Visita Domiciliar No Psf

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BEATRIZ HELENA DE MATTOS ARAJO VERRI

A VISITA DOMICILIAR NO PROGRAMA DE SADE DA FAMLIA: Entre a norma e o cuidado

CAMPINAS 2007

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BEATRIZ HELENA DE MATTOS ARAJO VERRI

A VISITA DOMICILIAR NO PROGRAMA DE SADE DA FAMLIA: Entre a norma e o cuidadoTese de Doutorado apresentada Ps-Graduao da Faculdade de Cincias de Mdicas da para

Universidade

Estadual

Campinas,

obteno do ttulo de Doutor em Sade Coletiva, rea de concentrao em Sade Coletiva. ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria da Graa Garcia Andrade

CAMPINAS 2007

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE CINCIAS MDICAS DA UNICAMPBibliotecrio: Sandra Lcia Pereira CRB-8 / 6044

V612v

Verri, Beatriz de Mattos Arajo A visita domiciliar no programa de sade da famlia: entre a norma e o cuidado / Beatriz de Mattos Arajo Verri. Campinas, SP : [s.n.], 2007.

Orientador : Maria da Graa Garcia Andrade Tese ( Doutorado ) Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas.

1. Visitadores domiciliares. 2. Ateno primria a sade. 3. Programa Sade da Famlia. I. Andrade, Maria da Graa Garcia. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas. III. Ttulo.

Ttulo em ingls : Home visits in the family health program: between norm and care Keywords: Home health aides Primary Health Care Family Health Program rea de concentrao : Sade Coletiva Titulao: Doutorado em Sade Coletiva Banca examinadora: Profa. Dra. Maria da Graa Garcia Andrade Profa. Dra. Mrcia Regina Campos Costa Prof Dr Luiz Carlos de Oliveira Ceclio Profa. Dra. Silvia Maria Santiago Profa. Dra. Elizabeth de Leone Monteiro Smeke

Data da defesa: 12-02-2007

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Banca Examinadora da Tese de Doutorado

Orientador: Profa. Dra. Maria da Graa Garcia Andrade

MEMBROS: 1- Profa Dra. Mrcia Regina Campos Costa da Fonseca 2- Prof Dr. Luiz Carlos de Oliveira Ceclio 3- Profa. Dra. Silvia Maria Santiago 4- Profa. Dra. Elizabeth de Leone Monteiro Smeke 5- Profa. Dra. ngela Aparecida Capozzolo 6- Profa. Dra. Antonieta K.K. Shimo

Curso de ps-graduao em Sade Coletiva da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas.

Data: 12/02/2007

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DEDICATRIA Dedico este trabalho s famlias que a vida me deu, pela gentica e pelo afeto: A meus filhos Mariana e Eduardo, a meus pais, Joo e Martha; Este trabalho pertence, sobretudo, ao Lus que trouxe para minha vida um tanto de doura, carinho e cumplicidade, formas sutis e

refinadas de sabedoria.

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AGRADECIMENTOS

Vida... Ddivas... Dons... Gratido. Quando, em nossa vida, recebemos dons que ultrapassam o mrito, que no so simples decorrncias de merecimento, mas presentes, ddivas de amizade e generosidade, portanto imerecidos, movemo-nos a um profundo agradecimento. Ainda que no seja possvel nominar neste espao, todos aqueles que compartilham este desafio comigo, estaro todos em um lugar especial em minha vida. Dentre as pessoas que tiveram um envolvimento maior com este estudo, destaco algumas que contriburam, sobremaneira, para sua realizao: Profa. Dra Maria da Graa Garcia Andrade pela dedicao, ateno e respeito na orientao desta tese e pela presena constante em minha carreira cientfica, por me direcionar nas tantas trilhas dessa longa caminhada, por ter sido fundamental nesse processo. Parabns pelo dom de dividir conhecimentos, e nos encorajar a explorar nossas potencialidades por meio de constantes desafios. Ao municpio de Amparo e comunidade participante deste trabalho, em especial s equipes de PSF e, tambm as famlias que abriram as portas de suas vidas para que eu pudesse me aproximar dos seus mundos e conhece-las melhor. Atravs de suas preciosas contribuies, todas estas pessoas se tornaram, efetivamente, co-participes deste trabalho. Aos Professores Lus Ceclio, Antonieta Shimo, por tomarem com empenho a tarefa de participarem da banca de qualificao, enriquecendo este trabalho com suas contribuies. Aos gestores da Secretaria de Sade de Amparo em especial a Secretria de Sade Dra Aparecida Linhares por ter permitido a realizao deste estudo, pelas contribuies e pelo exemplo de gestora frente das questes que desafiam o SUS. Aos agentes comunitrios, enfermeiros, mdicos, sujeitos annimos desta pesquisa, pela disponibilidade e confiana com que concederam as entrevistas em meio a seus mltiplos afazeres na unidade de sade da famlia.ix

s colegas docentes e ao Prof Ms. Joaquim Oliveira, diretor de Campus da Universidade So Francisco, pelo apoio expresso nas palavras de incentivo e por me conceder tempo para o desenvolvimento deste trabalho, ao assumirem o nus do necessrio afastamento de minhas ocupaes na lide diria. Aos professores do Doutorado em Sade Coletiva da Faculdade de Cincias Mdicas da Unicamp que, atravs de suas contribuies, ampliaram os meus horizontes no processo de construo do conhecimento. Em especial aos professores Luiz Ceclio, Emerson e Gasto, que com suas produes tericas, sempre instigantes, tm contribudo para a nossa formao no campo da sade coletiva e para a construo de conhecimentos. A amiga e professora Marlia Bestani pela gentileza ao realizar a correo da tese e a Marta Maria S de Camargo pela reviso das referncias bibliogrficas. Aos funcionrios do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, em especial querida Leoci, pela sua solicitude e presteza. Dentre as inmeras pessoas que compartilharam o meu mundo particular e pessoal nessa jornada, destacarei algumas que se me mostraram muito prximas e significativas, em diferentes momentos, nesta experincia de vida: Lus, marido carinhoso, companheiro incansvel e disponvel, amigo compreensivo e interessado foi o meu grande parceiro neste trabalho. Meus pais Joo e Martha, modelos de dignidade, fora, respeito, afeto e compreenso que mostraram-me, desde cedo, o valor do aconchego da intimidade de uma famlia. D.Isabel, me tambm, que com sabedoria de um longo e pleno viver, ensiname, dia-a dia, os reais valores da nossa existncia. Aos dois que dividem comigo todos os nus e bnus de mais este processo e representam a minha mais acesa esperana na vida: Mariana e Eduardoxi

Meus familiares, amigos e amigos, que acompanham e incentivam o meu crescimento. Tarefa rdua a de agradecer. No tanto pelas peculiaridades inerentes ao exerccio de um dos mais justos sentimentos morais, a gratido, mas pelo temor do esquecimento. Inmeros so os presentes recebidos e os limites impostos pelo papel e pela memria que podem nos trair no momento do agradecimento. Neste caso, resta-nos apelar para a mesma amizade que permitiu as ddivas e contar, antecipadamente, com mais algumas: a compreenso e o perdo dos no mencionados.

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O tema da autonomia eclode em dialtica complicadssima, porque implica uma dinmica feita de movimentos contrrios estonteantes: colaborar com a autonomia do outro assumir aquele tipo de comportamento to generoso que leve o outro a no ser levado, envolvendo incrvel conscincia crtica e autocrtica. Uma vez que autonomia implica independncia, no pode dispensar o outro, porque no socialmente realista, mas precisa do outro sem que, com isso, perca o espao prprio. Compartir o mesmo espao no significa que todos desfrutam igualmente do mesmo espao, mas que a apropriao igualitariamente participada. No h como colaborar com o outro sem antes ser sujeito autnomo, o que implica, alm de outras coisas, reconhecer que cada qual indivduo prprio, inalienvel. O prprio evangelho reconhece isso quando diz: amar ao prximo como a si mesmo o padro o amor que se tem por si mesmo. Quem no se ama no pode amar. Generosidade no deixar de se amar, mas colocar o outro dentro de nossa morada para compart-la.

PEDRO DEMO

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SUMRIO

Pg. RESUMO.................................................................................................................. ABSTRACT.............................................................................................................. APRESENTAO.................................................................................................. 1-INTRODUO.................................................................................................... 1.1-Sade da famlia: evoluo e trajetria....................................................... 1.1.1- Sobre seus antecedentes...................................................................... A introduo da famlia nas polticas sociais....................................... 1.1.2- Sobre o objeto do PSF potencialidades e contradies.................... 1.1.3- O territrio enquanto processo............................................................ 1.1.4- O vnculo enquanto ferramenta........................................................... 1.1.5- PSF Alguns aspectos referenciais para anlise................................ 2- O ESPAO DOMICILIAR E O PROGRAMA DE SADE DA FAMLIA........................................................................................................... 2.1- Histrico e elo com a enfermagem............................................................ 2.2- Pontos principais a serem considerados no cuidado em domiclio........ 2.2.1- O contexto domiciliar......................................................................... 2.2.2- A famlia............................................................................................. 2.2.3- Compreendendo a famlia no encontro assistencial............................ 2.2.4- Relao da equipe de PSF e famlia A questo vnculo................... 3- PENSANDO A FAMLIA NA RELAO DE CUIDADO............................ 3.1- A abordagem centrada no cuidado.......................................................... 67 70 72 72 75 77 88 91 93 xxv xxix 33 39 48 48 53 55 57 59 61

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3.2- Situando o cuidado nos estudos de famlia e sade................................. 3.3- O sistema de cuidado sade................................................................... 3.4- Cuidado familial: breve reviso de literatura............................................. 3.5- Um conceito de cultura para analisar a interface entre a enfermagem e a famlia................................................................................................... 3.6- O corpo e a cultura: a viso da enfermagem no sistema de cuidado profissional.................................................................................................. 3.7- O cuidado familial e a equipe de sade.................................................... 4- CUIDADO E NECESSIDADE DE SADE..................................................... 5- CUIDADO E AUTONOMIA............................................................................. 6- SINTESE INTERPRETATIVA E OBJETIVOS............................................. 7- BASES METODOLGICAS............................................................................ 7.1- A natureza qualitativa do estudo.............................................................. 7.2- Sentido tico................................................................................................ 7.3- O mtodo..................................................................................................... 7.4- O contexto do trabalho de campo............................................................. 7.4.1- O SUS amparo.................................................................................... 7.4.2- Os critrios para seleo dos participantes......................................... 7.4.3- Caractersticas das trs unidades escolhidas....................................... 7.5- A trajetria metodolgica.......................................................................... 7.5.1- O sistema de coleta/ procedimentos para registro de dados............... 7.5.2- Os instrumentos utilizados.................................................................. 7.5.3- As etapas de observao e de analise dos dados.................................

