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Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 129 VIRTUDES E VÍCIOS EM ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO: OPOSIÇÃO E PRUDÊNCIA * Cláudio Henrique da Silva ** Pretendemos, nesta exposição, fazer uma breve reflexão sobre como Aristóteles estabelece o quadro das virtudes e vícios na Ética a Nicômaco 1 , à luz do conceito aristotélico de opostos (a contrariedade, em especial) e sobre o papel da prudência na definição das outras virtudes, temas que se- rão posteriormente retomados por Tomás de Aquino. Não pretendemos aqui tratar exaustivamente desta temática dada a sua extensão e complexiada- de, mas dar os primeiros passos no sentido de uma melhor compreensão da posição aristotélica acerca das virtudes e dos vícios, em especial a pru- dência, e sua relação com a questão dos opostos por ele tratada no Livro Iota da Metafísica 2 . * Texto apresentado no IV Colóquio do CPA, “Política e Ética na Antigüidade Clássica”, em 25/11/98 - IFCH/UNICAMP. ** Graduando em Filosofia, IFCH, UNICAMP e bolsista IC-CNPq/CPA. 1 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, Col Os Pensado- res, vol. IV, Ed Abril Cultural, São Paulo, 1973. 2 Aristotle’s Metaphysics, a revised text with Introduction and Commentary, by W.D.Ross, vo- lume I, Oxford, Clarendon Press, reedição de 1958.

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Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 129

VIRTUDES E VÍCIOS EM ARISTÓTELESE TOMÁS DE AQUINO: OPOSIÇÃO E

PRUDÊNCIA*

Cláudio Henrique da Silva **

Pretendemos, nesta exposição, fazer uma breve reflexão sobre como

Aristóteles estabelece o quadro das virtudes e vícios na Ética a Nicômaco1,

à luz do conceito aristotélico de opostos (a contrariedade, em especial) e

sobre o papel da prudência na definição das outras virtudes, temas que se-

rão posteriormente retomados por Tomás de Aquino. Não pretendemos aqui

tratar exaustivamente desta temática dada a sua extensão e complexiada-

de, mas dar os primeiros passos no sentido de uma melhor compreensão

da posição aristotélica acerca das virtudes e dos vícios, em especial a pru-

dência, e sua relação com a questão dos opostos por ele tratada no Livro

Iota da Metafísica2.

* Texto apresentado no IV Colóquio do CPA, “Política e Ética na Antigüidade Clássica”, em25/11/98 - IFCH/UNICAMP.** Graduando em Filosofia, IFCH, UNICAMP e bolsista IC-CNPq/CPA.1 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, Col Os Pensado-res, vol. IV, Ed Abril Cultural, São Paulo, 1973.2 Aristotle’s Metaphysics, a revised text with Introduction and Commentary, by W.D.Ross, vo-lume I, Oxford, Clarendon Press, reedição de 1958.

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Cláudio Henrique da Silva

130 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998

Toda a filosofia aristotélica é marcada por um forte senso teleológico.

No tocante à ética em particular, toda ação humana tende a um fim. O fim é

um bem. Todas as ações humanas e todos os fins particulares a que elas

correspondem tenderão a um fim último, o bem supremo. Da investigação

acerca do bem supremo feita no interior da Ética a Nicômaco conclui-se que

homem deve aperfeiçoar-se naquilo que o distingue de todas as outras coi-

sas, isto é, a razão. Ainda que muitos, como aponta Aristóteles3, julguem

que o bem supremo seja o prazer e o gozo, ou a honra, ou juntar riquezas,

parece que nenhum deles sozinho o representa completamente. Visar so-

mente o prazer e o gozo nos torna semelhantes aos escravos e aos ani-

mais. A honra, por sua vez, depende mais de quem a confere do que da-

quele que a recebe, não se manifestando como algo que nos seja próprio,

mas como algo extrínseco. E, por fim, as riquezas se constituem um meio e

não um fim. A partir destas considerações, "a virtude constitui a raiz donde

decola a ação conforme o bem, o prazer é o seu acompanhamento natural

e a prosperidade a sua condição prévia normal"4.

Aristóteles distingue duas espécies de virtude5: a virtude intelectual,

que tem como objeto o saber e a contemplação, e a virtude moral, que tem

como objeto os atos da vida prática. Enquanto que a virtude intelectual re-

quer experiência e tempo para desenvolver-se, pois vem, via de regra, atra-

vés do ensino, a virtude moral é adquirida pelo hábito. Diferentemente dos

sentidos que já estão presentes em nós desde o início, isto é, os possuímos

antes de usá-los, as virtudes são adquiridas pelo exercício. Nos tornamos

justos praticando atos justos.

