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Manuel de Castro Nunes Viriato, a Lusitânia e os romanos. Um discurso sobre o ignoto. 1

Viriato, a Lusitânia e os romanos. Um discurso sobre o ignoto

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Manuel de Castro Nunes

Viriato, a Lusitânia e os romanos.Um discurso sobre o ignoto.

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Prólogo

Quando, nos alvores da nossa era, Estrabão escreveu o livro III da sua Geografia, apenas num breve passo refere o nome de Viriato (III, 4, 5, c. 158), um curioso registo associando-o aos cartagineses, aos tírios, aos celtas, a Sertório, a todos os inimigos enfim contra os quais uma imaginada pátria ibérica nunca conseguiu opor a sua unidade. Viriato é apresentado com o epíteto ou cognome de bandoleiro, tema sistematicamente invocado pelo geógrafo sempre que cita os lusitanos e as nações da Ibéria ocidental, interior e remota. Rematando este breve interlúdio, Estrabão anuncia que passa a retomar a descrição da costa meridional da Ibéria, que trazia encadeada e que suspendera para embutir esta observação e uma anterior sobre o alcance ocidental das aventuras do Odisseu. (1)

No livro IV (4, 2, c. 196), o geógrafo ilumina um pouco o sentido que o anterior comentário assumia na mentalidade de um romano. Referindo a brevidade da oposição dos gauleses à conquista romana, comparada com a longa duração da resistência dos hispânicos, atribui-a ao facto de os gauleses se apresentarem em combates abertos, mobilizando exércitos numerosos, conquanto fugissem com mulheres e filhos se não se pudessem considerar em superioridade numérica. Enquanto os hispânicos atacavam de surpresa, em várias frentes e em pequenos grupos, furtando-se sempre a confrontos decisivos, ao modo de ladrões. Na verdade, ao longo da obra Estrabão não chega a formular uma clara distinção entre o modo e a substância, pois o que se conclui de vários passos é que os hispânicos se espoliavam e guerreavam mais uns aos outros, do que se opunham aos romanos. É óbvia, todavia, a contradição entre estes dois juízos, que não toleram concluir se os hispânicos beneficiaram do seu carácter, pois é nele que residem, simultaneamante, tanto as causas da sua conclusiva submissão, como as da tenacidade da sua resistência.

O tema dos bandoleiros, aliado ao dos mercenários, é quase um estigma que paira sobre toda a história antiga da Hispânia, nomeadamente do território ocidental. Mas é curioso que, envolvendo outro período nevrálgico para a mitografia épica constituinte da ideia de nacionalidade e identidade da faixa ocidental da Península, o assunto ressuscite a propósito dos dois grandes protagonistas de uma pelo menos vaga intenção de reconstituição da antiga Lusitânia, Afonso Henriques e Giraldo Giraldes, o Sem Pavor. (2)

Tal como nos foi legado, no quadro estrito das fontes antigas, Viriato é obviamente uma construção romana, um discurso dos romanos sobre o outro, ou sobre si próprios mediantes os outros. Foi por isso que me interessou partir para este itinerário mitográfico referido a Estrabão, talvez o mais inequívoco monumento da trivialidade romana.

Nada sabemos de Viriato, senão o que os romanos contaram. Os outros, os dele, ficaram mudos para a História. E foi paradoxalmente sobre o que contaram que se edificou o mito e a épica. Entre a épica e o discurso que lhe serviu de fundamento, ou de inspiração, acumularam-se densos e profundos estratos de detritos, à espera de uma arqueologia exaustiva. (3)

Uma arqueologia do discurso, obviamente. Porque do alcance daquela que opera sobre os detritos materiais, Viriato estará tanto mais longe quanto mais ela se aproxime da sua maturidade. É obviamente improvável que, dos escombros sobre que a arqueologia, em sentido estrito, intervém, brote um vestígio, ou indício sequer de Viriato. Dos lusitanos, apenas breves referências epigráficas, do tipo F... cohortis III lusitanorum (...) hic situs est. Esta arqueologia só pode discorrer ou deduzir do que

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materialmente se manifeste, em consequência das suas intervenções sobre os detritos materiais.

Ora, a arqueologia ainda não encontrou um contexto, no horizonte das suas intervenções sobre os objectos que lhe são próprios, em que possa irreversivelmente deduzir lusitanos, caracterizando uma cultura e uma civilização distintas de todas as outras que se manifestaram no território ocidental da Península até à chegada dos romanos, ou ainda durante os primeiros cento e cinquenta anos do seu estabelecimento no território. Por isso, para os arqueólogos, no quadro estrito da sua disciplina, os lusitanos e a Lusitânia são instituições da administração territorial e censitiva romana, atestadas sobretudo na epigrafia. Para além disso, são referências textuais e literárias, objectos de outras disciplinas.

Em face dos complexos universos mitográficos que as interpretações dos textos antigos, em vários estratos de leitura e em vários contextos e géneros de abordagem, foram acumulando, a arqueologia revela mesmo, nas suas mais correntes e actuais tendências, um certo desdém sarcástico perante os temas e tópicos da cronografia, da historiografia, da cosmografia e da mitografia antigas, tidos mais como objectos da especulação literária do que do que de um real e efectivo conhecimento objectivo. E tal atitude faz parte integrante do estatuto e da personalidade da sua maioridade, porque só despojando-se de tudo o que pudera opor-se à análise dos dados, secos e despidos de qualquer retórica, que se manifestam materialmente à sua observação, pôde a arqueologia definir os seus objectos próprios e exclusivos, para se propor como área autónoma do conhecimento histórico. A arqueologia pôde então definir os procedimentos próprios para as suas intervenções, para a caracterização dos seus objectos e para o tipo de operações indutivas e dedutivas que podem ser consideradas lícitas, tendo em vista a sua autonomia. Este itinerário foi indispensável para que a arqueologia viesse a ser o que é, talvez tenha que vir a ser percorrido em sentido inverso, para que a arqueologia possa vir a ser o que nos parece que será no futuro. Quando a autonomia dos diversos territórios do conhecimento histórico, porventura, deixar de ter sentido.

Bem, mas se a arqueologia dispensou os tópicos desta natureza, como Viriato e os lusitanos, formulando em alternativa os seus próprios, que a observação dos dados objectivos manifestados na intervenção sobre objectos materiais lhe tolera formular, nós, se quisermos retomar Viriato e os lusitanos como tópicos de um renovado discurso de reflexão histórica, não podemos dispensar a arqueologia. Teremos que fazer acrescer, sobre os dados da interpretação textual e historiográfica dos objectos literários, os dados adquiridos pela arqueologia na sua intervenção sobre os objectos materiais, com o sentido, a relevância e a natureza com que o discurso arqueológico os atribuíu. Árdua tarefa e num território ambíguo e ubíquo, a que todavia não nos furtaremos.

É certamente provável que a arqueologia não possa certificar e atestar Viriato nem os lusitanos, senão como tópicos de um discurso literário que irradicou do seu alcance. Mas nós não nos podemos furtar à operação elementar de experimentar saber se o Viriato e os lusitanos literários podem ou não refutar ou ser refutados pelos dados da arqueologia. Pelo menos, de experimentar observá-los do ponto de vista e da perspectiva, ou à luz dos dados da arqueologia.

Viriato é então, primeiro do que tudo, um tópico da historiografia romana, como de resto os lusitanos. A historiografia romana será entendida como uma res gestae romanorum, isto é, como o discurso dos romanos sobre si próprios e sobre a sua identidade, ou na demanda da sua identidade. Sendo assim, no retrato que edificaram sobre os outros, os romanos não procuraram senão identificar-se.

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Mas a sociedade romana era uma sociedade muito fracturada, em torno de valores porventura antagónicos. Era uma sociedade de denúncias, dos romanos contra os romanos, em torno de tópicos e juízos expressos em todos os domínios da cultura romana e mormente, como é óbvio, na historiografia. Os juízos sobre os outros transportam também essas fracturas, por isso o outro é simultaneamente a sede das virtudes que faltam aos romanos e a sede dos vícios que a virtude dos romanos não tolera.

