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RESENHAS 161 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem e Ou- tros Ensaios de Antropologia. São Pau- lo: Cosac & Naify. 552 pp. Mauro W. Barbosa de Almeida Professor, Unicamp Resenhar A Inconstância da Alma Sel- vagem é um ato que, para um não-es- pecialista no campo altamente espe- cializado da etnologia ameríndia, care- ce de justificativas. Uma delas foi a in- trigante sensação de familiaridade que os traços diagnósticos das sociedades ameríndias apresentam a um antropó- logo de não-índios da mesma floresta amazônica. Outra razão foi a atração pe- lo modo de pensar e, em particular, pe- las metáforas matemáticas de Viveiros de Castro, em que há métricas, álge- bras de Boole, fractais – termos que, co- mo se passa com a linguagem trans- cendental de Kant, também usada aliás de modo generoso no livro, são “obscu- ros mas cômodos”. Se o comentário des- ses dois pontos se provou irrealizável nos limites de uma resenha, o exercício não deixou por isso de proporcionar a oportunidade para aprender alguma antropologia. A Inconstância sintetiza e proble- matiza a hoje enorme literatura sobre a sociologia das sociedades indígenas da floresta amazônica, mas também o es- tado-da-arte da própria teoria antropo- lógica. É mais que isso, já que registra de modo acessível e revisado publica- ções do autor que tiveram uma grande influência sobre essa mesma literatura. E, ao fazê-lo, documenta o caminho que levou às importantes descobertas con- tidas nessas publicações. Balanço de um período de preparação de conceitos, que certamente têm o papel de introdu- ção a grandes obras futuras, o livro dá, contudo, um prazer intelectual e estéti- co que me trouxe a lembrança da leitu- ra de O Pensamento Selvagem há trinta anos. A comparação vai mais longe. Co- mo a obra também “preparatória” de Lévi-Strauss, essa coletânea é uma es- pécie de álbum de Études à maneira de Chopin e de Villa-Lobos, onde os ins- trumentos são desenvolvidos com má- xima imaginação temática e destreza técnica, com uma liberdade de explorar que não é dada pelas grandes formas. E afinal, a meu ver, são esses Études o melhor da obra de Chopin e de Villa- Lobos. A Inconstância, lembremos de no- vo, não é um tratado: é um livro de en- saios em movimento, que deixam à mostra o processo de descoberta. Um dos exemplos é que vemos primeiro o tema de uma pancosmologia amerín- dia emergir no fascinante estudo dos modalizadores ontológicos yawalapíti (cap. 1); observamos, então, o jogo de perspectivas instáveis no diálogo do matador e da vítima (cap. 4), antes que o conceito mesmo apareça; e as várias modalidades de alterização através do canibalismo, até que, em um salto de imaginação, alimentada pelo diálogo de professor-aluna, vemos todos esses perspectivismos particulares se unifica- rem em um perspectivismo generaliza- do, agora na forma de um programa de pesquisa cheio de entusiasmo, consci- ente da descoberta de uma solução que é, por sua vez, o ponto de partida para uma “grande teoria unificada”. Há importantes contribuições à an- tropologia em A Inconstância. Uma pri- meira são lições de um modo de pensar intrigante e inovador, exemplificado na caracterização e recursiva do dualismo (caps. 2, 8 e outros sobre a sociologia do parentesco ameríndio), bem como na formulação intencionalizante e auto-re- ferencial do perspectivismo ameríndio

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RESENHAS 161

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 2002.A Inconstância da Alma Selvagem e Ou-tros Ensaios de Antropologia. São Pau-lo: Cosac & Naify. 552 pp.

Mauro W. Barbosa de AlmeidaProfessor, Unicamp

Resenhar A Inconstância da Alma Sel-vagem é um ato que, para um não-es-pecialista no campo altamente espe-cializado da etnologia ameríndia, care-ce de justificativas. Uma delas foi a in-trigante sensação de familiaridade queos traços diagnósticos das sociedadesameríndias apresentam a um antropó-logo de não-índios da mesma florestaamazônica. Outra razão foi a atração pe-lo modo de pensar e, em particular, pe-las metáforas matemáticas de Viveirosde Castro, em que há métricas, álge-bras de Boole, fractais – termos que, co-mo se passa com a linguagem trans-cendental de Kant, também usada aliásde modo generoso no livro, são “obscu-ros mas cômodos”. Se o comentário des-ses dois pontos se provou irrealizávelnos limites de uma resenha, o exercícionão deixou por isso de proporcionar aoportunidade para aprender algumaantropologia.