3 Cf. Ética a Nicômaco, I, 5, 1095b 13 a 1096a 12.4 ROSS, Sir David. Aristóteles. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987.5 Cf. Ética a Nicômaco, I, 13, 1103a 5 a 10.

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Virtudes e vícios em Aristóteles e Tomás de Aquino: oposição e prudência

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 131

Sobre a prática destes atos, Aristóteles indica o caminho da modera-

ção. A falta ou o excesso devem ser evitados. Um sentimento ou uma con-

duta, sendo deficiente ou excessiva, torna-se um vício. O excesso ou a falta

de exercícios levam o corpo à debilidade, assim como o excesso ou a falta

de ingestão de alimentos. O mesmo ocorre com as virtudes. No caso da

coragem, por exemplo, é covarde aquele que teme a tudo e não faz nada.

Isto é um vício por deficiência. Aquele que nada teme e parte de encontro a

todos os perigos torna-se temerário. É o vício por excesso6.

Uma pequena lista de virtudes pode ser extraída da Ética a Nicôma-

co, fornecendo-nos um quadro7 resumido de vícios por deficiência e por

excesso e a virtude correspondente, que está situada entre ambos:

Vício por deficiência Virtude Vício por excesso

Covardia Coragem Temeridade

Insensibilidade Temperança Libertinagem

Avareza Liberalidade Esbanjamento

Vileza Magnificência Vulgaridade

Modéstia Respeito Próprio Vaidade

Moleza Prudência Ambição

Indiferença Gentileza Irascibilidade

Descrédito Próprio Veracidade Orgulho

Rusticidade Agudeza de Espírito Zombaria

Enfado Amizade Condescendência

Desavergonhado Modéstia Timidez

Malevolência Justa Indignação Inveja

6 Cf. Ética a Nicômaco, II, 2, 1104a 10 a 1104b 2.7 ROSS, Sir David. op.citada. p. 208-209 (E.N., 1107a 28 - 1108b 10, 1115a 4 - 1128b 35).

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Cláudio Henrique da Silva

132 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998

Os sentimentos e paixões tendem ao excesso ou à deficiência. A vir-

tude é a moderação. Está entre dois extremos, entre dois termos opostos.

Ambos estão no mesmo gênero. Caso contrário, não haveria passagem,

não poderíamos encontrar um termo, a virtude, no meio do caminho dos

vícios. Aristóteles nos oferece uma definição mais detalhada sobre este tipo

de oposição no Livro Iota da Metafísica. Este livro possui dez capítulos e se

estende de 1052a 15 até 1059a 14. Aristóteles, no capítulo primeiro, estuda

as significações principais do um. No capítulo segundo estuda a relação

complexa entre ser e um. Esta relação aparece como problema filosófico

desde o célebre poema de Parmênides e é retomada no diálogo Parmêni-

des de Platão. A partir destes dois capítulos preparatórios a respeito do um

e do ser, desenvolve-se a relação do um com a multiplicidade e o conse-

qüente desdobrar-se de oposições: um e múltiplo, mesmo e outro, seme-

lhante e dissemelhante, contrários, contraditórios, privação, intermediários,

perecível e imperecível.

Aristóteles apresenta diversos modos de oposição e chama antikéi-

mena (opostos) aos termos relativos um do outro (por ex: dobro e metade),

aos termos contrários (enantíon), aos termos contraditórios (antífasis) e aos

termos que exprimem a privação (stéresis) e a posse (éxis) de uma mesma

característica8.

Em 1055a 4, Aristóteles aponta para uma completa diferença, isto é,

a máxima diferença possível: contrariedade. Enquanto as coisas que dife-

rem quanto ao gênero precisam da ponte pela qual se transformam umas

em outras9, os contrários são os extremos a partir dos quais se produz a

8 Cf Metafísica, ∆ 1018 a 20-22, e I 1055 a38: “ Os opostos são: contradição, privação, contrari-edade e relação.”9 Cf Metafísica, I, 1054 b23 e ss.

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Virtudes e vícios em Aristóteles e Tomás de Aquino: oposição e prudência

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 133

geração entre as coisas que diferem quanto à espécie, e cuja distância en-

tre os extremos é máxima. O máximo em cada gênero é completo10, de

modo que a contrariedade é a máxima, isto é, a diferença completa. Há pa-

ralelismo de significado entre contrário e completo: “O máximo em cada gê-

nero é perfeito”11. Máximo, diz Aristóteles, é aquele que não pode ser su-

perado e perfeito é aquele que é completo, ou seja, além do qual não se

pode conceber mais nada.