É notável que Estrabão, que utiliza as mesmas fontes que Apiano, no fundamental Políbio, Diodoro e Possidónio, não refira sequer o episódio que introduz Viriato na historiografia romana, a campanha de Sérvio Sulpício Galba, pretor em 151 e 150 a. C., que, tendo perdido sete mil homens numa emboscada, chacinou cerca de oito mil lusitanos, depois de os ter atraído pacificamente e desarmados, com o pretexto de que negociava a paz e lhes distribuía terras. Este episódio motivou logo, como é sabido, uma truculenta intervenção de Marco Pórcio Catão, o Censor, que apoiou incondicionalmente o processo que o tribuno da plebe Lúcio Libão propôs no Senado, exigindo a punição de Galba. (4)

A chacina perpetrada por Galba e a venda posterior dos lusitanos sobreviventes na Gália tornou-se num dos episódios paradigmáticos da não adesão dos romanos, ou de parte dos romanos, aos procedimentos que o senso comum não podia deixar de atribuir aos seus inimigos. Na lógica dos romanos, a ascensão de Viriato e o encarniçamento da resistência dos lusitanos concebe-se como a resposta linear às atrocidades de Galba. Mas o episódio de Galba não anda isolado, integra-se num vasto contencioso que anima a sociedade e as instituições romanas contra o peculato, a corrupção e os desmandos da aristocracia oligárquica, para quem a guerra e a conquista são meros processos de acumulação de poder, tendo como alvo as clientelas de famílias como os Cipiões e os Calpúrnios. O contexto é o de profundas crises éticas e sociais que envolvem os últimos anos de Catão e antecedem os Gracos. A Hispânia é o centro das atenções. Primeiro no contexto da II Guerra Púnica e da primeira fase da conquista, agora no das guerras com os Lusitanos e os Celtiberos. (5)

Viriato, simultaneamente ladrão, ou bandoleiro, e general, ou num itinerário de vida consequente de ladrão a general, que é a versão historiográfica mais comum, é quase o reverso dos generais romanos, que surgem na Hispânia ostentando as insígnias de pretores para reaparecerem em Roma triunfando como ladrões, ostentando em apoteose o espólio das suas pilhagens, para responderem depois, humilhados, pelos seus latrocínios. (6) É nesta ambiguidade que a historiografia romana edifica a personalidade de Viriato, tão romano nos seus latrocínios, como no seu estoicismo. É esta ambiguidade que suportará a sucessiva edificação do mito e da épica, quando Viriato, de paradigma romano, for alçado em herói hispânico.

Mas é notável que a historiografia romana manifeste uma coesão tão sólida em relação a Viriato. Desde a tradição dos greco-romanos, Possidónio e Diodoro a Apiano, por exemplo, à dos analistas romanos na tradição de Tito Lívio, a trama narrativa institui-se sobre os mesmos tópicos. Os juízos de Políbio são difíceis de restituir, dado o estado fragmentário em que a sua obra nos chegou, fundamentalmente através de Estrabão e Possidónio; todavia há que ter em conta que foi amigo e seguidor de Cornélio Cipião, que acompanhou nos episódios derradeiros da guerra numantina.

Talvez tenha sido do seu grande inspirador, Políbio, que Estrabão herdou a sua fidagal indisposição contra Viriato e a resistência celtibérica e lusitana aos romanos. Mas para além disso Estrabão era protegido de Augusto. As recentes

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guerras civis e a resistência de Sertório na Hispânia não deviam suscitar grande simpatia pelos lusitanos na corte octaviana. (7)

Por tudo isto, a análise do tema das guerras lusitanas e de Viriato tem que se iniciar por uma exaustiva crítica comparativa das fontes romanas e greco-romanas. Mas simultaneamente com a sistemática exposição e avaliação de todo o itinerário da conquista romana, desde a queda de Sagunto até à capitulação de Numância e à campanha de Décimo Júnio Bruto, acompanhada do levantamento exaustivo de toda a informação que, no domínio estritamente arqueológico, contribui para caracterizar o ambiente em que decorre, nomeadamente no que respeita à diversidade étnica e cultural peninsular.

As guerras lusitanas e Viriato, serão então analisados do ponto de vista das narrativas e juízos romanos, na exploração do seu significado ideológico como expressões da profunda crise de valores que desabou sobre a sociedade romana no século e meio derradeiro da República. Os tópicos fundamentais da crise, nas perspectivas política, militar e social, serão alvo de análise exaustiva que incidirá também sobre os seus mais destacados protagonistas, em particular sobre os envolvidos nos assuntos hispânicos.

O tema do bandoleirismo, a que prestaremos uma especial atenção, interessará sobretudo para identificar os processos através dos quais a épica de Viriato consolida o tópico estruturador da gesta da fundação da nacionalidade, em itinerário transversal, afectando os seus protagonistas fundamentais. Interessar-nos-á, sobretudo, a sobreposição de Viriato a Dom Afonso Henriques e a Giraldo Giraldes. Mas colocar-nos-á no cerne do problema a trama dos itinerários de tráfego no Ocidente da Península, bem como a surpreendente mobilidade e sociabilidade entre grupos e etnias, consolidada pelos hábitos da transumância. A análise e avaliação da amplitude do espectro de mobilidade de Viriato e dos lusitanos nas suas correrias é talvez, do ponto de vista da caracterização da cultura e da civilização no Ocidente peninsular, o melhor contributo de uma monografia em profundidade sobre as guerras lusitanas e celtibéricas.

Interessar-nos-á, por fim, a análise em profundidade do processo da edificação da lenda e do mito do fundador do génio nacional, dos procedimentos de abordagem às fontes antigas que permitiram extrair, do bárbaro celerado dos romanos, o insigne unificador e general dos lusitanos. (8)

Notas

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1. A mais consagrada apresentação integral do texto de Estrabão, traduzido para língua castelhana, apoiada por um exaustivo aparato de notas de grande erudição embora de discutível inclinação ideológica, é a de A. García y Bellido, España y los espanõles hace dos mil años según la Geografia de Strábon, Espasa-Calpe, Colección Austral, Madrid, 1945. A edição de Bellido segue a tradição das Fontes Hispaniae Antiquae, publicadas por Adolf Schulten e Bosch Guimpera, Universidad de Barcelona, VIII volumes, 1922-1947, que passaremos a designar por FHA. É aliás em Adolf Schulten, como veremos, que radica a renovação da épica de Viriato, tanto nos comentários às FHA como em Viriato, tradução portuguesa de Alfredo Ataíde prefaciada por Mendes Correia, Porto, Renascença Portuguesa, 1927. Obviamente, o acesso mais profundo a Estrabão ou a qualquer das fontes deve ser mediado pelas FHA. A apresentação de Bellido é todavia de fácil acesso.

O passo de Estrabão diz literalmente:É possível que as emigrações dos helenos para os povos bárbaros tivesse por origem a sua

divisão em pequenos estados e o seu orgulho local, que não tolerava que se unissem em torno de objectivos comuns, o que os privava da força para repelir agressões do exterior. Tal orgulho alcançou entre os iberos maior intensidade, ao que acrescia um carácter volátil e obscuro. Levavam uma vida de correrias e assaltos, surpreendendo-se com golpes de mão, nunca em grandes confrontos, por ausência de determinação para aumentar a sua força unindo-se numa forte confederação. Ora, se tivessem conseguido conciliar as suas armas, nem os cartagineses, nem antes os tírios, nem os celtas, que agora se chamam celtiberos ou berões, nem o bandoleiro Viriato, nem depois Sertório, nem outros celerados teriam dominado os seus territórios. Então vieram os romanos combatê-los, venceram uma a uma todas as tribos e, ao cabo de duzentos anos ou mais, acabaram por subjugar todo o país. Agora, retomo a descrição.

O passo citado a seguir acrescenta:(...) os gauleses fogem sempre com as famílias e haveres quando se aproxima um inimigo

mais numeroso. Por esta razão foram dominados muito mais rapidamente pelos romanos do que os iberos. A guerra contra estes começou mais cedo e prosseguiu até mais tarde e os romanos conseguiram entretanto subjugar todos os povos entre o Reno e os Pirinéus. Uma vez que atacam em grandes hordas e com grandes exércitos, os gauleses sucumbem também em grande número, enquanto os iberos doseiam a sua guerra, atacando em várias frentes e em pequenos grupos, à maneira dos bandoleiros.

O discurso de Estrabão sobre o bandoleirismo dos iberos, em particular dos povos do interior ocidental, e sobre o seu carácter obscuro e traiçoeiro é linear e consequente. Contrasta obviamente com o retrato vigoroso, embora ambíguo, que as outras fontes nos transmitem do valor dos lusitanos e dos seus chefes, nomeadamente de Viriato. Apiano, outro greco-romano, legar-nos-á, um século mais tarde, os mais vigorosos retratos de Viriato e relatos das guerras lusitanas. Este contraste será obviamente desenvolvido, quando procedermos à análise comparativa do repertório das fontes. Não há, por exemplo, mais do que uma breve referência em Estrabão ao episódio derradeiro da resistência dos numantinos, tópico tão celebrado por todos os outros autores.

