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INTERNACIONAL 28 Cidade Nova • Setembro 2015 • nº 9 MARTINA CAVALCANTI [email protected] Vítimas ou algozes? COMPORTAMENTO Jovens americanos expostos a uma cultura competitiva e violenta respondem cada vez mais ao bullying e ao isolamento social com tiroteios em massa. Como explicar isso? ois garotos fortemente ar- mados invadem uma escola, matam 12 estudantes e um professor, ferem outros 21 e se suicidam. Este é o resumo do fa- moso massacre de Columbine, nos Estados Unidos, em abril de 1999. O caso chocou a sociedade norte- -americana, ganhou repercussão internacional e inspirou diversas obras, como o documentário “Tiros em Columbine”, de Michael Moore, premiado com um Oscar em 2013. Infelizmente a tragédia também serviu de inspiração para outros aten- tados isolados, marcando o início de uma crescente onda de violência. An- tes de Columbine, tiroteios protago- nizados por até duas pessoas contabi- lizavam no máximo quatro vítimas e não passavam de 80 casos anuais. Depois de 16 anos da tragédia, as es- tatísticas não param de crescer. Em 2015, a média é de quase um caso por dia – foram registrados 224 tiroteios que terminaram em três ou mais mortes ou com mais de três feridos, de acordo com dados catalogados pelo site ShootingTra- cker. Até 10 de agosto, os tiroteios haviam deixado 286 vítimas fatais e 828 feridos. O número já se aproxi- ma do total de casos registrados em todo o ano de 2014. Mas, afinal, que histórias estão por trás desses números? O que leva uma pessoa a cometer um ato tão cruel? Por que situações como essas aconte- cem com tanta frequência nos Esta- dos Unidos e não em outros países? Bode expiatório Não são os “terroristas” do Orien- te Médio nem suas organizações, tão temidos e criminalizados pelo governo norte-americano, que es- tão por trás desses atos. Os protago- nistas são inimigos internos: cida- dãos americanos ou naturalizados no país. Trata-se de jovens ou adul- tos do sexo masculino, que, por ini- ciativa própria e em posse de armas, atacam em lugares públicos, como escolas, shoppings e cinemas. A difundida ideia de que somente pessoas com doenças mentais come- D Charlotte Observer | Getty Images Dylann Storm Roof, responsável pela morte de nove pessoas em ataque a uma igreja da comunidade negra em Charleston, na Carolina do Sul (EUA)

Vítimas ou algozes?

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Comportamento - Jovens americanos expostos a uma cultura competitiva e violenta respondem cada vez mais ao bullying e ao isolamento social com tiroteios em massa. Como explicar isso?

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28 Cidade Nova • Setembro 2015 • nº 9

MARTINA [email protected]

vítimas ou algozes?comPoRTamenTo Jovens americanos expostos a uma cultura competitiva e violenta respondem cada vez mais ao bullying e ao isolamento social com tiroteios em massa. Como explicar isso?

ois garotos fortemente ar-mados invadem uma escola , matam 12 estudantes e um professor, ferem outros 21 e

se suicidam. Este é o resumo do fa-moso massacre de Columbine, nos Estados Unidos, em abril de 1999. O caso chocou a sociedade norte--americana, ganhou repercussão internacional e inspirou diversas obras, como o documentário “Tiros em Columbine”, de Michael Moore, premiado com um Oscar em 2013.

Infelizmente a tragédia também serviu de inspiração para outros aten-tados isolados, marcando o início de uma crescente onda de violência. An-tes de Columbine, tiroteios protago-nizados por até duas pessoas contabi-

lizavam no máximo quatro vítimas e não passavam de 80 casos anuais. Depois de 16 anos da tragédia, as es-tatísticas não param de crescer.

Em 2015, a média é de quase um caso por dia – foram registrados 224 tiroteios que terminaram em três ou mais mortes ou com mais de três feridos, de acordo com dados catalogados pelo site ShootingTra-cker. Até 10 de agosto, os tiroteios haviam deixado 286 vítimas fatais e 828 feridos. O número já se aproxi-ma do total de casos registrados em todo o ano de 2014.

Mas, afinal, que histórias estão por trás desses números? O que leva uma pessoa a cometer um ato tão cruel? Por que situações como essas aconte-

cem com tanta frequência nos Esta-dos Unidos e não em outros países?

Bode expiatórioNão são os “terroristas” do Orien-

te Médio nem suas organizações, tão temidos e criminalizados pelo governo norte-americano, que es-tão por trás desses atos. Os protago-nistas são inimigos internos: cida-dãos americanos ou naturalizados no país. Trata-se de jovens ou adul-tos do sexo masculino, que, por ini-ciativa própria e em posse de armas, atacam em lugares públicos, como escolas, shoppings e cinemas.

