaidade e da insegurana. H, enfim, uma relao inevitvel entre os homens e os
outros animais, posto que a (natureza) se faz presente pelo instinto. Mesmo
Trasmaco afirma que o poder exposto na norma reduzido a simples fora que
procura submeter o mais fraco ao mais forte. Ao ser um produto artifical do homem,
o (norma) uma forma de impedimento natureza humana de perseguir o
seu prprio interesse.
Essa caracterstica da normatividade permanece, por certo que com contornos
distintos, com a mesma marca da violncia essencial da positividade. O direito, e,
modernamente o ordenamento jurdico, so criados a servio do coletivo (hoje
estatal), para reprimir manifestaes isoladas de violncia, ao passo que
16 PENDRICK, Gerard. The sophistic antithesis - and natural law.; PIERRIS, Apstolos L. The order of existence: , , , , . In.: and : power, justice and the agonistical ideal of life in high classicism. (ed. Apstolos L. Pierris). Patras: Institute for Philosophical Research, p. 261-268, 2007. 17 KEFERD, George B. The sophistic movement. Cambridge, 1981, p. 114. 18 Evidentemente que outras leituras so possveis, como a de Clicles no Grgias de Plato, em que a marca de um verdadeiro sofista expressa-se ao deixa transparecer, por uma perspectiva biolgica e naturalstica, um viso que v o homem como um ser submetido natureza a qual no pode modificar. Haveria um princpio de conduta externo ao homem que lhe daria um tom instintivo. PLATO, Grgias, 482, e 484, c.
126
implementa condies existncias de autoreproduo. Seguindo Benjamin, a
violncia legal um mecanismo destinado manuteno do direito, eis porque se
fala de uma violncia conservadora do direito (rechtserhaltende Gewalt), assim
como tambm o uma violncia fundadora do direito (rechtsetzende Gewalt). A
violncia considerada como um meio que abre espao para o aparecimento de
uma nova fundao de direito, destruindo o existente (vejam-se as greves no
exemplo benjaminiano, as guerras etc.) e reformulando o estatuto do poder.
Por isso, se ao direito natural cumpre o exerccio legtimo da violncia a fins
naturais justos, ao direito positivo cumpre sustentar a justia dos fins pela
legitimidade dos meios: o direito natural tende a justificar os meios legtimos com a
justia dos fins, e o direito positivo a garantir a justia dos fins com a legitimidade
dos meios19 Isto representa que os fins esto a depender dos meios, de sua
legitimidade. Se num primeiro momento, consagra um processo de racionalizao
do poder, por outro, legitimidade que se atribui ao direito de poder fazer uso da
violncia para atingir seus prprios fins. A normatividade posta pelo recurso da
violncia, j que os fins naturais das pessoas singulares se chocam
necessariamente com os fins jurdicos 20. Por isso que a violncia do homem
vista pelo direito com uma ameaa de perigo (Gefahr) para o ordenamento jurdico.
No est, ento, o direito propriamente na tentativa de implementar condies
humanas, e, logo, de fins jurdicos, seno de proteger a si mesmo enquanto
instituio carter nitidamente de violncia consciente e produtora:
possibilidade de que o interesse do direito por monopolizar a violncia em relao
pessoa isolada no tenha como explicao a inteno de salvaguardar fins jurdicos,
seno, sobretudo, de salvaguardar o prprio direito.21 Tem-se o que se pode dizer
como o justo normativo, tanto esmiuado pelo positivismo, justo enquanto jurdico e
19 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 180. Das Naturrecht strebt, durch die Gerechtigkei der Zwecke die Mittel zu > rechtfertigengarantieren
127
como reprodutor de seu prprio sentido. Por isso se criaram pelos mais variados
mecanismos figuras simblicas ao longo da histria com vistas a expurgar
abstratamente (s vezes fisicamente por vtimas sacrificveis) toda manifestao do
humano que fosse capaz de trazer ameaas a esse fim da violncia: reproduzir-se
enquanto instituio jurdica.