Estrabão deixou-nos uma Geografia e não uma História. A História que escreveu perdeu-se quase integralmente. Os episódios da vida política e militar e os seus protagonistas não são especificamente assuntos da geografia. Mas Estrabão discorre longamente sobre o carácter dos lusitanos, invocando abstractamente as suas atitudes nas guerras contra os romanos, sem ilustrar os seus juízos com um único episódio sequer.2. O tema dos bandoleiros, em associação com os itinerários de tráfego e a amplitude da mobilidade dos grupos que se atesta nas referências às correrias dos grupos e etnias em todo o Ocidente peninsular, nomeadamente no vasto território que se estende entre o Tejo, o Guadiana e o Guadalquivir, ou mesmo entre o Tejo e o Douro, tem sido pretexto para vários desenvolvimentos no nosso estudo, a propósito da caracterização do território envolvente de Évora. Obviamente, a nossa atenção concentra-se em dois períodos específicos da história militar do território, as guerras lusitanas e a conquista cristã dos séculos XII e XIII.

A associação de Afonso Henriques e Giraldo Giraldes ao tema do bandoleirismo é óbvia a partir da análise das movimentações de Giraldo associadas à tradição da Cronica Gotorum, que funda o assunto ao referir o séquito de Giraldo como socii eius latrones e ainda à tradição das narrativas das conquistas de Évora e Santarém. Para além do mais há que inroduzir na análise a tradição do Castelo de Giraldo, assunto que, num estudo ainda inédito, formulamos assim:

«(...) Item est carta de donatione quam dedit Concilium Elborense (...) Cuius herdeditatis isti sunt termini sicut dividuntur per marchos et divisiones, silicet per primum Marchum qui est positus in Castello Latronibus et deinde eundo directe ad allium Marchum qui est positus in buca de furadoiro in via que venit de Elbora contra peçenas exeunde de Exara (...). Pedro Azevedo, Livro dos Bens de Dom João de Portel. Cartulário do Século XIII. Lisboa, Arquvo Histórico Português, 1910.

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Ou seja: E também há a carta da doação que deu o Concelho de Évora (...) De cuja herdade estes são os termos, no modo em que são divididos por marcos e divsões, assim: pelo primeiro marco que se pôs no Castelo dos Ladrões e daí seguindo directamente a outro marco, que se pôs na boca do furadouro na via que vem de Évora contra Pecenas partindo de Exara.

Para esclarecer os critérios da tradução, basta registar que alterámos a pontuação para tornar a leitura mais clara, sem alterar o sentido. A tradução de Castello Latronibus por Castelo dos Ladrões, presume que o ablativo, tanto de castellum como de latrones, que dado o nominativo castellum se deveria enunciar no genitivo latronum como seu determinante possessivo, é regido pela preposição in, extensão canónica no latim cartulário medieval.

Trata-se da revisão das confrontações entre Dom João Aboim e o Concelho de Évora, ordenada por Dom Afonso III. O circuito da demarcação parte do Castelo dos Ladrões, onde é colocado o primeiro marco. O segundo na entrada do furadoiro, na via que vem de Évora contra Pecenas, à saída do Bosque ou Sobral (enxara). Furadoiro é um atalho, associado geralmente à ideia de itinerário de fuga ou de emboscada, caminho de ladrões (de fur, is, ou furator, is, ladrão). Ora aqui estão de novo dois tópicos indispensáveis para a compreensão do território eborense e da relação dos colonizadores medievais com a sua indelével vocação.

Este Castelo dos Ladrões, singular torre circular edificada em alvenaria de pedra miúda com ocupação desde o Bronze Final, situado nas vertentes derradeiras das faldas meridionais da Serra de Montemuro, sobranceiro ao estabelecimento viário romano de Nossa Senhora da Tourega, a Sudoeste de Évora, veio a consagrar-se nas invocações populares regionais sob a pomposa denominação de Castelo de Giraldo, referido à patriótica gesta da conquista de Évora por Giraldo Giraldes, o Sem Pavor. Associado ao furadoiro, como marcos de uma demarcação de irrefutável significado na reordenação medieval do território eborense, congregam em si os apelos às instituições que regem o território desde tempos imemoriais, o tráfego viário e o bandoleirismo. O bandoleirismo no Sudoeste hispânico, associado às estratégicas linhas de tráfego viário, traz referências desde Estrabão. É um tema complexo, que a poucos interessa porventura, mas que daria um novo alento à compreensão do processo de conquista e colonização medieval do território ultra tagano, durante os sèculos XII e XIII. Tema para o futuro, mas que só pode ser compreendido em referência a indícios destes, subtis, esquivos e astutos (3).

Dom João Pires de Aboim é personalidade mal avaliada ainda. Companheiro de armas de Dom AfonsoIII, com ele andou nas lides do Porto e foi seu Mordomo Mor e depois da raínha viúva regente. O último significado da sua intromissão no território eborense e da constituição do seu vasto domínio entre Évora, Portel, Monsaraz e Évora Monte, o verdadeiro nó górdio da intricada rede de tráfego viário no Sudoeste peninsular, obrigando a recuar territórios concelhios e a extinguir concelhos, nunca foi radicalmente alcançado.

Ora, começa-se o circuito da confrontação no Castelo de Giraldo e logo vai à boca do furadoiro que está na via que vem de Évora contra pecenas, à saída do Bosque. Bem, este exeunde de Exara pode significar também à saída do, ou depois de transposto o rio Enxarrama, que é até ao Século XVIII Enxarra ou Exarra, exactamente porque vai buscar as suas águas aos bosques das vertentes setentrionais da Serra de Montemuro, envolvendo depois Évora pelo Nordeste, para despontar a Sul, na planície a que o Castelo dos Ladrões fica sobranceiro. O Bosque, propriamente dito, são os montados e matos da Herdade de Montemuro, vasto domínio concelhio confirmado por Dom Afonso II em 1221 (4).

Tomemos então Exara como o Bosque ou o Sobral. O Castelo dos Ladrões lá despontava altaneiro, embrenhado no bosque, vigiando as planuras. O furadoiro internava-se pelo bosque, a buscar as cumeadas das serras de Montemuro e Monfurado, que o levavam às galerias mineiras da Nogueirinha e do Escoural. A via vinha de Évora a Nossa Senhora da Tourega, onde cruzava, ou tomava a via que vinha de Alcácer e Torrão e era lanço itinerário Vlissipone Emeritam. Em verdade, deveria subir por ramal a Évora e daí dirigir-se a Mérida. Pois o seu sentido natural e imemorial era contra Pecenas, isto é a transpor o Degebe em direcção a Moura, ou Mértola, e Sevilha (5). Pecenas é ribeira afluente na margem direita do Rio Degebe, a Norte de Portel. Não seria o velho caminho tartéssico que ainda invoca Avieno?

Mesmo sobre a via, entre a sede da Herdeade do Tojal e São Marcos da Abóbada, a torre de Camoeira, poderoso bastião rural com fundamentos romanos.

Bem, a conversa é um cesto de cerejas. Nem se concluiria mais o repertório de questões a que este exíguo trecho faz invocação.»

E sendo então a conversa como as cerejas, ainda a deixamos aqui cativa de outro tópico. As montanhas onde se ergue o Castelo dos Ladrões ou do Giraldo trazem, desde o Século XII, a

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designação de Serra de Montemuro, que, numa etimologia primária, logo temos tendência para interpretar como serra murada, coroada de muralhas ou muros. Todavia Mons Murum significaria literalmente, em Latim, o Monte dos Ratos, pois murum é genitivo plural de mus, rato. Como é óbvio, a designação de Monte dos Ratos, traz uma luminosa invocação aos restantes tópicos que temos que associar ao lugar, o Castelo dos Ladrões, o Furadouro. Bem, para quem o conhecer, ainda associaria uma complexa teia de perfurações e sistemas subterrâneos, as Grutas de Escoural, as Covas de Montemuro, as minas da Nogueirinha, uma intensa profusão de antas que sugeririam perfurações, como a Cova da Onça junto de São Briços.

Acrescente-se ainda que as montanhas que transportam para Ocidente, na direcção de Escoural, a Serra de Montemuro, trazem o nome de Serra de Monfurado, a ressoar uma vez mais a fur ou furator.

É mesmo provável que as montanhas de Venus, último reduto de Viriato, correspondessem ao Mons Murum e ao Castelo dos Ladrões ou de Giraldo, como tentaremos fundamentar no local próprio deste estudo. Que ânimo renovado emprestaríamos à épica e à mitografia, se concluíssemos que o último reduto e acantonamento de Viriato coincidiu com o reduto de onde despontou Giraldo Giraldes o Sem Pavor.