Uma coisa não pode ter mais que um contrário pois não pode haver

algo mais extremo que o extremo. A contrariedade é a diferença entre dois

pólos12. Não é possível forjar uma diferença além do gênero e, além disso,

contrárias são as coisas que mais diferem dentro do mesmo gênero.

A primeira contrariedade é a posse ou a privação, mas somente a

privação completa. Todos os demais contrários são nomeados em confor-

midade com esta primeira contrariedade; uns porque a possuem, outros

porque a produzem ou estão em potência de produzí-la; outros por serem

aquisições ou perdas desses ou outros contrários. A contrariedade difere de

contradição porque não há um termo médio nesta, mas sim naquela.

Sob este aspecto, Aristóteles parece preparar-se neste livro da Meta-

física para estabelecer uma relação de contrariedade entre os vícios e, en-

contrar entre eles, um termo médio, a virtude. A distância entre cada vício,

estando ambos no mesmo gênero, é máxima. Um é caracterizado pela pri-

vação completa de um sentimento, capacidade ou disposição. É o vício por

deficiência. E o outro tem a posse completa. É o vício por excesso.

10 Idem, I, 1055 a 10.11 Idem, I, 1055 a 11.12 Idem, I, 1055 a 19.

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Cláudio Henrique da Silva

134 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998

Existe um grau conveniente, um ponto considerado ideal, onde situa-

se a virtude. Não chega a ser exatamente um ponto situado no meio do ca-

minho, surgido de uma divisão aritmética. Se assim o fosse, não nos senti-

ríamos inclinados a considerar a coragem como sendo o termo contrário da

covardia. No entanto, para Aristóteles, a coragem está entre a covardia e a

temeridade. É claro que a coragem se encontra mais próxima da temerida-

de. Ele propõe um justo meio, mesotés13. A virtude ora está mais próxima

do excesso, ora mais próxima da deficiência. Em torno do conceito de me-

sotés gira toda a moral aristotélica. A questão agora é como chegar a este

justo meio.

Para isto a prudência parece ter um papel bastante importante. A

prudência é uma das quatro virtudes cardeais (prudência ou sabedoria, jus-

tiça, coragem e temperança) da Antigüidade e da Idade Média. Não tem

hoje o mesmo significado usado por Aristóteles e por São Tomás de Aqui-

no. Ficou reduzida a um aspecto: cautela, cuidado. Quando dizemos que

alguém é prudente, pensamos em alguém que age com cuidado e cautela.

Mas, em seu significado mais amplo, a prudência é basicamente tomar a

decisão certa (risco, cautela) para o momento. Envolve, além do caráter de

cuidado, de precaução, uma necessidade de arriscar, de algo que deve ser

feito. É também chamada de sabedoria prática. Aristóteles foi o primeiro a

distinguir claramente a sabedoria prática (phrónesis) da sabedoria teórica

(sophia).

A definição de Aristóteles para a prudência (phrónesis) é encontrada

no Livro VI, capítulo V da Ética à Nicômaco (1140 a24 até 1140 b31).

13 Cf Ética a Nicômaco, II, 6, 1106a 25 a 1107a 5.

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Virtudes e vícios em Aristóteles e Tomás de Aquino: oposição e prudência

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 135

Aristóteles inicia o capítulo V do Livro VI da Ética à Nicômaco, dizen-

do que se pode fazer uma idéia do que seria a prudência a partir da consi-

deração de quais são os homens que merecem o título de prudentes. Ele

aponta para uma marca distintiva do homem prudente (phrónimos): ele é

capaz de deliberar e julgar de um modo conveniente sobre as coisas que

podem ser boas para ele, não sobre aspectos particulares (como a saúde e

o vigor do corpo), mas sobre o que pode contribuir para a sua felicidade,

para a vida boa em geral. Para tanto, Aristóteles se utiliza do fato de que

chamavam prudente o homem que, em determinado assunto, calculou bem

para atingir alguma boa finalidade, sempre com relação à coisas que não

dependem da arte14.

A partir disso, Aristóteles apresenta vários argumentos para mostrar

que a prudência não pertence à arte nem à ciência. Inicia dizendo que o

homem prudente é em geral o que sabe deliberar bem. Acrescenta que nin-

guém delibera sobre coisas que não mudam e nem sobre coisas que não

pode fazer. Ora, temos que a ciência é suscetível de demonstração e que a

demonstração não se aplica a coisas que podem mudar. Além disso, não é

possível deliberar sobre coisas cuja existência seja necessária. Daí ele

conclui que a prudência não é ciência porque aquilo que é objeto da ação

pode ser distinto do que ela é, e nem arte porque o gênero a que pertence a

produção é diferente daquele a que pertence a ação. Uma vez constatado

que a prudência não é arte e nem ciência, Aristóteles passa a indagar se a

prudência é uma faculdade que, descobrindo o verdadeiro, age com o auxí-

lio da razão em todas as coisas que são boas ou más para o homem.

