839
1 VOLTA AO COMEÇO: DEMARCAÇÃO EMANCIPATÓRIA DE TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL Lino João de Oliveira Neves Orientador: Boaventura de Sousa Santos Coimbra, Agosto de 2012

VOLTA AO COMEÇO: DEMARCAÇÃO EMANCIPATÓRIA DE … INTEGRAL... · Carta Magna - Constituição da ... Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento,

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1

VOLTA AO COMEO:

DEMARCAO EMANCIPATRIA

DE TERRAS INDGENAS NO BRASIL

Lino Joo de Oliveira Neves

Orientador: Boaventura de Sousa Santos

Coimbra, Agosto de 2012

2

Esta Tese e todas as lembranas boas que a sua escrita me proporcionou

so para

meus amigos-irmos Z Bonotto (Silvio Jos Gasperini Bonotto), Xar (Ezequias Paulo Heringer Filho)

e Ricardo Pereira Parente;

para meu pai Lino de Oliveira Neves Filho e para minha me Hilda da Silva Pestana Neves

meus mortos amados que, na minha saudade,

como no dizer de Mia Couto, nunca mais param de morrer.

3

SIGLAS E REFERNCIAS

Abril Indgena - Mobilizaes indgenas de mbito nacional realizadas

anualmente no ms de abril

Acampamento Rio

+20

- Acampamento Terra Livre Bom Viver/Vida Plena

Acampamento

Terra Livre

- Acampamentos indgenas promovidos no mbito do Abril

Indgena

ACGTT - Associao do Conselho Geral da Tribo Ticuna, posteiormente

denominada Federao das Organizaes e dos Caciques e

Comunidades Indgenas da Tribo Ticuna

AGU - Advocacia Geral da Unio

AI - rea Indgena

AIBRN - Associao Indgena do Baixo Rio Negro

AM - Estado do Amazonas

Amaznia Legal - Amaznia Legal brasileira

Basa - Banco da Amaznia S. A.

BEC - Batalho de Engenharia e Construo

BM - Banco Mundial

BN - Biblioteca Nacional

BIA - Bureau of Indian Affairs, Escritrio de Assuntos Indgenas

Calha Norte - Projeto Calha Norte

Carta Magna - Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Constituio

Federal

Carta da Terra - Carta da Terra dos Povos Indgenas

CCJ - Comisso de Constituio e Justia do Senado Federal

Cedi - Centro Ecumnico de Documentao e Informao

CEEI - Conselho Estadual de Educao Indgena

Centro Magta - Centro de Pesquisa e Documentao do Alto Solimes

CES, CES-FEUC,

CES/UC

- Centro de Estudos Sociais, da Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra

CGTT - Conselho Geral da Tribo Ticuna

Cimi - Conselho Indigenista Missionrio

CIR - Conselho Indgena de Roraima

4

Civaja - Conselho Indgena do Vale do Javari

CMS - Conselho Municipai de Sade

CNBB - Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

CNS - Conselho Nacional dos Seringueiros

CNUMAD - Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e

Desenvolvimento, Rio-92; Eco-92

Coiab - Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia

Brasileira

Comin - Conselho de Misso entre ndios

Comisso Pr-

ndio; Pr-ndio

- Organizao No Governamental de apoio ao ndio

Conferncia dos

Povos Indgenas,

Rio-92

- Conferncia Mundial dos Povos Indgenas sobre Territrio,

Meio Ambiente e Desenvolvimento

Conferncia de

Estocolmo

- Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente Humano

Conferncia

Indgena

- Conferncia dos Povos e Organizaes Indgenas do Brasil

Constituio,

Constituio de

1988

- Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Constituio

Federal de 1988

Conveno 169 da

OIT

- Conveno 169 sobre Povos Indgenas e Tribais em Pases

Independentes, da Organizao Internacional do Trabalho

Copiam - Comisso dos Professores Indgenas da Amaznia

CPI-SP - Comisso Pr-ndio So Paulo

CPT - Comisso Pastoral da Terra

CRI - Cartrio de Registro Imobilirio

CSN - Conselho de Segurana Nacional

CTI - Centro de Trabalho Indigenista

Cpula dos Povos - Cpula dos Povos por Justia Social e Ambiental Contra a

Mercantilizao da Vida, em Defesa dos Bens Comuns

DAF/FUNAI - Diretoria de Assuntos Fundirios, da Fundao Nacional do

ndio

5

DAN/Ufam - Departamento de Antropologia, da Universidade Federal do

Amazonas

DCiS/Ufam - Departamento de Cincias Sociais, da Universidade Federal do

Amazonas

Declarao da

ONU sobre povos

indgenas

- Declarao sobre os Direitos dos Povos Indgenas, da

Organizao das Naes Unidas

DH - Decreto de Homologao

DNPM - Departamento Nacional de Produo Mineral

DOU - Dirio Oficial da Unio

Dsei - Distrito Sanitrio Especial Indgena

Eco-92 - Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e

Desenvolvimento; Rio-92

Edua - Editora da Universidade Federal do Amazonas; antes Editora da

Universidade do Amazonas

FDDI - Frum de Debate dos Direitos Indgenas

Fepi - Fundao Estadual de Poltica Indigenista

FEUC - Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

FN - Fora Nacional

Foccitt - Federao das Organizaes e dos Caciques e Comunidades

Indgenas da Tribo Ticuna, inicialmente denominada

Associao do Conselho Geral da Tribo Ticuna

Foirn - Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro

Funai - Fundao Nacional do ndio

Funasa - Fundao Nacional de Sade

G7 - Grupo dos 7

GPS - Global Positioning System; Sistema de Posicionamento Global

Greenpeace - Organizao No Governamental ambientalista

GT - Grupo Tcnico

GTZ - Deutsche Gesellschaft fr Technische Zusammenarbett

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

Incra - Instituto Nacional de Reforma Agrria

ISA - Instituto Socioambiental

6

Jocum - Jovens com uma Misso

Marcha Indgena - Marcha Indgena 2000

MEC - Ministrio da Educao e Cultura

MF - Ministrio da Fazenda

MI - Museu do ndio, da Fundao Nacional do ndio

MJ - Ministrio da Justia

MMA - Ministrio do Meio Ambiente

Museu Nacional,

MN

- Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Movimento Brasil

Outros 500

- Movimento Brasil: 500 Anos de Resistncia Indgena, Negra e

Popular Brasil Outros 500

MPF - Ministrio Pblico Federal

MS - Ministrio da Sade

MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

OIBI - Organizao Indgena da Bacia do Iana

OIT - Organizao Internacional do Trabalho

ONG - Organizao No Governamental

ONU - Organizao das Naes Unidas

Opan - Operao Amaznia Nativa; anteriormente, Operao Anchieta

Oscip - Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico

OTCA - Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica

PAC - Programa de Acelerao do Desenvolvimento

PD - Portaria Declaratria de posse indgena

PD - Portaria Demarcatria

PDPI - Programa Demonstrativo dos Povos Indgenas

PEC - Proposta de Emenda Constituio

Peti - Projeto Estudo sobre Terras Indgenas no Brasil

PF - Polcia Federal

PIN - Plano de Integrao Nacional

PM - Polcia Militar

Povos da Floresta - Aliana dos Povos da Floresta

PP -Procuradoria Pblica

PPG7 - Programa Piloto de Proteo das Florestas Tropicais Brasileiras

7

PPM - Po para o Mundo

PPTAL,

PPTAL/Funai

- Projeto Integrado de Proteo s Populaes Indgenas da

Amaznia Legal

Probor - Programa de Incentivo Produo de Borracha Vegetal

Programa Waimiri-

Atroari

- Programa de Apoio aos ndios Waimiri-Atroari

PT - Partido dos Trabalhadores

RE - Reservas Extrativistas

Rio +20 - Conferncia das Naes Unidas para o Desenvolvimento

Sustentvel

Rio-92 - Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e

Desenvolvimento; Eco-92

Secadi - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade

e Incluso

Seduc, Seduc/AM - Secretaria do Estado de Educao e Cultura

Sesai - Secretaria Especial de Sade Indgena

Seind, Seind/AM - Secretaria do Estado para os Povos Indgenas

SPI - Servio de Proteo ao ndio

SPU, SPU/MF - Secretaria de Patrimnio da Unio do Ministrio da Fazenda

STF - Supremo Tribunal Federal

STR - Sindicato dos Trabalhadores Rurais

Sudam - Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia

Sudhevea - Superintendncia do Desenvolvimento da Borracha

Taboca - Empresa de Minerao Taboca

TI, T.I. - Terra Indgena

Ticunio - Unio Ticuna

UA - Universidade do Amazonas

UC - Universidade de Coimbra

Ufam - Universidade Federal do Amazonas

UFPR - Universidade Federal do Paran

UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina

UHE - Usina Hidreltrica

UHE Balbina - Usina Hidreltrica de Balbina

8

UNI - Unio das Naes Indgenas

UNI-Acre - Unio das Naes Indgenas do Acre e do Sul do Amazonas

Unicamp - Universidade Estadual de Campinas

Unind - Unio das Naes Indgenas

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Univaja - Unio dos Povos Indgenas do Vale do Javari