No local próprio, ainda, trataremos de aprofundar os tópicos da épica e da mais genuína tradição cronográfica afonsina em associação ao tema da volubilidade, da mobilidade e do latrocínio, como tópicos da caracterologia dos lusitanos e de Viriato. Do mesmo modo, trataremos de sobrepor o que dessa tradição se pode deduzir das intenções de expansão territorial da conquista afonsina aos limites da antiga Lusitânia e aos alcances da mobilidade das correrias e devastações de Viriato.3. Este estudo contemplará, fundamentalmente, duas perspectivas de alcance. A análise exaustiva dos episódios das guerras lusitanas tal como nos foram transmitidos pelas fontes romanas e greco-romanas da época de Augusto e circunstantes, tentando identificar, do ponto de vista das fontes literárias, o ambiente cultural, social e político e o território em que decorreram, mas também o sentido ou sentidos ideológicos do assunto na sociedade e na cultura romanas. A análise do processo de abordagem das fontes antigas, ao longo dos diversos períodos e estratos de edificação da lenda e do mito, isto é, da transformação de Viriato, de tópico da épica romana em tópico da épica lusitana.4. O texto de Apiano é aquele que acompanha mais consequentemente os episódios das guerras lusitanas, passo a passo, numa narrativa encadeada e linear. O estado fragmentado com que nos chegou o de Tito Lívio não nos permite avaliar a sequência e o encadeado da narrativa. Mas pode-se dizer que apresenta uma orientação ideológica muito semelhante, o que edifica a suspeita de, em complemento a Políbio, Apiano conhecer profundamente a tradição dos analistas romanos, dos quais extraíu o paradigma para os seus juízos.

Na sequência de Apiano, o nome de Viriato surge, pela primeira vez, como o de um dos que conseguiu escapar à chacina traiçoeira perpetrada por Galba. Logo de seguida, Viriato aparece a dissuadir os lusitanos de pactuar com Caio Vetílio, cônsul em 147 a. C., que se prepararia para uma nova distribuição de terras, recordando-lhes o carácter traiçoeiro dos romanos e o episódio de Galba. A partir de então Viriato é chefe dos lusitanos.

Não nos pode escapar o significado de o nome do bandoleiro Viriato se introduzir na narrativa a propósito do latrocínio e prejúrio de um general romano.

Mas o retrato da personalidade de Galba não se esgota no episódio da chacina e traz antecedentes. Porque, anteriormente, em associação com Lúculo, que investira sobre os turdetanos sem autorização do Senado, inventando um pretexto, investe sobre os lusitanos de surpresa desvastando o território e saqueando-o. O tema do saqueio e da apropriação do espólio continua a estar no cerne da questão, é o latrocínio e o bandoleirismo dos generais romanos que está sob juízo desde as investidas de Catão sobre os Cipiões, acusados de saque e de tráfego de magistraturas.5. Ao longo deste estudo teremos que acompanhar exaustivamente, passo a passo, vários aspectos da história política e social de Roma e a forma como se manifestam no contexto das guerras lusitanas e celtibéricas, bem como a estância dos seus mais destacados protagonistas na Hispânia, os Cipiões, Catão, os Pisões, Tibério Semprónio Graco. Catão, cônsul na Hispânia em 195, assumia-se, desde essa altura, contra a família e clientela dos Cipiões, como patrono e protector dos hispânicos.6. O juízo de Apiano, pela sua virulência, merece ser reproduzido:

Contudo, alguns conseguiram fugir, entre eles Viriato, que pouco depois se ergueu em chefe dos lusitanos e matou muitos romanos, levando a cabo feitos assombrosos, de que escreverei mais adiante. Nesta ocasião, Galba, mais sequioso do que Lúculo, distribuíu entre os amigos e soldados apenas uma pequena parte do espólio e apropriou-se do restante, sendo todavia o mais rico dos romanos. No entanto, pelo que dizem, nem na paz se absteve de mentir e de se conduzir como

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prejuro, sempre que de tal lhe advinha proveito. Era mal visto por todos, porém, citado em juízo, foi absolvido pela sua fortuna (riqueza).

Curiosamente, dos poucos que tentaram ilibar a memória de Galba, ironizando mesmo sobre a senilidade de Catão, foi Cícero. Mas Cícero fazia-o no contexto da actividade forense, por vezes em defesa de outros celerados. Os argumentos de Cícero soam ao espírito do velho ditado: de juras está o mundo tão cheio como de prejuros. Pois então, em Roma sê romano. Citando outros juízos, este é o de Valério Máximo:

Também Sérvio Galba foi de grande perfídia (...) aleivosia com que superou, pela enormidade do crime, as maiores monstruosidades dos bárbaros.

Quintiliano:Consta, não só na memória, mas no discurso de Catão, que Galba, só pela compaixão que

suscitou ao apresentar os seus filhos pequenos e o de Sulpício perante o Senado, foi absolvido.7. Políbio acompanhou em permanência o séquito de Cipião Emiliano, filho de Paulo Emílio e neto adoptivo do Africano. Com ele esteve em Cartago e depois em Numância. Foi portanto da vasta clientela dos Cornélios, a quem Catão perseguiu tenazmente. Estrabão andou no séquito de Augusto. Com um estatuto ambíguo e pouco sólido de cidadania, os greco-romanos não têm, naturalmente, junto dos seus príncipes, a independência de juízo que transmite Tito Lívio, por exemplo, contemporâneo também de Augusto.8. Em 1900, ainda foi possível publicar uma importante obra negando a Viriato a pátria lusitana, atribuindo-o à Celtibéria. Como é óbvio, as fontes antigas não toleram esta ideia. Na verdade apresentam sempre a guerra dos lusitanos independente da dos celtiberos, ainda que com episódios que as associam. Nada nas fontes, sequer, tolera a formulação da ideia dos lusitanos como um grupo, ou uma etnia, ou tribo dos celtiberos. O que parece mesmo é que os romanos tentam isolar os lusitanos dos celtiberos, estabelecendo duas frentes autónomas de combate.

Mas não deixa de ser curioso que a mais exaustiva monografia sobre Viriato continue a ser, até ao momento, a de Anselmo Arenas López, Viriato no fué Portugués si no Celtibero. Su biografía. Guadalajara, 1900. Servida por um excelente repertório e análise crítica de fontes.

IA Ibéria entre o périplo massaliota da Ora Marítima de Avieno e a Geografia de

Estrabão, face ao problema da localização e delimitação da Lusitânia.

Uma nebulosa tradição difícil de prosseguir até às suas origens atribui a Viriato por pátria um incógnito mons Herminius. O topônimo é quase consensualmente associado à Serra da Estrela, como é sabido. Todas as aldeias, vilas e cidades da Beira Alta serrana disputam entre si a procedência do herói. (9)

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Ora o próprio antropónimo que lhe foi atribuído pelos romanos ou greco-romanos exibe linearmente origem latina, referindo-se ao sinal mais visível que o identificava. Os determinantes latinos com sufixo –atus, quando não se trata de particípios passados de verbos de tema em a, como amare, amatus, e derivam directamente de nomes, como torquatus, o que usa torque, thoragatus, o que usa couraça, togatus, o que usa toga, laureatus, o que usa coroa de louros, laurea, designam um estatuto ou condição expressos num sinal visível. Viriatus é pois aquele que usa viria, um adereço anelar braçal, aplicado sobre o bíceps. (10)

Não se consegue compreender por que razão o nome viria é geralmente remetido para uma absurda e vaga etimologia céltica, quando o mais conseqüente seria faze-lo derivar de vir, nome latino que significa homem, geralmente por antinomia de juvenis, isto é homem adulto. Tal significaria que os romanos atribuiriam o uso da viria aos rituais de passagem da juventude à idade adulta, como símbolo visível de maioridade. Posteriormente, talvez, de chefia, ou de condição guerreira. (11)

Ora, se o nome viria parece ser latino, o uso não se regista todavia entre os romanos. Regista-se num vasto contexto arqueológico e de representação geralmente atribuído ao amplo território de disseminação da cultura céltica, associada ou não ao torque, por sinal de etimologia latina associada ao verbo torqueo, com um amplo espectro semântico, enrolar, vergar, dominar, subjugar. (12)

Não deixa de ser curioso registar que o topônimo Herminius parece proceder do antropónimo Herman, que, esse sim, parece ser alógeno a etimologias latinas, embora tivesse entrado no léxico latino, tanto para designar um vasto universo de tribos de remota origem céltica, os germanos, como para designar um certo tipo de fraternidade no quadro de um sistema de estrutura familiar matrilinear, associada pelos romanos aos bárbaros. O mais notável dos opositores germânicos aos romanos ostenta o atropónimo de Hermanus ou Herminus (Herman). (13)

Se quiséssemos ainda explorar estas conotações, associadas ao tema do bandoleirismo dos lusitanos, poderíamos mesmo interpretar o topônimo mons Herminius como monte do bárbaro, ou do ladrão.