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105 108 115 123 129 133 135 135 136 137 137 138 142 146 146 147 148

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8- RESULTADOS E DISCUSSO: a visita domiciliar pela voz das famlias, equipes de sude e gestores................................................................................. 8.1- A VD propriamente dita............................................................................ 8.1.1- Funo................................................................................................ 8.1.2- Freqencia/periodicidade.................................................................... 8.1.3- Papel dos ACSS................................................................................ 8.2- A VD e as necessidades de sade.............................................................. 8.3- A VD e a autonomia do usurio................................................................ 8.4- Algumas reflexes sobre o cuidado e a norma........................................ 9- CONSIDERAES FINAIS............................................................................. 10- REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................ 11- ANEXOS............................................................................................................ 12- APNDICES...................................................................................................... 157 160 160 173 176 185 203 215 225 231 249 259

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LISTA DE ABREVIATURAS

ABS ACS Aux Enf BR CS CLS ESF MS PI PSF SMS SD SUS VD USF

Ateno Bsica de Sade Agente Comunitrio de Sade Auxiliar de Enfermagem Bairro Brasil Centro de Sade Conselho Local de Sade Equipe de Sade da Famlia Ministrio da Sade Bairro Pinheirinho Programa de Sade da Famlia Secretaria Municipal de Sade Bairro So Dimas Sistema nico de Sade Visita Domiciliar Unidade de Sade da Famlia

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RESUMO

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Verri, B.H.M.A. A VISITA DOMICILIAR NO PROGRAMA DE SADE DA FAMLIA: ENTRE A NORMA E O CUIDADO. Campinas; 2006.

[Tese de Doutorado Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas]. O Programa de Sade da Famlia (PSF) considerado como uma estratgia de reorganizao do modelo assistencial da rede bsica, cujo foco so as famlias de determinado territrio, em que se utiliza a adscrio de clientela, a definio de micro-reas de risco, o trabalho em equipe e a presena de Agentes Comunitrios de Sade (ACS), de forma a integrar aes de promoo, preveno, assistncia e reabilitao. Uma atividade regular do programa a Visita Domiciliar (VD) realizada pelos ACS e que, por sua expresso numrica e potencial de interveno na relao do programa com as famlias, constitui-se em objeto privilegiado de reflexo no interior do modelo assistencial. O presente estudo objetivou conhecer o significado, para famlias, equipes de PSF e gestores, da VD e do papel que nela desempenham os ACS, assim como a potncia desse instrumento para captar as necessidades de sade das famlias, de forma a subsidiar a construo de intervenes que favoream a autonomia dos usurios. Trata-se de um estudo qualitativo, cujo material emprico foi obtido atravs de entrevistas e observao participante. A pesquisa foi realizada no PSF do municpio de Amparo/SP, envolvendo trs unidades de sade da famlia, cinco equipes de sade e 16 ACS. Foram realizadas entrevistas individuais com usurios, mdicos, enfermeiros e gestores, e entrevistas em grupo com os ACS, assim como observao participante das visitas realizadas rotineiramente pelos agentes nos domiclios, em especial a pacientes portadores de doenas crnicas. Os resultados encontrados revelaram que, para as famlias, a VD tem significado a construo de vnculos afetivos com o programa e a equipe, a despeito de questionamentos quanto resolutividade das visitas; expressaram, por outro lado, um intenso processo de medicalizao no que concerne s expectativas quanto forma de resoluo dos seus problemas de sade. OS ACS demonstraram grande responsabilizao pelas famlias adscritas, mas, do ponto de vista institucional, mostraram dificuldades para captar as necessidades de sade e, sobretudo, para articular junto equipe, intervenes dirigidas a elas, assim como para lidar com a frustrao decorrente da impossibilidade de enfrent-las. A autonomia dos usurios no se apresentou como elemento constituinte dos objetivos daResumo

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VD e da atuao do agente, no representando uma ferramenta utilizada pela equipe nos casos em que havia dificuldades para o controle da doena crnica. O estudo aponta a necessidade de rever a norma que orienta a periodicidade da VD e de reformular os seus objetivos e contedos, com o propsito de potencializar sua utilizao no interior de projetos de cuidado integral elaborados pela equipe do PSF com a participao da famlia, bem como o desafio necessrio de trabalhar na lgica da construo da autonomia dos usurios no cuidado sade. Palavras chave: Visita Domiciliar; Cuidado em Sade; Autonomia; Programa de Sade da Famlia; Agentes Comunitrios de Sade.

Resumo

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ABSTRACT

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Verri, B.H.M.A. HOME VISITS IN THE FAMILY HEALTH PROGRAM: BETWEEN NORM AND CARE. Campinas; 2006. [Thesis of Doctorate - School of Medical Sciences of the State University of Campinas]. The Family Health Program (FHP) is considered as a strategy of reorganization of the basic net model of assistance, focus of which is the families of a given territory, where it is used the clientele adscription, the definition of risk micro-areas, the team work and the presence of health community agents, in a way to integrate actions of promotion, prevention, assistance and rehabilitation. A regular activity of the program is the Home Visit (HV), accomplished by the Health Community Agents (HCA), and that, on account of its numerical expression and intervention potential in the family-program relation, constitutes privileged object of reflection within the model of assistance. The present study aimed at knowing the meaning, for families, FHP and managers teams, of the HV and the role the HCA play in there, as well as the power of that instrument to capture the families health needs, in a way to subsidize the construction of interventions to favor the users autonomy. It is a qualitative study, which made use of empirical material obtained through interviews and participant observation. The research was carried out in the Family Health Program of the municipal district of Amparo/SP, involving three units of family health, five health teams and 16 community agents. Individual interviews were performed with users, doctors, nurses and managers, and group interviews with HCA, as well as participant observation of the visits routinely accomplished by the HCA in the homes, especially to patients who carry chronic diseases. The results found revealed that for the families, the HV have meant the construction of a link of more affectionate character with the program and the health team, despite of queries over its effectiveness; on the other had, they have expressed an intense prescription-related process concerning expectations as for the way to solve their health problems. The HCA have demonstrated great responsibility for the adscripted families, but, on the institutional point of view, they showed some difficulties to capture the health needs, mainly aiming at articulating interventions along with the teams, as well as on how to deal with frustration originated from the impossibility of facing them. The users' autonomy did not come as constituent of the objectives of the visits and of the agents' performance, not representing a tool used by the team in the cases when there were difficulties for the control of the chronic disease. The study points to the need of reviewing the norm that guides theAbstract

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HV periodicity and of reformulating its objectives and contents, with the goal of potentializing its use within the total care projects elaborated by the FHP team with the family participation, as well as the necessary challenge of working in the logics of constructing the users autonomy as for the health care. Key words: Home Visit, Health Care, Autonomy, Family Health Program; Health Community Agents.

Abstract

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APRESENTAO

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Parto do pressuposto de que preciso gostar do objeto com que se trabalha. Falarei, portanto, do meu desejo, de como ele surgiu e se transformou ao longo de minha vida profissional. Relato minha histria de vida, no perodo em que iniciei o contato com a enfermagem. O fato de escolher este curso de graduao trouxe intensas conseqncias minha vida pessoal e profissional. Conclui a graduao em 1986 ano em que, depois fui compreender, ocorreu o evento poltico sanitrio mais importante da dcada, a VIII Conferencia Nacional de Sade. Nessa poca, recm-formada, preocupada com o fazer, me dediquei ao ambiente hospitalar. poca de muita aprendizagem e de vivncia com situaes de sofrimento, uma vez que meu local de trabalho era a UTI do HC Unicamp. Chamava-me ateno solido das pessoas internadas neste momento to crucial de vida, e a dificuldade da equipe e da Instituio em lidar com os familiares dos pacientes, que se encontravam to assustados e desamparados quanto os hospitalizados. Registrei, dessa poca que deveramos prestar mais ateno s famlias, e tomei cincia de que nunca havia assistido famlia, mas apenas indivduos que tinham familiares. Nas voltas que a vida nos reserva, direcionei meu olhar para a sade coletiva. Mais uma vez observo um marco, ano de 1990, onde foi promulgada a Lei 8080, que dispe sobre as condies para a promoo/proteo/recuperao da sade criao do SUS. Outra caracterstica da minha jornada, que medida que ia trabalhando como enfermeira, sempre voltava escola. Dessa forma, inicio minhas reflexes mais aprofundadas na sade coletiva, com a especializao em 1991. Apesar de datar do ano de 1994, a criao pelo Ministrio da Sade do Programa de Sade da Famlia, lembro-me do contato oficial com esta poltica no ano de 96, numa palestra em que David Capistrano falava com muita emoo do Qualis. Nessa poca, j colaborava em cursos de graduao de enfermagem, sempre na disciplina de sade pblica, e embrionava um projeto de mestrado. Iniciei ento, em 1998, essa nova etapa, onde procurei compreender a trade famlia-idoso-servio de sade. Buscava conhecer as representaes sobre o papel da famlia na adeso de pacientes idosos s consultas e ao tratamento da doena crnica. Verifiquei, dentre outras coisas, que a famlia tem um papel reconhecido como importante por todos os componentes da trade, mas faltava clareza de como inclu-la na organizao do cuidado.Apresentao

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Verifico como a relao entre o mundo profissional e o mundo do usurio, individualmente ou como famlia, tem marcado minha trajetria com questionamentos. So mundos claramente distintos, uma vez que so duas realidades histricas, construdas socialmente, com diferentes sentidos ao longo dos tempos, e o encontro entre eles que me leva agora a querer aprofundar outros aspectos sobre a prtica junto s famlias. Entendo que so dois sistemas de cuidado, com smbolos, cdigos, formas peculiares de agir buscando a sade, num territrio pela primeira vez conhecido para a famlia e estranho para a equipe: o espao do domiclio. No posso deixar de associar toda esta trajetria a importncia da vivncia com os alunos, os campos de estgio, os PSFs que brotam lentamente na regio que trabalho as dificuldades polticas, a compreenso do SUS pelos dirigentes, as discusses das diretrizes curriculares, diretrizes do SUS, o novo perfil exigido do egresso, enfim, toda a bagagem de coordenar um curso seguindo a direo de um projeto poltico que nos move, ou seja, o projeto de construo da sade como direito de cidadania. , portanto, a somatria do ensino de enfermagem, da assistncia aos indivduos e familiares, da preocupao com o corpo docente e discente, das experincias humanas no geral e, mais especificamente, das questes relacionadas famlia, que me leva a adentrar de vez nesse campo j trabalhado por alguns enfermeiros, mas de to vasto, infinito. Ao procurar compreender a interface entre a equipe de sade e a famlia no espao assistencial da visita domiciliar, escolho o PSF como cenrio do estudo, por exigir uma reconfigurao desse encontro, que nele se torna distinto daquele caracterstico do modelo biomdico. Uma primeira diferenciao pode ser percebida pelo fato do programa ter a integralidade como eixo norteador de sua organizao. Esse aspecto se faz mais evidente quando analisamos os movimentos e formas de vinculao construdas entre os dois plos da assistncia: no PSF h uma reorganizao do processo de trabalho que objetiva desfocar a ateno do recurso interveno especializada, voltando-a para a construo de laos entre a equipe de sade e a comunidade assistida, laos a partir dos quais se objetiva construir a assistncia. Alm disso, o PSF pode ser encarado como uma modelagem, uma vez que incorpora elementos de outros modelos assistenciais, visando um reforo e uma reafirmao na medida em que se estabelecem vnculos sociais,Apresentao