WTK - Grupo empresarial Datuk Wong Tuong Kwong

9

MAPAS E QUADROS CAPTULO 1

MAPA 1 AMAZNIA INTERNACIONAL E AMAZNIA BRASILEI RA 49

MAPA 2 AMAZNIA LEGAL BRASILEIRA 50

QUADRO 1 MOMENTOS DA OCUPAO ECONMICA DA

AMAZNIA

59

QUADRO 2 EXPROPRIAO DAS TERRAS INDGENAS NA

AMAZNIA

62

QUADRO 3 ASSASSINATO DE NDIOS NO BRASIL 2011 63

QUADRO 4 ASSASSINATO DE NDIOS NO BRASIL 2003 2011 64

QUADRO 5 POVOS INDGENAS EXTINTOS NO BRASIL, POR

REGIO

69

QUADRO 6 POVOS INDGENAS EXTINTOS, REGIO NORTE 70

QUADRO 7 POPULAO RESIDENTE INDGENA, SEGUNDO AS

GRANDES REGIES - 1991/2010

73

QUADRO 8 POPULAO AUTODECLARADA INDGENA NO PAS,

SEGUNDO AS UNIDADES DA FEDERAO 2010

73

QUADRO 9 MUNICPIOS COM MAIOR POPULAO INDGENA,

BRASIL 2000/2010

74

QUADRO 10 PARTICIPAO RELATIVA DA POPULAO

INDGENA, NO TOTAL DA POPULAO DO ESTADO E

NO TOTAL DA POPULAO INDGENA NO PAS 2010

76

QUADRO 11 TERRAS INDGENAS NO BRASIL MARO/2000

DEZEMBRO/2007

87

QUADRO 12 TERRAS INDGENAS NO BRASIL 2011 88

QUADRO 13 TERRAS INDGENAS NO BRASIL MARO/2000

DEZEMBRO/2007 FEVEREIRO/2011

89

QUADRO 14 SITUAO GERAL DAS TERRAS INDGENAS

FEVEREIRO/2011

89

QUADRO 15 OCUPAO FUNDIRIA EM RAPOSA DO SOL, NDIOS

E NO-NDIOS

96

QUADRO 16 DENSIDADE POPULACIONAL NA TERRA INDGENA

RAPOSA SERRA DO SOL

98

10

QUADRO 17 EXTENSO DAS OCUPAES INDGENAS E DAS

INVASES

98

CAPTULO 3

QUADRO 18 PRINCIPAIS DROGAS DO SERTO 253

QUADRO 19 UNIVERSO SERINGALISTA 265

CAPTULO 8

QUADRO 20 CONCEPES DE TERRA INDGENA 536

CAPTULO 9

QUADRO 21 CRONOLOGIA DA AUTO-DEMARCAO KULINA 581

QUADRO 22 CRONOLOGIA DA 1 FASE DA AUTO-DEMARCAO

KULINA

584

QUADRO 23 CRONOLOGIA DA 2 FASE DA AUTO-DEMARCAO

KULINA

591

QUADRO 24 CRONOLOGIA DA DEMARCAO DA TERRA

INDGENA MAWETEK

609

QUADRO 25 CRONOLOGIA DA DEMARCAO DA TERRA

INDGENA KANAMARI DO RIO JURU

618

QUADRO 26 GANHOS E IMPACTOS DAS DEMARCAES 632

QUADRO 27 GANHOS POLTICOS DAS DEMARCAES 633

QUADRO 28 GANHOS DA DEMARCAO PARA O CONTROLE DA

TERRA INDGENA

634

QUADRO 29 EXPRESSO DEMOCRATICA NOS PROCESSOS

DEMARCATRIOS

635

QUADRO 30 EMANCIPAO VERSUS REGULAO, NOS

PROCESSOS DEMARCATRIOS

636

QUADRO 31 GANHOS DA DEMARCAO PARA AS RELAES

INTERTNICAS

637

QUADRO 32 IMPLICAES DA DEMARCAO PARA AS

RELAES DE CONTATO

639

QUADRO 33 GANHOS DAS DEMARCAES PARA O MOVIMENTO

11

INDGENA 640

QUADRO 34 CONTRIBUIES DA DEMARCAO PARA A

EXPERINCIA ADMINISTRATIVA DOS NDIOS

641