Ora então Viriatus poderia ser qualquer um que se distinguisse pelo uso da viria. Não é objectivamente ninguém, podemos até deduzir que poderia ser qualquer um em que os romanos, em cada momento, reconhecessem o chefe dos seus inimigos.

O surgir de Viriato expressamente nomeado como chefe dos lusitanos é precedido de oito anos de guerra com povos de procedência e com sede obscura, nomeados ora como Iberos, genericamente, ora como Lusitanos, também genericamente, que iniciam as suas investidas comandados por um Punicus, que podíamos tomar como cognome latino, querendo significar simplesmente que tinha ou lhe era atribuída origem cartaginesa. O que se deduz também é que as movimentações dos iberos ou lusitanos animam e fazem levantar em pé de guerra os arevacos, que os lusitanos estão sediados tanto citra como ultra Tagum e que logo nas suas primeiras arremetidas denunciam uma ilimitada mobilidade territorial, alcançando o Oceano e conseguindo passar ao Continente Africano junto das Colunas de Hércules. (14)

Mas mais de quarenta anos antes, no rescaldo da II Guerra Púnica, os lusitanos são já brevemente referenciados em companhia dos vetões e dos celtas, investindo em razias e pilhagens, ora sobre romanos, ora sobre cartagineses. (15)

O que parece é que porventura um grupo de cartagineses, provavelmente gaditanos, trânsfugas desde a derrota e submissão definitiva da Turdetânia aos romanos, tenta, através da mobilização de várias tribos sediadas no interior,

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habituadas à pilhagem sobre os remotos itinerários de tráfego, impedir o acesso e o controlo definitivo, por parte dos romanos, às fontes de aprovisionamento mineiro e metalúrgico do Noroeste peninsular. Estamos na antecâmara da III Guerra Púnica, com Cartago a ressurgir das cinzas, tentando porventura recuperar o controlo sobre o tráfego na faixa atlântica peninsular.

A questão nuclear que poderá vir a reordenar uma reflexão de fundo sobre essa entidade étnica que os romanos denominaram lusitanos e sobre a entidade territorial que denominaram Lusitânia é a natureza e o âmbito da campanha de Decimus Junius Brutus em 138 e 137. Em que estado ficara a resistência dos lusitanos e quais os seus alcances territoriais após a morte de Viriato em 139. A localização da lendária Moron citada por Estrabão como rectaguarda da campanha decisiva de Brutus sobre a Galécia. Qual a relação entre os lusitanos e os galaicos e qual o sentido de uma campanha relâmpago empreendida por um poderoso general sobre a Galécia, controlando as desembocaduras dos rios a Norte do Tejo, quando a Lusitânia não está claramente subjugada e, na Celtibéria, Numância permanece incólume. Qual o sentido do pomposo cognome de Brutus, o Galaico, quase inaugurando uma instituição de triunfo que associa os generais romanos às suas conquistas, apenas precedido pelo Africano e poucos mais.

Tendo em conta os subsídios que as fontes antigas nos podem prestar, a resposta a estas questões convoca a análise exaustiva do relato poético inserto na Ora Marítima de Avieno, o celebrado périplo realizado por um aventureiro grego no Século V, entre Marselha e a desembocadura do Tejo. (16)

O que se deduz da leitura do relato é que o móbil do interesse dos gregos, depois dos fenícios, pelas navegações atlânticas é o acesso sistemático às fontes do estanho, da prata e do ouro, localizadas desde o curso do Tejo e dos rios setentrionais, Mondego, Vouga, Minho, Lima, até às Cassitérides, de incerta localização mas seguramente em qualquer território insular do Atlântico Norte. Que as vias de acesso ao Atlântico, sejam marítimas ou terrestres, estão desde época remota controladas pelos gaditanos, a partir do delta do rio Tartessos, seja do Guadalquivir. Que uma via terrestre liga a desembocadura do rio Tartessos à desembocadura do Tejo e que esta via pode ser tomada desde Marselha. Que a partir da desembocadura do Tejo o tráfego, marítimo ou terrestre, que conduz, acompanhando a linha costeira, às Cassitérides, é já controlado pelos autóctones, deduzindo-se que os gaditanos não se aventuram a realiza-lo autonomamente. Que o comércio se processa mesmo, genericamente, na desembocadura do Tejo, que parece ser o limite do alcance do périplo realizado pelo aventureiro massaliota. A descrição do território, das rotas e da costa a Norte do Tejo parece transmitida por narrativas vagas dos gaditanos que o acompanham, com base em informações das comunidades autóctones.

O território interior, desde o Cabo Cinético aos limites setentrionais da costa atlântica ocidental, é ignoto e designado genericamente Ophiussa, nome que designa também o cabo que os romanos designarão posteriormente Barbaricum, seja o Cabo Espichel. (17)

Ora, se equacionarmos a seqüência e a lógica das sucessivas campanhas romanas desde a queda de Sagunto à investida de Brutus sobre a Galécia, legitimamente deduziríamos que os romanos tentam atingir, através de duas rotas, uma setentrional trespassando a Celtibéria, outra meridional, a partir de Gades, da Betúria, da Turdetânia e dos Cinéticos, desde a derrota dos cartagineses submissos aos romanos, o limite Noroeste da Península, numa tentativa de assegurar o acesso directo aos recursos mineiros e metalúrgicos, quer sediados nos cursos dos rios, quer nas lendárias Cassitérides.

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Mas o que se apresenta verdadeiramente como surpreendente é que este ignoto território interior, povoado por aqueles bárbaros em estado quase silvestre que as fontes romanas e greco-romanas insistem em descrever, estivesse dotado das instituições de tráfego viário que a mobilidade de lusitanos, arevacos, vetões e outros nas suas correrias e investidas obrigam a deduzir. E que, simultaneamente, suportam a mobilidade das pesadas forças mobilizadas pelos romanos. (18)

Mas quem seriam efectivamente estes lusitanos, aparentemente sem pátria nem acantonamento, pois, nos horizonte dos limites do alcance das suas correrias, parecem estar sediados em todos os lados, poder comportar todos os bárbaros, ora aqui ora acolá, citra e ultra Tagum, do Cinético as confins da Galécia? Quais as suas relações com a grande família étnica dos celtiberos, dos celtas, dos galaicos?

Que procedem de regiões mais ou menos setentrionais deduz-se da sua tendência para correr em pilhagens os territórios meridionais submissos aos romanos, atacando os cinetes ou cónios, os turdetanos e os bástulos, podendo ser esse o sentido da expressão de Apiano, quando diz que logo sob a chefia de Púnico, atacando os bástulos, atingiram o Oceano, portanto nas costas meridionais, entre Gades e as Colunas de Hércules. (19)

As tentativas de atingir solução para a matéria através de manipulações etimológicas não conduziram a porto algum. Para mais, a Leste da Celtibéria moravam uns Lusones que não sabemos que associação étnica poderiam ter, ou ter tido com os lusitanos. Mas, uma vez mais, as manipulações etimológicas tradicionais correm sempre através das ilusões e alusões célticas. Curiosamente, se quiséssemos explorar a hipótese de a solução residir emboscada numa etimologia latina, o mais sustentável era que o etnónimo fosse extracto da forma perfeita do radical de ludo, lusi, com um amplo espectro semântico, iludir, divertir, exercitar-se, jogar. De ludo deriva ainda por sufixação ludibrium, ou seja ludíbrio, zombaria, engano ou insulto.

Só se poderia então concluir que os lusitanos eram todos aqueles que afrontavam os romanos firmados numa certa atitude, que os romanos identificavam com a prática do ludíbrio, ou seja da simulação, ou da guerrilha. Daí que para os romanos são como os ladrões ou os bandoleiros. No desconhecimento quase total da configuração humana e étnica da faixa extrema atlântica da Península, os romanos nem lhes conseguem atribuir uma pátria, ou uma etnia, pois parecem vir de todos os lados. Ao fim e ao cabo os lusitanos são todos aqueles que, em cada momento, se comportam de um certo modo, mas aos quais não conseguem atribuir uma etnia ou uma sede territorial.

De início eram todos os iberos, como se deduz da citação de Diodoro invocando Possidónio: Nomeia também os Iberos como Lusitanos. (20)

E Ibéria é, em sentido genérico, desde as mais remotas referências, toda a Península, como Iberos os povos autóctones que a habitam.

Eis a razão provável de todas as ambigüidades. E, só na medida em que progridem no território e vão estando aptos para identificar etnias e sediá-las em territórios circunscritos, os romanos vão delimitando os lusitanos, ou seja, os bárbaros e bandoleiros restantes, sem pátria nem identificação.