14 Aristóteles define arte no capítulo anterior: “Logo, como já dissemos, a arte é uma disposiçãoque se ocupa de produzir, envolvendo o reto raciocínio;...” (E.N, 1140 a 20).

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Cláudio Henrique da Silva

136 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998

O objeto da produção é sempre diferente da coisa produzida, isto é, o

produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo. Ao contrário, o objeto da

ação é sempre a própria ação, uma vez que o fim a que ela se propõe é

unicamente o agir bem. Baseado nisto, Aristóteles toma Péricles e outros

homens na mesma condição dele como exemplos de homens prudentes,

porque são capazes de ver o que é bom tanto para eles quanto para os

homens que eles governam e aponta que esta é a qualidade que se vê nos

chefes de família e homens de Estado.

Neste ponto Aristóteles comenta que o prazer e a dor não corrompem

ou transtornam todas as concepções de nossa inteligência, como por

exemplo, se o triângulo tem ou não seus ângulos iguais a dois retos. No

entanto, o prazer e a dor podem turbar os princípios a que se referem à

ação moral. O princípio da ação moral é sempre a causa final que é visada.

O homem atordoado pelo prazer ou pela dor perde de vista essa causa, não

sabe mais o que pode ser ou não bom. Aristóteles fala dessa maneira com

o intuito de apontar a prudência como necessária a todas as virtudes, uma

vez que diz que ela é uma qualidade que, guiada pela verdade e pela razão,

determina a nossa conduta sobre as coisas que podem ser boas para o

homem.

Na arte pode haver graus de virtude ou excelência, mas não na pru-

dência. Aristóteles diz que é preferível que quem erra na arte o faça volun-

tariamente, o que deve ocorrer de modo contrário em relação à prudência e

às virtudes. E isto é claro: quem erra involuntariamente na arte mostra que

ainda lhe falta alguma excelência, que falta aprimorar a sua técnica. Então é

preferível errar voluntariamente. Mas no caso da prudência ou de qualquer

virtude, errar voluntariamente contraria a própria prudência ou virtude. As-

sim, ele conclui que a prudência é uma virtude e não uma arte.

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Virtudes e vícios em Aristóteles e Tomás de Aquino: oposição e prudência

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 137

Como são duas as partes da alma que se guiam pelo raciocínio, a

prudência é a virtude da opinião, porque como ela, versa sobre coisas vari-

áveis. Por fim, Aristóteles a considera mais do que uma disposição racional,

uma vez que as disposições podem ser esquecidas e a prudência não.

Resumindo, deste capítulo da Ética à Nicômaco, que vai de 1140 a24

até 1140 b31, podemos inferir que a prudência para Aristóteles é uma virtu-

de intelectual por estar relacionada à verdade e à razão, sendo uma dispo-

sição que determina a nossa conduta sobre as coisas que podem ser boas

para o homem, ou seja, permite deliberar corretamente sobre o que é bom

ou mau para o homem, não em si (sobre aspectos particulares) e nem em

geral, mas em determinada situação. Ela não é ciência pois esta trata do

que é necessário ao passo que a prudência cuida do que é contingente.

Não se delibera quando não se tem escolha, isto é, se é possível ou sufici-

ente uma demonstração. E não é arte, como foi visto, mas uma virtude.

Aristóteles distingue a prudência da sabedoria, isto é, sabedoria prática

(phrónesis) de sabedoria teórica (sophia), sendo o primeiro a fazer esta dis-

tinção. Para ele a sabedoria teórica é orientada para objetos mais elevados,

não bastando agir bem para viver bem. No entanto, a sabedoria teórica ne-

cessita da prudência para não se tornar loucura, e de modo semelhante,

todas as virtudes também não podem prescindir dela.

Assim como no mundo grego, também na tradição monástica da

Igreja pós-Bíblia até o fim da Idade Média a prudência teve grande impor-

tância, ficando conhecida também como discernimento. Em Tomás de

Aquino cruzam-se as duas fontes: Aristóteles e a tradição monástica.