Benjamim fala da clssica figura do grande delinqente (grossen Verbrechers)22,
tanto explorado pela crimonologia positiva do sec. XIX, cuja admirao popular
sempre conquistou. Ao torn-lo um bode expiatrio (bouc missaire nas palavras de
Morineau),23 probe-se violentamente que pessoas isoladas pratiquem a violncia
destrutiva do direito, que , em ltima instncia, dado o monismo jurdico, voltada
contra o Estado. Mas no mesmo compasso a violncia tambm instituidora de
direito, com um imenso carter de criao jurdica (ein rechtsetzender Charakter)24,
a qual temida pelo Estado, como nas greves, nas guerras, a que no lhe resta
outra sada se no aceit-las.25
Mas o temor desta violncia fundadora do direito (rechtsetzende Gewalt),
desdobra-a em violncia conservadora do direito (rechtserhaltende Gewalt), que
procura alcanar fins jurdicos e no fins naturais. Um poder exercido pelo direito
enquanto ameaa jurdica atravs, sobretudo, dos aparelhos estatais. Coloca-se o
Estado numa matriz militarista que se deixa expressar especialmente pela polcia e
seu poder de no apenas manter a existncia do normativo (eis porque no
verdadeiramente submissa ao direito), mas de dispor no seu limite sobre o prprio
contedo normativo, ocupando espaos que caberiam hermenutica cientfica.
uma violncia ao mesmo tempo fundante e mantenedora, que age
por razes de segurana nacional (der Sicherheit wegen),26 como meio espectral
22 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 184. 23 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation, p. 39. 24 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 186. 25 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 186. Der Staat aber frchtet diese Gewalt schlechterdings als rechtsetzend (Porm, o Estado teme esta violncia em seu carter de criao de direito) 26 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 190.
128
(gespenstische), difuso (allverbreitete)27 inserida sorrateiramente nos corpos e nas
almas.
Trata-se de uma violncia microfsica, pulverizada, que coloca todo o aparato
estatal sua consecuo. E nisso, nem mesmo o Poder Judicirio, com sua
desejada independncia consegue fugir: esto, assim, juzes a servio da polcia, a
servio da violncia estatal. O que Michel Foucault diria em outros termos, pensando
sobre casos clnicos. Ao colocar-se no papel de resolver os conflitos, mascara-se no
propsito supremo de aplicar o direito, e, nesse instante, reprime com suas decises
a violncia individual, e obriga violentamente a reafirmao da normatividade.
Nessa mesma linha28, sustentou anos mais tarde Michel Foucault29 a existncia
de um poder jurdico-discursivo, operado tambm pelo estado a servio da
governabilidade de maneira difusa, atravs de um grande empreendimento sobre o
corpo e sobre a alma dos cidados, numa espcie de regularidade micromecnica
que ocupa cada vo comunicativo e opera toda sorte de dominao, represso,
estratgia e artimanha, e, consequentemente, abre caminho para mecanismos de
excluso, vigilncia, medicalizao da sexualidade, da loucura, da delinqncia. Um
grande empreendimento ttico e tcnico de dominao, que faz da violncia
silenciosa seu grande ferramental.
Se o poder difuso e se exerce globalmente sobre os indivduos, com a violncia
da tcnica e da cincia (como Foucault trabalha em outros campos), haveria ento
outro papel ao direito seno ser sempre violncia? Ao que Benjamim
descrentemente responde: no. Toda expresso da normatividade um exerccio
inevitvel de violncia. Mesmo os acordos formalizados nos contratos pelos
particulares so sempre expresso de violncia, seja porque a origem do ajuste
fruto da violncia entre particulares, seja porque sempre permitem, na sua
insolvncia, o uso da violncia recproca.30
27 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 191. 28 Apesar da riqueza foucauldiana, no convm aqui avanar por questo exclusiva de mtodo e centralidade na violncia antes do que no poder. 29 FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique. Cours au Collge de France (1978-1979). Paris: Gallimard et Seuil, 2004. 30 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 191.
129
Em sendo o direito, portanto, um instrumento intimamente ligado violncia em
sua origem, em sua positividade, bem assim em sua forma de resolver conflitos,
ficam as vsceras expostas, de modo a demonstrar que a forma cotidiana de manter
a ordem e inibir conflitos frgil, dbil, seno intil em seu papel regulador. Torna-se
assim mais cristalino, apenas, que o papel do Estado face o homem, por meio do
direito (e a todos os institutos e todo aparato legislativo, executivo e judicirio esto
ao seu dispor) infecundo no seu propsito declarado, mas nada estril em seu
papel de reformulao da prpria crena no direito, de salvaguard-lo como quisera
Benjamin.31 A violncia cria, em suma, uma rusga irreconcilivel na relao
indivduo-estatal, o que torna sempre beligerante e agressiva qualquer forma de
investida recproca, ainda que voltada ao apaziguamento esperado.