È ainda de notar que a confusão entre os lusitanos e a generalidade dos iberos, que verte das fontes antigas que convoca, inunda em vários passos, sucessivamente, toda a obra de Estrabão, sendo certo contudo que, no tempo em que Estrabão escreve, a Lusitânia era já uma circunscrição administrativa romana. Tal confusão expressa-se claramente em todas as descrições dos hábitos e modo de vida de todos os povos remotos, cantabros, galaicos, artabros, inseridos, em continuidade com as descrições dos lusitanos. Em III.4.15, retomando o alcance primitivo da denominação, descreve

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mesmo os iberos em comparação com os lusitanos, atribuindo-lhes traços comuns de barbárie. Todavia no tempo de Estrabão os iberos eram já identificados com os povos que habitavam as margens e contigüidades do Rio Iber, sujeitos de uma cultura aristocrática, em remoto contacto com o mundo oriental, Grego, Estrusco e Fenício. (21)

A hipótese de que teríamos então que partir era a de que, tal como Viriatus é a denominação latina para um qualquer que se distinguia ou identificava pelo uso da viria, cujo nome próprio ficou omisso, lusitanos é a denominação latina para aqueles que se caracterizavam pelo assédio permanente e pela pilhagem dos itinerários de tráfego, utilizando um estilo de guerra caracterizado pelo ardil e pela emboscada, ao modo de bandoleiros, aos quais os romanos não conseguiam atribuir uma identidade e procedência. Quando Viriato surge na cena da oposição dos povos remotos ao controlo sucessivo dos romanos sobre o território, estes já identificam a nação celtibérica e as suas tribos como identidades próprias, os arevacos, os vetões, os vaqueus, mas não têm referências para identificar as hordas desgarradas que, do Ocidente, irradiam em investidas constantes delapidando os territórios submissos dos cinetes, turdetanos e outros.

Por isso, em princípio, todos os iberos eram lusitanos. E os lusitanos só puderam ser circunscritos na medida em que os romanos foram podendo ou sendo obrigados a reconhecer identidades étnicas e entidades territoriais. Na medida em que eram circunscritos, os lusitanos eram os restantes.

Ora, aceitando este princípio, lusitanos é sinônimo de bandoleiros, ou seja latrones. (22)

Este princípio tem todavia que ser exaustivamente confrontado com várias matérias, entre elas os dados acumulados pela arqueologia, mas, primeiro que tudo, com a análise e hermenêutica sistemáticas das fontes literárias.

A mais detalhada descrição das guerras lusitanas que chegou até nós é a contida na obra de Apiano, nascido em Alexandria em 95 d. C.. A fonte mais próxima dos acontecimentos narrados, tanto para Apiano como para toda a tradição greco-romana, incluindo Possidónio e Estrabão, é Políbio, que no séqüito de Cipião presenciou a queda de Numância e a capitulação derradeira dos lusitanos, mas cujos livros XXXIV e XXXV da sua Histórias se perderam, conhecendo-se apenas através das citações posteriores. (23)

É curiosamente de Apiano, juntamente com Lívio, que se colhe um juízo aparentemente imparcial sobre o curso e a natureza dos confrontos, com pertinentes denúncias quer da ineficácia dos romanos em vários passos das guerras, quer da decadência moral dos seus generais. Todavia tais juízos não extravasam para os restantes manipuladores da mesma fonte. Ao aparentemente imparcial subjazem com certeza alinhamentos circunstanciais, no quadro dos contextos específicos das rupturas políticas e sociais no seio da oligarquia romana em que os juízos são proferidos, que não podem deixar de ser ponderados. (24)

O que se deduz da seqüência narrativa de Apiano é que no ano de 155, no contexto de uma paz temporária conseguida por Cipião com os numantinos e do seu esforço para estruturar administrativamente vários territórios subjugados e aliados, outros povos não submetidos, chamados Lusitanos, irrompem a saquear os territórios aliados de Roma, comandados por um Púnico, antropônimo que Apiano escreve em grego , talvez transliterando a forma fonética latina Punicus. A surpresa parece colher e por em fuga os generais romanos Manio Manílio e Calpúrnio Pisão, pretores sucessivamente em 155 e 154, que perdem cerca de 6.000 soldados, e perece o questor Terênco Varrão.

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Apiano não localiza no território este confronto. Mas refere a seguir que, entusiasmado pelo êxito, Púnico prosseguiu nas suas incursões até ao Oceano, ou seja Atlântico, e tomando consigo os vetões, atacou os blastofénicos, sejam os bástulos, habitantes da área contígua dos turdetanos, junto do Estreito e de Carteia, na sua maioria resultantes de remotas miscigenações entre autóctones e púnicos, incluindo restos das tropas trazidas da Líbia por Aníbal, agora súbditos de Roma.

Neste passo não se percebe de onde procedem estes lusitanos, nem se alcançam o Oceano depois de tomar consigo os vetões, do que se deduziria que atingiram o Oceano nos limites do território dos bástulos, em plena Turdetânia. Todavia, nos passos seguintes, Apiano estabelece o eixo em torno do qual a sua localização tem que ser ponderada, pois afirma que após a morte de Púnico e seu sucessor Césaro, os lusitanos da margem superior do Tejo se revoltam também sob a chefia de Cauceno.

Não se compreende a razão por que Schulten e Bosch Guimpera traduzem como que habitan más allá del Tajo, deduzindo nos comentários que tal significaria no território meridional. A interpretação, à partida, advém de compromissos tácitos com a mitografia, que tem que sediar os lusitanos ultra Tagum, junto e na vizinhança dos galécios, nos Montes Hermínios.. Mas, mau grado as contingências interpretativas, resulta desta alusão das fontes que o Tejo é o eixo em torno do qual temos que sediar os lusitanos. (25)

Importa aqui fazer um breve comentário sobre uma questão crucial, no que respeita à topografia e descrição topográfica da faixa atlântica da Península, remetendo os respectivos critérios para os devidos contextos históricos. Em termos administrativos ainda hoje consagrados, o território situado a Sul do Tejo é designado Alentejo, que poderíamos tomar como correspondente a ultra Tagum, que é a nomenclatura latina consignada na documentação medieval da época da conquista e povoamento cristão, do Século XII ao Século XV, quando o romance começa a substituir o latim como língua de expressão cartorial. O território a Norte do Tejo é citra Tagum, seja aquém do Tejo. Esta nomenclatura respeita obviamente a comunidades e aristocracias que procedem à conquista, ao povoamento e ao reconhecimento do território num processo de progressão que se desenvolve de Norte para Sul.

O raciocínio topográfico de um romano, ou de alguém que observasse o território do ponto de vista de um romano e tendo em conta o processo e seqüência da relação histórica dos romanos com o território, seria inverso. Quer viajassem por mar, ou por terra, eles cartografariam o território a partir de uma procedência meridional. Ultra Tagum seria o território a Norte do Tejo, como a Hispânia Ulterior era o Oeste da Península e a Gália Transalpina eram os territórios Galos alcançáveis após a transposição dos Alpes, a partir de Roma. (26)

A exigüidade das restantes fontes respeitantes a este período, torna-as irrelevantes para o esclarecimento desta questão.

Apenas em Diodoro se colhem algumas referências curiosas. Como já assinalámos atrás, Diodoro cita os lusitanos como outro nome atribuído aos iberos. Os iberos, sem distinção e identificação étnica precisa, genericamente, eram todos os autóctones da Península e o próprio Estrabão ainda utiliza, iconsequentemente de resto, por razões de mera importação de fontes precedentes em passos circunscritos, a denominação iberos nesse sentido, de que resultam muitas ambigüidades de interpretação. Mas Diodoro junta que, conhecedores do êxito dos lusitanos, no texto explicitamente denominados iberos, considerando-se muito superiores a eles, os arevacos iniciam também as hostilidades contra os romanos. De que resulta uma