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transformando os espaos pblicos em lugares de encontro de pessoas cuidadoras de si e dos outros. Na perspectiva de uma reestruturao do modelo assistencial, acredito que a assistncia domiciliar famlia seja um dos pontos mais sensveis e complexos na proposta do PSF e tambm, como tm revelado diversos estudos, onde os profissionais esto encontrando grandes desafios. Dessa maneira, meus questionamentos se dirigem ao espao assistencial representado pela visita domiciliar, talvez porque a exige-se uma razo sensvel de quem interage com as famlias, ou porque a famlia, com toda sua ambigidade de existir, insiste em viver, e no apenas em sobreviver.

Apresentao

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1- INTRODUO

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Atualmente, com a reorganizao do sistema de sade no nosso pas, o Programa de Sade da Famlia surge como uma estratgia de ateno bsica voltada comunidade, que busca priorizar as aes de proteo e promoo da sade dos indivduos e da famlia, de forma contnua e integral. Esse programa tem conduzido os profissionais de sade a buscar uma aproximao com a famlia atravs do cadastramento e do planejamento das aes de sade. Conforme Souza (1999) este assume importantes compromissos, como:entender a famlia, o seu espao social como ncleo bsico da abordagem e no mais o indivduo isoladamente; assistncia integral, resolutiva, contnua e de boa qualidade; interveno sobre os fatores de risco; humanizao das prticas de sade; criao de vnculos de compromisso e de co-responsabilidade entre os profissionais de sade e a comunidade; desenvolvimento de aes setoriais atravs de parcerias; democratizao do conhecimento do processo sade doena, da organizao, do servio e da produo social da sade; reconhecimento da sade como um direito de cidadania e organizao da comunidade para efetivo exerccio do controle social.

A abordagem centrada na famlia como uma unidade constitui-se na perspectiva de atuao dos diversos profissionais da sade. Apesar de se buscar um avano nessa compreenso, isso tem sido um desafio no s para a enfermagem, mas para as demais reas do conhecimento com interesse na sade da famlia. O desafio se amplia tambm quando queremos entender o que sade da famlia. A literatura tem nos mostrado que o termo sade da famlia no est claramente formulado. A sade da famlia pode ser definida tanto como um estado quanto como um processo. Na primeira idia, leva-se em considerao a ausncia de sintomas no funcionamento da famlia ou a evidncia de caractersticas de famlia ideal dentro de um determinado paradigma. A sade da famlia vista como um processo est baseado na integrao, na manuteno e no crescimento do sistema familiar em relao s demandas sociais e temporais (Loveland-Cherry, 1989). A sade da famlia considerada, por vezes, como resultante das condies de sade individuais dos membros da famlia, ou das condies de vida dos sujeitos no domiclio (Hanson e Boyd, 1996).

Introduo

41

Famlias so parte integrante da interveno em sade em todas as fases do atendimento, em todos os contextos de assistncia, independentemente do grupo etrio do paciente. A relevncia da conexo existente entre o cuidado do indivduo e o contexto familiar tem sido apontada como algo indispensvel para o cuidado integral da pessoa. De qualquer forma podemos afirmar que vem ocorrendo uma silenciosa revoluo nos cenrios de cuidado, influenciada por iniciativas solitrias a princpio, de cuidar da famlia, norteada pela fidelidade verdade principal, de que nenhuma famlia consegue existir sem algum tipo de apoio, pelos conceitos sobre famlia que tm sido desenvolvidos, e agora, por uma emergente poltica pblica destinada sade da famlia. A nfase crescente na famlia tem resultado na modificao da maneira como ela percebida no contexto de sade, ultrapassando-se, sobretudo, as definies utilitrias que se atribua famlia, quando era vista exclusivamente como um bem para o paciente. Por anos, a enfermagem tem dirigido sua prtica com famlias para aes basicamente de orientao e busca de informaes. A famlia fica, neste sentido, restrita a ser fonte e receptculo de informaes (Elsen, 2002). Se, no Brasil, as famlias vm se transformando como parte do processo de modernizao, esse processo, apesar de ter se traduzido em maior liberdade, no tem produzido maior igualdade social ou equidade. Assim, para se avanar na compreenso do modo como a famlia se expressa e se desenvolve em situaes especficas, constituindo uma rede de relaes que o profissional de sade deve levar em conta para entender as vrias dimenses dos processos envolvendo sade e doena, crucial ter em mente que todos os fenmenos sociais so construdos a partir de relaes entre sujeitos em contextos socioculturais especficos, portanto com distintos significados e implicaes pessoais e sociais. Outro aspecto inerente a todo este processo de escuta, apreenso e encontro de cada usurio/famlia com suas necessidades, que a assistncia prestada no novo modelo vem ocorrendo, na maioria das vezes, no prprio domiclio, trazendo inmeras possibilidades para os profissionais.

Introduo

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A discusso no domiclio permite ao profissional conhecer a dinmica familiar e respeit-la. No existe resposta pronta para todos os procedimentos e acontecimentos, principalmente no ambiente domiciliar, quando esto envolvidos valores, moralidade e situaes ticas particulares e peculiares famlia. No domiclio mais fcil aceitar a vontade do paciente porque acredita-se que ele tem direitos, autonomia e competncia ou porque o espao fsico dele e l "quem manda" ele, e na instituio "quem manda" so os profissionais. Acreditamos que uma interao profissional - cliente- cuidador/famlia, aonde as intervenes propostas pretendem colaborar para a construo da autonomia do cliente no processo de tomada de decises sobre seu cuidado, deva se constituir num princpio orientador daquele encontro assistencial. O conceito de controle sobre a tomada de decises pode ser visto como um continuum do no controle para o controle absoluto.

"Controle Compartilhado"

Profissional (controle absoluto)

Cliente / cuidador (Controle absoluto)

FIG.1- Modelo de controle compartilhado sobre tomada de decises, adaptado de Kholer, 1998. Tendo em vista essas consideraes, podemos afirmar que o atendimento domiciliar uma realidade, tanto nos servios privados como nos servios pblicos. preciso, no entanto, habilitar os profissionais a trabalhar neste campo, no to novo, porm com caractersticas peculiares.

Introduo

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No novo modelo proposto, tomar a famlia como perspectiva significa, sobretudo, considerar o seu grande potencial como aliada na manuteno e restaurao da sade de seus membros, mas levando em conta que este potencial determinado pelas suas percepes, das experincias que vivenciam e que por sua vez influenciam suas aes no manejo destas mesmas experincias. No caso do PSF, de imediato, j podemos visualizar uma ao interativa entre dois grandes atores: as equipes multiprofissionais de sade e as famlias de uma determinada comunidade. Em cada um desses plos, h uma dinmica prpria que precisa ser reconhecida em suas vrias dimenses interdependentes. Acredito que essa proximidade maior da equipe com o mundo da intimidade familiar traz consigo a urgente necessidade de aprofundar os nossos conhecimentos sobre esta relao, da intimidade familiar que se mantm, ainda, perto da obscuridade na rea da sade. Esses profissionais, que atravs das suas prticas interventivas, transitam neste territrio, precisam ser instrumentalizados de maneira a no devassar, em nome da sade, a vida ntima das famlias (Alonso, 2003, p 16). Em sua grande maioria, os profissionais da sade, munidos de uma pretensa autoridade que lhes conferida pelo saber cientfico, institucionalizado e teoricamente requintado, incorporam geralmente, a norma como premissa das suas aes interventivas. De um outro lado, as famlias, com seus saberes particulares, locais e diferenciados, encontram o amparo deste conhecimento na credibilidade da tradio, nas suas vivncias entre os seus e nos acontecimentos que diversificam as prprias leis. Assim, criando as suas prprias normas, as famlias vivem e conhecem o mundo da vida e criam seus espaos de resistncia. O processo de normatizao da sade vem sendo estrategicamente produzido ao longo da histria atravs de intervenes de poder, atendendo aos interesses de um controle social. Esse processo resultou na internalizao de novos valores para o mundo privado das famlias, resultando em perdas de pequenas solidariedades entre pares, em uma reduo programada dos espaos de socializao, na ciso de antigas alianas e da capacidade de resistncia (Caponi, 2000, p.91).Introduo

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Costa (1999), aborda historicamente a transformao e normatizao das relaes intrafamiliares a partir de uma ordem pedaggica e higienista, que enquadra os espaos do cotidiano familiar e regulariza os afetos e comportamentos das famlias. Em seu trabalho, Costa nos mostra como as tticas manipuladoras embutidas na prtica dos profissionais se insinuaram na intimidade da famlia, normatizando o seu viver e desestruturando os seus modos de vida em nome da sade. Ele revela que essa prtica normatizadora, por parte dos profissionais da sade, se encontra muito presente nas relaes destes com as famlias nos dias atuais. Com esse estudo, o autor nos leva a refletir sobre a natureza das nossas interaes profissionais com as famlias no domiclio e, podemos nos questionar, o quanto ns, os profissionais e representantes do mundo pblico, estamos solicitando e obtendo a permisso dos sujeitos para adentrar e intervir sobre a intimidade de suas vidas, em nome da cincia. O autor alerta:O problema comea quando percebemos que a lucidez cientifica das teraputicas dirigidas s famlias esconde, muitas vezes, uma grave miopia poltica. Miopias que tendem a abolir, no registro do simblico, o real adjetivo de classe existente em todas estas lies de amor e sexo dadas famlia (Costa, 1999, p.17).

