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Ricardo Roclaw Basbaum Você gostaria de participar de uma experiência artística? (+ NBP) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais, Linha de Pesquisa Processos de Criação em Artes Visuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Martin Grossmann. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo São Paulo 2008 VOLUME 1

você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

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tese de doutorado, arte experimental ,arte conceitual, teoria de artista

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Ricardo Roclaw Basbaum

Você gostaria de participar de uma experiência artística? (+ NBP)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais, Linha de Pesquisa Processos de Criação em Artes Visuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Martin Grossmann.

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo São Paulo 2008

VOLUME 1

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Ricardo Roclaw Basbaum

Você gostaria de participar de uma experiência artística? (+ NBP)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais, Linha de Pesquisa Processos de Criação em Artes Visuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Martin Grossmann. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo São Paulo 2008 VOLUME 1

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________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________

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“invento o que quero

que venha a se fixar

nas estranhas entranhas externas extremas

de êxtase e exercício

que me formam em descontínuo”

Filix Jair, cantor e compositor

para Dani, amor & aventuras

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Resumo

Nesta Tese, elaboro uma investigação acerca de meu projeto de trabalho Você

gostaria de participar de uma experiência artística?, em desenvolvimento desde

1994. Trata-se de um projeto que envolve aspectos de participação do espectador,

escultura e instalação, assim como uma abordagem do circuito de arte. A pesquisa

se desenvolve em duas etapas complementares: em um primeiro momento, é

elaborada a noção de Künstlertheorie ou Teoria de Artista, como procedimento de

trabalho que envolve ao mesmo tempo a produção de textos e de obras de arte,

articulando teoria e prática a partir de um sistema de revezamentos plástico-

discursivos; em um segundo momento, procura-se desenvolver o que seria a teoria

do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, com a utilização

da chamada escrita de artista na elaboração de uma nova narrativa, que incorpora

diversos escritos já existentes – articulando, deste modo, formas visuais e

discursivas. Como resultado, é produzido um texto que ao mesmo tempo que se

inscreve como teoria de artista (Künstlertheorie), indaga acerca da possibilidade de

funcionar enquanto obra de arte.

Palavras-chave: 1. arte contemporânea

2. práticas participativas

3. artista como agente cultural

4. escultura

5. teoria de artista

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Abstract

On this Thesis, I elaborate an investigation about Would you like to participate in an

artistic experience?, a project of mine under development since 1994. This project

involves aspects of participatory practices, issues on sculpture and installation, and

an approach towards the art circuit. The research is developed in two complementary

parts: firstly, the notion of Künstlertheorie or artist’s theory is established, as an

working procedure that involves at the same time the production of texts and

artworks, articulating theory and practice from the standard of a plastic-discursive

rotation system; secondly, it is elaborated what might be considered the theory of the

Would you like to participate in an artistic experience? project, with the use of the so-

called artist’s writing. A new narrative is brought forward, with the use of several

preexisting writings, articulating visual and discursive forms. As a result, a text is

produced, one that is inscribed as artist’s theory (Künstlertheorie); at the same time,

it inquires about the possibilities of its functioning as a work of art.

Key-words:

1. contemporary art

2. participatory practices

3. artist as cultural agent

4. sculpture

5. artist’s theory

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Sumário

Volume I Resumo ........................................................................................................ 4

Abstract ........................................................................................................ 5

Agradecimentos ........................................................................................... 7

Advertência .................................................................................................. 8

A: Künstlertheorie, Sistemas de revezamento plástico-discursivos ............. 15

B: 5 diagramas, extração conceitual ............................................................ 57

C: 8 blocos, escrita retro-prospectiva ...........................................................82

D: qual o lugar deste texto? ......................................................................... 206

Bibliografia ................................................................................................... 212

Volume II Anexos Você gostaria de participar de uma experiência artística? .......................... 5

Textos .......................................................................................................... 14

Imagens ....................................................................................................... 79

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Agradecimentos

Agradeço ao Prof. Martin Grossmann pelas conversas constantes e pelo generoso

apoio durante todo o proceso de orientação. A todos os amigos que apoiaram a

escrita desta tese, meu agradecimento – especialmente a Eduardo Coimbra, Simone

Michelin e Cecília Cotrim, que me auxiliaram com o generoso empréstimo de livros e

textos para pesquisa. Agradeço aos colegas do Instituto de Artes da UERJ, em

especial aos Professores Maria Lúcia Galvão e Roberto Condurú – mas também aos

professores do Departamento de Teoria e História da Arte –, pelo suporte durante o

período de realização do Doutorado. Sem a Licença Procad (Programa de

Capacitação Docente) teria sido impossível concluir este trabalho. Aos meus pais,

Hersch e Natacha Basbaum, pelo apoio e carinho constantes. Sérgio Basbaum foi

um interlocutor e incentivador em todos os momentos e agradeço pelo ótimo e

permanente diálogo. Por fim, sem o carinho e a presença especial de Daniela

Mattos, certamente teria sido muito mais difícil finalizar este trabalho.

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Advertência

I – Atenção aos dois os textos abaixo:

a) o que é

NBP ?

é uma sigla, formada por três letras,

uma espécie de motivação geral ou pretexto

de trabalho (quase um programa para ações),

um meio para impregnação do espaço.

Quase um lugar-comum atópico.

NBP

impregna e contamina.

NBP

desenvolve-se através de três idéias-vetores principais:

1 imaterialidade do corpo A matéria orgânica dissolve-se nos ritmos tecnológicos, na velocidade.

Corpos que podem ocupar muitos lugares no espaço ao mesmo tempo.

Temporalidades que impulsionam espaços; espaços que configuram-se

no tempo: continuidades e descontinuidades.

Nossos corpos transitando através destas oscilações.

2 materialidade do pensamento O pensamento como algo que pode ser lançado, moldado, construído,

acumulado, recolhido, contraído, expandido, amassado, jogado,

corroído, revelado, ampliado, amplificado, estilhaçado, dissolvido, etc.

O pensamento envolve as coisas – entre elas existe a atmosfera,

com Oxigênio, Nitrogênio, Gás Carbônico, Enxofre, Chumbo, Alumínio,

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mas também partículas de pensamento. Estas partículas desprendem-se

de nossos corpos-cérebros em fluxos além de nosso controle, aderindo

aos objetos ou a outros pensamentos. Possuem campos gravitacionais

e magnéticos potentes, que distorcem e alteram imagens –

todas as imagens das coisas. O pensamento é, portanto,

essencialmente carregado de potencialidade plástica.

3 logos instantâneo É o conhecimento visual: arrebatador, súbito, envolvente, imediato,

instantâneo. Queremos nos instalar, pretensiosamente, dentro deste

intervalo mínimo, no interior da instantaneidade – melhor dizer ao

lado, mas do lado de dentro. Não como testemunhas, simples testemunhas

oculistas, mas como estratégia para a geração de outros processos,

múltiplos e variados, a partir deste lapso:

o intervalo de tempo entre meio emissor (Me - mensagem emitida)

e meio receptor (Mr - mensagem recebida):

∆t Mr - Me → Zero

NBP

é um programa para súbitas mudanças.

Quais? Como? Quando? Deixe-se contaminar:

elas serão fruto de seu próprio esforço.

NBP Novas Bases para a Personalidade1

[1990]

1 Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”. Apresentado em performance no evento CEP 20000 (Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 1990). Publicado no folder de exposição individual na mesma instituição, em fevereiro de 1993. Este texto também integra alguns objetos da série NBP.

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b)

VOCÊ (indivíduo, grupo, coletivo) gostaria de participar de uma experiência

artística?

aceitaria levar para casa o objeto mostrado nesta fotografia?

Isto é parte do projeto NBP - Novas Bases para a Personalidade

que envolve idéias de participação e transformação

uma investigação acerca do envolvimento do outro como participante em um

conjunto de protocolos indicativos dos efeitos, condições e possibilidades da

arte contemporânea.

Você está convidado(a) a colaborar com

Você gostaria de participar de uma experiência artística?

Basta aceitar utilizar, por um certo período, o objeto mostrado acima, para a

realização de experiências. Ele pode ser usado de diferentes modos e você

pode fazer qualquer coisa com ele: use-o como quiser, da maneira que achar

melhor. O objeto carrega alguns conceitos e eu gostaria que você também os

utilizasse. Apesar de invisíveis, eles são manipuláveis através do uso do

objeto. As experiências que você realizar tornam visíveis redes e estruturas

de mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados

sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a

partir de sua utilização, são mais importantes que o objeto.

Você documentará as experiências através de texto, fotografia, vídeo, som,

objeto, etc., da maneira que achar mais adequada. Envie e edite os registros

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diretamente em http://www.nbp.pro.br. Suas experiências, junto daquelas

realizadas por todos os participantes, estarão disponíveis ao público.

O objeto utilizado em Você gostaria de participar de uma experiência

artística? tem sua forma estabelecida de acordo com a forma específica NBP,

desenhada para ser facilmente memorizável: Ao experienciar qualquer

trabalho da série NBP, você, ela ou ele saem com NBP e sua forma

específica em seu corpo – uma modalidade de memória implantada ou

artificial, como resultado de uma estratégia de contaminação sensorial

subliminar.

NBP é um projeto em desenvolvimento contínuo, iniciado em 1990, que

conecta estratégias comunicacionais, arte contemporânea e perspectivas

discursivas transdisciplinares.

NBP engloba a produção de imagens e conceitos, com opropósito de

envolvê-lo em um processo artístico. NBP e sua forma específica são

incorporados através da repetição e interação.

* você hibridiza com o objeto de arte

* você ativa os conceitos, produzindo outros, mais novos

Participando ativamente de uma experiência artística você pode transformar-se. NBP e sua forma específica querem conduzi-lo para um outro tipo de

espaço, aquele que é produzido através do movimento.

Obrigado pela sua colaboração.2

[1994-2008]

2 Ricardo Basbaum. “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”. Versão inicial (1994) publicada no folheto "Would you like to participate in an artistic experience?", que integrava a instalação homônima apresentada no MA Degree Show, Goldsmiths' College, Londres, em setembro de 1994. Apresentado, em português, na exposição "Escultura Carioca", Paço Imperial, Rio de Janeiro, em novembro do mesmo ano. O texto acima mostra a versão mais atual, recentemente distribuída na exposição Quase Líquido (Itaú Cultural, São Paulo, 2008), onde a instalação “Você gostaria de particip[ar de uma experiência artística?” foi exposta.

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II - Nas páginas seguintes, serão mobilizados os projetos NBP - Novas Bases para a

Personalidade (iniciado em 1989/90), e Você gostaria de participar de uma

experiência artística? (iniciado em 1994), indicando seu entrelaçamento – sendo que

o segundo se desenvolve no âmbito do primeiro, como um de seus principais casos.

III - Sendo dados:

NBP – Novas Bases para a Personalidade

A sigla NBP é combinada à sua forma específica, permitindo o

desenvolvimento de propostas com a utilização de meios variados, tais como

desenhos, instalações, vídeos, objetos, textos, diagramas, etc. Há nesta

proposição o interesse em aproximar arte contemporânea e campo

comunicativo. Inicialmente, a combinação sigla + forma específica visava

obter veloz memorização, de modo que qualquer espectador, após

experienciar os trabalhos, partisse com NBP e sua forma específica

circulando pelo corpo, a partir de estratégias de contaminação e contato.

Pouco a pouco, o projeto ganha complexidade e novos elementos plásticos e

conceituais vão sendo desdobrados. O projeto NBP desenvolve-se a partir de

diversas séries de trabalhos interligadas, sempre constituindo a poética de

cada intervenção através de construções que se dão visual e

conceitualmente.

e

Você gostaria de participar de uma experiência artística?

O objeto em ferro pintado, construído a partir da forma específica NBP,

oferecido para ser utilizado por qualquer interessado em desenvolver com ele

uma experiência artística, lançou-se em seu percurso sem retorno. Produz-se

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memória do corpo, documentação e arquivo. Concebido como múltiplo em

tiragem aberta – logo, sem original – permite a existência de diversos objetos

circulando ao mesmo tempo, em diferentes locais. Propõe-se que a

experiência realizada seja transformadora tanto para o participante como para

o artista e o próprio projeto.

IV - O que se quer é abrir à apreensão sensível uma modalidade particular de

intercruzamento entre texto e obra de arte, trazida aqui como o fio principal do

argumento.

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A

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A: Künstlertheorie, Sistemas de revezamento plástico-discursivos

Esta Tese de Doutorado se desdobra a partir do projeto de trabalho Você

gostaria de participar de uma experiência artística?, em desenvolvimento desde

1994. Partindo de alguns elementos específicos – sobretudo a série de diagramas

que desde o início integra o projeto –, operou-se uma extração de conceitos para,

em seguida, desenvolvê-los em exercício discursivo. Como resultado, foram

produzidos oito blocos de textos de dimensões e modos de escrita variáveis,

podendo ser lidos em qualquer seqüência – mas que em conjunto constituem um

agregado discursivo de temas, comentários, tópicos significativos e operadores

conceituais que permeiam Você gostaria de participar de uma experiência artística?

e, por extensão, o projeto NBP – Novas Bases para a Personalidade, do qual o

primeiro deriva.3

* * *

Desde já se destacam problemas, que devem ser prontamente trazidos à

superfície, relacionados à presença de material discursivo junto à obra de arte – uma

vez que se trata de articulação básica que perpassa todo o corpo da Tese: ou seja,

está aqui em jogo a determinação de uma relação produtiva entre este hipertrofiado4

conjunto de textos e a configuração e funcionamento da obra (seja em sua

consistência interna, nas relações que estabelece com o espectador ou em seu

trânsito junto a um circuito e suas dimensões públicas e políticas). Sabe-se que o

estabelecimento de um contato produtivo entre texto e obra de arte é elemento-

chave de um pensamento contemporâneo em arte, que deve saber extrair daí um

jogo relacional produtivo; talvez seja mesmo este um dos principais terrenos para se

aferir uma condição contemporânea da obra de arte e sua atuação: afinal, a

presença da chamada condição conceitual para a obra de arte contemporânea (e

são muitos os debates em torno da questão) se tornou premente com o definitivo

3 Para uma descrição imediata de Você gostaria de participar de uma experiência artística?, V. Anexo Textos. 4 No sentido de que a Tese atende especificamente a uma demanda da esfera acadêmica, definindo sua forma final a partir de tal exigência.

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reconhecimento da influência de Marcel Duchamp e sua prática (insistentemente

negada somente por aqueles agentes apegados à possibilidade de uma pureza

sensorial autônoma e isolada) e com as mutações comunicacionais e tecnológicas

do final do Século XX (a tecno-sociedade globalizada do espetáculo, das redes e do

capitalismo cognitivo ou cultural). As transformações do jogo da arte em seu campo

contemporâneo impõem que se perceba, em um único fluxo, a obra – em sua

conceituação e materialidade plástica – e seus dispositivos de circulação e produção

de efeitos, articulados de forma indissociada no evento e em sua efetivação. Que

fique claro, logo, que esta condição conceitual não indica de modo algum qualquer

redução sensorial ou diminuição da superfície sensível dos trabalhos: como seria

isso possível, se a obra de arte é decididamente um dispositivo singular

experimental – de modo direto, um poema – depurado ao longo dos séculos

(dinâmica em aberto), orientado diretamente para o jogo sensorial? Não há

incompatibilidade ou exclusão entre sensação e conceito, mas heterogeneidade e

pressuposição recíproca, cujo encontro cuidadosamente construído os impregna de

especial potencialidade.5 Assim, em todos os seus desdobramentos, esta Tese

estará procurando contabilizar alguma presença como obra em sua efetiva condição

de agregado plástico-conceitual, atravessada por um campo discursivo.

Os cuidados e problemas que devem ser prontamente indicados advém da

necessidade de desviar-se das tentativas de simplificar tal condição, reduzindo a

dimensão conceitual a modalidades menos complexas – e menos produtivas –

dentre as possíveis relações entre texto e obra de arte. Por isso é preciso alertar que

o hiper-desenvolvimento aqui apresentado não visa (a) desdobrar-se como

explicação da obra; não pretende (b) limitar-se a uma minuciosa descrição dos

trabalhos plásticos; não deseja (c) constituir um discurso crítico privilegiado acerca

da obra; se há algum campo mais afim a esta aventura, este seria aquele de uma (d)

teoria da arte e (e) do texto como obra de arte:

5 Se Deleuze e Guattari têm a obra de arte como “bloco de sensações (...) composto de perceptos e afetos”, “ser de sensação”, e o artista como “mostrador de afetos, inventor de afetos, criador de afetos”, lembram também que “a sensação não é menos cérebro que o conceito”, e que pensar é também “pensar (…) por sensações”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, São Paulo, Editora 34, 2004, pp. 213, 253, 271.

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(a) reside no próprio sentido etimológico do verbo ‘explicar’ a noção de “abrir,

desenvolver, desdobrar, desembaraçar, desenredar, acabar, concluir, esclarecer,

expor”6 – indicando o gesto da escrita se perfazendo enquanto operação

‘descomplicante’, com o objetivo de conquistar um certo horizonte simplificador da

obra de arte. Esta escrita toma a obra como algo de materialidade complicada – o

que é certo: efetivamente, sua produção (e de resto, de qualquer artefato do

engenho humano, com investimento energético e intelectual) resulta de reviramentos

(sensíveis, conceituais) de uma matéria qualquer, produzindo outra coisa a partir de

tal gesto. Mas seria tarefa do discurso simplesmente desfazer tais nós, de modo a

produzir uma paisagem mais quieta, menos enrolada sobre si própria, cujo sentido

possa a ser esclarecido na linearidade da sintaxe? Desmontar os problemas

propostos pela obra, substituindo-os pelo encadeamento das palavras em frases que

pretendem tomar o seu lugar – evitando assim que tais problemas encontrem o

necessário tempo de contato com o corpo do sujeito fruidor através do jogo sensível

– não parece razoável e interessante, a menos que se tenha como tarefa desviar a

atenção do trabalho de arte para as páginas do discurso. A explicação bem sucedida

requereria um uso da linguagem enquanto representação do signo plástico, tomando

como de bom tom concluí-lo afinal: a partir de tal momento e de tal texto, já teríamos

a obra de arte desenredada (ou seja, sem as múltiplas conexões que apontam para

tantas direções ao mesmo tempo), já exposta e tranqüila – e então não seria mais

necessário exibi-la em sua concreta materialidade. Este didatismo é sempre um

risco latente, devendo ser prontamente evitado. Quantas milhares de linhas são

produzidas, nos canais institucionais e de comunicação, que, sob o pretexto de se

criar mediações para o encontro com um suposto público, evitam o tensionamento

dos interessados no contato direto com obra – e ao invés disso substituem-na por

uma experiência estéril de leitura? Logo, o investimento discursivo desta Tese não

pode ser o de se colocar enquanto explicação de um projeto de trabalho plástico-

conceitual; as páginas que se seguem antes complicam – no sentido de que abrem

frestas e somam problemas, sem concluí-los ou resolvê-los.

6 Sentidos derivados do latim explico, as, avi, atum ou explicitum, are. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.

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(b) de modo semelhante, não há qualquer interesse em desenvolver páginas que se

limitem apenas à descrição de obras que possuem um funcionamento efetivo, em

direto contato com sujeitos participantes, público, crítica, circuito, etc. Há

importância, certamente, na elaboração de relatos minuciosos, acurados, que

indiquem a relevância de detalhes, que apontem elementos da construção dos

trabalhos – sobretudo, como ferramenta para que se tome consciência das

limitações do meio escrito, indicando ao leitor estar diante de seqüências de

palavras e frases, guia indicativo de algo que não pode estar presente nas páginas

de texto: as obras. Na experiência da leitura de escritos que reivindicam algum

funcionamento em contato direto com os limites do campo da arte, quase sempre é

necessário evocar a materialidade da obra e aspectos da experiência sensível. Mas

seria muito pouco desenvolver apenas um memorial descritivo e abrir mão de outras

possibilidades mais potentes de posicionamento do texto junto às obras, que

produzam enfim um mútuo atravessamento, interessante. Apenas no sentido de

evocar em detalhes algo não presente à experiência direta, utilizaremos a escrita

descritiva – será fundamental construir o relato do que permeia a Tese mas não está

materialmente aqui.

(c) a possibilidade de desenvolvimento de um discurso crítico seria uma das mais

interessantes de ser obtida, quanto à relação produtiva entre texto e obra de arte.

Sabemos que a crítica pressupõe, ao mesmo tempo, tanto a constituição de um

espaço de distanciamento como a construção de uma proximidade entre a

materialidade do discurso e a presença efetiva da obra: segundo Omar Calabrese,

este seria o campo de elaboração de um discurso “descritivo, interpretativo e

valorativo das obras”7 – estão presentes aí, lado a lado, segundo este autor, tanto as

determinantes da elaboração de uma operação de criação discursiva, nos termos

baudelairianos de “uma luta subjetiva das idéias e fé no caráter demiúrgico do

trabalho do crítico (que, nesse caso, seria tão ‘criador’ como o artista)”, quanto à

tarefa de conscientização da materialidade da linguagem enquanto “prática

lingüística”, onde a palavra, como propõe Benedetto Croce, sabendo-se impotente

na tradução da experiência plástica e sensível do contato direto com a obra, já de 7 Omar Calabrese, “A linguagem da crítica de arte”, in Como se lê uma obra de arte, Lisboa, Edições 70, 1993, p.13.

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antemão se inscreveria como sua traição.8 Afirmando sua presença na delicada

operação de agenciar a produção de um sujeito discursivo a partir do embate corpo

a corpo com a matéria sensível da obra plástica (incluindo evidentemente sua

dimensão conceitual), em que há efetiva produção de valor (no sentido de uma

articulação com as forças e fluxos não-subjetivos da existência9), a materialidade do

texto crítico se perfaz enquanto invenção e intervenção autônomas, mas

continuamente conectadas à obra a qual se relacionam (ligação que permite, enfim,

que sempre se retorne à obra, facultando tanto a elaboração de novos textos quanto

sua releitura atualizada). É importante que se relembre, sempre, que muitos dos

principais desenvolvimentos da arte moderna se processaram através de uma

modalidade particular de aliança entre artistas e críticos, em que estes últimos

agiram no papel de críticos militantes: segundo Giulio Carlo Argan, este personagem

“aproxima-se e freqüentemente associa-se aos artistas, faz parte dos seus

grupos, participa da sua ‘política’, colabora na definição dos programas e na

elaboração dos manifestos, inicia e conduz polêmicas; e, enquanto ajuda os

artistas a esclarecer e enunciar suas poéticas, incita-os a levar a sua

pesquisa até ao máximo nível intelectual.”10

Ou seja, é possível afirmar que a construção da presença de muitas das principais

obras e correntes modernas se dá a partir deste duplo trabalho, que inclui a

elaboração da obra de arte e o desenvolvimento paralelo de sua inscrição crítico-

discursiva. Tal aspecto aponta para um momento privilegiado do campo da crítica de

arte – quando se percebe as muitas operações em que se buscou minuciosamente a

elaboração de um texto de invenção que tivesse a mesma carga de intervenção

poética das manobras plásticas em jogo.11 Ao mesmo tempo, ao se atentar para as

8 O. Calabrese, op.cit., p. 12. 9 Cf. Gilles Deleuze, “Para dar um fim ao juízo”, in Crítica e clínica, São Paulo, Editora 34, 1997, pp. 143-153. 10 Giulio Carlo Argan, “A crítica militante”, in Arte e crítica de arte, Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p. 138. 11 Para a arte brasileira, dois exemplos se impõem de imediato: Ferreira Gullar e sua atuação junto ao Neoconcretismo, sintetizada em Etapas da arte contemporânea – do cubismo à arte neoconcreta, Rio de Janeiro, Revan, 1998; Ronaldo Brito e sua atuação junto a o grupo de artistas emergentes nos anos 1970, tais como Waltércio Caldas, Tunga, Cildo Meireles e José Resende – Cf. Waltércio Caldas. Aparelhos, texto de Ronaldo Brito, Rio de Janeiro, GB Editora de Arte, 1979.

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condições de produção e funcionamento da obra de arte contemporânea, vê-se

como este campo discursivo foi sendo progressivamente concebido como

ferramenta de atuação do artista pós-duchampiano, implicado diretamente em suas

condições e elementos de trabalho.12

Logo, se este texto quer se constituir de alguma forma como obra, confiando

em um duplo desenvolvimento plástico-conceitual e posicionando-se materialmente

ao lado das formas e forças em jogo, é porque, de alguma maneira, aprendeu a se

constituir a partir das articulações do jogo crítico-discursivo apontadas acima,

desdobrando-as. É preciso deixar claro, entretanto, que a qualquer autor não

interessa ocupar de modo sumário a posição de crítico-de-si-mesmo: a obra busca

sempre relações de alteridade, e nesse sentido envolve-se em mecanismos de

produção de um outro enquanto ‘espectador’ idealizado e ao mesmo tempo real –

mas nunca pronto, fixo, espécie de alvo ao qual toda obra de arte deveria tender (a

opção generalista seria, é claro, uma operação desempenhada pelo mercado,

visando normalizar um contingente social de consumidores estáveis, garantindo

constante margem de lucro) –, espectador que, em seu papel ativo, também irá

operar certa constituição da obra, atualizando-a. O crítico de arte, enquanto especial

espectador convertido em autor, agente de uma inscrição poética com a qual

colabora diretamente (como vimos acima), funciona assim, de modo decisivo, dentro

das relações de alteridade da obra. Nesse trânsito de alteridades, que fundamenta o

discurso crítico, restaria então ao artista deixar-se permear pelo que Maurice

Blanchot chama de uma “relação de terceiro tipo”, em que “a presença do outro não

nos remeteria nem a nós-mesmos, nem ao Uno” (no sentido de “reduzir o Outro à

verdade do Sujeito”)13: ou seja, envolver as qualidades relacionais da “estranheza”,

“interrupção”, “puro intervalo” e “exterioridade” como deflagradores da produção

desta fala do outro, da constituição de outrem: “quando Outrem me fala, ele não me

fala como eu”, “a relação de outrem a mim não é uma relação de sujeito a sujeito”14.

12 Desenvolvi este tópico em minha dissertação de mestrado, publicada sob o título de Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, sobretudo no capítulo “Migração das palavras para a imagem”, pp.23-41. 13 Maurice Blanchot, “A relação de terceiro tipo”, in A conversa infinita, São Paulo, Escuta, 2001, pp. 119-120. 14 M. Blanchot, op.cit., 122-124.

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É interessante notar que, para Blanchot, “é a experiência da linguagem, a escrita,

que nos leva a pressentir uma relação inteiramente diferente, relação de terceiro

tipo” – logo, a permeabilidade da escrita de arte, ao admitir ser constituída pelo

discurso da crítica, em sua criação/traição, invenção e materialidade discursiva

paralela à obra, aponta para a constituição de um “espaço-tempo inter-relacional”

em que a “relação de um ao outro é duplamente dissimétrica” (expressões de

Blanchot)15. É aí que o texto desta Tese poderia enfim se mover, escapando do

posicionamento do texto de crítica de arte, mas permeado por ela.

(d) o lugar de uma teoria da arte seria talvez um pouco mais apropriado para este

texto, uma vez que então se preocuparia em apresentar desdobramentos próprios –

com a intensidade e pragmatismo de uma Tese – ali mesmo, naquele território

híbrido descortinado pela arte moderna, “fundada, exatamente, a partir da

possibilidade de encontro de objetos que se pretendem pura e completamente

visíveis com um campo enunciativo que, adequadamente, posiciona-se junto destes

objetos, atravessando-os.”16 Pois é a partir do Romantismo, com sua quebra de

referências em relação ao classicismo e a acentuação das etapas para o

delineamento de uma autonomia da arte, que “as teorias da arte por artistas primeiro

apareceram”17. De acordo com Michael Lingner, existe uma particularidade na teoria

da arte por artistas – anotada por ele como Künstlertheorie, e adotada aqui como

teoria de artista, numa possível tradução – que deve ser percebida em seus

aspectos de “continuidade e referência histórica” e transformada em “objeto de

pesquisa analítico-científica, para estudo detalhado de suas formas individuais”,

dentro do campo de uma teoria da arte.18 Lembrando que “o fenômeno das teorias

de artista em sua forma moderna se desenvolveu e, de várias maneiras, formatou o

trabalho de muitos dos mais importantes artistas modernos e de vanguarda”, o autor

15 M. Blanchot, op.cit., 128-130. 16 R. Basbaum, op.cit., p.26. 17 Michael Lingner, “Reflections on / as Artists' Theories“, disponível em http://ask23.hfbk-hamburg.de/draft/archiv/ml_publikationen/kt06-3ae.html. Lingner é escritor e artista alemão, professor de Teoria e História da Arte da Hochschule für bildende Künste Hamburg, onde desenvolve cursos, seminários e pesquisas com particular ênfase nos aspectos metodológicos e pragmáticos da teoria da arte de artista e relações entre arte e teoria, discutindo a “escrita como obra” e a “teoria como prática manual”. 18 M. Lingner, op.cit.. As citações subseqüentes, salvo quando mencionado, provêm do mesmo ensaio.

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22

– ressaltando o alerta de Theodor Adorno de que os processos de “autonomia

estética” caminharam lado a lado com uma “racionalização estética”, em reforço

mútuo, sendo então necessário driblar as tiranias e totalitarismos reducionistas

próprios de um racionalismo – refere-se a elas como “pré-condição implícita ou

explícita da prática artística”, tendo se tornado “um fator essencial de produção” para

aqueles artistas. É interessante perceber que ao alinhar o que considera os

aspectos gerais das teorias de artista, Lingner indica desde logo que a prática

artística moderna jamais poderá ser compreendida sem que se leve em conta

algumas das camadas discursivas que articulam as conquistas materiais, plásticas e

formais das obras: haveria sempre (e aqui o advérbio desempenha papel

fundamental, pois mesmo que determinado artista não enuncie de modo explícito

seus conceitos, eles estarão ali, latentes, pulsando através da obra19) a

possibilidade de se “inferir a concepção de arte inerente ao trabalho” – daí a

presença da teoria de artista configurando-se como “fator decisivo para a

produtividade artística”. O cuidado a ser tomado seria não apressar o acesso à obra

plástica como derivação de uma análise do corpo teórico-discursivo que se fez

presente: tanto “uma possível concordância entre a teoria de artista e o(s)

trabalho(s) não deve ser necessariamente tomada como signo de qualidade – nem

para o trabalho, nem para a teoria”, quanto “seria um erro pensar que a qualidade da

arte poderia ser provada por este discurso diferenciado”. Ou seja, fundamental é

estar atento às relações a serem estabelecidas entre obra de arte e teoria – ou,

como estamos propondo, obra e campo discursivo – a fim de se perceber como

ambos os campos são mobilizados neste esforço de se constituir uma dupla

intervenção, própria das possibilidades e potencialidades das formas de ação

características da arte moderna e contemporânea.

Em uma rápida tentativa de observar a presença e funcionalidade da teoria de

artista na obra de três artistas inscritos em momentos históricos diversos – e assim

trazer para o primeiro plano algo da dimensão operativa da teoria na produção da

19 Entretanto, é claro que o esforço de um artista por explicitar conceitualmente a(s) teoria(s) que continuamente tece e desfia em conjunto com sua obra deverá necessariamente construir uma diferença, sobretudo nos termos de uma tomada de posição em relação a um circuito ou sistema de arte e a abertura de negociações quanto à configuração de uma imagem de artista – como veremos adiante.

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23

obra –, Michael Lingner destaca como exemplares as dinâmicas estabelecidas pelo

pintor romântico Phillip Otto Runge (1777-1810), pelo precursor da vanguarda alemã

e professor de Oskar Schlemmer e Johannes Itten, o artista Adolf Hölzel (1853-

1934), e pelo pioneiro norte-americano da arte conceitual Joseph Kosuth (1945). Em

cada um destes casos, busca as particularidades da inscrição da Künstlertheorie

como produção e processo, ou seja, elemento não separado da obra plástica mas

que desenvolve junto a ela papel de constituí-la e potencializá-la – assim, Lingner

acredita poder examinar esta relação no momento inicial da constituição de uma

autonomia da arte (tomando Runge, “um dos dois maiores pintores do primeiro

Romantismo alemão”, junto com Caspar David Friedrich20); no período de formação

da moderna vanguarda alemã (enfatizando o papel de Hölzel); e no que considera

“última forma de arte que estabelece continuidade ao desenvolvimento histórico da

arte de vanguarda do Século XX”21, a arte Conceitual (a partir daquele que, desde o

início, se preocupou em delinear os limites desta outra forma de atuação, Kosuth). A

partir destes três casos, estabelece, respectivamente, a presença da teoria de artista

como função constitutiva, função integrativa e função performativa – trata-se de

procurar formular de modo mais apurado a função do desenvolvimento e elaboração

do campo discursivo enquanto construção de pensamento que não se propõe a

constituir um mero apêndice secundário à obra plástica, mas sim atravessá-la

permeá-la em sua materialidade textual, campo sensível e superfície

potencializadora; ou seja, na elaboração de uma obra que não pode mais ser

reduzida ao objeto de arte e que reivindica a presença paralela, imediata e

permanente do trabalho incessante de produção discursiva.

Em relação à função constitutiva da teoria de artista, no sentido em que foi

trabalhada por P. O. Runge, ocorre “o caso clássico da teoria tomando precedência

temporal absoluta em relação à prática artística” – Lingner comenta como Runge

desenvolve seu esboço inicial de um programa de oposição ao classicismo,

decidindo abandonar a “pintura de imitação histórica” em direção à paisagem

(Landschaft), buscando aí o desenvolvimento de um “novo conceito de arte” a partir

do neologismo Landschaftery; há mesmo uma tradição romântica em que “o 20 Giulio Carlo Argan, Arte moderna, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.169. 21 M. Lingner, op.cit..

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24

conceito de paisagem de manifesta como ‘obra de arte da mente’”22, do qual Runge

se apodera:

“Do mesmo modo que os filósofos concluíram que se imagina tudo a partir de

si mesmo, também vemos ou devemos ver em cada flor o espírito que o

homem ali colocou, e é assim que a paisagem irá se desenvolver, como se

todas as flores e animais estivessem apenas presentes pela metade, a menos

que o homem faça a sua parte. Assim, o homem força seus sentimentos e

sensações de encontro aos objetos a sua volta e, através disso, tudo adquire

sentido e uma linguagem.”23

É através do esforço de constituição de “seu próprio conceito de paisagem”, a qual

“investe de sentido e significado através do exagero das emoções”, que Runge

“descobre a possibilidade de um começo completamente novo para sua arte e para

si como artista”24. Percebe-se o processo de desenvolvimento de uma teoria de

artista que supõe a elaboração discursiva em terreno mais propriamente verbal –

não tanto é claro, pelo trânsito através do discurso literário em si (manobra que

sempre se mostrará fecunda, em qualquer tempo), mas pela estado de pesquisa da

linguagem visual naquele momento da história: trata-se de pesquisa plástica ainda

pré-impressionista, sem que a visualidade seja compreendida e experimentada em

busca de seus limites não-representativos e formais. Sabe-se que os primeiros

avanços mais concretos em relação a um funcionamento diferenciado do campo da

arte se dão, é verdade, a partir das descobertas referentes à possibilidade própria e

específica de utilização de suas ferramentas (plásticas + verbais) enquanto

produção de pensamento – mas aqui, no caso do Romantismo, isso é trabalhado a

partir da constituição primeira de um campo discursivo ao qual a visualidade ainda

se encontra referida. A invenção ‘teórico-discursiva’ funcionaria como elemento

constitutivo, produzindo um a priori discursivo do qual derivaria a possibilidade de 22 “Kunstwerkes des Geistes”. Lingner cita o poeta, escritor e crítico Ludwig Tieck, quando este se refere ao pintor Sternbald, personagem principal de sua novela Franz Sternbalds Wanderungen (1798): “Não quero copiar árvores e montanhas, mas meus sentimentos e humores, que me emocionam neste momento; é a isto que quero me apegar e comunicar a todos que possam compreender”. 23 Philipp Otto Runge, Hinterlassene Schriften, Göttingen, 1965. Citado por M. Lingner, op. cit.. 24 M. Lingner, op.cit.. mesma referência para as citações subseqüentes.

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25

investigação visual – como se a carga literário-discursiva, mais do que a própria

imagem, contivesse a visualidade em seus próprios limites de sintaxe e sentido,

fazendo ver o que se constitui enquanto escrita.

Sobre o funcionamento da teoria a partir da função integrativa, pode-se dizer

que se trata de avançar alguns passos em relação ao reconhecimento de como

utilizar o campo discursivo dentro da compreensão do jogo próprio do signo plástico,

portador já de uma autonomia que não se rende por completo à representação:

Lingner indica Hölzel como um artista que trabalhava dentro do campo da abstração

desde 1905 (data de sua Composição em vermelho), “introduzindo a ‘época de

grande espiritualidade’ na arte antes de Wassiliy Kandinsky”. É interessante

constatar que Hölzer desenvolve séries de exercícios de destreza manual,

envolvendo “movimentos rítmicos, estáveis, paralelos e balanceados” com a mão

com que desenhava: “durante décadas, iniciou seu dia de trabalho com ‘exercícios

manuais’, as ‘mil linhas diárias’, que executava com pincel, caneta ou lápis, em

grande parte em papel de rascunho”. Haveria aí “um aspecto existencial”, um “modo

de vida”, que fariam de seus exercícios uma modalidade de integração entre “corpo

de mente, sensações e intelecto, envolvidos de um modo natural” que os faria

funcionar como “um modo de ‘pensamento artístico’”: para Lingner, é clara “a função

catártica” que o próprio Hölzel atribuía a seus “rabiscos” –

“Quando desejo me libertar de toda mundanidade e dos pensamentos

dolorosos e negativos, inicio meus exercícios. Então, rapidamente parece que

todas as coisas do mundo se retiram e que somente os pensamentos

artísticos fluem. (…) Eu recomendo este banho espiritual diário.”25

Curiosamente, tal abordagem psicofísica acaba por facilitar a fluência entre os

campos plástico e discursivo – “os exercícios de desenho de Hölzel (…)

possibilitaram a transição gradual e contínua do exercício manual, através da

poética do desenho, para a prosa do pensamento conceitual” –, permitindo uma

peculiar contaminação recíproca, em que as características de cada uma das 25 Citado por M. Lingner, op.cit,, a partir de W. Venzmer, Adolf Hölzel: Leben und Werk, Stuttgart, 1982.

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26

práticas são mobilizadas em relação quase terapêutica (ou seja, com reflexos

diretamente na constituição de uma corporeidade, revelando um cuidado de si),

gerando não uma compilação de textos no sentido convencional mas um “espólio

teórico” que, mais do que um corpo teórico coerente e linear, propõe “uma forma de

prática artística diferente”, “uma forma especial de trabalho” (…) “entre exercícios

mecânico-manuais” e “experimentos estético-criativos”26. Sem dúvida, a atitude de

Hölzer demonstra o permanente cuidado, por parte de um artista pós-impressionista,

em expandir as possibilidades de investigação da visualidade, colocando-a em

contato com regiões próprias à presença da palavra, envolvendo ambas em

operações de passagem entre plástico e discursivo. É interessante e significativo

perceber que há aí algo de uma conquista – no sentido de uma contaminação

recíproca – em que o corpo do artista se deixa tomar pelos ritmos de uma pesquisa

visual que funciona integrada a uma investigação de si e do papel do artista. Se os

territórios de enunciados e visualidades são percebidos – e vivenciados – como

mundos absolutamente à parte um do outro, esta é uma conquista moderna; a qual

é acompanhada (e isto é muito importante) de uma poética e de uma política das

relações entre um e outro domínio. Para o artista que aí se inscreve, é fundamental

indicar com clareza em quais termos se estabelece o entrecruzamento proposto

entre os dois campos.

Curiosamente, Wassily Kandinsky anota na últimas linhas de seu Ponto, linha,

plano, literalmente encerrando o livro:

“O alvo da pesquisa teórica é:

1. encontrar a vida

2. tornar perceptível a sua pulsação

3. verificar a ordem de tudo o que vive.

Deste modo, recolhemos fatos vividos nas suas relações e enquanto

fenômenos isolados, Cabe à filosofia tirar as conclusões – o que é um

trabalho de síntese que conduz às revelações interiores – até onde cada

26 M. Lingner, op.cit..

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27

época o permitir.”27

Para este artista, buscar a ‘teoria’ (para nós, desenvolvida no âmbito da

Künstlertheorie) envolve pesquisa homóloga àquela que realiza em campo

propriamente plástico-visual: além de efetivamente configurar a busca orgânico-

espiritual com a qual organiza sua poética, demonstra a necessidade de construir

também um corpo textual-discursivo, integrando ambas as pesquisas. É sabido que

Kandinsky almejou, na verdade, constituir uma “ciência da arte” que nos conduziria

“em direção a uma vasta síntese que, ultrapassando os limites da arte, atingirá os

domínios da ‘Unidade’, do ‘Humano’ e do ‘Divino’”28 – e é nesse registro que

desenvolve sua obra escrita, indicando claramente a necessidade de

“sistematização (…) de idéias teóricas (…) com (…) experiências práticas”,29

operação que o conduz a buscar algum lugar que não seja apenas aquele da arte,

mas sim um campo supostamente mais amplo, em que esta se articula com a

ordenação científica do discurso. Ou seja, a arte somente poderia conduzir a

maiores conquistas, acedendo à condição de campo efetivo de pesquisa e produção

de pensamento e conhecimento, se fosse capaz de integrar-se a outros campos

(ciência, filosofia) que deteriam a primazia da escrita e do discurso – que Kandinsky

reconhece como necessários à continuação e desdobramento da prática do artista,

quando, a partir de seu próprio fazer, busca expressar-se através da forma livro. Ao

mesmo tempo em que descobre a força da construção plástica através da pesquisa

formal – que o identifica como um dos grandes inventores da arte moderna de

vanguarda –, Kandinsky não possui recursos de investigação lingüística e conceitual

que o habilitariam (como ocorre com seu contemporâneo Marcel Duchamp, mais

preparado para compreender as operações disjuntivas30) a adotar práticas

27 Wassily Kandinsky, Ponto, linha, plano, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 141. A primeira edição data de 1926. 28 W. Kandinsky, “Introdução”, in op.cit., p. 31. 29 W. Kandinsky, “Prefácio à primeira edição”, in op.cit., p. 21. Este pequeno texto é datado como “Weimar, 1923” e “Dessau, 1926”. 30 “Iniciando sua produção artística significativa em disputa direta com os limites da pintura cubista (segundo Argan, a tela Nu Descendo a Escada nº 2 [1912-16] põe em crise o cubismo analítico), Duchamp procura ‘colocar a pintura à serviço da mente’, concebendo uma pintura-idéia como ato extremo de sua fuga anti-retiniana – pintura que é também objeto, organizada com consciência da materialidade do suporte: sua principal obra, A Noiva Despida por seus Celibatários, mesmo (1915-23), o Grande Vidro, revela a estratégia de impregnação de um objeto plenamente visual por um campo enunciativo sincrônico. A edição, em 1934, da Caixa Verde – contendo 93 notas, cálculos,

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28

discursivas trabalhadas como elementos mesmos da obra: não há a construção de

um espaço de trabalho apropriado para legitimação de uma fala a partir da obra,

com autoridade própria, sem que se precise operar o deslocamento do artista para

os papéis de cientista ou filósofo – cisão que marca a obra discursiva de Wassily

Kandinsky, sem diminuir seu brilho mas (sobretudo para o leitor ou crítico desatento)

levemente desqualificando a investigação plástica em benefício da legitimação de

certa dicção técnico-cientificizante. Descompasso que é certamente maior em seus

discípulos e sistematizadores, do que na relação do autor-artista Kandinsky com sua

obra escrita. Entretanto, o brilho de Kandinsky em empreender esta dupla

investigação de modo coerente e consistente – em contínua homologia entre um

território e outro – faz com que sejam mantidos em aberto, para exploração

posterior, alguns traços potenciais deste rico relacionamento entre obra plástica e

discurso: se citamos acima as últimas palavras, desta vez reproduzimos aqui os

parágrafos iniciais de Ponto, linha, plano:

“Se observarmos a rua através da janela, os seus ruídos são atenuados, os

seus movimentos são fantasmáticos e a própria rua, por causa do vidro

transparente mas duro e rígido, parece um ser isolado palpitando num ‘para lá

de’.

Mas eis que abrimos a porta: saímos do isolamento, participamos desse

ser, aí nos tornamos agentes e vivemos a sua pulsação através de todos os

nossos sentidos. A alternância contínua do timbre e da cadência dos sons

envolve-nos, os sons sobem em turbilhão e, subitamente, desvanecem-se. Do

mesmo modo, os movimentos envolvem-nos – o jogo de linhas e de traços

verticais e horizontais, inclinados pelo movimento para diversas direções, jogo

de manchas coloridas que se aglomeram e se dispersam, com uma

desenhos e anotações realizadas durante o processo de elaboração do Grande Vidro – torna claro que texto e imagem funcionam como simultaneidades diferenciadas que se superpõem, evitando uma apreciação puramente retiniana. Do mesmo modo, ao referir-se aos trocadilhos, com que freqüentemente nomeia suas obras, como ‘jogos de palavras tridimensionais’, Duchamp caracteriza uma estrutura verbal com presença no espaço, estabelecendo em relação ao objeto plástico um procedimento discursivo disjuntivo, em que as conexões palavra/objeto são retraçadas a partir das marcas produzidas por cada uma das matérias sobre a outra, no vazio deixado pela ruptura de uma adequação natural entre ambos os campos. A possibilidade de trabalhar a dimensão conceitual da obra, sem prejuízo da autonomia plástica, é um dos fatores decisivos na ampliação do campo da arte durante os anos 60.” R. Basbaum, op. cit., pp. 33-34.

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ressonância por vezes aguda, outras vezes grave.

A obra de arte reflete-se na superfície da consciência. Ela encontra-se

‘para lá de’ e, quando a excitação cessa, desaparece da superfície sem

deixar rasto. Existe aí também como que um vidro transparente mas duro e

rígido que impede todo o contato direto e íntimo. Ainda aí temos a

possibilidade de penetrar na obra, de nos tornarmos ativos e de viver a sua

pulsação através de todos os nossos sentidos.

Para além do seu valor científico, que depende de um exame preciso dos

elementos particulares da arte, a análise dos seus elementos constitui uma

ponte em direção à vida interior da obra.”31

É melhor percebida a proposta de Kandinsky como um esforço em quebrar o

isolamento visual-formal da obra em relação ao mundo, a partir de sua abertura para

a sonoridade das coisas em busca da pulsação de agregados audiovisuais – para

que se contribua para uma arte que não se esgote no brilho imediato do sensível,

mas que construa prolongamentos através das marcas e trilhas estampadas pelas

ricas relações entre sensorialidade e consciência – apontando para o campo próprio

das relações entre práticas plásticas e discursivas ao mesmo tempo em é

salvaguardada a importância do ritmo apropriado para esse deslocamento, uma vez

que o que se busca afinal é a “pulsação” nem apenas plástica ou exclusivamente

sonoro/verbal, mas sobretudo a partir da dupla articulação nos termos de suas

relações.

Cabe a Joseph Kosuth, segundo Michael Lingner, o papel de exemplificar a

presença da Künstlertheorie enquanto função performativa, estabelecendo direto

contraste com as funções constitutiva e integrativa anteriormente apresentadas –

vimos que o que está em jogo, a partir da sugestão de Lingner de trazer ao primeiro

plano a presença da teoria de artista, funcionando em conexão direta com a obra, é

a modalidade de relações que pode ser estabelecida entre os territórios plástico e

discursivo: nos exemplos anteriores, ocorria uma precedência da teoria (função

constitutiva, caso de P. O. Runge) ou sua integração com a prática plástica (função

31 W. Kandinsky, “Introdução”, in op.cit., pp. 27-28.

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30

integrativa, caso de A. Hölzel). Já apontando para o campo de debates da arte

contemporânea, a partir do estabelecimento da corrente da arte conceitual, o caso

de Kosuth assumiria outras características deste jogo de relações, próprias de uma

outra etapa, em seu desdobramento – a principal delas residiria na implicação de

que, no corpo da obra deste artista, “obra e teoria se tornam idênticos e são

apresentados como uma só entidade”.32 A partir de “uma muito mais ampla

integração entre teoria de artista e prática”, a performatividade indicada residiria, de

imediato, na facilidade de deslocamento de Kosuth – e, logo, de demais artistas

localizados no âmbito do conceitualismo – entre um campo e outro, habitando, a

partir de gestos não em absoluto dessemelhantes, tanto o lugar plástico como o

verbal: seja na produção do texto programático-crítico, seja na construção da

instalação, a atitude de invenção-criação converge a partir de um tipo de

gestualidade que pode estar em cada um dos territórios – ou ambos –, sendo gerada

em um dos campos e deslocada para o outro e vice-versa. Há, ao mesmo tempo, a

compreensão de uma espacialidade invisível ou imaterial como dimensão da

visualidade, em que sempre se desvelam as articulações discursivas, e a certeza de

que as enunciações textuais compõem camada sensível e espacializante, sempre

plástica, agregada às coisas de modo quase material. Lingner, como veremos

abaixo, parece ter compreendido bem a dimensão formalista que, paradoxalmente,

os primeiros artistas conceituais imprimem em sua utilização das ferramentas

discursivas: o paradoxo residiria, é claro, no fato de que uma das principais

bandeiras históricas da arte conceitual sempre foi o embate direto contra o

formalismo esteticista greenberguiano; mas, enfim, se este percurso acaba por

desembocar em um certo formalismo da Künstlertheorie, causador de rigidez formal

nas relações entre obra de arte e discurso, possui entretanto o mérito de ter

flexibilizado e desimpedido as linhas de fronteira que regulam as trocas entre

palavra e plasticidade material.

Creio ser interessante indicar aqui um dos registros através do qual tal

formalismo visual-discursivo teria se desdobrado: a própria (auto)compreensão da

arte conceitual como devedora da linhagem histórica das vanguardas, localizando-se

32 M. Lingner, op.cit..

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31

como um dos seus últimos desdobramentos – o principal sintoma, seria, sem dúvida,

o recurso à história da arte como topos de afirmação de sua presença frente às

ações de intervenção em seu contexto de atuação: efetivamente, diversos de seus

principais agentes (mesmo que demarcando posições discordantes entre si) têm

ainda a história como fator impulsionador de uma ‘ruptura’ conceitual, manifestando

nesse sentido uma compreensão modernista de seus gestos – mesmo que seja para

lançar a arte, daí para frente, diretamente para o campo contemporâneo ou pós-

moderno, menos linearizantes. Os escritos de época trazem marcas (muitas vezes

dispersas, mas efetivamente presentes) de uma inscrição evolutiva e histórica,

reivindicando uma pureza de meios e análise de limites formais, que serão as

referências para a transformação pretendida:

“o século XX trouxe à tona uma época que poderia ser chamada ‘o fim da

filosofia e o começo da arte’ (…) Com o readymade não-assistido, a arte

mudou seu foco da forma da linguagem para o que estava sendo dito. Isso

significa que a natureza da arte mudou de uma questão de morfologia para

uma questão de função. Essa mudança – de ‘aparência’ para ‘concepção’ –

foi o começo da arte ‘moderna’ e o começo da arte ‘Conceitual’. Toda arte

(depois de Duchamp) é conceitual (por natureza, porque a arte só existe

conceitualmente.”33

“uma forma de arte pode evoluir tomando como ponto de partida da

investigação o uso da linguagem da sociedade de arte.”34

“Essa ruptura implica, como tarefa primeira e essencial, rever a história da

arte que conhecemos ou, se preferirmos, desconstruí-la radicalmente (…). O

conhecimento exato de seus problemas será chamado a teoria (…). É esse

conhecimento ou teoria que é hoje indispensável em relação à perspectiva de

uma ruptura, ruptura que se torna então fato; não podemos nos contentar

com o simples reconhecimento da existência dos problemas que surgem.

33 Joseph Kosuth, “Arte depois da filosofia”, in Glória Ferreira e Cecilia Cotrim (Orgs.), Escritos de artistas – anos 60/70, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006, pp. 212, 217. 34 Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 248.

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32

Podemos afirmar que toda arte até nossos dias só foi criada, por um lado,

empiricamente e, por outro, com base em um pensamento idealista. Se ela

puder se repensar ou se pensar e se criar teoricamente/cientificamente, a

ruptura será consumada e, por isso mesmo, a palavra arte terá perdido as

significações – numerosas e divergentes – que se prendem a ela até o

presente. Podemos dizer sobre o que precede que a ruptura, se ruptura

houver, só pode/só poderá ser epistemológica.”35

Sabe-se que a arte conceitual desempenha papel importante frente à crise da arte

moderna, contribuindo para a chamada ampliação do campo da arte contemporânea

e a definição das operações artísticas para além dos limites formais e materiais36: ao

realizar significativo processamento da herança duchampiana (em sua fuga do

esteticismo, ênfase em operações metodológicas não formais e utilização da

palavra) e desenvolver uma consciência sem precedentes em relação aos

mecanismos não-visuais legitimadores da obra de arte, aponta para um ‘futuro’ da

arte não mais determinado por categorias de execução formal-visual – já estavam

em marcha, desde meados dos anos 1950, decisivas transformações em torno de,

entre outros aspectos, uma autonomia da obra que fosse permeável ao seu entorno,

um funcionamento enquanto intervenção no circuito de arte e no campo da cultura,

uma imagem do artista que constitui sua subjetividade de modo público,

exteriorizante, além da auto-expressão, uma fruição ativa e participativa por parte do

público.37 Nesse sentido, é bastante útil a lembrança de Michael Lingner de que

“desde a Revolução Francesa, que arrancou o poder da nobreza e da igreja, criando

as bases para sua autonomia social, a arte trabalhou para afirmar sua própria

35 Daniel Buren, “Advertência”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., pp. 260-261. 36 Entre outras fontes, registramos aqui quatro ensaios, como referências precisas e pontuais ao problema da transição entre moderno e pós-moderno. Cf. Harold Rosenberg, “Desestetização”, in: Gregory Battcock (Org.), A Nova Arte. São Paulo, Perspectiva, 1975; Mário Pedrosa, “Arte ambiental. Arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, in Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro, Rocco, 1986; Ronaldo Brito, “O Moderno e o Contemporâneo (o novo e o outro novo)”. In: Arte Brasileira Contemporânea - Caderno de Textos 1, Funarte, Rio de Janeiro, 1980; Rosalind Krauss, “A Escultura no Campo Ampliado”, Gávea, Rio de Janeiro, n. 1, [s.d.]. 37 Estas transformações são claramente impulsionadas pelos artistas Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Yves Klein e Piero Manzoni. Cf. Ricardo Basbaum, “Quatro características da arte nas sociedades de controle”, in R. Basbaum, op. cit., pp. 87-106.

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autonomia estética” – a qual, afinal, “a arte deve conquistar por si própria”38 através

de suas proposições, configurações e construções. Assim, indicando uma seqüência

de etapas que perfazem o caminho desta gradual construção de um objeto estético

ao mesmo tempo plástico e conceitual (seja material ou desmaterializado), Lingner

vê “este processo emancipatório dividido em fases de autodeterminação que, de

modo geral, podemos denominar como autonomia de conteúdo, forma, gosto e

conceito”, expondo, brevemente, o seguinte desenvolvimento:

“Autonomia de conteúdo significa que a arte não mais se submete a uma

dada funcionalidade ou assunto. Rejeita ser predeterminada enquanto uma

pintura para um altar de igreja ou retrato de um monarca, passando então a

inventar seu próprio conteúdo. Reagindo diretamente à Revolução Francesa,

a Arte Romântica fez da natureza, que até então havia funcionado como

cenário, seu principal conteúdo. Caspar David Friedrich tematizava a

natureza, a beleza das regiões campestres, enquanto Runge perseguia o

princípio por detrás da natureza, encontrando-o no crescimento e na

decadência. Aqui, a natureza serve a ambos os artistas como ponto de

partida e ao mesmo tempo veículo para suas emoções. A autonomia formal

rompe com qualquer tipo de naturalismo. As formas que constituem a pintura

não são tomadas do mundo da realidade, mas abstraídas de acordo com

critérios imanentes à própria pintura. O trabalho de arte perde sua função de

imitar a natureza e conquista a liberdade absoluta das formas da arte não-

figurativa, seja de modo expressionista, como Kandinsky, ou construtivista,

como Mondrian. A autonomia do gosto consiste em produzir valor artístico a

partir do feio e do banal. Duchamp declarou como arte seus readymades,

Schwitters transformou mesmo o lixo e dejetos em arte, e ambos combateram

as convenções do gosto e os ideais estéticos do seu tempo. E, através de

Beuys e do uso de materiais extremamente baratos e sem valor, teve seu

momento maior enquanto grande efeito público de choque. De qualquer

modo, a arte agora ganhou a liberdade de se considerar acima das

preferências de gosto da sociedade, utilizando qualquer material possível e 38 Michael Lingner, “Art as a system within society”, disponível em http://ask23.hfbk-hamburg.de/draft/archiv/ml_publikationen/kt93-1.html.