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identidade súbita e incompreensível, os arevacos, distinta dos lusitanos, aqui tomados como todos os iberos. Mas as fontes de Diodoro são as mesmas de Estrabão e de Apiano, Políbio e Possidónio, o primeiro joeirado ou não pelo segundo. Todavia Diodoro antecede cerca de trinta anos Estrabão, que confrontou as suas fontes com o conhecimento próprio que pôde formular sobre a realidade, pois andou por estas paragens num período em que o conhecimento exaustivo do território era já profundo. (27)Para esclarecer esta questão vale a pena invocar ainda Estrabão, III,4,19, quando tenta justificar a ambigüidade e imprecisão das denominações, tratando-se de circunscrever com rigor os povos e territórios da Hispânia. Todo o passo é construído como um desabafo. O que transparece da abordagem de Estrabão à questão é que toda a confusão dos nomes entronca na dificuldade de os gregos, depois os romanos, distrinçarem diversidades, territoriais e étnicas, em regiões remotas, longínquas, onde todos os autóctones parecem apresentar mais traços comuns do que diversidades distintivas. Depois, como a origem dos nomes geográficos é na sua maioria grega, os romanos têm dificuldade em compreender a que entidade corresponde cada nome, de acordo com o autor e o contexto em que o invoca. Estrabão distingue, na utilização dos mesmos nomes, os antigos e os contemporâneos, seus obviamente. Mas afirma exaustivamente, neste e em outros passos, que os gregos denominavam originariamente Ibéria toda a região que se estende a Oeste do Ródano, depois, presume-se que no tempo de Políbio, toda a que se estende a Oeste dos Pirineus, acrescentando que Ibéria é sinônimo da designação latina de Hispânia e que as duas denominações eram indiferentemente usadas pelos romanos. Não seria ilegítimo deduzir disto que, quando Diodoro se refere aos lusitanos como outro nome para iberos, utiliza a denominação iberos neste sentido, ou seja, hispanos, os povos da Ibéria. Só que, neste contexto, porque muitos grupos étnicos e territórios já foram circunscritos e identificados, na medida em que os romanos progrediram no território e com eles se relacionaram, em diálogo ou confronto, os iberos, ou lusitanos, são os restantes, que permanecem numa massa étnica e culturalmente tão indistinta quanto os territórios de onde procedem. (28)Os lusitanos seriam então aqueles que os romanos não conseguiam distinguir e circunscrever entre os iberos ou hispanos. E o nome deve ser então obviamente latino. Como veremos, será necessário que surja em cena Bruto na sua incursão fulgurante, para que os romanos distingam os galaicos, os ártabros e os cantabros, embora os lusitanos continuem durante um século a ser todos estes e os outros que sobejam.Recuemos aqui três séculos, relativamente ao despontar dos lusitanos na historiografia antiga de raiz greco-latina, para tentar estruturar o conhecimento que transparece das fontes mais remotas acerca da configuração étnica e territorial da Península. Tomemos como ordenador axial o denominado périplo massaliota que ficou captivo na Ora Marítima de Avieno.

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Notas

11.Quando consultamos um dicionário corrente de língua latina, encontramos o nome feminino plural viriae, desigando bracelete, em sentido lato. Etimologicamente, o nome latino viriae faz pressupor um determinante adjectivo virius, viria, virium, com aptidão para gerar os correspondentes nomes, masculino, feminino e neutro. O adjectivo significaria de, ou atributo de vir, homem, como venerius, veneria, venerium é atributo de Vênus, ou mulher em sentido alegórico. A forma viria legitima a interpretação como singular feminino ou como plural neutro. Em nosso entender é como plural neutro que a devemos tomar, significando coisas ou atributos de homem, vir.O sufixo –atus é obviamente latino e nem requer argumentação. De modo que, independentemente de o nome viria ser ou não latino, o antropónimo sufixado Viriatus é-o sem qualquer dúvida.12. Não se compreende porque razão em língua portuguesa, sobretudo no âmbito restrito da arqueologia, se emprega a palavra torques para designar o que em latim tem a forma nominativa singular torques, ou torquis, que faria no acusativo torquem. De acordo com as normas canônicas da etimologia, teríamos o correspondente em português por queda natural da consoante final da forma acusativa.Que o nome latino torques seja tomado do radical do verbo torqueo, parece tornar-se evidente por mera especulação sobre o horizonte semântico do verbo, que alcança tanto o mero sentido mecânico de dobrar ou vergar, o que se aplicaria ao artefacto produzido por dobragem de vara metálica, quanto o sentido alegórico de subjugar ou dominar, sendo então que o torque seria insígnia de alguém subjugado a qualquer fidelidade, ou do que subjuga ou domina.O uso do torque, ou de adereços muito semelhantes, tem um alcance territorial muito mais extenso do que o da viria, registando-se num contexto muito amplo, desde o início da Idade do Bronze, do Oriente Mesopotâmico ao Ocidente Ibérico. O uso da viria, todavia, restringe-se ao contexto de disseminação da cultura céltica, despontando com a Idade do Ferro Hallstática mas divulgando-se sobretudo no contexto de consolidação da cultura La Téne.28. No capítulo seguinte, III, 4, 20, Estrabão discorre sobre a organização administrativa da Hispânia no tempo de Augusto, explicitando com dados relevantes esta questão. Estrabão começa por dividir a Península em duas regiões, de acordo com as entidades que sobre elas têm jurisdição, atribuindo primeiro a Bética ao povo romano, representado por um pretor. O resto da Ibéria pertence ao César, que envia em sua representação dois legados, um pretoriano, outro consular. O legado pretoriano tem jurisdição sobre os lusitanos, um território que confina a Sudeste com a Bética e a Norte com o Douro, o consular sobre os restantes territórios. Seguidamente Estrabão diz que o legado consular é assistido ainda por três legados, um deles, que dispõe de duas legiões, vigia a região a Norte do Douro, a cujos habitantes se chamou outrora também lusitanos, sejam os galaicos, os cantabros e os astures.Ora Estrabão deixa assim, uma vez mais, claro que, no seu tempo, a ideia corrente era a de que só a expedição de Bruto permitiu uma identificação específica dos povos que residiam a Norte do Douro e que só no tempo de Augusto a Lusitânia adquiriu uma configuração administrativa e territorial clara, que não se consegue atribuir a qualquer etnia, senão através de consecutivas reduções e circunscrições advenientes da identificação de outras.

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Manuel de Castro Nunes

Viriato, a Lusitânia e os romanos.Um discurso sobre o ignoto.

Plano

PrólogoApresentação do tema e linhas de abordagem

I. A Hispânia entre o périplo massaliota da Ora Marítima de Avieno e a Geografia de Estrabão.A evolução do conhecimento do território peninsular entre Píteas e Estrabão. O povoamento, a repartição do território. Os antecedentes dos Celtiberos e dos Lusitanos. Os Lusitanos e o seu território. O Tejo e os Lusitanos. Os Lusitanos, os Turdetanos e os Cinetes.

II. As fontes antigas para as guerras lusitanas.Repertório e análise comparativa. De Políbio a Apiano, orientações ideológicas e tópicos estruturadores. A tradição analista e Tito Lívio.

III. Os antecedentes das guerras lusitanas. Da queda de Sagunto à investida de Púnico sobre Calpúrnio Pisão e Manio Manílio (153).

IV. As guerras lusitanas no contexto da crise de valores na sociedade romana.Os Viriatos e os Cipiões. Catão o Censor e Cornélio Cipião. Os Gracos e os Calpúrnios na Hispânia. As guerras lusitanas e as guerras celtiberas. As guerras lusitanas, a III Guerra Púnica, a destruição de Cartago (146) e o assédio a Numância (133). A guerra e o poder da oligarquia romana, saque, clientela e peculato. Os cortejos triunfais e as denúncias.

V. As guerras lusitanas. Sinopse.

VI. Viriato, bandoleiro e general.O itinerário biográfico de Viriato à luz das fontes antigas. O papel ideológico de Viriato no discurso historiográfico romano.

VII. As guerras lusitanas e os dados da arqueologia.O povoamento do Ocidente peninsular e a II Idade do Ferro. Antecedentes.

VIII. Os itinerários de tráfego no Ocidente peninsular e o bandoleirismo.

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Análise exaustiva do expectro de mobilidade de Viriato e dos lusitanos. Do Douro à Bética. O Monte Vénus e o território eborense. O itinerário de Décimo Júnio Bruto. Os itinerários de Viriato e os itinerários da conquista afonsina. O expectro de mobilidade de Giraldo Giraldes. Bandoleirismo e rasia no período da ocupação muçulmana e da conquista afonsina. Os movimentos dos caudilhos no período almorávida.

XIX. O Viriato romano e o Viriato dos lusitanos.A edificação do mito e da épica.De André de Resende a Leite de Vasconcelos e Adolfo Schulten, os itinerários da historiografia. Viriato e Camões. O Viriato Trágico de Brás Garcia de Mascarenhas. A tradição de Frei Bernardo de Brito. Júlio Dantas e os integralistas. Viriato e a tradição da historiografia Espanhola.Os tópicos da épica afonsina e os tópicos da épica lusitana. Afonso Henriques e Viriato.

X. Epílogo.O despontar e o desvanecer de um mito.

Léxico. Referências biográficas.

Repertório bibliográfico.

Cartografia.

Ìndices.

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Léxico

PretorPraetor em Latim. Um pretor era, no fundamental, um magistrado encarregado de administrar a justiça. Na magistratura romana, distinguiam-se os praetores urbani e os praetores peregrini, ou seja os que administravam a justiça em Roma e os que se enviavam para as províncias, encarregues de administrar a justiça aos estrangeiros.