3. VIOLNCIA E MEDIAO: PROPOSIES PS-POSITIVISTAS DO JUSTO
METBOLE
Ainda nos 1920, Benjamin j se perguntava se, sendo a relao infrutuosa entre o
direito, o indivduo e o Estado, seria possvel uma regulao no-violenta dos
conflitos?32 Em resposta, aceita-a, desde que a cultura dos sentimentos (Kultur des
Herzens) coloque a questo de dispor os homens por meios puros de entendimento
(reine Mittel der Einigung). pela verdadeira esfera do entender-se
(Verstndigung)33 pela linguagem, pela conversao que o conflito pode deixar de
existir sem ser violento.
Aparece, assim, algo que os gregos souberam muito bem explorar, que a arte
do dilogo, ou, mais especificamente ao aqui interessa, a arte da mediao
indiretamente exposta nas tragdias de modo mais significativo, nas festas
populares, nos jogos olmpicos. A mediao, embora se feita pelo Estado (como tem
31 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 184. 32 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 193. Ist berhaupt gewaltlose Beilegung von Konflikten mglich? 33 BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 193-94. Benjamin avana e afirma que somente pelo meio puro do entender-se que o conflito poderia se extinguir, especialmente pelo fato de que h uma regra essencial: a impunidade da mentira (an der Straflosigkeit der Lge).
130
ocorrido recentemente)34 guarde ntida marca de violncia, no deixa de ser uma
forma diversa de trabalhar com os conflitos, e, mais ainda, de ser um instrumento
de regulao social, capaz de reformular o justo normativo num justo metbole.
Nesta linha, vista desde uma perspectiva trgica, a mediao opera um papel no
homem e suas relaes intersubjetivas fundamental, imagem do que a anistia
() tambm permitiu, que o fazer a violncia falar, para poder ser
trabalhada, metabolizada, levada a um consenso por meio do jogo entre a memria
e o esquecimento.
A violncia, naquela origem que os gregos esboaram, de uma ciso inicial que
leva insegurana e busca incessante pelo retorno unidade, ao contrrio do
mundo moderno, teve seu espao simblico por meio, especialmente, da tragdia.
na trama da tragdia que se permite a liberao da alma,35 a harmonia entre os
seres pela reconstruo do espao vazio criado pelo conflito, que isola os homens
uns dos outros e com o espao pblico ( poca cidade, hoje ao
Estado). A tragdia seria um grande mecanismo, tal a mediao, a procurar
reconstruir a passagem da dualidade unidade, a partir da reatualizao da
separao original pela vivncia de cada separao entre os homens.36
Em sendo a vida uma sucesso de passagens, que deixa sempre percalos,
experincias mal resolvidas, desejos irrealizados, decepes e feridas no
estancadas, inevitavelmente opera-se no homem um feixe de sensaes mesclado
que causa um imenso sofrimento. Assim, ao vir tona o conflito, vm consigo as
emoes mais escondidas, e se mostram ao conflitante como gravidade necessria
34 A mediao operada no mbito do Poder Judicirio certamente guarda uma crtica essencial, pois no deixa de ser uma forma de manifestao do jurdico, e, conseqentemente, da violncia. A mediao judicial sim uma forma fecunda de violncia qualificada, ao que prprio Benjamin j reconhecia (pensando especificamente quando feito pelo Estado), e por isso a dificuldade de ser refletida no plano criminal, e, de igual modo (o que explica o atraso de sua cultura) na Justia Federal. Ao duelarem Estado e Indivduo, a questo se torna confusa, amorfa, mas ainda assim parece neste ltimo caso uma sada, seno violncia original, a algo diverso do que se apresenta, com toda a insuficincia e as deficincias do modelo atual de jurisdio. Na primeira parte: BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt, p. 199. 35 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation, p. 20. Tambm, p. 30. A violncia uma fora de vida que habita em cada um de ns; importante reconhecer que ela est l, que ela se exprime a cada vez que se encontra confrontada com a oposio. (La violence est une force de vie qui habite en chacun de nous; il est important de reconnatre quelle est l, quelle sexprime chaque fois que lon se trouve confronte lopposition.) 36 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 24.