A Inconstância sintetiza e proble-matiza a hoje enorme literatura sobre asociologia das sociedades indígenas dafloresta amazônica, mas também o es-tado-da-arte da própria teoria antropo-lógica. É mais que isso, já que registrade modo acessível e revisado publica-ções do autor que tiveram uma grandeinfluência sobre essa mesma literatura.E, ao fazê-lo, documenta o caminho quelevou às importantes descobertas con-tidas nessas publicações. Balanço deum período de preparação de conceitos,que certamente têm o papel de introdu-ção a grandes obras futuras, o livro dá,

contudo, um prazer intelectual e estéti-co que me trouxe a lembrança da leitu-ra de O Pensamento Selvagem há trintaanos. A comparação vai mais longe. Co-mo a obra também “preparatória” deLévi-Strauss, essa coletânea é uma es-pécie de álbum de Études à maneira deChopin e de Villa-Lobos, onde os ins-trumentos são desenvolvidos com má-xima imaginação temática e destrezatécnica, com uma liberdade de explorarque não é dada pelas grandes formas. Eafinal, a meu ver, são esses Études omelhor da obra de Chopin e de Villa-Lobos.

A Inconstância, lembremos de no-vo, não é um tratado: é um livro de en-saios em movimento, que deixam àmostra o processo de descoberta. Umdos exemplos é que vemos primeiro otema de uma pancosmologia amerín-dia emergir no fascinante estudo dosmodalizadores ontológicos yawalapíti(cap. 1); observamos, então, o jogo deperspectivas instáveis no diálogo domatador e da vítima (cap. 4), antes queo conceito mesmo apareça; e as váriasmodalidades de alterização através docanibalismo, até que, em um salto deimaginação, alimentada pelo diálogode professor-aluna, vemos todos essesperspectivismos particulares se unifica-rem em um perspectivismo generaliza-do, agora na forma de um programa depesquisa cheio de entusiasmo, consci-ente da descoberta de uma solução queé, por sua vez, o ponto de partida parauma “grande teoria unificada”.

Há importantes contribuições à an-tropologia em A Inconstância. Uma pri-meira são lições de um modo de pensarintrigante e inovador, exemplificado nacaracterização e recursiva do dualismo(caps. 2, 8 e outros sobre a sociologia doparentesco ameríndio), bem como naformulação intencionalizante e auto-re-ferencial do perspectivismo ameríndio

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(caps. 4, 7 e outros sobre a cosmologiaameríndia). Essas são lições sobre comopensar.

Em um plano mais substantivo, o li-vro contém uma teoria do parentescoameríndio (caps. 2, 8) guiada pelo con-ceito de afinidade potencial. Nela, umatensão dialética entre dualismo termi-nológico e concentricidade sociológicaleva à noção sintética de “afinidade po-tencial”, que estoura o campo da análi-se, por um lado, para o não-parentesco,ou seja, a totalidade dos fatos sociais, e,por outro, para o exterior dos grupos lo-cais, o espaço em estruturação e deses-truturação onde se conectam entre si osgrupos locais. Há ainda alguns outrosgrandes temas que recompensam a lei-tura cuidadosa, a começar por uma teo-ria da cosmologia ameríndia, apoiadaem estudos da linguagem, do canibalis-mo e do sacrifício (caps. 1, 3, 4, 9), dosquais emerge a exploração de uma al-teridade generalizada que inclui os ne-xos entre “os vivos e os mortos, os xa-mãs e os guerreiros, os homens e as mu-lheres, os concidadãos e os inimigos”,sob o ângulo geral do que se poderiachamar alusivamente de uma ontologiade modos de predação.

Em conexão íntima com essa visãoontológica emerge uma visão epistemo-lógica quase desnorteadora por sua no-vidade, que é a teoria do perspectivis-mo ameríndio. Sem procurar resumi-la,essa teoria aponta para um aspecto cru-cial da pensée sauvage, mostrando osameríndios como naturalistas que nãoapenas são taxonomistas ao estilo de Li-neu, mas também argutos defensores,como Darwin, da unidade profunda queliga plantas, animais e humanidade,embora vendo essa unidade de um ân-gulo, por assim dizer, oposto, ao traze-rem a animalidade para o domínio dahumanidade (cap. 7). E, finalmente, háum tema embutido nos anteriores, que

é a centralidade do corpo como matériado social. Este ponto, no qual, implicita-mente, Viveiros de Castro remete a To-más de Aquino e a noções da antigui-dade clássica, leva-nos a conjeturar queo corpo é a forma elementar da cultu-ra em sociedades em que predomina omodo de predação ameríndio (cf. caps.2, 3, 5, 7, 9).