Referências cronográficas

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Sequência dos pretores e consules romanos na Hispania Ulterior, durante as guerras lusitanas.

Manius Manilius e Lucius Calpurnius Piso, pretores na Ulterior em 155 e 154 a.C., respectivamente. Manilius foi consul em 149 e Piso em 148, combatendo então em Cartago. Foram duramente batidos por Punicus, então chefe lusitano, que, segundo Apiano, matou seis mil romanos, entre eles o questor Terencius Varro.

Lucius Mummius, pretor na Ulterior em 153.Tendo morrido Punicus, ferido por um projéctil de funda na cabeça, a chefia dos lusitanos passou para Caesarus, que, derrotado primeiro e posto em fuga pelos exércitos frescos chegados de Roma, aproveitando a desordem em que os romanos o perseguiam, retrocedeu sobre eles e reduziu o exército pretoriano, mais de dez mil homens distribuídos por duas legiões mais auxiliares, a cinco mil soldados. Entusiasmados, os lusitanos das terras a Sul do Tejo, chefiados por Caucenus, atacaram os aliados de Roma, os cónios, tomando Conistorgis. Atravessaram o Oceano e sitiaram Arzila (Ocila). Mummius perseguiu-os com um reforço de nove mil infantes e quinhentos cavaleiros e derrotou-os, matando quinze mil, números de Apiano. Os arevacos, celtiberos, iniciam as guerras celtibéricas.

Marcus Atilius Serranus, pretor na Ulterior em 152. Atacou a capital dos lusitanos, Uxthraca, matando seiscentos homens e aterrorizando tanto os lusitanos, como os vizinhos, nomeadamente os vetões, que acorreram a submeter-se. Quando se retirou para invernar, recomeçaram as correrias. Veio então em sua ajuda Marcus Marcellus, pretor da Citerior, que caíu sobre a cidade lusitana de Nertóbiga, que subjugou.

Servius Sulpicius Galba, pretor na Ulterior em 151 e 150. Retirando Marcus Marcellus para a Celtibéria, voltam os lusitanos a atacar os aliados dos romanos. Chegado de Roma, Galba apressa-se para atacá-los, cumprindo o último lanço de quinhentos estádios da viagem num dia. Galba derrota os lusitanos, mas, como acontecera já a Lucius Mummius, quando os perseguia com as tropas cansadas e em desordem, os lusitanos retrocederam e liquidaram metade do exército pretoriano, sete mil homens. Galba fugiu com a cavalaria para Carmona e aí reordenou os fugitivos a que reuniu vinte mil auxiliares. Foi invernar a Conistorgis, dos Cónios.Entretanto, Lucius Lucullus, pretor na Citerior, envolvera-se numa rasia sem quatel contra os vaceus, sem autorização do Senado. Tendo passado o Inverno na Turdetânia, surge em 150 a atacar os lusitanos para ajudar Galba, pois os dois tiveram prolongado o seu mandato durante mais um ano. Lucullus e Galba dedicaram-se então à rasia indiscriminada e à recolha de saque, atacando cada um os lusitanos por seu lado, impedindo-os de fugir para lá do estreito. Os lusitanos apresentaram-se para aceitar o pacto já firmado com Atilius. Galba fingiu aceitar, dividindo-os em três grupos, para lhes distribuir terras, e, depois de os desarmar, chacinou-os barbaramente, num dos episódios que mais repúdio motivou por parte dos romanos. Os que sobreviveram vendeu-os na Gália como saque de guerra. É a primeira vez que se fala em Viriato, como um dos que se evadiram escapando à chacina. Durante os anos de 149 e 148, decorrem em roma os julgamentos de Sulpicius Galba, acusado de saque e latrocínio pelo tribuno da plebe Lucius Scribonius.

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Caius Vetillius, pretor designado para a Ulterior em 147 e 146. Só cumpriu um ano, pois foi morto, como se verá. Não há notícias sobre os anos 149 e 148, parecendo que a guerra se suspendeu enquanto decorriam os julgamentos de Galba.Os sobreviventes da carnaficina de Galba, cerca de dez mil segundo Apiano, atacam a Turdetânia. O exército pretoriano contra-atacou, encurralando os lusitanos. Sem saída, os lusianos suplicaram uma nova distribuição de terras, o que Vetillius lhes prometeu. Contudo, Viriato dissuade os lusitanos, invocando o latrocínio de Galba. É então alçado em chefe. Usando um ardiloso estratagema, rompe o cerco romano e refugia-se Tribola, topónimo difícil de atribuir em correspondência com a actualidade. Viriato monta uma emboscada aos romanos e derrota-os. O próprio pretor é morto. Morrem também cerca de cinco mil belos e titos, aliados de Roma. O exército pretoriano, comandado agora por um dos questores, refugia-se em Carteia.

Caius Plautius Hypsaeus, pretor em 146 e 145. Ainda em 146, morto Vetillius, veio o pretor Caius Plautius Hypsaeus. Entetanto, Viriato desvastara a Turdetânia, refugiando-se nas montanhas de Vénus. Daí, caíu de novo sobre Hypsaeus, obrigando-o a fugir e a invernar no meio do Verão. Em 145 veio Fabius Maximus, não se sabe por que razão, pois os pretores eram já designados por dois anos. Aparece ainda um Claudius Unimanus, que não sabemos que cargo trazia, sucessivamente batido por Viriato, embora equipado por poderosas tropas e equipamentos.

Quintus Fabius Maximus, consul em 145, vem ainda em 145 e fica durante o ano de 144, por imposição de Scipio. Após as sucessivas derrotas anteriores, o Senado envia o consul, com um exército consular, que, sendo habitualmente de trinta mil homens, o consul reduziu a cerca de dezoito mil homens jovens e acabados de recrutar, para não sobrecarregar as tropas veteranas esgotadas pelas guerras na Macedónia e no Norte de África. Quintus Fábius era filho de Paulus Aemilius e irmão de Scipio. Durante o ano de 145, Quintus Fabius reduziu-se a exercitar o seu exército, introduzindo-o na tácica guerrilheira do inimigo. No ano seguinte atacou os lusitanos e bateu-os, castigando as cidades que Viriato antes subjugara. Na campanha de Quintus Fabius participou com êxito Caius Laelius, pretor da Citerior, pelo que se deduz que Viriato levara até estas paragens as suas correrias.

Quintus Pompeius, pretor na Ulterior em 143. Este Pompeius regressará como consul à Hispânia em 141, para atacar Numância e Termância. Pouco se sabe das campanhas de Quintus Pompeius contra os lusitanos, senão que Viriato campeia por toda a Ulterior aliado agora aos belos e aos titos, obrigando o pretor da Citerior, Quinctius, a intervir. Quinctius vence os primeiros embates, obrigando Viriato a retrocedr às suas bases. Mas logo de seguida investe de novo com grandes estragos sobre os romanos, tomando Itucci e subjugando a Bastetânia. Quinctius recolhe a Córdova para invernar em meados do Outono, enviando conrtra os lusitanos o questor Caius Marcius, espanhol de Itálica, também derrotado.

Lucius Caecilius Metellus Calvus, consul no ano de 142. De novo o Senado envia para a Ulterior um consul com um poderoso exército. Lucius ostenta o nome gentílico dos Caecilii, nobre família com tradições de intervenção na Hispânia, irmão de Quintus Metellus. Da estância de Metellus, pouco se sabe, senão que foi vexado pelos lusitanos. As notícias são sumárias e Apiano nem o refere, passando de Pompeius para Fabius Maximus Servilianus.

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Quintus Fabius Maximus Servillianus, vem como proconsul à Ulterior em 141, ano seguinte ao do seu consulado, e mantém-se em 140. Servillianus era irmão adoptivo de Fabius Maximus e de Scipio, da poderosa família dos Cornelii que senhoreava a política hispânica havia uma década. Servillianus vem com duas legiões, dezoito mil infantes e mil e quinhentos cavaleiros, porque o curso das guerras celtibéricas impunha uma rigorosa repartição de forças. A guerra com os lusitanos começa então a coordenar-se expressamente com a guerra contra os celtiberos. Na Citerior está agora Pompeius, que estivera na Ulterior em 143.

Servillianus inicia a sua campanha cercando Itucci, em poder de Viriato. Com o seu exército reforçado por elefantes e cavaleiros númidas, o proconsul bateu Viriato. Mas logo de seguida Viriato, usando da sua táctica de desgaste, atacando em várias frentes, consegue cercar o acampamento romano e incendiá-lo, recolhendo-se de novo à Lusitânia.

Segue-se uma série de confrontos com êxito para um lado e outro sucessivamente, com Servillianus a campear sobre a Betúria e sobre os Cónios, tomando várias cidades subjugadas antes por Viriato.

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