Na busca da superao do modelo tradicional, Ciapone & Peduzzi (2000, p. 146) ressaltam que uma proposta interventiva centralizada no grupo familiar tem um carter potencializador da famlia, apontando para o empoderamento dos sujeitos. Nessa perspectiva, as autoras acreditam que no espao domiciliar, podem ser criados espaos potencialmente transformadores daquilo que est determinado a priori (institudo), com modos de ao e reao. As autoras chamam a ateno para este momento de desafios e de construo, em que cabe interrogar a prpria leitura que se faz da realidade, compreendida na sua complexidade, interrogando tambm, os prprios saberes e experincias que integram a produo dos discursos. Nessa perspectiva surge o Programa de Sade da Famlia (PSF), com o intuito de consolidar os princpios doutrinrios do Sistema nico de Sade (SUS): universalidade, eqidade, integralidade, bem como seus princpios organizativos que so regionalizao, hierarquizao, resolutividade, descentralizao, participao dos cidados,

complementaridade do setor privado (Brasil, 1990).Introduo

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Souza (2001) afirma que o enfoque sobre a famlia e a comunidade, oriundo da reorganizao da poltica de sade, no quer dizer que se esteja devolvendo famlia o fardo da crise do Estado Social, convocando-as a retomarem antigas e novas responsabilidades assistenciais e de cuidados. A inteno maior construir uma nova forma de prestar assistncia seguindo o princpio de que as respostas devem se situar o mais prximo possvel do nvel em que se encontra a necessidade; com a participao do setor informal atravs das denominadas redes sociais primrias, a famlia poder se configurar em sujeito e se co-responsabilizar pela sua sade. Na perspectiva de uma mudana do modelo assistencial, acredito que a assistncia domiciliar famlia seja um dos pontos mais sensveis e complexos na proposta do PSF e tambm, como tm revelado diversos estudos, onde os profissionais esto encontrando grandes desafios. Recentes pesquisas nos revelam que as famlias vem com bons olhos a convivncia social com a equipe de PSF. Sentem-se, de certa forma, lisonjeadas com a ateno profissional a domicilio. Isso nos leva a crer que a estratgia de aproximao profissional com o contexto familiar preconizado pelo PSF pode ser visto como um avano; todavia, as famlias tambm percebem que as aes, principalmente dos ACSs, esto se tornando essencialmente repetitivas e pouco resolutivas, trazendo consigo o desgaste das relaes e o descrdito do trabalho (Alonso, 2003, p.233). De outro lado, as equipes, em especial os agentes, percebem a inocuidade do seu agir atravs da indefinio daquilo que pode ser concretamente oferecido sade da famlia em nome do Estado e da sociedade, ou seja, como possvel acolher as suas necessidades de sade sem ter uma definio mais completa daquilo que pode ser oferecido, efetivamente, para a resoluo dos seus problemas? O estudo de Alonso (2003) revelou que ao tratar-se das necessidades de sade, importante que se procure reconhecer quais so as representaes que as prprias famlias tm em seu imaginrio sobre a sade no contexto da sua vida. Na maioria das vezes, as aes preventivas no so vistas ainda, como uma necessidade de sade concreta, que demande uma interveno profissional. Assim sendo, um aspecto central do PSF no estaria sendo desvalorizado ?Introduo

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Outra questo tambm nos revelada em estudos (Mishima, 2003; Alonso,2003; Ribeiro, 2005) que tm tido a preocupao de investigar equipes de PSF e famlias nos encontros assistenciais. No caso, o acolhimento - que se traduz por condutas e aes de recepo, orientao e acompanhamento dos profissionais da equipe perante o usurio do Sistema de Sade no tocante s ofertas e disponibilizao dos seus servios. Verifica-se que, muitas vezes, o prprio sistema no oferece respostas favorveis a esse acolhimento em outros nveis assistenciais, ou seja, no possvel exigir dos profissionais um compromisso com as famlias, para as quais, muitas vezes, o prprio Sistema de Sade, que gerou este discurso, no oferece perspectivas e respostas concretas. Essa divergncia entre o discurso e a prtica traz consigo srios conflitos ticos para as equipes de sade em seu trabalho com as famlias, envolvendo, por vezes, a ruptura dos laos de confiana, desvirtuando o sentido da responsabilidade e do compromisso assumidos no processo assistencial. Em agosto de 2006, o PSF estava implantado em 5. 093 municpios brasileiros, dispondo do total de 26 259 equipes de sade da famlia (ESF), efetuando a cobertura de 57. 850 891 de pessoas. So 217.117 agentes indo a campo diariamente na principal atividade que lhes conferida: visitas domiciliares. Cada agente cobre em mdia 200 famlias e estipulado pelas normas do Ministrio da Sade que realize pelo menos 10 VDs/ano/famlia. Seriam realizadas, portanto, aproximadamente meio bilho de VDs/Brasil/ano. Porm, verificamos nos dados oficiais que os agentes realizam em mdia 14.000.000 Vds/ano. um nmero expressivo, que revela o grande investimento governamental, porm aqum do estipulado. De certa forma este dado demonstra que h problemas no cumprimento da norma e refora a necessidade de rever, discutir e debruar ateno especial a essa atividade que tem muito a contribuir como ferramenta de cuidado (Ministrio da Sade, SIAB, 19/12/2006). Tendo em vista esse conjunto de questes, o presente estudo ocupa-se do objeto complexo constitudo pelas relaes que se estabelecem entre integrantes da equipe de PSF e as famlias, no espao assistencial do domiclio. Estudos recentes tm apontado a necessidade de se criar mecanismos, instrumentos e habilidades de negociao com a famlia dentro do processo assistencial. Mas, por onde comear, tendo em vista que oIntroduo

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modelo contm em seu interior elementos conflitivos, com componentes emancipadores e conservadores, ora de ampliao, ora de restrio da integralidade e da autonomia? Como no questionar o carter regular e insistente das visitas domiciliares, tendo em vista o enfoque repetitivo e at certo ponto incuo dessa atividade? Para buscar algumas respostas s questes ligadas a esse tema, o foco do estudo se situar nas prticas de interveno de equipes de sade da famlia no domiclio, buscando compreender as concepes de famlias e equipes de sade sobre aquelas prticas e sobre as relaes que se estabelecem no espao da visita domiciliar.

1.1- Sade da famlia: evoluo e trajetria 1.1.1-Sobre seus antecedentes na dcada de 60 que se situam alguns dos eventos-chave para o entendimento da formao das idias que acabaram desembocando no caudal que deu origem ao Programa de Sade da Famlia no Brasil. Paim (1997) resgata um pouco da histria de tais idias, a partir dos movimentos da Medicina Preventiva e da Medicina Comunitria e tambm de uma produo terica e crtica da sade coletiva no Brasil, chamando a ateno para uma luta contra-hegemnica que envolveu a construo de novos modelos de ateno sade. Assim, mediante seus componentes de saber, ideologia e ao poltica, teria ocorrido o deslocamento de uma nfase centrada meramente nos servios para as condies de sade e seus determinantes, com prticas de sade imbudas de carter social e dimenses simultaneamente tcnicas, polticas e ideolgicas. Este mesmo autor percorre a trajetria de alguns dos paradigmas de sade-doena, entre eles o PSF, destacando que alguns dos mesmos foram elaborados em contextos externos ao pas, sendo apenas atualizados no Brasil. Tais seriam os casos das teorias do campo da sade de origem canadense, da promoo da sade (OPAS/OMS, 2002) e da vigilncia sade, capazes de conferir novos sentidos para as questes formuladas pelo movimento sanitrio em dcadas passadas. assim que um certo movimento ideolgico passaria a possuir um

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carter de ao poltica, conduzida por atores dos servios de sade, da academia e da sociedade como um todo. Tal importao de idias e projetos no est, naturalmente, isenta de crticas e contradies. Um dos paradigmas que fazem parte do percurso ora comentado o da Medicina Comunitria. A Medicina Comunitria constituiu-se em um projeto, cuja proposta central referia-se prestao de servios de sade populao, envolvendo a busca e a experimentao de novos modelos assistenciais, dirigidos, particularmente, queles grupos sociais com pequeno ou nenhum acesso ao consumo de cuidados mdicos (Andrade, 1995). Entre os principais traos a marcar esta nova estratgia, estavam a simplificao do cuidado, com a utilizao de profissionais mdicos no especializados e de auxiliares com baixa qualificao (atendentes recrutados nas prprias comunidades), aliada ao menor consumo de exames e medicamentos, dentro da perspectiva de uma tecnologia apropriada aos problemas de sade mais prevalentes na populao de baixa renda, considerados de menor complexidade; a nfase no atendimento de nvel primrio, voltado para as doenas mais freqentes, sobretudo transmissveis e a organizao das unidades de sade nos moldes da regionalizao e hierarquizao e sob o encargo do setor pblico. Sua trajetria no Brasil foi analisada por diversos autores, como Donnangelo & Pereira (1979) e Arouca (1975). Na origem da importao de tal conceito, ocorrida nos anos 60, estariam algumas experincias e programas desenvolvidos e mantidos por universidades, entre elas a Universidade Estadual de Campinas. Suas razes, entretanto, esto vinculadas, tanto crise do capitalismo, como ao impacto dos resultados da implementao dos welfare states na Europa ou ainda, formao do National Health System no Reino Unido, dentre outras. Esta vertente estaria tambm associada poltica externa norte-americana dos anos 60, voltada para os pases pobres da Amrica Latina, tambm conhecida como Aliana para o Progresso, que difundiu nos pases-alvo sua proposta de sade, com o apoio das agncias internacionais. dessa forma que surgem programas experimentais em diversos pases, inclusive no Brasil, que propem modelos de assistncia nos quais a extenso de cuidados sade das populaes pobres estaria garantida.