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concebível. O passo decisivo para o que tenho chamado de autonomia

conceitual é então obtido quando o artista não mais deseja apenas determinar

a validade do material, forma ou conteúdo artísticos, mas também os

conceitos e teorias sobre arte. A Arte Conceitual dos anos sessenta, como foi

formulada por Kosuth e Weiner, posicionou-se no sentido de desenvolver uma

nova definição de arte. Kosuth insistiu que o próprio artista, e não figuras

oficiais como os críticos, elaboram e determinam o que a arte é. Através da

renúncia a qualquer semelhança morfológica às formas tradicionais da arte, o

artista cria dificuldade para que reconheçamos os trabalhos como objetos

estéticos, de modo que necessitam ser definidos conceitualmente. Assim, a

autodeterminação artística não envolve apenas os objetos, mas também a

definição de arte que os atravessa. Até onde a autonomia estética alcança,

esta seria sua absoluta culminância.”39

Vê-se, a partir desta narrativa, um efeito típico da passagem entre os períodos

moderno e contemporâneo, denominado de tradição do novo,40 em que o esforço

seria o de “manter de pé o programa da modernidade ainda numa época ‘pós-

moderna’”, onde “a vanguarda tornou-se ela mesma um ideal da tradição ao qual se

queria ficar agarrado”:41 a ruptura proposta pela entrada no cenário dos artistas

ligados à arte Conceitual revelaria um importante foco de sentido ao conectar-se à

grande tradição moderna da autonomia da arte, configurando – entretanto! – seu

último passo. Assim, mais do que perceber as amplas conquistas conceituais como

profundos cortes em relação ao ambiente da produção artística em que está inserida

ou forte reação às obras das quais deriva, o incremento trazido por artistas e grupos

como Joseph Kosuth, Art & Language e Daniel Buren, entre outros, impõe-se como

gesto de continuidade em um processo muito mais amplo, fundamental para que –

aí sim, mas em conjunto com outros elementos e fatores do campo sociopolítico – se

iniciasse uma profunda transformação nas práticas artísticas que apontam em

direção ao novo século e a um regime com o nome genérico (que afinal nada

39 M. Lingner, op.cit.. 40 Célebre termo cunhado por Harold Rosenberg. Cf., deste autor, A Tradição do Novo. São Paulo, Perspectiva, 1974. 41 Hans Belting, “Ciência da arte e vanguarda”, in O fim da história da arte, São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 197.

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esclarece) de pós-modernismo, cuja compreensão está apenas se iniciando.

Ao vincular função performativa da teoria de artista e autonomia conceitual da

obra de arte, que, combinados, apontariam para uma identificação e unificação entre

arte e teoria, Lingner estaria diagnosticando o estado de coisas típico das pesquisas

propostas pela primeira geração de artistas conceituais. Qualquer consulta a alguns

de seus textos referenciais básicos,42 revela sinais claros de um forte investimento

na instância teórico-discursiva, percebida, por estes artistas como legítimo terreno

de atuação – não apenas para defender seus programas, mas sobretudo para definir

e negociar os contornos da obra proposta. Kosuth, por exemplo, reconhece “a

mudança de ‘aparência’ para ‘concepção”” como determinante tanto do início tanto

da “arte ‘moderna’” como da “arte ‘Conceitual’”, propondo que “’a condição artística’

da arte constitui um estado conceitual” e que, logo, “as proposições da arte não são

factuais, mas lingüísticas, em seu caráter – isto é (…) elas expressam definições de

arte, ou então as conseqüências formais das definições de arte”; então, “a definição

‘mais pura’ da Arte Conceitual seria a de que se trata de uma investigação sobre os

fundamentos do conceito de ‘arte’”.43 Afirma, ainda, que “o potencial da natureza

revolucionária da arte conceitual” a transformou em “uma prática crítica reflexiva

perpetuamente examinando e recontextualizando sua própria história”, uma “escolha

metodológica que juntou a prática da arte com a teoria”; afinal, Kosuth se propõe a

“discutir a relação entre fazer-a-obra [art-making] e significado, e a interdependência

entre os dois”: “o trabalho criativo do artista no fazer-a-obra não é fazer um outro

objeto em um mundo mercantilizado e cheio de objetos, mas produzir, como

construtor [maker], um efeito no significado da arte”.44 Enfim, escreve, “fundamental

para esta idéia de arte é a compreensão da natureza lingüística de todas as

proposições artísticas”45, pois “o que torna um artista, ou qualquer outro pensador,

importante é o que pôde contribuir com a história das idéias”46.

42 V. notas de nº 30, 31 e 32. 43 J. Kosuth, op.cit., pp. 217-227. 44 Joseph Kosuth, “Painting versus art versus culture (or, why you can paint if you want to, but it probably won’t matter)”, in Joseph Kosuth, Art After Philosophy and After - Collected Writings, 1966-1990, Cambridge, MIT Press, 1991, pp. 91-92. 45 J. Kosuth, “Statement from Information”, in J. Kosuth, op.cit., p. 74. 46 J. Kosuth, “Context text”, in J. Kosuth, op.cit., p. 84.

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Daniel Buren, por outro lado, manifesta reconhecimento de que a produção

textual-discursiva é um espaço de trabalho e atuação a ser trazido para junto do

artista: além de afirmar ser “indispensável” a teoria, e que a “ruptura” será

“epistemológica”, aponta que “de fato, a teoria, e só a teoria, pode permitir uma

prática revolucionária”: além ser “indissociável de sua própria prática (…) ainda

pode/poderá suscitar outras práticas originais”47. Sua posição como artista “é o

seguimento lógico de uma reflexão teórica que se fundamenta na história da arte e

em suas aparentes contradições”:

“não estou preocupado com a arte em geral ou com a arte contemporânea em

particular. O que me interessa é a arte (…) sua trajetória histórica, seus

desenvolvimentos (…). [E]sta é a única maneira de vislumbrarmos a

possibilidade de uma teoria. (…) Não se pode mais aceitar a arte. A arte não

é mais justificável.”48

É interessante perceber, porém, que Buren preocupa-se com a localização de seus

escritos em relação à obras plásticas, receoso que estes “descart[em] a

possibilidade de ver as obras, sob o pretexto de que os textos já as explicam o

suficiente”, ou de haja uma “confusão entre os textos e os trabalhos, já que sua

existência baseia-se nesta diferença”: seria preciso, para o artista, ter clareza de que

“tais textos (…) jamais poderiam substituir a obra sobre a qual se baseiam” – o texto,

então, “permite retirar a arte do inefável, e dar-lhe alguns instrumentos para

abandonar seu contentamento beato”. Mas – e Buren enfatiza esta passagem em

mais de um escrito – reconhece que “a prática pictórica realizada desde 1965 é o

lugar de onde [os textos] partem”:

“Se há uma teoria para um pintor, é na sua pintura/prática que ela surgirá. O

texto permite ainda falar o que a pintura não pode, já que ela só se apreende

pelo olhar. O texto permite também, no domínio da arte (reservado ao

47 D. Buren, op.cit., p. 261. 48 Daniel Buren, “A arte não é mais justificável, ou os pingos nos is”, in Paulo Sérgio Duarte (Org.), Daniel Buren – textos e entrevistas escolhidos (1967-2000), Rio de Janeiro, Centro de Artes Hélio Oiticica, 2001, pp. 25-29.

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silêncio, silêncio dos criadores em benefício do falatório dos exegetas e de

outros cães de guarda das ideologias dominantes), desvendar e afirmar

claramente o que alguns gostariam de calar, por exemplo, as relações entre o

econômico, o estético, o político, o poder, a ideologia, a crítica, o artista e a

obra, ou seja, como estes vínculos se imbricam e se articulam de forma para

finalmente agir e determinar tal ou qual obra de modo irremediável e

freqüentemente surpreendente se abordarmos dialeticamente a questão de

como estes encadeamentos funcionam e decifram o que a arte possui de

misticismo. Estas relações são muito importantes e seus efeitos não raro são

redibitórios.”49

Ou seja, “é preciso entender muito bem que por teoria, como produtor, apenas o

resultado apresentado/pintura é teoria ou prática teórica”50.

O que nos interessa aqui é que tanto Kosuth como Buren, de modos diversos,

atestam o reconhecimento e o cultivo de um local de trabalho para a dimensão

discursiva, reconhecida como um componente da obra de arte: há uma prática da

palavra, do texto, da escrita ou do discurso, o qual não é mais acessório ou apoio

teórico para a obra, integrando-a em algum universo de sentido, mas elemento que

participa de um mesmo gesto de intervenção. Se, para Kosuth, há a descoberta da

“interdependência” entre texto e obra, Buren acessa a mesma questão a partir de

sua contundente afirmação de que “a arte não é mais justificável”51, sendo então

necessário empreender esforço teórico discursivo para reconquistar a possibilidade

da ação forte da obra. Trata-se de trabalhar na região de sentido e significado, e isso

implica em considerável esforço de articulação ‘teórica’: não se trata de deixar a

obra para assumir algum outro papel (escritor, crítico, teórico), mas encontrar ali na

prática da construção da obra a formação mesma da teoria, como indica Buren.

Pouco importa se Daniel Buren expressa a lúcida advertência de que textos não

49 Daniel Buren, “Por que textos, ou o lugar de onde intervenho”, in P. S. Duarte (Org.), op.cit., pp. 84-87. 50 Daniel Buren, “Advertência”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 261. 51 A frase cunhada por Kosuth, de sentido similar, foi: “o significado da arte estava em crise”. Cf. Joseph Kosuth, “Painting versus art versus culture (or, why you can paint if you want to, but it probably won’t matter)”, in J. Kosuth, op.cit., p. 90.

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substituem obras: é claro que o artista precisa enfatizar a força da presença plástica,

em sua materialidade (seja ela qual for) enquanto obra (e, nesse ponto, o artista

francês é mais esclarecedor que Kosuth), a qual não é ‘texto’, em seu sentido literal

e imediato, solicitando outra operação do olhar que não a simples leitura; é preciso

perceber que o reconhecimento da “heterogeneidade” das matérias visual e

discursiva é fator que – ao contrário – enfatiza sua maior proximidade e manuseio

conjunto, uma vez que há a consciência de sua “pressuposição recíproca”52 – e

então as operações textual e plástica estarão sempre remetendo o “espectador-

leitor”53 de uma para a outra (desenvolvendo, portanto, a capacidade deste se

constituir a partir deste deslocamento perceptivo). Assim, percebe-se que ambos os

artistas trabalham de modo a reconhecer um ‘fundo comum’ de imagens e palavras

(história da arte + história da literatura + história da filosofia?) do qual se servem no

ritmo próprio de seus processos de trabalho, atendendo às demandas de seu

programa poético e da intervenção pretendida: claro que não se trata da conquista

de uma mobilidade segura e tranqüila entre ‘teoria’ e ‘prática’, discurso e visibilidade

– afinal, como apontou Michel Foucault, segundo Deleuze, ambos os campos

estabelecem entre si uma relação de permanente tensão:

“’é preciso admitir, entre a figura e o texto, toda uma série de

entrecruzamentos, ou antes ataques lançados de um ao outro, flechas

dirigidas contra o alvo adversário, operações de solapamento e de destruição,

golpes de lança e os ferimentos, uma batalha.’”54

52 Trazemos aqui referência à importante “teoria dos enunciados” de Michel Foucault, que pode ser resumida em três tópicos principais: enunciados e visibilidades estão em “pressuposição recíproca”; consistem em “formas heterogêneas” que não possuem nenhuma região comum; desenvolvem permanente condição de heterogeneidade das matérias e portanto somente podem operar a partir do “combate e captura” recíproco entre as duas práticas. Gilles Deleuze lembra que, para Foucault, o saber é “bi-forme”, atravessado por “práticas discursivas de enunciados e práticas não-discursivas de visibilidades”. Cf. Michel Foucault, Isto não é um cachimbo, São Paulo, Paz e Terra, 1988, e Gilles Delueze, Foucault, São Paulo, Brasilense, 1988. Esta proposição de Foucault é referencial para o estudo Além da pureza visual, de minha autoria, já referido aqui. 53 A expressão “reader-viewer” é empregada por Gabriele Guercio em sua introdução ao livro de escritos de Joseph Kosuth. Cf. Gabriele Guercio, “Introduction”, in J. Kosuth, op. cit., pp. xxi-xlii. De minha parte, impulsionado por esta sugestão, indiquei a possibilidade deste “espectador-leitor” realizar o ato de “Vler” ou “Lver”, a partir da convergência e simultaneidade das ações de ‘ver’ e ‘ler’. Cf. Helmut Batista e Ricardo Basbaum, G. x eu (entrevista), Rio de Janeiro, Espaço P, 1998. (folder de exposição). Documento incluído no Anexo desta Tese. 54 Michel Foucault apud Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 75.

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Trata-se de se direcionar como artista rumo a um campo percebido como

controvertido e instável, assumindo determinadas posições de enfrentamento em

relação aos problemas da arte de seu tempo, produzindo e abrindo questões para

construir os limites e condições da prática pretendida. Kosuth e Buren demonstram o

esforço de configuração de um lugar de construção da obra de arte que se aventura

já pelos linhas de contorno do invisível, fazendo com que a produção do trabalho

seja algo mais, ou seja, incorpora os traços de uma autonomia conceitual, que faz

ver/ler um agregado plástico-discursivo onde produção sensível é produção teórica e

vice-versa. Seria este um salto do qual ainda hoje não se teria extraído as linhas de

fuga de uma radicalidade possível?

Inscrevendo-se na mesma problemática, o grupo inglês Art & Language

também procura, em seus primeiros textos, investigar as relações entre produção

textual e discursiva, discutindo de modo bastante direto a possibilidade de que a

experimentação teórica se perfaça diretamente como obra. O célebre “Art-Language

Editorial”, anuncia-se imediatamente como experimento de tal tipo:

“Suponhamos que a seguinte hipótese seja proposta: que este editorial, ele

mesmo uma tentativa de delinear alguns esboços do que é ‘Arte Conceitual’,

seja considerado um trabalho de ‘Arte Conceitual’”.55

O que se segue, então, é uma interessante discussão, marcada por certa

circularidade tautológica que testemunha o que se considera como ‘obsessão em

auto-justificar-se’, típica de uma prática que busca afirmar sua autonomia: estão em

jogo as relações entre ‘teoria’ e ‘prática’, a imagem do artista e as delimitações de

seu objeto de trabalho – a obra. Efetivamente, o trabalho do grupo, neste período, é

marcado diretamente pelos contornos de tal discussão:

“em uma variedade de trabalhos textuais, de 1967 a 1971, Art & Language

apresentou uma ampla gama de especulações – que constituíram seu

trabalho em arte – acerca das condições de individuação de um grupo de

55 Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 236.

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objetos de complexidade ontológica mais ampla do que aquela possível de

ser acomodada dentro do paradigma do ‘objeto físico, essencialista, de

caráter materialista’.”56

Ao aventurar-se pela prática discursiva, evidencia-se a afirmação de que a produção

de uma ’teoria da arte’ não se confronta com a atividade do ‘artista’ voltado para a

construção de objetos plástico-formais: afinal, “no âmbito da ‘Arte conceitual’, fazer

arte e fazer um certo tipo de teoria da arte constituem, muitas vezes, o mesmo

procedimento” – “por conseguinte, esses artistas não consideram que a propriedade

do rótulo ‘teórico da arte’ necessariamente elimine a propriedade do rótulo

‘artista’”.57 Sem abandonar um pragmatismo retórico, Art & Language demarca no

referido ensaio uma interessante preocupação com a morfologia do que chama de

“objeto teórico” – admitindo sua existência em conjunto com “objetos concretos”:

ambos “são apenas dois tipos de entidades que podem ser levados em

consideração, e vários outros tipos de entidades se tornam candidatos ao uso

artístico”. Tal cuidado “morfológico” (este é um termo recorrente no texto), somado a

uma relação da evidenciação da forma a partir dos mecanismos da visualidade (“a

visão do objeto” como responsável pelos “critérios de aparência suficientes para ser

identificado como membro da classe ‘objeto de arte’”), conduzem Art & Language a

uma interessante preocupação com a “psicologia da percepção” – enfim, será que o

esforço de alinhavo das dimensões visual e discursiva poderiam produzir algum

efeito ao nível da imediata apreensão da obra de arte? A indagação se desenvolve

no último parágrafo do artigo, evocando Merleau-Ponty e Richard Wolheim como

referências – dois estudiosos cujo trabalho foi utilizado basicamente por correntes de

cunho estético-formal e que, evidentemente, não podem oferecer pistas de

abordagem para o problema58. Mas sua menção é, afinal, de grande relevância se

se deseja de fato elaborar uma presença autônoma da obra de arte que seja “de

conteúdo, forma, gosto e conceito” (como anotamos acima) – quádrupla autonomia

56 Paul Wood, “Art & Language: wresting the angel”, in Arte & Language, Paris, Jeu de Paume, 1993 (catálogo de exposição), p. 24. 57 Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 238. 58 Veremos, em outra parte desta Tese, como José Gil se aproxima do problema de modo muito mais efetivo e produtivo. Cf. José Gil, A imagem nua e as pequenas percepções – estética e metafenomenologia, Lisboa, Relógio D’Água, 1996.

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que estaria implicada na configuração da obra de arte desde o Romantismo59 e que

chega aos nosso dias não como resultado de qualquer essencialismo evolutivo, mas

como desdobrar incessante, a partir de linhas de fuga – sempre em uma direta

relação entre a arte e outros campos da sociedade em suas demandas

sociopolíticas – que trazem ao primeiro plano, de modo instigante, tópicos de

constituição de um objeto visual-multisensorial, irredutível ao conceito mas tramando

relações muito especiais com seus componentes teórico-discursivos. Ao manifestar

preocupação com a dimensão perceptiva, Art & Language deixa claro que as

condições de sua prática aludem a uma performatividade da teoria, com livre

movimentação entre as práticas plástica e discursiva, tal como Kosuth e Buren; uma

observação do grupo britânico revela, ainda, preocupação em “penetrar” na “noção

de metaestratos da arte-linguagem”60: o reconhecimento em lidar com regiões de

estratificação de matérias visuais e discursivas em mútuo inter-relacionamento é

ponto programático de sua prática.

É preciso, novamente, registrar uma advertência: se trazemos aqui aspectos

da funcionalidade da teoria de artista é para, desde logo, indicar a importância do

jogo de relações que cada uma das funções traz à superfície – e, assim, escapar de

um formalismo das classificações que imprimiria ao texto de artista automaticamente

o formato de ‘construção teórica’, abstração frente à materialidade da obra: é em

outra direção que este texto caminha, procurando apontar instâncias concretas na

costura texto/obra que indiquem propriamente um interesse no desenvolvimento na

força e intensidade as relações. Assim, o perigo seria termos a Künstlertheorie como

medida da teoria como forma, arriscando estetizá-la desnecessariamente quando o

59 “A arte moderna é caracterizada por uma certa confusão entre arte e filosofia, a qual tem suas origens no Romantismo Alemão. A megalomania autoreferente do “116º Athenäum Fragment”, de Friedrich Schlegel, é o modelo original para os manifestos de todos os movimentos de arte do Século XX. E a corrente filosófica da arte conceitual tem um importante precursor no idealismo de Fichte e Schelling – uma tradição filosófica que, como imediatamente notou Novalis, pode ser vista como artística.” Remko Scha (Institute of Artificial Art Amsterdam), “Theory as Art as Theory”, disponível em http://radicalart.info/concept/hegel.html. 60 Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 243. A tradução “metacamadas da arte-linguagem” foi aqui modificada para uma solução que nos parece estar mais de acordo com o original “meta-strata of art-language”, além de remeter diretamente ao léxico de Deleuze-Guattari, ao qual recorremos em diversos momentos e perpassa esta Tese. Cf. Editors of Art-Language, “Introduction”, in Alexander Alberro and Blake Stimson (Orgs.), Conceptual Art: a critical anthology, Cambridge, MIT Press, 1999, p. 102.

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que importa é o alinhavo que o artista constrói entre as práticas, fazendo, das duas,

uma: o artista tendo como condição de trabalho esta dupla articulação – do mesmo

modo que a Arte Conceitual investiu em uma maciça teorização da arte, seria

preciso sensorializar a teoria, desinvestindo-a do reducionismo formal e

configurando a prática da arte como este fazer duplo.

Para estes artistas não há dúvida de estar se construindo uma outra imagem

do artista, não voltada para a produção seriada e acrítica de objetos estéticos, mas

ocupada nesta dupla investigação e responsável pela produção de trabalhos atentos

à quádrupla autonomia, configurando a obra também em seus contornos ditos

imateriais – mas que se inscrevem na cuidadosa pesquisa teórico-discursiva que

aponta os limites, o sentido e a natureza do campo investigado. Em ligação direta

com a afirmação de Duchamp de que o artista moderno, após Courbet, é um

“cidadão livre” e que “o jovem artista de amanhã (…) como Alice no País das

Maravilhas (…) será conduzido a atravessar o espelho da retina, para alcançar uma

expressão mais profunda”61, a postura de Kosuth, por exemplo, se alinha em direção

à “imagem do artista como um intelectual que, consciente de não ser nem pintor

nem escultor, identifica o fazer da arte com um conhecimento da dinâmica que torna

a arte possível”62. É claro que este ‘novo artista’ que vai sendo elaborado através

das diversas aventuras da arte dos anos 1960/70 – passando pelo artista intermídia

Fluxus, pela configuração artista-pop de Warhol, pelo an-artista de Allan Kaprow

(que ao desenhar seu conceito trabalha ainda as categorias de anti-artista, não-

artista e artista-artista, desenvolvendo-as historicamente e em suas relações com o

circuito de arte)63, pelo artista da body-art (Vito Acconci e Chris Burden seriam bons

exemplos), assim como pelas contribuições de Lygia Clark e Hélio Oiticica e suas

trajetórias alheias à institucionalização da arte e seu sistema, em processo de

aceleração durante toda a década – não tem sua engenharia dominada

61 Marcel Duchamp, “Where do we go from here?”, apresentado em Simpósio no Philadelphia Museum College of Art, em março de 1961 e publicado pela primeira vez em Studio International, 1975, número especial dedicado a Duchamp. Disponível em http://www.msu.edu/course/ha/850/Where_do_we_go_from_here.pdf. 62 G. Guercio, “Introduction”, in J. Kosuth, op. cit., p. xxiv. 63 Cf. Allan Kaprow, “The education of the an-artist, Parts I, II and III”, in Allan Kaprow, Essays on the blurring of art and life, Berkeley, University of California Press, 1993, pp. 97-109, 110-126 e 130-147, respectivamente.

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exclusivamente pela perspectiva da arte conceitual; mas o anúncio de que a prática

do artista visual se fará através de construções teóricas em torno de um campo

imaterial invisível, que requer acesso inicial através do discurso, terá considerável

impacto. Mas o que importa, sobretudo, é a conquista do estrato de uma autonomia

conceitual, que traz as questões de produção de sentido e definição do campo da

arte – em suas conexões com todo o tradicional campo discursivo associado a esta

prática, como a teoria, crítica e história da arte – para uma proximidade direta do

artista, como elementos de seu fazer, constitutivos da produção mesma da obra.

Em convergência a tais preocupações com a ‘imagem do artista’, assiste-se,

quase ao mesmo tempo, a intelectuais também procurando “viver de maneira nova

as relações teoria-prática”64. A célebre conversa entre Deleuze e Foucault, realizada

em 1972, traz à superfície diversos aspectos bastante significativos do problema,

que nos servem aqui de referência – de modo a evitar que a teoria exerça um papel

totalizador e ‘abstratizante’ junto ao conjunto de tópicos que estejam em jogo, a cada

combate, ação ou obra. O paralelo entre intelectuais e artistas é aqui importante: se,

por um lado, os artistas se aproximam do jogo teórico e chamam para si a

complexidade do discurso, manejando-o como parte da obra de arte, e, por outro,

intelectuais buscam compreender como a teoria pode funcionar em relação ao

mundo real, para além da abstração acadêmica e puramente conceitual, o que está

em debate é – nos dois casos – uma imprescindível re-avaliação de ambos os

papéis e da efetividade de suas ações. Tanto artistas como intelectuais mostram-se

conscientes da necessidade de constituir de outro modo a relação entre os campos

teórico e prático, de modo a evitar as habituais cristalizações que eventualmente

reduzem um campo ao outro ou impedem que as possibilidades de funcionamento

conjunto potencializem a intervenção pretendida. Na referida conversa, as posições

de Deleuze e Foucault se complementam de modo direto, com os dois pensadores

referindo-se mutuamente e tecendo sua fala em direto diálogo e imediata

reciprocidade, resultando em um conjunto de posições em bloco acerca da relação

entre “os intelectuais e o poder”, da possibilidade de produção de um pensamento

efetivo que se irradia em novas bases práticas e de ação. A posição Deleuze- 64 Gilles Deleuze (com Michel Foucault), “Os intelectuais e o poder”, in A ilha deserta e outros textos – textos e entrevistas (1953-1974), São Paulo, Iluminuras, 2006, pp. 265-273.

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Foucault que daí emerge pode ser assim resumida:

- evitar a totalização da prática pela teoria e da teoria pela prática a partir da

compreensão de que suas relações são parciais e fragmentárias;

- a teoria é sempre concebida localmente, regionalmente;

- não há representação, mas ação (ação de prática, ação de teoria, em

relações de revezamento ou em rede);

- a relação de aplicação nunca é de semelhança: a teoria não é expressão,

tradução ou aplicação de uma prática – ela é uma prática;

- a teoria é como uma caixa de ferramentas (“é preciso que sirva, é preciso

que funcione”), sistema de revezamentos em um conjunto, em uma

multiplicidade de peças e pedaços ao mesmo tempo teóricos e práticos;

- a teoria não totaliza: multiplica e se multiplica, instaura ligações laterais, um

sistema de redes;

- a teoria reveza-se com outras formas discursivas;

- o intelectual teórico deixa de ser o sujeito representativo ou representante

da consciência;65

Estão aí implicados elementos que resguardam a autonomia das práticas

discursivas e não-discursivas, e ao mesmo tempo evitam que cada uma delas

gerencie de modo absoluto qualquer das formas de ação – teoria ou prática; a

intervenção ‘bem-sucedida’, portanto, será aquela cujo efeito se dá na direção da

potencialização do acontecimento (efeito deleuziano) e na abertura de frestas e

linhas de fratura problematizantes (efeito foucaultiano), mas sempre “multiplicando e

se multiplicando” e produzindo “ligações” de modo lateral. As ferramentas teóricas –

produto do labor filosófico tão caro a Deleuze – devem funcionar, ser utilizadas, mas

sempre compreendendo seus limites e entrando e ressonância (funcionando ‘com’)

outros elementos não-filosóficos: a ação (seja prática ou teórica – ou seja, ‘prático-

teórica’) mobiliza um “sistema de revezamentos em um conjunto, em uma

multiplicidade de peças e pedaços ao mesmo tempo teóricos e práticos”,

configurando-se sempre em uma empreitada que foge da linearidade de percurso,

65 Tópicos extraídos de Gilles Deleuze (com Michel Foucault), op.cit..

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45

da aplicação de um programa finalizado a priori, exigindo o envolvimento sensível de

uma escuta permanente e de uma discursividade permeável ao entorno. A fuga à

“representação” é aqui fundamental, pois evita a literalidade autoritária das

construções discursivas ou não-discursivas de minimizar a complexidade do mundo

frente à trama do modelo, reduzindo a dinâmica das coisas à sintaxe ou à imagem

que as representam – “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja

jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens,

metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os

olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem”66: a

conhecida frase de Michel Foucault indica os limites e o artifício da representação,

em relação trágica com o mundo irredutível e inassimilável. O agente desta

modalidade de intervenção filosófico-conceitual é o intelectual não representativo –

investigador cujo papel “não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um

pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as

formas de poder exatamente onde ele, como intelectual, é ao mesmo tempo o objeto

e o instrumento”; ou seja, alguém que se percebe como parte constitutiva do que

enuncia, atuando em alguma forma de circuito, sistema ou rede.

Em certa medida, também Deleuze e Foucault investigam e buscam penetrar

os “metaestratos” indicado pelo Art & Language – nem tanto como “metaestratos de

arte-linguagem”, mas sim em termos de camadas inter-relacionadas de

“visualidades-enunciados” –, e tanto os dois filósofos como os artistas conceituais

caminham em busca de uma relação produtiva entre ‘teoria’ e ‘prática’ que não

restrinja seus movimentos nos limites estreitos de suas disciplinas e que também os

arranque de um formalismo abstrato-esteticista auto-referente. Se os artistas alertam

que seu objeto de trabalho também compreende a elaboração de regiões

discursivas – abrindo frestas e questões acerca do sentido e significado da arte a

partir da construção mesma da obra, constituindo-a –, os filósofos preocupam-se

com certa operatividade das construções conceituais em relação à materialidade do

mundo, integrados a ele e ali intervindo. Desta articulação de preocupações

convergentes, pode-se perceber em ambos os casos – e isto é importante aqui – a 66 Michel Foucault, As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas, São Paulo, Martins Fontes, 1987, p. 25.

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ênfase na materialidade da teoria, tornando-a instrumento efetivo de ação em direta

articulação com a prática (e a plástica); implementando assim, o “sistema de

revezamentos” de Deleuze-Foucault como modalidade de intervenção. De modo

que, adaptando o vocabulário mais diretamente ligado ao campo de ação que nos

interessa mais de perto, temos então artistas demarcando sua construção de

poéticas através de sistema de revezamentos plástico-discursivos que os

instrumentaliza a constituir a obra nos termos de seus limites visuais e conceituais,

em uma autonomia que não mais cabe em si67 – pois a chamada autonomia

conceitual, finalmente conquistada, funcionaria de modo paradoxal, reenviando a

obra para seus próprios limites e ao mesmo tempo lançando-a para fora, em contato

direto com outros campos e contextos (efeito direto da admissão da materialidade do

discurso como fato plástico).

Esta Tese, então, investiga algumas das possibilidades de uma

Künstlertheorie como sistema de revezamentos plástico-discursivos, admitindo a

prática do artista funcionando nos termos de uma dupla-articulação

visualidade/texto, acionando tanto a materialidade do conceito como a imaterialidade

do visível. Trata-se sem dúvida de um caso de performatividade da teoria, segundo

Lingner, com o acréscimo de certos elementos diferenciais, que veremos adiante.

Algumas palavras devem ainda ser ditas, entretanto, em relação a traços conceituais

da dupla articulação – noção que, como vimos, se resguarda a especificidade dos

termos envolvidos, indica um funcionamento sempre em recíproca pressuposição,

articulando uma região própria e uma atenção específica para com o pragmatismo

da ação.

A noção de dupla articulação perpassa a filosofia de Deleuze e Guattari (“há

67 Estamos próximos aqui do que Brian Holmes denomina “extradisciplinar”: ferramenta conceitual que assinala “um novo tropismo e um novo tipo de reflexividade, envolvendo artistas, teóricos e ativistas em uma passagem para além dos limites tradicionalmente consignados a suas práticas. O termo tropismo expressa o desejo ou necessidade de se voltar em direção a algo mais, em direção a um campo ou disciplina exterior; enquanto que a noção de reflexividade agora indica um retorno crítico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, acabar com seu isolamento, abrir novas possibilidades de expressão, análise, cooperação e engajamento. Este movimento de ida-e-volta, ou melhor, esta espiral transformadora, é o princípio operacional do que chamo investigações extradisciplinares.” Brian Holmes, “Extradisciplinary investigations: towards a new critique of institutions”, disponível em http://transform.eipcp.net/transversal/0106/holmes/en/print.

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duplas-pinças por toda parte, double-binds, lagostas por toda parte, em todas as

direções, uma multiplicidade de articulações duplas…”), procurando indicar uma

modalidade de ação sobre o mundo – e de constituição de pensamento – que opere

de forma não dialética, dualista ou biunívoca, atenta à percepção dos “estratos (…)

em estado de pressuposição recíproca, disseminado-se um no outro, com

agenciamentos maquínicos de duas cabeças estabelecendo correlações entre seus

segmentos.” Ainda, “não se deve jamais confrontar palavras e coisas supostamente

correspondentes, nem significantes e significados supostamente conformes, mas

sim formalizações distintas, em pressuposição recíproca e constituindo uma dupla

pinça”68. Para os dois autores, o importante é ter clara a concepção de que “toda a

articulação é dupla”, e que os termos articulados não apresentam correspondência

ou conformidade, “mas sim formalizações distintas em estado de equilíbrio instável

ou pressuposição recíproca”:

“A dupla articulação é tão variável que não podemos partir de um modelo

geral, mas apenas de um caso relativamente simples. A primeira articulação

escolheria ou colheria, nos fluxos-partículas instáveis, unidades moleculares

ou quase moleculares metaestáveis (substâncias) às quais imporia uma

ordem estatística de ligações e sucessões (formas). A segunda articulação

instauraria estruturas estáveis, compactas e funcionais (formas) e constituiria

os compostos molares onde essas estruturas se atualizam ao mesmo tempo

(substâncias). (…) [A] primeira articulação é a ‘sedimentação’, que empilha

unidades de segmentos cíclicos segundo uma ordem estatística (…). A

segunda articulação é o ‘dobramento’, que instaura uma estrutura funcional

estável e garante a passagem dos sedimentos (…). (…) A primeira

articulação se refere ao conteúdo e a segunda, à expressão.”69

No que aqui nos interessa, devemos construir tal dinâmica a partir do

desenvolvimento da obra enquanto composto duplamente articulado, em que

‘sedimentação’ e ‘dobramento’ indicariam, grosso modo, o duplo trabalho de

constituir a obra de arte e suas componentes discursivas, enquanto etapas de um 68 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs, Rio de Janeiro, Editora 34, Vol. I, pp. 53-91. 69 G.Deleuze e F.Guattari, op.cit., pp. 54-55, 58, 84.

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mesmo processo – ou seja, operações sensíveis em contato direto com a

plasticidade das matérias envolvidas (sejam quais forem, não há limites a priori) e

gestos voltados para as costuras conceituais apropriadas que, além da consistência

discursiva, apontam (em direta conseqüência) para sua circulação e deslizamento

por um sistema ou circuito. Daí a inseparabilidade entre a obra e sua dimensão

enquanto evento, cujo conjunto compreende o trabalho plástico-conceitual, sua

circulação e efeitos. Ou seja, a obra de arte enquanto direcionada ao outro70 (sujeito

participante de uma operação estética), a um campo próprio (operação de

sistematização e apuro conceitual) e ao lado de fora (operação de circulação,

distribuição e intervenção por um circuito e seus extra-circuitos exteriores).

Esta quádrupla autonomia (de conteúdo, formal, estética, conceitual), dupla

articulação (visual, discursiva) e triplo endereçamento (ao outro, ao campo próprio e

ao lado de fora) indicam a obra de arte enquanto problema que aponta em diversas

direções, ressaltando o papel decisivo do campo teórico-discursivo na emergência

desta configuração. Existe aí de certo modo um vasto território a ser explorado – a

própria condição da arte moderna e contemporânea, tematizada por tantos artistas –

dentro do qual cabe (por que não?) a observação ‘talvez não se saiba ainda o que é

arte’71; ou seja, cada poética enfrentaria a reverberação caótica das incertezas como

70 José Gil indica de modo brilhante a condição sensível do olhar pós-duchampiano, mostrando que “o olhar implica uma atitude”: “como seria o corpo visível (…) se não fosse visto por outrem? (…) [S]e o vejo vendo, se o meu corpo se oferece à partida à vista de outrem, é porque o sei capaz de olhar – porque o meu olhar olhando-o olha o seu olhar. É o olhar que provoca a reflexão do visível: é preciso que o meu olhar se reflita no olhar do outro para que eu me veja nele e para que, ao mesmo tempo, nele veja um olhar outro. (…) olhar é antes do mais olhar um olhar. (…) A sua recepção é a sua emissão. (…) o olhar reflete o não-visível porque se desdobra ao mesmo tempo como emissor e receptor.” Gil pretende ultrapassar a fenomenologia de Merleau-Ponty em direção a uma metafenomenologia, que possa dar conta da experiência estética contemporânea (após Duchamp e Beuys): “O que é então a percepção da obra de arte? Nem um misto de prazer e cognição, nem um ato que visa um fenômeno particular, visível, e cuja descrição deverá recorrer necessariamente a conceitos clássicos da teoria do conhecimento; mas um tipo de ‘experiência’ que se caracteriza, precisamente, pela dissolução da percepção (tal como é tradicionalmente descrita). O espectador vê, primeiro, como espectador (ou sujeito percepcionante) para, depois, entrar num outro tipo de conexão (que não é uma ‘comunicação’) com o que vê, e que o faz ‘participar’ de um certo modo na obra. O que requer todo um outro campo de descrição: deste ‘participar’, desta ‘dissolução’ do sujeito, etc. Não convém pois falar em ‘percepção estética’, mas num outro tipo de ‘fenômenos’ ou de ‘acontecimentos’. É, de resto, pela idéia (deleuziana) de acontecimento que a metafenomenologia abre seu campo próprio.” José Gil, op. cit., pp. 17-18, 47-50. 71 Parafraseando Michel Foucault que, na referida conversa com Deleuze, comenta: “Esta dificuldade – nosso embaraço em encontrar as formas de luta adequadas – não virá de que ainda ignoramos o que é o poder? Afinal de contas, foi preciso esperar o século XIX para saber o que era exploração; mas talvez ainda não se saiba o que é o poder.” Gilles Deleuze (com Michel Foucault), op. cit., p. 270.

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situação produtiva, ao investigar os contornos de uma condição complexa. Para nós,

importa ressaltar que o combate plástico discursivo se impõe de modo incontornável,

apresentando um campo dentro do qual qualquer ação é já uma tomada de posição,

intervenção em certo estado de coisas – é assim que é proposta a poética a partir da

qual se desdobra a Tese. Compreende-se, assim, a importância da teoria de artista

para organização de um repertório de ações em revezamento plástico-discursivo;

mas, ainda, será a produção da teoria o objetivo da ação? Ou será esta (a teoria de

artista) uma espécie de by-product, produto residual secundário da ação de

construção da obra – ela sim, importante? É preciso tomar cuidado com as palavras

para deixar claros os mecanismos da ação proposta: não haveria sentido na

produção da teoria enquanto produto isolado, modalidade formal de prática

discursiva – esta, como propomos, seria um gesto integrado ao sistema de

revezamentos, conquistando seu brilho em relação direta com a obra plástica

(elemento de sua elaboração), ou como ação de criação que se emancipa a partir de

sua compreensão e funcionamento como propriamente obra de arte. Portanto, não

haveria interesse na teoria como forma isolada (tal como Kandinsky a trabalhou, no

início do século XX) – mas como prática discursiva de elaboração complexa em

trama direta com a materialidade da obra. O jogo formal que nos interessa perseguir

será sempre aquele em que a obra de arte é tangenciada e acaba por emergir – o

jogo não é simples e requer diversos recursos – de modo que a teoria de artista,

quando houver alguma, é constitutiva da obra, está ali, enquanto linha de fuga, fio a

ser desdobrado e perseguido, a conduzir aos efeitos da intervenção pretendida.

Estaremos então mais próximos do chamado escrito de artista, em sua formalização

irredutível a qualquer outro formato ou gênero discursivo, plataforma de ação e

produção de intensidade poética?

(e) a presença deste texto como obra de arte não pode se perfazer enquanto um

simples conjunto qualquer de instruções ou programa, indicando algum modo de

funcionamento. Certamente que sua atuação nesta direção se dará por algum tipo

de conexão ou articulação que ultrapassa a condição de discurso hipertrofiado

Também Deleuze expressou indagação similar, ao nomear seu último livro (com Guattari) como O que é a filosofia?. Vale enfatizar que ambos os (três) pensadores valorizavam o aberto e o lado de fora.

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acerca de um conjunto de proposições artísticas que lhe servem de referência –

haverá que obter, encontrar ou constituir alguma área de escape, ir de encontro a

algo mais: pois, como se sabe (tal foi o palpite duchampiano, em meados do século

passado, com seu “coeficiente artístico”72), o artista não detém por completo a

construção do sentido de suas produções, cabendo ao outro (público, espectador,

participante, leitor, …) a complementação deste verdadeiro processo em aberto.

Algumas pistas do funcionamento pretendido, entretanto, devem ser encontradas na

possibilidade deste texto funcionar em conjunto com a obra com a qual se relaciona,

estabelecendo pontos de contato e canais de comunicação através dos quais a

fluidez de um trânsito contínuo se constitui: será na intensidade destas idas e vindas

– dentro e fora do texto e da obra, em mútuo atravessamento – que pode se formar

algum corpus-extra, composto de enfrentamento plástico e leitura, com densidade

outra que não a das matérias referenciais e deflagradoras do processo. Logo, se

este texto apresentar-se como obra de arte, não o será senão a posteriori, depois,

como um resto ou resíduo de sua leitura combinada ao enfrentamento direto ou

indireto dos trabalhos a que se refere –; quando ou a qual momento tal processo irá

se impor, quase como subjetividade-extra produzida por este dispositivo, é a rigor

impossível (e desnecessário) prever: trata-se de processo a ser conquistado,

impulsionado pela força do processo e pela experiência que se oferece em jogo,

mobilizando engajamento e desejo.

Em momento anterior, a mesma questão foi assim colocada:

“As inter-relações entre o trabalho ‘ensaístico’ e o ‘artístico’ não são

superficiais, certamente. É parte deste esforço [de escrita] tangenciar, de

leve, os limites de ambos os campos, provocando algo mais do que um

encontro, procurando estabelecer entre eles algumas poucas passagens.

Dentro de uma ordem de exigências específicas, este também é um ‘texto de

artista’ (...), no sentido de pretender enfrentar, inventivamente, um mesmo

72 “Na cadeia de relações que acompanham o ato de criação falta um elo. Esta falha que representa a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o ‘coeficiente artístico’ pessoal contido na sua obra de arte. (…) o ato criador não é realizado pelo artista sozinho (…).” Marcel Duchamp, “O ato criador”, in Gregory Battcock (Org.), A nova arte, São Paulo, Perspectiva, 2002, pp. 73-74.

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corpo de questões que a obra; entretanto, ele pode e deve, em certo sentido,

ser lido completamente em separado dos trabalhos plásticos, uma vez que

deve demarcar um terreno próprio de atuação, completamente diverso. A

convergência entre as duas áreas, neste caso, deve ser construída a partir da

presença dos contornos dos dois espaços, como ações autônomas, e só a

partir daí – em outro esforço – estabelecer os fluxos, as fluências entre elas,

em iluminações recíprocas.”73

O mérito da aventura – se colocarmos o problema no âmbito de uma conquista, a

qual, sem a mobilização do núcleo do desejo, não se efetiva – entretanto depende

de este conjunto de textos (Tese) saber se configurar de modo a proporcionar as

múltiplas entradas, conexões e passagens apropriadas ao funcionamento proposto,

oferecer algo próximo a uma metodologia ou pragmática, a partir do reconhecimento

da importância de se recorrer ao sistema de revezamentos plástico-discursivos para

não apenas indicar os contornos dos trabalhos de arte que estão em jogo, mas

também traçar sua própria forma de ação.

Reconhecer os riscos da empreitada não é motivo de recuo – mas, antes, traz

a necessária atenção à dificuldade da própria operação de delineamento dos limites

que articulam linguagens e visibilidades, tomada ela mesma (a operação, gesto,

posicionamento) como a própria plataforma para lançar-se nas complicações

advindas da utilização da linguagem por artistas. Robert Smithson mergulha com

ênfase nesta prática de produção de tecidos (textus, coisa tecida, textura) de

aspecto tridimensional para, de dentro mesmo do fazer, indicar peculiaridades desta

modalidade de escrita que constituiria, por si só, um “museu da linguagem na

vizinhança da arte”74: o texto de Smithson é fundamental em sua veemência

particular, reivindicando uma espécie de mergulho cego em região sem contornos

pré-definidos:

73 R. Basbaum, op. cit., p. 20. 74 Tradução do título do artigo que tomamos agora como referência: Robert Smithson, “A museum of language on the vicinity of art”, in Robert Smithson: The Collected Writings, Jack Flam (Ed.), University of California Press, 1996, pp. 78-94 (originalmente publicado em Art International, março 1968).

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“Nas ilusórias babéis da linguagem, um artista deve especificamente avançar

para se perder e para intoxicar-se em sintaxes estonteantes, buscando

peculiares interseções de sentido, estranhos corredores da história, ecos

inesperados, humores desconhecidos ou vácuos de conhecimento… mas

esta busca é arriscada, repleta de ficções sem-fundo e arquiteturas e contra-

arquiteturas sem-fim… no fim, se existe um final, estarão talvez apenas

reverberações sem sentido. O que vem a seguir é uma estrutura especular

construída de macro e micro ordenações, reflexões, Laputans75 críticos e

perigosas escadarias de palavras – um trêmulo edifício de ficções que

sustenta arranjos sintáticos invertidos… coerências que desaparecem em

quasi-exatidões e princípios sublunares e translunares. Aqui, a linguagem

‘cobre’ mais do que ‘descobre’ seus locais e situações. Aqui, a linguagem

‘vela’ mais do que ‘revela’ aberturas para interpenetrações utilitárias e

explicações. A linguagem destes artistas e críticos a que se refere este artigo

se transforma em reflexões paradigmáticas, numa babel de espelhos

fabricada de acordo com a observação de Pascal – ‘A natureza é uma esfera

infinita, cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma’.

Todo este artigo pode ser visto como uma variação desta observação

demasiadamente mal utilizada; ou como um ‘museu monstruoso’ construído

de superfícies multi-facetadas que se referem não a um, mas a múltiplos

assuntos dentro de um bloco único de palavras – um tijolo = uma palavra,

uma sentença = um quarto, um parágrafo = um andar inteiro, etc. Ou, a

linguagem se torna um museu infinito, cujo centro está em toda parte e os

limites em parte alguma.”

Este parágrafo figura na abertura do artigo, no qual caracteriza a escrita de artistas

como “infra-crítica”76 [infra-criticism], um deslocamento das margens ao centro – que

afinal produz o que denomina “reverberações sem sentido”; pois mais importante 75 Laputan: que pertence a Laputa, a ilha dos filósofos de As viagens de Gulliver (1726) de Jonathan Swift; absurdo; não-prático; visionário; fantástico. Nota-se a origem espanhola (“la puta”) da expressão de Swift. 76 Smithson se refere diretamente a alguns artistas, dos quais traça pequenos perfis de como organizam a escrita e como se relacionam com o discurso ou fala (no caso de Andy Warhol). Os artistas mencionados são: Dan Flavin, Carl Andre, Robert Morris, Donald Judd, Sol LeWitt, Ad Reinhardt, Peter Hutchinson, Dan Graham, Andy Warhol, Edward Ruscha e Charles R. Knight.

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sem dúvida seria aqui apontar que existe a produção de algo em dinâmica particular,

resultando em efeitos e movimento: ou seja, para a escrita de artista (e, em maior

escala, a Künstlertheorie) vale como produção de valor não a coerência linearizante

ou racional da sintaxe, mas as vibrações de um sentido que se produz no modo do

risco, quando o artista se perde nos “corredores da história” ou em “vácuos de

conhecimento”. Trata-se muito mais da produção de palavras que se antepõem às

coisas (cobrem e velam) sem simplificá-las à luz da explicação, e que, logo,

funcionam em direta articulação com as obras – em proximidade e articulação junto

à busca poética que mobiliza a trajetória investigativa e exploratória de cada artista.

É interessante observar que a massa de produção discursiva por artistas deve

constituir seu próprio museu “monstruoso” e “multifacetado”, próximo, adjacente,

vizinho à arte – mas outro edifício. O artista seria aquele que se relaciona com duas

arquiteturas (“arquiteturas e contra-arquiteturas”), produzindo uma dupla intervenção

no edifício do conhecimento – plástica e discursiva, sendo que este “trêmulo edifício

de ficções que sustenta arranjos sintáticos invertidos” apenas adquire dinâmica

própria no estabelecimento cuidadoso de suas relações com as obras ou mesmo em

sua condição de funcionamento enquanto tal: daí o museu da linguagem – como

quer Smithson – ser necessariamente vizinho da arte enquanto seu outro ou contra-

museu. Mas, sobretudo, se o apetite discursivo dos artistas é convertido em museu,

este se configura enquanto infinito e sem limites – e esta característica se torna

mesmo a principal da condição de possibilidade de tal prática: pois não há como a

articulação teoria-prática ser condicionada a priori, quando ela se dá em tão precisa

e sensível proximidade entre as práticas visuais e discursivas, em constante

combate recíproco; e é exatamente a medida de tal articulação que pode apontar os

limites locais, regionais, de como se dá a operação textual. Estes “limites em parte

alguma” (Smithson/Pascal) são constituídos a partir do deslocamento do “centro”

impulsionador das poéticas – esse agregado verbivocovisual –, que está “em toda

parte”, para o local da intervenção pretendida. De fato, uma aventura sem receituário

prévio, mergulho no encadeamento das palavras em busca de que se perca o

sentido habitual produzido na linearidade da sintaxe, apostando em reencontrá-lo na

combinação e articulação conjunta plástico-discursiva.

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O ambiente dinâmico indicado por Robert Smithson não se constitui sem sua

significativa constatação de que é necessário um rearranjo do componente ’ficcional’

– não apenas em direta relação com a prática discursiva mas sobretudo enquanto

portador de possibilidades de deslocamento do artista. Smithson combate as

oposições ficção x realismo e romantismo x materialismo, considerando-as

incorretas, já que os termos em cada par “compartem ‘superfícies’ similares”: seria

preciso, portanto, recuperar seus pontos de contato, sem os quais realismo e

materialismo, por exemplo, permanecerão prisioneiros de uma estrita racionalidade

que impediria “a estética de ajustar-se com o local da ficção em todas as artes”,

resgatando-a assim (a ficção) de seu aprisionamento na literatura, como quer o

senso-comum. Smithson propõe um duplo deslocamento: por um lado, arrancar a

“ficção” de seu resguardo estritamente literário, propagando-a por todos os outros

campos expressivos; e, por outro, afirmar a importância das coisas ‘naturais’ e das

pequenas “fatias de vida” [slices of life] cotidianas, perdidas no racionalismo realista

que afinal reforça a clivagem entre esfera estética e campo da vida – quando “arte

compete com a vida e estética é substituída por imperativos racionais” ocorre este

empobrecimento de possibilidades, onde “se acredita que a ficção não seja parte do

mundo”; e aí, diagnostica Smithson, “o status da ficção [desaparece] dentro da

mitologia do fato”. Logo, há um claro posicionamento no sentido de buscar uma

ampla liberação do ficcional como camada constitutiva do real do mundo, ferramenta

operacional para qualquer operação de intervenção – pois é isso que importa:

agregar maiores e mais consistentes possibilidades ao artista para a ação sobre o

mundo. É sobretudo a possibilidade da ficção de quebrar a temporalidade linear da

história que interessa Smithson, pois assim pode deslocar-se de maneira direta

entre os extremos da “pré-história” e da “pós-história” sem que seja forçado a

abandonar o presente, uma vez que ambos “fazem parte da mesma consciência do

tempo”: a componente discursiva é tratada por Smithson como elemento de alta

potência, portador de uma liberação de fluxos temporais – é a ficção que, arrancada

da literatura e expandida pelo mundo, contribui para que se abram diversos tempos

na clausura de uma certa pequena história dos encadeamentos, alheia à força do

dispositivo poético. Estaria próximo assim do tempo como Devir, que Deleuze

procura liberar frente à História, segundo indica Peter Pál Pelbart:

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“O devir é uma antimemória, uma anti-história. Ele não desliza segundo os

pontos de origem, coordenadas ou medidas, mas cria suas próprias

coordenadas, sua transversal, sua errância, seus ‘blocos de esquecimento’,

sua flutuação ou embriaguez, suas derivas ou linhas de fuga. (…) Os devires

só são pensáveis em meio a uma multiplicidade, e o seu tempo é função

dessa multiplicidade. (…) sob a História (…) Deleuze detecta e constrói uma

outra maquínica temporal, anti-historicista, coextensiva à multiplicidade

substantiva e aos processos que nela operam (…).”77

A fundamental contribuição de Robert Smithson é mostrar como a produção

discursiva, quando articulada em sua força conjunta com a construção plástico-

visual, faz irromper pulsações e fluxos temporais que conduzem o duplo agregado

visual-verbal em direção a um horizonte de efeitos que seriam propriamente aqueles

da obra de arte. Seja através da construção de um contra-museu da linguagem e de

um museu da arte, ou vice-versa, Smithson busca, como Deleuze, o lugar entre os

dois lugares, a linha “diagonal”, “transversal”: “é o que tenta fazer todo o artista ou

filósofo, por mais que elabore um sistema pontual como uma espécie de trampolim

necessário para dele escapar”.78 Talvez este modelo seja o mais próximo já

desenvolvido por um artista para que se possa ter a escrita, o texto como obra de

arte, integrando portanto a Künstlertheorie enquanto elemento que não mais se

distingue em nítido contorno dentro do conjunto duplamente articulado, bifacetado,

bi-forme do trabalho do artista contemporâneo.

77 Peter Pál Pelbart, O tempo não-reconciliado – imagens do tempo em Deleuze, São Paulo, Perspectiva, 2004, 110-118. 78 P. P. Pelbart, op.cit., p. 110.

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56

B

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B: 5 diagramas, extração conceitual

Até aqui este corpo discursivo tem procurado preparar um caminho, construir

uma possibilidade de ação, precipitar uma conduta – indicar um processo particular

para validação da ambiciosa operação de construção da singular situação em que

trabalho de arte e operação discursiva compõem em conjunto aquele outro lugar

produtivo, conciso, intenso, do qual se espera saltar para a multiplicidade de outros

processos, recebidos ‘em aberto’ como prolongamento do mesmo emaranhado de

fios que tecem e traçam uma e outra camada: este lugar outro, construído pelo texto

como obra de arte, seria sempre o mesmo a ser desdobrado em cada uma das

modalidades em que se cristaliza (obra plástica, discurso, texto como obra, etc.), já

que o que importa seria funcionar sempre em tal sistema de revezamentos plástico-

discursivos: produzir vibrações, trazer conexões e passagens, franquear o trânsito

de componentes ficcionais, mostrar as contaminações recíprocas. Neste caso, o que

se pretende é tornar presente tal teia tecida em torno da proposta de trabalho Você

gostaria de participar de uma experiência artística? – a qual se viabiliza a partir da

costura específica entre visualidade e texto, percebida como condição estruturante

mesma do campo em que se propõe mover-se, o qual se quer deslocar (a arte

contemporânea, o pensamento contemporâneo).

Para iniciar aqui tal passagem – ou seja, começar um deslocamento que

conduza o discurso para junto da obra (para que se perceba melhor o lugar que se

está a ocupar –, remeto aqui diretamente ao diagrama, como elemento gráfico capaz

de mediar as conexões entre os espaços plástico e discursivo, a partir de sua

habilidade agregar texto e imagem (linhas e palavras) em configuração própria,

portadora de processos e relações. De modo geral, um diagrama pode ser visto

como

um tipo de esquema visual, utilizado para explicar ou ilustrar uma declaração,

teorema, ou teoria, o funcionamento do mecanismo de uma máquina, uma

instalação hidráulica ou elétrica, uma estrutura matemática ou topológica, um

processo orgânico, etc. Um diagrama sempre junta palavras e imagens,

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utilizando recursos gráficos para criar um dispositivo visual: linhas, formas,

letras, palavras, símbolos, setas, pontos, planos, etc. são aplicados a uma

superfície de modo a representar relacionamentos e propriedades de

estruturas dadas. Todo diagrama propõe um tipo particular de espaço

(matemático, topológico, sociológico, filosófico, psicológico, geográfico,

biológico...), determinando uma temporalidade específica, de acordo com o

processo que tenciona representar. Assim, cada diagrama constitui uma

estrutura espacial e temporal diferenciada, funcionando como um mediador

entre o processo real descrito ou proposto e o campo conceitual que o

suporta e lhe fornece consistência, de acordo com a área do conhecimento

com o qual se relaciona.79

Trata-se de recurso utilizado nos mais diversos campos de conhecimento e pesquisa

– filosófico, artístico, científico, técnico, etc.: muitos livros e ensaios estampam

digramas dos mais variados formatos –, freqüentemente indicando a necessidade de

combinar a abordagem verbal de determinado assunto com uma possibilidade de

visualização que se impõe em algum momento. Está em jogo tanto uma insuficiência

da escrita linear em prover certo acesso ao núcleo de sentido que se quer mobilizar,

como a abertura para séries de relações próprias das formulações visuais que

incidem então na discussão, no momento mesmo de visualização do diagrama.