131
da discrdia. no palco da tragdia, e ao que a mediao procura assemelhar-se,
que tais mal-entendidos consigo e com o outro se apresentam e permitem, pela
verbalizao, o reencontro da individualidade e da alteridade. Uma espcie de
reencontro da ligao perdida com o outro e consigo mesmo. Nesse sentido, a
mediao abre espao para acolher o sofrimento37 e para que tambm possa se
tornar uma sucesso de passagens em busca do apaziguamento, j que o homem
no est condenado a ser violento, podendo saber trabalhar com seus instintos
destrutivos e sair da confuso em busca da liberdade de ao construtiva.38
A tragdia entre os gregos (no momento parecido com que se vive hoje, de
insuficincia do fenmeno regulatrio), especialmente pela reproduo dos
sacrifcios rituais, permitia que a desordem momentaneamente operada pelos
homens se tornasse novamente ordem e coeso comunitria. Como a violncia est
necessariamente ligada s idias de preservao e de destruio, como visto, de
vida e de morte, os sacrifcios operados nos rituais (fossem nas festas cvicas, nos
jogos, nos espetculos, nas peas tragicmicas) permitiam a transio desta
passagem, e, logo, da desordem ordem pela exorcizao do mal. A possibilidade
dos contendores reviverem sua violncia punindo a vtima (bode expiatrio) de todo
o mal que eles mesmos produziram, garantia com que a
vtima maldita se transformasse em vtima sagrada, e, conseqentemente, seus
prprios algozes estariam prontos a se purificar.39 O simbolismo do sacrifcio
permitia uma relao direta entre culpabilidade e punio de modo a tornar a vtima
o depositrio de toda a violncia coletiva.
Nos rituais de sacrifcio, todo um conjunto de gestos organizadores do espao e
do tempo garantia a necessria definio de lugares entre homens e deuses (que
curiosamente no espao poltico permitia a diferenciao dos homens e suas
classes), e a matana oferecida por um particular ou pelo prprio estado (nas
praas, nos santurios, nos banquetes pblicos) seguia rigorosamente um
procedimento. A definio inicial das vtimas (em grau de importncia: frutas,
manufaturas, animais: da galinha ao boi), a escolha do mal a ser exorcizado 37 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 26. 38 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 30. 39 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 38.
132
(ofensas individuais, familiares), a importncia econmica dos conflitantes (maior o
prestgio, maior o sacrifcio), a definio da ordem de oferenda (aos deuses, aos
guerreiros, ao povo), o fim das oferendas (queimadas, depositadas, divididas,
libadas) os passos seguidos (exaltao coletiva, ofensas pblicas, sacrifcios
expiatrio), o processo de desmaterializao da vtima (separao das melhores
carnes, do fmur e do msculo para os deuses postos no altar embebido no leo;
das vsceras parte viva aos guerreiros, e o resto entre os participantes, numa
verdadeira reproduo da isonomia pblica)40.
Ao seguir o rito, o objetivo do sacrifcio era, em suma, oferecer aos deuses
() a vtima, e, com sua emulao, sobretudo quando eram sacrifcios cruentos,
consagrar a sacralidade da violncia praticada, acalmando os espritos conflitantes
e permitindo o rearranjo do lao social. As tragdias, quando os sacrifcios j no
mais se realizavam, passaram a rememor-los como forma de os reviver
publicamente e produzir o mesmos efeitos transmutadores que a morte da vtima
sacrificvel oferecia.41 Ao assistirem as tragdias, e, logo, aos sacrifcios, os
homens liberavam suas violncias emocionais, verbais, fsicas atravs de seus
fantasmas, vivendo, por procurao42 e por reflexo os seus prprios problemas:
o incesto, a loucura, a morte, a ofensa, a leso etc. O sacrifcio representado
permitia a catarse () de todo o mal, evitando a proliferao da escalada da
violncia.
A tragdia permite, atravs da representao e do elemento simblico, ao homem
de circular nos mais variados nveis do real, medida que transforma todos os
fenmenos humanos em mensagens para o imaginrio.43 Atravs do recurso ao
espao exterior, ela decodifica o conflito dos smbolos, e, logo, do sofrimento que
cada um consegue visualizar numa determinada personagem. Cria a tragdia um
momento de confrontao do homem com os seus prprios atos, por isso ocorre no
40 PANTEL, Pauline Schmitt; ZAIDMAN, Luise Bruit. La religion griega en la polis de la poca clsica (trad. Maria de Ftima Zez Platas) Madrid: Akal, 2002, p. 25-38; 92-95. 41 Dentre as referncias trgicas, ver: ESQUILO, As coforas, 123-150; ARISTFANES, Las tesmoforias, 295-350; ESQUILO, Os sete contra Tebas, vv. 262-279; SQUILO, As suplicantes, 630-710. Tambm em HOMERO, Odissia, III, 418-472; HESODO, Trabalhos e dias, 465-468; HOMERO, Ilada, I, 449-458 42 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 43. 43 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 73.