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Os elementos estratgicos bsicos, constituintes da proposta da Medicina Comunitria, eram representados pela simplificao tecnolgica das prticas de sade, pela utilizao de pessoal local para atuar como trabalhadores nos programas de sade e pelo seu carter de prtica comunitria. Um exemplo desta reorientao poltica do Ministrio da Sade, no sentido da extenso de cobertura das atividades de sade nos moldes de uma Medicina de Comunidade "simplificada", foi o Programa de Interiorizao de Aes de Sade e Saneamento (PIASS), implantado a partir de 1976, principalmente na regio nordeste do pas, onde foi responsvel pela expanso do nmero de unidades bsicas de sade - atuando em assistncia mdica, suplementao alimentar e saneamento bsico mas, ainda assim, marcado pela baixa cobertura e baixa capacidade resolutiva de suas aes (Andrade, 1995). A Medicina Comunitria viria a ter seu substrato terico, poltico e ideolgico consagrado e expandido na Conferncia Internacional de Alma Ata, em 1978, a partir da qual ela praticamente se confunde com as palavras de ordem geradas no evento, particularmente ateno primria sade (APS). O relatrio final da Conferncia (OMS - UNICEF, 1979) transformar-se-, a partir de ento, em pea fundamental da doutrina dos organismos internacionais, no s sanitrios, mas tambm de fomento econmico, junto aos pases perifricos. As propostas referidas, sejam de medicina comunitria, na vertente norteamericana, ou da APS, na proposta da OMS e UNICEF, constituem-se em torno de alguns elementos estruturais, os quais, segundo Silva Jr (1998) so: coletivismo (embora criticado como restrito); integrao da promoo, preveno e cura; desconcentrao de recursos; adequao das tecnologias; aceitao e incluso de prticas no oficiais; novas prticas interdisciplinares e multiprofissionais e, finalmente, participao da comunidade. Tais propostas sempre estiveram no foco de intensas polmicas, mobilizando energias intelectuais para sua crtica, no s no Brasil como em toda a Amrica Latina. Tal o caso dos inmeros trabalhos publicados na dcada de 70 por Donnangelo, Paim, Tambelini, Loureiro, alm de outros, citados por Silva Jr (1998). As denncias se dirigiam contra as possibilidades de controle sobre a sociedade, imposio de mecanismos de participao social, favorecimento da acumulao de capital aos produtores, manuteno eIntroduo

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aprofundamento das desigualdades de acesso, dentre outras. Curioso constatar, entretanto, que em anos seguintes, particularmente na dcada de 90, que esta crtica atenuada, bastante ou por outra, as citadas energias intelectuais vo se concentrar em encontrar solues, no mais apenas em demolir as propostas colocadas em campo, vistas como eram sob uma tica fortemente ideolgica e at certo ponto conspiratria . Mais uma vez recorrendo a Paim (1997), revela-se uma sntese das concepes de sade do chamado movimento sanitrio brasileiro, mostrando que para alm dos conflitos das propostas acima citadas, teria ocorrido um certo renascimento da Medicina Social nas dcadas de 70 e 80, como um paradigma alternativo ancorado nas concepes fundamentais relativas determinao social do processo sade-doena, bem como na dinmica do processo de trabalho em sade e, dessa forma, passando a orientar as propostas democratizadoras e de reforma do sistema vigentes na dcada de 80, resultando da o conceito ampliado de sade e de seus determinantes, incorporado na Constituio de 1988. Observa-se tambm, que a histria das discusses e da formao de modelos alternativos de ateno sade no Brasil sempre foi tensa e contraditria. o que se verifica, por exemplo, a partir das vertentes originais e conflituosas de sanitarismo, da Sade Pblica e da Medicina Previdenciria, bem como, mais tarde, em relao ao aparecimento da medicina comunitria e de correntes sucedneas a esta. Especificando agora o caso da ateno sade das famlias, ocorre na dcada de 60, nos Estados Unidos, resgate histrico de programas voltados para a sade do grupo familiar, como um movimento poltico de mudanas no modelo assistencial (Paim, 1986). Neste momento, tambm, adquire especial importncia uma publicao da Organizao Mundial da Sade, intitulada Training of the physician for family practice (WHO, 1963). Em tal documento aparecem o escopo e os objetivos da medicina de famlia, referidos como acesso direto da clientela, continuidade da ateno, cuidado ao grupo familiar, nfase na preveno e promoo da sade, responsabilizao profissional, alm de provimento de capacitao e atividades de pesquisa. A partir de 1966, o movimento da family medicine se dissemina nos Estados Unidos, com intervenincia da poderosa American Medical Association (AMA), com a produo de numerosos documentos versando sobre as bases de tal prtica e at mesmo sua incorporao oficial, como umaIntroduo

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poltica federal para a formao profissional em tal campo. A partir da experincia americana, o movimento migra para outros pases, particularmente Canad e Mxico, j na dcada de 70 (Paim, 1986). O movimento internacional que gerou as propostas de sade da famlia caracterizado por Paim como de cunho ideolgico, dado sua constituio a partir de um conjunto de prticas que busca substituir a formao especializada e tcnica dos mdicos por uma outra alternativa, que prope a ateno integrada e completa. Registram-se, no caso, vertentes de interpretao mais saudosistas, de resgate histrico de antigas prticas sepultadas pela tecnificao e pela mercantilizao da medicina, de um lado, em contraposio a outras concepes mais racionalizadoras e preocupadas, por exemplo, com a reduo de custos, com o impacto das tecnologias, bem como com a presso da populao pela reorganizao dos servios de sade. No caso brasileiro, tal fundamento ideolgico e seus desdobramentos conflituosos parecem se acentuar e mesmo se aprofundar na dcada de 70 e nas seguintes. o que se verifica nos conflitos polticos existentes entre as propostas de medicina geral comunitria (MGC) e medicina social (e congneres). Tais conflitos teriam como desdobramento contemporneo o embate entre o que seria um novo paradigma, o PSF dos anos 90, e uma antiga medicina da famlia (Trad e Bastos, 1998). O chamado movimento de medicina da famlia tem sua entrada nos pases da Amrica Latina e no Brasil na dcada de 70, em um momento que Paim conceituou como fase acadmica do mesmo, com a realizao de inmeras reunies e seminrios sediados em universidades, sobre o tema, o primeiro dos quais em Campinas-SP, em 1973 (Ceitlin, 1982). Paim (1986) destaca os conflitos que marcaram o advento e a implantao das vrias propostas de medicina de famlia ou similares no Brasil, sem que nenhuma delas tenha chegado hegemonia no sistema de sade. Santos (1978), em trabalho da poca, analisou alguns aspectos desse perodo inicial da discusso sobre a medicina de famlia, destacando, de um lado, os conflitos existentes entre os discursos das entidades nacionais e internacionais ligadas ao ensino, bem como de fruns oficiais, e, de outro, o currculo real das faculdades de medicina e a realidade do mercado de trabalho.

Introduo

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A implantao das reformas do sistema de sade no Brasil, na dcada de 80, preliminarmente com as AIS e os SUDS e depois com o SUS, com a conseqente municipalizao das responsabilidades, representou um estmulo fundamental para que os fenmenos de oficializao e ampliao de tais programas acontecesse. Nesse quadro, certamente, se inserem outros determinantes, como o incremento de intercmbio de modelos com outros pases, o desenvolvimento da capacidade formuladora dos organismos gestores, a qualificao da participao social, a ruptura com o carter meramente demonstrativo e experimental das experincias realizadas nas dcadas anteriores, alm de outros. Independente das causas, o certo que na dcada de 90, polticas de governo como a de Sade da Famlia reingressam com novo mpeto e vigor no cenrio da sade, com aparente capacidade de permanncia e enraizamento.

A Introduo da famlia nas Polticas Sociais Carvalho (1994) discute a introduo da famlia nas polticas sociais brasileiras, situando-a dentro de trs modalidades de ao, a saber: 1) programas de gerao de renda e emprego; 2) programas de complementao da renda familiar e 3) rede de servios de apoio. Nesta ltima categoria que se inserem os programas do tipo PSF, que podem variar quanto a seu foco de ao, desde abordagem aos problemas de cada indivduo at o apoio intensivo a famlias em situaes crticas. A autora, entretanto, esclarece que nem toda problemtica social passvel de uma abordagem via famlias, constituindo a famlia apenas uma das instncias de resoluo dos problemas individuais e sociais. Embora reconhea que a famlia vem recebendo, por parte das polticas pblicas no Brasil, uma ateno especial ao longo da dcada de 90, a autora adverte que h muito que caminhar na superao de uma tradio normatizadora e autoritria de tais aes por parte do Estado. Segundo ela, importante ter clareza de que, para muitos problemas, a famlia no a instncia de atuao mais propcia. A partir do processo de intensificao do individualismo trazido pela modernidade, cada vez mais o cidado prefere resolver seus problemas de forma independente do seu grupo familiar (Carvalho, 1994).

Introduo

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Os servios pblicos comunitrios, na medida em que lidam com famlias extremamente fragilizadas, necessitam repensar sua tradio autoritria e normatizadora de relao com o mundo popular para no as massacrarem. Em vez de estruturarem suas prticas no fornecimento de servios e bens que substituam as iniciativas da famlia, devem centrar suas aes no fortalecimento, tentando apoiar a recomposio dos vnculos afetivos internos ameaados e a sua reintegrao na rede de solidariedade social local. Vasconcelos (1999) descreve esta valorizao da famlia nas polticas sociais como algo institudo, na verdade, ao longo de toda a histria da construo do sistema de sade brasileiro, relatando os diversos componentes desta natureza encontrados na legislao previdenciria, desde seus primrdios na dcada de 20, apesar da vigncia das contradies decorrentes do mdico-centrismo e da dependncia tecnolgica e de capital de tal sistema. A criao da Fundao SESP, na dcada de 40, em que pese seu carter normatizador e autoritrio, tambm representou um marco importante, com suas tradies de visitas domiciliares, territorializao, etc. Entretanto, foi na sociedade civil que esse aspecto obteve maior visibilidade, citando os casos da Sociedade So Vicente de Paula e da Pastoral da Criana, entre outros. A escolha do ano de 1994, pela ONU, como o Ano Internacional da Famlia teria tido impacto indutor sobre a poltica brasileira e de outros pases do mundo, ao valorizar os conceitos de famlia e de comunidade (Vasconcelos, 1999). Dentro do quadro de valorizao do tema da famlia nas polticas sociais, o autor aponta alguns fatores que influram em tal ao, identificando o problema da criminalidade praticada por crianas e adolescentes, as reaes violentas de alguns setores da sociedade a eles, as epidemias de clera e dengue, bem como o prprio acmulo de experincias locais que rompem com os modelos tradicionais de assistncia. Criaram-se, assim, segundo este autor, as condies para o advento de um clima cultural propcio para determinadas inovaes das polticas sociais e com elas, os prprios programas PACS e PSF. Houve, assim, muitas mudanas na sade desde meados da dcada de 80, em razo da intensa movimentao poltica e social pela reforma da sade no pas (Escorel, 1987; Goulart, 1996) e da construo local do sistema de sade, que resultou na ampliao da atuao municipal na sade. Concorreu, tambm, para tal quadro deIntroduo

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transformaes, a consolidao de um novo e efetivo arcabouo legal para o sistema, com as Normas Operacionais Bsicas de 1993 e 1996, que sem dvida, forneceram um indito substrato para que experincias como a Sade da Famlia pudesse florescer. A proposta de Sade da Famlia, entretanto, somente alcanaria sua maturidade nos anos 90, galgando ento, o estatuto de poltica pblica no Brasil. Isto equivaleria a uma mudana no paradigma assistencial, passando de um eixo curativo para o preventivo, da ao mono-setorial para a intersetorial, da excluso para a universalidade, conforme a expresso de Trad e Bastos (1998). Mesmo alguns crticos das opes de implementao do SUS em curso no pas, como o caso de Mendes (2000), tendem a admitir avanos possibilitados por tal poltica. Esse autor, alis, ao se referir ao atual PSF no contexto do SUS, admitiu que o advento do PSF demonstra que nem tudo so espinhos no cenrio geral.