Trabalhar com diagramas torna-se mais interessante a partir do momento em que é

possível percebê-los além das categorias de uma semiótica ‘dura’ – para quem o

diagrama é um dos casos do “hipoícone” – uma vez que estas

estão ainda presas à necessidade de uma referência à presença anterior do

objeto e a um compromisso com o campo da representação, como se o

diagrama só pudesse ser pensado em função de sua eficiência em apresentar

relações pressupostas e pré-existentes entre as coisas, e nunca a partir de

79 R. Basbaum, op. cit., p. 61. Refiro-me diretamente aqui ao capítulo “Diagramas e processos de transformação” (pp. 61-79), em que o diagrama não é tomado como signo, à maneira de Peirce, mas como conceito, em proximidade com o trabalho de Deleuze e Guattari. As próximas citações referem-se diretamente a este capítulo.

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sua eficiência construtiva de poder constituir-se enquanto mapa das relações

produzidas no processo de proximidade máxima da experiência.80

E tal avanço foi possível quando o diagrama vem a se apresentar como “conceito”,

estabelecendo redes de conexão e ressonância com outros termos homólogos,

tornando-se participante de um campo operacional voltado a processos de

transformação – estando aí presentes a flexibilidade, velocidade e dinâmica

necessárias para tal tarefa. A partir deste momento,

Traçar um diagrama é operar, dentro de uma rede conceitual, um dispositivo

composto de imagens e palavras, que irá funcionar junto com outros

conceitos. (...) [O] diagrama como conceito é um dispositivo que indica a

ocorrência de um processo especial em um momento específico; o processo

implica uma conexão instantânea entre pelo menos duas realidades

disjuntivas heterogêneas (matéria/função, conteúdo/expressão,

enunciados/visibilidades, palavras/imagens...) e a conseqüente produção de

real com instauração de novas semióticas, isto é, um novo agenciamento

compreendendo pensamento, objetos, gestos. Ver/ler um diagrama é ser

capaz de experienciar esse agenciamento enquanto um processo de

transformação, envolvendo o desejo como força produtiva, com a constituição

de uma superfície de registro da intensidade da experiência; isto inclui a

metamorfose em um novo sujeito como possível resultado desse processo.81

Quando (em 1994) adotei a prática de trabalhar no desenho e concepção de

diagramas, procurando sempre articular de modo interessante linhas e palavras no

estabelecimento de contato com as circunstâncias em jogo no desenvolvimento de

cada projeto, estava claro que teria os diagramas “como ferramentas de produção

de pensamento – e não simples dispositivo para a apresentação de relações pré-

determinadas”; ou seja, instrumento em busca da “espacialidade própria da

articulação texto/imagem, o lugar em que as matérias da visualidade e do

80 R. Basbaum, op. cit., p. 66. 81 R. Basbaum, op. cit., p. 75.

Page 61: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

60

pensamento estabelecem um (necessariamente) dinâmico encontro produtivo”.82

Assim, procurei desenhar diagramas como elementos integrados a projetos variados

(instalações, ações, performances, textos, propostas de trabalho, etc.), utilizando-os

ao mesmo tempo como elemento plástico-estético e objeto de ligação entre as

camadas textual-discursivas – sejam textos imediatamente presentes para leitura no

aqui e agora do contato com a obra de arte, sejam textos latentes na forma de redes

de conceitos em operação, ‘nuvens de história’83 que se insinuam no espaço ou na

incitação do espectador-fruidor à fala. Trata-se de ter o diagrama em duplo uso:

voltado para si na proposição de uma experiência estética envolvente – a qual

investe em uma poética além da pureza visual; definido como ferramenta conceitual

a operar rumo às dimensões exteriorizantes e camadas conceituais que agregam

dimensões discursivas. Tal como foi proposto em texto recente, que aqui reproduzo:

Tenho trabalhado com diagramas, utilizando-os como ferramenta de ação em

duas direções básicas:

(1) Sempre composto de linhas e palavras, o diagrama é uma modalidade de

desenho (ou poema visual) que media o fluxo dinâmico entre palavras e

imagens – espaços discursivos e não-discursivos –, espaços literários e

plásticos, etc. Em um primeiro momento, pode ser abordado exclusivamente

enquanto elemento estético autônomo, na medida em que as linhas e

palavras cuidadosamente interconectadas em sua superfície satisfazem o

olho indicando movimento, vibração e velocidade. Além disso, seu fundo 82 R. Basbaum, op. cit., p. 79. 83 Indicando como os diversos encadeamentos entre trabalhos de arte de diferentes épocas se materializam de forma não-linear qual nuvens, que se fazem presentes naquele espaço, no contato direto com a obra. Deve-se ter em mente, entretanto, a necessária crítica a uma historiografia linear hegemônica que insiste em ver apenas estes encadeamentos (autonomia pura e absoluta da obra), sem perceber as outras séries de remissões que conduzem diretamente para o lado de fora da obra de arte (autonomia parcial e dinâmica). Estamos aqui em contato direto com o que Peter Pál Pelbart chama de “nuvem não-histórica”: “Deleuze cita Nietzsche, para lembrar que o Intempestivo é fruto de uma nuvem não-histórica”, que significa para Nietzsche “um grau de ilusão, de cegueira, de parcialidade, de horizonte restrito, de ignorância, de esquecimento, ou seja, de mistério, todo esse envoltório necessário para que o tempo se incline inteiro diante do instante da vida, nutrindo sua irrefreável paixão, credulidade, determinação, ousadia, amor por aquilo que está por vir, bem como sua injustiça e impiedade em relação ao que já existe ou o que existia anteriormente.” Peter Pál Pelbart, “Deleuze, um pensador intempestivo”, in Daniel Lins, Sylvio de Souza Gadelha e Alexandre Veras (Orgs.), Nietzsche e Deleuze - intensidade e paixão, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 70.

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61

monocromático – que constrói referência a um importante elemento do

vocabulário da pintura moderna – pretende tanto relacionar o diagrama à

arquitetura do local quanto propor um espaço sensorial intensivo que envolve

de modo ativo o espectador/leitor (visitante, observador, etc.). Mas, logo o

espectador/leitor é capturado pela sensação de que o diagrama o está

enviando a algum outro lugar: ‘deve haver alguma experiência real a partir da

qual os diagramas se desdobram; qual a teoria por trás do diagrama?’ (as

respostas são ‘não há; não existe atrás’). Este efeito diagrama quer indicar

que os trabalhos de arte não devem se constituir com um fim absoluto em si

mesmos (autonomia absoluta), mas produzir conexões concretas (reais) com

seu lado de fora: esta voracidade conectiva – sempre apontando para

relações que estão ali fora (isto é, externas) – indica que o êxtase sensorial é

agora alcançado como o próximo link ou conexão e não através de

sensações puramente estéticas. Aqui, desenhar é propor relações, construir

rede ou rizoma, conectar proximidade e distância: através de um impulso

ativo que leva você através de passagens, membranas e conexões, produz-

se valor.

(2) Os diagramas são ferramentas conectivas e portanto desempenham um

papel mediador entre diversos elementos – suas raízes no conceitualismo

encontram-se ‘logo aqui’: existem sempre camadas ‘invisíveis’ delimitando

cada situação concreta, cada nova proposição ou instalação, abrindo janelas

e portões para o lado de fora. Muitas vezes, tomo os diagramas como

ferramenta para conectar minha prática como artista a outros papéis no

sistema de arte – escritor, crítico, curador, agente – partindo da composição

monocromática visual/verbal para estabelecer diálogos com o outro (‘sim, o

diagrama compartilha uma condição dialógica implícita’). Seja, por exemplo,

ocupando a posição do artista-curador (artista-crítico, etc.) ou discutindo a

linha curatorial da própria exposição em que o diagrama está sendo exibido.

Aprecio a seguinte proposição: ‘a crítica de arte como forma privilegiada de

ficção contemporânea’. Neste sentido, é sempre interessante olhar através

dos diagramas em busca das camadas de ficção potencialmente implícitas –

Page 63: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

62

logo, cada diagrama aponta para diferentes tramas e complôs, tal qual

roteiros para filmes ainda-por-fazer. Se a maioria dos diagramas é desenhada

a partir dos pronomes eu e você, o principal motivo não é simplesmente

convidar você e eu para desempenhar partes específicas da ação, mas

enfatizar a presença de uma força rítmica (música, em sentido amplo) como o

principal impulso coordenando a combinação verbal/visual. 84

Ou seja, através da elaboração de diagramas, em diversos momentos, tenho

trabalhado no sentido de ocupar de maneira ativa a região – sempre efêmera – das

passagens entre realidades plásticas e discursivas. Nos termos do desenvolvimento

desta Tese, é importante apontar ainda a operacionalidade do diagrama junto à

Künstlertheorie – em que medida, afinal, contribui na evidenciação desta dupla

articulação, implícita nos gestos de intervenção no campo da arte contemporânea,

concretizando a prática de revezamentos plástico-discursivos. De fato, a maneira

como estamos abordando a teoria de artista não a identifica como um corpo teórico

– um opus qualquer – a reluzir em separado sobre a mesa, com formalização à parte

da construção plástico-sensível-visual: em tal formato, muito deste problema estaria

resolvido, pois os territórios identificados com prática e teoria não desenvolveriam

frentes comuns, interfaces e zonas de contato que multiplicam e complicam trocas e

passagens. Ao contrário, o risco que aqui se assume é o de ter a teoria de artista

como algo que se cristaliza nas regiões intermediárias entre obra e campo discursivo

– sem esquecer a turbulenta realidade permeada pelo “combate e captura” apontado

por Foucault – e que, portanto, implica em formulação difícil, quase impossível: tal

teoria se concretizaria sempre parcialmente, aos pedaços, em fulgurações

intermitentes e efêmeras a fluir naqueles momentos em que a atividade em torno do

agregado obra-discurso é intensa. É fácil passar ao longo de tal acontecimento, sem

nada perceber; como é também muitas vezes fruto do acaso fortuito a força singular

de um encontro; ou mesmo a intensidade acumulada, construída no passo-a-passo

do envolvimento, pode conduzir ao lugar em que esta formulação se impõe. Isto

porque uma teoria de artista – os contornos da Künstlertheorie como produto do

fazer teórico-prático – não existe como construção independente da obra de arte – e, 84 Ricardo Basbaum, “Diagrams”, in Casco Issues X, The great method, Emily Pethick e Peio Aguirre (Eds.), Utrecht, Casco - Office for Art, Design and Theory, Frankfurt, Revolver, 2007, pp. 91-92.

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63

como tal, somente pode funcionar (isto é, produzir efeitos, constituir campo próprio)

quando se conquista a possibilidade de construir tal encadeamento em modo

perceptivo: a teoria de artista não se materializa enquanto objeto à parte; a teoria de

artista é formada a partir do jogo duplo das idas e vindas entre obra de arte e

discurso, resultando deste processo de busca e investigação, entrelaçamento e

construção. É preciso um duplo trabalho – ler e ver, ver e ler, sucessiva e

fragmentariamente – e um trabalho em dupla –; espectador/leitor e artista, em

desafios respectivos e despistamentos recíprocos, acordarão a possibilidade fugaz

de um encontro em que as invenções plásticas e discursivas reforçam esse local, de

um evento, acontecimento: a Künstlertheorie é efetivamente o lugar em que se

multiplicam questões e efeitos, abrem-se possibilidades de que o gesto inicial faça

rede, rizoma – resistência e reforço, produção de pensamento. Não sendo objeto, é

da ordem do espaço, em suas várias implicações – mas sobretudo o lugar a partir do

qual a obra de arte é articulada discursivamente, configurando um tipo de agregado

plástico-discursivo de densidade própria, massa ou amálgama; processual,

informe85.

85 “Informe” não no sentido de ‘abjeto’ mas, como escreve Rosalind Krauss – em contato direto com Bataille –, “como um processo de ‘alteração’, no qual não existem termos essenciais ou fixos mas somente energias dentro de um campo de forças, energias que, por exemplo, operam nas mesmas palavras que marcam os pólos deste campo, de maneira tal que os impossibilita de sustentar firmemente os termos de qualquer oposição.” Rosalind E. Krauss, “The destiny of the informe”, in Yve-Alain Bois e Rosalind E. Krauss, Formless – A User’s Guide, New York, Zone Books, 1997, p. 245. Em relação à definição de Bataille, nos interessa destacar a ausência de formalização a priori da Künstlertheorie, configurando-se sempre como efeito processual de um espaço a conquistar, fugaz e intermitente, constituído nos interstícios das ações prático-teóricas em tarefa plástico-discursiva. Segue a formulação de Georges Bataille (em livre tradução): “Informe - Um dicionário começaria a partir do momento em que não mais fornecesse o sentido das palavras, mas suas tarefas. Assim, informe não é apenas um adjetivo possuindo tal sentido, mas um termo que serve para desclassificar, geralmente exigindo que cada coisa tenha sua forma. Aquilo que designa não possui direitos em qualquer sentido, e se faz esmagar em toda parte como uma aranha ou um verme. Com efeito, para que os homens acadêmicos fiquem contentes, seria necessário que o universo adquirisse forma. A filosofia como um todo não possui outro objetivo: trata-se de fornecer uma beca àquilo que é, uma beca matemática. Por outro lado, afirmar que o universo não se parece com nada e que é apenas informe equivale a dizer que o universo é alguma coisa como uma aranha ou um escarro.” [“Un dictionnaire commencerait à partir du moment où il ne donnerait plus le sens mais les besognes des mots. Ainsi informe n’est pas seulement un adjectif ayant tel sens mais un terme servant à déclasser, exigeant généralement que chaque chose ait sa forme. Ce qu’il désigne n’a ses droits dans aucun sens et se fait écraser partout comme une araignée ou un ver de terre. Il faudrait en effect, pour que les hommes académiques soient contents, que l’univers prenne forme. La philosophie entière n’a pas d’autre but: il s’agit de donner une redingote à ce qui est, une redingote mathématique. Par contre affirmer que l’univers ne ressemble a rien et n’est qu’informe revient à dire que l’univers est quelque chose comme une araignée ou un crachat.”] Georges Bataille, “Dictionnaire”, in Documents, nº 7, décembre 1929, p. 382. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb34421975n/date.

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64

Assim, se nos deslocarmos agora para um grupo mais específico e concreto

de diagramas – aqueles desenvolvidos dentro do âmbito do projeto Você gostaria de

participar de uma experiência artística? – teria início um desvio de percurso que

implicará em acrescer este texto hipertrofiado de aspectos diretos da presença de

elementos de funcionamento da dimensão plástica-sensível que aqui se debate e

implementa. Partimos diretamente do diagrama que acompanha o referido projeto

desde seu início, em 1994. Tratou-se, então, de prover Você gostaria…? de um

elemento diagramático – mapa, roteiro, registro – que pudesse articular em conjunto

as várias etapas a serem desenvolvidas, apresentando seus desdobramentos e ao

mesmo tempo acolhendo inflexões, deflexões e reviravoltas. Se quando o projeto

apenas começava, o diagrama do projeto se mostrou idealizado ao propor as etapas

de algo ainda a se desdobrar, sua configuração atualizada traz os traços de um

percurso que sobretudo submeteu o diagrama aos termos do que foi efetivamente

realizado, exibindo etapas concretas, indicando outros projetos e textos

desenvolvidos em paralelo e agregando necessárias observações que localizam o

projeto em relação a seu próprio percurso e a um conjunto mais amplo de

realizações dentro de meu próprio trabalho. Temos assim um conjunto de diagramas

que indicam, de modo acumulativo, diferentes momentos de um percurso, deixando

frestas para possibilidades futuras: estão ali demarcadas sucessivas camadas

temporais que contém tanto o percurso idealizado como aquele efetivamente

realizado, comentários pontuais acerca de alguns tópicos significativos, referências

conceituais internas, diálogo com outros projetos realizados em paralelo,

informações sobre número de experiências e cidades percorridas; e, sobretudo, o

diagrama tem como condição permanecer em aberto para acréscimos e

atualizações ainda por vir.

É importante que se registre desde já que de 1994 a 2008 foram produzidos

quatro diferentes diagramas dentro do projeto Você gostaria de participar de uma

experiência artística?: Fig. 76-80 o primeiro diagrama (diagrama 01) surgiu na

ocasião da apresentação inicial do projeto86 – ao ser trazido a público, o diagrama

86 Este diagrama, realizado originalmente em inglês como monotipia sobre placas de alumínio, foi mostrado nas seguintes exposições – que perfazem um conjunto que considero como o circuito de apresentação inicial de Você gostaria de participar de uma experiência artística?, incluindo ainda o

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65

01 limitava-se a apresentar as principais etapas e conceitos envolvidos, orientando-

se por certa idealização para o que se considerava importante ocorrer no âmbito do

projeto, mantendo-se porém em aberto para o que poderia vir a se constituir como

desvios ou derivações dos caminhos iniciais. Em seguida, o diagrama 02, produzido

em 200687, significou uma primeira atualização do diagrama inicial, procurando

contabilizar diversas ocorrências do longo período (1994-2006) em que o projeto

Você gostaria…? foi construindo seu percurso; além disso, já se fazia indicar ali a

mudança de escala em curso para o projeto, decorrente de sua iminente

participação na documenta 12 – daí o esforço em se demarcar um salto estrutural

qualitativo. Este diagrama torna-se assim importante por indicar de maneira clara

como se dá o procedimento interno de sua atualização: sem alterar qualquer dos

elementos (linhas e palavras) do diagrama inicial, os comentários e atualizações são

acrescentados ao que já existe, produzindo um novo diagrama que se superpõe ao

primeiro pela presença de elementos novos que irão ali atuar em camadas

sucessivas, por acumulação – assim, o que é acrescentado não provoca

apagamento ou aniquilação da primeira camada, mas funciona por enredamento

sucessivo, na intenção de que os novos elementos recondicionem o sentido inicial,

sem contudo eliminá-lo da superfície do diagrama: reforça-se então a condição do

diagrama como dispositivo que necessariamente atua em várias direções ao mesmo

tempo, fugindo de um sentido unívoco cristalizado em bloco e aproximando-o de um

encadeamento conceitual em camadas, no qual a mais recente não recobre a

anterior de maneira absoluta e em que o núcleo inicial mais profundo continua a

pulsar na superfície, em direta proximidade com o atual, tornando-se igualmente

presente. Se, então, a passagem do diagrama 01 para o diagrama 02 indicou um

grande salto de atualização, implicando no surgimento de novos blocos de sentido

em seu desenho geral, o diagrama 03, desenhado a seguir, manteve a mesma

estrutura do diagrama anterior, com o acréscimo de comentários específicos –

objeto em aço pintado e um display com folhetos para distribuição ao público: “Degree show”, Goldsmiths College, Londres, 1994; “Escultura Carioca”, Paço Imperial, Rio de Janeiro, 1994; "projeto NBP + 4 manifestos", Galeria de Arte e Pesquisa, UFES, Vitória, 1995 [exposição individual]; Você gostaria de participar de uma experiência artística?, Espaço Cultural 508 Sul, Brasília, 1997 [exposição individual]. 87 diagrama 02, impresso em lona, foi exibido nas mostras “Paralela 2006”, Ibirapuera, São Paulo, 2006 e Você gostaria de participar de uma experiência artística?, Museu Histórico de Santa Catarina, Florianópolis, 2006 [exposição individual].

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66

tratou-se de mais uma atualização com finalidade de acomodar o projeto para

participação efetiva de Você gostaria de participar de uma experiência artística? na

documenta 1288: era necessário naquele momento fornecer uma visão ampla do

percurso de trabalho, apontando para sua estrutura e desdobramentos, e

assinalando os flancos em aberto para se perceber a produção de novas questões.

Por fim, uma quarta versão, o “diagrama 4”, foi realizada já em 200889, incorporando

algumas observações decorrentes da experiência na documenta 12 e preparando o

diagrama para novos passos que poderão se seguir daqui para a frente – uma vez

que o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? enfrenta

agora demanda proveniente de uma projeção em escala mais abrangente e precisa

preocupar-se, ao mesmo tempo, com os caminhos para onde apontar e com as

indicações que não franqueariam inflexões de interesse. Logo, deve ficar claro que

estamos aqui trabalhando com uma seqüência de quatro diagramas (01 a 04), frente

aos quais nos interessa perceber os detalhes de sua construção/composição para

enfim mobilizar a configuração mais atual (diagrama 04): afinal, trata-se de o mesmo

diagrama, tornado outro pelo acréscimo de camadas de complexidade90, dotando-o

de um funcionamento em ritmo processual fundamental – dentro do leque de

questões propostos por esta Tese – na construção do percurso que conduz ao local

das articulações obra/discurso. Cabe agora, com alguma brevidade mas atento a

detalhes, acumular aqui um conjunto de observações mais acuradas acerca destes

quatro diagramas – para em seguida mobilizá-los – em sua versão mais atual – no

âmbito direto das proposições deste texto.

diagrama 01: como já foi assinalado aqui, este diagrama foi produzido ainda no

início do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, como

parte diretamente integrante de seus elementos iniciais. Assim, ao ser lançado – ou

88 A instalação exibida na documenta 12, Kassel, 2007, era composta de diagrama, painel com texto, e estrutura arquitetônico-escultórica – sob o título de Would you like to participate in an artistic experience?. Uma descrição mais apurada da instalação poderá ser encontrada no capítulo seguinte desta Tese. 89 “diagrama 4” integra as mostras “Quase líqüido”, Itaú Cultural, São Paulo, 2008 e “Estratégia”, Plymouth Arts Centre, Plymouth, 2008. 90 “A questão da complexidade é prática: ela se coloca quando um encontro ‘empírico’ (…) impõe um novo questionamento do poder atribuído a um conceito e atualiza uma dimensão da interrogação prática que tal conceito ocultava.” Isabelle Stengers, Quem tem medo da ciência? Ciências e poderes, São Paulo, Siciliano, 1990, p. 171.

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67

seja, exibido em público pela primeira vez –, Você gostaria...? trouxe como um de

seus protagonistas o diagrama, ao lado do objeto e do folheto de instruções para

participação. É possível perceber hoje que estes três elementos (diagrama, objeto,

instruções) seguem como operadores principais de Você gostaria…? – constituindo-

se como veículos básicos para seu funcionamento e atualização, sendo

necessariamente reprocessados continuamente: o objeto, através de seus usuários,

participantes do projeto; as instruções, por meio da readequação de sua

diagramação e texto; o diagrama, como já dissemos, pelo acréscimo de elementos e

camadas em enredamento conceitual sucessivo. Torna-se importante tornar mais

próxima a organização deste primeiro diagrama, uma vez que estão ali marcadas

algumas das áreas constituintes do projeto em suas delineações principais, assim

como uma seqüência de eventos que indica etapas de sua efetuação. O diagrama

01 propõe oito etapas, compreendendo (1) a presença inicial do objeto, (2) sua

oferta em público, (3) o perfil do participante e tempo de participação, (4) (5) a

realização da experiência e seu registro, (6) a relação do artista frente às

participações, (7) a apresentação final do projeto e (8) os efeitos da transformação

pretendida sobre espectador, artista e próprio projeto. Há um cenário assim

desenhado que deixa claras algumas ênfases que se considerou importantes para

que Você gostaria…? pudesse ser deflagrado: era importante deixar claro que o

objeto proposto para as experiências não se reduzia às suas características

materiais, sendo composto também de uma dimensão conceitual; seria preciso ir de

encontro a um público ou audiência para construir o interesse necessário que

conduzisse às participações; estas, se dariam não apenas com a utilização do objeto

físico, mas também de sua dimensão conceitual, pois somente assim se poderia

empreender alguma transformação a partir da hibridização do espectador

participante com o objeto e seus conceitos; seria importante que as experiências

fossem registradas pelos próprios participantes; o artista de algum modo deveria

reagir aos registros das experiências, que constituem o arquivo do projeto; deveria

haver algum forma de apresentação dos resultados (das experiências e seu

arquivo), relacionada aos espaços do circuito de arte; estes resultados seriam

levados em conta sob a perspectiva aguda de implicar em efeitos de transformação

e problematização também em relação ao artista e o projeto, e não somente em

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68

referência ao participante. É preciso deixar claro que o que singulariza o diagrama

01, sobretudo, é seu caráter prospectivo – pois, afinal o projeto Você gostaria…?

estava sendo apresentado como algo a ocorrer, ainda a ser testado em sua

operacionalidade e funcionamento: o projeto despertaria interesse, atrairia

participantes, produziria resultados e efeitos? Nesse sentido, se, por um lado, as

etapas propostas e suas descrições explicitadas nos diagramas se colocam como de

certo modo ‘idealizadas’ – no sentido de ainda não possuírem o enfrentamento junto

à realidade de viabilização do projeto frente à pragmática do mundo –, por outro,

estas demarcações funcionam também como programa, no sentido de inscreverem

já, desde esta etapa primeira, certos posicionamentos referenciais que guiarão de

modo pulsante e fluido os desdobramentos que se irão se apresentar, mantendo

espaços para que se renove e se adapte às situações que enfrentará. Em termos

gerais – que serão ainda tomados mais à frente em maior minúcia – trata-se de

trabalhar certos núcleos de sentido como deflagradores de todo o processo

articulado pelo projeto: as presenças da obra de arte (objeto + conceitos),

espectador participante (produtor da experiência em relação intensiva com a obra) e

artista (organizando o arquivo e reagindo aos ‘resultados’); a tematização dos

espaços e formas de contato entre obra, espectador e circuito de arte (enquanto

espaço público de circulação e de exibição); o eixo conceitual processual a articular

o conjunto (transformação). Cabe por fim destacar desde já um elemento particular

do diagrama – indicador em grande medida da disponibilidade apresentada (pelo

diagrama, mas também pelo projeto Você gostaria…?, de modo amplo) em

incorporar e sobretudo oferecer espaço para comentários e atualizações sucessivas,

pequenas contradições e desvios, aceitos como matéria concreta do trabalho.

Refiro-me à última etapa, de nº 8, em que é apresentada a frase

“O que acontecerá com:

o projeto NBP?

o espectador?

o artista?”

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69

Esta tripla pergunta, envolvendo obra, espectador e artista, reverbera diretamente a

pergunta que nomeia o projeto: você gostaria de participar de uma experiência

artística? – trata-se então de formular “pergunta dentro de pergunta”91, a qual é

lançada no diagrama em referência ao momento em que o processo desenvolvido

pelo projeto deve ser percebido, pensado e reprocessado por seus protagonistas,

cada qual a seu modo ao mesmo tempo sujeito e objeto das ações. Ao finalizar o

percurso de suas diferentes etapas em um conjunto de ‘pontos de interrogação’, o

diagrama aponta para sua própria continuidade, ao deixar em aberto as conexões

com obra, artista e espectador: logo, estas interrogações indicam conexões em

aberto, extremidades prontas a “fazer rede ou rizoma” com o que virá a seguir, fruto

do próprio processo – aberturas para assimilação do que está por vir. Trata-se de

verdadeiro limiar de risco do diagrama, pois afinal o horizonte para o qual aponta

poderia ser aquele das respostas e não o das problematizações: seria este então o

caso de um encerramento absoluto do projeto, com satisfação das inquietudes

trazidas à superfície. Assim, é fundamental que esta tripla interrogação seja

compreendida – e mais do que isso, trabalhada nesta direção – como conexões em

aberto, acolhendo com característica voracidade os efeitos produzidos pelas

maquinações do projeto. O qual mostra-se, desde o início, interessado e afim à

dinâmica que ele mesmo produz – buscando complexificar-se e alimentar-se dos

desvios produzidos –, receptivo à alteridade das problematizações contínuas.

diagrama 02: Este segundo diagrama se caracteriza por um forte salto em relação

ao diagrama 01, com a inclusão de novos elementos que o envolvem, sem contudo

apagá-lo: o diagrama inicial é mantido intacto em seu interior, sendo portanto

conservadas as etapas e considerações apontadas acima, quanto às linhas de

funcionamento do projeto. Os acréscimos somam novos conjuntos de linhas e

palavras, que foram situados no diagrama junto a tópicos que necessitavam ser

comentados em função do efetivo desdobramento do projeto no período 1994-2006

– ou seja, entre o planejamento do diagrama 01 como programa prospectivo (1994)

e uma sua primeira atualização (2006) em face aos acontecimentos trazidos pelo

91 Cf. Ricardo Basbaum, "(?)? (Pergunta dentro de pergunta)", Arte & Ensaios, nº 7, Rio de Janeiro, 2000, pp. 115-119. Este texto foi apresentado originalmente em palestra realizada no Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho (Castelinho do Flamengo), no Rio de Janeiro, em 29/01/96. V. Anexo Textos

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70

período subseqüente de desenvolvimento. Por um lado, são acrescentadas

informações através de novos elementos factuais que tornam o diagrama um painel

de registro do ocorrido neste intervalo de tempo; por outro, são expandidos

elementos conceituais do projeto Você gostaria…?, estabelecendo um diálogo maior

entre outros trabalhos e projetos realizados no período; e, ainda, certas passagens

pontuais em etapas precisas ganham comentários que indicam diferenças entre

linhas de projeto e linhas de efetiva realização. Assim, enquanto dados que

requererão daí para adiante atualização constante, figuram no diagrama 02 a

listagem das cidades por onde passou o objeto; o número de experiências

realizadas até então; a indicação de que vinte novos objetos estavam sendo

produzidos para entrar em circulação (apontando já para a documenta 12, a ocorrer

em 2007) – vale dizer que estes índices e listagens constam também do website do

projeto que estava sendo lançado praticamente no mesmo período (setembro de

2006). Ocorre então que os diagramas passam a exibir em sua trama números e

indicadores que imediatamente trazem informações do estado atual do projeto –

entretanto, esses dados não assumem posicionamento ostensivo no conjunto do

desenho, evitando que seja descaracterizado enquanto mero painel informativo.

Junto à etapa 1 do diagrama, estão situados dois novos grupos de elementos, cuja

presença é significativa – ambos estão associados, no diagrama, ao objeto (“objeto

+ conceitos”), personagem principal de Você gostaria de participar de uma

experiência artística?, parte do projeto NBP - Novas Bases para a Personalidade: lê-

se primeiramente um conjunto de termos composto de títulos de instalações, ações

e séries de trabalhos desenvolvidos em paralelo a Você gostaria…?, a partir de

1994: a indicação é que “jogos eu x você”, “superpronome”92, “nbp x eu-você”93,

“transatravessamento”94 e “passagens”95 passam ser pensados – através do

diagrama – em articulação com Você gostaria…?, na construção de conexões e

relações de formatos variados (sejam conceituais, formais ou operacionais) que

expandem o sentido dos projetos envolvidos e torna presente uma rede conceitual 92 Os “jogos eu x você”, também chamados de “coreografais superpronome” foram apresentados pela primeira vez na exposição "Palavreiro", Funarte, Rio de Janeiro, 1997; desde então integraram diversos eventos, exposições e oficinas, no Brasil e no exterior. Fig. 34-37. 93 Instalação apresentada pela primeira vez no MAM-RJ em 2000. [exposição individual] Integra, desde 2004, a Tate Collection, Londres. Fig. 19-20. 94 Instalação apresentada na 25ª Bienal de São Paulo, 2002. Fig. 25-26. 95 Instalação apresentada na Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001. Fig. 21-22.

Page 72: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

71

em que os diversos trabalhos multiplicam diálogos entre si. A visualização/leitura do

diagrama 02 permite que em uma visada direta o projeto Você gostaria…? não seja

tomado de maneira isolada dentro da obra de um artista, mas percebido como parte

de uma pesquisa desdobrada em ações que apontam para diversas direções ao

mesmo tempo. Não caberia ao diagrama alongar – sob forma discursiva – a

extensão das associações e remissões possíveis (tarefa também do

espectador/leitor), as quais (no âmbito do que se propõe nestas páginas) estariam

presentes no corpo informe da possível Künstlertheorie que aqui se insinua –, pois é

claro que há um investimento na potência própria do diagrama em mediar a

presença latente de uma dimensão discursiva, que se anuncia a partir do contato

intensivo com o objeto plástico. Vale aqui a lembrança de que no território

operacional deste escrito hipertrofiado (Tese) será necessária uma terceira parte

para enfatizar de modo decisivo o que aqui apenas emerge de modo sutil – e o

diagrama é peça-chave nessa passagem, verdadeiro exercício de fricção entre os

limites dos fazeres artístico e textual. É na mesma direção de mobilização do

diagrama enquanto dispositivo plástico-discursivo que se considera a inserção do

segundo bloco de textos, também em conexão com a etapa 1 do diagrama 02: os

três grupo de “tríades” multiplicam e reverberam as “três idéias-vetores principais”,

presentes no texto inaugural do projeto NBP96 – às proposições (tríade 1)

“imaterialidade do corpo”, “materialidade do pensamento”, “logos instantâneo”

somam-se (tríade 2) “espaço negativo”, “transparentes conceitos”, “geléia adversa”97

e (tríade 3) “transatravessamento”, “adversa geléia”, “artista-etc”98. Estão articuladas

aí algumas linhas conceituais estruturadoras do projeto NBP, de modo amplo,

produzindo entrecruzamentos não somente entre si mas igualmente entre outras

séries de trabalhos, com referências também ao campo da cultura. Conforme foi

indicado acima, existe um tensionamento lentamente acalentado e gerenciado na

tessitura do diagrama em que a presença das palavras em entrelaçamento com a 96 Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”, apresentado na abertura desta Tese. 97 Proposições gravadas em objeto moldado em acrílico e doado ao Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos por ocasião de sua participação no projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? em Brasília, de setembro de 1997 a abril de 1998. Fig. 60-63. Estas proposições são desenvolvidas em texto próprio, disponível no anexo deste Tese. 98 Proposições gravadas em objeto moldado em acrílico que integrou a instalação “Sistema-Cinema”, apresentada no evento Interculturalidades, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002. Fig. 50-52. Estas proposições são desenvolvidas em texto próprio, apresentadas no mesmo evento e em outras instalações, disponível no anexo desta Tese.

Page 73: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

72

estrutura plástica remete a um lugar outro, sob a promessa de um acontecimento

relacionado à teoria de artista: as tríades atuam precisamente neste lugar a vir,

desencadeando o efeito de auxiliar diretamente na delimitação deste local cujos

limites estão sempre em negociação. Um último conjunto de elementos acrescidos a

este segundo diagrama consiste em oito grupos de pequenos comentários que se

fez necessário posicionar em pontos específicos, respondendo diretamente à

demanda de redefinir certos caminhos de Você gostaria…? – propostos no diagrama

01 – que, com o real desenvolvimento posterior do projeto, mostraram-se propensos

a ajustes. Refiro-me a: junto à etapa 3 (espectador) percebeu-se que o participante

poderia ser não somente o “indivíduo”, mas também “grupo” ou “coletivo” – abrindo

caminho para sujeitos de grupo; e também que não se deve limitar a “um mês” o

tempo de experimentação com o objeto, sendo indicado então “tempo variável” –

pois de fato no histórico do projeto tem ocorrido que este tempo deve ser sempre

flexibilizado, de acordo com diversas circunstâncias, sendo negociado a cada vez

com cada participante. Junto à etapa 6 (artista), acrescentou-se informação em

relação à documentação produzida pelos participantes (“vídeos, fotografias, objetos,

textos”), ao tipo de autor produzido pelo projeto (ou seja, há necessariamente uma

relação de “inter-autoria” a ser decifrada, quando participantes produzem

documentos a partir do objeto fornecido pelo artista, o qual, por sua vez, relaciona-

se com estes elementos ao organizar seu trânsito e exibição públicos, a partir de

demandas próprias); além disso, no longo período entre 1994 e 2006, em que Você

gostaria…? foi adquirindo sua velocidade de deslocamento, pude perceber que o

artista propositor deve continuamente negociar sua distância de ação em relação ao

projeto – pois certos episódios requerem proximidade e quase intervenção,

enquanto que outros exigem postura distanciada de um quase ‘abandono’ – na

busca de re-construção do estranhamento e de não-interferência: daí grafar o termo

“presença-ausência-presença” como indicador desta permanente oscilação autor-

obra implicada em Você gostaria…?. Também junto à etapa 7 são trazidas duas

novas observações, desta vez relacionadas à organização dos ‘resultados’ obtidos a

partir das experiências realizadas – trata-se aqui do problema de como construir o

espaço de apresentação de tais ‘resultados’, de que maneira trazê-los a público:

ainda que mais idealizado, o projeto inicial já indicava esta demanda enquanto

Page 74: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

73

programa, apontando como importante uma “apresentação final: novos trabalhos,

novos conceitos” – pensava-se então principalmente no espaço da “galeria”, como

aquele em que deveriam vir a público os ‘resultados’ (compostos, significativamente,

de “trabalhos” e “conceitos” – de produção tanto dos participantes quanto do artista);

entretanto, foi evidenciando-se que o espaço mais adequado para uma exposição

pública permanente e dinâmica de imagens, textos e vídeos produzidos pelos

participantes seria mesmo aquele de um website, desenvolvido ao mesmo tempo

como “banco de dados” e “ferramenta participativa”99. Em relação ao problema da

“apresentação de resultados”, foi inserido também o comentário “desenvolvimento

de estrutura arquitetônico-escultórica [2007]”: ainda que só tenha sido montada

meses depois, especificamente para a documenta 12, esta construção se

apresentava como solução possível e interessante para trazer a público a

documentação acumulada pelo projeto Você gostaria…? (voltaremos a este

problema mais adiante, em maiores detalhes). Finalmente, as três perguntas

características da etapa 8 (“O que acontecerá com: o projeto NBP? o espectador? o

artista?”) são complementadas pela referência ao texto já indicado acima (ver nota

89), que procura trabalhar a auto-problematização do projeto como abertura para

próximas conexões – entretanto, mais do que desenvolver este tema específico, a

importância do acréscimo desta referência ao diagrama inicial se dá por trazer de

modo claro a intertextualidade100 e hipertextualidade101 latentes do diagrama –

aproximando a rede de textos que informam a rede discursiva que está se buscando

trabalhar aqui, ao redor de Você gostaria…? e constituinte da teoria de artista. Há

ainda um último e importante bloco ampliado na passagem do diagrama 01 para o

diagrama 02: o reconhecimento de que poderiam ser percebidas até aquele

99 O website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, hospedado em www.nbp.pro.br, entrou no ar em setembro de 2006. Foi desenvolvido em conjunto com Romano e a empresa Tecnopop. 100 No sentido de que o diagrama, em sua apresentação gráfica de elementos sempre em conexão, demonstra a máxima de que “o discurso é trabalhado pelos outros textos – ‘todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos’ – , atravessado pelo suplemento sem reserva e a oposição vencida da intertextualidade”. Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das ciências da linguagem, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1973, p. 422. 101 No sentido de “blocos de texto individuais (…) interligados por links eletrônicos”: ainda que nestes diagramas não se tenha a ferramenta eletrônica efetivamente em ação, é bastante evidente que sua estrutura conduz diretamente ao hipertexto, justamente por combinar texto e imagem em arquitetura conjunta – como se cada elemento possibilitasse um clique que conduziria a algum outro lugar (texto ou imagem ou combinação dos dois) em espaço interno ou externo do diagrama mesmo. Cf. George P. Landow (Ed.), Hyper/Text/Theory, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1994, p. 1.

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74

momento três fases na dinâmica do projeto Você gostaria de participar de uma

experiência artística? – “fase 1: 1994-2000”, fase 2: 2000-2004”, “fase 3: 2004-“. Em

sentido amplo, as fases se referem, por um lado, à própria relação artista/projeto –

que se modificou ao longo dos anos de uma atuação prospectiva-expositiva

(indicando a necessidade de expor a dinâmica de um projeto ainda a se realizar,

procurando envolver os possíveis participantes em suas promessas) para uma

prática prospectiva-administrativa (procurando conduzir um projeto que conquistou

velocidade própria de modo a mantê-lo em aberto, atento a novas possibilidades).

Por outro, na medida em que Você gostaria…? vai construindo sua própria memória

e acumula história(s), foi possível perceber o momento em que começou a

movimentar-se por conta própria – por volta do ano 2000 (passagem da fase 1 para

fase 2) e o momento em que necessitei aproximar-me novamente do projeto para

garantir sua continuidade em momento de impasse – por volta de 2004 (passagem

da fase 2 para fase 3). Esta última fase é demarcada por duas situações que

conduzem a um mergulho de intensidade na demanda própria de Você gostaria de

participar de uma experiência artística? – e que certamente constituem momentos

de forte impulso, a prometer desdobramentos à frente (abertura de uma fase 4?):

sua apresentação como projeto de Tese de Doutorado na Escola de Comunicações

e Artes da Universidade de São Paulo; e a participação na documenta 12 (que veio

a ser a primeira exibição pública do projeto, em todas as suas etapas).

diagramas 03 e 04: Estes dois últimos diagramas se diferenciam do diagrama 02 por

incluírem alguns pequenos ajustes – afinal, a passagem do primeiro para o segundo

diagrama representou exatamente um esforço para o desenvolvimento de um

procedimento que possibilitasse as contínuas atualizações necessárias, no ritmo de

desenvolvimento do projeto, sem que isso implicasse na eliminação da camada

anterior, resultando em um diagrama que ao mesmo tempo segue indicando o

programa de Você gostaria de participar de uma experiência artística? em sua

dimensão prospectiva, assim como os efeitos, modificações e reconsiderações

decorrentes de seu efetivo exercício. O diagrama 03, finalizado em 2007 para

apresentação na documenta 12, incorpora apenas três elementos novos: em relação

direta com as “três tríades” (comentadas acima), foram acrescentados os termos

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75

“dinâmica de grupo”, “trauma”, “ensaio-ficção”, que representam uma primeira

tentativa de integrar entre si cada um dos conjuntos de três tópicos (tal qual “tríade

das tríades”) para deles extrair palavras-de-força ali implicadas, que funcionariam

ativando os três conjuntos e acionando seus referenciais de mobilidade e ação –

cruciais, de fato, para o jogo de ação poética pretendido e praticado no projeto NBP

(e, por extensão, em Você gostaria…?). Na região do diagrama em que se situa a

etapa 2, aparece agora um comentário que se contrapõe à ambição inicial –

programática – de situar o projeto dentro de uma estratégia forte de deslocamento

em circuito de ‘comunicação de massa’: tornou-se oportuno modular a frase “O

Objeto e o projeto NBP serão divulgados via imprensa, rádio, televisão, …” através

da presença dos comentários “resistência à massificação”, “qualidade do contato

dialógico" e “continuidade da conversa”: assim, ainda que se reconheça que o

projeto NBP possui compromisso com o campo comunicativo no sentido de se

aproveitar de diversas estratégias para um rápido deslocamento (imagético,

conceitual) em infovias, a prática de condução do projeto Você gostaria…? apontou

para a necessidade de não se perder um referencial dialógico possível, desdobrando

o contato com participantes dentro dos referenciais de uma qualidade de conversa –

resistindo ao impessoalismo decorrente da comunicabilidade mecânica unidirecional

e passiva. Outro pequeno detalhe que se soma neste diagrama 03: o espectador

(etapa 4), programaticamente grafado como “participante” (diagrama 01) e em

seguida melhor percebido como “indivíduo, grupo, coletivo” (diagrama 02), é agora

assinalado como “indivíduo, grupo, coletivo, instituição” – acréscimo resultante da

inclusão de escolas, unidades universitárias, entidades sociais e outros

agrupamentos como participantes do projeto Você gostaria…? a partir do final de

2006. Finalmente, deve ser mencionada a atualização de dados, com a inclusão de

novas cidades e aumento do número de experiências realizadas – como já foi dito,

estes dados requerem atualização constante, a cada novo diagrama. Por sua vez, o

diagrama 04 foi elaborado procurando receber alguns elementos relacionados à

situação do projeto logo após o período da documenta 12. Deve ser compreendido,

entretanto, que tais efeitos ainda se farão sentir em prazo maior – trata-se de

experiência demasiado recente, que requer processo de elaboração alongado

(sendo este texto hipertrofiado apenas uma das ações nesse sentido). Logo, apenas

Page 77: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

76

dois tópicos foram acrescentados ao diagrama, em recente exibição pública: junto

ao conjunto de títulos de instalações, ações e séries de trabalhos, agrupados em

conexão à etapa 1 do diagrama inicial, foi localizado o termo “obs.”, referente a

projetos desenvolvidos desde o final de 2004102 com a utilização de pequenas

barreiras junto ao chão, desafiando o espectador a ultrapassá-las (ou não); ao lado

do elemento “desenvolvimento de estrutura arquitetônico-escultórica” (etapa 7)

agora se coloca também a frase “museu dentro do museu”, mencionando a condição

desta estrutura arquitetônico-escultórica – incorporada ao projeto desde a

documenta 12 – enquanto elemento expositivo montado em situação institucional

(museológica). Ou seja, tendo sido construída especificamente para agrupar a

memória do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?

(vídeos, imagens, website), esta estrutura a seu modo constitui um museu para o

projeto, mediando – entretanto – de maneira ativa a presença de tal memória no

espaço institucional do museu (ou galeria) – pois, ao se definir ao mesmo tempo

como escultura e arquitetura investe simultaneamente na experiência sensível dos

espaços e no abrigo do corpo, assimilando e espacializando a dupla condição

sensorial-conceitual.

Assim, o diagrama se coloca para o projeto Você gostaria de participar de

uma experiência artística? tanto como programa de trabalho como superfície de

registro, com a particularidade de acomodar as transformações sucessivas sem

eliminar camadas anteriores – em um efeito anti-palimpsesto. Nesse sentido, na

medida em que Você gostaria…? se coloca como um projeto em aberto, em franco

funcionamento e enfrentamento das coisas do mundo, pode se esperar que este

diagrama vá continuamente sendo ampliado em acomodações sucessivas: mas o

cuidado aqui – na verdade, fundamental – é trabalhar as camadas deste

enredamento conceitual de modo a manter continuamente sua característica

prospectiva de mapa-programa em aberto; ou seja, qualquer vestígio de finalização

é aqui visto como cristalização e paralisia do projeto em seu tônus e dinâmica. No

102 Instalação apresentada em “psiu-ei-oi-olá-não”, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2004 [exposição individual], “3 escenarios”, CAAM - Centro Atlantico de Arte Moderno, Las Palmas de Gran Canaria, Espanha, 2005 e “Be what you want but stay where you are”, Witte de With, Rotterdam, Holanda, 2005.

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77

contexto deste texto hipertrofiado, o diagrama está sendo mobilizado como agente

direto – ferramenta em sua construção – das manobras em torno da Künstlertheorie,

uma vez que realiza a mediação entre obra e camadas discursivas – sendo ele

mesmo (diagrama) um composto duplamente articulado pela mistura e

enfrentamento de linhas e palavras, com entradas e remissões múltiplas (conexões

em aberto) e vocação inter- e hiper- textual – além de oferecer fluxos de associação

inter-imagética ao remeter diretamente a outros conjuntos de obras, que multiplicam

e reforçam a poética em jogo. O mergulho pelas passagens e entradas oferecidas

pela rica superfície do diagrama permite acesso à textura reveladora dos efeitos

destas diversas conexões – que, em funcionamento, acionam a dinâmica da teoria

de artista: ou seja, não um conjunto de textos finalizado e linearmente estabelecido,

mas a instigante dinâmica de sua vibração junto à obra plástica. O desafio deste

texto é proporcionar tal emergência – a presença e consistência de uma camada

discursiva complexa e múltipla como matéria produzida pela obra mesma, ou

melhor, como materialidade indissociável da obra plástica que cabe o artista – com

maior ou menor engajamento e comprometimento junto às suas conseqüências –

administrar em seus variáveis graus de afloramento e emergência. Logo, cabe

destacar mais um diagrama da série que estamos comentando aqui, desta vez

incluindo ali elementos especificamente desenvolvidos para a articulação desta

pesquisa. Foi então traçado o diagrama 05, procurando localizar na superfície do

diagrama 04 (a versão mais atualizada até este momento) certas áreas e núcleos de

problematização de Você gostaria de participar de uma experiência artística? e do

projeto NBP – para, a partir daí, em esforço de elaboração discursiva, agregar

elementos que comporiam uma teoria de artista em funcionamento, agindo por entre

as camadas de entrelaçamento de obra de arte e discurso.

diagrama 05: Diferencia-se do diagrama 04 pela demarcação de oito áreas de

interesse, a partir das quais foram extraídos blocos de conceitos associados a cada

uma delas – trata-se de articular, no diagrama, regiões de problematização para a

partir delas trazer à superfície algo da teia conceitual ali implicada. Mais do que

problematizar o próprio diagrama em sua estrutura, composição e construção, esta

operação seria melhor definida como extração conceitual, uma vez que utiliza o

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78

diagrama como instrumento organizador das passagens entre as dimensões

sensível e conceitual, procurando seu auxílio para acessar a região de contato entre

obra e discurso – região intensa que nos interessa enquanto espaço de ocorrência

de uma dinâmica potente da obra de arte. Mas não se trata de extrair blocos

estabilizados de conceitos para posterior análise (como se fossem objetos

recobertos por camadas, a serem desenterrados) mas torná-los presentes e ativos

como verdadeiros veículos de interligação entre obra e discurso. Assim, os oito

blocos constituem agregados conceituais temáticos a serem desmembrados em

operação textual, a qual necessariamente implica em escolhas e caminhos frente à

rede de múltiplas entradas tornada visível a partir do diagrama. Claro que cada

sujeito interessado nesta operação certamente irá extrair blocos de conceitos de

perfil diferente daqueles que aqui serão apresentados – trata-se de procedimento

exteriorizador de uma cartografia não neutra, reveladora de quem e de onde se

opera, indicadora de interesses em jogo e de disputas a delinear. Aqui nos interessa

agregar certos tópicos afins ao próprio projeto de trabalho artístico-conceitual e sua

poética, associados diretamente à ação do artista e suas responsabilidades quanto à

articulação prático-teórica pertinentes a uma teoria de artista. Foram, desse modo,

organizados os seguintes blocos de agregados conceituais, relacionados às etapas

programáticas do diagrama, estabelecendo correspondências e encadeamentos –

lembrando que para esta operação foi necessário localizar no diagrama certas áreas

de interesse, em relação às quais os tópicos temático-conceituais serão

desenvolvidos (abaixo, alinhamos os elementos conceituais referentes a cada

bloco):

Bloco 1: tríades, ensaio-ficção,manifesto NBP;

Bloco 2: hipervírus, marca, trauma, micropercepção, comunicação;

Bloco 3: membrana, linha orgânica, escultura-conceitual, espaço háptico, tatilidade;

Bloco 4: experiência, incorporação, sujeito híbrido;

Bloco 5: atores participantes, papéis, circuito, artista-etc (agenciador, curador,

crítico), autoria compartilhada;

Bloco 6: polifonia, dialogismo, crítica;

Bloco 7: escultura social, rede, comunidade;

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79

Bloco 8: espaço público, politização, resistência, arte vida, arquivo como

membrana;

Os termos que constituem cada um dos blocos destes oito agregados irão articular o

desdobramento de uma seqüência de narrativas teórico-poéticas, através da

utilização de escrita que inclua colagem e invenção, em que o sentido se construirá

entre os “museus da arte e da linguagem” (Smithson) – em contato com ambos os

campos, buscando insinuar-se em confronto contra a cristalização dos fluxos entre

eles (tarefa a evitar): a procura é pela dinâmica que anima as relações de

consistência através das quais a prática do artista se faz ao mesmo tempo

discursividade e plasticidade. Se a composição dos oito blocos apresentada acima

combina tópicos de origens e remissões diversas – envolvendo desde materiais

conceituais gerados diretamente a partir da prática de Você gostaria de participar de

uma experiência artística? e de projetos paralelos de atuação (“tríades”, “artista-

etc”), até terminologia desenvolvida em proximidade com autores com os quais o

projeto encontrou afinidade (por exemplo: “micropercepção”, José Gil e Suely Rolnik;

“hipervírus”, Thierry Bardini; “sujeito anfíbio”, Paolo Virno) – é porque o que se

promete a partir de agora pretende invadir outra textura e dicção, experimentar

diversa modalidade de produção de sentido, contribuindo assim para a construção

deste texto hipertrofiado através de diferentes vias de acesso à palavra. Para cada

Bloco de agregados temáticos conceituais, um segmento de texto próprio irá

demarcar certos limites de funcionamento – fluidos – que buscam de fato

ressonâncias não-lineares, muitas vezes locais, mas que perseguem alcance mais

longo; ou seja, à procura de estabelecer uma condução multidirecional tal qual a

estrutura e funcionamento de um hipertexto, abandonando sistemas conceituais

centralizados e substituindo-os pela “multilinearidade, nós, links e redes”103 – não no

sentido, como já dissemos, da adoção literal do suporte eletrônico, mas sim por

deixar a organização do trabalho escrito ser permeada por “muitas redes [que]

interagem, sem que uma delas seja capaz de ultrapassar as outras; este texto (…)

não tem início; é reversível; ganhamos acesso a ele através de várias entradas,

nenhuma das quais pode ser autoritariamente apontada como a principal; mobiliza 103 George P. Landow, Hypertext 2.0 – the convergence of critical theory and technology, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1997, p. 2.

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80

códigos que se estendem até onde a vista pode alcançar…”104. Assim pretende-se

habitar e produzir a partir do espaço intermediário em que visibilidades e enunciados

se tensionam de modo incessante, abrindo-o e franqueando-o à percepção – esta

seria a chave de acesso ao texto que propõe um funcionamento como obra de arte;

ou seja, mais significativo seria obter tal dinâmica, e nem tanto assumir condição

física enquanto tal, nos termos de uma materialidade específica.

Uma teoria de artista ou Künstlertheorie existirá aqui – junto a Você gostaria

de participar de uma experiência artística? – na medida em que souber se impor

enquanto camada discursiva efetivamente produzida e criada em conjunto com a

produção plástica, elemento sensível a provocar os sentidos e a percepção,

presente em máxima proximidade à obra em sua intervenção e ocupação dos

espaços e em seu funcionamento efetivo – invadindo corpos.

* * *

Os textos que se seguem propõem um outro tipo de escrita para o

prosseguimento desta tese: perseguiremos uma costura de proximidade e fluxo,

composta tanto de textos novos como preexistentes, na intenção de constituir a

espessura necessária à efetivação do encontro proposto.

104 Passagem de Roland Barthes em S/Z, citada por G. P. Landow, op.cit., p.3.

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C

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82

C: 8 blocos, escrita retro-prospectiva

A partir de agora é preciso ter o diagrama 05 como referência de percurso, detendo-

se nas regiões indicadas pela numeração referente aos blocos conceituais

dinâmicos ali assinalados. Fig. 80

Bloco 1 tríades, ensaio-ficção, manifesto NBP

Se quisermos ser conduzidos pela linearidade cronológica, a ordem dos documentos

seria esta: “O que é NBP?” (1990), “Sistema-Cinema” (2002), “(a), (b), (c):”105 (2006)

– nesta seqüência foram escritos, a partir de motivações e demandas diferentes. O

que parecia ser apenas o texto inicial inaugurador de um projeto (“O que é NBP?”),

revelou-se matriz multiplicadora de possibilidades – pois a partir dali foi viabilizado

um sistema de atualizações onde as proposições iniciais se ampliam, sendo

agregadas a outros elementos, indicando assim novos lugares para que o

procedimento continue e se desdobre. O gesto inicial propunha “três idéias-vetores

principais” – “imaterialidade do corpo”, “materialidade do pensamento”, “logos

instantâneo”, fornecendo uma linha-mestra como ponto de partida, localizando NBP

em terreno de velocidade, desmaterialização e instantaneidade – com o cuidado de

fugir de totalitarismos abstratizantes, a partir do alerta de que “o pensamento

envolve as coisas”, ocupa lugar no espaço. Estava estabelecido um programa que

visava um alcance não apenas imediato (perspectivas de médio ou longo prazo),

instrumentalizando alguns gestos para demarcação de terreno – sobretudo

elementos de um campo comunicativo estariam à disposição (viajar a velocidades

compatíveis com certas infovias), assim como uma poética de transformação,

associada de modo contundente ao corpo (a proposta de desmaterialização

indicando sobretudo as manobras contínuas de sua incessante re-incorporação em

novas bases).

105 Os três documentos encontram-se no V. Anexo Textos desta Tese.

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Parece haver certa insistência numérica recorrente em torno do ‘3’: tudo se inicia, é

verdade, com a sigla NBP, que condensa três elementos já interessantes,

amarrados em linha na proposição Novas Bases para a Personalidade, cujos dois

termos intrusos (“para a”) estabelecem a ligação relacional própria das locuções

prepositivas. Em anotações do período em que o projeto foi gerado (1990/91),

encontro a referências que associam as três letras a noções amplas, assim

caracterizadas:

N - Novas: “obsessão e necessidades modernas”

B - Bases: “estruturas, por que não?”