QUADRO 35 RISCO DE INSTITUCIONALIZAO DO MOVIMENTO

INDGENA

642

QUADRO 36 GANHOS ETNOPOLTICOS NAS DEMARCAES 643

CAPTULO 10

QUADRO 37 DISTINES ENTRE OS TRS PROCEDIMENTOS

DEMARCATRIOS

652

QUADRO 38 PROCEDIMENTOS DEMARCATRIOS E DILOGO

POLTICO COM O ESTADO NACIONAL

677

12

SUMRIO Agradecimentos 18

Introduo 25

PARTE I - IDENTIFICAO: CENRIOS, PAISAGENS, OLHAR ES

CAPTULO 1 - CENRIOS E PAISAGENS

1.1. Amaznias Amaznia 47

1.2. Por que Amaznia? 52

1.2.1. O mito do vazio populacional 53

1.3. Impactos da invaso nos padres de ocupao territorial indgena 56

1.4. Nmeros do extermnio indgena 66

1.5. Amaznia indgena 71

1.6. Terras indgenas 81

1.6.1. Situao das terras indgenas no Brasil 86

1.7. Muita terra para pouco ndio ou pouco branco para muita terra? 92

1.7.1. A quem interessa as terras indgenas? 101

1.7.2. Reaes contra o reconhecimento de terras indgenas 106

1.8. Colonizao e colonialidade na Amaznia 112

1.8.1. Os muitos nomes da colonizao 115

1.8.2. As muitas faces do colonialismo 117

1.9. Desconstruir a colonialidade 123

CAPTULO 2 - OLHARES: TERICOS E EMPRICOS

2.1. Aproximaes 130

2.2. Enquadramentos 142

2.3. Enfoques 223

PARTE II DELIMITAO: OCUPAO COLONIAL, LUTAS

INDGENAS

CAPTULO 3 - A CONQUISTA DA AMAZNIA INDGENA

3.1. Frentes de conquista: momentos histricos de contato 251

3.1.1. Extrativismo das drogas do serto 253

3.1.2. Extrativismo do caucho 255

13

3.1.3. Extrativismo da borracha 256

3.1.4. Empreendimentos agropecurios 268

3.1.5. Extrativismo de madeira 269

3.1.6. Extrativismo mineral 270

3.2. Impactos da conquista no mundo indgena 276

3.3. Quatro atos de uma longa tragdia, e um quadro final de resistncia 281

CAPTULO 4 - O CAMPO DO INDIGENISMO NO BRASIL

4.1. Surgimento e consolidao do movimento indgena no Brasil 288

4.1.1. Anos 1970: as assembleias indgenas 291

4.1.2. Anos 1980: da Unio a atomizao das organizaes 295

4.1.3. Anos 1990: a consolidao de projetos tnicos 301

4.2. Iniciativas indgenas contra-hegemnicas 303

4.2.1. Marcha Indgena e Conferncia Indgena 304

CAPTULO 5 - VOZES AUSENTES: RESISTNCIA E SUBORDINAO,

NO DISCURSO INDGENA

5.1. ndio cidado brasileiro 320

5.1.1. A negao como estratgia pessoal e coletiva 320

5.1.2. O chamado ancestral 325

5.1.3. A identidade como propsito 327

5.1.4. O exerccio da liderana 335

5.1.4.1. Reorganizao do movimento indgena no rio Negro 335