1.1.2- Sobre o objeto do Psf potencialidades e contradies O Programa de Sade da Famlia (PSF), como toda poltica social, situa-se em um movimentado cruzamento de princpios e conceitos operacionais, nos quais so freqentes as contradies de natureza poltico-ideolgica ou conceitual. Para exemplificar, poderia ser considerada uma poltica racionalizadora, de carter focal, nos moldes preconizados pelos organismos internacionais financiadores de programas sociais no terceiro mundo. Ao mesmo tempo, poderia ser entendido como uma interveno coerente com os princpios de eqidade, integralidade e universalidade, conforme as disposies da Constituio Federal Brasileira de 1988. Seria possvel encar-lo, tambm, dentro de marcos ideolgicos e conceituais gerados em contextos externos, em sistemas de sade com outro feitio, e em sociedades poltica, econmica e culturalmente diferentes, o que no impediria que possa vir a ser compreendido como processo de construo social, no contexto de um quadro conceitual e operacional pertinente realidade poltica, institucional e cultural brasileira. Por outro lado, o PSF poderia ainda ser percebido como poltica centralista de governo, formulada para umIntroduo

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tipo modal de realidade local, em contraposio a uma construo social de base descentralizada, com fundamento no conceito de cidadania e potencialmente

transformadora da realidade do sistema de sade, surgindo como estratgia para o alcance da eqidade e da integralidade em sade (Paim, 2001). O PSF poderia, ademais, ser questionado como uma adaptao paliativa e, por assim dizer, cosmtica, do modelo de ateno sade vigente, incapaz, portanto, de reverter as conhecidas distores do mesmo, mas, ao mesmo tempo, tambm poderia ser encarado como potencial fora geradora de mudanas estruturais do modelo assistencial, incorporando os elementos de um novo paradigma, de recorte sanitrio-epidemiolgico. Dessa forma, pode-se dizer que o PSF, no Brasil, possivelmente resulta de complexas influncias sociais, polticas e culturais, incorporando diversos e conflituosos elementos ideolgicos e conceituais, tendo, como substrato de sua formulao e implementao, contextos simultaneamente globais e locais, societrios e institucionais, alm de tcnicos e polticos. Pode-se dizer, portanto, que o PSF um produto da assimilao e do embate, contraditrios e altamente dinmicos, de propostas resultantes da poltica central de governo, de carter prescritivo e fortemente normatizador, e tambm daquelas construdas a partir da realidade, no mbito dos municpios, de natureza mais criativa e menos normativa. No segundo caso, estariam programas desenvolvidos em ambientes dinmicos e marcados pela contingncia dos fatos sociais, nos quais as formulaes centrais prescritivas so incorporadas de forma parcial, ou apenas formal, prevalecendo, nas propostas resultantes, um carter estratgico e fortemente adaptado s condies locais (Bursztyn, 2003). Pode, sem dvida, ser assumido que no existiria total coerncia nos elementos constitutivos de tal poltica, dada uma dinmica interna feita de oposies e contradies. Tais contradies pem em destaque uma agenda de problemas para o PSF que pode ser explicitada, em termos temticos, conforme disposto no estudo de Goulart (2002): (a) cobertura: focalizao para populaes de alto risco social e epidemiolgico versus universalismo; (b) tipo de sistema de sade: solues de ateno familiar integradas, observadas em reformas do setor de sade em pases desenvolvidos vis a vis com sua aplicabilidade ao caso brasileiro, sem comprometimento da integralidade e doIntroduo

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universalismo; (c) relaes federativas: conflito entre formulaes de nveis centrais de governo e a autonomia local; (d) tendncias gerais do SUS: soluo restrita para as conhecidas lacunas de oferta do sistema versus o predomnio do paradigma sanitrioepidemiolgico na implementao. Segundo o autor na sntese realizada em sua pesquisa:o PSF surge no mbito de um conflito entre a normatizao dura realizada pelo governo federal e as iniciativas dos governos municipais, em que prevalecem, no processo de implementao, a flexibilidade e as inovaes de carter local. (Goulart, 2002).

1.1.3- O Territrio enquanto processo Territorializao e vnculo de uma dada populao s equipes so idias nucleares proposta do programa de Sade da Famlia. So, por excelncia, expedientes gerenciais que estruturam servios. A referncia territorial tem sido importante desde os primrdios e usada, principalmente, como ferramenta da epidemiologia em servio (Merhy, 2003). O vnculo tem sido usado como um modo de organizar a relao entre equipes assistenciais e sua populao usuria. Segundo Merhy (2003),(...) essas ferramentas, por si s, no mudam o perfil de sade, sua forma de produo e seu ncleo de trabalho mdico centrado, porque, apesar de agirem sobre a arquitetura do programa, no interferem na sua essncia, isto, no modo como se produz o cuidado a partir dos diversos fazeres construdos no cotidiano, nas relaes estabelecidas entre trabalhadores entre si, trabalhadores e conformaes

tecnolgicas do agir em sade, e entre os trabalhadores e usurios (...) .

Um dos possveis caminhos pelo qual correram as idias de territrio e de vnculo ao longo do tempo, na histria da sade pblica, pode ser reconstrudo ao se revisitar Rosen.

Introduo

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A idia geral, de preservar tanto um ambiente saudvel quanto proteger o homem contra adversidades do meio, to antiga quanto a histria da aventura humana sobre a terra (Rosen, 1994). Est muito presente na epidemiologia e na vigilncia e, agora tambm, no Programa de Sade da Famlia. A associao entre o territrio, o ambiente e o processo sade-doena e, naturalmente, a necessria harmonia entre os homens e seu habitat para a preservao da sade, aparece com nfase no texto hipocrtico Ares, guas e Lugares, considerado por alguns como o texto fundante do conhecimento epidemiolgico (Franco & Merhy, 2003:98) Essas concepes fundadoras do pensamento epidemiolgico firmaram, ao longo do tempo, a idia de que o espao territorial deve ser o locus operacional de aes que tm como objetivo conservar a sade da populao. Com o tempo, a esses conceitos agregaram-se outras idias, como a de que o processo de adoecimento determinado tambm pela forma como as sociedades se organizam. Contudo, a sociedade articula-se em territrios definidos e assim, mesmo ganhando em graus de complexidade, o territrio continua como centro do problema, onde se avalia que a higiene dos lugares proporcional ao coeficiente mrbido (Franco & Merhy, 2003:97). Na Organizao Pan Americana da Sade (OPAS) h fortes correntes tcnicas e polticas filiadas a uma concepo que traz essa herana e que prope um modelo assistencial para a sade tendo como centro de referncia bsico o territrio processo, considerando-o territrio social, econmico, poltico, epidemiolgico, no qual esto presentes e atuam as variveis relacionadas ao processo de adoecimento da populao. A entidade, nestas ltimas dcadas, tem proposto que a interveno nas dinmicas locais se d a partir de tecnologias de planejamento territrio-centradas (territorializao), articulada aos instrumentais da epidemiologia e da vigilncia sade. Mendes (1994) descreve de forma pormenorizada essa proposta, orientando o processo de territorializao atravs da formao de distritos sanitrios, reas de abrangncia e microreas, que delimitam certa responsabilidade sanitria do gestor local sobre o territrio em questo. As microreas so delimitadas de acordo com um perfil homogneo de condio socioeconmica da sua populao, que definem o seu grau de risco sanitrio (Mendes, 1994).

Introduo

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Sem dvida, o conhecimento articulado em torno da idia de territrio processo, sobre o qual operam modelos assistenciais baseados exclusivamente na vigilncia sade, importante e til s estratgias da produo do cuidado. Porm, alguns autores Merhy & Franco (2003) levantam a limitao desse conhecimento para responder complexidade dos problemas de sade. Nesse sentido, a epidemiologia extremamente importante para embasar o trabalho das equipes de sade como um todo, mas com certeza a ela se deve agregar o conhecimento inscrito na clnica, na sociologia, psicanlise, teorias gerenciais, planejamento, etc. Esses mesmos autores acreditam que o PSF, ao atrelar a matriz terica prioritariamente ao campo da vigilncia sade, restringe seu trabalho ao territrio e isto significa centrar o trabalho em atos de sade basicamente higienistas, dando pouca importncia prpria constituio de uma rede bsica assistencial, integrada a um sistema local de sade. Afirmam ainda que, ao no atribuir tambm muito valor ao conjunto da prtica clnica e nem tomar como desafio necessidade de sua ampliao na abordagem individual nela inscrita, no que se refere a sua ateno singular, necessria para os casos em que os processos mrbidos j se instalaram, diminui em muito a autonomia nos modos de andar a vida (Campos, 1992; Merhy, 1998).

1.1.4- O vnculo enquanto ferramenta A idia de vnculo a grupos de pessoas, famlias e comunidades, tambm vm desde a Antigidade. Na Grcia antiga, sculo V a. c., os mdicos assistiam as populaes das pequenas cidades de forma itinerante, porm, nas grandes cidades eram contratados e a permaneciam. Na Roma imperial, temse notcia de vnculos em que mdicos se ligavam a famlias, que lhes pagavam uma soma anual pelo atendimento durante o ano inteiro (Rosen; 1994: 38, 39,47). notrio que o desejo manifesto das pessoas e grupos sociais de ter um mdico como sua referncia e obter dele a responsabilidade pelo seu cuidado, tornou o processo de trabalho do mdico ligado idia de vnculo entre ele e os usurios dos seus servios, sejam estes pessoas, famlias, grupos comunitrios ou cidades (Merhy; Franco, 2003:101).