Viveiros de Castro representa, en-fim, um projeto de imergir o estrutura-lismo no devir, e indica repetidamen-te que o germe disto está no própriomestre das Mitológicas, como nas bri-lhantes e célebres páginas “cromáti-cas” dessa obra. Em conversa havida hámais de uma década, Viveiros de Cas-tro aludiu ao fato de que, ao contráriodo que se pensa, a desordem é tão pre-sente em Lévi-Strauss como a ordem.Vale também fazer uma observação arespeito da presença de Marx. Parece-me que o interlocutor da antropologiado devir é a economia política antropo-lógica formulada por interpostas pes-soas, como Peter Rivière, Chris Gre-gory, Terry Turner, Nancy Munn e Ma-rilyn Strathern – sem falar em Bataille eBaudrillard.

Caberia talvez mencionar um pontoque aparece na entrevista que encerrao livro. Nela, Viveiros de Castro distin-gue uma antropologia no Brasil e umaantropologia do Brasil, evocando umasutileza terminológica usada por CarlosAlberto Ricardo. Ambas tratam das so-ciedades indígenas, mas cada qual demodo muito diferente. A primeira trata-ria da sociologia e do pensamento indí-gena internamente, tendo o Estado na-cional como horizonte externo. A se-gunda focalizaria o Estado nacional, nointerior do qual se travam a luta pelaterra e as políticas identitárias que aapóiam. Como grande parte do que fa-ço é justamente esse segundo tipo deantropologia, sinto-me à vontade para

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sugerir que se trata aqui de disciplinasdiferentes, e talvez até complementares.Por que complementares? A pesquisaantropológica apoiada no método dosquatro campos e na grande tradição dopensamento teórico contribuirá a longoprazo tanto para a auto-imagem brasi-leira permeada pela pluralidade, comopara registrar e dignificar o patrimô-nio mitológico, lingüístico, arqueológi-co e sociológico sem o qual toda políticaidentitária corre o risco de se ver contes-tada e deslegitimada na arena evanes-cente em que toda tradição é “inven-ção” e toda comunidade é “imaginada”.Os Estados nacionais assim se constituí-ram, não apenas em processos políticosde unificação e autonomia territorial,mas também mediante a acumulaçãooriginária de conhecimentos sobre lín-gua, mitos, costumes, os quais consti-tuem a constância da alma nacional.

Finalmente, há um traço geral nolivro, à primeira vista estilístico, que éo esforço de originalidade de constru-tos teóricos, as comparações extremas,os saltos rumo a novas idéias que sur-preendem. Há mais que estilo nisso.Pois tudo é parte integrante do que Vi-veiros de Castro chama de “luta contraos automatismos intelectuais de nos-sa tradição”, por meio de um forcingda imaginação em busca de modelosfora do padrão. O que Viveiros de Cas-tro chama de imaginação é o compo-nente não canônico do pensamento, si-nônimo da capacidade de desconstruirmodelos dados e de conjeturar modelosnovos. A esse procedimento, Peirce cha-mou de abdução, e ainda – guess. Sãoidéias que nem a indução nem a dedu-ção justificam, e que apontam para umamodalidade do pensamento humanoque é irredutível a qualquer cânone, jáque se o fosse não poderia haver des-truição e reconstrução de cânones (co-mo ensina o filósofo Newton da Costa).

Mas Viveiros de Castro não é des-construcionista, e menos ainda um pós-modernista. O pensamento de A In-constância, com sua fervilhante imagi-nação anticanônica, está firmementeancorado no profundo e completo do-mínio dos cânones da disciplina, de talforma que a crítica e a conjetura não sãonunca o fim, nem levam à autocompla-cência com a falta de rigor, mas são oque Lévi-Strauss chamou (no Pensa-mento Selvagem) de componente dia-lético da razão – a arte de transpor abis-mos entre cânones analíticos. Esse com-ponente da razão vai então junto com ooutro, que é analítico e sintético (dialé-tica não é o mesmo que síntese), e queconstrói paradigmas que balizam então,como disciplina, a colocação de novosproblemas e de novos rumos para a pes-quisa empírica. É o papel de verdadei-ros mestres.