São Tomás de Aquino define a prudência (prudentia) nos artigos 1-5

da questão 47 da IIa IIae da Suma de Teologia. Tomando os aspectos princi-

pais desses cinco artigos observamos que Tomás de Aquino caracteriza a

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Cláudio Henrique da Silva

138 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998

prudência de forma genérica (artigos 1-3) e depois de forma específica (ar-

tigos 4-5). No artigo 1 temos que a prudência diz respeito à razão. Cícero15

observava que prudentia vem de prouidere, que significa tanto prever

quanto prover. Sendo uma atividade de previsão e envolvendo confronto de

dados, normalmente vincula-se a prudência ao conhecimento racional. Para

mostrar que a prudência diz respeito ao conhecimento, Tomás de Aquino

recorre ao testemunho da etimologia16 (Santo Isidoro, no livro Etimol.). A

prudência reside no domínio da razão prática. É o que se extrai do artigo 2.

A razão prática é a que se refere ao que devemos fazer, visando um deter-

minado fim, isto é, à deliberação. Ora, diz-se que prudente é aquele que

tem a capacidade de bem deliberar. De fato, a prudência está vinculada à

razão prática. No artigo 3 temos que a prudência também diz respeito ao

singular por ser uma aplicação dos princípios universais à ação, lembrando

que a ação é da ordem do singular. No artigo 4 conclui-se que a prudência

é uma virtude, regendo todas as outras, e uma virtude especial (artigo 5),

distinta da demais.

Tomás de Aquino caracteriza a prudência como recta ratio agibilium

(“reto proporcionamento do que é matéria de ação”), como Aristóteles na

Ética à Nicômaco VI, 5, 1140 b20 e 1140 b5. De forma similar a arte é a

recta ratio factibilium e a ciência, recta ratio speculabilium. Tanto a pru-

dência como a arte e a ciência são recta ratio, isto é, visam a algum tipo de

verdade. A prudência visa a verdade da vida; ciência visa a verdade teórica

e especulativa e a arte, a verdade da obra.

15 Cícero, Des lois, XXIII. Trad. Appuhn, reed. G.-F., 1965, p.149.16 Nascimento, Carlos Arthur do. A prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese NovaFase, Belo Horizonte, v. 20, nº 62, 1993.

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Virtudes e vícios em Aristóteles e Tomás de Aquino: oposição e prudência

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 139

Ele mostra, ainda, que a prudência deve reger as outras três virtudes

cardeais. A prudência se põe à serviço de fins que não são dela, ocupando-

se apenas com a escolha dos meios. A exemplo do sol que influi nos outros

corpos. De fato, como agiria o corajoso sem a prudência? Ou o justo? Daqui

temos o sentido amplo da palavra prudência a que nos referíamos antes. A

prudência pende para a cautela (que é o significado comum hoje) e para o

risco. Lembremo-nos do exemplo da coragem, onde colocamos o corajoso

em oposição ao covarde. De fato, a coragem está mais próxima de um ex-

tremo (a extrema ousadia, temeridade) que de outro (covardia). Mas ela em

si não é um extremo, mas regulada pela prudência, ocupará o melhor ponto

entre os extremos.

Seguindo a argumentação de Tomás de Aquino no artigos apresen-

tados é claro o cruzamento das fontes bíblicas, da tradição monástica com

a fonte aristotélica. E mais: Aristóteles e ele, parecem concordar na defini-

ção de prudência como uma virtude intelectual, não sendo nem arte, nem

ciência, regendo as outras virtudes. Um tipo de sabedoria, mas sabedoria

prática, “sabedoria da ação, na ação, para a ação”17. A recta ratio agibi-

lium, embora seja um termo de difícil tradução, é o que parece conter todo

o significado da phrónesis e da prudentia.

Esta proximidade entre Aristóteles e Tomás de Aquino nos remete à

questão da posteridade histórica do pensamento antigo. Este foi um dos

objetivos deste trabalho ao tratar do papel da prudência em relação às vir-

tudes nestes dois autores. Além disso, outro ponto que nos motivou a esta

pesquisa foi verificar a possibilidade de um intercâmbio dos conceitos pos-

17 COMTE-SPONVILLE, André, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes, SãoPaulo, 1995, cap. 3, pág. 39.

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Cláudio Henrique da Silva

140 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998

tulados por Aristóteles entre as suas obras, aqui em particular entre a Meta-

física e a Ética a Nicômaco. Pareceu-nos muito evidente que a leitura dos

livros da Metafísica de Aristóteles se mostram cada vez mais indispensáveis

para a compreensão de suas outras obras.

Finalizando, gostaríamos de lembrar o caráter introdutório deste tra-

balho. Esperamos que oportunamente possamos dar continuidade à esta

reflexão, dando-lhe mais profundidade e consistência.