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Como se verifica pelos relatos histricos, desde os primrdios, a idia de vnculo est ligada ao ato do cuidador, pela prpria natureza do trabalho em sade, especialmente na poca em que as tecnologias de trabalho em sade se inscreviam, quase exclusivamente, nos atos em torno da relao profissional-usurio. O avano, na construo do conhecimento, em relao s tecnologias de trabalho para a assistncia sade, deu-se ao longo do tempo de forma vagarosa. Rosen relata que, no perodo renascentista, sculos XVI e XVII e at meados do sculo XVIII, houve avanos cientficos importantes em relao medicina, porm neste perodo, os problemas referentes s doenas epidmicas, assistncia mdica propriamente dita, ao saneamento ambiental e ao suprimento de gua, encontravam-se nos mesmos padres da Idade Mdia (Rosen, 1994:108). Em diversos pases, hoje, o vnculo uma diretriz dos modelos de assistncia, usado como ferramenta na consolidao de referencias nos profissionais e sua responsabilizao para uma determinada parcela da populao usuria de seus servios de sade. Inglaterra e Cuba tm servido como referncia para modelos assistenciais que operam com a diretriz do vnculo. Na primeira, a populao adscrita ao General Practice e na segunda, a um mdico de famlia. Como instrumento gerencial, a vinculao da clientela no deve transformar-se em fetiche, ou salvadora da ptria, que tudo pode resolver. Campos, ao discutir a organizao dos servios de sade em nova modalidade assistencial, alerta para que mesmo com vinculao de clientela, os servios podem continuar operando no formato liberal. (Campos; 1992:148). Para Campos (1997) a noo de vnculo central para mudana no modelo de ateno ou para modificar os padres das relaes profissionais de sade/clientela. E ainda, necessrio ampliar os coeficientes de vnculos dos profissionais com pessoas portadoras de problemas concretos dentro de um certo contexto existencial. Segundo este autor, o vnculo inserido na prtica clnica o que permite combinar autonomia e responsabilidade profissional, o que promove desalienao. Neste sentido, o processo de trabalho precisa estimular a liberdade criadora e ampliao de responsabilidades dos trabalhadores.

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O vnculo para Merhy (1997,1999) constitui-se numa tecnologia leve. A tecnologia leve constitui o modo relacional de agir quando da produo de atos de sade est representada pela produo de vnculo, autonomizao, acolhimento, gesto dos processos de trabalho. semelhana de Campos (1997, 1998,1999), para Franco e Merhy (2003) o vnculo o que permite que os usurios estabeleam referencias a uma dada equipe de trabalhadores, e a responsabilizao destes para com aqueles, no que diz respeito produo do cuidado. Como nas relaes sempre ocorre o encontro entre as subjetividades das pessoas, Merhy (1997) considera que o mecanismo de transferncia e contra-transferncia, conceituado por Freud, poderia representar o universo da tecnologia leve do trabalho vivo, dado que acolhimento e vnculo, sendo componentes do universo tecnolgico do trabalho vivo em ato, poderiam dar sentido ao usurio no interior do processo de trabalho, sentido este que, se capturado, poderia aumentar seus graus de autonomia.

1.1.6- PSF Alguns aspectos referenciais para anlise Caberia, neste momento, algum detalhamento dos contedos e das concepes que subsidiaram a formulao do Programa de Sade da Famlia no Brasil. Cordeiro (1996), na condio de observador e militante privilegiado da poltica de sade no Brasil no decorrer das dcadas de 80 e 90, afirma, por exemplo, que tal proposta de organizao das prticas de sade implica o reconhecimento da sade como um direito universal, vinculado qualidade de vida. Da mesma forma, a escolha da famlia e de seu espao social como alvo de abordagem, a democratizao do conhecimento a respeito da sade, da doena e da organizao dos servios, a interveno sobre os fatores de risco, a prestao de um atendimento integral, resolutivo, contnuo e de qualidade, a humanizao, o estmulo organizao social e o estabelecimento de parcerias, so avanos inquestionveis que o programa vem oferecendo. O PSF tem sido definido ainda, como uma estratgia de consolidao do Sistema nico de Sade, fazendo parte de um processo de

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planejamento estratgico com implicaes na ampliao da oferta de trabalho nos cuidados bsicos, bem como uma ao potencialmente hegemnica na organizao e na prtica sanitria (Cordeiro, 1996). visto ainda como o SUS que est dando certo, na expresso utilizada por Levcovitz e Garrido (1996), autores (e tambm atores das primeiras etapas da implementao do programa) que valorizam ainda alguns aspectos inerentes ao mesmo, tais como o carter de reorganizao de servios, a potencialidade de substituio do modelo assistencial vigente, o fato se constituir fonte de inspirao para novas prticas de gesto, seja no plano estadual ou local, a gerao de vnculos e responsabilidades entre servios e sua populao, etc. Alm disso, em outra anlise, o PSF qualificado como um programa inserido no escopo das polticas pblicas de sade, no contexto do SUS, dotado de uma concepo que abrange no s aspectos relativos ao modelo de prticas assistenciais, mas tambm aos processos de trabalho e formao de recursos humanos e cuja implantao se d de forma participativa, conforme afirmativa de Trad e Bastos (1998). Viana (2000) atribui ao PSF o carter de propagador de prticas no convencionais de assistncia, com grande peso dado preveno e promoo, como forma de reorganizao dos servios e antecipao das demandas dos mesmos e que alm do mais, trata-se de programa que no entra em conflito nenhum de seus princpios bsicos ou formas de operacionalizao com as diretrizes do sistema nacional de sade. Mendes (2000) credita ao PSF o status de ter se constitudo como uma contribuio importante no campo da sade, possibilitando a consolidao de uma poltica de ateno primria sade, com o mrito adicional de ter envolvido as universidades do pas na capacitao de suas equipes. Em outro trabalho, este autor identifica no programa matizes que permitem sua incluso nas novas tendncias da gesto da ateno sade, dados seus elementos de gesto de riscos populacionais e gesto da oferta atravs da ateno primria resolutiva (Mendes, 1998).

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Sousa (2001), que milita no PACS e no PSF desde seus primrdios, acredita que tais programas vieram fortalecer o movimento de descentralizao do SUS, apoiandose na concepo de oferta de ateno bsica no seio das prprias comunidades, de forma prxima aos usurios e abrangendo as localidades onde os servios no se encontravam disponveis, inovando ainda com a oferta de cuidados a domiclio. Para esta autora, o PSF representa tambm um avano nas propostas de sade ao superar uma etapa de servios realizados na comunidade para outra, de servios que envolvem a comunidade. Aponta esta estratgia como uma possvel sada para a crise contempornea do Estado, desde que sua execuo seja provida por servios pblicos qualificados e fortalecidos, em parceria com entidades no governamentais (igrejas, associaes diversas, clubes, redes, voluntariado, etc.). Paim (1994), autor que constitui referncia obrigatria quando o assunto a organizao dos modelos assistenciais de sade no Brasil, insere o PSF na categoria das polticas democratizadoras da sade na dcada de 90, em contraposio ao carter meramente racionalizador das polticas de momentos anteriores. Alm do mais, credita ao programa em pauta, ressalvadas as contradies que o mesmo apresenta, o carter de modelo tecno-assistencial de base epidemiolgica,configurando-se como legitimamente ancorado em dois dos conceitos fundamentais da medicina social contempornea, quais sejam 1) a determinao social do processo sade-doena e o 2) enfoque nos processos de trabalho em sade (Paim, 1997). Vasconcellos (1998) atribui ao programa a potencialidade de promover uma retomada na humanizao da ateno clnica, alm da melhor qualificao de seus profissionais, sem embargo de seus componentes de resposta uma tendncia mundial de reduo de custos em seus procedimentos com pessoal, hospitalizaes e tecnologias. Souza (1999; 2000), na condio de ter sido a principal executiva do PSF desde seus momentos iniciais, fornece indicativos importantes a respeito das concepes que orientaram a sua criao e vm orientando sua implementao, ressaltando a caracterstica de no ser uma proposta nova, mas sim, o resultado de uma acumulao de saberes e prticas de diversas pessoas e instituies. O PSF estaria na origem de importantes transformaes qualitativas do SUS, como por exemplo, a rediscusso da NOB 93, que acabou por desencadear uma nova lgica de financiamento das aes de sade. DefendeIntroduo

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ainda, ser o programa uma estratgia estruturante do modelo de assistncia no pas e uma garantia de vnculo entre os servios e a populao. Na viso da autora, o PSF uma escolha tcnica, tica e poltica, constituindo-se uma autntica marca do futuro, tecido no presente. Alguns aspectos do contedo do PSF encontram-se bastante detalhados nos documentos oficiais do Ministrio da Sade, que mostram uma certa evoluo em seu enfoque. De uma abordagem mais carregada ideologicamente em um primeiro momento, correspondente aos anos de 1994 e 1995, com denncia das mazelas do sistema vigente e propondo a urgente superao do paradigma clnico, os textos assumem um carter gradualmente mais tcnico, com contedos mais objetivos e prescritivos, enfatizando a articulao dos programas rede. Tais diferenas tornam-se ntidas quando se compara, por exemplo, um dos documentos oficial do programa emitido em 1994 (Ministrio da Sade, 199- b), aquele intitulado Sade da Famlia: uma estratgia para a reorientao do modelo assistencial, divulgado em 1997 (Ministrio da Sade, 1997b). Registre-se, ainda, que nos dois documentos, o que era estratgia para organizao dos servios de sade, converte-se em estratgia de reorientao do modelo assistencial. O documento de 1997 do Ministrio da Sade anuncia, com detalhes, a que veio o PSF, declinando seus objetivos e diretrizes operacionais, dedicando especial ateno reorganizao das prticas de trabalho, s competncias dos nveis de governo, bem como s etapas de implantao do PSF. O mesmo , alis, bastante ambicioso e abrangente em suas anlises e propostas, ao anunciar, j em sua apresentao a vinculao de uma crise estrutural do setor pblico com a fragilidade da eficincia e da eficcia da gesto das polticas sociais; a denncia da incapacidade de algumas propostas inspiradas na Reforma Sanitria e pelos princpios do SUS, tais como os SILOS e os Distritos Sanitrios de promover mudanas significativas no modelo assistencial; a priorizao do

estabelecimento de vnculos e a criao de laos de compromisso e de co-responsabilidade entre os profissionais de sade e a populao como ponto central de atuao do PSF; a proposta de mudanas no objeto de ateno, forma de atuao e organizao geral dos servios, atravs da reorganizao da prtica assistencial em novas bases e critrios; a busca de uma compreenso ampliada do processo sade/doena com nfase em intervenes de maior impacto e significao social.Introduo