P - Personalidade: “discussão que chama para si os campos da psicanálise,

biologia, antropologia, análise comportamental e estatística, mecanismos

socioeconômicos, etc., junto com questões artísticas (…), um terreno da

amplas e movediças dimensões”.106

As indicações acima articulam novo, estrutura e relações inter e extradisciplinares107,

tópicos que serão, a partir de então – ou seja, com a realização dos trabalhos

propostos dentro da série NBP –, distendidos e derivados nos jogos de cada ação

artística plástico-textual efetivada. Se há algum interesse pela montagem de

elementos conceituais em grupos de três, isto remeteria mais diretamente o gesto de

Peirce em trabalhar o signo em tricotomias de modo a escapar do imediato dualismo

significante/significado (Saussure) – ao alinhar grupos de três termos se escapa à

sua hierarquização, abrindo caminho a possíveis engenharias formais em que se

ganha complexidade a cada novo gesto: a estrutura está em aberto e é possível

complementá-la continuamente. Logo, não há derivação outra que não a implicação

em se manter conectável, à espreita de um próximo acoplamento. Para NBP, a

dinâmica das tríades é mera estratégia para se constituir e se manter em aberto uma

configuração sempre acoplável, em acolhimento. Ou seja, no plano de

funcionamento do projeto, instaurado através das realizações de sua prática efetiva,

três é mero pretexto deflagrador de algo que é sempre maior ou menor, não se

106 Ricardo Basbaum, “caderno de notas, 1990/1991”, p. 1. V. Anexo Textos 107 Cf. Nota 67, Parte A.

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reduz a qualquer signo numérico e aponta para o múltiplo: para as estas tríades

NBP, três é nada menos que sempre mais um.

O escrito “O que é NBP?” foi trazido a público pela primeira vez em situação de

performance – enquanto fala, voz – de modo que é possível implicá-lo – e ao projeto

NBP – às reverberações musicais que se têm quando a dicção se faz ouvir em suas

demarcações, derivas e reverberações pelo espaço, rumo ao ouvido do outro. Tal

musicalidade implica também em ritmo, e é preciso atentar também aqui a certos

cuidados com o andamento do projeto e sua escrita, pois não há qualquer intenção

de que este aspecto seja ignorado, pelo contrário: se há esta marca ritmo-musical

associada à dimensão discursiva do projeto NBP – através do vínculo de um de

seus principais escritos à fala e à performance (corpo) – é preciso trazer tal tópico à

superfície, assinalar o (lance de) dado musical que celebra a significação e

importância deste acaso: “escrita em forma de discurso, pronta para oralização”108. A

musicalidade latente em NBP é ainda algo a ser exteriorizado com maior

contundência, mas fica desde já indicado esta presença a ativar fluxos e ritmos de

desdobramento do projeto e acolhimento do outro – como se a costura do projeto

NBP pudesse ser percebida como imenso Parangolé imaterial composto de malha

plástico-discursiva pronto a ser utilizado, assumindo vocação verbivocovisual.

Imaterialidade do corpo, materialidade do pensamento e logos instantâneo abrem o

projeto NBP, enfatizando a importância de sua propagação rítmica em relação ao

que poderia daí advir – posicionamento de abertura – e demarcando linhas de

destaque ao corpo em sua reformatação potencial, ao pensamento em sua presença

material espacializante e à comunicação, ao requerer uma região intermediária entre

emissão e recepção: cada uma das três idéias-vetores não se perfaz enquanto

conceito positivo (tal qual modelo conceitual associado ao Século XIX), mas como

agregado de uma escrita carregada do necessário elemento poético que assegura o

potencial de reinvenção pretendido – tem-se a elaboração conceitual-discursiva não

como lugar de uma chegada segura ou aportar conclusivo, mas enquanto veículos

ou módulos que demarcam passagens: idéias-vetores como forças direcionadas a

108 Ricardo Basbaum, “caderno de notas, 1990/1991”, p. 3. V. Anexo Textos

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combinar-se e recombinar-se conforme se estruturarem as situações a serem

trabalhadas e enfrentadas, no confronto próprio da obra de arte e suas

possibilidades de efetivar-se, seja no corpo do outro, seja em sua instanciação como

coisa pública sujeita à imprevisível composição de elementos que aí se agregarão

desde os primeiros contatos mediados e imediatos. O que se quer é um

funcionamento conceitual bastante particular, onde a proposição discursiva somente

se impõe quando reivindica proximidade ao conjunto sensível do qual deriva,

constituindo presença somente enquanto agregado obra-conceito – sempre em fuga

da condição abstrata, buscando o duplo funcionamento sensorial-conceitual: há aí

sempre cuidado em manter em aberto a possibilidade de acoplamento.

Assim, a primeira situação em que se impôs a necessidade de lançar um segundo

conjunto de três tópicos se dá quando o Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos109

envolve-se como participante do projeto Você gostaria de participar de uma

experiência artística?, em 1997. Ao receber o objeto, os membros do GPCI –

movendo-se no espaço de ações entre performance, vídeo e fotografia que lhes é

característico – decidem forjar uma operação de “seqüestro”, assumindo posse

incondicional da peça de metal pintado. Realizaram assim uma série de ações,

documentadas em imagens foto e videográficas. Fig. 60-61 Para que o objeto

reencontrasse posteriormente o caminho de circulação próprio ao projeto Você

gostaria…?, entretanto, o GPCI propôs o “pagamento de um resgate” através do

“envio do espaço negativo do NBP” – indicando uma possibilidade (ainda que

compulsória) de continuidade de conversa ao ritmo das ‘trocas’ próprio de Você

gostaria…?. Assim, para recuperar as vias de acesso rumo a um próximo

participante, o artista deveria efetuar um pagamento produtivo, fornecer algo da

ordem da invenção de valor correspondente ao objeto que se encontrava

apreendido. A ocasião sem dúvida era propícia para, em novo salto, adicionar

elementos ao projeto NBP – transformar o impasse em momento de velocidade;

109 “Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos (GPCI) é um grupo de pesquisa em arte contemporânea, em arte e tecnologia, em arte da performance, isto é, o corpo como sujeito e objeto da obra de arte e as tecnologias de produção, de reprodução da imagem e da imagem/movimento, e ainda, as tecnologias comunicacionais, sobretudo a Internet.” O GPCI existe desde 1992, coordenado por Bia Medeiros. Cf. Maria Beatriz Medeiros, Corpos informáticos – arte, corpo, tecnologia, Brasília, Editora da Pós-Graduação em Arte da UnB, 2006.

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86

assumir a problematização proposta devolvendo-a em situação de avanço. A

resposta se deu através do envio de um pequeno objeto em acrílico transparente,

vazado ao centro, que corresponderia exatamente ao espaço interno do objeto

utilizado em Você gostaria de participar de uma experiência artística?, porém em

menor escala. Este objeto contém também, em sua região inferior esquerda, três

pequenos orifícios de tamanho proporcional aos dedos, permitindo que seja pego e

manuseado de forma direta, encaixando-se na mão de modo adequado: quem o

pega, de fato, parece estar segurando um objeto que se adapta bem à pegada,

lembrando o chamado “soco inglês” (o qual, entretanto, possui quatro furos para os

dedos) – trata-se de algo que conduz diretamente à elaboração de um utensílio ou

ferramenta. Fig. 62-63 O fato é tal objeto se apresentou como superfície adequada

para a inscrição de três novos tópicos ou idéias-vetores, permitindo a configuração

de uma segunda tríade, aumentando a complexidade do jogo proposto. Podem-se

ler, então, sobre a peça de acrílico transparente, linhas que remetem ao texto “O que

é NBP?” e causam uma segunda inflexão no próprio projeto:

ESPAÇO NEGATIVO

TRANSPARENTES CONCEITOS

GELÉIA ADVERSA

Curiosamente, somente algum tempo depois (2007) foi redigido documento que

estende cada um dos tópicos em desenvolvimento próprio – o título “(a), (b), (c):”110

referencia as proposições de maneira respectiva – indicando desta vez um amplo

conjunto de conexões, localizadas “no âmbito de um processo de negociação”: (a)

enquanto provocação provinda do participante GPCI; (b) como campo de

invisibilidades relacionais onde transparência é “maleabilidade, ambiência,

configuração de um meio o qual facilita a travessia”; (c) tal qual “inclusão cultural

específica (…) em mútua ‘contração transformativa’”, distendendo-se nos termos da

“geléia geral da adversidade da qual vivemos”, querendo ser “intervenção,

resistência”. É importante lembrar que “em termos de ação e funcionamento cada

qual dos três tópicos pode ser ativado a qualquer tempo, sem hierarquização ou

110 Ricardo Basbaum, “(a), (b), (c):”, 2007. Texto inédito. V. Anexo Textos

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87

ordenamento pré-programado”: o que se quer é “recolhe[r] elementos para sua

própria aceleração”. Esta segunda tríade desenvolve movimentos extremos de ao

mesmo tempo (a) voltar-se diretamente ao participante e partir de encontro a (c)

movimentos emblemáticos do contexto cultural em que se insere; indica entretanto

(b) a constituição de um meio ou ambiência para esse deslocamento. É curioso

perceber estes segundos três tópicos diretamente identificados a dois objetos ao

mesmo tempo similares e antagônicos: tanto o objeto metálico de Você gostaria…?

como o pequeno objeto em acrílico transparente configuram-se através da forma

específica NBP, identificando-se como elementos de uma mesma série. O primeiro,

entretanto, oferece área interna a ser preenchida – tal qual um contêiner –; o

segundo, solicita ser pego de um jeito específico e funciona de modo absolutamente

exterior ao corpo (pois o objeto metálico pode abrigar em seu espaço interior um

corpo deitado, recurvado, como já foi inúmeras vezes experimentado). Fig. 59 As

três inscrições na superfície lisa de acrílico transparente resultam e replicam esta

instrumentalização voluntária da pequena peça em sua utilização como objeto que

se traz às mãos para tocar o outro em seu corpo ou para tocar nas coisas em torno

(ou tocar a si mesmo). É interessante se perceber a segunda tríade sendo forjada de

modo diverso da primeira – esta, sob a pressão da performance, aquela, sob o

impacto da negociação.

Um terceiro conjunto de termos foi mobilizado a partir de outra situação concreta,

igualmente diversa, com o objetivo de acompanhar mais uma instalação da série

sistema-cinema, iniciada em 2001. Esta série consiste na montagem de um

dispositivo básico de circuito-fechado de televisão, instaurando uma pequena cadeia

de imagens que traz intensidade e presença ao local para onde as câmaras estão

apontadas: ali são criadas ao mesmo tempo áreas de visibilidade e de sombra,

correspondendo, respectivamente, ao enquadramento de cada câmera e aos

chamados pontos-cegos, não alcançados por câmera alguma. Este procedimento ou

dispositivo pode ser utilizado sozinho no local da instalação – ou seja, apenas

montando a aparelhagem desacompanhada, presente sozinha no espaço expositivo

– ou junto com outros elementos (estruturas, esculturas) que caracterizam a

intervenção pretendida. Fig. 24, 38, 40, 42, 48-51 Sempre o que se quer é trabalhar

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88

a intensidade sensível do local exposto, trabalhando a percepção através do olho no

corpo – que atravessa o espaço – e do olho da câmera – cujas imagens são trazidas

à superfície do monitor: quando encontramos o mesmo local em que estamos sendo

duplicado através de certos enquadramentos, é evidente que nossa apreensão do

entorno se modifica. Em “roteiro para sistema-cinema”111 é elaborado o seguinte

comentário:

sistema-cinema é o nome de um procedimento de captação, transmissão e

gravação de imagens, em tempo real, que tenho utilizado, a partir de 2001,

em conjunto com a construção de instalações, intervenções e objetos: desde

as primeiras experiências, a vontade foi de adicionar uma camada a mais aos

procedimentos de construção e instauração do projeto – como se já houvesse

algo nos trabalhos que fosse da ordem do cinema e que seria necessário

externalizar, tornar mais claro, somando presença. Foi assim que decidi

adotar um conjunto simples de equipamentos, típicos da construção de um

ambiente de imagem-vídeo em circuito-fechado: microcâmeras, seqüencial,

monitor, videocassete. Um certo regime de funcionamento e economia da

imagem é instaurado, junto ao espaço delimitado e fronteiriço da instalação:

(1) as câmeras abrem-se para o ambiente, a partir de certos enquadramentos

fixos; (2) as imagens são enviadas ao monitor, mapeando certas

possibilidades de ação frente àquele ambiente; (3) imagens em fluxo

contínuo, uma após a outra, são reguladas para se repetirem em intervalos

constantes de cerca de 5 segundos; (4) as seqüências são gravadas em

vídeo, para arquivamento e utilização posterior.

Nestes 4 passos de implementação do dispositivo, estão indicadas já

algumas de suas principais ações e efeitos – seu funcionamento, seu

programa: (a) prática de enquadramento para construir outra apreensão do

espaço: a instalação passa a dispor tanto de regiões intensificadas pela

presença da câmera ali apontada, quanto de regiões de sombra, avessas à

captação de imagem – estimula-se assim o efeito disjuntivo entre olho-corpo / 111 Ricardo Basbaum, “roteiro para sistema-cinema”. Texto escrito para o livro Transcinemas, de Kátia Maciel (Org.), inédito. V. Anexo Textos

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olho-câmera, indicando problematizações de uma política da percepção; (b)

transmissão em tempo-real em que o próprio local onde são geradas as

imagens as recebe de volta, em incessante continuidade descontínua:

recurso não-tautológico que enfatiza a situação quasi-performática

compulsória, em que o corpo é a mediação principal para o estabelecimento

do aqui&agora da instalação; (c) montagem circular por meio de ritmo

seqüencial em que as imagens se sucedem a partir de padrões fixos pré-

estabelecidos: a importância do núcleo rítmico pulsante que erotiza o

ambiente (indicando um ‘pensamento-ambiente’), conduzindo à pergunta:

“será que tudo o que eventualmente aconteça aqui em torno jamais

perturbará tal ritmo?”; (d) gravação e arquivamento para posterior utilização

sob outras formas videográficas, que reinventarão o espaço capturado para o

olhar de alguém não presente à situação inicial: para além do registro, o que

se assume é uma vontade voraz de montagem para que se produza mais um

acontecimento que multiplique e diversifique a forma inicial, através de nova

mediação instauradora de sua própria continuidade.

Cinema não toma parte aqui enquanto posição hierárquica superior frente ao

processo, com ambição de estabelecer-se como ‘produto final’ – antes, sua

presença se insinua no mesmo plano de igualdade em que ocorre sua própria

desmontagem em 4 etapas. Logo, sistema-cinema se caracteriza por uma

pragmática (sistema) que atende a um determinado emprego, a uma

utilização que busca trazer potência relacional extra a um projeto artístico em

pleno andamento e funcionamento, sintoma de alguns de seus traços

constitutivos e estruturais.

A presença de sistema-cinema tem se mostrado fértil nas 16 instalações já

efetivamente realizadas – elemento que funciona tanto de modo próprio como

acrescentando algo ao conjunto, desempenhando papel instigante na instalação e

freqüentemente sendo utilizado também na gravação de material em vídeo, para

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90

posterior utilização em outros trabalhos.112 Trabalhar com a interface vídeo/cinema

atende também a uma demanda narrativa – afim ao projeto NBP –, no sentido de

estruturar a proposta plástica enquanto deflagradora de uma escrita potencial, ainda

a vir – também, de certo modo, tarefa desempenhada pelos diagramas: o campo

discursivo é continuamente re-invocado enquanto presença latente, pronto a ser

efetivada a qualquer instante, como se ali sempre estivesse, em espera e à espreita

mas, entretanto, já ativo – pois tal espera é já ação, impulsão e dinâmica. O texto

“Sistema-Cinema” foi trazido a público pela primeira vez no evento

“Interculturalidades”113, sob a forma de fotocópias para livre distribuição ao público

visitante: como ali a instalação sistema-cinema foi montada em um dos halls de

entrada da galeria (de fato, também sala de acesso ao cinema, com sofá, poltronas

e bonbonnière), as cópias do texto estavam sobre uma das mesas, junto a jornais e

outras publicações de leitura rápida. Há porém, outro pormenor a demarcar esta

instalação, em particular: duas das câmeras estavam especialmente apontada para

a bonbonnière – uma enquadrando o balcão a partir de plano superior, outra em

ângulo lateral, visualizando a sua parte frontal (o dispositivo sistema-cinema tem

sempre operado por planos fixos) – sobre este balcão repousou, durante toda a

extensão da mostra, um objeto em acrílico semelhante (em material e dimensões)

àquele utilizado nas negociações com o GPCI, no evento anteriormente descrito Fig. 50-52 Entretanto, os dois objetos – em tudo similares – diferiam quanto às inscrições

que carregavam: se o primeiro objeto estampava os termos espaço negativo,

transparentes conceitos, geléia adversa, sob o signo NBP, este segundo exibia

transatravessamento, adversa geléia, artista-etc, sob o signo VCP. E mais: se vistos

lado a lado, os dois objetos mostram uma inversão na posição dos orifícios que

112 Até este momento já foram realizados quatro trabalhos em vídeo com aproveitamento de imagens obtidas através de sistema-cinema: “Transatravessamento” (2002), apresentado na 25ª Bienal de São Paulo, utilizou imagens gravadas nas exposições “passagens (NBP)” (Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001) e “Outra Coisa” (Museu da Vale, Vila Velha, 2001); “transatravessamento (& fuga)” (2002), apresentado em “20 anos 20 artistas” (Centro Cultural São Paulo, 2002), “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003) e “entre Pindorama” (Künstlerhaus, Stuttgart, 2004), utilizou imagens gravadas na 25ª Bienal de São Paulo; “E: anotações sobre contatos com re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (2003) utilizou imagens gravadas na exposição “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003); ‘Yo Tú – Me You” (2005), apresentado na exposição “3 escenarios” (CAAM - Centro Atlantico de Arte Moderno, Las Palmas de Gran Canaria, 2005), utilizou imagens gravadas na própria exposição. 113 “Interculturalidades”, Centro de Artes UFF, Niterói, 2002.

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91

determinam a pegada, sua apreensão pela mão (para se pegar os dois objetos da

mesma maneira, é preciso utilizar em um a mão direita, em outro, a esquerda).

Atenção: o deslocamento aqui não é pequeno – trata-se de um salto, ginga ou jogo

de corpo: para operar um encontro entre duas situações, no sentido de arquitetar a

possibilidade de um terceiro grupo de frases, foi construído objeto semelhante que,

entretanto, a partir de um pequeno desvio, materializa-se de modo ligeiramente

diverso. E é preciso avisar: houve a introdução de mais uma sigla – V.C.P. (Vivência

Crítica Participante).

Tratou-se então de construir uma passagem e conexão entre sistema-cinema e

NBP, através do procedimento de articulação dos três tópicos conceituais. Ou seja,

sistema-cinema acopla-se ao projeto de trabalho em progresso NBP a partir

de um elemento de mediação discursiva, composto em três blocos –

transcrito abaixo –, que se quer instrumento de implantação das operações

do tipo V.C.P. (Vivência Crítica Participante). O que se pretende é que o outro

experiencie o projeto de trabalho em nível de campo sensível, mas que este

jogo não se desincompatibilize da rede de produção discursiva, inauguradora

também de uma espacialidade intensiva: sujeitos que se situem dentro da

rede de relações instituída, mas que se potencializem para fora de si, na

busca de conexões transformadoras.114

A terceira reunião de três tópicos discursivos a partir de sistema-cinema, a

configurar mais uma tríade no conjunto de idéias-vetores, desenvolve-se então

assim:

transatravessamento

aceleração positiva ou negativa: sua velocidade jamais será a mesma depois

deste contato. Não se esqueça: “o pensamento é mais rápido que a

velocidade da luz” (já foi dito). Sensorialidade como deslizamento entre o

caótico e o prazeroso, tocando a superfície das coisas (ir e vir, ir e vir, ir e vir

114 Ricardo Basbaum, “roteiro para sistema-cinema”, op. cit..

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são parte do processo – ritmos oceânicos). Afetos criam ligações de seda

com a força de cabos de aço: conexões, redes, teias e outras coisas

trançadas imersas em tal vocabulário.

adversa geléia

olhares para o entorno, despindo-se de alguns automatismos, aceitando a

fluência de outros. Mergulhando no que imensamente nos escapa e resiste e

é ao mesmo tempo estranhamente familiar: passando ao lado nos captura e

transmite ao longe – sempre. Estado momentâneo quase chegando a ser

junto comigo.

artista-etc

a imagem do que se faz misturando-se ao que não se faz; (des)construindo

enquanto se aponta em mil direções e se apronta em prestações. Frágil

resistência, sutil insistência: nunca apenas um lugar nem a mesma rotina de

procedimentos; sempre as simultaneidades e o olhar magnético, a confiança

no lugar. Compactação impossível do poético singular que escapa sempre,

tudo arrastando em volta. Voraz. Contenção. Saltos.

Sistema-Cinema V.C.P. (Vivência Crítica Participante)115

Perfazendo três pequenos verbetes, este curto texto revela-se uma pequena peça

literária carregada de remissões a outros escritos: o aparato sistema-cinema, em

seu efeito de espreita ao componente discursivo, deflagra – ao apresentar-se em

conjunto com o texto “Sistema-Cinema” – rede intertextual em que os principais

termos envolvidos conduzem diretamente a outros escritos. E também – e isto aqui é

importante – às obras (instalações, objetos, estruturas, diagramas, etc.) a eles

associados. Ou seja: esta pequena tríade enfatiza característica de intermediação, 115 “Sistema-Cinema”, texto produzido para a instalação “Sistema-Cinema V.C.P.”, apresentado pela primeira vez na exposição “Interculturalidades”, Centro de Artes UFF, Niterói, 2002. Desde então, exibido basicamente de forma ampliada, plotado diretamente sobre a parede com letras adesivas, foi apresentado nas exposições “20 anos 20 artistas” (Centro Cultural São Paulo, 2002), “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003) [exposição individual], “sistema-cinema + diagramas” (MAC-UnaM, Posadas, Argentina, 2003) [exposição individual] e “entre Pindorama” (Künstlerhaus, Stuttgart, Alemanha, 2004). Fig. 39-41, 48

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funcionando como elemento de contato e distribuição, local de convergência – seja

de outros textos, seja de elementos plásticos, avançando em estratégia própria.

Será preciso então indicar como se configura tal malha, evidenciando a constituição

de tal rede a partir de cada um dos tópicos desta terceira tríade:

transatravessamento: há a remissão direta ao texto “Módulo de transatravessamento

do artista-etc”116, assim como à instalação Transatravessamento – ambos

apresentados na 25ª Bienal de São Paulo (2002).

adversa geléia: a expressão nos envia à segunda tríade, de encontro ao tópico

“geléia adversa” – assim como ao objeto em acrílico espaço negativo, recém

comentado, ambos nos conduzindo rapidamente a frases emblemáticas da cultura

brasileira em recente e decisivo período – a combinação das proposições “da

adversidade vivemos” (Hélio Oiticica) e “geléia geral” (Décio Pignatari).

artista-etc: termo desenvolvido no texto “I love etc-artists”117 (posteriormente

traduzido para “Amo os artistas-etc”) – ampliando a discussão para questões em

torno do papel do artista, suas imagens e atribuições.

V.C.P. (Vivência Crítica Participante): é trazido para a rede de remissões o ensaio

“Critical and Participatory ‘Vivência’”118 – em que se consolida o interesse em se

aproximar possibilidades de relacionamento com a obra que se constituam ao

mesmo tempo enquanto experiência sensível e crítico-conceitual, demanda que

orienta a condução do projeto NBP em sua constante preocupação com as camadas

sensorial e discursiva do trabalho contemporâneo.

116 Ricardo Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, in 25ª Bienal São Paulo – Iconografias Metropolitanas - Brasil, São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, 2002, pp. 46 [catálogo]. V. Anexo Textos 117 Ricardo Basbaum, “I love etc-artists” in Jens Hoffmann (Org.), The next Documenta should be curated by an artist, Frankfurt, Revolver Books, 2004, pp. 14-15; e “Amo os artistas-etc”, in Rodrigo Moura (Org.), Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais, Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha, 2005, pp. 21-23. V. Anexo Textos 118 Ricardo Basbaum, “Critical and Participatory ‘Vivência’”, in Vivências: dialogues between the works of Brazilian artists from 1960s-2002, The New Art Gallery Walsall, Walsall, 2002; e “V.C.P. - Vivência Crítica Participante”, Ars, São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, USP, no prelo.

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Assim, as três proposições do texto “Sistema-Cinema” são multiplicadas através de

linhas de fuga, e enviadas ao menos a estas quatro situações discursivas – cada

qual mergulhada nos problemas conceituais que lhes são próprios – perfazendo um

jogo de constituição de sentido que se desdobra a partir deste tipo de manobra: o

próximo texto, a próxima obra – a próxima conversa. Esta terceira tríade aponta

problemas que já haviam sido mapeados anteriormente pela própria prática – seja

enquanto artista, seja como escritor – que são então reagrupados como manobras

de um mesmo esforço plástico-discursivo na efetivação do projeto de trabalho.

Passa a ser interessante perceber – e tal gesto não se faz em simples sopro, mas se

deve a cuidadoso processo contínuo de articulação – as diferentes escalas das

dinâmicas em jogo, em que se combinam (os encontros não são apenas dóceis;

podem aí haver choques) a construção da instalação arquitetônico-escultórica, a

irradiação e presença de um momento histórico-cultural, a investigação teórico-

crítica. Fig. 70-73 Este deslocamento por macro ou micro contextos se propõe como

desafio interpretativo – como costurar estas idas e vindas em literatura inteligível? –,

mas ao mesmo tempo se afirma como evidência de ações concretas, levadas a cabo

em diferentes momentos, indicando resultados e conquistas de uma busca efetiva.

Desdobrar aqui cada módulo pode resultar em tarefa infinita, pois, se quisermos,

cada elemento a ser destacado nos desloca imediatamente para seu momento

enquanto múltiplo, permeado por alteridades que insistirão no desvio para outras e

outras locações – e esta operação é fascinante e muitas vezes imprescindível. Mas

é necessário que seja apreendida a construção do dispositivo que se materializa

enquanto propulsor desta manobras, que constitui a poética aqui mobilizada com a

força e disponibilidade dos contatos, acoplamentos e remissões – um interesse pelo

sentido produzido em incessante fluxo que não reconhece um ponto final, mas a

continuidade do movimento. Se antes (em relação à primeira e segunda tríades)

falou-se em performance e negociação, aqui temos hiper ou intertextualidade como

desvio, contato & distribuição.

O percurso aqui condensado articulou três textos (“O que é NBP?”; “(a), (b), (c):”;

“Sistema-Cinema”), cada qual portando um grupo de três proposições

(imaterialidade do corpo, materialidade do pensamento, logos instantâneo; espaço

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negativo, transparentes conceitos, geléia adversa; transatravessamento, adversa

geléia, artista-etc), sendo associados – a partir dos procedimentos que conduziram

cada um deles à sua efetivação – a diferentes modos de ação (performance;

negociação; desvio, contato & distribuição): este conjunto de operações discursivas

e plásticas inevitavelmente conduz ao aumento de espessura (e complexidade) do

projeto NBP, complicando sua costura e implicando certa rede conceitual-discursiva

enquanto elemento operador a interligar momentos. Surge a inevitável necessidade

de que os agregados assim configurados se confrontem, de modo a produzir

encadeamentos novos que prolonguem os efeitos e condensem possibilidades e

rumos para o projeto. Foi nesta direção que um diagrama foi traçado, procurando

trabalhar certos encontros entre as três tríades – pois os três conjuntos,

desenvolvidos cada um a seu tempo, devem se tocar, inter-relacionar, procurar

encadeamento (e irredutibilidade) de modo a gerar algo a partir da demarcação

própria de cada um. Fig. 47 Claro que prossegue uma procura similar, que

contemple certos valores em torno da abertura ao outro e do cultivo dos muitos

caminhos possíveis – isto é, que se aponte a um prosseguimento das ações em

tensionamento mútuo das camadas plástica e discursiva, uma vez que NBP

investiga as aberturas frente à alteridade enquanto intervenção e ocupação de

espaços, problematização e abertura de frestas.

Para estas aproximação das tríades não foi utilizado o artifício do cálculo

combinatório – onde cada uma das nove proposições poderiam recombinar-se em

qualquer arranjo, indiferentes a seu agrupamento anterior – mas uma reunião mais

modesta dos elementos de acordo com sua posição em cada uma das

configurações tal como foram propostas. A partir de três novos grupos – reunindo os

primeiros, segundos e terceiros termos de cada tríade, procurou-se a consolidação

de uma posição que ao mesmo tempo que respalda os percursos anteriores também

os provoca e tensiona: ou seja, se cada grupo de três tópicos ao ser confrontado aos

outros dois produz novos tópicos (em operação de condensação), estes novos

tópicos por sua vez voltam-se aos anteriores de modo contundente, obrigando-os a

se re-significarem. Tal como se passa nos diagramas do projeto Você gostaria de

participar de uma experiência artística?, onde as sucessivas atualizações não

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apagam do mapa o traçado que ali já estava, buscando um funcionamento por

camadas que continuam a se inter-relacionar, também aqui a “tríade das tríades”

não apaga as formações anteriores – esta forma de operação própria do diagrama é

fundamental para o projeto, pois indica não-linearidade, simultaneidade de espaços

e planos, camadas e diferentes relevos de uma topografia complexa que irradia

continuamente suas forças, reagindo aos rearranjos e nunca permanecendo – de

modo absoluto – as mesmas.

O diagrama tríade das tríades nomeia três blocos que pretendem identificar linhas-

mestras de ação para o projeto NBP (e as demais séries paralelas dele

derivadas),119 que avançam por conta própria – ainda que sempre no âmbito de um

sistema proposto de ações – articulando efeitos e procedimentos: trauma, dinâmica

de grupo, ensaio-ficção são termos que reverberam de modo amplo. Certamente

mais do que os anteriores, sua inserção frente ao projeto de se dá em esfera macro,

em localização menos pontual (vimos como as tríades anteriores se estabelecem a

partir de procedimentos particulares): desta vez, arriscou-se um exercício de

mapeamento do percurso percorrido, intensificando-se possibilidades que, ao serem

nomeadas, funcionam prospectivamente em rearranjo dos caminhos que se quer. É

certo, porém, que estes três novos termos não se impuseram em gesto súbito e

trazem, cada qual, algumas referências.

A suposição do trauma (logos instantâneo, geléia adversa, artista-etc) a assombrar

as incessantes reaparições do projeto NBP ocorreu em certo momento (por volta de

2000), quando me perguntava acerca das dificuldades em livrar-me da marca, que

sempre retornava, apontando que deveria ser transformada em possibilidade de

mais um trabalho. Fig. 15 Pois compreende-se como é inevitável confrontar a

indagação: “deve-se elaborar mais um passo em torno desta forma específica, testá-

la novamente, ou partir em direções quaisquer possivelmente indicadas no entorno?”

Pareceu óbvio, então, que a marca NBP em sua insistência repetitiva deveria estar

inscrita de forma traumática em alguma camada do corpo – e que cada novo gesto

em torno de mais um trabalho pertenceria ao esforço em re-significá-la no sentido de

119 Por exemplo, os jogos, exercícios e coreografias eu-você. Fig. 34-37

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recompor fluxos e processos por ventura desviados, descontinuados ou

efracionados. Nesse sentido, desenhar a marca – e isso se deu em 1991 – teria sido

como tatuar-me, ou materializar em desenho, sobre o corpo, forças preexistentes

que deveriam ser problematizadas (não por capricho estético, mas como

possibilidade vital). Claro que estava em jogo uma configuração mais complexa do

que simplesmente ter um sinal sobre a pele (“em que parte do corpo estaria cravado

o desenho, como percebê-lo se ao buscar auxílio no espelho certas partes não

poderiam ser examinadas, fora do alcance da visão e de seu reflexo? Estaria sob a

pele em camada subcutânea? Ou junto às membranas que recobrem ou compõem

os órgãos? Ou em circulação pelas correntes sangüíneas, constantemente se

movimentando e assim dificultando a captura?”): tratava-se não de implicar algum

trauma a partir de biografia privada, mas de perceber na própria trajetória do

trabalho – em sua configuração – traços de algo que pudesse indicar a estruturação

de um percurso (NBP, claro) em que o desenho (e as implicações aí redobradas,

como projeto mesmo) fosse sinal da ocorrência de eventos desta ordem. Efetivar o

deslocamento da figura do trauma do corpo individual para o corpo social – ou seja,

de um sujeito individual para o âmbito coletivo, público – seria mesmo indicar o

percurso pelo qual alguém se torna artista, ou seja, passar a habitar o espaço de

contato entre corpo social e corpo coletivo onde, além de se vivenciar a ambiência

que ali se constitui, trabalha-se as turbulências e fluxos próprios ao potencial desta

membrana. Pois então a partícula NBP se define em um particular momento de

configuração e redesenho deste processo – a inflexão do jogo poético de inserções

e investimento em determinado papel (artista) e suas implicações de várias ordens;

ali se instala no corpo e passa a produzir marcas que enfatizam as particularidades

de uma passagem, insistindo na importância em construir seus sentidos no calor de

gestos sucessivos, sem qualquer ponto de chegada a priori estabelecido. É um dos

traços deste programa a problematização das atribuições, do papel e da imagem do

artista – dentro do qual a formulação do artista-etc (que se desenvolve na

necessidade em implicar ali os papéis do artista como agenciador, como curador e

como crítico) – e tal investigação não poderá deixar de incidir em certo modo de

produzir obras, buscando constituir linguagem a partir das articulações discursivo-

plásticas, em sua contundência e singularidade. Ou seja, se há aqui determinações

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98

fortes do que pode delinear uma teoria de artista a conduzir esta prática particular, o

problema ficaria melhor definido enquanto proposição de uma modalidade de

condução do trabalho que não implica na separação das matérias e investe na forte

costura do fazer plástico e fazer conceitual – apostando nas regiões de

indiscernibilidade.

Quanto à dinâmica de grupo (imaterialidade do corpo, espaço negativo,

transatravessamento), este tópico se impôs junto aos procedimentos de trabalho à

medida em que foram sendo desenvolvidas séries com a utilização dos pronomes

pessoais ‘eu’ e ‘você’ – inicialmente, diagramas; posteriormente os diagramas se

desdobraram nos jogos, exercícios e coreografias. Fig. 27, 29, 31 Os primeiros

diagramas (1994) foram pensados enquanto mapas de relações pessoais (sob o

título de série love songs) – as linhas e palavras que compunham estes diagramas

concentravam-se basicamente nos fios e laços (atrações e repulsões) que se

constituem entre o sujeito e o outro nos momentos em que o jogo e trânsito dos

afetos atingem especial intensidade: o momento em que se inicia a relação amorosa

é uma destas situações de dinâmica especial, em que se produz sensação de força

e potência onde tudo parece possível, instaurando um campo dinâmico que facilita

transformações (no sentido de que ninguém é o mesmo antes e depois do amor). Se

o primeiro esboço de um diagrama se deu por necessidade de mapear uma relação

pessoal, a partir do momento em que esta modalidade de desenho foi sendo

aperfeiçoada como ferramenta de trabalho cessaram as referências biográficas: os

pronomes ‘eu’ e ‘você’ dos diagramas da série love songs não correspondem a mim

(este que aqui escreve) ou a ela (objeto de minha afeição), mas ao lugar da partícula

lingüística conhecida como shifter ou dêitico, remetendo sempre ao interlocutores

presentes no ato de leitura ou visualização do diagrama – incluindo assim

diretamente o espectador no diagrama. Pouco a pouco, os diagramas passaram a

incorporar – sem entretanto abandonar os pronomes ‘eu’/’você’ – elementos

diretamente relacionados ao projeto específico de uma instalação ou de uma

proposição curatorial, por exemplo, estendendo o âmbito da conversa para o campo

contextual em que eu/você estão imersos também em papéis de certo ambiente

poético-funcional, permeado pelo jogo concreto da arte: ainda que muitas vezes as

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99

referência não sejam explícitas, há uma dinâmica posta em jogo, ancorada naquele

particular evento e local, e sujeito e objeto (eu/você) participam de tal situação

coletiva. Fig. 46, 54 De modo que seria preciso estar atento ao modo como as

inflexões do jogo afetam eu e você e as relações possíveis, o fluxo dos afetos. Há

também nos diagramas, portanto, um deslocamento de perspectiva rumo à

percepção de uma dinâmica coletiva em que o sujeito é notado como parte de uma

dinâmica à qual está mais ou menos integrado (no sentido de compartilhar

pulsações e ritmos) e frente à qual se preocupa com as linhas de contato

(membranas, mais uma vez) que agrupam (dinâmicas estratégicas, afetivas) ou

implodem. Já os jogos, exercícios e coreografias eu-você tomam o problema da

dinâmica de grupo como elemento efetivo de implementação de seu fazer – estas

ações são percebidas como “‘person’ ou ‘group specific’”, no sentido de que “leva[m]

em conta” e são definidas “a partir da especificidade de cada grupo ou pessoa”, uma

vez que “não opera[m] como um conjunto de ações e movimentos pré-estabelecidos:

qualquer instrução ou decisão deve vir a partir (do interior) do coletivo”120 –

consistindo em verdadeiros laboratórios em que se experimenta a construção de

grupos de trabalho (que muitas vezes prosseguem em dinâmica própria mesmo

depois de finalizadas as atividades). As ações podem ali ser roteirizadas ou

elaboradas na experiência direta do fazer – mas somente deslancham (no sentido

de tornarem-se efetivas por motor próprio) quando as frestas e intervalos (que estão

em toda parte, em qualquer proposta) são efetivamente trazidos a um primeiro

plano, ocupados, habitados e impulsionados pelos participantes (entre os quais

sempre me incluo). É evidente que o contexto institucionalizado da arte

contemporânea é hoje ultra-complexo, desenvolvendo-se em diversos circuitos –

locais, regionais, internacionais, etc. – que estabelecem entre si relações em

diversas escalas, exibindo tramas e amarrações de diversos tipos; a rigor, não se

pode reduzir o sistema de arte a uma mecânica simplificadora nos termos de

inclusão ou exclusão. Entretanto, sempre pertencemos a algum coletivo ou

comunidade, estando cada um de nós de fato enredados em conjuntos afetivos,

120 Ricardo Basbaum, “Diferenças entre nós e eles”, disponível em http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ricardo.html. Publicado originalmente em inglês como “Differences between us and them”, in Us and Them, Becky Shaw e Gareth Woollam (Org.), Liverpool, Static, 2005, pp. 71-78. V. Anexo Textos

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profissionais, políticos, familiares, etc.; ocorrem circuitos hegemônicos em cada

campo, em relação aos quais estamos sempre a entrar e sair. Pode-se dizer que

a dinâmica entre nós e eles é tida como o padrão habitual através do qual o

papel e a imagem do artista são negociados em nossa sociedade, em termos

de estruturas institucionais e de mercado. Comumente, os artistas entram

nesse campo através de um processo de transformação, em que abandonam

progressivamente seu estado estrangeiro para habitar a moldura institucional

– essa condição convencional reduzida não representa uma norma, mas um

conjunto de traços reterritorializantes que alimentam a arte, tornando-a um

lugar com limites seguros e garantidos em nossa sociedade. Essa é uma

óbvia supersimplificação, ligada a estereótipos do senso comum. Uma

perspectiva mais interessante pode ser buscada em termos do que foi

mencionado acima como ‘processo de passagem’. O artista contemporâneo

rompe as linhas que vão diretamente de eles para nós, tornando essa

conexão complexa, isto é, enfatizando entre suas características o fluxo

contínuo entre indivíduos, grupos, coletivos e instituições – indo e vindo de

um para outro, desempenhando papéis simultâneos e ocupando mais de uma

posição ao mesmo tempo. Enquanto o artista superinstitucionalizado é

alguém preso à linearidade |eles → nós|, o artista interessante de hoje se

moveria no duplo sentido nós ↔ eles, encontrando a sua singularidade não

em cada extremo, mas no conjunto de múltiplas relações envolvidas em

diversos processos de transformação.121

Mirar o processo de inserção institucional do artista e da obra com atenção à sua

dinâmica é também procurar compreendê-la para ali intervir; e, sobretudo, estar

atento às alianças por afinidade através das quais os grupos se constituem para

procurar agir e afirmar as autonomias necessárias – ainda que provisórias – a partir

das quais se pode construir desvios produtivos.

121 R. Basbaum, op. cit., p. 3-4.

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101

Direcionar-se para trabalhar em um horizonte de ensaio-ficção (materialidade do

pensamento, transparentes conceitos, adversa geléia) é desde logo assumir certas

posições relacionadas à organização do campo discursivo como instrumento ou

ferramenta de ação. De fato, a busca seria em direção à intensificação da carga

poético-ficcional de qualquer escrita praticada no século XXI, após as mais variadas

manobras empreendidas nos últimos 200 anos – da compreensão da espacialidade

e materialidade da página-em-branco e da forma-livro até as noções de hibridação

de línguas, idiomas e tradições culturais (sejam quais forem), sempre em atenção

com a espessura concreta da palavra como signo, como som – etc. Quando

pensadores em linha com a sofisticação conceitual da tradição ocidental percebem o

melhor caminho para a rigorosa construção de seu trabalho na aventura de uma

escrita de invenção, a indicação é que não somente a apreensão do texto através da

leitura se localiza em encruzilhada verdadeiramente ampla, mobilizando

verdadeiramente mais de um sentido e aptidão (este já é um leitor equipado para

deslizar facilmente entre verbal, visual e sonoro), como a própria arquitetura do texto

incorpora possibilidades estendidas. Claro que em termos efetivos o que ocorre é a

porosidade da malha discursiva, de modo a ofertar as lacunas e frestas

potencializadoras de tantas inserções possíveis – pois não há por que exigir que

tudo isso deva ocorrer literalmente a cada novo documento ou publicação: é

bastante significativo já a presença enquanto potência, vir-a-ser que pode ser

ativado a qualquer instante. Mas o que nos interessa aqui – sobretudo – é que como

‘resultado’ do percurso apontado acima temos acesso à linguagem como matéria

flexível, massa informe a ser plasmada a partir de múltiplos recursos: podemos de

fato recorrer ao discurso como campo muito mais plástico e permeável do que já

chegou a ser disponibilizado e percebido em outros tempos; agora além de

ferramentas, a matéria mesma está transformada, apresentando outra consistência.

Cabe então utilizá-la: assim, a proposição ensaio-ficção adquire sentido quando

propõe que se tome o campo discursivo como matéria com a qual se irá plasmar a

linguagem que se necessita, aquela que o projeto requer – não haverá discurso

pronto a ser apropriado para utilização sumária (ainda que o recurso à apropriação

seja um dos mais adequados, muitas vezes, a soluções parciais), mas sentenças a

serem forjadas conforme se requer. Daí a necessidade de se proceder, neste caso

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102

particular, através de camadas – tríades e linhas que se acrescentam sem que se

apaguem outras, mas provocando reacomodação. E isso corresponde à

possibilidade de ir e vir entre discurso e visualidade – não importando se se parte da

palavra ou do elemento plástico – sem a qual, neste projeto de trabalho, o processo

de sentido não se produz; de modo que aqui a tessitura é plasmada na massa da

linguagem para produzir este efeito, efetivando passagens concretas.

Caberia uma observação final sobre as tríades, acrescentando aí as modalidades de

ação implicadas na proposição de cada uma delas – performance; negociação;

desvio, contato & distribuição. Pois existe aí menção ao gesto corporal, ao

estabelecimento de mediações e à administração do que foi proposto – que aqui não

se colocam como etapas de um empreendimento qualquer mas como a necessária

presença de etapas do jogo artístico que não se reduzem apenas à proposição da

obra, no sentido convencional do objeto estético compreendido em suas dimensões

materiais e físicas. O que se procura aqui é trazer para a percepção estética (ou

seja, ao campo sensível ligado ao objeto mas também ao que há em torno e que é

parte concreta mas imaterial de sua efetivação) algo extra – considerando como

parte constituinte da obra os elementos habitualmente localizados em outra parte,

excluídos enquanto teoria, texto, conceito e formações similares: qual seja, ou estas

camadas estão na obra, são mesmo ela, a constituem, ou seriam absolutamente

estrangeiras à construção do poema, ameaças a uma suposta pureza ou integridade

qualquer. Tal compreensão do trabalho de arte não traria afinal qualquer novidade

(no sentido moderno de uma alteridade radical lançada ao futuro absoluto) – pois o

problema tem sido favorito de diversos artistas (Marcel Duchamp, Lygia Clark, Hélio

Oiticica, Joseph Kosuth, Daniel Buren, Andrea Fraser, Maria Eichhorn – entre

muitos), carregando algumas tradições de práticas e debates; tampouco a

experiência da obra como sendo composta por uma prática que compreende fases e

matérias diversas não pretende querer estabelecer o que seria a experiência total do

trabalho de arte contemporâneo, situação que seria aqui antitética ao que está

sendo proposto, uma vez que a busca interessante se dá pela descoberta de

espaços e frestas e não pelo fechamento integral de lacunas (e intervalos são

fundamentais quando se quer conexões e passagens mas não quando se busca

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103

totalidade estável). Entretanto, propõe-se aqui – sim – um modo, no que possui

enquanto procedimento próprio, singular: o que se faz e produz aqui é gerado em

contato próximo a uma ambiência particular, sendo ao mesmo tempo reação a ela e

intervenção possível, gestos que desde sempre procuram o outro – que aí é

constituído, tomado como veículo e garantia de poder ser conduzido daí a lugares

diversos, em linhas de fuga.

É importante considerar os desdobramentos aqui trabalhados como elemento da

ambiência em que o projeto Você gostaria de participar de uma experiência

artística? se desenvolve – camadas discursivas que fluem como as linhas do projeto,

através delas, mas também conduzindo este fluir por outros desenhos, no mesmo

mapa. Não se trata de qualquer dimensão conceitual por trás da obra, mas

veemente intensidade em primeiro plano, entrelaçada ao percurso visual, que se

irradia aos demais pontos – é interessante como no diagrama todas as regiões estão

em certo contato entre si, e a intensidade que localizamos em determinadas

encruzilhadas do mapa se irradia a outras localizações através das diversas

passagens que se oferecem e se abrem.

Bloco 2 hipervírus, marca, trauma, micropercepção, comunicação

O objeto utilizado no projeto Você gostaria de participar de uma experiência

artística? foi definido em 1994, ao mesmo tempo em que era delineado o primeiro

esboço do diagrama do projeto – de modo que as etapas envolvendo a produção do

objeto plástico e seu sistema de circulação tiveram desenvolvimento simultâneo:

enquanto o objeto deu seqüência à série de objetos NBP que se desdobravam

desde 1991, as etapas do projeto foram formalizadas de acordo com as pesquisas

em torno de diagramas, que datam de 1993/94. Fig. 16 Isto é certo: Você

gostaria…? não teria se desenvolvido se não houvesse sido plasmado nesta dupla

articulação compreendendo o objeto e seu sistema, ambos os campos como lugar

de invenção e intervenção. Sem dúvida que reside aí um momento extremamente

importante – há salto de complexidade –, uma vez que a série de peças escultóricas

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104

passa a funcionar em conjunto com determinantes conceituais: através do diagrama,

com o qual o objeto estabelece articulação de contato, um campo discursivo

potencial se estabiliza junto do objeto, permitindo que a qualquer momento a

dimensão conceitual possa ser acionada, funcionando ali como parte da obra –

“objeto + conceitos”.

Antes deste momento, é preciso destacar ainda outro objeto, cuja presença também

impulsionou as pesquisas de modo decisivo: seu título remete diretamente à série

(NBP – Novas Bases para a Personalidade, 1993); mas sua estrutura traz como

novidade o elemento arquitetônico, que permite que funcione enquanto abrigo ou

cápsula para dois visitantes: ali, sentados, os que se instalam na peça ficam visíveis

aos que continuam em torno – ainda que internos, projetam-se ao exterior, indicando

que a peça de ferro não passa de uma membrana, superfície que separa mas não

impede o trânsito do visível (assim como não há vedação sonora – a fala irrompe e

sempre se estabelece entre os de dentro e os de fora, assim como entre os dois de

dentro). Fig. 17 É verdade que existe um cadeado trancando a porta: quem está ali

não pode sair sem que alguém do outro lado gire a chave e franqueie a saída:

assim, sempre haverá a necessidade de uma conversa entre quem, do lado de fora,

possui a chave, e quem está dentro da peça – pois, e isso sempre ocorre quando

esta peça é exposta, há interesse e desejo em ali entrar para se instalar no lado de

dentro. Mas o mais intrigante se passa para os que entram: aquele interior consiste

em estar cercado por membrana metálica, que não impede a visão do espaço em

torno (seja espaço aberto ou fechado) – fazendo com que a peça literalmente

funcione como uma espécie de filtro entre as coisas todas ao redor e os visitantes –

que, de fato, pouco a pouco convertem-se em usuários, à medida em que vão sendo

provocados pela estrutura de funcionamento da cápsula. Olhar em torno passa ser

experiência interessante; sobretudo, ao ter a porta como elemento frontal: ali está

plasmada a forma específica NBP e não há como olhar para frente sem que este

desenho se imponha entre o olhar e o espaço exterior – como um grande filtro, esta

área externa será percebida de outro modo. Gosto de pensar que por efeito deste

filtro NBP são materializadas linhas invisíveis que permeiam qualquer espaço em

que há trânsito de afetos (onde exista a intensidade própria de subjetividades

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produzindo inflexões neste campo imaterial mas absolutamente presente) – linhas e

ondas de atração, repulsão, agrupamento, desejo, etc. Tal é, de fato, um dos

momentos a partir do qual a fórmula do diagrama começou a ser enfaticamente

delineada: a constatação de que era possível olhar através do trabalho, a partir dele

– e o que seria visto (pois a arte torna visível ou manifesto) só o seria a partir dali;

linhas, sinais, palavras que tomamos como invisíveis mas que atuam, funcionam,

produzem efeitos a serem trabalhados. Ali deve-se intervir.

* * *

É preciso lembrar que o programa de trabalho NBP - Novas Bases para a

Personalidade surge em reação direta às experiências realizadas dentro do contexto

de rearranjo do circuito de arte local sob impacto de uma nova ordem econômica

internacional,122 dentro da qual os mercados – em seu sentido amplo, incluindo aí o

mercado de arte – passam a funcionar de modo mais agressivo e atuante em

relação ao campo da cultura. Não há como separar, em termos da história recente

brasileira, o período de abertura política da transformação do regime econômico:

“Se é verdade que o processo de dissolução da ditadura, no final dos anos

1970 e início dos 1980, resultou da pressão de movimentos políticos e sociais

dentro do país, não é menos verdadeiro que também foi resultado da pressão

exercida pelo capitalismo transnacional.”123

Afinal, “a abertura democrática (…) que se deu ao longo dos anos 1980, deve-se em

parte à chegada do regime pós-fordista, para cuja flexibilidade a rigidez dos

sistemas totalitários constituía um estorvo”.124 Portanto, esta convergência indica a

necessidade de se tomar os principais acontecimentos da arte brasileira dos anos 122 No volume Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, considerado como um dos mais significativos textos acerca do novo panorama socioeconômico – e notabilizado por apontar a discussão de novos caminhos para a luta política – a dimensão internacional do novo quadro é apontada logo nas primeiras páginas: “A problemática do Império é determinada, em primeiro lugar, por um fato singular: a existência de uma ordem mundial”. Antonio Negri, Micahel Hardt, Império, Rio de Janeiro, Record, 2001, pp. 21. 123 Suely Rolnik, “Zombie anthropophagy”, in Kollektive Kreativität, Revolver, Frankfurt, 2005, pp.206-218. (catálogo de exposição, Kunsthalle Friedericianum, maio-junho, 2005) 124 Suely Rolnik, “Geopolítica da cafetinagem”, disponível em http://www.rizoma.net.

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1980 sob o impacto da “instalação progressiva e dispersa de um novo regime de

dominação”125 – isto é, procurar compreender de algum modo as importantes e

significativas relações que se estabelecem entre o campo artístico-cultural e a esfera

político-econômica (tal articulação se faz mais do premente quando se fala de um

“capitalismo cultural” ou capitalismo cognitivo”126). Somente desta maneira se poderá

escapar da repetição incessante, simplificadora e auto-referencial do refrão

“Geração 80 / volta à pintura”, buscando indicar um solo mais consistente para a

prática artística, crítica e historiográfica. Sintoma de uma leitura pouco consistente

do período, que deliberadamente procura ignorar as complexas articulações que

desde então se desenham entre práticas artísticas e a nova economia da cultura, as

leituras que ainda hoje circulam procuram enfatizar a dicotomia “festa x anos de

chumbo”127, sem indicar a necessidade de abordar o momento de forma mais atenta.

O que se enfatiza aqui é a necessidade de se recuperar uma aproximação para

junto da obra de arte a partir de sua compreensão enquanto ‘dispositivo de

resistência’ – ou seja, alguma forma reconstruída de autonomia parcial que aponte

para a elaboração de ‘linhas de fuga’, de um ‘lado de fora’ propositor de redes de

relações e espaços para o gerenciamento de processos outros – e não simples

produção de bens de consumo que se esgotem no ato de consumi-los. Deve-se

ainda lembrar – no sentido de evitar uma apreciação apenas local das dinâmicas de

nosso circuito cultural – que o impacto de um “capitalismo cognitivo” que “busca

continuamente capturar a potência coletiva de invenção”128 (e a dinâmica das

práticas artísticas e seu circuito são elementos-chave desta “potência”) se dá de

125 Gilles Deleuze, Pourparlers. Paris, Les Éditions de Minuit, 1990, p. 247. 126 “A mutação a que assistimos desde 1975 é aquela do nascimento de um novo modo de regulação do capitalismo (o terceiro na história, depois do mercantilismo e do capitalismo industrial). Este novo capitalismo, nós o chamamos de capitalismo cognitivo.” Yann Moulier-Boutang, “Capitalisme cognitif et éducation, nouvelles frontières”, disponível em http://multitudes.samizdat.net/Capitalisme-cognitif-et-education.html. 127 Passadas duas décadas, uma exposição comemorativa que ambicionava o “resgate histórico de um movimento cultural” (texto de apresentação do Centro Cultural Banco do Brasil) não faz mais do que repetir os mesmos dizeres daquele momento: “Herdeiros do silêncio, essa nova geração sonhava com muito som, muito sol e rock and roll. Nas artes, perpassava um sentimento de liberdade, um desejo de ser feliz, de pintar a vida com cores fortes e vibrantes, valorizando o gesto, a ação. (…) contrapunha-se um desejo de fazer da arte um local de emoções, um caldeirão borbulhante de odores, prazeres e sensações. Esse compromisso hedonista, essa ânsia de ser feliz vai encontrar suas raízes no desejo coletivo de ‘participar’, de integrar a coletividade democrática que se sonhava.” Marcus de Lontra Costa, “Os anos 80: uma experiência brasileira”, in Onde está você, Geração 80?, Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 7 (catálogo de exposição). 128 Y.Moulier-Boutang, op.cit..

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modo bastante mais extenso, assediando de modo igualmente corrosivo diversos

outros sistemas artístico-culturais. Em um texto bastante preciso e informativo, no

qual examina “o efeito que o ambiente político e econômico conservador produziu

sobre a arte” (norte-americana…) nos anos 1980 – com destaque para o “impacto

que o mercado de arte, suporte corporativo, estratégias mercantis e a mídia tiveram

sobre a função e significado da arte recente” –, o artista e crítico Richard Bolton

aponta o “modo como o poder funciona através da esfera cultural para controlar o

dissenso”. Atento às transformações do mercado de arte pelo “capitalismo [norte-]

americano e transnacional” frente ao papel agora desempenhado pelo capital

corporativo, o autor observa que

“As corporações têm utilizado seu enorme poder para roubar da arte seu

papel como um espaço de dissenso, como um possível lugar para a

experiência não mercantilizada. O museu se torna um local de afirmação do

projeto corporativo, e a corporação coloca a arte para funcionar ‘inventando

um futuro’ – isto é, mercados mais amplos, maior poder. Todos compreendem

como a publicidade é utilizada para definir um público e estabelecer suporte

para o poder. As corporações apenas estendem esse processo para dentro

da esfera cultural, transformando a arte em um tipo de propaganda. Assim, a

arte provê a corporação com um meio para se comunicar com o bem público,

mesmo se a corporação amplia seus interesses próprios – a arte é então

utilizada para normatizar o poder da classe corporativa. Com esta finalidade,

as corporações têm suplantado o apoio do governo às artes e museus e

organizações artísticas dependem das corporações para sua sobrevivência –

e as corporações têm iniciado a construção de seus próprios museus-

satélites. A distância entre espaço corporativo e cultural tem diminuído. Qual

poderá ser a alternativa?”129

Enfim, sob a vigência de “um outro sistema de acumulação, no qual esta se volta

para o conhecimento e para a criatividade, isto é, para as formas de investimento

129 Richard Bolton, “Enlightened self-interest: the avant-garde in the ‘80s”, in Grant H. Kester (Ed.), Art, activism and opposionality – essays from Afterimage, Durham, Duke University Press, 1998, pp. 23-50.