133
exato momento em que o direito grego comeava a falar em culpa-bilidade (-
);44 em purificao do esprito pela pena ( )45. Seu percurso
permite a exteriorizao do no-dito atravs dos seguintes passos: inicialmente, a
teoria (), na qual cada personagem, como um espelho, expe os seus
dramas e se obriga a escutar o sofrimento dos outros momento em que o coro e o
corifeu repetem em tons distintos o dito, fazendo ecoar no pblico e do pblico
recebendo as suas emoes particulares, de modo que os gritos, os medos, as
interrogaes aparecem por provocao; em seguida, a crise (), instante em
que a exposio do que foi vivenciado provoca intensas reaes nos opositores, que
passa a ser trabalhada pelo coro atravs de seu distanciamento proposital a garantir
a transformao do comportamento de cada um; por fim, a catarse (),
quando se expressa o reconhecimento do sofrimento da crise, e permite que a ele
se supere pelo seu acolhimento, e a sua transformao ocorra pelo reconhecimento
e pela tomada de conscincia individual.46 Cria-se, ento, um ambiente favorvel
para a purificao do homem atravs da purificao da personagem.
O problema em parte das sociedades atuais, segundo Morineau47, que j no
h mais o sacrifcio, e, tampouco a tragdia, capaz de reviver a violncia de faz-la
explorar as razes, as causas, o conflito consigo mesmo, razo pela qual a
mediao pode ocupar o seu espao.48 Ambas se colocam num momento de crise,
sendo aquela na passagem da dominao dos deuses para a dominao do
normativo, da razo, do homem; esta, na passagem da segurana, do privilgio dos
valores irracionalidade das respostas, da banalizao dos vnculos sociais, do
44 A tragdia soube bem explorar o aparecimento da culpabilidade. Ver nesse sentido: ESQUILO, Prometeu acorrentado. SFOCLES, dipo-rei. EURPEDES, Media. EURPEDES, Os persas. 45 GERNET, Louis. Recherches sur le dveloppement de la pense juridique et morale en Grce: tude smantique. 2 ed. Paris: Michel Albin, 2001, p. 313 e segs. 46 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 82-88. 47 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 42. 48 Por certo que se poderia pensar que os espetculos, hoje, continuam a existir, ainda que de modo atualizado, pelos shows, pelos programas de lutas explorados nas televises etc. Todavia, ao contrrio das tragdias, falta-lhes o estmulo atividade, ao agir, ao envolvimento psicolgico consigo mesmo que a tragdia permitia. No h nestas manifestaes propriamente o reencontro pela abstrao do indivduo consigo mesmo seno um simples instante de satisfao sensorial e insana de emoes, sem qualquer carga reflexiva. Com isso, o homem diante da media no se pe a refletir, a especular sobre o mundo e sobre si mesmo, de maneira a metabolizar sua violncia, mas apenas a revive e a reproduz, tal como os lutadores o fazem despudoramente dentro do ringue. No por outra razo, tais espectculos somente servem ao regozijo momentneo e a reproduzir o estmulo violncia. No h qualquer expresso mnima de catarse, quando muito expiao.
134
enfraquecimento das virtudes. A mediao cumpre a funo de romper a escalada
da violncia mediante o acolhimento da desordem, a representao verbalizada de
cada momento do drama pessoal, a criao de um novo espao e a transformao
dos indivduos conflitantes. Por ter tambm um forma ritualstica, abre-se um lugar
privilegiado para que o sofrimento se expresse na retomada gradativa e lenta dos
acontecimentos passados, dolorosos e considerados individualmente injustos.