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O texto de 1997 procura enfatizar algumas caractersticas inovadoras pretendidas pelo PSF, como por exemplo: (a) fugir ao carter vertical e paralelo dos demais programas do Ministrio da Sade; (b) constituir-se em proposta substitutiva com inovao tcnica, poltica e administrativa; (c) incorporar os princpios da vigilncia sade e, finalmente, (d) negar o equvoco da identificao do PSF como um sistema de sade para os pobres. Assim, o programa deve ser entendido como um modelo substitutivo da ateno bsica de feio tradicional, porm encarando a questo da eqidade, alm de ser necessariamente reconhecido como prtica de alta complexidade tecnolgica em termos de conhecimento e do desenvolvimento de habilidades e mudanas de atitudes. J a vinculao do PSF com o SUS afirmada no referido documento, ressaltando sua contribuio para a reorientao do modelo assistencial a partir da ateno bsica em conformidade com os princpios do SUS e buscando uma outra dinmica de atuao nas unidades de sade, com maiores responsabilidades e vnculos entre os servios de sade e a populao. So tambm definidas diretrizes operacionais de carter conceitual e prescritivo quanto aos seguintes aspectos: (a) carter substitutivo, complementaridade e hierarquizao; (b) adscrio de clientela; (c) cadastramento; (d) instalao das unidades do PSF; (e) composio e atribuies das equipes; (f) atribuies dos membros da equipe (mdico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente comunitrio). O documento se detm ainda sobre a reorganizao das prticas de trabalho, enumerando, entre outros aspectos, o processo de diagnstico da sade da comunidade, a abordagem multiprofissional, o desenvolvimento de mecanismos de referncia, a educao continuada, alm do estmulo ao intersetorial e ao controle social. A seguinte declarao de princpios finaliza o documento: a operacionalizao do PSF deve ser adequada s diferentes realidades locais, desde que mantidos os seus princpios e diretrizes fundamentais. Para tanto, o impacto favorvel nas condies de sade da populao adscrita deve ser a preocupao bsica dessa estratgia. A humanizao da assistncia e o vnculo de compromisso e de coresponsabilidade estabelecido entre os servios de sade e a populao tornam o Programa de Sade da Famlia um projeto de grande potencialidade transformadora do atual modelo assistencial (Ministrio da Sade, 1997b, pp. 11-12).

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Um postulado central do SUS, a universalidade, poderia ser questionado em relao s aes desenvolvidas no mbito do PSF. At certo ponto, este seria um aspecto constante, empiricamente verificado nos programas existentes. Entretanto, como os programas geralmente se destinam a segmentos mais pobres dentre os usurios, derivam da questionamentos sobre um possvel carter de focalizao, configurando um dilema entre uma opo universalista e uma opo focalista, a ser resolvido mediante uma anlise mais global da poltica de sade em termos de compromisso poltico, sade como bem pblico, ou seja, focalizao com instrumento tcnico, alm de financiamento e conduo pblicos, nos termos colocados Por Granados Torao (1995). A questo se remeteria, portanto, ao prprio potencial evolutivo do SUS no momento atual. Em que pesem certos questionamentos, como o acima apresentado, o PSF configura-se como uma possvel reorganizao das prticas assistenciais tendo como aspectos centrais, entre outros, a superao do curativo para o preventivo; do eixo de ao mono-setorial para o intersetorial; da excluso para a universalizao (Goulart, 2002). Seu carter inovador e potencialmente transformador de um modelo de prticas de sade parece tambm evidenciado, no s nas anlises dos documentos oficiais, como na viso dos autores citados. H, por certo, uma coerncia conceitual na incluso do PSF no quadro das polticas sociais universalistas, eqitativas e integrais, ressalvando-se que suas potencialidades ainda no se cumpriram de todo, facultando certa tenso entre o possvel e o desejvel. A resoluo dos dilemas do PSF no est confinada, certamente, aos limites formais e legalistas de uma reforma administrativa setorial, o que implica, na viso de Paim, que preciso desenvolver esforos, tanto no campo cultural como no poltico, advindo da uma reconceitualizao das necessidades de sade e a crtica das prticas sanitrias, com deslocamento da nfase nos servios para as condies de sade e seus determinantes, configurando o que este autor denomina de uma repolitizao da sade Paim (1997). O acompanhamento das discusses anteriores revela a complexidade do tema, que nos chama ao enfrentamento de desafios na operacionalizao de polticas para um sistema nacional de sade em um pas continental como o Brasil.

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2- O ESPAO DOMICILIAR E O PROGRAMA DE SADE DA FAMLIA

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A assistncia domiciliar vem demonstrando ser o desafio na fronteira dos servios de sade. Embora exista desde tempos muito remotos, este tipo de ateno sade vem sendo muito enfatizado, em especial nas duas ltimas dcadas, nos EUA, e, mais recentemente, no Brasil (Duarte & Diogo, 2000). Muitos so os fatores que tem contribudo para o desenvolvimento deste setor de assistncia sade. Alguns trabalhos apontam tal desenvolvimento a uma mudana de paradigma pela qual vem passando o sistema de sade local, no qual a nfase do cuidado volta-se aos pacientes crnicos como sendo a base de seu sistema primrio de cuidado sade, anteriormente direcionada aos cuidados agudos. Tais mudanas parecem basear-se em questes relacionadas diminuio de custos do sistema de sade e ao incremento do conforto e da privacidade oferecido pelo domiclio do cliente atendido. Historicamente, os hospitais foram criados para convenincia dos provedores de sade. Era mais simples o mdico, ou outro profissional de sade, dirigir-se a um nico lugar e ver muitos pacientes. No entanto, com o passar do tempo, pde ser observada uma fragmentao do cuidado ao cliente, permitindo que muitos profissionais e servios fizessem a interface com o paciente e no necessariamente entre si. Segundo Duarte & Dlboux (2000), o desenvolvimento da assistncia domiciliar surge em resposta a algumas demandas: - Individualizao da assistncia prestada e a conseqente diminuio das iatrogenias assistidas. - O desenvolvimento das aes cuidativas na privacidade e segurana da casa do cliente - Possibilidade de o cliente/famlia manterem maior controle sobre o processo de tomada de decises relacionadas ao cuidado sade. - Diminuio dos custos quando comparadas intervenes equivalentes entre domiclio e hospital.

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- Maior envolvimento do cliente/famlia com o planejamento e a execuo dos cuidados necessrios desenvolvidos de forma mais individualizada e, assim, com responsabilidades eqitativamente distribudas.

2.1- Histrico e elo com a enfermagem Atender doentes em domiclio uma atividade que remonta dos tempos bblicos. Cunha (1991) ao fazer uma reviso histrica, comenta que tal atividade j era citada no Velho Testamento como uma forma de prestar caridade. No Novo Testamento, verificam-se referncias aos que assistiam doentes e idosos em seus lares. A caracterstica principal deste perodo relaciona-se falta de uma metodologia assistencial, uma vez que as pessoas eram movidas por sentimentos religiosos de caridade e solidariedade aos pobres e doentes. No sculo XV, organizaes militares e ordens religiosas iniciaram o desenvolvimento de uma forma de atendimento domicilirio que muito se assemelhava a um servio regionalizado de enfermagem. Em 1610, So Francisco de Sales fundou a ordem da Virgem Maria, uma congregao feminina destinada a visitar a casa de doentes diariamente desenvolvendo atividades como alimentao, higiene e auxlio na vestimenta. Estas atividades foram encerradas por uma determinao da igreja, que passou a exigir que as mulheres religiosas fossem enclausuradas. Posteriormente, foi o Instituto das Filhas de Caridade, mais tarde denominado Irms de Caridade, por So Vicente de Paula, tendo como atividade principal a assistncia aos doentes e aos pobres em seus domiclios. Data desta poca a elaborao de um manual em que se encontra um captulo dedicado exclusivamente visita domiciliria Em meados do sculo XX iniciaram-se as tentativas de uma sistematizao metodolgica destas atividades. creditada a Sir Willian Rathbone, a criao do primeiro servio de enfermagem de sade pblica domiciliar em Liverpool, Inglaterra. Este era denominado Servio de Enfermagem Distrital e era formado por enfermeiras responsveis pelo atendimento de doentes em suas residncias (Cunha, 1991)

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Nos EUA, esta atividade comeou por volta de 1800, logo aps a Guerra Civil, com o interesse das mulheres em cuidar de seus doentes. Em 1890, existiam 21 Associaes de enfermeiras Visitadoras espalhadas pelos EUA, que se dedicavam basicamente aos grupos materno-infantil e aos tuberculosos. Em 1912, j eram trs mil as enfermeiras visitadoras, que, unindo-se a American Nurse Association (ANA), requereram o estabelecimento de padres para a assistncia de Enfermagem em Sade Pblica, incluindo o atendimento domiciliar (Cunha, 1991). No Brasil, descreve Cunha (1991), o desenvolvimento da assistncia domiciliar tambm manteve estreita relao com a enfermagem. Suas primeiras atividades so descritas no comeo deste sculo, mais especificamente em 1919, com a criao do servio de Enfermeiras Visitadoras do Rio de janeiro, voltado s reas de fisiologia e maternoinfantil. Nesta poca, o pas era assolado por vrias epidemias que chegavam a comprometer a economia, forando as autoridades a tomarem as medidas adequadas. Assim, Carlos Chagas trouxe ao Brasil enfermeiras americanas com o objetivo principal de preparar profissionais para atuarem no combate s epidemias. Esta iniciativa, culminou em 1920, com a criao do primeiro curso de formao de enfermeiras visitadoras, posteriormente transformado na Escola de Enfermagem Ana Nri. As formandas foram contratadas pelo ento Departamento Nacional de Sade Pblica, para atuarem diretamente nos domiclios na orientao s famlias. O desenvolvimento do pas em direo regio Centro-Sul, propiciou a criao, em 1942, do Servio Especializado de Sade Pblica (SESP), que se utilizou da assistncia domiciliar como estratgia para atingir os indivduos e suas famlias na comunidade em que viviam. Assim, observa-se que, em sua maioria, os servios de atendimento domiciliar no Brasil estiveram de alguma maneira, desde seu incio e por muitas dcadas, ligados rea de sade pblica, visando promoo da sade e preveno de doenas. Atualmente, neste campo especfico, tais atendimentos foram postos em segundo plano, restringindo-se s atividades relacionadas vigilncia epidemiolgica e materno infantil.

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Nos ltimos tempos, no entanto, verifica-se que um outro segmento de atividades relacionadas ao atendimento domiciliar est em franco desenvolvimento e mais, se aproxima do conceito de home care adotado nos pases considerados primeiro mundo. Ateno domiciliar definida como o servio em que s aes de sade so desenvolvidas no domiclio do paciente por uma equipe interprofissional, a partir do diagnstico da realidade em que o mesmo est inserido, assim como de seus potenciais e limitaes. Visa promoo, manuteno e/ou restaurao da sade e o desenvolvimento e adaptao de suas funes de maneira a favorecer o restabelecimento de sua independncia e a preservao de sua autonomia (Carletti e Rejani, 1996). Consideran