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imaterial”130, é importante aproximar-se da produção de arte contemporânea – e seu

circuito – com a devida atenção, apostando neste lugar como portador ainda de

possibilidades para o desdobrar de um pensamento produtivo e a construção de

subjetividades transformadoras: localizar-se em torno da capacidade da arte

contemporânea de “deflagrar verdadeiras potências cognitivas, afetivas, sociais,

aptas a desordenar e re-agenciar os espertos encadeamentos construídos pela

razão produtiva contemporânea”, “inventar dispositivos que permitam fugir à

constituição do público como modelo majoritário” e “exceder os clichês e hábitos

perceptivos do ‘espetáculo’”.131

Há aqui um problema delineado: as transformações que se instalaram no circuito de

arte brasileiro e mundial a partir do fim do século XX – sendo que os jovens artistas

que iniciaram sua atuação no espaço-tempo brasileiro no período da

redemocratização vivenciaram a instalação abrupta dos primeiros movimentos de

um insidioso novo regime socioeconômico, caracterizado hoje como capitalismo

cognitivo (capitalismo cultural, regime pós-fordista, etc.). Do ponto de vista dos

artistas, era preciso, é claro, a partir das demandas e exigências das formas de

atuação escolhidas, desdobradas e desenvolvidas (sempre, aquelas que se

oferecem como possíveis a cada momento), desbravar modos de atuação e

agenciamentos (individuais, coletivos, institucionais) frente ao ambiente de trabalho

configurado. É neste quadro, de um circuito de arte ainda hoje com muitas

dificuldades em mediar de modo mais amplo o embate dos artistas com a nova

máquina econômica e seu modo particular de instalação no Brasil (como se percebe

a partir da incapacidade – que ainda persiste, duas décadas depois – do aparelho

crítico e historiográfico em articular de modo mínimo que seja a complexidade

daquele momento132), que procuro situar o início de minha prática como artista: ou

seja, impõe-se uma discussão da construção e processamento de linguagens

plásticas; o debate com um campo conceitual crítico-histórico; a exploração de 130 Y.Moulier-Boutang, op.cit.. 131 Éric Alliez, Brian Holmes, Maurizio Lazzarato, “Construction vitale: quand l’art excède ses gestionnaires”, in Multitudes, Paris, Éditions Amsterdam, nº 15, inverno 2004. Disponível em http://multitudes.samizdat.net/Construction-vitale.html. 132 De fato, as exposições “2080”, museu de arte moderna, São Paulo, 2003, e a já mencionada “Onde está você, Geração 80?”, Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, não foram capazes de tocar no nervo das contradições e complexidades do período e de seu processo de institucionalização.

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possibilidades de inserção institucional e agenciamento; o embate e enfrentamento

pela constituição de uma imagem do artista. Não se trata aqui, obviamente, a traçar

os detalhes de um percurso pessoal mas enfatizar algumas escolhas e opções de

trabalho, seguindo alguns de seus desdobramentos internos/externos – os quais

serão confrontados com linhas gerais das questões que se abrem com a discussão

do atual quadro socio-politico-econômico que se impõe sobre o globo no século XXI,

indicando possibilidades de construção de resistência: produção conceitual de

pretensos desvios alternativos, frente à hegemonia do poder consensual majoritário,

que permitam a constituição de modalidades de espacialidade, convívio e

pensamento de ordem plural e heterogênea; ou ainda, de modo mais concreto,

traços de uma prática artística sendo articulados enquanto possibilidades de ação

plástico-conceitual.

Eis que, após um período extremamente intenso de atividades em diversas direções,

com a utilização de linguagens variadas (desenho, pintura, objeto, intervenção,

performance, vídeo, música), impôs-se a fórmula da aproximação da arte

contemporânea com campo comunicativo.133 Esta fórmula já havia sido trabalhada

com sucesso na série com a marca Olho – e não é uma simples coincidência ter

sido este o trabalho com o qual participei de “Como vai você, Geração 80?”:

impunha-se já a necessidade de alguma fluidez frente aos caminhos de criação de

‘possibilidades de trabalhar como artista’ (não é isso que pode fazer um jovem

artista, apostar nas virtualidades de um desdobramento à frente, enquanto se ganha

alguma velocidade?). Fig. 10-12 Ou seja, com a marca Olho já há um investimento

em estratégias de repetição, na presença em diferentes espaços, na construção de

um campo de empatia para com o outro, na mobilização de uma percepção ‘veloz’,

133 É interessante que pensadores atentos ao desenvolvimento do capitalismo cognitivo, à procura da construção de um pensamento de resistência, apontem a “política da comunicação ou (…) a luta para o controle ou para a libertação do sujeito da comunicação” como traços característicos da nova organização do poder socioeconômico: “a unidade do político, do econômico e do social é determinada na comunicação; é no interior desta unidade, pensada e vivida, que os processos revolucionários podem hoje ser conceituados e ativados”. Maurício Lazzarato e Antonio Negri, Trabalho imaterial – formas de vida e produção de subjetividade, Rio de Janeiro, DP&A, 2001, pp. 39-40.

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110

etc.134 Segue aqui um breve comentário acerca desta incursão em um projeto

comunicacional:

[A] marca Olho foi desenvolvida especialmente para este evento [“Como vai

você, Geração 80?”], sob a forma de adesivos para serem colados pelo

espaço da sala e por outros locais do edifício. Os adesivos estavam também

disponíveis para venda, podendo ser adquiridos (um pacote com dois) pelo

público visitante: uma forma de estender o trabalho para além do evento,

colocando (literalmente) nas mãos dos visitantes possibilidades de invasão do

trabalho por outros espaços, construindo outras intervenções, num gesto já

de certa forma interativo, em que minha autoria é compartilhada (processo

que continuei através do projeto NBP). Colados (ou às vezes pintados) sobre

objetos, outras imagens ou elementos arquitetônicos, desenvolvi uma série de

trabalhos nos anos seguintes (até aproximadamente 1990), explorando as

possibilidades de reprodutibilidade desta marca simples e impregnante. Além

de produzir um efeito de demarcação e antropomorfização de objetos e

imagens, a marca Olho provoca principalmente uma reversibilidade

perceptiva, fazendo com que as coisas, transformadas em agentes e

arrancadas à sua indiferença, nos observem. Para o olhar humano, cria-se a

possibilidade de acesso a uma suposta 'interioridade' do mundo – através da

estratégia de enfatizar a superfície das coisas, pois o Olho transforma tudo

em imagens perceptualmente dinamizadas –, em que a marca indica pontos

de produção de problemas, de questões (a 'interioridade' afinal revelada como

abismo, campo problemático sem qualquer a priori), como uma ferramenta de

evidenciação e combate à homogeneidade e opacidade das coisas. Claro que

a mobilização perceptiva envolvida neste processo é da ordem da velocidade,

da repetição, impregnação, estampagem e memorização, abrindo caminho 134 Assim dizia o texto de apresentação do projeto desenvolvido com a marca Olho em 1987, na Unicamp, enquanto artista residente: “I- Este trabalho tem a pretensão de ser contemporâneo: insere-se no campo visual comunicativo das sociedades de massa, planetárias: quer dialogar com muita gente. II- A divulgação multiplicada de uma única marca, contaminadora de qualquer espaço: propaganda da mais interessante possibilidade da arte: olhar-crítico, olhar-conhecimento, olhar-pensamento. III- Ação substantiva de um salto acima do vácuo ocidental para a positividade sinestésica de algo. IV- Celebração: conseqüência agradável, não condição de trabalho do afastado artista, em busca de melhores e mais acirrados ângulos de visão.” Ricardo Basbaum, Evento da torre, Campinas, Unicamp, 1987 (folder-convite). Fig. 12

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para a subliminaridade presente no projeto NBP: aproximação das estratégias

da arte com o campo comunicativo das sociedades de controle. É preciso

destacar também a operação de formação de um campo pático135, em que o

envolvimento afetivo do fruidor desempenha um papel fundamental na

construção de seu relacionamento com o trabalho. Decorre desta estratégia

de envolvimento a implementação de uma possibilidade de produção

discursiva – e é aí que a marca Olho vai sendo progressivamente substituída

pelo projeto NBP enquanto modo de articulação visual que procura responder

mais eficientemente a esta demanda de um relacionamento variado com a

palavra e o conceito.136

Deste modo, NBP se caracteriza por procurar abrir uma inflexão produtiva em meio

às questões que se desenvolviam no trabalho até então, estabelecendo articulação

direta com elementos de um discurso propriamente plástico – em contato com

determinantes sobretudo da escultura, objeto e desenho, mas também da

instalação, performance, arquitetura e vídeo – e elementos de uma estratégica

gráfica, da ordem da reprodutibilidade técnica e de um viés comunicativo, cuja

articulação texto/imagem permitia então que fosse lançada ao olhar em um jogo

perceptivo mais rápido, repetitivo e insidioso, aproximando-se mesmo de

possibilidades ditas subliminares e de contaminação.

Vale lembrar que quando formulei pela primeira vez a sigla NBP, articulando as

consoantes iniciais da proposição Novas Bases para a Personalidade, havia a

motivação de mobilizar principalmente a questão da 'transformação', relacionando-a

de alguma forma ao corpo. Vindo de experiências com performance (junto à Dupla

135 "O que nos faz afirmar fenomenologicamente que algo está vivo? É precisamente através desta relação de afeto. (…) uma apreensão pática, imediata e não-discursiva ocorre do relacionamento ontológico de auto-composição da máquina. (…) No momento da relação autopoiética, existe um conhecimento imediato e pático da situação – 'algo está ocorrendo'". Félix Guattari, "On Machines", Journal of Philosophy and the Visual Arts (artigo fotocopiado, s/d). As observações de Guattari são importantes para a configuração de um campo pós-fenomenológico da experiência perceptiva com a obra de arte. 136 Ricardo Basbaum, “Projeto NBP: algumas pistas de um programa em processo” in Luiz Nazario e Patricia Franca (Orgs.), Concepções contemporâneas da arte, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006, pp. 204-205. Texto apresentado originalmente no Seminário Outras investigações, módulo “O artista como pesquisador”, Itaú Cultural, Belo Horizonte, 01/09/2000. A argumentação a seguir toma partes deste escrito como referência.

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Especializada e Seis Mãos137), o problema de uma corporalidade se colocava como

peça fundamental do fazer artístico acumulado até então, suporte mesmo da

construção da obra; e havia, ainda, experiência quanto a uma decisiva ênfase na

recepção, com a audiência necessariamente colocada em situação de envolvimento

e impacto. Ressoava também, naquele momento, uma declaração de Lygia Clark –

entrelida em uma entrevista cuja fonte me escapou – de que se havia algo em seu

trabalho que só poderia ter sido feito no Brasil seria sua "preocupação com a

participação do espectador, com o corpo…". Questões também presentes em Hélio

Oiticica, que junto com Clark havia recentemente figurado em importante exposição

retrospectiva, no Paço Imperial138. Estes dois elementos – ênfase na corporalidade,

nos termos de uma participação do espectador conduzindo a um processo de

transformação; sensação de pertencimento inevitável a um local, a um campo

cultural singular, sem qualquer conexão a um caráter nacional – ganharam

elaboração na busca por uma fórmula verbal que expressasse de modo sintético e

estratégico esta ordem de proposições. NBP aparece sob a pretensão de abrigar

uma nova etapa de possibilidades de trabalho.

NBP configura-se como uma palavra de ordem, um comando, claramente orientado

para uma indagação acerca de estrutura (Bases) e mutabilidade (Novas). Há a

preocupação com processos de mudança, transformação, percebidos a partir de

uma consistência própria, interna: através de sua repetição e memorização, a

palavra de ordem gradualmente se insinuaria junto ao receptor ou fruidor e

137 A Dupla Especializada (Alexandre Dacosta e Ricardo Basbaum) tinha como principal projeto de trabalho a proposta geral de "intervenção em meios de comunicação de massa". Realizamos performances envolvendo pintura e música (1981), intervenções com cartazes no espaço urbano (1981-84), distribuímos uma filipeta-manifesto (1984), produzimos um videoclipe (Egoclip, direção de Sandra Kogut e Andrea Falcão, 1985) e um conjunto de canções, apresentadas no show-performance "Reflexões Musicais" (1986). Fig. 1-6 O grupo Seis Mãos (Alexandre Dacosta, Barrão e Ricardo Basbaum) começou suas atividades em 1983, com "Improvisos para pintura e música". Realizamos a performance Garçons (1984-85), em que invadíamos de surpresa vernissages vestidos de garçons, distribuindo objetos e textos especialmente preparados para cada ocasião. Junto com Sandra Kogut apresentamos, em diversos espaços do Rio de Janeiro, a vídeo-performance Calêndula Concreta (1986-87) Fig. 7-9.Ver algumas referências da Dupla Especializada e grupo Seis Mãos em Corpo, São Paulo, Itaú Cultural, 2005, p. 51. Até o momento, o principal acesso à produção destes dois grupos restringe-se ao arquivo dos artistas envolvidos. Uma recente exceção é o texto “Década de 1980: mais algumas observações críticas”, de Thaís Rivitti, número sete, USP, 2006, pp. 4-5, que desenvolve comentários acerca do vídeo Egoclip, da Dupla Especializada (1985). 138 "Lygia Clark e Hélio Oiticica", Sala Especial do 9º Salão Nacional de Artes Plásticas, curadoria de Luciano Figueiredo e Glória Ferreira, Paço Imperial (Rio de Janeiro), 1986.

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sutilmente deflagraria um processo auto-induzido de transformação – mecanismo

que será comentado mais adiante, a partir de questões do campo perceptivo. A

palavra Personalidade vem articular-se às outras duas, procurando conduzir o

processo para um lugar que escape (para assim, muitas vezes, atuar em conjunto) a

algumas construções cujo sentido tem sido precisado pela filosofia, psicanálise ou

literatura (sujeito, subjetividade, interioridade, etc.), instalando-se com uma certa

lateralidade139: a significação aqui pretendida deve, isto sim, retornar – junto com a

singularidade plástico-visual promovida pelos trabalhos – para estes campos,

provocando-os. Dentro desta alusão a processos de individuação e transformação, a

ênfase recai, por um lado, junto a traços comportamentais, exteriorizantes, próximos

ao mapeamento [behaviorista] de um corpo que marca seus movimentos e gestos

motivados pelo espaço em torno; é importante, aí, a dimensão 'encenada' ou

'construída' destes comportamentos em seus esquemas de produção de uma

imagem de si aos olhos do outro (e introjetando também neste gesto o olhar do

outro, buscando a lateralidade instalada, o estranhamento de si mesmo,

reverberando a máxima do eu é um outro). Por outro lado, há neste termo

(Personalidade) alusão a uma engenharia ou ambiente interno qualquer necessário

a construir o comando destes displays de comportamento: uma condição de

internalidade que é espaço (em contínua inversão dentro-fora, como bem ilustra a

fita de Moebius, via Clark & Oiticica, mas também através de Tunga, para quem a

fita é local de um evento ou espetáculo pós-barroco) e que por isso mesmo articula-

se com o corpo do qual faz parte, pelo qual é alterado e o qual faz alterar. 139 Brian Holmes desenvolve a noção de “personalidade flexível” como maneira de articular um “tipo ideal” de subjetividade, conforme é “moldada e direcionada pelo capitalismo contemporâneo”: “descrever o trabalhador imaterial, ‘prosumer’ [termo que combina em uma mesma palavra as categorias produtor/producer e consumidor/consumer’] ou networker como personalidade flexível, é descrever uma nova forma de alienação, não a alienação da energia vital e do desejo errante exaltados nos anos 1960, mas a alienação da sociedade política. (…) [U]ma nova forma de controle social, na qual a cultura desempenha um importante papel (…) uma forma distorcida de revolta artística contra o autoritarismo e estandardização”. Para Holmes, a personalidade flexível indica uma subjetividade na qual as “energias revolucionárias surgidas nas sociedades ocidentais nos anos 1960, e que em um momento pareciam capazes de transformar as relações sociais”, encontram-se “’constituídas, definidas, organizadas e instrumentalizadas’ por um conjunto de técnicas” – representando assim “um padrão ‘soft’ de coerção, internalizado e culturalizado”. É interessante como o autor contrapõe a personalidade flexível, tipo representativo do capitalismo cognitivo, com aquele criado por Adorno e seus colegas da Escola de Frankfurt, como representativo do capitalismo de estado dos anos 1930/40 e batizado de “personalidade autoritária” [authoritarian personality]. É claro que o projeto NBP visa instalar-se no espaço apontado por Holmes para ali desenvolver estratégias de resistência. Brian Holmes, “The flexible personality: for a new cultural critique”, in Hieroglyphs of the future, Zagreb, Arkzin, 2004.

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Existe aqui uma interessante conexão com certas correntes do pensamento

filosófico materialista próximas à biologia, em formulações acerca da relação

sensível com o mundo – e que apontam para certa condição de plasticidade frente

aos processos de constituição da subjetividade. Arrancando desde logo o sujeito de

uma posição passiva, chama-se a atenção de que “o que os meus sentidos me

dizem a qualquer momento está baseado em meus interesses como agente e é

determinado por eles” – sem deixar de pontuar que “não temos uma relação de

transparência em relação a nós mesmos” e que portanto os processos de produção

de subjetividade (sempre um cuidado de si, como dizia Michel Foucault) não seriam

separáveis de um “conjunto de próteses” e mediações a partir do qual emergiria um

eu da ordem do ficcional, tal qual um “centro narrativo”. Aqui, mais uma vez, há a

construção de um mecanismo de produção do mundo como diferencial e estranho –

repleto de sensações – a um sujeito; afinal, o “cérebro estaria localizado dentro do

mundo simbólico e social”, e graças às “próteses” (reforçadas pela “linguagem,

cultura e instituições”) “escaparia ao solipsismo”, em direção ao outro. O filósofo da

biologia Charles T. Wolfe aproxima assim “produção de subjetividade” de uma

“ontologia constitutiva, segundo [Antonio] Negri” (a partir da “de-ontologização do

cérebro”): aí ocorreriam passagens entre “um cérebro-em-rede social, culturalizado e

dotado de plasticidade e a produção e reprodução do ser através de desejos e

ações de agentes concretos”.140 Claro que aqui o trabalho de arte – e toda a

estratégia sensorio-conceitual que o envolve – estaria desempenhando o papel de

artifício, prótese, um mediador a atuar a partir da possibilidade de um pensamento

por sensações – afinal, “a sensação não é menos cérebro que o conceito”.141

Acompanhando a operação que Lygia Clark nomeou de "metabolismo simbólico" –

um introjetar de sentido processado e integrado organicamente pelo corpo, enquanto

mecânica de hibridização – pode-se perceber também uma abordagem

extremamente importante acerca de como a presença do objeto ou situação sensível

140 Citações de passagens do artigo de Charles T. Wolfe, “De-ontologizing the Brain: from the fictional self to the social brain”, Ctheory, Vol 30, n. 1-2, 051, 2007, http://www.ctheory.net, 141 “É o cérebro que diz Eu, mas Eu é um outro. (…) E este Eu não é apenas o ‘eu concebo’ do cérebro como filosofia, é também o ‘eu sinto’ do cérebro como arte.” Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 271.

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(objeto relacional, toque, som, odor, proposição artística, etc.), ao envolver o outro e

suas diversas e complexas camadas a partir das quais deflagra o jogo das

sensações, produz efeitos de transformação do sujeito:

“O corpo se ‘apropria’ de toques, de contatos, de órgãos dos corpos adultos,

de acidentes dolorosos que o atingem, de desnivelamentos dos espaços, de

intervalos de sensações sensórias agradáveis ou não, num processo de

metabolização simbólica que vem a constituir o ego.”142

As invenções e descobertas de Lygia Clark constituem, sem qualquer dúvida, um

dos principais conjuntos de formulações acerca da relação do sujeito com a

alteridade sensível, direcionada a uma proposta de transformação ligada à cura.

Deve ser destacada a elaboração de um sofisticado aparato sensorial-conceitual,

que tem como matriz de desenvolvimento questões-chave da arte contemporânea

produzidas a partir da segunda metade do século XX, caracterizando o trabalho de

Clark como uma investigação – praticamente sem precedentes (que outros artistas

teriam, no século passado, desenvolvido uma obra com alcance de aglutinar em

torno de si tantas outras e diversas áreas do conhecimento? Marcel Duchamp seria

um deles – mas não há muitos) – em torno de um saber da arte (aquele produzido

pelas obras)143 e seus desdobramentos.

Esta combinação entre uma dimensão de ‘processamento orgânico’ e um ‘campo

simbólico’ – ambos em funcionamento conjunto, em direção constitutiva do sujeito –

é também considerada por Paolo Virno, que aponta para a interessante perspectiva

de que a mobilização de um processo intensivo de individuação/subjetivação não se

esgota nos limites do organismo144 ou indivíduo, mas avança para a constituição da

142 Lygia Clark (com a colaboração de Suely Rolnik), “Memória do corpo”, in Lygia Clark, Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 55. 143 É importante quando Ronaldo Brito insiste na singularidade, que ainda pode-se dizer subaproveitada, do saber da arte: “Hoje aparece cada dia com mais clareza a distinção – senão a contradição – entre o Saber da Arte e o Saber sobre a Arte. Entre a verdade produtiva dos trabalhos de arte, ao longo da história, e o discurso da História da Arte. E se constata o quão pouco se conhece desse primeiro e decisivo saber (…)”. Ronaldo Brito, “O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo)”, in Arte Brasileira Contemporânea - Caderno de Textos 1, Funarte, Rio de Janeiro, 1980. 144 Charles T. Wolfe lembra que “a construção de um caso-limite chamado ‘organismo’ se dá forçosamente a posteriori”, sendo este “nada além do que a produção de uma artificialidade vital”

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“multidão”, atingindo “seu ápice no agir conjunto, na pluralidade de vozes (…) na

esfera pública” (e aqui transparece as preocupações deste autor com uma produção

teórica que apóie as lutas políticas da atualidade). Virno propõe a noção de um

“sujeito anfíbio”145, a qual integra junto ao “indivíduo individualizado (…) uma certa

proporção irredutível de realidade pré-individual” – ou seja, aquela próxima da

natureza enquanto “indeterminado” (aperion); neste composto, articulam-se “a

tonalidade anônima do que é percebido (a sensação enquanto sensação da

espécie), o caráter imediatamente inter-psíquico ou ‘público’ da língua materna e a

participação no general intelect” (caracterizado como o “saber abstrato, a ciência, o

conhecimento impessoal”). Logo, haverá aí espaço importante reservado ao jogo

pré-individual enquanto potência subjetivante, indicando possibilidades de um jogo

intensivo de busca de alteridade em relação às coisas, sensações, linguagem,

outros sujeitos. Porém, é importante entretanto destacar que o modelo de Virno

(baseado em grande parte em Gilbert Simondon) contempla não apenas o sensível

mas também o campo lingüístico, como característicos do campo pré-individual –

abre-se assim a possibilidade de se considerar, no impacto da obra de arte junto ao

sujeito, a força das sensações em funcionamento conjunto com a linguagem,

construindo passagens para as questões próprias do conceitualismo146 na arte

contemporânea.

(mas resistente “ao modelo mais mecanicista”), a “capacidade de projetar uma totalidade significante sobre um universo caótico”. Também aí reverbera uma questão constitutiva ou construtiva, uma vez que em seu sentido mais “ordinário, na natureza”, o organismo “é uma ficção, uma saturação temporal e histórica de uma interseção causal no grande nexo do mundo.” Charles T. Wolfe, “La catégorie d’’organisme’ dans la philosophie de la biologie: retour sur les dangers du réductionnisme”, in Multitudes, Paris, Éditions Amsterdam, nº 16, primavera 2004. Disponível em http://multitudes.samizdat.net/La-categorie-d-organisme-dans-la.html. 145 Paolo Virno, “Multitude et principe d’individuation”, disponível em http://multitudes.samizdat.net/Multitude-et-principe-d.html. 146 Adotamos aqui a distinção entre conceitualismo e arte conceitual proposta na exposição Global conceptualism: points of origin 1950s-1980s: enquanto “arte conceitual” refere-se diretamente a “uma prática formalista e essencialista desenvolvida a partir do início do minimalismo” (ou seja, enquanto corrente particular dentro da arte contemporânea, com atuação centralizada no período entre 1963-1974), o “conceitualismo”, ao “romper decisivamente com a dependência histórica da arte em relação à forma física e apercepção visual”, seria “a ampla expressão de uma atitude envolvendo um largo elenco de práticas que, ao reduzir radicalmente o papel do objeto de arte, re-imaginou as possibilidades da arte em relação às realidades sociais, políticas e econômicas dentro das quais é produzida.” Além disso, “sua informalidade e afinidade com o coletivismo tornou o conceitualismo atraente para aqueles artistas que desejavam um engajamento mais direto com o público”. É importante ainda acrescentar que vemos a própria noção de arte contemporânea como portadora de uma condição conceitual. Luis Camnitzer, Jane Farver e Rachel Weiss, “Foreword”, in Global conceptualism: points of origin 1950s-1980s, Nova York, Queens Museum of Art, 1999, p. VIII.

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É mesmo próprio do projeto NBP - Novas Bases para a Personalidade desenvolver

sua estratégia de ação a partir de uma modalidade de entrelaçamento entre texto e

imagem, aproximando as dimensões sensorial e conceitual. Enquanto sigla, as três

letras propõem um caminho de ação através de mecanismos de compactação

sígnica, em que a fórmula NBP serve efetivamente para a convocação de uma série

crescente de proposições que progressivamente se acumulam no decorrer do

trabalho, sinalizando os caminhos tomados a cada nova intervenção. Para marcar

ainda mais as diferenças deste projeto com o anterior (em torno da logomarca Olho),

o projeto NBP não se constituiu simplesmente a partir de um conjunto de letras que

se superpõem a qualquer objeto ou imagem (como ocorria com a marca Olho), mas

sim pela configuração de um suporte próprio – ele mesmo um sinal de compactação

e de impregnação –, de modo a que a presença verbal da sigla se dissolva e

combine na imagem e estrutura do desenho; e mais: se apresente também na

estrutura e imagem de cada objeto, escultura, instalação ou diagrama desenvolvido

a partir desse mesmo desenho . Deste modo, através de um processo de desenho e

projeção cheguei à configuração de uma forma específica, composta para funcionar

ao lado da sigla de três letras:

Esta forma é compacta, impactante e facilmente memorizável, funcionando como

presentificação e remissão constante ao projeto NBP. Sigla e forma específica

unem-se na constituição de um signo verbal/visual, utilizado agora no delineamento

de uma estratégia de ação em que as proposições plásticas e visuais são integradas

à produção de um campo discursivo: proposta de uma articulação simultânea dos

campos heterogêneos das coisas e das palavras, indicando a construção do par

visualidade-conceito como ponto de intervenção específico de um projeto de arte na

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contemporaneidade147. Seguiram-se a partir daí diversos projetos – objetos,

desenhos e instalações com diversos materiais –, sempre repetindo NBP e sua

forma específica: repetindo com diferenças, de modo que cada novo trabalho

enfatize sempre uma particularidade (de acordo com o material, espaço físico,

condições institucionais, etc.), adicionando especificidade e complexidade sempre

que se processa a atualização do projeto em um novo trabalho.

No texto “O que é NBP?” – o primeiro a traçar as referências iniciais do projeto NBP

– são lançadas as linhas gerais de um programa de trabalho que procura escapar

das armadilhas de uma objetivação de propósitos que seria excessiva: as palavras

ali não querem rivalizar-se com as proposições plásticas mas sim complexificá-las,

exibindo a trama e a textura de sua constituição. "Instantaneidade comunicativa",

"espacialização de um pensamento em rede" e "redefinição da corporalidade" são

vetores de uma estratégia em expansão, voltada para determinada forma de ação

possível frente à atualidade da cultura. Reivindica-se o campo das artes visuais

como local para a realização de uma intervenção, e aí são mobilizados os

parâmetros do campo sensível como espessura organizadora e produtora do real do

mundo: desmontar esta organização através de uma proposição rigorosa e aguda é

mobilizar o par sensorialidade-cognição em suas propriedades des- e re-

construtivas, atestando também um aspecto de autoprodução de si ("deixe-se

contaminar: elas [as mudanças] serão fruto de seu próprio esforço"). Após

relacionar-se com os trabalhos, o espectador parte com NBP e sua forma específica

dentro da mente. Como uma memória implantada ou artificial, este vírus (um signo,

cápsula de informações virtualizadas) carrega potencialidades (aqui expressas pela

inseparabilidade do par visual-conceitual) a serem atualizadas frente ao percurso da

vida e da experiência cotidiana.

Encontra-se aqui uma convergência direta – mas não linear! – com estratégias

utilizadas pelo mundo da publicidade corporativa em torno das logomarcas. De fato,

data-se a partir da década de 1980 o início do período denominado de “capital de

147 Em torno deste problema desenvolvi a dissertação "Convergências e superposições entre texto e obra de arte" (Mestrado em Comunicação e Cultura, Escola de Comunicação , UFRJ, 1996), publicada em Ricardo Basbaum, Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, pp. 17-94.

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marca”, em que o “capital puro de investimento” passa a migrar diretamente para o

setor do branding, ou seja, para a criação e desenvolvimento de marcas, logomarcas

e conceitos para serem associados aos produtos de venda: “para essas empresas

(…) a produção real (…) é a marca”. Percebe-se claramente como o capital

corporativo passa a desenvolver sobretudo estratégias de “produção de significado”,

mais do que de fabricação de produtos: a nova operacionalidade do marketing indica

que as mercadorias sejam “apresentadas não como ‘produtos’, mas como

conceitos”, tendo a “marca como experiência, como estilo de vida”.148

“As grandes potências industriais e financeiras produzem, desse modo, não

apenas mercadorias mas também subjetividades. Produzem subjetividades

agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades, relações

sociais, corpos e mentes – ou seja, produzem produtores. Na esfera

biopolítica, a vida é levada a trabalhar para a produção e a produção é levada

a trabalhar para a vida.”149

É importante enfatizar aqui que ao desenvolver tanto a marca Olho como a sigla e

forma específica NBP não houve propósito direto de parodiar uma forma de ação

concreta da nova dinâmica do mundo socioeconômico – trata-se muito mais de uma

atuação convergente com o funcionamento do ambiente dos fluxos globais, em que

as estratégias comunicacionais são sintoma de uma operatividade que se impõe.

Pois se o propósito é fazer o campo da arte contemporânea convergir para a

demanda de um agir veloz, repetitivo, presente em diferentes espaços e portador de

uma estratégia conceitual de ordem problematizadora, é porque se acredita que tal

estratégia irá indicar formas de resistência e instrumentalizar o trabalho frente a um

circuito de arte que de modo crescente se integra (e se entrega) a um

funcionamento que obedece aos mesmo preceitos de marketing das corporações

globais.

148 Naomi Klein, Sem logo: a tirania da marca em um planeta vendido, Rio de Janeiro, Record, 2003, pp. 31, 39, 45-46. 149 Antonio Negri e Michael Hardt, op. cit.., p.51.

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Outra significativa convergência, a partir de modos de formalização de questões

plásticas e sua relação com tópicos amplos do campo dos debates da atualidade

ocorre também em relação às discussões acerca de modos de contato, transmissão

e transferência de informação sensível – sempre tendo em vista que este importante

protocolo é peça-chave do processo de recepção da obra de arte (desde sua

autonomização, no período moderno) enquanto produção de alteridade (como bem

apontam Deleuze e Guattari em sua conhecida fórmula: “Os afectos são

precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (…) são as

paisagens não humanas da natureza”150). Artista cuja produção apresenta uma

lucidez fulminante que atravessa seus pouco anos de vida e trabalho (pois faleceu

em 1963, com apenas vinte e nove anos de idade), Piero Manzoni contribui para

uma importante mudança no vocabulário formal da arte contemporânea151. Suas

operações conceituais renovam a compreensão da noção de superfície como

“veículo” e da percepção da linha como “membrana” – ambas foram utilizadas e

experimentadas de modo variado e diverso em uma série de trabalhos: a proposição

Consumo de arte dinâmica pelo público devorador de arte (1960) investe na

distribuição de um trabalho de arte através do corpo do espectador por meio de uma

estratégia de contaminação viral – Manzoni imprimiu seu polegar em ovos cozidos

que foram oferecidos ao público (segundo o artista, “o público pôde fazer contato

com os trabalhos devorando a exposição em 70 minutos”152); as Esculturas vivas

(1961) tomavam a pele do corpo como superfície dinâmica, de comportamento

similar a uma membrana ativa, que ao toque de sua assinatura produzia a

transformação daquela pessoa em obra de arte – uma bio-escultura pronta para

(talvez) produzir modificações no ambiente, a partir do reconhecimento da condição

permeável do sujeito às trocas entre uma internalidade e um lado de fora. Estas

operações continuam com a série de pedestais (Base mágica, 1961), em que bases

de madeira intermediariam a transformação de corpos ‘comuns’ em esculturas vivas

– sendo a versão mais ambiciosa aquela denominada Socle du monde (1962), a

150 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 220. 151 Utilizo aqui referências diretas do artigo de minha autoria “Within the organic line and after”, publicado em Alexander Alberro e Sabeth Buchmann (Ed.), Art after conceptual art, Massachusetts, MIT Press, Viena, Generali Foundation, 2006, pp. 93. 152 Piero Manzoni, “Some Realizations... Some Experiments... Some Projects...”, 1962, disponível em http://home.sprynet.com/~mindweb/page14.htm.

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partir da qual todo o planeta estaria sendo posicionado em ‘modo de exibição’ sobre

esta pequena ‘plataforma para transformação’. Fig. 55-57 Esta série de trabalhos

indica a investigação se desenvolvendo em torno de estruturas de mediação –

sobretudo a importante consideração das formas dinâmicas da linha como

membrana (regiões de contato) e da superfície como veículo (superfícies de

deslocamento a partir de contato dinâmico)153.

É possível aqui perceber a convergência entre a demanda propriamente autônoma

por alteridade, da parte do sujeito sensível em contato direto com a obra de arte, e a

busca pelo desenvolvimento de estruturas formais avançadas de mediação que

respondam aos problemas próprios do ambiente da atualidade, em busca de uma

possível intervenção. Atendendo à confluência destes aspectos – membrana,

veículo, contato, alteridade –, e apontando para a agregação de mais alguns outros

elementos, encontramos uma construção importante para a estratégia de atuação do

projeto NBP: a forma compacta, que se repete de modo recorrente e agrega

simultaneamente as dimensões sensorial e conceitual/informacional – o vírus como

“o tropo máximo da cultura pós-moderna.”154 De fato, diversos autores mobilizam

esta referência extraída diretamente do campo da biologia e localizada “na lacuna

entre o mundo vivo e o não-vivo”; além disso, os próprios cientistas reconhecem que

o que se discute de modo concreto nos laboratórios é o papel dos vírus enquanto

“agentes de variação”155, de troca de informação genética entre as células, muito

além do ameaçador vetor infeccioso causador de doenças. Como observa o

sociólogo Thierry Bardini156, pode-se falar de uma contaminação generalizada da

cultura contemporânea por um “hipervírus” (o “vírus ‘vírus’”), tal a recorrência desta

marcante referência em textos de diversas origens, dentro do pensamento literário e

153 É importante notar que a noção de um dinamizador que ultrapassasse o vocabulário formalista também se encontra dentro do quadro amplo do conceitualismo, onde “’desmaterialização’ não significou apenas o desaparecimento do objeto, mas uma redefinição de seu papel como portador de sentido [carrier of meaning], reinvestindo sentido em objetos existentes e procurando eliminar a erosão de informação.” Luis Camnitzer, Jane Farver e Rachel Weiss, op.cit., p. VIII. 154 Thierry Bardini, “Hypervirus: a clinical report”, in Ctheory, Vol. 29, Nº 1-2, 031, 2006, http://www.ctheory.net. 155 Hyman Hartman, “Vírus, evolução e origem da vida”, in Charbel El-Hani e Antonio Augusto Passos Videira (Orgs.), O que é vida? Para entender a biologia do século XXI, Rio de Janeiro, Relume Dumará, Faperj, 2000, pp. 233-242. 156 Retomamos a partir de agora diversas passagens do artigo mencionado anteriormente, Thierry Bardini, op. cit..

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filosófico recente. Além de estar presente de modo marcante na obra de William

Burroughs – um dos principais autores a “sintetiz[ar] e experiment[ar] dentro da tese

fundamental: a linguagem (e especialmente a linguagem escrita) é um vírus” –, foi

ainda “teorizado de Derrida a Foucault, de Baudrillard a Deleuze”. Em entrevista

realizada em 1994, Jacques Derrida comenta que

“Tudo que tenho feito (…) está dominado pelo pensamento sobre o vírus, o

que poderia ser chamado de parasitologia ou virologia, um vírus podendo ser

muitas coisas (…) O vírus é em parte um parasita destrutivo, que introduz

desordem na comunicação. Mesmo do ponto de vista biológico, isso é o que

ocorre com um vírus; faz sair dos trilhos o mecanismo de tipo comunicacional,

sua codificação e decodificação. Por outro lado, é algo que não é vivo nem

não-vivo; o vírus não é um micróbio. E se você seguir estes dois caminhos,

aquele do parasita que, do ponto de vista comunicativo, interrompe uma

destinação – interrompendo a escrita, a inscrição, a codificação e

decodificação da inscrição – e aquele que por outro lado não está vivo nem

morto, você terá a matriz de tudo o que fiz desde que comecei a escrever.”157

Neste caso, é interessante perceber que o “projeto filosófico de Derrida” – segundo

Bardini –, desenvolvido entre 1967 e 1972 (de Gramatologia a Disseminação), seria

marcado pelo esforço de “introduzir o outro no Eu – uma redefinição do sujeito”, em

que persegue “a absoluta alteridade da escrita”. Tal busca por uma alteridade estaria

identificada com este “outro radical que é o vírus” – sempre a partícula portadora de

uma informação diferenciante, invasiva, circulando no corpo, um “suplemento,

tomando e mantendo o lugar do outro”: a “ontologia viral” como a “ontologia do

suplemento imaterial”158.

157 Jacques Derrida, com Peter Brunette e David Willis, "The Spatial Arts: An Interview with Jacques Derrida.", in Peter Brunette e David Wills, (Eds.), Deconstruction and the Visual Arts: Art, Media Architecture, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 12. Citado em Thierry Bardini, op. cit.. 158 De Jacques Derrida, pode-se ler ainda: “eu não tenho senão uma língua e ela não é minha, a minha ‘própria’ língua é-me uma língua inassimilável. A minha língua, a única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro.” Jacques Derrida, O monolingüismo do outro ou a prótese de origem, Porto, Campo das Letras, 2001, p. 39.

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NBP e sua forma específica, portanto, movimenta-se enquanto partícula compacta,

agregando informação conceitual e sensorial, agindo a partir do modo de

contaminação através do contato – ocorre o embate presencial fenomenológico (em

todas as suas instâncias, em que o corpo está presente, próximo ou distante), mas

já em sua linha de fuga, sendo encaminhado a um momento mais complexo –,

sendo que este não se constitui a partir da experiência apenas em um momento

anti-predicativo (como se quis, em certo momento) mas é invadido também por uma

alteridade conceitual que ali se instala – um processo que talvez possa ser

desdobrado e explorado também na dinâmica de uma “descrição fenomenológica do

conceito (…) [que] permite-nos perceber que o conceito é, por si mesmo, uma

experiência ontológica – ela nos introduz nesta ‘região’ in-objetiva onde o ser e o

pensamento são o mesmo”159; se o conceito se caracteriza ao “pôr-se a si mesmo e

pôr seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado”160, é preciso não perder de vista

a alteridade que se cria nessa operação ‘invasiva’ em que a intervenção se dá sobre

o corpo mesmo, na dupla articulação corpo/mente, a partir do par

sensação/conceito. É interessante localizar no texto histórico de Ferreira Gullar a

conhecida passagem que alerta para a organicidade da obra neoconcreta:

“Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquinas’ nem como ‘objeto’

(…). Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o

poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados

objetivamente, mas (…) nos organismos vivos.”161

Agora, frente à caracterização da partícula virótica (um signo verbivisual) como

existindo na fronteira de qualquer possível definição de vida, percebendo-a como

portadora da “condição pós-moderna” enquanto seu “tropo máximo”, “ambíguo”–

sintomas da nova condição na qual se dá a produção do conhecimento, em um

regime de dominação socioeconômica que estamos ainda aprendendo a perceber –

talvez seja oportuno pensar a obra de arte não mais como aquele “organismo vivo”

159 Éric Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, São Paulo, Editora 34, 1996, 87. 160 É. Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, op. cit., p. 87. 161 Ferreira Gullar, “Manifesto neoconcreto”, in Etapas da arte contemporânea – do cubismo à arte neoconcreta, Rio de Janeiro, Revan, 1998, p. 285.

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mas sobretudo como vírus ambíguo, invisível, invasivo, móvel, mutável e

contaminante.

Um dos traços mais característicos da convergência entre sensação e conceito é o

fenômeno da subliminaridade: estímulos sensoriais cujo mecanismo não seria

apreendido conscientemente, invadindo desse modo o corpo do observador

carregando séries de conteúdos para além de suas estratégias de auto-defesa; tais

conteúdos instalariam-se junto à mente deste observador, comandando seus

processos mentais. Este é um dos temas favoritos da ficção científica (ligado ao

perigo da "lavagem cerebral"). O exemplo mais célebre – que conduziu à

regulamentação e proibição da prática na área da publicidade – ocorreu em 1956

através de Jim Vicary, “um pesquisador de mercado norte-americano”. Segundo

descrição publicada nos jornais da época, Vicary

“conseguiu com um cinema em Nova Jersey instalar um segundo projetor

especial que, enquanto o filme estava sendo exibido, projetava

intermitentemente na tela frases como ‘Coca-Cola’ ou ‘Coma Pipocas’. As

palavras eram projetadas tão depressa ou impressas com intensidade tão

fraca que a mente consciente não as podia ver superimpostas no filme, ainda

quando a pessoa tinha sido informada de que elas iam aparecer. Filmes

tratados assim foram alternados com outros durante todo o verão daquele

ano e nas noites em que foi usado o efeito subliminar as vendas de Coca-

Cola subiram de um sexto aproximadamente e as de pipoca mais da

metade.”162

Mesmo os propositores da prática não acreditaram diretamente nos ‘efeitos’

produzidos, alegando que a reação dos clientes somente ocorreu com aqueles que

“já tinham em mente a idéia de comprar o produto” – ou seja, teria havido uma

facilitação e não qualquer transferência de conteúdos ou construção de motivação

inexistente. Entretanto, “a publicidade subliminar despertou uma tempestade de

protestos na imprensa norte-americana e posteriormente na Inglaterra, onde o 162 Descrito em J.A.C. Brown, Técnicas de persuasão - da propaganda à lavagem cerebral, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p. 174.

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Instituto Britânico de Praticantes de Publicidade deu-se o trabalho de publicar um

livreto (Subliminar Communication, 1958) e de impor uma proibição ao uso desse

modo por qualquer de suas 243 agências.”163 Trata-se, é claro, de um reducionismo

envolvendo as possíveis relações entre sensação e conceito, transformados em

estímulo e resposta automatizados. Toda a história da arte moderna é testemunho

de uma disputa – transformada agora em jogo – entre estas duas formas de

conhecimento, uma vez que a modernidade se caracteriza pela articulação e atrito

do sensível com o campo do pensamento: passa-se a "pensar por sensações" e,

mais do que isso, o campo da arte é então revolucionário local de produção e

invenção de novas sensações (como testemunha a estética do choque, a partir de

meados do século XIX), conduzindo a esfera sensorial para uma expansão e

importância até então inexistentes ("se há progressão em arte, é porque a arte só

pode viver criando novos perceptos e novos afetos"164). O problema desloca-se

então para a modalidade das relações articuladas entre os dois campos, isto é,

como trabalhar as conexões entre sensações e conceitos de modo a provocar a

inversão de pensamentos preestabelecidos através da atualização de virtualidades

do aqui e agora e a conseqüente produção de real? Subliminaridade, então, como

uma determinada combinação de estratégias não-discursivas e discursivas em que

estes campos são colocados em uma relação de toque ou superposição, de modo a

quase misturarem-se (o que seria impossível, devido a sua heterogeneidade): a

percepção subliminar decorreria da colocação do conceito em um limiar de

sensorialidade, em uma sensorialização máxima. É nesta região de possibilidade

que se instala NBP.

Existe entretanto uma proposição acerca do entrelaçamento de percepção e corpo

que alinha a questão da subliminaridade em uma articulação bastante produtiva e

instigante – e que se afina com a pragmática experimentada pelo programa Novas

Bases para a Personalidade. A rigor, não se trata daquela percepção subliminar

deflagradora de uma ação mecânica e automatizante, mas desta outra, que

indicamos a partir da sensorialização do conceito e que se anuncia então ao se

prestar atenção ao papel desempenhado pelas “pequenas percepções” (“sensações 163 J.A.C. Brown, op.cit., p. 175. 164. G. Deleuze e F. Guattari, op. cit., p. 248.

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insensíveis”, “ínfimas”, “imperceptíveis”) indicando sua atuação transformadora na

relação sensível entre sujeito e mundo. A matriz comum é a obra de Leibniz (via

Deleuze): “as pequenas percepções” seriam “distintas e obscuras”:

“distintas, porque apreendem relações diferenciais e singularidades;

obscuras, por não serem ainda ‘distinguidas’, não serem ainda diferenciadas

– e estas singularidades, condensando-se, determinam, em relação com

nosso corpo, um limiar de consciência como um limiar de diferenciação, a

partir do qual as pequenas percepções atualizam-se (…).”165

Está em jogo aqui o embate entre uma relação com o mundo gerida pelo hábito dos

ritmos cotidianos, que não implica em qualquer ruído de descontinuidade entre nós e

o mundo – sem produção de diferença – e um envolvimento afetivo de tipo mais

radical e intenso – tal qual aquele investido em uma relação transformadora (que

pode se dar – mas não apenas – com as coisas do campo da arte como um dos

espaços intensivos; por exemplo, como desenvolvemos aqui). Para José Gil, a

possibilidade de “captar os mais ínfimos, invisíveis e inconscientes movimentos dos

outros corpos” (e também “movimentos de forças”) se dá quando “o corpo se torna

consciência” – ou seja, estabelece uma relação com os objetos que seria já de fundo

ontológico e não mais fenomenológico, “não mais visando “o sentido do objeto na

percepção” (Merleau-Ponty), mas funcionando “como uma instância de recepção de

forças do mundo graças ao corpo”, e assim “uma instância de devir as formas, as

intensidades e o sentido do mundo”. A modalidade perceptiva em questão atuaria a

partir de uma aproximação que “desposaria” o objeto por “processos precisos de

cognição e contágio”, em que ocorre a “captação das formas e forças que animam o

objeto”: as etapas são delineadas pelo autor como (1) impregnação da consciência

pelo corpo; (2) contato do corpo com o mundo exterior, passando a coincidir com as

forças do objeto; (3) início pelo corpo de um devir-objeto a partir do qual se

estabelece um zona de indiscernibilidade entre corpo e objeto; (4) transferência de

165 Este trecho corresponde a Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Rio de Janeiro, Graal, 1988, p.343. A citação é indicada por José Gil, cujo artigo serve de referência aos comentários que se seguem. José Gil, “Abrir o corpo”, in Suely Rolnik e Corinne Diserens (Orgs.), Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro, Nantes, Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006.

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certos traços do corpo ao objeto, do mesmo modo que certas propriedades do objeto

se transmitem ao corpo – e Gil nota que “esta descrição sumária não difere muito da

percepção artística”. Há de se notar – e é importante que se destaque –

convergências com o processo anteriormente descrito de produção de alteridade a

partir de contaminação pela partícula sígnica virótica: a preocupação com uma

“ontologia constituinte” parece ser fundamental – mas aqui há a possibilidade de se

perceber um pacto menos invasivo, onde o contato sujeito-objeto (ainda que revele

uma zona de tensão na crista da indiscernibilidade) transcorre (nos parece) de modo

suavemente coreográfico. Mas o mais surpreendente do modelo delineado por José

Gil revela-se através de duas outras construções que se desdobram também a partir

do agregado de sensações pequenas e insensíveis – pois para o autor este corpo

que “se deixa invadir cada vez mais pelos movimentos ínfimos” se transformaria em

“corpo-consciência”, caracterizado por uma “hiperexcitabilidade” e

“hipersensibilidade”: “torna-se capaz de captar as ‘sensações insensíveis’ ou

pequenas percepções”; e “pode entrar imediatamente em contatos-osmose com os

outros corpos” (“abre-se aos outros corpos, conectando-se com os movimentos do

seu inconsciente”). É que na “captação das pequenas percepções pelo corpo-

consciência”, além de ser invadido no “aquém do limiar da consciência” pelo ínfimo e

insensível, há também aquela pequena percepção que “resulta da defasagem entre

dois contextos idênticos” – vale à pena trazer aqui a citação completa:

“Qualquer coisa, um ‘não sei quê’ surgiu hoje no rosto do amigo que vejo

todos os dias. O ‘não sei quê’, indefinido porque microscópico, não é nada

que se veja, é o intervalo entre a percepção macroscópica habitual do rosto

do meu amigo, e a sua percepção atual. A pequena percepção é intervalar:

tem, no entanto, uma forma, uma espécie de contorno interior da defasagem

a que chamei ‘contorno do silêncio’ ou ‘contorno da ausência’. A forma não

descreve uma figura pois o intervalo só é percepcionado enquanto forma das

forças que emanam do conjunto de pequenas percepções. Nada se vê, nada

se ouve, ‘sente-se’ qualquer coisa indeterminada, ilocalizável, que se

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confunde com o sentir do corpo inteiro (que é um não-sentir), mas que

anuncia um sentido.” 166

Trata-se de indicação bastante importante dentro do percurso que estamos

desenvolvendo até aqui: é estabelecida conexão direta entre percepção de

derivação subliminar e estratégia de repetição; sobretudo, note-se que esta

modalidade de repetição intervalar indica sua efetivação sempre sob condições

dinâmicas de deslocamento. Então, se temos (como indicará o autor ainda no

mesmo escrito) “a pele como zona de fronteira que separa nosso corpo do espaço

que o rodeia” (o que “faz de toda a zona fronteiriça, a pele, uma consciência, como

se víssemos o mundo a partir de cada ponto de nossa pele, como se a consciência

fosse coextensiva à sua superfície”), encontramos também aqui os elementos do

vocabulário formal que havíamos apontado como importantes para nosso processo

de trabalho: linha da pele como membrana ativa e superfície como veículo da

percepção intervalar do que sempre se atualiza. Como indicamos, é em torno destas

estratégias que o projeto NBP vai situar suas estratégias de ação: repetir NBP e sua

forma específica seria então buscar de certo modo o “contorno da ausência” –

deslizar pelos intervalos e interstícios da marca em sua macropercepção (uma

“macromarca”, de contornos identificáveis) em direção à sua dissolução enquanto

“forma de forças” derivada das pequenas percepções (“micromarca” que se dissolve

na configuração diagramática, plasmada e absorvida em outras estruturas).

Se considerarmos que após o período de emergência da assim chamada arte

conceitual (final dos anos 1960) – e deveríamos aproximar estes dados de questões

em torno da obra aberta e da teoria da recepção, assim como das obras que

elaboraram uma participação do observador a partir de um campo sensorial –

observa-se um crescente deslocamento em direção ao fruidor da responsabilidade

de dinamizar, colocar em movimento, articular um funcionamento para o trabalho de

arte. É claro o crescimento da importância do corpo do espectador como o suporte,

tela, superfície de projeção, campo de forças ou partícula ativa a partir da qual se dá

o acontecimento do trabalho. Nada ocorre, dentro do projeto NBP, sem o corpo do

166 José Gil, op.cit., p. 64-65.

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outro – sujeito envolvido por estratégias de contaminação, espaço de circulação e

multiplicação do signo vírótico, suporte a ser ativado e convidado – através das

pequenas percepções e a partir do paradoxo entre micro e macromarcas – a reagir

sobre o trabalho. NBP é necessariamente pro-reativo, não existe sem que algum tipo

de resposta seja articulada a partir da recepção. Não se trata – é claro – do corpo do

fruidor como suporte passivo, mas de superfície cuja temperatura é fundamental

para a catálise do trabalho, não como processo de interiorização mas como

realização que é projetada para fora, para a exterioridade de uma inteligência

coletiva, elemento de uma rede singular tecida através das possibilidades do

trabalho de arte. Tal corporalidade envolve um pensamento situado no corpo (além

dos binarismos)167, dependente de uma sensorialidade expandida como elemento do

par sensação-conceito. Relacionar-se com os objetos NBP é hibridizar-se com eles,

deixar-se invadir pelas maquinações de seus conceitos, ter seu corpo tomado por

um programa de (súbitas) mudanças. Confrontar-se, misturar-se com o trabalho –

em direção à hibridização – é uma das condições de fruição da arte contemporânea,

quase um pressuposto para problematização: é preciso estabelecer o contato,

produzir membranas, instaurar um campo de trocas entre sujeito e objeto. Hibridizar-

se não significa eliminar as diferenças, construir a unidade, mas sim multiplicar as

alteridade internas e externas que conectam-no à obra de arte.

O que se destaca, portanto, enquanto problema do campo contemporâneo da

cultura que informa as produção da arte atual – e que se inscreve nas questões

mobilizadas pelo projeto de trabalho NBP – é a presença de uma corporalidade em

franca transformação – pois cada diferente regime perceptivo implica em diferentes

ontologias e processos constitutivos Muito se fala e escreve hoje a respeito da

irreversível hibridização com a esfera tecnológica, em que humano e maquínico

aproximam e confundem suas fronteiras em conexões expressivas de diversas e

múltiplas produtividades. Poderíamos lembrar o importante trabalho de Deleuze e

Guattari, para quem "uma máquina se define como um sistema de cortes" e "toda

máquina é máquina de máquina". Nesta perspectiva,

167 Lugar enunciado por José Gil como “exterior do interior da zona de fronteira que separa o nosso corpo do espaço que o rodeia.” J. Gil, op.cit., p. 66.

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“o sujeito [é] produzido como resíduo ao lado da máquina, apêndice ou peça

adjacente à máquina (…). Ele não está no centro, ocupado pela máquina,

mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído a partir

dos estados pelos quais passa. (…) [O] sujeito nasce de cada estado da

série, (…) todos esses estados (…) o fazem nascer e renascer (o estado

vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive).”168

Aqui a máquina – ou qualquer outra mediação posicionada enquanto artifício –

assume a primazia do não-discursivo, vivencial e não humano (afeto: devir não

humano do homem, como escrevem Deleuze/Guattari). Para a norte-americana

Donna Haraway,

“no final do século XX, neste nosso tempo – um tempo mítico –, somo todos

quimeras, seres híbridos teorizados e fabricados, compostos de máquina e

organismo; enfim, somos todos ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia;

orienta nossa política. É a imagem condensada de imaginação e realidade

material, estes dois centros articulados estruturando qualquer possibilidade

de transformação histórica.”169

A máquina entra em cena, neste caso, como forma de expandir e abrir as

possibilidades expressivas e produtivas, com implicações claras a respeito de

transformação e auto-produção de si: "nossos corpos (…) são mapas de poder e

identidade. Ciborgues não são exceção. Um corpo de ciborgue não é inocente; não

nasceu num jardim; não procura por uma identidade unitária para assim gerar

dualismos antagonistas sem fim." É preciso fugir da "produção de teorias universais

e totalizantes (…) que excluem a maior parte da realidade" para "abraçar a tarefa de

reconstrução das fronteiras da vida diária, em conexões parciais com os outros, em

comunicação com todas as nossas partes."170 Aqui, o campo da arte se inscreve

168 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 54 e p. 36-37. 169 Donna J. Haraway, "A Cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century", in Simians, Cyborgs, and Women, Londres, Free Association Books, 1991, p. 150. 170 D. Haraway, op. cit., pp. 180-181. Haraway conclui seu artigo com a seguinte frase: "I would rather be a cyborg than a goddess".