A difundida ideia de que somente pessoas com doenças mentais come-

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tem esses atos é um equívoco, segun-do a antropóloga Ana Lúcia Pastore, coordenadora do Núcleo de Antro-pologia do Direito da Universidade de São Paulo (USP). “É justamente a sociedade americana, extremamente competitiva e consumista, que pro-duz esse tipo de pessoa”, afirma.

Segundo ela, a sociedade norte--americana é aparentemente demo-crática e inclusiva, mas o grau de cobrança é muito alto e há quem não aguente. “A violência é algo in-trínseco à vida social. Cada socieda-de produz certo padrão de violência e geralmente escolhe seus bodes ex-piatórios para dizer que o problema está neles e não na forma que a pró-pria sociedade se estrutura.”

A literatura científica aponta fa-tores sociais de risco para que esse tipo de atentado aconteça e, nos EUA, alguns deles são exacerbados por fatores como a alta competitivi-dade, por exemplo. “São sociedades que exigem capacidades e dotes in-dividuais, que, se você não possuir, é considerado fracassado. No contexto escolar, quando a identidade ainda está sendo construída, isso é emocio-nalmente pesado para grande parte dos meninos, que sofrem a violência da exclusão e da desmoralização”, afirma Marina Bazon, professora de psicologia da USP de Ribeirão Preto, que estuda adolescentes em situação de risco psicossocial.

Ao sentir ódio podemos fantasiar a morte de alguém e nos satisfazer com isso. No entanto, para o ado-lescente, realidade e fantasia ainda estão muito misturados, o que exi-ge uma atenção redobrada. “Quan-do a sociedade dá a possibilidade de transformar fantasia em realidade, a situação complica”, alerta Bazon.

Política das armasUma das maneiras de realizar

esse tipo de devaneio é através de

armas de fogo. “O que há de co-mum em todos os ataques são as armas”, sentencia o sociólogo Pedro Bodê, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nos Estados Unidos, não é preciso ter uma licença para obter uma arma de fogo e sua distribuição é extremamente facilitada. Elas po-dem ser compradas, inclusive, pela internet, como fizeram os protago-nistas do massacre em Columbine.

No final de julho, depois de um homem ter matado duas pessoas, ferido nove e se suicidado dentro de um cinema de Louisiana, o pre-sidente Barack Obama disse que sua maior frustração no governo foi não ter conseguido aprovar um controle de armas mais rigoroso no país.

Obama chegou a fazer uma com-paração contundente: “Se observa-rem o número de americanos mor-tos desde 11 de setembro pelo ter rorismo, são menos de cem. Se observarem o número de pessoas mortas pela violência devido às ar-mas de fogo, estão nas dezenas de milhares”, declarou o presidente.

Enquanto a maioria dos liberais democratas é favorável às restrições, os conservadores republicanos, que dominam o Congresso, são contra, o que tem travado a aprovação do projeto. O direito constitucional de proteger a propriedade privada a balas é um dos principais argumen-tos dos opositores. Segundo eles, é necessário garantir pelas próprias mãos a segurança em cidades me-nores, onde os serviços do gover-no norte-americano não chegam. É exatamente nesses municípios mais afastados que os principais ataques de lobos solitários costu- mam ocorrer.

cultura bélicaA cultura das armas nos EUA é

bastante antiga. A história começa

durante o processo de colonização, quando os americanos se armaram para conquistar a independência, na Guerra Civil de 1861-1865.

No imaginário do país figuram como heróis os grandes pistoleiros da literatura folhetinesca do século 18. Esse tipo de publicação se difun-diu bastante depois que as igrejas contribuíram para a alfabetização em massa da população norte-ame-ricana na época.

“São heróis cujas principais ca-racterísticas são a boa pontaria, ser rápido e certeiro. Depois, os te-mas de armas de fogo e de morte se intensificaram com o cinema”, afirma Marcio Scalércio, profes-sor de Relações Internacionais da PUC-Rio.

Produções norte-americanas dis-tribuídas ao redor do mundo são co-nhecidas pelas altas doses de ação e violência. Além disso, o país pro-duz e consome largamente games de armas, que funcionam como si-muladores, onde jovens são treina-dos a atirar. “A arma potencializa a propagação da violência, não há a menor dúvida. Uma política de res-trição diminui a violência na medi-da em que reduz o instrumento da violência”, defende o especialista.

Os Estados Unidos são o maior produtor de armas no mundo. A presença do lobby da indústria de armamentos no país é muito for-te, o que impediu as políticas de restrição. “As pessoas ficam falan-do de armas nucleares, mas as que mais matam no mundo há décadas são as armas leves e portáteis”, diz Scalércio.

Um dos riscos é de que o arma-mento seja usado por uma terceira pessoa contra o dono da arma. “A ideia de estar armado é estar prote-gido. Mas, segundo pesquisas, estar armado é estar vulnerável a se tor-nar vítima da própria arma”, afirma a antropóloga Ana Pastore. c

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imprevisibilidade e medoSão muitos os jovens que sofrem

psiquicamente os efeitos da cultura norte-americana, mas prever quais optarão pela atitude extrema de cometer um atentado é quase im-possível, segundo a psicóloga Ma-rina Bazon.