A mediao, ao permitir a violncia falar, busca antes do que o mtuo
entendimento a teraputica da doena do esprito (-), por isso, alm do
elemento da alteridade, tem ela uma funo de metabolizao de sentimentos
malficos, de cura de inseguranas, de conforto de traumas. No toa os gregos
fizeram derivar a palavra crime (-) do mesmo radical da doena do
esprito. Esse sofrimento, ao invs de ser olhado dentro do passado, como o faz o
direito, trazido tona ao presente, de modo a expor para o homem conflitante a
imagem e a responsabilidade pela parcela de seus atos e de seu sofrimento no
outro. Regula-se, com isso, a si mesmo pelo mesmo rito trgico da teoria, da crise,
e da catarse, no qual o coro, o pblico e o corifeu so substitudos pelo mediador.
Cumpre ao mediador, tais as mscaras das festas cvicas, os seguintes recursos
essenciais: o espelho reencontrando o outro pelo que ele mesmo , refletindo as
emoes dos protagonistas para que se encontrem consigo mesmo; o silncio
garantindo um espao vazio de potencialidade e liberdade, entre o eu-interior e o eu-
exterior; a humildade manifestada pela ausncia de julgamento, apenas como
facilitao, a explorao de vozes interiores.49
Permite-se na altura e na intensidade necessria que o no-dito no conflito seja
verbalizado, facilitando a expresso da violncia perpetrada mutuamente. Ao
colocar questionamentos, mantendo um duplo e contraditrio papel cooperativo-
distante, permite recomear a base do conflito, tal a violncia original. Assim, a
mediao traz consigo elementos que permitem a cada um a tomada de
responsabilidade por seus prprios atos, desvendam a duplicidade do humano (ora
do amor, ora da raiva, ora da honra, ora da traio); confrontando mistrios pela
49 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 96-99.
135
abertura de um ao outro, com vistas ao reconhecimento de seus erros e
evacuao do mal ()50. Ao fazer do mediador a imagem da vtima
sacrificvel, cria um momento de transformao, em que a desordem d novamente
lugar ordem.51
Por certo que esse processo no to simples de ser perpetrado quando os
conflitantes so, de um lado, o homem, e, de outro, o Estado, e toda a violncia
historicamente praticada na essncia, como visto, independentemente do modelo de
poltica adotado. De qualquer modo, ainda que questionamentos pudessem ser
feitos sobre haver ou no espao para uma verdadeira mediao indivduo-estatal,
quando sentimentos existem apenas de um lado, e o sofrimento no dialogar seno
ser to somente exposto diante do prprio algoz, numa perspectiva continua a ter a
mesma funo, qual seja, fazer que o no-dito individual seja verbalizado e permita
que haja uma transformao pessoal. Talvez seja nesta espcie de conflito um
processo de mediao no to violento no plano exterior quanto o entre
particulares, mas certamente mais duro, rigoroso e profundamente dolorido no plano
interno de ser alcanado, j que vinculado muitas vezes a questes essenciais
(como direitos de moradia, de previdncia pblica, de crimes polticos, de sade
pblica etc.). Cumprir antes serem resolvidas questes simples, como a permisso
integral de mediao por agentes pblicos, mudana na prpria atuao do Estado
para com os indivduos, redefinio da viso particular sobre o papel do Estado etc.
Porm, sempre haver uma transformao necessria a ser feita consigo mesmo,
num repensar suas responsabilidades, sua culpa e o verdadeiro alcance de sua
subjetividade.
Espera-se, assim, numa fase ps-positivista, que a mediao, como a anistia
() numa perspectiva individual, possa operar um verdadeiro esquecimento
do conflito ao deix-lo falar, transformando a raiva exteriorizada pela violncia
recproca num consenso (-), no apenas num sentido poltico, mas num
verdadeiro consenso entre esprito. Quer-se, ento, que ao fazer falarem os males
pelo recurso da memria na mediao, e no toa, como bem observa Brbara
50 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 111. 51 MORINEAU, Jacqueline. Lesprit de la mediation , p. 123.
136
Cassin, ambos tm proximidade lingustica do verbo rememorar (),52a
violncia no seja silenciada pela normatividade, em prol de um justo normativo,
que renova os grilhes da violncia, mas seja dialogada, falada, capaz de permitir
uma verdadeira converso individual mutao (-) por um processo de
autocompreenso e de compreenso do outro, a ponto de se atingir um elevado
estgio (como em Xenofonte, Plato), cuja metabolizao (-) da angstias,
do sofrimento, dos medos, das emoes leve ao encontro do justo consigo mesmo,
o justo pela transformao interior, o justo pela reconciliao espiritual com o outro,
em suma, um justo metbole.
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