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como local privilegiado para a produção de alteridades, no sentido de mobilizar uma

potência perceptiva ontológica e constituinte – sua pertinência política reside não em

um investimento em representar os problemas ou causas do tempo atual (esta seria

a linguagem plástica simplista de uma arte engajada – apenas publicidade bem

intencionada de rápido consumo, sem qualquer papel transformador), mas

estabelecer uma política das mediações a seu alcance: política da percepção,

política das sensações, política dos afetos, política dos conceitos sensíveis, etc. – ou

ainda, uma política do circuito das artes e de suas linguagens. “Como reativar nos

dias de hoje a potência política da arte?”171, escreve Suely Rolnik, formulando a

questão no âmbito da obra de Lygia Clark: afinal, se estamos sob um regime no qual

“nossa força de criação não só é bem percebida e recebida, mas até mesmo

insuflada, celebrada e freqüentemente glamourizada”, seria necessário produzir

inflexões de resistência para que estas forças não sejam sumariamente “cafetinadas

pelo mercado” e sim conduzam à “invenção de formas de expressividade para as

emanações do corpo vibrátil, estas formas que veiculam a incorporação das forcas

do mundo em nossa subjetividade, indissociáveis de um devir-outro de nós

mesmos”. Ou seja: uma política da “micropercepção”.172

O campo de trabalho que se abre a partir de NBP dialoga com certas áreas da

cultura contemporânea que têm sido decisivas para a renovação do pensamento,

neste final de século. Refiro-me, em primeiro lugar, à combinação entre campo

comunicativo e desenvolvimento tecnológico, cujo impacto tem se feito sentir desde

o início dos anos 60 (traduzido na "aldeia global" de McLuhan) mas que tem sua

instalação em configuração planetária determinada sobretudo a partir dos anos 80

171 Esta é a última frase de um dos excelentes ensaios da autora em torno do trabalho de Lygia Clark. Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, in Suely Rolnik e Corinne Diserens (Orgs.), Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro, Nantes, Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006, pp. 13-26. 172 S. Rolnik desenvolve o conceito de “corpo vibrátil” como aquele constituído a partir de “micropercepções”, em diálogo direto com a obra de José Gil mas referindo-se concretamente às pesquisas de L. Clark: as “macropercepções” seriam “a simples percepção das formas, com a qual somos familiarizados (…) que objetificam as coisas e as separam do corpo”; as “micropercepções” apresentam-se como “capacidade própria do corpo vibrátil” em sua relação sensível com o mundo. As primeiras, indicam um contato com o mundo enquanto “cartografia de formas”; as segundas, como “diagrama de forças”. “É a tensão deste paradoxo entre micro e macro-sensorialidade que dá o impulso à potência criadora. (…) [P]ara que esta seja atiçada, é preciso habitar o paradoxo, ou seja, ativar simultaneamente as duas capacidades do sensível.” Suely Rolnik, op.cit., pp. 13-14, 16, 24.

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(sob a presença dos computadores pessoais e de uma economia globalizada – hoje

percebida nos termos de um regime capitalista de tipo cognitivo). Claro que os

problemas que daí advêm exigem que se questionem as modalidades de

envolvimento perceptivo, agora mais do que nunca ocorrendo através da experiência

mediada tecnologicamente. NBP implica no deslocamento das fronteiras do território

da arte para junto de um campo comunicativo informático-mediático (como registra

Pierre Lévy, indicando a presença de uma esfera pública constituída a partir desse

campo), enfatizando diretamente a relação do espectador com o impacto das

superfícies de mediação como a coisa em si, portadora do impacto: sensações via

estampagem (imprinting), envolvimento persuasivo, contaminação, contágio pelas

pequenas sensações, ritornelo a partir do contorno da ausência, tensão entre micro

e macropercepções, recepção enquanto sedução, sensorialização do campo

conceitual como imunização e/ou potencialização da experiência de impacto,

articulação dos conceitos em rede com pontos sensíveis do campo da cultura, etc.

Se estes podem ser alguns traços envolvidos diretamente no projeto de trabalho

Novas Bases para a Personalidade, é evidente que – dada a amplitude desta

caracterização – trata-se de aspectos que informam igualmente amplos segmentos

da produção de arte contemporânea das últimas décadas. Podemos apontar aqui as

intervenções de Muntadas (projetos como Stadium, Cidade Museu, Sala de

Conferência, desenvolvidos em diversos países nos anos 90), Jenny Holzer ou

Barbara Kruger como reações frente à velocidade das palavras e imagens no novo

ambiente comunicativo; Jordan Crandall (Under Fire, Trigger, Heatseeking, Drive e

Blast são alguns de seus projetos) explora a hibridização corpo-máquina e o

pensamento em rede; Vito Acconci e Artur Barrio experimentam há décadas com os

limites do corpo e do sujeito e sua reconstrução sucessiva frente a diferentes

espaços, situações, arquiteturas e materiais. Afinal, a investigação a partir do campo

da arte indica a proposição de padrões de processamento desta sensorialidade

possível, mobilizando a atenção do espectador para uma experiência de confronto:

pensar, será possível ainda e mais uma vez, e, enfim, para quê e de que modo, com

que corpo e articulando quais matérias? As respostas devem sempre ser adiadas

em favor da manutenção de um jogo de provocação da superfície das coisas, de

investigação da espessura do real.

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133

* * *

Articular junto a NBP significativos autores contemporâneos não se dá com o

propósito de articular qualquer verdade do trabalho de arte ou mesmo indicar que a

arte deve sempre ser pensada de modo absoluto a partir de seu lado de fora. Trata-

se principalmente de seguir pistas, ao reconhecer em pensadores diversos

direcionamentos similares àqueles que se constituem na obra plástica: esta precisa

ser concebida então já com a compreensão de que há uma pesquisa ali que se dá

de maneira suficiente – no sentido de que se descobrem problemas e se articulam

territórios de integração de setores diversos da vida, quando a obra funciona neste

toque de proximidade (em confronto) com o mundo. Mas esta compreensão se faz

revelando núcleos potenciais por onde o discurso é deflagrado e trabalhado – e aí se

conquista a linguagem como matéria a ser plasmada – e é precisamente aí que se

dá o encontro com autores e suas práticas: confluência de pesquisas, em que a obra

de arte se oferece como parceira importante – fundamental – de conversas, da

monitoração de problemas, proposição de pesquisas, revelando importantes

instrumentos de intervenção. Sem essa possibilidade de processamento do sensível

própria da arte, deslizando-o a fim de acoplagens discursivo-conceituais, o que nos

restaria? Teríamos somente (não que isso seja pouco, pelo contrário) narrativas em

combate infinito, sem possibilidade de desenvolverem membranas de contato com

corpos, sujeitos, grupos, coletivos, etc. NBP, assim, quer ser este processo de

aparelhamento plástico discursivo, rede de manobras onde frente a frente são

lançados a investigação plástica e a pesquisa discursiva – e como são raras estas

oportunidades! – para compartilhar de alguma aceleração conjunta.

Você gostaria de participar de uma experiência artística? investe na constituição de

um plano de trabalho constituído por “objeto + conceitos”; logo, desenvolve todo o

processo de aparelhamento necessário para adquirir a flexibilidade certa para se

entrar e sair do jogo conceitual rumo à experiência sensível e vice-versa –

movimentando-se por ondas rítmicas próprias, ao sabor de encontros com os muitos

participantes, aqueles que aceitam ter o ritmo de suas vidas interferido pela

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134

intromissão de um objeto metálico, formatado a partir de um desenho particular. Esta

experiência carrega temporalidades e tópicos da escultura e do objeto, termos e

proposições de camadas discursivas e conceituais – e se perfaz nesta tensão,

sendo elemento-chave sua capacidade de reinventar-se e fomentar um limiar

constante de sedução: querer o outro, saber atraí-lo, atraí-la.

Bloco 3 membrana, linha orgânica, escultura-conceitual, espaço háptico, tatilidade

Estamos em uma região do diagrama 05 do projeto Você gostaria de participar de

uma experiência artística? que se caracteriza por reunir um grupo de seis diferentes

projetos de trabalho desenvolvidos a partir de 1994 – quando se iniciou Você

gostaria…? – e que são portanto paralelos a seu desdobramento: logo, deverá haver

algo que aí indique um mútuo reforço, no sentido de os diferentes projetos

estabelecerem trocas entre si, informando-se reciprocamente – deste modo, algo

dos outros projetos estaria permeado pela presença de Você gostaria…?, ao mesmo

tempo que muito do percurso que este projeto tomou durante o período seria

também conseqüência da dinâmica daqueles. Pois os projetos referidos – sendo que

alguns, sob a forma de séries, estão em franco prosseguimento – ocorrem em

períodos diversos, tais como: os primeiros jogos eu x você ocorrem em 1997

(seguindo-se a cada ano sob a forma de atividades variadas como oficinas, cursos

ou mesmo como parte de algumas exposições, algumas vezes em diálogo direto

com a obra instalada, no espaço), tendo incorporado a noção de superpronome

alguns anos após seu início, por volta de 2000; Fig. 34-37 a instalação NBP x eu-

você173 é exibida em 2000, e procurou ser um momento de convergência entre estas

duas séries, no sentido do estabelecimento de um confronto interno produtivo, em

que ocorrem superposições de linhas de um e outro programa; Fig. 19-20

passagens (NBP)174 inaugura em 2001 uma série de instalações arquitetônico-

escultóricas, cujo desdobramento ainda continua; Fig. 21-22 transatravessamento175

(2002) é reflexo direto do projeto anterior, embora assuma mais diretamente no

173 NBP x eu-você, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2000. [exposição individual] 174 passagens (NBP), Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001. [exposição individual] 175 transatravessamento, 25ª Bienal Internacional de São Paulo, 2002.

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135

interior do projeto discussão acerca da imagem do artista e seus diversos papéis

frente ao circuito; Fig. 25-26 obs.176 é formulado em 2004 enquanto materialização

específica de um dos elementos propostos em passagens (movimentação corporal

compulsória produzida ao entrar em contato com a peça), chamando a atenção para

a disjunção entre experiência estética e experiência corporal. Fig. 42-45

Cada projeto acima possui um elemento textual diretamente relacionado, veiculado

de maneiras diferentes nas diversas situações – seja na forma de livreto a

acompanhar a instalação, como gravação sonora a partir de leitura, cartaz impresso

para distribuição, impressão em catálogo da mostra ou mesmo em exibição nas

paredes da galeria integrando a instalação: diferentes utilizações que, é claro,

impregnam também os escritos de outros elementos de sentido. É importante

destacar – mais uma vez – a preocupação de demarcar os projetos com construções

discursivas que vêm se somar à materialidade plástica exibida como portadoras

também do lugar da obra. Respectivamente, os projetos delineados acima são

acompanhados dos seguintes materiais discursivos (alguns já citados no corpo

deste trabalho): “Diferenças entre nós e eles”177; superpronome”178; “NBP x eu-

você”179; “passagens (NBP)”180; “módulo de transatravessamento do artista-etc”181;

“psiu-ei-oi-olá-não”182. Tais textos – assim como as obra aos quais se associam –

remetem também internamente uns aos outros, em diversos graus de

encadeamento. É interessante se perceber a presença constante e intensa da 176 psiu-ei-oi-olá-não, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2004. [exposição individual] 177 V. nota 120. Este ensaio foi publicado em 2003, momento em que já acumulava alguma experiência em relação à realização dos jogos eu x você. 178 Ricardo Basbaum, “superpronome”, 2000. Publicado pela primeira vez em folder de Capacete Projects, Rio de Janeiro, 2000. Posteriormente, integrou a exposição individual “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, UERJ, Rio de Janeiro, 2003), colado em letras adesivas sobre parede monocromática. V. Anexo Textos 179 Ricardo Basbaum, NBP x eu-você, Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2000. Este pequeno livro acompanhou a exposição homônima (V. nota 173). Contém três textos: “O ‘x’ do problema”, “NBP x eu-você” e “De como retirar os traços de infinito secularmente acumulados no delírio”. Os mesmo textos foram gravados por mim em CD áudio e integravam a instalação como obra sonora. V. Anexo Textos 180 Ricardo Basbaum, “passagens (NBP)”, 2001. Pôster distribuído na exposição “Outra coisa”, Museu Ferroviário da Vale do Rio Doce, Vila Velha, ES. V. Anexo Textos 181 V. nota 116. 182 Ricardo Basbaum, “psiu-ei-oi-olá-não”, 2004. Partes deste texto foram utilizados na instalação homônima, apresentada em A Gentil Carioca (V. nota 176) colados em letras adesivas sobre as paredes. Foi também utilizado como peça sonora, ao ser lido por telefone público, do Rio de Janeiro, em ligação à cobrar, na abertura da mostra “Vol.”, Galeria Vermelho, São Paulo, 2004. V. Anexo Textos

Page 137: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

136

camada discursiva – sobretudo quando esta não se organiza apenas através da

forma texto convencional, procurando então utilizar variados suportes (livros,

livretos, catálogos, pôsteres) e lançando-se como elemento visual ou sonoro para

ser exibido nas paredes da sala de exposição (enquanto obra visual) ou

disponibilizado como fala (que resguarda as nuances da voz, efetivando-se em

modo acústico).

Existe um problema derivado da escultura nesta aproximação – as relações do

objeto envolvido em Você gostaria de participar de uma experiência artística? com

as propostas que se desenvolveram em paralelo no período 1994-2008: como se

deram as mútuas reverberações entre um e outros, em ambas as direções? É claro

que as diferentes situações são momentos de uma mesma pesquisa, e, neste

sentido, a presença de um novo elemento irá inevitavelmente modificar o modo pelo

qual são apreendidos os que ali estavam – implicando em novos sentidos,

problemas, aproximações. Se mencionamos aqui escultura, é claro que isto se dá

em sentido ampliado – estendendo esta noção para além de limitações materiais e

formais, assim como avançando os limites entre o campo da arte e regiões de

fronteira a ele exteriores –; mas nos interessa enfatizar a presença de algum

elemento material a atuar com ênfase em ações de intervenção e ocupação de

espaço, investindo tanto nas relações de sujeitos diretamente envolvidos em ações

com objetos (no sentido literal de colocar seu corpo em ação, afetado pela presença

de elementos físicos), como constituindo estruturas para-arquitetônicas183 que

produzam espaços próprios a serem experienciados por visitantes, que serão ali

provocados de alguma maneira. Há aí um fio que conecta o objeto de Você

gostaria…? com as cápsulas (NBP x eu-você), os corredores de passagens (NBP) e

transatravessamento, e os obstáculos da série obs.: em cada um deste momentos, o

espectador-participante é convidado a envolver-se fisicamente com elementos

materiais (algumas vezes estruturais) metálicos, fisicamente presentes nas

situações e locais de intervenção, para desenvolver algo de ordem produtiva (que

evidentemente se dá em vários níveis e em tempos diversos) a partir do contato –

pois há o cuidado de elaborar membranas que possam atuar como receptoras

183 No sentido de estar aquém e além da arquitetura.

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137

desses possíveis encontros. O dispositivo que regula tal dinâmica deriva de recursos

que convergem da escultura, objeto e arquitetura – elementos físicos e estruturais,

algumas vezes modulares, conduzem ela(s) e ele(s) à situação de provocação e

contato.

Mas o sinal mais evidente a associar estes diversos projetos para-escultóricos184 é

mesmo o gesto de configurar seus desenhos incluindo sempre a marca NBP –

perímetro do objeto de Você gostaria…?, laterais das cápsulas (NBP x eu-você),

portas em passagens (NBP) e transatravessamento: utilizações diferentes para uma

mesma presença, a se insinuar uma e outra vez, assinalando um continuum de

experiências e deixando claros os movimentos de escape. Utilizando o objeto para

mais uma experiência – tocando, trazendo-o para junto do corpo; deslizando junto a

uma abertura de acesso ao abrigo ou atravessando portas em sucessão: há esta

movimentação de proximidade onde o sinal, marca ou signo afirma presença aos

sentidos, ao corpo, ao olhar – e entrar em contato com o trabalho é confrontar a

forma específica mais uma vez. Uma observação: no caso dos obs., a marca se fez

presente na instalação que se desenvolveu em torno, estando estampada em uma

das paredes da galeria – junto aos textos – posicionada de modo a ser enquadrada

pelas câmeras de sistema-cinema, ali presentes. Fig. 43, 45 O que é importante,

porém, é se perceber a presença da forma específica NBP em seu registro devido –

ou seja, o mais produtivo – arrancando-a de recuperações normalizadoras ou

estabilizantes: longe de atuar como mero elemento maneirista de composições

propostas ou signo portador de assinatura identificadora de um mecanismo de

produção, a forma NBP é de fato elemento invasor, sempre a forçar sua presença

nos projetos, tal qual índice de uma intromissão aceita. Como se NBP fosse enfim o

relato de uma poética de tomada de espaços, sintoma de invasões constantes sob o

signo do contato & contaminação. Este elemento deve ser percebido em sua

dinâmica, para que o projeto não se reduza ao simples alinhamento de figuras sem

apetite e movimento, simples displays para fruição fria e entretenimento distrativo.

repetição da marca, trauma, obsessão: livrar-se dela e sair de si

184 No sentido de estar aquém e além da escultura.

Page 139: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

138

envolvimento do pequeno outro e do grande outro coletivo

fantasmática do mundo interior transformada em anedota bioquímica de

domingo

transatravessamento & aceleração185

Este investimento em contato seria mesmo algo próprio do projeto NBP186, ainda

que não se dê exatamente como ‘convite’ – estando mais próximo de uma dinâmica

mais complexa de envolvimento que combina a construção de frestas (espaços de

recepção), proposição de possibilidades e requisição de uma atitude ativa por parte

do participante: se este não se desviar de uma postura indiferente rumo a um

posicionamento produtivo – com envolvimento concreto de núcleos de desejo –

nada se passará. Reside aí um desafio complexo, tomado na amplitude do problema

– dentro de possibilidades concretas, pois sempre se faz o que é possível a cada

tempo – e tratado nos termos de oferecimento de algo nas dimensões sensível e

conceitual em duplo jogo, dupla articulação. Além de procurar demonstrar – e isto é

construído concretamente através da reunião de diversos elementos – a presença

de espaços de acolhimento (que, como indicamos, partem da elaboração de vazios,

cuidadosamente preparados), tais projetos para-escultóricos investem igualmente na

dimensão de tatilidade, no sentido de provocar o corpo daquele que confronta os

trabalhos a partir da necessidade de mobilização direta: a superfície das grades

metálicas possui textura própria, claramente demarcada; a frieza do metal é

elemento que surpreende a qualquer gesto de contato; almofadas e colchões

garantem o conforto de superfícies macias e acolhedoras. Ocorrem situações de

toque físico que demandam alguma reação, já que a provocação é explícita. E este

envolvimento avança com o desafio de se atravessar portas e passagens, e superar

obstáculos: em passagens (NBP) e transatravessamento o espectador deve

ultrapassar quatro tamanhos diferentes de portas, necessitando realizar algum

esforço físico; junto aos obs., é levado a tomar a decisão de levantar ou não a perna

para ultrapassar as pequenas barreiras (20 cm de altura), caso deseje efetivamente

ingressar no espaço expositivo. Assim, em sua visita à instalação, o visitante será

levado a combinar dois diferentes comportamentos – fruição estética e esforço físico 185 R. Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, op.cit.. 186 “performance; negociação; desvio, contato & distribuição”, Cf. Capítulo C, Bloco 1 desta Tese.

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139

– resultando no que costumo chamar de performance compulsória: produz-se a

problematização de se estar naquele lugar, naquele momento, portando este corpo

que se defronta e confronta com certas estruturas materiais que ao mesmo tempo

acolhem e provocam. O que se quer é arrancar o espectador de certa passividade

anestesiada pra conduzi-lo à realidade concreta da obra – para, então, em mais um

gesto invasivo, propor algum tipo de transformação potencial possível a partir de

mais outro embate, como veremos a seguir.

(EU) olho para um lado, olho para o outro. Fecho os olhos, apuro os ouvidos,

baixo a cabeça, dobro os joelhos, relaxo os braços, solto os ombros, repuxo a

coxa, afrouxo o estômago.187

convite ao esforço de atravessar portas: performance obrigatória

ser visível ao longe, sem privacidade qualquer, ao mesmo tempo ver

ir com os olhos sem corpo até onde o corpo não pode ir e configurar assim os

espaços

sistema em tempo real:

atravessar, jogar, olhar, perceber as ações no mapa, descobrir relações no

mapa

– onde estou, onde estamos?

grande escultura, deambular em torno, mirar ao longe

transatravessamento & obstáculos188

Mobilização do tato através de texturas e superfícies, provocar o corpo por meio de

obstáculos, oferecer o conforto de um abrigo para repouso – este é o âmbito de um

espaço háptico, onde se manobra para problematizar o sujeito através da

construção de uma experiência intensiva.

psiu…

psiu…

psiu… 187 Ricardo Basbaum, “passagens (NBP)”, op.cit.. 188 R. Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, op.cit..

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140

ei, oi, olá, olhe para cá – olhe…

veja – olhe – preste atenção

repare – não há nada

nada para ver

psiu – ei – psiu – aqui

psiu –

olhe…

(…)

ah! agora –

é agora – já – neste instante –

agora – veja –

bem aqui – bem aqui!

aqui e agora –

ah!

assim – assim – bem assim

vem – venha – pode vir

assim – aqui e agora

venha aqui – bem aqui

olhe – venha para mim

psiu…

psiu…

aqui e agora – já –

neste instante

pode ver

sim

não – não há nada

não

(…)

Page 142: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

141

esqueci de dizer

esqueci – olhe – olhe bem aqui –

espere – espere – esqueci de dizer

já não compreendo

venha aqui

psiu… – não quero e não compreendo

eu posso

olhe – olhe para cá – bem aqui –

nada mais

não vejo nada – nada

olhe para cá – aqui – bem aqui

não há nada

veja…

(…)

não

não me interessa – não quero

não quero saber – qualquer coisa

nada quero saber

fique por aí – você

você – eu – você – eu – você

fique – não diga nada

não quero ver

não

escutar - olhar para - corpo voltado para - sorrir para - falar a

dirigir-se a - desejos expressos - dar ou lançar algo - fazer contato corporal

fazer pedidos - fazer perguntas pessoais - demonstrar habilidade

exibir-se - ficar perto - reações afetivas189 190

189 Ricardo Basbaum, “psiu-ei-oi-olá-não” – estão aqui representados apenas aqueles parágrafos do texto que integraram a instalação apresentada. A versão integral inclui um bloco de texto a mais, além de repetir diversas vezes o último bloco, como um refrão, ao longo do escrito.

Page 143: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

142

Os blocos de texto acima ocupavam as paredes da instalação psiu-ei-oi-olá-não, em

A Gentil Carioca (2004), pontuando o espaço da sala em conjunto com os obs. –

texto e elementos plásticos trabalham em conjunto em busca da captura do visitante,

que encontra a área da galeria também ativada pela presença de sistema-cinema.

Aqui, assim como principalmente em NBP x eu-você (que articulava emissões em

áudio em meio às cápsulas e diagramas), o sistema de revezamentos plástico-

dscursivos funciona em dinâmica avançada, fazendo com que aquele que percorre a

instalação se defronte com matérias textuais ao mesmo tempo que se confronta com

os obstáculos no solo e localiza-se em relação às câmeras de circuito-fechado ali

posicionadas – como ficar indiferente a tantas presenças que, no entanto, indicam

espaços a serem ocupados e requerem reações?

Este investimento nas regiões de contato não pode ser afastado do interesse

concreto do projeto em relação às experiências de Lygia Clark em torno da linha

orgânica – pois a artista efetivamente investigou o espaço encontrado entre a

coisas, procurando desenvolver sua obra enquanto pesquisa acerca do potencial

transformador localizado nesta área de encontro: quando corpos e coisas (ou corpos

e corpos, coisas e coisas) se tocam (ou se confrontam), delineiam bordas de

intensidade das quais se pode partir para se produzirem problemas e instaurarem

espaços; há em sua prática um conhecimento que não pode ser subestimado.191 Se

a linha orgânica não foi desenhada por ninguém, resultando do contato de duas

diferentes superfícies, necessitando assim ser “descoberta”192, isto a localizaria

diretamente no mundo, junto a coisas e corpos (e corpos e corpos, coisas e coisas):

ela “era real, existia em si mesma, organizando o espaço. Era uma linha-espaço”.193

190 Este último bloco é extraído do experimento “Ação em Relação ao Estranho”, de Kurt Lewin, e já havia sido utilizado para uma série de 15 gravuras apresentada em 1993. Cf. Kurt Lewin, “Sinopse das investigações experimentais”, in Teoria dinâmica da personalidade, São Paulo, Cultrix, 1975, pp. 259-261. 191 Cf. Ricardo Basbaum, “Within the organic line and after”, in Alexander Alberro e Sabeth Buchmann, Art after conceptual art, Cambridge, MA/London, MIT Press, Vienna, Generali Foundation, 2006, 87–99. As passagens que se seguem são referidas diretamente a este ensaio. 192 Lygia Clark preferia se referir a este gesto como “descoberta”, mas do que como “criação” ou “invenção”. 193 Lygia Clark, “Lygia Clark e o espaço concreto expressional”, entrevista a Edelweiss Sarmento, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 julho 1959, Republicada em Lygia Clark, Barcelona, Fundació Antoni Tàpies, Paris, Réunion des Musées Nationaux, Marseille, MAC, Galeries Contemporaines des

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143

E Lygia ainda acrescenta, formulando a questão de modo a enfatizar o

posicionamento da artista em relação à sua prática: “o problema plástico é

simplesmente a ‘valorização e desvalorização dessa linha’”194 – como se, ao se

decidir agir enquanto artista (ser problematizador por excelência), o grau de

investimento em torno da presença da linha orgânica fosse de fato momento

decisivo a indicar tomada de posição frente aos problemas da arte contemporânea

(e do mundo). De fato, há aí sim a decisão em demarcar um percurso, pois a linha

orgânica não é elemento natural dado como parte do mundo a habitar coisas, mas,

ao contrário, deve ser produzida e ativada através de gestos de intervenção que

produzem aberturas e geram um novo fluxo de problemas, situações e eventos – a

espacialidade do interstício não existe a priori como lugar físico, mas como borda em

potência, linhas carregadas que são ativadas por ações de envolvimento concreto:

ou seja, é preciso agir, construir, produzir, ativar a linha orgânica através de

proposição concreta cuidadosamente urdida e tecida pelo mergulho em bordas e

dobras, regiões de fronteira e encontro (confronto) de entidades diversas. Então,

como construção – que disputa lugar entre as coisas típicas ao artifício, sabendo

entretanto estabelecer passagens com o fluxo do orgânico, inscrito na terminologia

mesma – é interessante de se perceber também como a linha orgânica

progressivamente conquista espessura, à medida em que pouco a pouco envolve e

articula mais e mais espaços, tópicos, elementos e conceitos (ou seja, complexifica-

se) para (mantendo suas propriedades) se transformar em dispositivo conceitual de

arquitetura própria: membrana, estrutura ativa e autônoma a funcionar como região

de contato entre territórios vizinhos de vários tipos; “ativar as fronteiras” soaria como

palavra de ordem para o desejo de operar efetivamente a conexão entre arte&vida

em suas mediações e zonas de contato entre arte, política, sistemas, circuitos,

artistas, escritores, pensadores, etc.: intervir, jogar e experimentar com passagens

Musées de Marseille, Porto, Fundação de Serralves, Porto, Bruxelles, Société des Expositions du Palais des Beaux-Arts, 1998, pp. 83-86. 194 Lygia Clark, “Conferência pronunciada na Escola Nacional de Arquitetura em Belo Horizonte em 1956,” in Lygia Clark, op. cit., p. 72. Publicado originalmente in Diário de Minas, 27 janeiro 1957.

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144

entre, habitar infra, agir por “subtração aditiva”195 onde as lacunas contam como

gestos de transformação (pois entre nada há, senão forças).

O investimento dos diversos projetos aqui focalizados em procurar confrontar o

espectador-visitante diretamente com as estruturas, estabelecendo tarefas de

superação de obstáculos, evidenciando texturas, ofertando abrigo – afirmando o

efeito de uma performance compulsória – é parte de um funcionamento que procura

evidenciar camadas de contato entre este espectador-visitante e as peças ou

instalação em exposição. Há a construção de membranas ativas, envolvidas neste

processo de captura – processo que é também compartilhado pelo objeto de Você

gostaria…?: como este objeto seria dinamizado, senão por meio da constituição de

uma membrana de contato mediando as relações entre participantes e objeto? É em

tal camada intermediária que ocorre o tensionamento necessário para deflagrar a

possível participação, o engajamento de alguém (indivíduo, grupo, coletivo,

instituição) que constrói resposta à provocação respondendo de modo engajado, no

sentido de desenvolver alguma vontade de mover-se com aquele duplo conjunto

(objeto + conceitos), conduzindo-o para outro posicionamento. Um processo

importante se revela nesta operação de construção de contato – próprio desta séries

de trabalhos em NBP e também de Você gostaria…?: devido ao investimento

concreto no desenvolvimento de regiões de membrana, derivadas da linha orgânica,

ocorre que se mantém o potencial de transformação implicado por esta última (e que

Lygia Clark soube desenvolver de modo contundente em toda sua obra, culminando

na Estruturação do Self). Porém, no registro particular das propostas que aqui se

delineiam, tais transformações somente podem ser organizadas enquanto

potencialidade que se desenvolve em cada um, dependendo de si para o

direcionamento dos próximos saltos:

NBP é um programa para súbitas mudanças.

Quais? Como? Quando? Deixe-se contaminar:

195 A expressão é de John Cage, “additive subtraction”, ao comentar Erased De Kooning drawing, de Robert Rauschenberg. Cf. John Cage, “Jasper Johns: estórias e idéias”, in De segunda a um ano, São Paulo, Hucitec, 1985, p. 75.

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145

elas serão fruto de seu próprio esforço.196

Não há como apontar o quê, mas a presença da certeza de que frente à

ambigüidade do confronto proposto o poema constitui lugares irredutíveis a outras

pragmáticas, revelando a co-habitação poesia/vida como potencializadora de um

escape, a qual não virá em socorro ao indivíduo isolado mas o impulsionará aos

grupos e alianças – reconstruir-se de outra forma, diversa, em busca da saúde do

possível “corpo vibrátil”197 (busca sem fim), da qual não se têm receitas mas

processos a percorrer com vontade. Para o projeto NBP, ela(s) e/ou ele(s) são

conduzidos como espectadores-visitantes – ou participantes, como em Você

gostaria…? – à situação de confrontar-se com as propostas, em ambiente háptico e

de envolvimento intensivo: ocorre a mobilização de cada um, agenciada pela

operação dos dispositivos de membrana, que fazem das zonas de contato, da

performance compulsória, local do trânsito de forças, momento para uma

transformação possível – pois esta somente poderá ocorrer nesta mobilização ativa

das superfícies, na presença do espectador confrontado com as possibilidades

concretas de uma captura. Intervêm então o diagrama, para facilitar que se perceba

a operação que aí ocorre: ela(s) e/ou ele(s) são convertidos em eu/você – é preciso

que se imaginem as linhas a deslizar os contornos desse processo, demarcando sua

dinâmica. Esta não é uma transformação insignificante: há um processo de

subjetivação decorrente do encontro deste espectador-visitante com a obra –

identificado na passagem ela/ele → eu/você. Está claro agora como os jogos eu x

você podem ser inseridos no conjunto de obras aqui comentado: sua importância é

evidenciada pela construção e delimitação de um território próprio – como vimos,

person ou group-specific – para se trabalhar tais passagens, elaborar o que se

196 Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”, op. cit.. 197 Noção desenvolvida por Suely Rolnik em diversos escritos, que procura indicar um corpo aberto, “que absorve as forças que o afetam, fazendo delas elementos de sua tessitura, marcas de sensação que irão compor sua memória. Mobilizar a potência vibrátil do sensível é então convocar esta memória, as marcas de suas vivências fecundas mas também as de seus traumas e os fantasmas que a partir deles e neles germinaram.” O corpo vibrátil não é o corpo já ‘saudável’, mas aquele que reconhece sua capacidade de reagir ao entorno e direcionar-se de modo produtivo na criação das transformações que o potencializem nessa direção. Cf. Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento – Somos o molde. A você cabe o sopro, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Nantes, Musée de Beaux Arts de Nantes, 2006, pp. 13-26.

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146

passa e processa no jogo das membranas das bordas de contato das para-

esculturas que se lançam ao confronto. Este sujeito transformado teria a obra ao seu

lado, inscrita no corpo – e ao mesmo tempo se movimentaria mais agilmente nesta

nova condição de hibridização entre corpo e obra de arte, em que o poema é

prótese a circular pelo corpo, enquanto condição imaterial da obra que não

contamina mais a ela(s) e/ou ele(s), mas a eu/você.

convergência de pronomes pessoais

em uma única palavra.

euvocê

vocêeu

mistura, hibridização, contaminação recíproca

de um pelo outro, de eu por você, de você por eu,

numa só coisa. êxtase do objeto,

síntese ideal do desejo.

instrumento de negociação para ações

de uma alteridade incorporada, em fuga.198

Deve-se notar que tal operação levada a cabo pela obra de arte em sua captura do

espectador, conduzindo-o da condição de visitante (ela/ele) para participante

(eu/você) – ou seja, trazendo-o de situação de ausência de contato para a ocasião

de constituir membrana entre si e o trabalho de arte – não se processa através de

dinâmica simples mas demanda abordagem complexa, de mais de uma etapa. Deve

ficar claro aqui que não é o objeto ou o elemento da instalação que, em sua

materialidade física, deflagra este processo tanto em sua instantaneidade (pois

existe sempre algo no trabalho de arte que é da ordem de uma “apreensão pática,

imediata e não-discursiva”199) quanto em etapas: trata-se de ação conjunta da obra

em suas diversas partes, mecanismo elaborado composto das dimensões plástica e 198 Ricardo Basbaum, “superpronome”, op.cit.. 199 Félix Guattari. V. nota 135.

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147

discursiva, abertas às manobras da inter-relação entre sensorialidade e conceito.

Nesse sentido, cada uma das séries de trabalhos ou projeto aqui comentado se

estrutura, de modo inequívoco, de maneira dupla, desenvolvendo elementos textuais

em conjunto com aqueles aqui chamados de para-escultóricos. De modo que nbp x

eu-você, passagens (NBP), transatravessamento e obs. elaboram sua ação de

captura & contaminação mobilizando o sistema de revezamento plástico-discursivo

que temos apontado aqui como próprio de uma prática que, atenta à condição

própria da arte contemporânea em seu deslizamento para além do visual, elabora

combinações das matérias conceitual e não-discursiva como partes de um mesmo

fazer. Os jogos eu x você e a elaboração do superpronome são indicadores da

utilização do espaço intermediário – membrana, zona de contato – como região de

reorganização e reelaboração de partículas, onde transformações se processam

com a inclusão do outro da obra (visitante, espectador) enquanto parte ativa do jogo

(participante). Ou seja, nesta operação de intervenção na dinâmica de

funcionamento da obra de arte em seu contato com o outro e com suas condições

de exibição – pois cada artista faz de sua obra intervenção em certo estado de

coisas – há a efetiva construção de membranas plástico-discursivas como elemento

dinâmico.

Seria preciso então falar aqui de esculturas conceituais para se referir aos trabalhos

que se integram ao projeto NBP, para que se possa compreender a presença de

obras que se instalam no espaço arquitetônico, ali se estruturando como elementos

físicos que procuram desenvolver provocações ao visitante, oferecendo a

possibilidade do desenvolvimento de membranas – o mesmo se passaria com o

objeto de Você gostaria de participar de uma experiência artística? e seu convite

direto à utilização. Enquanto esculturas conceituais, seria indicado que estas peças

constroem suas estratégias de ação trazendo ao primeiro plano a articulação

conceitual que as constitui – principalmente, desenvolvendo a possibilidade que tal

articulação conceitual não se faz presente apenas como paisagem de conceitos

oferecida em contemplação ao visitante mas, enfim, se coloca como agente que

trabalha a inclusão deste visitante enquanto sujeito pensante da obra, capaz (de

acordo é claro com o grau de seu investimento) de desviá-la de rumo para o

Page 149: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

148

encontro de outras intervenções. Isto é claro em Você gostaria…?, quando se

escreve:

Você gostaria de participar de uma experiência artística?

aceitaria levar para casa o objeto (…) ?

(…)

O objeto carrega alguns conceitos e eu gostaria que você também os

utilizasse.

Apesar de invisíveis, eles são manipuláveis através do uso do objeto.

As experiências que você realizar tornam visíveis redes e estruturas de

mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados

sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a

partir de sua utilização, são mais importantes que o objeto.200

Há a indicação de disponibilizar ao participante a trama conceitual com a qual se

costura o projeto, apontando sua presença concreta (ainda que invisível) junto ao

objeto – utilizá-lo é também utilizar a articulação conceitual, produzir outros arranjos

em sua configuração, desviando-os até quando o projeto é conduzido até um limite:

pois o participante desenvolve esta possibilidade de articulação direta que o

posiciona junto ao local privilegiado a partir do qual é possível trabalhar com a obra,

já que, aqui, pensá-la significará pensar-se, na medida em que qualquer ação

somente se fará com engajamento de alguém (mente-corpo), sujeito de um contato

estético e também conceitual – simultâneos.

Bloco 4 experiência, incorporação, sujeito híbrido

Se Você gostaria de participar de uma experiência artística? – assim como o projeto

NBP – quiser se colocar como um processo de subjetivação (como, em certa 200 Texto que integra os diversos folhetos e guias para participantes do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, de 1994 até 2008. V. Anexo Textos

Page 150: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

149

medida, aponta todo o trabalho de arte), deve indicar que as experiências que

propõe sejam desenvolvidas em ambiente de intensidade. Somente uma experiência

intensiva oferece o mergulho adequado para a ocorrência de processos de

transformação – isso não quer dizer isolamento formal em relação ao entorno, mas o

desenvolvimento de um processo de contato e de passagens entre seus principais

atores, de modo que em alguma parte esse contato se processe de fato e algum

trânsito se institua; e ali se concentrarão especialmente as forças envolvidas nessa

dinâmica, sem evitar que outros processos continuem ativos e atuantes – mas é

preciso garantir, por instantes que sejam, a erupção de algum ritmo especial. Ocorre

que não existe garantia a priori da deflagração e ocorrência de um processo

intensivo – esta é um dinâmica avessa a um planejamento, organização e

desenvolvimento, no sentido de um plano de metas; daí ser preciso conduzi-la em

termos de aproximações e envolvimento sensorial, pois o que se passará será da

ordem do desejo e da vontade e somente assim a ambiência intensiva se constituirá:

se não houver atividade do espectador, nunca se entrará finalmente no aqui&agora

da experiência intensiva, proporcionadora de transformação. Nada disso será

exclusivo de NBP, mas propriedade da obra de arte em um de seus terrenos de

aventura possíveis – exigência talvez de certa arte contemporânea em escapar o

quanto possível (não existe escape absoluto) dos jogos dominantes do

entretenimento e do mercado. De modo que aqui a obra – em suas componentes

sensorial e discursiva – deverá funcionar no sentido do envolvimento, da oferta de

espaços, da elaboração de membranas, da hibridização, para assim proporcionar a

possibilidade de que o outro, frente à provocação oferecida, encontre este território

onde as forças se acelerem e adquiram trânsito, em limiar de intensidade: que

somente ocorre se existe um estado de trocas entre obra e sujeito participante –

assim é possível alguma transformação.

Não há como obter medidas ou garantias da efetivação deste estado – que seria a

possibilidade mesma de uma experiência: o estado intensivo é experimentado como

vivência do corpo vibrátil201, vivência de vivência: experimentar a si mesmo em

momento de trocas com a obra – daí também a importância do elemento discursivo,

201 V. nota 197.

Page 151: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

150

ao conduzir e enviar este espectador-participante ao mesmo tempo para o contato

direto com a obra e para o confronto com o discurso, os quais se combinam de

acordo com o grau de envolvimento deste espectador nos meandros do processo: a

medida da combinação obra-discurso é indicada pelo sujeito-participante, ou seja,

de acordo com quem se envolve (group-specific, person-specific) a mistura obra-

texto sofre variações. Mas é certo que um envolvimento de tal ordem somente se dá

se a obra se prepara para acolher este processo – ou seja, desenvolva

suficientemente seu funcionamento a partir da estratégia da elaboração de

membranas como superfícies de intermediação e troca. A efetivação do processo

depende do encontro obra-sujeito: quando este se dá, forma-se a entidade híbrida

corpo + obra de arte, através de ligações que possibilitam contato e troca entre as

duas partes – mútuo reforço e duplo trabalho: pois nem o corpo deixa de ser corpo e

nem a obra abandona sua condição própria, mas constrói-se esta outra entidade que

é algo a mais, com a qual cada parte terá que lidar: o sujeito-corpo percebe-se como

corpo-obra, assim como a obra teria seus limites re-estabelecidos enquanto obra-

corpo. Mas esta complicação (pois de fato se está em outro estágio além da simples

presença de alguém junto a um trabalho de arte) deverá revelar-se produtiva, no

sentido da construção de algo: para o espectador, a possibilidade que se abre está

ligada ao processo de subjetivação que será deflagrado, na co-habitação junto do

poema que agora circula pelo seu corpo; para a obra, o que se constitui é seu

enriquecimento por novas camadas de um processo de atualização radical, que

pode se desdobrar na reconfiguração de seus limites através de ação crítico-teórica,

em que é recriada.

Daí a importância para o projeto NBP das palavras de Lygia Clark (já indicadas

aqui), ao nomear como “metabolismo simbólico”202 o processo de reação do corpo

ao contato sensível com o mundo, indicando a presença de uma constituição de si –

e então, a obra de arte seria um dos elementos do mundo junto ao qual esse contato

se dá de modo particular, uma vez que se dedica a problematizar o sensível,

produzindo sensações de matriz própria, irredutíveis ao que quer que seja, mas

hábeis na construção de conexões com o entorno. Ao confrontar-se com objetos,

202 V. nota 142.

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151

instalações, esculturas-conceituais, etc., que compõem NBP, ocorre o contato entre

as materialidades do corpo e da obra (assim como entre corpo e discurso, uma vez

que as manobras próprias deste projeto se fazem presentes através da dupla

articulação ou mútua implicação entre os campos sensorial e conceitual): a operação

de contágio que se segue a partir daí seria também de metabolização dos efeitos,

sentidos e significados implicados na proposta de intervenção. É preciso

compreender que o termo metabolismo é sobretudo garantia de que o procedimento

de contato não se reduz à simples transmissão de conteúdos entre a obra e o

sujeito-espectador203 – a qual se caracterizaria como procedimento incorreto, uma

vez que não existe um algo a ser transmitido, mas uma operação a ser desenvolvida

envolvendo o aparato de uma atividade de maior complexidade: de fato um processo

a ser deflagrado, ativado, conduzido, envolvendo contato & contaminação.

Metabolizar NBP indica o investimento concreto deste sujeito-espectador em deixar-

se contaminar, tornar-se um com a obra (sem abandonar-se e sem dissolver o

trabalho de arte, ou seja, será preciso ser dois ou três simultaneamente, superpor

contornos sem abandonar delineamentos anteriores, ser mais do que se é), abrir-se

para a ambiência do poema a trabalhar dentro de si, ser habitado por esta partícula

(o poema) que maximiza e hipertrofia o sentido e, a partir de tal intensificação,

permite limiares, passagens e modificações.

Desde então há a inoculação do espectador-participante: em seu corpo passa a

circular a forma-específica NBP, qual vírus-poema, partícula verdadeiramente

estranha e enfrentar aquela ambiência, que seria propriamente sua (alguma

surpresa?): não é vocação e ambição do poema circular de corpo em corpo? Claro

que não há o instante do contágio, ponto zero do processo, pois a dinâmica da

contaminação é de fato mais complicada, demandando uma seqüência de etapas da

qual a inoculação resulta como efeito de pequenos processos que se acumulam e

aos quais, de súbito, não se oferece mais resistência, uma vez que já está ali a

203 E assim o projeto NBP caminha em direção oposta ao “grande sonho e promessa de que a informação possa se libertar dos constrangimentos que controlam o mundo dos mortais”, expresso por Marvin Minsky em sua sugestão de que “em breve será possível extrair a memória humana do cérebro e importá-la, intacta e sem modificações, para discos de computador.” Citado por N. Katherine Hayles, How we became post-human – virtual bodies in cybernetics, literature and informatics, Chicago, The University of Chicago Press, 1999, p. 13.

Page 153: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

152

partícula invasiva – com a qual só resta conviver, a favor dos instantes especiais que

oferece, percebendo-a em seus contornos não-naturais de diferença:

inevitavelmente, aos poucos esta será devorada, mas isto indicará não seu

aniquilamento, mas assimilação. Pois se o vírus-poema NBP desloca-se pelo corpo

como partícula estranha, esta circulação não se dará através das vias naturais: em

ação conjunta partícula-ambiente se constituirão ali, naquele corpo, outros circuitos,

caminhos e modalidades de circulação cujo efeito principal será restituir as vias de

acesso ao exterior – como se a invasão se desse de fato como estratégia para a

produção de aberturas, como duplo caminho para entrar-sair, trazendo corredores e

passagens, canais e vias duplas. Não interessa a NBP invadir corpos para gerenciá-

los ou assumir postos cerebrais de organização e controle, mas redistribuir sistemas

de circulação de intensidades descentralizadas – mais próximos de dinâmicas de

descontrole – que abrirão passagens para que mais ali se passe, mas também que

mais dali se escape: não se trata de ganhar ou perder, mas amplificar certa dinâmica

dentro-fora, Ou seja, se há para o vírus-poema NBP alguma programação em jogo,

esta se faz enquanto dupla manobra que irá articular interioridade e exterioridade,

amarrando ambas as regiões na dinâmica do corpo: pode ser dito que as etapas do

processo compreendem (1) o contato direto com a obra (instalação, escultura-

conceitual, estrutura arquitetônico-escultórica, diagrama, etc.) – em suas implicações

hápticas –, o que conduz à (2) constituição da membrana intermediária, interface

obra-espectador; através da espessura e densidade destas superfícies de

intermediação, em etapas sucessivas, ocorre (3) a contaminação pelo vírus NBP,

que circula de modo invasivo pelo corpo do sujeito-espectador ali produzindo novos

circuitos que, afinal, (4) conduzem à produção de vias e passagens que enviam de

volta ao exterior. Ocorre que, de fato, não há porque ter estas etapas como fases em

seqüência e resulta ser mais proveitoso perceber a instauração deste processo

como um avanço simultâneo das quatro etapas descritas acima, cada qual em ritmo

próprio – pois não importa de fato a ordem em que se perfazem as ações entre elas,

se consideramos importante acentuar que a apreensão da obra de arte se dá de

diferentes modos, sempre resguardando a importância da imediaticidade do

contato204: assim, seria decisivo se perceber o trabalho funcionando ao mesmo

204 “[o] corpo que se torna uma espécie de órgão de captação das mais finas vibrações do mundo”.

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153

tempo fora e dentro, processo em que a provocação estabelecida pela escultura-

conceitual implica na invasão do corpo pelo poema, mas que também este corpo

invadido já reaja de modo diferenciado à provocação, por ter seus sistemas de

circulação redelineados. Há uma intensificação e reordenação da dinâmica

dentro/fora e um cuidado na construção da obra que implique nesta dupla atuação:

contato & invasão, circulação & fuga – intervir na temporalidade deste processo

através da compreensão da simultaneidade das etapas e da compressão de seus

intervalos:

Queremos nos instalar, pretensiosamente, dentro deste

intervalo mínimo, no interior da instantaneidade – melhor dizer ao

lado, mas do lado de dentro. Não como testemunhas, simples testemunhas

oculistas, mas como estratégia para a geração de outros processos,

múltiplos e variados, a partir deste lapso:

o intervalo de tempo entre meio emissor (Me - mensagem emitida)

e meio receptor (Mr - mensagem recebida):

∆t Mr - Me → Zero 205

Mas é preciso advertir: quando se pretende propor uma possível simultaneidade

entre os processos internos e externos de atuação da obra, querendo convergir seus

tempos processuais, o que de fato se enfatiza é que tal dinâmica se dará a partir de

revezamentos fora/dentro – e quanto mais intenso este trânsito, maior será a riqueza

do processo de transformação proposto (subjetivação do espectador, atualização

crítica da obra); entretanto, o que se pretende de fato é a instalação do problema e

não sua resolução: produzir intervalos, espaços, aberturas já é tarefa relevante –

mais significante que a obtenção de resultados imediatos. Produzir a circulação

interna e externa do problema, indicando a articulação de ambas as situações,

aponta sobretudo para a produção de outra experiência estética – mais complexa –

em que o contato com a obra não se separa de um contato consigo, a dinâmica

José Gil, “Abrir o corpo”, op. cit., p. 64. 205 Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”, op. cit..

Page 155: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

154

contextual exterior se instala nas vias de circulação interna, o sujeito se lança para

fora sendo constituído ali no exterior, e, principalmente, reforça-se o lugar em que as

dinâmicas exteriorizante e interiorizante se processam simultaneamente sem perder

sua dupla característica, ou seja, mantém-se o conflito, assimila-se a (inassimilável)

disjunção e assim abrem-se espaços associados a ferramentas de trabalho – a

emancipação (ou cura) pode estar ainda a se consumar, mas se está melhor

articulado e armado para os combates. Há um trânsito (próprio da obra

contemporânea) que se torna intenso e possibilita diversos sítios para intervenção:

NBP ocupa alguns deles, procurando trabalhar potencialidades possíveis do poema

hoje.

Talvez seja importante um destaque: quando a ênfase recai na presença do

espectador-visitante, apontando sua presença como necessária para que o trabalho

aconteça, é também porque a figura da obra vazia, deserta, sem qualquer presença,

se torna visivelmente incompleta. É claro que todo trabalho contemporâneo indica a

importância da presença do outro como fundamental para que funcione – mas, se

temos por exemplo, a imagem de uma pintura, iremos preferir conferi-la em seu

isolamento formal, e a presença ali de qualquer corpo somente irá dificultar a visão

da obra – os fotógrafos irão em geral preferir a presença apenas da tela como

assunto da imagem a ser feita. Mas trabalhos de outra ordem se resolvem em uma

modalidade diferente de imagem – em que a presença de corpos em contato direto

se faz imprescindível para que a imagem produza a inteligibilidade não apenas da

obra em foco, mas da situação mesma. Para grande parte dos trabalhos do projeto

NBP, esta segunda modalidade de imagem se aplica – as peças ganham sentido a

partir da presença, entre elas, de variados corpos: não se trata de figuração cênica,

mas da importância que ganham aqui as formações híbridas corpo + obra –

certamente a fotografia não é capaz de trazer à tona as linhas invisíveis que

testemunhariam a força potencial das ligações aí em curso (somente o diagrama

responderia a isto); mas trata-se então de perceber o conjunto como formação de

misturas, flagrando o instante da mistura de corpo e elementos para-escultóricos,

arquitetônico-escultóricos, etc. – não há imagem material de membranas,

representação literal de forças, retrato de linhas invisíveis, mas “a presença das

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155

intensidades se mede pela influência que ela provoca nos que a percepcionam”206:

então este corpo coletivo híbrido instaura modificações no entorno (ou seja, na

instalação), conduzindo o trabalho sempre a outras direções, produzindo desvios em

relação ao outro-visitante, à obra e à sua ambiência (triplo endereçamento). Então:

(1) a instalação estará pulsando em repouso, emitindo ritmos a partir de seu padrão

de vibração habitual, como que em contorno de espera, em modo de espreita; (2)

aqueles que tocam, pisam, avançam, deitam, se sentam, repousam, instauram ali

movimento, iniciam deslocamento e dinâmica e o conjunto é ativado – há falas,

conversas, escuta, sonoridade; (3) com a ativação das membranas é que se produz

hibridização e não se sabe mais com clareza os limites entre obra e corpos, pois a

movimentação preenche o espaço com linhas (estado diagramático) que vão e vêm

e – principalmente – deslocam-se através deste misto obra-corpos para dentro e

para fora de cada um (singularidades possíveis), ativando sistemas de circulação

particulares em duplo jogo (sistemas que também se enredam mutuamente, uma

vez que aí redes dialógicas são sim constituídas) – há vibração que põe em

funcionamento intenso trânsito, possibilidade de misturas, probabilidade de trocas;

(4) os efeitos se produzem enquanto mudança, transformação, no sentido de não se

ser mais o mesmo após tal dinâmica: processos de subjetivação deflagrados na

intensidade do contágio, discursividade em multiplicação alterando o campo teórico-

crítico – a dinâmica da obra se coloca em escala temporal, pois não há volta

possível a qualquer estado inicial: uma vez ativados, os trabalhos do projeto NBP

guardam as marcas de cada estado pelos quais passaram e torna-se impossível (de

fato, isto não se deseja) qualquer retorno a um momento de inércia inicial (se bem

que em repouso as peças pulsam, de modo que nunca houve instante zero, início

absoluto em NBP).

Com Você gostaria de participar de uma experiência artística?, ocorre sem dúvida

procedimento similar – com a particularidade de que aqui os protocolos de uma

experiência estão demarcados de maneira mais enfática, pois este projeto assim o

pede. Aqui, a modalidade de contato entre participante e objeto é de variabilidade

muito maior: ao conduzi-lo sob sua guarda, levando-o consigo, este participante –

206 J. Gil, op. cit., p. 65.

Page 157: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

156

indivíduo, grupo, coletivo ou instituição – pode moldar a forma de contato à

experiência que irá propor: assim, desde que está em posse do objeto, o participante

desenvolve uma proximidade máxima que parte já das primeiras pulsações de um

objeto aparentemente vazio, mas que “carrega alguns conceitos (…) manipuláveis”,

“apesar de invisíveis”.207 Pode-se dizer que este objeto é praticamente todo

constituído como uma grande membrana – e, à diferença de projetos da série NBP,

funciona como provocador imediato de intensidades devido à sua portabilidade e

outras características de construção: trata-se de um container, portador de área

interna pronta a acolher algo; suas dimensões permitem que seja conduzido para

dentro da casa (ou abrigo similar), entrando assim diretamente em espaço de

convívio e co-habitação; estas mesmas dimensões permitem que seja carregado por

uma ou duas pessoas para todo lado, oferecendo ainda toda uma sorte de

possibilidades de contato corporal, desde o gesto do transporte até tentativas (que

são freqüentes) de acomodar o corpo em sua área interna. Ainda, por ter seu

desenho diretamente determinado pela forma específica NBP, as forças associadas

a esta marca, sinal ou signo distribuem-se imediatamente pelo objeto – todo ele

entidade sensível ao toque, pronto a ser ativado, em estado de máxima excitação.

Desta forma as etapas de contágio, em que o objeto se desfaz enquanto vírus,

partícula a avançar pelo corpo do participantes, se perfazem com agilidade veloz –

de pronto já se estabelece o duplo jogo exterior-interior, em que se buscam sistemas

de circulação através do corpo, em ressonância rítmica com o toque direto: é nesta

dupla tarefa que Você gostaria…? busca sua eficiência possível – e é aí que reside

a resposta ao convite de participação e formulação de uma experiência. Pois ao

deixar ao participante a responsabilidade de construir suas próprias ações, é a este

que se abrem as possibilidades de definir a modalidade de acomodação do objeto

junto a si (corpo individual, grupal, coletivo ou institucional): desta forma o trânsito

dentro-fora é construído em detalhamento muito maior, com características

especiais – configurar o sistema de circulação do vírus-poema em seu corpo em

contigüidade com a acomodação do objeto no espaço físico da experiência, levando-

o para lá e para cá – dupla tarefa que aqui converge em função da proximidade de

todo o processo, mas que resguarda a diferença das etapas (toque físico no objeto +

207 Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..

Page 158: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

157

partícula desmaterializada a ser metabolizada), momentos complementares de uma

mesma experiência que aqui se processam em conjunto. Em seguida, enfim, a

experiência deverá ter sido documentada – possibilidade de compartilhamento e

inclusão no arquivo: o convívio e utilização do objeto são tramados desde o início

sob esta exigência (que pode ser tomada como intrusão violenta do artista em

dinâmica de contornos muito próprios e contextualizados) da construção do registro

– será preciso vencer as limitações do aqui&agora irrepresentável e intransferível

próprios do mergulho no presente da ação e produzir texto, fotografia, vídeo ou

áudio (e ainda desenho, objeto, etc.) que reconstituirão a experiência realizada

enquanto documentação a ser acessada em espaço público208 (já que a conversa a

partir daí já não pode ser contida exclusivamente nas trocas entre artista e

participante). A partir deste momento, Você gostaria de participar de uma

experiência artística? passa a realizar-se como experiência de arquivo, configurando

já outra etapa com características próprias (a ser comentada mais a frente) –

completando o percurso em que o participante desenvolve a prática de intenso

convívio, toque, co-habitação: pois de fato o objeto deverá seguir as redes de

circulação do projeto, sendo deslocado para um próximo participante – mais uma

vez, a indicação das fases do envolvimento do participante de Você gostaria…?

segue os passos implicados em NBP nos termos de contato & invasão, circulação &

fuga – mas é importante que se registre aqui: talvez seja Você gostaria…? um dos

projetos que mais propriamente desenvolvem e avançam sobre estas propostas de

trabalho, sobretudo por proporcionar um convívio tão direto, próximo e permissivo

entre espectador-participante e obra de arte, onde está última se deixa tomar pela

possibilidade das mais extremas intervenções, franqueando-se enquanto elemento

de dupla articulação sensível e conceitual e, assim, prestar-se a uma experiência de

intervenção que remete diretamente à constituição da obra, ao processamento

sensorial e a um conjunto de relações contextuais e ambientais.