“São atos planejados e não im-pulsivos. Mas o planejamento se dá geralmente na intimidade da própria cabeça. Jovens isolados e em sofri-mento são muitos, que jogam games violentos também, mas quais deles vão cometer esses atos?”, indaga.

A imprevisibilidade gera um forte medo na sociedade, o que alimenta ainda mais a violência e o isolamen-to social, num círculo vicioso. “Vi-ver em uma sociedade muito violen-ta cujo mote é ‘cada um por si, Deus por todos’, é ruim porque o outro é tido como um perigo. Isso aumenta o distanciamento entre as pessoas e a competitividade”, afirma Bazon. “Os EUA vivem menos problemas de criminalidade comum, mas a ques-tão da violência entre os jovens pro-duz justamente mais meninos que estão sozinhos e sofrendo.”

Para piorar, a mídia norte-ameri-cana espetaculariza e difunde larga-mente as tragédias. “Quando a mídia divulga demais e gasta muito tempo com eventos violentos, a intensidade da exposição dos eventos gera sensa-ção de quantidade”, afirma a espe-cialista. A repetição desses eventos nos veículos de comunicação gera medo e ao mesmo tempo serve de exemplo para meninos que já sofrem com a cultura do próprio país.

Política externaCom o lema “a melhor defesa é o

ataque”, os Estados Unidos já entra-ram em diversas guerras, como no Irã, no Iraque e agora contra o Esta-do Islâmico. Segundo especialistas,

essa condução agressiva da política externa também pode influenciar alguns cidadãos americanos que optam por cometer atentados iso-lados. A insegurança nacional faz com que o medo seja um sentimen-to crônico entre os cidadãos norte--americanos, estimulando-os a bus-car uma falsa solução armamentista em sua vida particular.

“Desde 1889, na Guerra contra a Espanha, os EUA participaram de to-das as grandes guerras do mundo”, recorda Rubens Barbosa, ex-embaixa-dor do Brasil em Washington e mem-bro do Grupo de Análise da Con-juntura Internacional da USP. “Com mais de um século em guerras, cria--se uma cultura de violência com a qual a sociedade americana convive.”

Além disso, a presença america-na em conflitos internacionais tam-bém produz muitos militares que, ao retornarem ao território norte--americano, não estão preparados para o policiamento clássico e aca-bam protagonizando atos de violên-cia. “A política externa se aplica aos de fora, mas tem produzido uma espécie de efeito colateral interna-mente. Uma coisa alimenta a outra: aumenta a segurança, mas os riscos de ataques também”, lembra o so-ciólogo Bodê.

De acordo com Bazon, muitos americanos julgados como fracassa-dos por sua sociedade também aca-bam sendo recrutados por líderes da jihad, a guerra santa islâmica, para combaterem seu próprio país em nome de interesses externos.

RacismoMeio século após o fim da se-

gregação racial, o racismo conti-nua alimentando atos violentos, incluindo algumas ações de lobos solitários. No caso mais recente, um jovem branco atacou uma igreja da comunidade negra em Charleston,

na Carolina do Sul, estado com his-tórico de discriminação racial, ma-tando nove pessoas.

Ataques a igrejas afro-america-nas não são de hoje. Um dos episó-dios mais conhecidos é a morte de quatro meninas de uma igreja em Birmingham, no Alabama, em 1963, num ataque da Ku Klux Klan.

A organização já acabou, mas ain-da há centenas de grupos na inter-net que pregam a supremacia racial, um número que disparou depois de Obama ser eleito. Monitorados pela polícia norte-americana, esses gru-pos não conseguem promover atos organizados, porém ataques solitá-rios são muito difíceis de rastrear.

“Nos Estados Unidos, todos os grupos de extrema direita têm um discurso nazista e racista. O histó-rico escravocrata e racista está entre as principais vértebras da violência no país”, atesta Bodê.

Como reverter esse quadro? Além da restrição às armas, que é unani-midade entre os especialistas, outras medidas podem ser tomadas para minimizar os fatores de risco que levam a atentados. Marina Bazom destaca a necessidade de investir na prevenção. “É preciso enriquecer o cotidiano de crianças e adolescen-tes, trabalhando valores de convi-vência mais salutares, diminuir a competitividade e valorizar a cola-boração”, afirma. Segundo a psicó-loga, os adultos precisam identificar e valorar conflitos que se instalam no contexto escolar, além de detec-tar jovens mais frágeis para oferecer apoio emocional. “É difícil fazer isso descolado da cultura geral, mas no ambiente escolar podemos controlar melhor essas questões”, opina.

Ana Pastore acrescenta ainda a necessidade de uma mobilização mais ampla: “É extremamente im-portante o movimento da socieda-de civil organizada para mudar esse quadro de violência”.

MARTINA [email protected]