208 Referência ao website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, que constitui o banco de dados do projeto, disponibilizando documentação enviada pelos participantes – trata-se de espaço público de consulta aberto a qualquer um que acesse a internet através do endereço http://www.nbp.pro.br.

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158

Bloco 5

atores participantes, papéis, circuito, artista-etc (agenciador, curador, crítico), autoria compartilhada

Seria impossível separar o trânsito do artista pelo circuito de arte das configurações

que se adquire nesta dinâmica. Ou seja, ao desenvolver a poética e trabalhar suas

possibilidades de intervenção e inserção, certamente estarão aí implicadas a

constituição de uma figura ou imagem do artista e alguma compreensão dos outros

papéis de personagens com os quais terá que negociar: será necessário perceber,

de modo geral, que gestões deverão ser tramadas para que o trabalho circule

(agenciamento); entender como a obra se relaciona com o espaço expositivo

(curadoria); saber discernir as tramas teórico-críticas do jogo da arte (crítica) – pois

ao avançar na construção do trabalho, o artista se desenvolve em direção à

modalidade que corresponde à atuação pretendida. Mas não se trata simplesmente

de assumir perfis já prontos – ‘artista de sucesso’ ou ‘artista marginal’, por exemplo,

como casos extremos –, embora isso sempre seja possível a qualquer tempo (isto é,

deixar-se configurar conforme a demanda); o mais interessante seria empreender

um constante exercício de escuta em relação à prática e moldar a forma de atuação

e imagem do artista conforme as nuances e exigências da pesquisa plástico-

conceitual empreendida: são pesquisas que correm em paralelo – configurar a obra,

configurar-se como artista.

A implantação do projeto NBP se deu em certo momento (1989/90) em que buscava

uma convergência mais concreta e intensa da prática discursiva para dentro de

minhas atividades como artista – pois até então as experiências de multiplicavam em

várias frentes (experimentação em performance, vídeo e música com os grupos

Dupla Especializada e Seis Mãos; exposições com a prática da pintura e desenho;

trabalhos dentro da interface arte/comunicação; ações coletivas), incluindo a

utilização da escrita como ferramenta de ação junto à obra de arte – tanto textos de

utilização interna em vários projetos (press-releases, roteiros, letras de canções,

folhetos para distribuição ao público) como o início da produção de textos críticos.

Pareceu-me decisivo tornar clara, desde aquele momento, certa identificação em

Page 160: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

159

torno da imagem do artista a ser buscada – quais os contornos de identificação

deste personagem? Em que direção desempenhar tal papel? Quais interesses

convergir para este núcleo de atração? Apesar de não haver dúvidas quanto ao

interesse em articular a produção de uma poética, o próprio lugar de onde se é

capaz de produzir tal articulação é problematizador por excelência e, logo, resultado

de constantes construções (e desmontagens). Pois, quando a demanda da escrita

se apresentou intensa, sendo aos poucos percebida como elemento de trabalho

concreto, a afirmação desta prática se deu a partir da convergência de três

diferentes locais de produção: como elemento integrado às ações plásticas de

projetos individuais e coletivos209; enquanto agregação de interesse na produção de

textos críticos, apresentação de catálogos de exposições e resenhas210; junto à

atuação frente às (ou seja, percepção das e intervenção nas) disputas de uma

política do circuito que permeava o jogo artístico do circuito de arte do Rio de

Janeiro no contexto dos anos 1980. Uma breve observação será necessária, quanto

a este terceiro tópico: refiro-me diretamente às ações do grupo A Moreninha (1987-

88)211, que agrupou artistas e críticos relacionados à arte do período, identificados

como pertencentes (ou próximos) à assim chamada “Geração 80”. De forma breve,

estas ações se desdobraram na direção da produção de polêmica frente ao

provincianismo do circuito local e pela construção e conquista de outro lugar de fala

por um grupo de produtores engajados diretamente em um processo cultural – e

identificados publicamente como tal –, mas que se debatiam contra o incômodo de

verem atribuídas à sua prática questões provenientes de interesses variados sempre

ávidos para a elas se associarem, e que de maneira alguma eram desdobramento

209 Como gestos iniciais importantes destaco a Filipeta-Manifesto (1984), de autoria da Dupla Especializada, distribuídas nas ruas do Rio de Janeiro e o texto-poema Olho, de minha autoria, impresso no cartaz da exposição "Olhos, Discos e Eletrodomésticos", Galeria Contemporânea, Rio de Janeiro, 1985. 210 Sendo "Rota de Colisão", apresentação da exposição de André Costa, Galeria de Arte do Centro Empresarial Rio, Rio de Janeiro, 1987, o primeiro texto publicado. 211 A Moreninha realizou três ações principais, todas no ano de 1987, sempre no Rio de Janeiro: intervenção na palestra de Achille Bonito Oliva (Galeria Saramenha, fevereiro), exposição Lapada Show (Espaço Brumado, junho), publicação do livro Orelha (lançamento na Petite Galerie, novembro). Entre os nomes envolvidos (dentre os quais me incluo), alguns com maior e outros com menor engajamento, encontram-se: Alex Hamburger, Alexandre Dacosta, André Costa, Beatriz Milhazes, Cláudio Fonseca, Cristina Canale, Chico Cunha, Eneas Valle, Gerardo Vilaseca, Hamilton Viana Galvão, Hilton Berredo, João Magalhães, John Nicholson, Jorge Barrão, Lúcia Beatriz, Luiz Pizarro, Lygia Pape, Márcia Ramos, Márcia X, Márcio Doctors, Maria Lúcia Catani, Maria Moreira, Paulo Roberto Leal, Ricardo Basbaum, Solange de Oliveira, Valério Rodrigues.

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160

direto de problemas produzidos e derivados das obras. Algo como uma revolta

contra clichês, no interesse pela emissão de voz própria, individual, coletiva. Se a

primeira ação se deu como intervenção que produz polêmica e se expande pelo

circuito de arte e pelos meios de comunicação, a última se configura como livro,

onde cada membro indica e externaliza seus posicionamentos frente aos

acontecimentos: daí que me parece muito claro que estas ações indiquem o

encerramento do período identificado como “Geração 80” – no sentido de

desconstrução de certas emissões (do circuito comunicacional, de posicionamentos

que recusavam o confronto crítico com as obras) e em rumo à elaboração e

publicação de discurso próprio.212

Esta convergência de diferentes lugares de produção de discurso – seja do artista

junto à obra, seja enquanto escrita crítica ou ainda como ferramenta de

agenciamento para disputas político-institucionais do circuito, percebendo a

importância e singularidade de cada uma das modalidades de modulação,

formatação e formulação discursiva – indica caminhos e percursos a serem

percorridos e a necessidade de reformatar-se conforme os papéis oferecidos e suas

demandas: pois trata-se de deslocamento a ser também empreendido pelo crítico,

curador, agente cultural, pesquisador intelectual, etc., ou seja, tópicos de uma

prática a ser conduzida pela produção de textos e pela compreensão de seu papel e

funcionamento como ferramenta de trabalho e combate. O desafio é também

compreender como nestes trajetos e trabalhos se constituem os papéis –

configuração de si na dimensão da atuação social – também como ferramentas e

formas de ação: e aí se constroem as imagens do artista, crítico, curador, etc.,

também como indicadores das questões com as quais se está trabalhando,

imprescindíveis para a invenção poética a se fazer naquele momento – ou, quem

sabe, um dia. NBP foi sendo construído nesta encruzilhada de possibilidades, como

212 Os episódios protagonizados por A Moreninha estão ainda ausentes do discurso oficial da arte brasileira, em geral ignorados pela historiografia e pela crítica. Como referências, além da cobertura de imprensa no período (jornais, televisão), apenas o livro Orelha (vários autores, edição própria, 1987) – do qual foram extraídos os artigos de Eneas Valle (“Geodemas de Uá Moreninha”) e Márcio Doctors (“A experiência estética da invenção como radicalidade estética da vida”) para publicação em Ricardo Basbaum (Org.), Arte contemporânea brasileira - texturas, dicções, ficções, estratégias, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2001 – e meu artigo "Cérebro Cremoso ao Cair da Tarde", O Carioca, nº 5, dezembro 1998.

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projeto de trabalho que permitisse o desenvolvimento forte de um campo discursivo

enunciado a partir do lugar do artista, sem que daí fossem excluídas as dinâmicas

da crítica e do agenciamento (construção de eventos) – buscar as permeabilidades

possíveis e sobretudo compreender o papel do artista como afim (e não

incompatível, como quer o senso-comum ainda vigente ou mesmo a divisão

profissionalizante das competências frente ao mercado de trabalho) àquele do crítico

e do curador: seria preciso então produzir uma curvatura da prática discursiva para

que de fato a fala passasse a ser gerada em conjunto com o trabalho plástico,

buscar um sistema de revezamentos plástico-discursivos adequado ao gesto

pretendido, sem que a opção da dupla prática correspondesse à diminuição da

carga poética e à des-intensificação da intervenção. E principalmente compreender

aí qual o desenho ou diagrama produzido por estes outros e novos contornos –

quais seus efeitos nas maneiras, formas e procedimentos do trabalho?

ADVERTÊNCIA:

Atenção para esta distinção de vocabulário:

(1) Quando um curador é curador em tempo integral, nós o chamaremos de

curador-curador;

quando o curador questiona a natureza e a função de seu papel como

curador, escreveremos ‘curador-etc’ (de modo que poderemos imaginar

diversas categorias, tais como curador-escritor, curador-diretor, curador-

artista, curador-produtor, curador-agenciador, curador-engenheiro, curador-

doutor, etc.);

(2) Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de

‘artista-artista’;

quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista,

escreveremos ‘artista-etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas

categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor,

artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-

químico, etc.);

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O enunciado acima pressupõe que o ‘curador-curador’ (ou mesmo o ‘curador-

artista’) trabalha de modo diferente do ‘artista-curador’. (…)

Amo os artistas-etc.

Talvez por que me considere um deles.

Artistas-etc não se moldam facilmente em categorias e tampouco são

facilmente embalados para seguir viagens pelo mundo, devido, na maioria

das vezes, a comprometimentos diversos que revelam não apenas uma

agenda cheia mas sobretudo fortes ligações com os circuitos locais em que

estão inseridos. Vejo o ‘artista-etc’ como um desenvolvimento e extensão do

‘artista-multimídia’ que emergiu em meados dos anos 1970, combinando o

‘artista-intermídia’ fluxus com o ‘artista-conceitual’ – hoje, a maioria dos

artistas (digo, aqueles interessantes…) poderia ser considerada como

‘artistas-multimídia’, embora, por ‘razões de discurso’, estes sejam referidos

somente como ‘artistas’ pela mídia e literatura especializadas. ‘Artista’ é um

termo cujo sentido se sobre-compõe em múltiplas camadas (o mesmo se

passa com ‘arte’ e demais palavras relacionadas, tais como ‘pintura’,

‘desenho’, ‘objeto’), isto é, ainda que seja escrito sempre da mesma maneira,

possui diversos significados ao mesmo tempo. Sua multiplicidade, entretanto,

é invariavelmente reduzida apenas a um sentido dominante e único (com a

óbvia colaboração de uma maioria de leitores conformados e conformistas).

Logo, é sempre necessário operar distinções de vocabulário. O ‘artista-etc’

traz ainda para o primeiro plano conexões entre arte&vida (o ‘an-artista’ de

Kaprow) e arte&comunidades, abrindo caminho para a rica e curiosa mistura

entre singularidade e acaso, diferenças culturais e sociais, e o pensamento.

(...)

(…)

Amo os artistas-etc.

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Talvez porque me considere um deles, e não é correto odiar a mim mesmo.213

* * *

Existem artistas cujos aspectos fortes e interessantes do trabalho residem sobretudo

em decisões relativas à sua atuação, através de gestos que se estendem para além

do instante de produção da obra-objeto e tocam os contornos do sistema de arte em

suas diversas instâncias de agenciamento, comentário e construção do evento. Há

em procedimentos deste tipo um inevitável olhar sobre si mesmo – não enquanto

indivíduo ou sujeito psicológico – mas acerca do dispositivo de atuação que está

sendo construído, isto é, a figura do artista, a imagem do artista, o tipo de artista que

está sendo produzido no momento mesmo de produção da obra.214 Tais

preocupações não são exatamente o fruto de uma ‘escolha’ simples e direta, mas

muito mais o inevitável desdobramento de uma condição do ‘campo’ de trabalho: ou

seja, não há como – dentro do regime de opções de movimentação do artista,

oferecidos a cada momento pelo circuito – tomar decisões de atuação que não

impliquem, ao mesmo tempo, na conformação, deformação, distorção, delineamento

e re-delineamento da figura do artista, do que significa ser artista, do artista

enquanto dispositivo de trabalho que tanto precede como sucede à obra.

A noção de artista enquanto dispositivo de atuação – ainda que só possa ser

inerente à própria condição de invenção e autonomia da arte a partir do

Renascimento e modernidade, com a ênfase de sua atuação sendo gradativamente

deslocada do virtuosismo artesanal para a produção de dispositivos sensíveis de

pensamento – é claramente apontada, a partir de referências da arte

contemporânea, tanto pelos procedimentos trazidos à superfície em decorrências

das proposições da arte conceitual quanto pela prática da body-art – seja em um ou

outro caso, estão em jogo não apenas a discussão dos mecanismos para operar

dentro da dissociação entre os limites do ‘sujeito empírico’ e ‘sujeito artista’ (ali onde

213 Ricardo Basbaum, “Amo os artistas-etc”, op. cit.. 214 O desenvolvimento a seguir reproduz, com adaptações, os argumentos do texto “Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico”, de minha autoria, apresentado no Seminário “Marcel, 30”, 27ª Bienal de São Paulo, 2006. Não publicado.

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ocorrem os deslocamentos arte&vida), mas ainda a presença do próprio corpo como

um dos materiais de trabalho, assim como a produção da ‘imagem do artista’ como

elemento intercessor junto a um sistema de mediação ou circuito. Tendo como

referência um certo conjunto de práticas constitutivas do campo das artes visuais,

aquele(a) agente produtor(a) ali envolvido(a) necessariamente estará trabalhando

uma certa construção de si próprio(a) – com gestos e atribuições a priori e a

posteriori –, ao mesmo tempo como condição de possibilidade e derivação imediata

das ações empreendidas.

Em sua importante seqüência de textos, sob o título de “Educação do An-Artista,

Partes I, II e III”215, o norte-americano Allan Kaprow, por exemplo, desenvolve

comentários acerca de um modelo de artista efetivamente produzido ao longo das

diversas manobras empreendidas no desenvolvimento das questões de sua obras:

ao propor caminhos para caracterizar e produzir “an-artistas” (através da educação

como instrumento transformador), Kaprow delineia o perfil do que acredita ser o

“dispositivo de atuação” mais produtivo para enfrentar a região paradoxal arte&vida:

enfatizar o humor como parte do processo de “an-artizarmo-nos” [“un-art ourselves”],

“evitar todos os papéis estéticos, abandonar todas as referências para ser artistas de

qualquer tipo. Ao nos tornarmos an-artistas, poderemos existir apenas tão

fugazmente quanto os não-artistas, pois quando a arte como profissão é descartada

a categoria arte torna-se sem sentido, ou pelo menos antiquada”216. Interessante

neste exemplo é percebermos o desenvolvimento de uma modalidade de artista, que

tanto é decorrência de um processo de investigação e invenção de linguagem

quanto é condição para a continuidade do trabalho.

Em outro registro, Vito Acconci chama a atenção para o desenvolvimento de sua

linguagem de ação e performance onde ele é instrumento de trabalho de si mesmo:

215 As três partes de “The Education of the Un-Artist” foram publicadas originalmente em 1971, 1972 e 1974. Cf. Jeff Kelley (Ed.), Essays on the blurring of art and life, Berkeley, University of California Press, 1996, pp. 97-109, 110-126 e 130-147, respectivamente. 216 A. Kaprow, “The Education of the An-Artist, Part I”, in op. cit., pp. 103-104.

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“Se me especializo em um meio (…) eu estarei definindo um terreno para mim

(…), ao invés de me voltar para o terreno, eu deslocaria minha atenção e me

voltaria para o ‘instrumento’, eu focalizaria em mim mesmo como instrumento

que agiria em qualquer terreno que, de tempos em tempos, estivesse

disponível. Mas estou focalizado em mim mesmo a partir de uma distância: eu

vejo a mim mesmo, vejo o local, as figuras a minha volta … (estou muito

distante para ser visto como um ‘eu’: sou visto a partir do lado de fora: eu

posso ser considerado apenas como um ‘transportador físico’)”.217

No caso, Acconci desenvolve-se enquanto artista a partir de experiências em que

deliberadamente se superpõem corpo-próprio e corpo-obra (para Antonio Manoel

isto se deu em um flash, em 1970, no MAM-RJ), fazendo com que experimente a

possibilidade de desenvolver projetos em que se auto-transporta de uma situação a

outra, em que o corpo físico como elemento outro de si mesmo implica na

reinvenção de si como artista. Nesta outra passagem, Acconci indica, mais uma vez,

como no intrigante processo de mobilizar o próprio corpo como objeto indica, de fato,

a construção de um modus operandi em que, ao mesmo tempo, se reconstrói como

artista: “[em 1969] o modo como um trabalho começava era pensando em mim não

tanto como um objeto mas como um instrumento que poderia se entrelaçar com um

sistema já existente no mundo. Como poderia me conectar a este sistema? Tudo

começou para mim com noções de movimento, probabilidade, instrumentos.”218

O que interessa aqui, sobretudo, é enfatizar a produção de certos padrões rítmicos –

ressonâncias, redundâncias, reverberações – em relação ao delineamento do que

seria a construção de um dispositivo de atuação: o desenvolvimento inter-

relacionado da produção de um ‘modo de ser artista’ (operacionalidade, imagem,

atuação) e o desdobramento das proposições e jogos de uma poética que

inevitavelmente escapa para o exterior, pelos interstícios de um sistema ou circuito.

217 Vito Acconci, “Steps into performance (and out)”, in Luces, cámara, acción (…) ¡Cortem! - Videoacción: el cuerpo y sus fronteras, Valencia, IVAN Centre Julio Gonzalez, 1997, p. 174. No original Acconci escreve “physical mover”, que traduzimos para “transportador físico”. 218 Vito Acconci, “Lecture: September 16, 2002”, in Jen Budney e Adrian Blackwell (Eds.), Unboxed: engagements in social space, Ottawa, Gallery 101, 2005.

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Não há dúvidas que a condição do artista contemporâneo comporta a possibilidade

de deslocamento por diferentes papéis e locais do circuito de arte. Sejam as práticas

de agenciamento, de curadoria ou crítica – isto é, a articulação de atividades

diversas e seu deslocamento por variadas instâncias; a construção do evento e do

acontecimento; a articulação de mediações discursivas de modalidade crítica,

conceitual, teórica e histórica –, importa perceber como traços destes modos de

ação se encontram presentes nas formas de atuação do artista de hoje. Ainda não

me refiro aqui de modo direto àqueles artistas que regularmente exercitam a escrita

(sobre si, sobre outros), que se organizam em coletivos e constroem eventos, ou

ainda que se dedicam particularmente a produzir exposições de vários formatos e

meios – é claro que neste caso há uma atuação que se quer diversificada –, mas

gostaria de enfatizar que todo o artista contemporâneo tangencia este fazer

multiplicado: é característica do campo que legitima sua condição e possibilidade,

neste início de século XXI, delineá-lo(a) como personagem em contínuo

deslocamento através de práticas, saberes e discursos, dotado(a) de certos recursos

técnicos e conceituais que possibilitam esse deslocamento – ao menos

potencialmente. Ou seja, se pensarmos em um artista que, hoje, se volta

exclusivamente à prática da pintura, tal artista jamais avançará em seu fazer

enquanto acreditar apenas na representação, no plano, na questão cromática, etc. –

será necessário que associe as pesquisas estéticas a um discurso (tecnicamente)

elaborado acerca da prática em que se empenha; que compreenda a inserção de

seu fazer em um circuito ou sistema, percebendo as várias forças atuantes e as

conexões adequadas a seu projeto de inserção; que ao exibir seu trabalho seja

capaz de buscar as melhores soluções de montagem, sabendo como ocupar o

espaço, dialogar com a arquitetura e com os outros artistas presentes, etc. Caso não

demonstre qualquer mínimo discernimento ao enfrentar estes problemas, assumirá

papel passivo frente aos ritmos próprios do circuito, incorporando cada decisão

segundo interesses que sempre se acoplam aos trabalhos (hoje mais do que nunca,

sob o impacto da globalização neo-liberal) e – grosso modo – lançam as questões

da arte para um plano secundário e pouco problematizante. Na construção efetiva

de sua manobra de intervenção frente ao circuito, tal artista somente pode aspirar a

qualquer grau mínimo de autonomia (ou seja, o resguardo de sua capacidade de

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167

deslocamento) se compreender seu fazer como um conjunto de práticas que

incorporam não apenas as questões ditas plásticas, como as percebe como co-

extensivas às práticas do agenciamento, da curadoria e da crítica. Trata-se, então,

de buscar compreender a complexidade que surge a partir de tais acoplamentos,

tanto a nível conceitual como sensório, considerando o deslocamento por diversos

papéis um traço efetivamente constitutivo das condições de atuação dos artistas – é

claro que, do mesmo modo, este quadro de complexidade também se projeta sobre

os limites da prática de cada um dos outros segmentos do circuito.

É interessante se perceber que tal modo de conceber a prática do artista

contemporâneo indicaria, aparentemente, um esforço elevado por parte deste

artista, no sentido de complementar seu fazer com determinações das áreas do

agenciamento, da curadoria e da crítica – um quádruplo trabalho. Entretanto, ao

voltarmos os olhos para o panorama das primeiras décadas do século XX – em que

emergiram algumas das principais vanguardas históricas – constatamos que a

articulação das linguagens plásticas que se queriam puramente autônomas se dá de

maneira concreta a partir de um franco deslocamento dos artistas pelo que estamos

denominando como práticas de agenciamento, curadoria e crítica: estes artistas

desenvolveram aguda elaboração discursiva e conceitual sobre seu fazer,

agenciaram seus próprios eventos e projetos editoriais, organizaram as exposições

individuais ou de grupo que deflagraram movimentos, etc. Cada uma destas

práticas, então, se dava também enquanto invenção de linguagem, não existindo

isoladas das investigações ‘autônomas’ do campo plástico. Cabe então inverter a

indagação e se perguntar de que maneira foi se desenvolvendo este processo de

segmentação do circuito de arte e como o campo de trabalho foi estabelecendo

estas diversas competências profissionais supostamente especializadas – as

formações específicas e isoladas do artista, do curador, do crítico –, garantindo

reservas de mercado e toda uma rica economia com reflexos diretos na construção

e concepção do lugar e do papel da arte e do artista no sistema de arte hiper-

institucionalizado de hoje e em suas relações com o tecido social. Vale à pena

intervir no automatismo deste processo e produzir algum tipo de desvio que

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168

signifique, pelo menos, a não aceitação passiva e simples de um conjunto de

contornos conforme se apresentam no dia a dia.

Três aspectos parecem desempenhar papel-chave para se iniciar uma intervenção

neste estado de coisas: desnaturalização, politização e relações arte&vida. De modo

simples e direto, a mobilização de cada um destes traços produz a dinamização

inicial que auxilia na movimentação menos previsível do circuito de arte (ou seja, é

importante instaurar estados não-lineares de imprevisibilidade, risco,

vulnerabilidade) – não aceitar os modelos a partir do automatismo de sua

distribuição e oferecimento, ter em conta a presença de redes de interesse de

diversos graus implicadas em qualquer deslocamento, atentar aos paradoxos que

remetem ao corpo vivido e seus ritmos próprios. Claro que não se trata de fórmula

ou cartilha a ser aplicada, mas sim de determinantes constitutivas de um dispositivo

de intervenção e construção de espaços de deslocamento e atuação frente a um

contexto dado (que necessariamente nos inclui entre seus atores). Daí que é preciso

ter em conta, no campo da arte – sobretudo na perspectiva neo-liberal de hoje, em

que facilmente se articulam valores do capital corporativo com a área cultural – a

prática de desconstruir toda a sorte de modelos e processos que constituem o

circuito de arte, desnaturalizar o próprio circuito (não tê-lo como pronto ou acabado),

uma vez que suas configurações respondem inequivocamente a um certo estado de

coisas. Do mesmo modo, é importante politizar a rede de relações que o constitui,

entendendo que cada um dos participantes desse circuito é atravessado por linhas,

feixes, nós, etc., de modo a recuperar assim possibilidades de tecer outras

conexões, desfiá-las, atar e desatar nós, movendo-nos em grupos e coletivos,

propondo alianças ou produzindo desvios. Finalmente, as questões envolvidas em

dispositivos arte&vida sobretudo submetem o fazer a uma série de ritmos próprios,

com importante papel de constituir resistência às forças que impõem à arte uma

existência ‘fora dos corpos’, capturada por dinâmicas outras – é interessante pontuar

aqui o comentário de Robert Smithson, recuperado por Guy Brett: “a existência do

artista no tempo vale tanto quanto o produto finalizado. Qualquer crítico que

desvalorize o tempo do artista é inimigo da arte e do artista”; aqui, a arte é afirmada

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como “pensamento vivo”219, incorporado – envolvendo também o outro, retirando-o

de sua condição de espectador passivo.

Os três termos em destaque funcionam como “palavras de ordem”220, no sentido de

fomentarem a produção de significados ao continuamente indicar operações de

‘análise e desmontagem do circuito’ como prática que produz frestas nas tramas: é

daí que podem surgir dispositivos de atuação em conjunta articulação com as

poéticas que os animam. Ou seja, se propomos aqui a discussão da construção da

figura do artista a partir dos processos de investigação e desenvolvimento

elaborados em diversos gestos de intervenção, é porque há o cuidado de não deixar

escapar algo da irredutibilidade do poema, uma vez que “a singularidade do

pensamento” (o poema) não pode ser substituída pelo “pensamento desse

pensamento” (a filosofia)221. Em cada um dos tópicos que se seguem encontram-se

comentários que procuram apontar exatamente os locais de entrelaçamento e

passagem entre os diferentes papéis e lugares do circuito, indicando a permanência

do poema e do signo plástico/poético como elementos irredutíveis que contaminam

e aceleram o campo com os ingredientes do deslocamento.

(a) artista como agenciador

Trata-se aqui de pensar a possibilidade de produzir articulações e deslocamentos

que permitam o trânsito – de idéias, problemas, obras, artistas, eventos, etc. –

através do circuito de arte, não só em suas principais articulações como também em

beiras e limites (é importante a atenção com seu lado de fora). Tais operações

somente são viáveis a partir de uma compreensão do ‘sistema’ ou ‘circuito’ de arte –

219 Guy Brett refere-se a Robert Smithson, “A sedimentation of the mind: Earth Projects” (1968) in Jack Flam (Ed.), Robert Smithson: The Collected Writings, Berkeley, University of California Press, 1996, p. 112. Cf. Guy Brett, “Introduction”, in Carnival of perception – selected writings on art, London, inIVA, 2004, p. 18. 220 No sentido proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, não de caracterizar o enunciado no imperativo, mas de enfatizar a “relação de qualquer palavra ou enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (…) As palavras de ordem [remetem] (…) a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma ‘obrigação social’.” Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995, p. 16. 221 Alain Badiou, Pequeno manual de inestética, São Paulo, Estação Liberdade, 2002, p. 42.

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é interessante como esta noção se impôs com relativa facilidade, a partir da arte

conceitual, indicando a influência no tecido social de algumas das questões trazidas

pela cibernética, a partir dos anos 1950. Ao se atentar ao ‘sistema’ ou ‘circuito’,

necessariamente está em jogo uma compreensão de seu funcionamento ou

dinâmica, já que “a própria idéia de ‘circuito’ já traz em si a idéia de ‘deslocamento’:

(…) Não que se queira aqui discutir o deslocamento disto ou daquilo, mas perceber

deslocamento como movimento ou estado de coisas com o qual se trabalha”222. A

questão seria, portanto, pensar “o circuito da arte, ou seja, quais os trânsitos que se

estabelecem através de seus vários ‘nós’, entre as diversas componentes do

sistema” no sentido de intervir na presente “economia do sentido ou do significado

da obra e seu jogo de relações”: assim, nesse jogo, produz-se algo da ordem do

imprevisto, em outra ordem rítmica.

Deslocar o circuito só pode ser pensá-lo, utilizá-lo, reconfigurá-lo para mais

uma intervenção – redesenhá-lo. Há aí uma imperatividade do presente:

funcionamento e permanente atualização. Um circuito não tem futuro, só o

presente de seus usos e deslocamentos aqui e agora. Entretanto uma

dimensão virtual se faz presente na medida em que mobiliza possibilidades

de seu programa. Enquanto for capaz de viabilizar encontros e conexões um

circuito permanece existindo; sem isso, cristaliza-se, hibernando até sua

próxima possibilidade conectiva. Sejam dinâmicas de grupo, coletivos,

revistas, laboratórios, a eficiência das mutações propostas por todas estas

possibilidades de intervenção se dá na medida da habilidade de se perceber

conexões entre as coisas, mantendo sua capacidade vibratória de produzir

desvios e redesenhar – ainda que momentaneamente – seu mapa de

ligações ou – de modo mais perene – impor um novo traçado para os

processos, fazê-los literalmente passar por aqui. Assim, circuito é também o

informe, o redesenho, o ultrapassamento de limites olhando para fora de si no

exercício de uma voracidade conectiva. Talvez aqui, nesse voltar-se para o

exterior, se encontrem pistas estéticas: o êxtase sensorial se dá sempre como

222 Faço aqui referência a um texto de minha autoria: Ricardo Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, disponível em http://www.videobrasil.org.br/14/port/circuito.pdf. V. Anexo Textos

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o próximo link ou conexão – ao mesmo tempo consumo e transgressão, pois

as ligações em um circuito se dão sobretudo entre heterogêneos (relações,

afinal): a diferença é a partícula que acopla. Seja ‘oficial’ ou ‘alternativo’, tudo

são circuitos – diferindo entretanto em termos de amplitude, maleabilidade,

alcance e fluência das conexões, potencial de auto-remissão que busca valor

em si, na qualidade das conexões (isto é, ligações fortes, fracas, estáveis ou

instáveis, conforme o caso).223

Para o artista como agenciador trata-se de trabalhar a emergência do sentido a

partir de uma compreensão sensível, sensorial, de tantos incessantes

deslocamentos, trabalhando em prol de sua aceleração, desaceleração,

ralentamento, desvios, etc. A percepção torna-se mais aguda ao flagrar “perceptos e

afectos”224 irrompendo em diversas etapas e camadas dos dispositivos de circulação

– tem-se uma estética de deslocamento do evento como dispositivo de seu

reviramento e construção da intervenção. É claro que se poderia apontar que tal

presença do circuito ou sistema como protagonista no jogo da arte não estaria

efetivada sem que profundas transformações estejam em curso no campo social –

por exemplo, presença de uma “esfera pública informático–mediática”225 (indicativa

da atual crise do espaço público) e de uma economia globalizada: instala-se uma

ampla mudança nas relações entre a arte e sua dimensão de recepção. Por um

lado, a “tirania do público” aponta para a diluição do poema em favor de interesses

privados corporativos – cabe apontar para o desenvolvimento de modelos para

minimamente transformar o público passivo em agentes efetivos de seus processos

(educação, mediações, etc.); por outro,

“abre-se o caminho para uma compreensão política das dinâmicas afetivas,

quando se tem a amizade como forma política de construção da proximidade

na distância, enfatizando as membranas e regiões de contato e agrupamento

entre sujeitos singulares e acreditando no potencial transformador de tais 223 R. Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, op. cit.. 224 A terminologia é de Gilles e Deleuze e Félix Guattari: “As sensações, perceptos e afetos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido”. Cf. O que é a Filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 213. 225 Expressão de Pierre Lévy.

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processos (nada de amizade fraterna cristã, pacto de sangue ou intimidade

compulsória com o poder: o que se quer aqui é o trânsito afetivo como política

de alianças entre aqueles que vibram na dimensão de um combate que é

aquele da dinâmica produtiva das ações coletivas)”.226

(b) artista como curador

Trata-se aqui de trabalhar de modo específico a construção do evento (mais do que

seu deslocamento) em suas dimensões plásticas, táteis, sonoras e discursivas,

agregando então seu inevitável caráter ‘instalativo’ – cada exposição é, a seu modo,

uma ampla instalação em que o visitante é envolvido multi-sensorialmente em uma

estrutura que o acolhe e que ultrapassa os limites de cada obra individual. Tudo ali –

arquitetura, dimensão discursiva, possibilidades de circulação, estratégias de

montagem dos trabalhos, etc. – é portador de interface sensível, elemento sígnico,

sinal na construção de sentido pretendida pelo evento. O curador se põe a manejar

diversos dispositivos de linguagem plástica e conceitual, entre os quais as obras.

Está em jogo uma ampla pragmática das relações institucionais, em que os diversos

personagens ali envolvidos desenvolvem negociações – com a cautela de quem

sabe que nesta trama já se produz estruturas de sentido e é preciso saber que tipo

de evento se está construindo. David Medalla, por exemplo, ao propor em 2000 a

London Biennale (autodenominando-se seu “fundador e presidente”), tomou o

cuidado de desenvolver uma dinâmica interna própria regulando os contatos e

comunicações entre os participantes – tal dinâmica, que sem dúvida incorpora

elementos de linguagem experimentados e desenvolvidos por Medalla ao longo de

seu percurso como artista227, revelou-se como decisiva para o funcionamento do

evento:

226 R. Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, op.cit.. Cf. Francisco Ortega, Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002. 227 É importante lembrar que David Medalla já havia coordenado em Londres a galeria Signals (anos 1960), tendo depois iniciado o grupo de “exploradores transmídia” Exploding Galaxy, atuado junto ao coletivo Artists for Democracy (anos 1970), e trabalhado junto a grupos como Octetto Ironico, Gay Galaxy, Synoptic Realists e Mondrian Fan Club (anos 1980/90). Cf. Guy Brett, “Pré-história e proposta da Bienal de Londres”, Rio Trajetórias, catálogo, Rio de Janeiro, 2002.

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“A Bienal de Londres ocorrerá entre 1º de maio e 31 de agosto de 2000, por

toda a cidade de Londres. Durante este período, os artistas se encontrarão

toda segunda-feira à noite, de 18hs até meia-noite, em frente à Estátua de

Eros em Piccadilly Circus, Londres, para informar o público acerca de suas

exposições e eventos, através da distribuição de flechas impressas com

informações relevantes (datas, horários, rotas de ônibus e estações de metrô)

para o público interessado. O público amante da arte será encorajado a trazer

flores (reais, secas, virtuais, artificiais, etc.) para dar para os artistas cujos

trabalhos tenham lhe agradado. Vamos reunir todas estas flores em um

bouquet, fazendo-o flutuar no Rio Tâmisa em Tower Bridge no último dia da

Bienal de Londres.”228

Nesta discussão acerca da figura ou imagem do artista como dispositivo de atuação

ou intervenção, está igualmente implícito o debate sobre os limites e contornos da

obra de arte – seja contido nos limites físicos do objeto ou estendendo suas linhas

ao desenho do evento, sempre se há de considerar por onde estão passando afinal

as determinações de ordem sensível e conceitual que indicam a construção, ali, de

um espaço de problemas e contabilizam séries de efeitos indiretos a partir da

irredutibilidade do poema à qualquer estrutura de captura. Não é difícil perceber que

o evento proposto por Medalla se desenvolveria de modo diverso se fosse mediado

por um ‘escritório central de produção’ ou mesmo pela estrutura hiperftrofiada de

uma grande instituição – não haveria como fugir à inevitável burocracia, hierarquia

de cargos, pressões de patrocinadores coorporativos, construção da imagem do

evento através dos departamentos de marketing, etc. Quando David Medalla

contamina “a linguagem do dirigente institucional com a mesma dimensão erótica e

sedutora que imprime em seus trabalhos”229 não se trata, é claro, de um capricho do

artista mas da consciência da que cada uma das mediações colocadas em jogo na

construção do evento contribuem na constituição de seu perfil e caracterização de

linguagem – possibilitando a produção de alguns dispositivos, inviabilizando outros.

228 David Medalla, “London Bienalle – statement”, 2000. 229 Ricardo Basbaum, “O artista como curador”, Panorama da Arte Brasileira 2001, São Paulo, Museu de Arte Moderna, 2001, p. 38.

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174

É importante deixar claro que, dentro da construção do evento, o formato exposição

é apenas um dos modelos possíveis de utilização – é sempre interessante deslocar

espaços e procedimentos, a partir do momento em que as propostas de trabalho se

superpõem aos contornos do evento mesmo, exibindo pontos comuns em que se

operam passagens, transições, reverberações. Tanto faz se a iniciativa parte do

artista, curador, produtor ou diretor de instituição – quando há a possibilidade de se

manejar com cuidado os diversos parâmetros de configuração do evento, são

produzidos desvios que se espera produtivos. Jens Hoffmann, por exemplo, é um

dos agentes do circuito de arte contemporâneo que advoga por “uma forma mais

radical de curadoria (…) que questiona e investiga o próprio conceito de curadoria e

todo o sistema subjacente à produção de exposições”230: em sua prática tem

trabalhado elementos de indiscernibilidade entre as posições do artista e do curador,

dedicando-se à pesquisa de diferentes formatos. Aqui fica claro que todos os

diversos papéis dentro do circuito de arte configuram-se como práticas, envolvendo

procedimentos de graus diversos que efetivamente vêm sendo gradativamente

flexibilizados – é decisivo que os agentes preocupados com a elaboração cuidadosa

de dispositivos de atuação (está claro que não se trata apenas dos artistas) atentem

para a dimensão rizomática que torna inseparáveis as conexões entre o poema e

suas mediações; sempre, sem a devida intervenção nas camadas mediadoras não

se produz a espacialidade adequada à sua emergência.

(c) artista como crítico

O texto de artista tem despertado interesse crescente – sendo, inclusive, agora

ordenado sob essa rubrica – não por revestir-se de importante caráter documental

ou por trazer de modo claro questões trabalhadas pelos artistas em suas pesquisas,

mas por indicar com evidência a dimensão sensorio-conceitual da criação artística.

Ou seja, a especificidade do campo contemporâneo das artes visuais não mais

residiria na busca da pureza da visualidade, mas na riqueza de seu tecido

contaminado das mais diversas operações que trabalham a articulação entre

230 Jens Hoffmann, “A exposição como trabalho de arte”, in Concinnitas, Rio de Janeiro, Instituto de Artes/UERJ, nº 6, julho 2004, p. 20.

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175

discurso e visualidade. É na crescente elaboração – que se torna mais e mais

complexa – das relações entre um fio discursivo particular e diversas manobras que

atendem às ações próprias do aparato sensorial sobre o mundo, que se torna

possível a modalidade de problematização característica da arte231. Logo, a

utilização da ferramenta discursiva reveste-se de importância enquanto recurso

decisivo para a atuação do artista contemporâneo, uma vez que seus gestos de

intervenção não escapam à mediação conceitual – claro que todo o problema está

nas modalidades desta articulação e todo o esforço na utilização deste recurso pode

vir a se perder caso seja mobilizado de forma improdutiva (isto é, hierarquizando de

forma logocêntrica discurso e visualidade, desmobilizando a multiplicidade

interpretativa a partir de uma verdade única, oficializando a arte a partir das

demandas do poder público e corporativo, etc.).

Se pensarmos nas visitas de Cézanne ao Louvre, para estudar os ‘grandes mestres’,

percebemos como há ali uma consciência da presença de narrativas da história da

arte informando os caminhos de sua pesquisa plástica – ao seu modo, o artista ali

busca intervir em certa trama discursiva, uma vez que suas pinturas tencionam

constituir a potencialidade para produção desvios na teia discursiva: é preciso

perceber que a utilização da especificidade do enunciado por parte do artista não

precisa necessariamente se dar a partir da prática da escrita (ensaística, narrativa,

poética, experimental, etc.), mas principalmente a partir da consciência de seu modo

operativo junto à pesquisa sensorial e plástica – visibilidade e invisibilidade são

também e sobretudo propriedades da escritura.

Só existe a possibilidade de um pensamento com arte (e não um pensamento

meramente aplicado na arte), isto é, um pensamento que seja pura prática,

que seja essencialmente móvel, que exerça-se nos espaços de

problematização provocados pelo choque dos signos plásticos com múltiplos 231 Para a compreensão das relações entre discurso e visibilidade são fundamentais os três pontos da teoria do enunciado proposta por Michel Foucault. Segundo o pensador francês, enunciados e visibilidades estão em “pressuposição recíproca”, são “matérias heterogêneas” (não possuem nada em comum) e estão em estado de “não-relação” (existe um espaço ‘entre’). Daí que somente podem estabelecer uma situação de confronto, de mútuo “combate e captura”. Cf. Michel Foucault, Isto não é um cachimbo, São Paulo, Paz e Terra, 1988, e Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1988. V. Parte A, nota 52.

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enunciados, que crie formas de ação novas e diferenciadas, só há

possibilidade de um verdadeiro pensamento plástico se houver,

inequivocamente, primazia da forma visível sobre a forma enunciativa. As

artes plásticas seriam, deste modo, uma espécie de campo invertido do

pensamento, um saber ao avesso – ou um avesso do saber –,

constantemente pressionando e provocando turbulências no conjunto dos

pensamentos estabelecidos.232

Assim, manifestos, ensaios, textos críticos, proposições, comentários, etc.,

apontariam sobretudo para uma lucidez de utilização da ferramenta discursiva como

tentáculo ativo das propostas de intervenção pretendidas, e aí se inscrevem também

os contornos de determinado dispositivo de atuação sendo continuamente delineado

e re-delineado. É a partir deste espaço intermediário, em que discurso e visualidade

se entrelaçam, que textos podem ser pensados como ‘obra de arte’ – não importa

apenas que a frase seja tornada visual, plástica, com escala, textura, material, cor

ou relevo, mas sim que sua presença se articule com a consciência da existência de

interstícios e frestas, relações a serem agenciadas, dispositivos a construir. Se a

crítica de arte pode ser tomada como “terreno privilegiado da ficção

contemporânea”, convêm exercitar suas possibilidades – tal qual se articulou na

revista de arte item233, por exemplo, como projeto editorial (para trazer aqui traços de

uma experiência pessoal de trabalho coletivo) – deixando-se contaminar:

Que tipo de exercício ficcional é interessante hoje como programa de ação?

Trata-se de compreender as possibilidades das ferramentas de produção do

discurso crítico, articulando-o com as condições do campo da arte (e da

cultura) contemporânea: produzir sempre um encontro estranho, tenso,

sinuoso, divertido, entre textos e trabalhos de arte de modo a confundir e

sobrepor suas fronteiras e limites. Hoje impõe-se um uso da palavra não mais 232 Ricardo Basbaum, Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, p. 29. 233 Revista de arte e cultura contemporânea iniciada no Rio de Janeiro em 1995, da qual fui um dos editores-fundadores junto com Eduardo Coimbra e Raul Mourão. A partir do segundo número, segui como editor junto com Coimbra. A revista foi encerrada em 2003, com a publicação de seu sexto número. As circunstâncias que envolveram a criação da revista e sua relação com o grupo Visorama (que a precedeu) e com a agência AGORA (que a sucedeu) estão comentados em meu artigo “E agora?”, Arte & Ensaios, nº 9, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 85-93.

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sob o modo reativo (em que os discursos são produzidos após os

acontecimentos, servindo apenas para legitimá-los ou criticá-los, sob a forma

do comentário) mas principalmente prospectivo, configurando mais do que

nunca uma forma de ação, produção de espaço e criação de um território.

Neste jogo de espacialidades, crítica e trabalhos de arte estabelecem um fértil

protocolo de confrontações: enquanto que os trabalhos de arte estabelecem

as estratégias concretas de ocupação, lançando-se aqui e ali sob a forma de

objetos, imagens, instalações, performances, etc., o discurso crítico tece suas

linhas através de todas essas obras, propondo jogos narrativos ou anti-

narrativos de reordenação e condução do pensamento. Mas não basta ocupar

com invenções e experimentações visuais e discursivas este imenso campo

de vertigem verbal-visual: a atualidade nos convida a agenciar esta produção

com as demandas da vida e da cultura, colocando em jogo a fabricação

transitória de identidades, a intervenção em contextos locais, o

estabelecimento de virtualidades e coordenadas de ação, o desenvolvimento

de circuitos, membranas e regiões de contato. É aí que entra em cena a

revista, como suporte estratégico de um projeto que se quer necessariamente

coletivo em sua demanda. Escrevo a partir de um determinado circuito, o

contexto da arte brasileira, com suas idiossincrasias e particularidades, limites

e potencialidades. Dentro desta localização geográfica e cultural chamada

Brasil é necessário um esforço imaginativo e ficcional para produzir um jogo

de consistência discursiva como parte de um projeto efetivo de intervenção –

que se torna visível a partir das obras produzidas pelos artistas

contemporâneos – e entrelaçamento com o panorama da atual globalização e

transculturalidade.234

Hoje, um projeto de intervenção crítica que leve em conta os limites da escrita em

sua articulação com a obra de arte, em sentido amplo, haverá de lidar com uma

escrita tátil (o agregado obra de arte + texto), compreender a organização

espacializante do componente discursivo (desde a página em branco de Mallarmé

234 Ricardo Basbaum, "A crítica de arte como um terreno privilegiado da ficção contemporânea", sinopse de palestra no Foro Internacional de Revistas de Arte Contemporáneo, Cidade do México, 1999. Texto não publicado.

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178

até a operação de “[abstrair] propriedades do fluxo da experiência e fixá-las em

forma espacial”235), evidenciar a presença do dispositivo operacional que se

configura a partir do agregado obra + texto (e os efeitos daí decorrentes), operar a

partir da dupla captura sensação/conceito (percepção em rede).

A emergência do poema, em sua complexa articulação com o campo em que se

insere, e ao mesmo tempo em sua irredutibilidade (ainda que parcialmente

determinada pela dinâmica do contexto), deflagra um potencial de atuação enquanto

dispositivo reorganizador de seu entorno imediato. O artista que aí se forma percebe

a si mesmo como dispositivo operacional que continuamente se re-organiza, no

sentido de estender sua prática pelos vários papéis e mediações propostos pelo

circuito. Diante de tanta dinâmica, não há porque fixar qualquer diagnóstico de modo

arbitrário – de tal forma que estes comentários devem de ser mantidos em aberto,

em contínua confrontação com as coisas. É apenas para efeito de memorização,

compactação e organização do pensamento que alinho aqui sete tópicos em torno

dos deslocamentos rítmicos do artista em sua errância pelo circuito (sempre em

defesa da possibilidade do deslocamento):

(1) condição contemporânea do artista que excede à produção de objetos ou

obras, exibindo fluência, deslocamento e mobilidade como valores: trata-se

de desenvolver ferramentas de trabalho que viabilizem esse deslocamento;

(2) prática que se caracteriza pela ação e intervenção sobre os circuitos

mediadores de sua funcionalidade e atuação: deslocar-se através de relações

e redes, compreendendo a si próprio como resultado dessa dinâmica;

(3) atuação na construção de eventos e situações, através da produção e

administração de suas diversas camadas de articulação e mediação;

235 David Harvey, Condição pós-moderna, São Paulo, Edições Loyola, 1992, p. 191.

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179

(4) atenção aos jogos de linguagem (tecnologia da imagem, corpo,

espacialidade, texto, etc.) que articulam passagens pelas áreas de

continuidade que resultam na construção do evento e suas mediações;

(5) deslizamento dos traços do poético para outros setores da construção do

acontecimento artístico, contaminando o ambiente institucional e produzindo

re-invenções de papéis e instâncias;

(6) buscar a dimensão sensorial própria da experiência do contexto como

processo, tendo a montagem de situações e a percepção das estruturas do

sistema como experiências vivenciais. Fenomenologia do conceito: “pôr-se a

si mesmo e pôr seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado”236.

(7) dupla percepção da obra, em sua autonomia e em suas ligações com um

campo, circuito ou sistema: há uma outra sensorialidade operando nos

corpos, a ser exercitada.

Não se trata aqui de preparar um programa ou plataforma para ações, mas de

mapear espaços com indicação de frestas e caminhos, articulando a possibilidade

de percorrê-los com a modalidade da caminhada a ser empreendida – mas é preciso

perceber que aqui se trabalha tanto com percursos percorridos como a percorrer, ou

seja, trata-se de linhas já trazidas para junto de um fazer, o qual continuamente

traça e re-traça o diagrama destas circulações: trabalhar um presente de ações, um

fazer concreto, sem firmar promessas que adiem para um perfeito futuro urgências e

demandas – de fato o mais interessante seria os contornos da obra e do artista

como dispositivo de ação confrontarem-se e reforçarem-se continuamente.

* * *

É certo que o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?

somente se materializou a partir de uma possibilidade de agir como artista que

236 Éric Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, op. cit., p. 87.

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180

escapa em muito do isolamento e das atribuições de uma prática de estúdio: pois o

trabalho se inicia de fato quando o objeto é lançado em circulação – antes, temos

apenas uma peça interessante de escultura-conceitual; depois, uma série de

situações sendo deflagradas a partir do trânsito efetivo do objeto por um circuito.

Está mesmo inscrito no diagrama do projeto – em sua etapa nº 8 – a tripla questão,

visando problematizar artista, espectador e projeto NBP: trata-se então de uma

proposta de trabalho que visa tocar em certos limites habitualmente estabelecidos

para buscar sua operatividade enquanto “investigação acerca do envolvimento do

outro como participante em um conjunto de protocolos indicativos dos efeitos,

condições e possibilidades da arte contemporânea”237 – e é importante que se

perceba aqui a ênfase na alteridade (envolvimento do outro) como jornada que

persegue não apenas a presença de ela(s) e/ou ele(s) enquanto espectador

participante, mas também quer encontrá-las(os) enquanto outro artista, outro projeto:

sim, realizar algo não seria concluir, mas continuamente reinventar. Logo, somente

seria possível implantar um projeto como Você gostaria…? na medida em que uma

atenção pudesse seguir seu curso, em escuta dos sinais para um contínuo reajuste

do papel do artista a ser ali desempenhado: é preciso compreender a presença de

um circuito ou sistema, ali inserir-se e aceitar deslocamentos; perceber a

importância da construção de encontros, desde os previsíveis aos fortuitos,

tornando-se receptivo aos contatos e respectivos contextos; trabalhar na construção

das possibilidades de estabelecimento de relações que sejam produtivas,

contribuindo para a constituição experiências; reagir ao que é produzido de modo a

fomentar certo embate que indica a demarcação das posições em jogo para permitir

flexibilizá-las; trabalhar modos de recepção do que é realizado, com utilização de

ferramentas discursivas; mover-se pelas bordas em direção a situações que em sua

grande maioria desafiam a temporalidade habitual do circuito de arte, tentando

discernir formas de abordagem e ritmos de captura de ‘resultados’; etc. Sobretudo é

preciso descobrir como assimilar os efeitos a cada situação, ou seja, trabalhar um

repertório de reações, afirmando mesmo o querer ser sempre surpreendido. Em

Você gostaria…?, o processo relacional parte de um reforço e endurecimento das

linhas demarcatórias das diferentes posições: é preciso inicialmente exagerar na 237 Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, guia de instruções para participantes do projeto, op. cit..

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181

ênfase do que será posteriormente colocado em processo de dissolução (ao menos

enquanto possibilidade potencial) – é assim que se recorre, já no título do projeto, a

categorias que a princípio poderiam soar como inadequadas para uma proposta que

gostaria de mover-se para fora delas. Se há referência a uma “experiência artística”

é porque se ambiciona escapar por territórios e linhas de fronteira do campo da arte,

acreditando neste trânsito pelas bordas como o principal modo de pensá-lo; se o

projeto se refere ao artista enquanto propositor é no sentido de deslocá-lo da

habitual posição de controle sumário de sua produção para um lugar de atenção e

conversa, realocando-o em certa lateralidade em relação aos efeitos do trabalho de

modo que possa também ser arrancado de si em direção a outro desenho de sua

figura; se há a necessidade de um participante, este será envolvido em processos

que somente serão efetivados se ocorrer sua conversão para modalidade ativa, com

vontade de produzir algo que jamais será completamente reduzido aos limites do

projeto e que efetivamente revelam tanto escapes diretos como a investigação de

linhas não apenas do contorno da proposta mas também do contorno de si. De

modo que o aumento de espessura dos papéis envolvidos se dá de fato como

incremento de complexidade em direção à deriva.

O artista requisitado por Você gostaria de participar de uma experiência artística? é

também alguém que habita posição de gerenciamento e administração, envolvido na

garantia do prosseguimento das atividades e continuidade do projeto – sempre

atento ao próximo passo. Esta é uma maneira de manter-se em aberto, procurando

fazer com que cada nova experiência de cada participante atue no sentido de

cultivar tais espaços: trata-se de particularidade do modo de recepção, que prefere

trabalhar cada experiência a partir do quanto ela efetivamente pôde eliminar de

cristalizações e acúmulos – ao invés de resultados de conquista ou respostas fixas.

Exercício constante de buscar novos posicionamentos que colaborem na

manutenção de áreas em aberto – se há algo que pode em certo momento encerrar

a dinâmica de Você gostaria…?, seria precisamente a saturação, incapacidade de

manter o padrão de reação que sempre reconquista as frestas necessárias à sua

continuidade. Ocorre que cada participante, na elaboração e realização de sua

experiência, produz resultados que são de modo concreto obras realizadas, dotadas

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182

de autonomia própria – isto é certo: sejam textos, fotografias, vídeos ou outros

objetos e formas de ação, cada um destes elementos pode encontrar modos de

funcionar para além do contexto específico de Você gostaria…?. Claro que este

trânsito dentro e além de Você gostaria…? dependerá de como cada participante irá

organizar suas ações – mas certamente é possível compreender cada produção

realizada enquanto elemento que pode buscar funcionamento próprio e insinuar-se

por outros contextos. Ao mesmo tempo, a presença do objeto de Você gostaria…?,

assim como a rede de conceitos aí ativada, como deflagradores daqueles processos

de produção indica estarmos aí frente a uma situação mais complicada de autoria

compartilhada: pois o que é efetivamente realizado em cada experiência decorre de

certa materialidade contextual própria dos participantes, da qual faz parte –

enquanto intruso a instaurar procedimentos, questões, problemas, etc. – NBP, via

Você gostaria…?. Resulta algo como inter-autoria, que deve ser abordado levando

em conta elementos de ambas a situações – não há como se anular uma delas em

detrimento da outra, como se estivéssemos tratando de resultado unidirecional

somente; não existe como ali se pensar em NBP sem atentar aos desvios a que foi

conduzido, os confrontos a que foi submetido, os acréscimos e subtrações; não há,

ao mesmo tempo, como compreender cada experiência sem atentar ao modo como

o objeto NBP foi recontextualizado ali em ambiente absolutamente diverso do

espaço protegido da galeria ou museu e então descobrir a chave de outro processo

também em andamento, trazido à cena pelo participante. Serão assim duas vias a

serem percebidas em paralelo – duplo acontecimento, protagonizado pelo

participante (um) e pelo objeto (outro) –, mas que estão ali por aceitarem e

reconhecerem a importância de se cruzar em interceptação mútua, evidenciando ali

naquele contexto claros limites produtivos a partir da impossibilidade de se

perfazerem isoladamente: recorrem então um ao outro, em atmosfera de conversa e

combate. Daí Você gostaria de participar de uma experiência artística? indicar a

presença de um artista que se reformata todo o tempo, sob o desafio de re-elaborar

ferramentas preestabelecidas – aceita-se a oscilação constante entre o reforço de

certas linhas e sua dissolução, acreditando que o ritmo lento desta dinâmica (“ir e

vir, ir e vir, ir e vir são parte do processo – ritmos oceânicos”238), – efetivamente

238 Ricardo Basbaum, “Sistema-Cinema”, op. cit..

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183

coletiva e pública – construirá outro lugar – também coletivo e público – que aos

poucos se irá habitar (ou melhor: já ali estamos, faltando-nos, entretanto, recursos

para melhor percebê-lo).

Bolocs 6, 7

polifonia, dialogismo, crítica, escultura social, rede, comunidade

Você gostaria de participar de uma experiência artística? propõe o desenvolvimento

de uma troca entre participantes e artista propositor cuja imagem mais próxima seria

a de uma conversa: diálogo construído em torno de algo, sujeito aos ritmos e

circunstâncias do momento, fluindo de acordo com a disponibilidade dos

interlocutores e sendo continuado a partir de sua vontade e insistência. Vale à pena

relembrar que o próprio título do projeto é estruturado enquanto pergunta: você

gostaria…? A resposta poderá ser negativa, é claro, e então nada ocorrerá – esta

modalidade de trabalho jamais poderá se impor diante da recusa ou da falta de

interesse, que indicariam a evidência da ausência de qualquer traço ou elemento de

passagem entre proposta e possível participante; e então, não haverá porque insistir

e mais correto será buscar outros. Mas quando há encontro recíproco de interesses

e curiosidades (“sim, gostaria”) pode-se iniciar a conversa, abrir-se as trocas e

conduzir o diálogo que irá se impor e será organizado no âmbito do projeto. Tal

modalidade de conversa jamais poderia ser privada, propriedade de um

compartilhamento exclusivo entre artista e participante – e de fato isto iria

basicamente em sentido contrário às principais diretrizes do projeto –, sendo então

direcionada para domínio aberto, acessível aos debates de uma esfera pública:

trata-se de elaborar uma área aberta de trocas, em que a movimentação dos

interlocutores já é constitutiva do projeto; ou seja, ao desenvolver cada conversa

com participantes, o artista sempre irá conduzi-la sob a perspectiva que se está em

lugar de desabrigo em relação ao espaço de controle pessoal dos sujeitos

envolvidos, e que existe ali instaurado um local aberto às tramas do mundo e aos

fios de vários circuitos em entrecruzamento. As conversas são arrancadas sempre

(há suavidade, há violência) de um abrigo seguro e movimentam-se nesta área outra

imersa em dinâmica em que tudo é potencialmente problematizável por muitos.

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184

Curiosamente, a instauração da conversa – verdadeiro início de um projeto que sem

ela se encontraria reduzido a um objeto inerte entregue à contemplação – se faz sob

o signo do problema: a troca entre artista e participante somente se dá como jogo de

mútua provocação, no sentido se abrir novas perguntas a partir da pergunta-convite

inicial. Quando interrogações são produzidas em série – e então pergunta-se a partir

da pergunta – tem-se a conversa (infinita) que jamais conduz à soluções de curto

prazo, mas à lapidação do problema como jóia preciosa de lento processamento.

Percebe-se em “O que é NBP?”239 e Você gostaria de participar de uma experiência

artística? a utilização do mesmo singelo recurso de pontuação ‘?’, mas de modo a ali

a revelar todo seu insuspeito poder: não apenas o leitor terá que produzir diferente

entonação de fala (musicalidade) diante do ponto de interrogação, como se verá

lançado em território coletivo em que a conversa inicial nunca cessará – parece ser

mesmo como condição de seu funcionamento, que estes projetos estabelecem sua

continuidade a partir da pergunta como ferramenta de abertura, perfuração interna:

Cabe ainda a pergunta, afinal, "o que é NBP?" ? (Não sei se puderam

perceber, mas acabei de enunciar uma pergunta dentro de uma pergunta.

Como responder a tal artefato sintático? Com uma resposta dentro de uma

resposta?) Na primeira vez em que foi enunciada, eu certamente estava

apenas perguntando algo a mim mesmo, que por um 'acidente qualquer de

percurso', veio a público. Está claro que não perguntei antes a vocês "o que é

NBP?". Hoje sim, eu devolvo a pergunta, como pergunta dentro de pergunta,

querendo ouvir, querendo saber, querendo arrancar alguma coisa – como

efetivamente tem acontecido, está acontecendo e acontecerá no projeto que

desenvolvi, estou desenvolvendo e desenvolverei em torno de uma

"experiência artística", em que recebo de volta respostas quanto ao uso de

um objeto NBP (…).240

Quando é dada a partida no funcionamento do projeto, estão bem demarcadas as

posições de propositor (artista) e participante (espectador) – é o primeiro quem

oferece o objeto, aceito pelo segundo; e então têm início as experiências, pelos 239 “O que é NBP?” é um dos textos inaugurais do projeto. 240 Reenvio para Ricardo Basbaum, "(?)? (Pergunta dentro de pergunta)", op. cit..

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vários caminhos de possibilidade existentes, sempre sob responsabilidade do

participante: afinal, o objeto

pode ser usado de diferentes modos e você pode fazer qualquer

coisa com ele: use-o como quiser, da maneira que achar melhor.241

Entretanto, a partir do momento em que as experiências vão sendo concluídas – e a

produção dos participantes começa a tomar corpo dentro do projeto – ocorre uma

importante inversão: ao tomar contato com resultados (textos, fotos, vídeos, áudio,

etc.) de cada experiência realizada, sou imediatamente deslocado para uma posição

de recepção – pois nesse caso os proponentes serão aqueles que produziram as

experiências e as realizaram. Há uma troca de papéis própria da conversa em curso,

e o artista deve então assumir um posto de escuta, atento às emissões que têm

como ponto de partida os relacionamentos estabelecidos por outros com o objeto.

Vê-se neste deslocamento um rearranjo necessário para que o artista assuma outro

posicionamento e seja capaz de ser surpreendido pelos gestos produtivos daqueles

que em momento anterior foram provocados por sua ação deflagradora: seriam

novas sensações a protagonizar o projeto, desvios conceituais em relação à

proposição inicial, diferentes contextos a ambientar as realizações – nada que

estivesse a priori presente no espaço familiar ao artista, a partir do qual o projeto foi

lançado. Inversão estratégica, no sentido de buscar reposicionamento; requisitar a

alteridade necessária; escapar de qualquer acumulação desmedida de sentido – e

para estar preparado para a recepção do próximo lance. É muito interessante

atentar para o aspecto receptivo de Você gostaria…?: o projeto se coloca de modo a

ser capaz de positivar todo e qualquer lance produzido em retorno à provocação

proposta – seja contra ou a favor, qualquer gesto em retorno é acolhido como ação

de se conduzir o projeto a seu limite, testando sua capacidade de reagir às

conversas. Isto pode incluir a duplicação do objeto (Armando Coelho e Orlando

Lemos, Goiânia, 1999), doação a um museu (Vaca Amarela, Florianópolis, 2003),

sua destruição (Laboratorio 060, Cidade do México, 2006) ou desaparecimento (e/ou

Orquestra Organismo, Curitiba, 2007), por exemplo – algumas experiências

241 Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..

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186

contundentes que testaram limites e obrigaram (como sempre ocorre) a exercícios

de reinvenção, em que é preciso construir o sentido das intervenções,

reconfigurando o projeto a partir de cada uma. Claro que este sentido a ser

agregado a partir de cada experiência se faz também em modo de embate:

participante x artista – este, não deve ter jamais a última palavra, neste confronto de

posições a partir da qual se pode recuperar os lances em jogo, já que isto seria

trazer para a posição do artista aquele privilégio (que se gostaria de dissolver) de

controle das interpretações possíveis. Em uma conversa, ninguém necessariamente

terá a última palavra, pois o que se procura é sustentar a reciprocidade das

provocações mútuas, sem vencedor ou vencido. É preciso confessar, enfim: cada

nova experiência realizada e documentada por um participante chega aos olhos do

artista como verdadeiro enigma a ser recebido e recepcionado – e não

necessariamente resolvido, pois um enigma não se reduz à resposta, mantendo-se

como provocação em aberto: é sempre fascinante querer buscar os caminhos de

como aquilo (texto, fotografia, vídeo, áudio, etc.) foi construído, proposto, realizado:

tanta intensidade, vontade e envolvimento partem de onde, de quem, com que

propósitos, qual a intervenção pretendida? Multiplicam-se perguntas (dentro de

perguntas); é preciso construir uma (nem sempre fácil) aproximação à proposta e

mergulhar em universos de referências múltiplas, que escapam veementemente ao

mundo da arte – conduzindo sempre a um lugar de fronteira, em bordeamentos que

sempre voltam. De fato, o que Você gostaria de participar de uma experiência

artística? produz, em seus muitos resultados? Somente – mas isso não é pouco –

aproximações à alegria do enigma, perguntas multiplicadas, a dúvida irredutível do

poema. É fascinante neste projeto seu desprezo por resultados finais – seu

acolhimento extremo, voracidade que tudo positiva e reverte. As responsabilizações

são recíprocas, de modo que ao ter o objeto em suas mãos, os participantes indicam

rumos e próximos passos; mas a força que se impõe mesmo aí – a arquitetura com

a qual Você gostaria de participar de uma experiência artística? é construído –

garante a continuidade do deslizamento provocativo: nenhum objeto deve retornar,

trata-se de um projeto sem volta. Ser bem sucedido, aí, se dá enquanto

responsabilização do outro pelas falas produzidas dentro da conversa, destacando

sua importância, revertendo e desviando o risco da unidirecionalidade monótona do

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187

artista – trazendo sempre muitos ao primeiro plano. Produzir uma obra não pode se

circunscrever a uma interpretação de si, mas ousar deixar-se capturar pelo outro

através de variados formatos – lançando-se para todos (no sentido de ampla

disponibilização, não de totalidade).

Nesse sentido, Você gostaria de participar de uma experiência artística? apresenta-

se como projeto que se franqueia a diferentes vozes a partir de seu próprio sistema

de funcionamento – convite que parte do artista diretamente a interessados, abrindo

possibilidade de conversa e instaurando incessante problematização – a qual se

espera que escape aos limites propostos e instaure novo desenho ou diagrama a ser

reapropriado não somente pelo artista como, sobretudo, por outros interessados

quaisquer242, já que se implanta área pública ou coletiva e é aí que se dará a

captura. E este é também um lugar afim à crítica de arte, no sentido de um

oferecimento generoso a interpretações e reinterpretações – se a conversa

instaurada pelo projeto (embates artista x participantes) efetivamente já se acumula

em volume que se impõe de forma própria, uma das demandas instauradas é deixar-

se conduzir pelo fio das problematizações propostas em direção à captura pelo

signo do enigma de cada experiência. À primeira impressão, pode parecer que as

produções deflagradas por Você gostaria…? deveriam se submeter principalmente à

operação interpretativa do artista – quem afinal resguardaria uma proximidade

máxima de todas as situações elaboradas no âmbito do projeto. E assim a produção

discursiva mais propriamente crítica aguardaria em seu campo a elaboração de mais

este trabalho do artista, para somente então intervir com o aparelhamento crítico

adequado, acionando seus dispositivos e práticas. Entretanto, tal opção revela-se

aqui inadequada, claramente insuficiente, pois Você gostaria…? complica de fato a

operação crítica, reivindicando que igualmente dissolva, pelo seu lado, os contornos

de um território habitual de ação para aventurar-se em regiões limítrofes e zonas de

contato em que se formulam dinâmicas de qualidade relacional tipo arte&vida e

similares – onde certos conceitos devem necessariamente aceitar curvaturas e

242 É claro que qualquer um que se mostrar interessado revela um efeito de eficiência da captura: já não haverá indiferença; e será preciso acreditar na importância desta operação enquanto índice de certas confluências existentes a priori – afinidades com a modalidade de investigação e aventura pretendida.

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188

dobramentos, assim como outros indicar necessidade de reinvenção e adaptação

metodológica. Trata-se de desafio que se impõe, provocando a crítica para além de

sua fixação (narcísica) em relação à figura protagonista do artista – afinal, se este,

por força do projeto desenvolvido, recua para posição lateral, chamando ao primeiro

plano participantes e suas experiências como atores e elementos principais do

processo, também a interpretação (enquanto invenção discursiva) do projeto deverá

reconhecer a importância do deslocamento e construir-se de outros modos frente à

situação. Assim, Você gostaria…? é provocação e desafio (cica & sede243), convite

ao rearranjo e reinvenção (que se faz sempre premente) deste importante lugar de

produção de discurso – tangenciar os contornos de qualquer proposta sem pré-

concepções limitadoras é o que mobiliza tal forma discursiva; e aqui este apelo se

reforça, em dificuldade e desafio, uma vez que o percurso será mesmo através de

membranas, bordas e fronteiras: sem esquecer que aí se insinua de forma veemente

a dupla articulação plástico-discursiva (motor do projeto), que vem somar camada

conceitual ao desafio interpretativo.

Não seria portanto papel do artista em Você gostaria…? concentrar em si o centro

interpretativo do projeto, mas apontar ao menos dois pólos importantes, e fazê-los

portadores de intensidade e interesse: por um lado, as questões particulares do

projeto (logo, de NBP); por outro, as proposições lançadas pelos participantes. O

artista desvia-se do centro, alocando ali outros protagonistas; as interpretações

seguem este pulso e desdobram-se em um olhar sobre a estrutura do projeto e

sobre as participações (duplo olhar) – as oportunidades, na verdade, se multiplicam.

Se o artista opta por compartilhar a responsabilidade interpretativa, isto se deve à

compreensão de que seu papel não pode se fechar no labirinto estéril da auto-

interpretação que se volta sempre para a positivação de seus próprios feitos; a

posição assumida em Você gostaria…? seria a da continuidade da conversa, e isto

implica sobretudo em enfatizar a função fática, conservando aberturas e conduzindo

os episódios em direção à fluência – posicionamento que não deve ser confundido

com qualquer tipo de omissão, uma vez que mover-se da interpretação para a

fluência é sempre mais interessante para o artista quando se trata de dar seqüência 243 Cf. Ricardo Basbaum, "Cica & sede de crítica", in R. Basbaum (Org.), Arte contemporânea brasileira - texturas, dicções, ficções, estratégias, op. cit., pp. 15-27.

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189

aos aspectos produtivos de suas propostas, indicando continuidades. O que se

procura aqui, portanto, é convergência daquilo que é feito pelo artista, produzido

pelo participante, realizado pelo intérprete – efetivamente, possibilidade de produção

de uma vocalização múltipla, verdadeiramente polifônica, a partir de diferentes

lugares e posicionamentos. Claro que esta mistura não será (felizmente)

homogênea, nem harmônica de modo simples – a escuta evocará preferencialmente

experiências atonais, politonais (“produzindo um polivocalismo, um

heterovocalismo”244), etc. – para indicar que estes discursos não se reforçam

diretamente mas exibem descompassos – que o projeto procura assimilar sempre na

procura de reorganizar fluência e continuidade.

Mas a perspectiva que parece interessante, e que se procura colocar em movimento

– ainda que a longo prazo – a partir de tal mistura dinâmica de vozes, timbres e

ritmos, contextualizada por esta dissimetria de lugares diversos de produção de

discursos, se daria naquele campo aberto para acolher a linguagem sob o impacto

de seu exercício plural, de invenção: “a literatura [concebida] como um tipo especial

de linguagem que permite ver as coisas que estão obscurecidas em outros tipos de

discursos, acreditando mesmo que o romance, por exemplo, funciona como um

órgão de percepção”, “é através do literário” que pode ser apreendido “o conceito de

vozes” como “princípio arquitetônico da prosa romanesca”245. Claro que aqui

literatura é o campo de experimentação discursiva que pode aventurar-se por

diferentes modalidades de linguagem, ou seja, tangenciar o discurso crítico e

conceitual, mas também aquelas formas próximas ao poema, às narrativas,

plásticas, sensoriais, etc. Ou, ainda, em outra formulação, amarrando as

possibilidades de articulação desta polifonia enquanto comentários acerca de Você

gostaria…?:

Devido à própria característica coletiva do projeto Você gostaria de participar

de uma experiência artística?, o mais interessante desenvolvimento de tais

comentários se daria a partir da combinação de diferentes vozes, apostando

244 Beth Brait, “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso”, in Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (Orgs.), Dialogismo, polifonia, intertextualidade, São Paulo, Edusp, 2003, p. 22. 245 B. Brait, op. cit., p. 22.

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190

na abordagem polifônica e na constituição de um pensamento coletivo:

investimento na escrita como “um órgão de percepção” (Bakhtin) e na

produção de um corpo conjunto de textos que funcionaria no “modo do

romance”, em que personagens, lugares, gestos e ações constituam uma

narrativa em múltiplos planos, de arquitetura complexa e desfecho

imprevisível.246

Teremos assim uma importante e interessante convergência entre formas de escrita

e modalidades de pensamento, apontando para a construção de um corpo

discursivo em várias frentes – efetivamente, a elaboração de um pensamento

elaborado por diversas vozes, em descontínuo, isto é, em momentos, ocasiões e

contextos diversos, mas coletivo por articular posicionamentos a partir de Você

gostaria de participar de uma experiência artística? ou em derivação ao projeto. A

apreensão deste processo não é imediata e requer o cuidado de uma escuta

continuada – atenta às vozes que se organizam em torno de experimentação

(participantes), interpretação-comentário (discurso crítico) e conversa (artista).

Sobretudo, é importante perceber aqui a importância do deslocamento que aloca os

participantes de Você gostaria de participar de uma experiência artística? no papel

de protagonistas – afinal, é ali que o projeto está sendo de fato pensado, não

enquanto qualquer modalidade de abstração mas como materialidade prática

concreta plástico-discursiva: cada experiência empreendida lida diretamente com a

provocação inicial (“Você [indivíduo, grupo, coletivo, instituição] gostaria de participar

de uma experiência artística? Aceitaria levar para casa o objeto (…) ?”247) e constrói

sua reação a partir de instrumentação própria, mobilizando recursos que lhe são

disponíveis no contexto em que está imersa, etc. Não se trata de seguir instruções

ou uma receita qualquer, movimentar-se de acordo com um programa previamente

estabelecido em que o usuário participante é convidado a manusear botões e

comandos em ambiente imersivo pré-controlado: a experiência que se realiza é de

246 Ricardo Basbaum, texto que abre o item “comments / comentários” do website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?. V. http://www.nbp.pro.br/blog_comentarios.php?critico=78. 247 Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..

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191

outra ordem, no sentido de apontar a constituição da ambiência da experiência a

partir dos recursos de cada participante – pois quando se apossam do objeto, este é

transportado para os locais particulares que lhes melhor convém para ali ser

confrontado com a experiência proposta – a produção das membranas e regiões de

contato a partir das quais a processualidade particular do projeto pode ser

instaurada. Deve-se ressaltar a significação deste primeiro momento envolvido na

proposição das experiências: os participantes são responsabilizados enquanto

elaboradores de suas próprias situações imersivas – se quisermos assim nos referir

a certa singularização de elementos que tornam possível a organização de um

procedimento –; mas pela natureza particular de Você gostaria…?, as áreas de

escape são muitas e o que sempre se pretende (e isto é arquitetado por NBP) é

habitar as bordas, isto é, nem completamente imerso nem absolutamente fora.

Assim, ao instaurar as condições imersivas que lhe convém, o participante

(indivíduo, grupo, coletivo, instituição) estará aproximando o objeto de uma

contextualidade que informa desde logo traços das possibilidade em jogo –

acomodar o objeto em sua própria casa, deslocar-se com ele pela cidade, levá-lo à

praia, mantê-lo em um jardim, conduzi-lo à sala de aula ou reunião institucional,

transportá-lo ao museu: cada situação aqui traz dados de relações possíveis,

hábitos, percursos, locais e dinâmicas de convívio e intervenção. O gesto de instalar

o objeto em situação de ambiência é seguido da produção de membranas, as

regiões de contato (presentes na construção do objeto, mas também trazidas pelo

participantes em sua utilização) que se constituem a partir da reciprocidade de

toques entre participante e objeto – linha orgânica a efetivar a acoplagem: criam-se

as passagens, possibilidade de troca que garantem o trânsito de questões, tópicos,

afetos, problemas, entre NBP e participante (neste instante, quem é quem?). Sem a

intensidade deste trânsito, não haverá experiência, processualidade produtiva, um

ganho qualquer. A partir daí, a possibilidade que se efetiva – na realização mesma

das experiências – será a possibilidade de uma hibridização conceitual (“o objeto

carrega alguns conceitos e eu gostaria que você também os utilizasse. Apesar de

invisíveis, eles são manipuláveis através do uso do objeto”248) em que de modo

concreto o objeto é instrumentalizado a favor do programa de ação trazido pelo

248 R. Basbaum, op. cit..

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192

participante – as manobras podem ser suaves ou bruscas, mas o que sempre ocorre

de fato é o uso, em variadas implicações. Aos poucos, então, o objeto desloca-se

para papel secundário na trama, ao se efetuar a realização da experiência proposta

(“as experiências que você [participante] realizar tornam visíveis redes e estruturas

de mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados

sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a partir de

sua utilização, são mais importantes que o objeto”) – e novos protagonistas serão

aqueles tópicos efetivamente constituídos a partir daí, nos quais se aposta o

potencial de indicar desvios (“transformação durante a experiência”) a partir de sua

percepção como produção de pensamento (a ser também agregado no cômputo de

um pensamento coletivo). Tal processo, enfim, produzido enquanto constituição de

experiência intensiva, deve produzir documentação: sabe-se da dificuldade e

importância em construir o registro adequado daquilo que aconteceu apenas uma

vez, em algum lugar, a partir da singularidade da experiência – pois se trata de

construir acessos àquilo que efetivamente se configura como irrepresentável e

intransferível para além do aqui e agora de sua realização. Desafio, como se sabe,

já amplamente enfrentado pelos artistas experimentais que (anos 1960/70)

construíram obras em escape do circuito institucional, junto às dinâmicas da vida, da

natureza, etc. – e, na constituição posterior da situação expositiva, recriam junto ao

espectador algo do que foi realizado a partir de fotografias, filmes, vídeos, gráficos,

relatos, etc.: o que se tem a partir daí será sempre reconstrução, produção de nova

experiência com utilização do documento e do arquivo.249 É o mesmo problema,

portanto, que deve ser trabalhado pelo participante: construir documentação das

experiências realizadas – e de fato este gesto deve ser arquitetado e resolvido no

âmbito de cada experiência e participação. Há diferentes abordagens e soluções

adotadas e esta é uma das riquezas de Você gostaria...?: não importa a qual

capacidade técnica do participante ou os recursos utilizados – existe diversidade de 249 Artur Barrio é um destes artistas que desenvolvem sua obra em direta relação com o registro e sua incompletude. Segundo o artista, "em 1º lugar, toda e qualquer situação, ao ser registrada, encerra o conteúdo de um momento, portanto, o registro não está condicionado a qualidades técnicas, assim como também não apenas ao conteúdo, mas sim também a todo o comportamento psicológico do operador (...) diante de um trabalho, momento ou situação que geralmente provoca uma série de situações acontecimentos nunca estáticos, tanto física como psicologicamente. (...) pois já que o material empregado em meus trabalhos é precário, não vejo porque o registro tenha de estar ligado a aspectos técnicos perfeitos." Artur Barrio, "Da qualidade Técnica do Registro ou Precariedade" in Barrio, Funarte, Rio de Janeiro, 1978, p. 8.

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193

respostas ao problema, todas igualmente importantes. É significativo mencionar que

a única exigência que de fato endereço ao participante se refere precisamente à

documentação: faça o que quiser, “você pode fazer qualquer coisa com ele [objeto]:

use-o como quiser, da maneira que achar melhor”250, mas não deixe de enviar

documentação das experiências realizadas – pois esta é uma das garantias de que

a conversa artista x participante poderá ser compartilhada por outros em espaço

público (uma vez que os registros devem ser enviados ao site do projeto251,

constituindo um banco de dados acessível via internet). Assim, quando se afirma

aqui que todo o participante de Você gostaria de participar de uma experiência

artística? está efetivamente pensando o projeto, trazendo-o em direção a limites,

testando possibilidades de seu funcionamento – e assim colaborando para a

constituição deste pensamento que se faz através de muitas vozes –, é porque se

percebe a ação de produção de experiências a partir de quatro etapas: constituição

de ambiência (imersão, contexto); instauração de membranas (contato, trocas);

produção de conceitos híbridos (passagens, combinação de elementos trazidos pelo

participante com elementos do projeto); produção de pensamento (registro, relato,

documentação da experiência).

Conceber a produção de um processo coletivo de pensamento – que não possuirá

nada em comum com um bloco homogêneo e uniforme, pois aqui se trata de

resguardar localizações, vozes e ritmos diversos para extrair daí os contornos de

uma ação conjunta heterovocal, multitonal, polifônica (escultura & música) –

aproxima-se do que Joseph Beuys cunhou como “escultura social”: fuga de qualquer

objeto ou escultura de contornos estáveis; afinidade com dinâmicas e processos.

“Meus objetos são para ser vistos como estimulantes para a transformação da

idéia de escultura, ou da arte em geral. Devem provocar pensamentos sobre

o que a escultura pode ser e como o conceito de esculpir pode ser estendido

para os materiais invisíveis utilizados por todos:

250 Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit.. 251 V. http://www.nbp.pro.br.

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Formas Pensamento – como nós moldamos nossos

pensamentos ou

Formas Faladas – como nós formatamos nossos pensamentos

em palavras ou

ESCULTURA SOCIAL – como nós moldamos e formatamos

o mundo em que vivemos:

Escultura como um processo evolutivo; todo mundo um artista.

Esta é a razão pela qual a natureza de minha escultura não é fixa e finalizada.

Processos continuam na maioria delas: reações químicas, fermentações,

mudanças de cor, decomposição, secagem. Tudo está em estado de mudança.”252

A convergência com NBP e Você gostaria…? se dá de maneira direta, uma vez que

na operacionalidade da escultura social objetos atuam como “estimulantes” que

deflagram processos em um triplo endereçamento: voltando-se sobre si mesmos

(“transformação da idéia de escultura, e da arte em geral”), invadindo corpos (“como

nós moldamos nossos pensamentos ou como nós moldamos nossos pensamentos

em palavras”) e estendendo-se por um lado de fora (“como nós moldamos e

formatamos o mundo em que vivemos”) – NBP e suas estratégias invasivas e de

produção de membranas igualmente se dirige ao projeto mesmo, ao outro e a um

fora. Beuys propõe a transformação do mundo a partir da realização de esculturas

imateriais – moldagem e formatação da fala e do pensamento – em processo

contínuo, como obra coletiva de todos. NBP concentra sua poética transformacional

em processos de subjetivação – é aí, nos limites entre eu e o mundo, entre eu e

você, que prefere investir (linha orgânica) – ainda que também mobilize 252 Joseph Beuys, “Introduction”, in Caroline Tisdall, Joseph Beuys, Nova York, The Solomon R. Guggenheim Museum, 1979, p. 7. (“My objects are to be seen as stimulants for the transformation of the idea of sculpture, or of art in general. They should provoke thoughts about what scupture can be and how the concept of sculpting can be extended to the invisible materials used by everyone: / Thinking Forms – how we mould our thoughts or / Spoken Forms – how we shape our thoughts into words or / SOCIAL SCULPTURE – how we mould and shape the world in which we live: Sculpture as an evolutionary process; everyone an artist. / That is why the nature of my sculpture is not fixed and finished. Processes continue in most of them: chemical reactions, fermentations, colour changes, decay, drying up. Everything is in state of change.”)

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195

materialidade imaterial similar (pensamento e discurso), compreendendo a

importância de ali instalar ferramentas de produção. Mas há diferença entre investir

na transformação direta (moldar e formatar o mundo) e apostar em passagens e

mediações como locais de contato – mudar o mundo ou sensorializar membranas?

Que desdobramentos poderiam surgir do encontro de Lygia Clark com Joseph

Beuys? NBP e Você gostaria…? frutificaram no interstício desta conversa que nunca

existiu entre os dois artistas (e que caberia a nós promover), consolidando-se como

poética exteriorizante dos espaços intermediários, acreditando (sim) na importância

de se ativar a escultura social, mas através da multiplicação das extensões de

contato com o mundo: moldagem e formatação através da contaminação e contágio.

Não haveria como NBP tocar todo mundo: há um ritmo pragmático instalado no

projeto que o impele a multiplicar-se lentamente, se comparado ao proselitismo

beuysiano. Entretanto, é como se ao enunciar “todo mundo um artista” Beuys tivesse

preparado o terreno para que Você gostaria de participar de uma experiência

artística? pudesse ocorrer: o vírus NBP estaria pronto para contaminar corpos

artísticos já maleabilizados pelo efeito da palavra de ordem beuysiana – mas os

corpos mobilizados por Joseph Beuys são corpos sem membranas e NBP se

encarregaria do processo de sua constituição, equipando-os para o enfrentamento

sensorial-conceitual do mundo. Na lentidão de seus protocolos dialógicos, Você

gostaria…? não é capaz de atender a demanda de todo mundo, avançando pouco a

pouco – como se Beuys realizasse uma conversão por decreto, e NBP através da

vontade de ação: não importam quais os papéis a serem desempenhados por todos

ou qualquer um (artista, não-artista, an-artista, artista-etc), pois estes seriam

sobretudo lugares de onde se produz, e não identidades como condição a priori de

ação. Uma coisa é atender a todos; outra, mobilizar qualquer um. Este, aparece

subitamente carregado de interesse, reconhece o processo de empatia ou sedução

e se propõe a agir; aquele, espera inerte, certo de haver conquistado um privilégio

que irá trazer para próximo de si recompensa protocolada, porém ainda não

entregue. NBP somente funciona se for capaz de mobilizar aqueles interessados em

conversas, mordidos pela pergunta inicial e ávidos por organizar suas próprias

questões; não haverá explicação a garantir tomadas de posição que não sejam

Page 197: você gostaria de participar de uma experiência artística? + NBP (vol1)

196

conquistadas através de realização, interferência, intervenção. O objeto de Você

gostaria de participar de uma experiência artística? circula por tal rede de interesse,

que somente se materializa quando o objeto encontra mais um receptor (qualquer

um) – os participantes do projeto não se conhecem todos entre si, mas procuram

muitas vezes deslocar o objeto para alguém próximo, que gostariam de envolver no

gesto de continuidade; sempre apenas mais um. A rede que os interliga é ao mesmo

tempo evidente e descontínua, pois o projeto se compõe de singularidades de forte

envolvimento com suas regiões de proximidade, investindo de fato mais na

construção das ligações contíguas do que no trânsito rápido entre todos os pontos,

de um lado a outro da rede – pois pontos singulares resguardam também profundas

diferenças. Trata-se de um convívio e co-habitação com o poema – e este nunca é

recompensa, mas conquista; e este esforço singulariza. O amor de qualquer um,

mais forte e interessante do que o afeto de todos: Você gostaria de participar de

uma experiência artística?, NBP – Novas Bases para a Personalidade.

Bloco 8 espaço público, politização, resistência, arte vida, arquivo como

membrana

A última etapa do diagrama de Você gostaria de participar de uma experiência

artística? (etapa 8) apresenta a tripla pergunta, indicando como efeito do longo

percurso através do projeto o gesto de problematizar as posições do artista, do

espectador e o próprio projeto: “o que acontecerá com o projeto NBP, o espectador,

o artista?” Não é qualquer projeto que se propõe a problematizar-se ainda em

funcionamento, como parte mesmo de sua dinâmica e trama – mas aqui esta dobra

sobre si que é também um lançar-se à frente foi construída como motor,

operatividade, funcionamento. Trata-se de produzir algum desvio de trajetória, a

partir do lugar de onde se está vindo (projeto, espectador, artista) para dissolver

contornos e produzir re-desenhos, em atenção ao diagrama – que também se

produz, enquanto arquitetura da mesma trama. A combinação proposta não é

simples: aproximar transformação subjetiva (políticas de subjetivação) de uma

transformação de papéis junto ao circuito de arte mediador (políticas do circuito) –

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197

claro que sempre há um desencontro entre o indivíduo e seu trânsito social, mas ao

produzir esta convergência, ela se dará através do lugar da obra de arte, do poema,

como elemento não completamente assimilável, irredutível ao que quer que seja

mas pleno em efeitos de produção de contato, instauração de membranas e

contágios, abertura de espaços e remissão ao outro. Se tomarmos a noção de corpo

em modalidade estendida, e somarmos ao corpo orgânico a corporeidade dos

papéis institucionais ou mesmo de um projeto de investigação e pesquisa, teremos

também em jogo o corpo do espectador, do artista, do projeto (o corpo da obra, etc.)

– trata-se por um lado, de corpos orgânicos habitados por dimensões institucionais,

sociais; e também da materialidade dinâmica de um projeto que pulsa, se expande

ou contrai em situações contínuas de troca com o ambiente (sem esta conversa, o

projeto se extingue): e então estamos nos movimentando em “espaço topológico

intensivo”, como indica José Gil, onde

“os limites do corpo próprio se alargam indefinidamente ganhando

profundidade (topológica). Ao mesmo tempo, é todo o corpo que se

transforma. O seu em-redor torna-se espaço, confunde-se com um espaço de

intensidades, de osmose potencial, de visões e tatos à distância, espaço

pronto a entrar em conexão com intensidades de outros corpos. (…) Abrir o

corpo é, antes de mais nada, construir o espaço paradoxal, não empírico, do

em-redor do corpo próprio. (…) um espaço-à-espera de se conectar com

outros corpos, que se abrem por sua vez, formando ou não cadeias sem

fim.”253

Pois o que interessa a Você gostaria…? é escapar a cristalizações, buscar aberturas

e espaços, em esforço de continuidade da conversa, em prol do próximo

deslocamento – e tal dinâmica se efetiva através do jogo das membranas, do

“metabolismo próprio da superfície de fronteira”254 – e é daí que procede o interesse

253 José Gil, “Abrir o corpo”, op. cit., p. 66. 254 “Aí se sobrepõem o interior e o exterior numa zona de tensão: coincidindo e ao mesmo tempo opondo-se, o paradoxo desdobra-se abrindo o espaço e multiplicando-se. A zona paradoxal de hiperexcitabilidade, formada por intensidades divergentes, sustém os investimentos das forças que procuram conectar-se com as forças do mundo. Enquanto espaço paradoxal, definido por uma

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198

de NBP em promover encontros e contatos, mobilizar política institucional e políticas

de subjetivação como questão-chave para a estratégia de operacionalização e

circulação do poema. Instaurar um espaço paradoxal (Gil) já é produzir

transformação; promover este processo (Você gostaria…?) para obter aberturas em

que se instalam os contornos de outros desenhos, já é longo trabalho; interferir na

dinâmica de corpos em mistura, é mobilizar forças de procedências diversas – e

misturas podem ser explosivas (revoluções) ou implosivas (micro-revoluções) – mas

de dinâmica saudável, no sentido de se apresentarem aí vibrações (corpo vibrátil)255

e outros agenciamentos em morfogênese256, ou seja, operações de abrir o corpo.

Mas aproximar-se de uma operação de cura parece estar além do alcance de Você

gostaria…?, NBP não servirá a propósitos terapêuticos257 – tal tarefa seria ação

maior, atividade conjunta, resultado de uma conjunção de esforços verdadeiramente

grandiosa na qual estes projetos certamente tomam parte, contribuem de alguma

maneira enquanto inserção específica nos conjuntos de problemas. Mas a obra de

arte existe sempre em avançado grau de precariedade, sempre a um fio de uma

situação de desaparecimento: a doce co-habitação do poema é momento de

maravilhamento, mas fugaz; a garantia de sua sobrevida por momentos mais longos

e em sucessão (a ilusão da continuidade) seriam aqueles em que se processam as

aberturas, o metabolismo das membranas, em que obra e corpo reciprocamente se

alimentam – compreender que a presença do vírus-poema a circular

permanentemente pelo corpo pode ser verdadeiramente insuportável não é ser

contra a obra de arte: significa, ao contrário, torcer e esforçar-se por seu

deslocamento, pelo contágio de outros, por uma dinâmica a se fazer coletiva,

mantendo o ritmo da conversa (continuidade da provocação), pois a arte é uma

modalidade de produção que somente existe em movimento, produzindo movimento

– e quando se nota a presença da obra é porque ela já se faz conjunto, já é mais de

uma coisa, um grupo ou coletivo em deslocamento.

multiplicidade de intervalos e espaços heterogêneos de onde irrompe a energia de investimento, a zona constitui assim o lugar privilegiado do agenciamento.” José Gil, op. cit., p. 66. 255 Suely Rolnik. V. nota 197. 256 “A criação de agenciamentos é uma morfogênese”, J. Gil, op. cit., p. 66. 257 “Eis o nosso ponto de partida para pensar os processos clínicos e artísticos em recíproco devir: por exemplo, não é porque os agenciamentos artísticos abrem o corpo que adquirem poderes terapêuticos?” J. Gil, op. cit., p. 66.

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199

A tripla pergunta é pergunta dentro de pergunta: pergunta como ferramenta de

abertura, perfuração interna (como já foi dito) – é através destas problematizações

em sucessão que se sustentam as conversas, em Você gostaria…?. Ali a conversa

não se mantém enquanto prosa privada artista-participante – logo, é mobilizando a

interrogação (‘?’) como instrumento perfurante que se tem instauração de uma área

pública de conversação – a presença física do objeto de Você gostaria…? (em sua

condição invasiva) seria indicativa da constituição do furo que irrompe nestes locais,

possibilitando o estabelecimento de uma rede de relações dentro/fora que é também

trânsito entre espaços de delimitação privada e áreas de debate público, coletivo. Só

é possível convergir políticas institucionais e políticas de subjetivação com o

necessário amortecimento ou intermediação entre os dois universos: não se pode

ser demasiado rápido nesta passagem, sob o risco de se perder as dobras que

caracterizam uma como a outra. E, evidentemente, se cada um dos combates pode

existir em separado – no sentido de haverem duas guerras em curso, cada qual com

seu grupo de combatentes e suas tradições de ação e mobilização –, querer

estabelecer esta dupla frente de problematização requer vias de acesso macias, isto

é, táteis, corpóreas, membranosas, sensoriais. Será aí que se constroem as

possibilidades de resistência: na dupla pergunta transformada em objeto tátil

intermédio instalado transitoriamente entre entidades, a promover passagens que se

consumam em desvios – elaborar esta espessura e aí deter-se (nem dentro, nem

fora). Impulso para o desenvolvimento de estratégias de resistência: buscar linhas

orgânicas (linha dentro de linhas).

Você gostaria de participar de uma experiência artística? não pode ter continuidade

sem pensar-se como construção de arquivo, uma vez que qualquer das experiências

realizadas configura-se como gesto único ancorado no aqui&agora de uma situação

intransferível – daí a produção de registros e documentos, construídos para

possibilitarem a qualquer momento a atualização do gesto inicial, desdobrando-o

para outras regiões da narrativa que se está a desenvolver (em modo descontínuo).

Um arquivo que seja pleno em passagens, sem isolar-se em obsessões

classificatórias, registrando as diferenças de participação e contexto a partir dos

participantes, irá se debater entre banco de dados e memória do corpo – o registro

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200

documental da experiência e sua dimensão vivencial: para que o arquivo usufrua de

sobrevida, necessita ser continuamente ativado e atualizado de modo que os dados

ali armazenados sofram reajustes, isto é, leituras, atualizações, reacomodação na

teia do projeto – pois cada novo tópico arquivado é um nó a mais na rede de links do

banco de dados, e é o conjunto que se redesenha a partir das novas entradas; ao

mesmo tempo, a intensidade da experiência realizada não se reduz ao arquivável,

produzindo excedentes, resíduos, restos, que jamais se transformarão em dados

para armazenagem – tais partículas são dispositivos de um arquivo vivo, no sentido

de insistirem em propagar deriva própria, fazendo com que os muitos corpos-sujeitos

participantes sigam seus percursos de vida transportando (mas sobretudo

transmitindo) traços, fragmentos (N, B ou P em partes ou em recombinação, sob

efeito do acaso maravilhoso) em circulação por seus corpos (sob o impacto de

variações).

(…)

3. Considere o seu corpo como um veículo

que permite o deslocamento de signos pelo ambiente.

(espacialização do pensamento)

4. Os olhares se fixarão em N.B.P., não em você.

(despistamento)

5. Observe as alterações em seu comportamento.

6. N antes de B e P.

(…)

8. N.B.P. já estará em você.

(contaminação)258

258 Fragmento de texto que acompanha o múltiplo Crachá (NBP), produzido em 1990. Trata-se de um pequeno crachá de plástico colorido, com as letras N, B e P impressas em sua superfície. Quem o utilizar por certo período de tempo terá NBP transferido para seu corpo, podendo depois interromper o uso, pois já estará ‘contaminado’. Este objeto é um curioso objeto-relacional burocrático, pois articula os efeitos do primeiro através de um objeto típico de identificação institucional (crachá). O texto completo, estampado no verso da embalagem plástica, contém oito pontos: “NOVAS BASES PARA A PERSONALIDADE / 1. Use este crachá como quiser. / 2. Considere a relação cor do crachá/cor da roupa. / 3. Considere o seu corpo como um veículo que permite o deslocamento de signos pelo ambiente. (espacialização do pensamento) / 4. Os olhares se fixarão em N.B.P., não em você. (despistamento) / 5. Observe as alterações em seu comportamento. / 6. N antes de B e P. / 7. Quando não quiser usar mais o crachá, retire-o. / N.B.P. já estará em você. (contaminação)”. Fig. 13-14

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201

Trabalhar o arquivo como membrana será um modo de articular a radical diferença

entre as duas formas de memória – ao mesmo tempo corporal e informacional, mas

enquanto terrenos autônomos a correr em paralelo. É importante lembrar que desde

setembro de 2006 o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?

organiza seu banco de dados através de website259 próprio – ali estão relacionadas

todas as experiências realizadas, organizadas cronologicamente, por nome ou

cidade, hospedando documentação (texto, fotografia, vídeo, áudio, etc.) referente a

cada uma delas; além disso, há uma descrição dos projetos Você gostaria…? e

NBP, textos de apoio oferecidos a download e uma seção para comentário críticos

de convidados; trata-se também de ferramenta participativa, na medida em que cada

participante edita sua própria documentação, a partir de senha pessoal de acesso.

Assim, a documentação básica do projeto vai se tornando completamente

informatizada – e à medida em que se completa a digitalização dos materiais

produzidos entre 1994 e 2005 (período em que eram enviados pelos participantes

diretamente ao artista, através de correio convencional), pode se perceber uma fase

analógica e outra digital na produção de registros (embora a primeira não seja

anulada pela segunda): esta dinâmica apenas acentua mais e mais o abismo entre

intensidade da experiência a impregnar a memória do corpo e produção de registros

digitais arquiváveis – mas ao mesmo tempo lança importante desafio ao manuseio e

emprego de equipamentos de produção da imagem técnica que, por sua

portabilidade, estão sempre à mão a acompanhar todo e qualquer deslocamento,

produzindo notável incremento quantitativo de imagens. Desafio que é também

interpretativo: é preciso integrar aqui as discussões que problematizam o aparelho

técnico digital para compreender a natureza desta nova imagem; e ao mesmo tempo

não deixá-la escapar para além do corpo, indicando a força das partículas

irredutíveis ao binarismo do código numérico. Como podemos ver, trata-se de

problema extenso, que confronta produção sensorial e tecnologia da imagem:

Com Hélio Oiticica e Lygia Clark podemos perceber uma estranha

convergência entre o sensorial e o digital, que as novas tecnologias ainda não

259 http://www.nbp.pro.br.

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são capazes de operar. Mesmo se os dados não estão digitalizados, a

experiência de seus trabalhos produz informação virtual numa espécie de

estado não processado, que é convertida – progressivamente modificada

através da transdução260 – em conceitos que são incorporados pelo

participante. Isso significa que pela sensorialização é possível dissolver e

processar qualquer signo material, do mesmo modo que computadores

desintegram realidade em dígitos. Hibridizar com um computador hoje é ainda

uma interação sensorial pobre, quando comparada com a hibridização com

um Parangolé: há uma falta de ressonância orgânica nos bytes de informação

daquela, enquanto que os quanta sensoriais desta proliferam pelo corpo.

Parece necessário mover os computadores para além de processos

cognitivos formais para se ganhar uma compreensão expandida de realidades

sensório-conceituais. 261

Não é o caso de se acreditar em progresso técnico para algum dia resolver tal

conflito: esta diferença permanecerá em aberto, a partir da irredutibilidade um ao

outro dos dois mecanismos e processos – e neste confronto Você gostaria…? se

estrutura e desenvolve corpo próprio de trânsito híbrido, sem se deixar capturar na

promessa da eficiência asséptica do mecanismo técnico ao qual se acopla (que é

assim desviado de certo ideal de redenção através do aparelho), e enfatizando e

promovendo a produção de dimensão sensorial forte a partir da ambiência

intransferível da experiência, a qual elabora outra sorte de partículas para além

banco de dados. Superfícies de contato são aí requeridas: arquivo como membrana,

localizado entre corpo e máquina.

260 Gilbert Simondon, “The Genesis of the Individual”, in Jonathan Crary e Sanford Kwinter (Eds)., Incorporations, New York: Zone Books, 1992, pp. 297-319. Transdução “denota um processo (...) no qual uma atividade gradualmente coloca-se em movimento, propagando-se em uma área dada, sobre a qual opera. Cada região (...) serve para constituir a próxima de tal maneira que no momento mesmo em que essa estruturação se efetua há uma modificação progressiva ocorrendo em conjunto com ela. (...) O processo transdutivo é, assim, uma individuação em progresso. (...) Os termos finais aos quais o processo transdutivo finalmente chega não preexistem ao processo.” 261 Ricardo Basbaum, “Clark & Oiticica”, in Paula Braga (Org.), Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica, São Paulo, Perspectiva, 2008, p. 113. Publicado originalmente em Blast 4: Bioinformatica, New York, X-Art Foundation, 1994.

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203

Quem se aproxima deste outro diagrama Fig. 33 percebe que, dentre o

mapeamento de algumas possibilidades de relações entre arte&vida, vê-se

registrada a inserção pretendida por NBP – nó, trama, rede, fluxo são termos que

evocam o cruzamento de linhas e certo trânsito entre elas; tudo ali são finos fios a

preencher o intervalo entre as duas dinâmicas, sinalizando escapes não somente

entre um termo e outro, mas também nas outras direções – pois existe muita coisa

ali no espaço entre, e é impossível tudo nomear; afinal, se as linhas se deslocam

também nestes outros sentidos, é porque algo as atrai; mas sobretudo indica que o

território no qual estão se movendo se desenha em torno das palavras, e não se

restringe ao limite do contorno de cada letra: afinal, uma palavra é também o campo

de ressonância de seus significados, e isso inclui um espaço ao redor, ativado. Nó,

trama, rede, fluxo: cada um dos termos pode se materializar de muitas formas – não

existe uma única maneira de se dar um nó, arrematar a trama, tecer a rede e

organizar o fluxo – estas operações se dão de diversos modos; como também

podem se efetivar separadamente ou em conjunto. Seria um desafio operar em uma

mesma matéria a partir da simultaneidade destas quatro ações – é claro que as

operações se complementariam (trama tecida a partir de nós, rede organizada em

fluxo, nós que determinam a rede, fluxos que incrementam a trama, etc.), é certo

que possam interferir umas nas outras. NBP é sempre um conjunto de operações –

trânsito, dinâmica – que não se reduz a um único procedimento; do mesmo modo,

investe em ações simultâneas, pois não acredita na linearidade das seqüências. Não

bastaria reconhecer a importância da arte ou da vida, não se trata disso; o diagrama

indica como o problema se mantém ativo, através (pelo menos) dos últimos

duzentos anos – questão moderna, que se impôs quando um campo da arte

emancipado passa a produzir questões próprias, que não se resolvem em outras

áreas. NBP se inscreve neste conjunto como uma de suas inflexões,

problematizando arte&vida a partir das misturas – pois nó, trama, rede, fluxo são

modos de lançar um contra o outro os campos da arte e da vida, como ingredientes

de uma receita, ou objetos sólidos a se rebater reciprocamente dentro de uma área

limitada, após choque inicial: então arte&vida irão se tocar, entrelaçar, enredar ou

fluir, etc. entre si, promovendo certa deriva – já que estes quatro termos são signos

do encontro. NBP interfere em área saturada, onde não há mais processo direto de

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204

emancipação ou modelo que se imponha de imediato – haverão exercícios, dentre

os quais se destaca a escuta: qual a sonoridade que está sendo produzida neste

momento por um emaranhado qualquer de finos fios em vibração?

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205

D

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206

D: qual o lugar deste texto?

A primeira pergunta a caber aqui, seria: qual o lugar deste texto? Espera-se

que o exercício da leitura tenha produzido efeitos de intensidade, de modo a

elaborar uma experiência da ordem do espaço, no sentido de propor certa

organização de termos e conceitos e seus encadeamentos – não apenas entre si,

mas sobretudo em relação direta com uma obra plástica que, por motivos óbvios,

não pode estar igualmente presente aqui, neste momento. Curiosamente, então, a

conclusão desta Tese afirma uma dúvida: como não há maneira de certificar-se a

priori acerca da experiência da leitura, não haveria portanto como se concluir agora

positivamente sobre o funcionamento ou não da proposta pretendida. Mas a

convicção é de que foi possível construir um desafio ou provocação, no sentido de

prometer aqui algo que de saída não se poderia ter certeza de cumprir. Ou melhor,

quando a investigação proposta procura mobilizar-se em torno da teoria de artista, e

ao mesmo tempo indica que esta não constitui corpo próprio, em separado, a ser

oferecido ao leitor, não estaria, desde logo, predestinada ao fracasso? Assim, ao

mesmo tempo em que se busca, afinal, o lugar deste escrito, será preciso perguntar

também: que texto é este?

O que se pretendeu aqui foi exercitar algo do que Michael Lingner indicou

como quádrupla autonomia da obra de arte contemporânea (de conteúdo, formal,

estética, conceitual): seria possível então, a partir da arte conceitual, praticar

experimentações não apenas para além da estética e do formalismo, como também

buscando os limites da concepção da obra, nos termos de seu funcionamento,

inserção institucional, relação com o espectador e demais instâncias de um circuito

ou sistema de arte, etc. Sobretudo, este exercício se efetivaria através da

elaboração de um corpo discursivo que se impõe em presença forte junto à obra, a

funcionar com ela e constituir então uma presença que não se pode evitar ou

ignorar. A veemência desta presença não deve ser desprezada, e pode-se afirmar

que é exatamente aí – na espacialidade própria da existência de um núcleo

discursivo incontornável a funcionar junto à obra – que se travam hoje algumas das

principais batalhas da arte contemporânea: é na possibilidade de controlar ou se

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207

apropriar deste núcleo de sentido que as corporações, bancos e empresas investem

hoje grande quantidade de recursos em eventos e salas de exposição, as feiras de

arte ampliam prestígio como agentes de um mercado de arte internacional, ou

mesmo se travam debates curatoriais e de gestão em torno de bienais e outros

eventos. Pois ao avançar sobre este campo de produção de discurso – associado a

estratégias de marketing cultural e construção de imagem – se conquista um poder

de gerenciamento de sentido, tornando-se mais ou menos simples instrumentalizar

ou agenciar obras e exposições como parte integrante de planos estratégicos que

certamente não possuem a presença do poema como foco de trabalho primeiro.

Trata-se de uma condição percebida, hoje, com estranha naturalidade – e que seria

preciso desnaturalizar pouco a pouco, se se pretende reconstruir alguma força de

intervenção para um campo que historicamente conquistou contornos próprios em

resistência à fácil apropriação; ou melhor, somente a experimentação a partir dos

recursos oferecidos pela condição plástico-discursiva da obra de arte

contemporânea poderá reformatar certas ferramentas de trabalho, aproximando-as

dos artistas como elementos de singularização da obra.

Mas este seria um processo já em curso – percebido em muitas das principais

manobras poéticas que se destacam nas últimas três ou quatro décadas (isto é claro

em Hélio Oiticica, Lygia Clark, Cildo Meireles, Waltércio Caldas, Dan Graham e

Joseph Beuys, para se manter em exemplos históricos). Desta forma, buscar

localizar uma teoria de artista a funcionar junto ao trabalho de arte contemporâneo

seria mesmo parte da operação envolvida na compreensão da constituição e

estrutura de cada poética, cada estratégia de intervenção. Mas, quando se quer

extrair a Künstlertheorie presente na obra de Cildo Meireles, por exemplo,

apresentam-se dificuldades: em sua obra há alguns textos-chave, fundamentais, que

seguem sendo republicados e traduzidos262; existem também diversas e

significativas entrevistas, em que o artista indica os contornos de seu pensamento;

freqüentemente, os catálogos retrospectivos de sua obra contêm pequenos verbetes

262 Por exemplo, “Cruzeiro do Sul”, publicado no catálogo da mostra Information (MoMA, Nova York, 1970) e “Inserções em Circuitos Ideológicos”, apresentado no debate Perspectivas para uma Arte Brasileira (1970). Cf. Cildo Meireles, “Cruzeiro do Sul”, in Arte Brasileira Contemporânea – Caderno de textos 1, Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 28; e “Inserções em Circuitos ideológicos”, in Cildo Meireles, Rio de Janeiro, Funarte, 1981, p. 22.

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208

sob as imagens, trazendo informações importantes para sua compreensão.

Entretanto, estes materiais efetivamente constituem uma teoria do artista em relação

à sua obra? Os textos de Hélio Oiticica ou Lygia Clark são produção teórica,

desenvolvida passo a passo com os trabalhos plásticos? Não há aí como

simplesmente se delimitar linhas de separação entre uma coisa e outra, uma vez

que é impossível demarcar a teoria como corpo próprio – o que existe é uma

produção discursiva a se fazer em conjunto, em duplo trabalho, mas sem se

constituir em teoria autônoma a legislar abstratamente sobre tudo. Ou então, em

outra aproximação: existe teoria, mas nós não a encontramos em lugar algum – sua

aparição se dá (ou não – e é preciso compreender esta contingência, estar

preparado para ela) a partir da experiência da obra (compreendida enquanto

visualidade-discurso), se materializando pouco a pouco nos termos de uma

arquitetura sensível do pensamento. Daí não se poder anunciá-la enquanto

promessa de um encontro certo, mas indicá-la como algo a ser percebido – somente

a densidade das camadas em jogo contribuiria para sua efetivação.

Este texto seria produto hipertrofiado a partir de demanda acadêmica;

procurou entretanto vencer certos entraves e desenvolver-se em relação próxima a

outro conjunto de textos já existentes – ou seja, recuperar certa produção discursiva

que efetivamente se constituiu ao mesmo tempo em que as obras foram plasmadas

e que portanto é portadora das marcas de cada enfrentamento concreto (sejam

textos veiculados como elementos de instalações e outros projetos expositivos,

impressos em catálogos e folders ou apresentados em seminários e publicações –

há aí variedade de textura e dicção). Neste sentido, a escrita aqui apresentada

configura-se também como exercício retro-prospectivo, ao recuperar certos

elementos para ao mesmo tempo lançá-los para frente, em trabalho de atualização.

Sobretudo o tópico acerca da construção de pergunta dentro de pergunta, aqui

recorrente, aponta para a tarefa de um redobramento investigativo que quer lançar-

se de volta ao outro, no sentido de manter-se em movimento, propor continuidades.

Aqui, uma Künstlertheorie também só existe – como dissemos – a partir do jogo da

obra, entremeada em seu funcionamento, como parte mesmo da materialidade da

intervenção proposta. Se para Michael Lingner, a obra de Joseph Kosuth se

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209

caracterizaria por ser constituída através da teoria de artista em função performativa,

onde “trabalho de arte e teoria se tornam idênticos e são apresentados como uma só

entidade”263, seria então interessante marcar uma diferença: o sistema de

revezamentos plástico-discursivos aqui adotado se encaminharia talvez para um

funcionamento performativo-sensorial, uma vez que se investe exatamente na

construção de passagens entre os dois campos, reconhecendo as diferenças e

especificidades de cada uma das matérias mas recusando a facilidade com que se

demarcam as duas posições – e, principalmente, compreendendo a importância de

uma atuação nas regiões de contato e fronteira.

Não há dúvidas que Você gostaria de participar de uma experiência artística?

(com NBP) resulta – a partir desta Tese – em projeto composto por algumas

camadas de densidade incrementada: houve aumento de espessura importante para

a continuidade de seu percurso – trata-se de trabalho bastante complexo, conduzido

em diversas camadas simultâneas, e é certo que ocorreram avanços no campo

discursivo que o constitui. Penso ser significativo perceber tal soma como índice da

autonomia trilhada por Você gostaria...? em relação ao circuito ou sistema de arte:

desde seu início (1994) percorreu caminho paralelo, lateral ao circuito de

exposições, realizando-se principalmente no encontro entre artista e participantes.

Sua presença na documenta 12 (2007), é claro, implicou em importante salto de

visibilidade, aumento de escala, mas nem por isso Você gostaria...? abandonou seu

perfil particular – sendo conduzido sempre pelo contato direto, conversa, troca e

deslocamento, seja participante/artista, seja participante/participante. Espera-se que

este texto hipertrofiado seja aos poucos incorporado à dinâmica própria do projeto,

de uma maneira que ainda não se pode prever ou especular; mas, principalmente,

uma intrincada elaboração discursiva sempre quer, de fato, ser enredada nas

malhas de uma intertextualidade, produzir novos discursos como conseqüência,

decorrência. Se a Tese se coloca diretamente relacionada com um presente

produtivo, em aberto, é porque aspira um funcionamento que a permita ser

apropriada, utilizada, atualizada – por qualquer um, em gesto futuro. Talvez esta

263 Michael Lingner, “Reflections on / as Artists' Theories“,disponível em http://ask23.hfbk-hamburg.de/draft/archiv/ml_publikationen/kt06-3ae.html.

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seja a mais próxima condição que possa assumir de um funcionamento enquanto

obra de arte.

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211

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