5.1.4.2. Coordenao operacional da demarcao 341

5.1.5. A institucionalizao da liderana indgena 343

5.2. Memria de homem que luta histria como aconteceu 350

5.2.1. A afirmao do eu ndio 350

5.2.2. A insero Ticuna no movimento indgena 357

5.2.3. Do eu ndio ao movimento indgena 363

5.2.4. A mobilizao pela demarcao das terras 369

5.2.5. A luta para alm do movimento indgena

organizado/institucionalizado

379

5.3. Vozes emergentes vozes silenciadas 389

14

CAPTULO 6 - LUTAS PELA AUTODETERMINAO: A CONSTRUO

DE RELAES INTERCULTURAIS

6.1. Cenrio internacional 393

6.2. Cenrio nacional 398

6.3. Estado neoliberal versus povos indgenas 407

6.4. Antropologia e Direito: grandes aliados ou parceiros perigosos? 411

6.5. Estratgias de relacionamento intertnico 417

6.6. Realidades indgenas resistentes 428

PARTE III DELIMITAO: METODOLOGIA, CONVIVNCIA,

PESQUISA

CAPTULO 7 - CAMPO SEMNTICO E METODOLOGIA

7.1. Objeto de estudo 447

7.2. Procedimentos metodolgicos 450

7.2.1. Participao participante 450

7.2.2. Convivncia prolongada 452

7.2.3. Caderneta de campo 454

7.2.4. Trabalho, entre aspas 456

7.2.5. Entrevistas/conversatrios 457

7.3. Pesquisa de campo/ativismo social 464

7.4. Lugar fsico e conceitual da pesquisa participativa 470

7.5. Hipteses de trabalho 473

7.6. Memria-sentido 478

CAPTULO 7A - TEMPO DE RECORDOS

7A.1. A partida e o encontro 486

7A.2. Por que Portugal? 496

7A.3. Verdades como asas 503

7A.4. Indigenista? Antroplogo? 506

7A.5. Cabea, para sempre lembrar; memria, para nunca esquecer 511

PARTE IV DEMARCAO: TERRITRIO, TERRA, TERRA

15

INDGENA

CAPTULO 8 - TERRITRIO / TERRA INDGENA

8.1. Territrio: a terra na viso do ndio 524

8.2. Terra indgena: a terra dos ndios na viso do branco 530

8.2.1. O reconhecimento do direito indgena terra 532

8.2.2. A demarcao de terras indgenas 539

8.2.2.1. "Demarcao tradicional 548

8.2.2.2. Auto-demarcao 550

8.2.2.3. Demarcao participativa 552

8.3. Juridificao do processo de reconhecimento das terras indgenas 554

8.4. Judicializao da questo indgena 560

8.5. Demarcao emancipatria 567

CAPTULO 9 - PROCEDIMENTOS DE DEMARCAO DE TERRAS

INDGENAS

9.1. Auto-demarcao: a demarcao da Terra Indgena Kulina do Mdio

Juru

578

9.1.1. Primeira fase da auto-demarcao 581

9.1.2. Dificuldades na primeira fase dos trabalhos 585

9.1.3. Segunda fase da auto-demarcao 588

9.1.4. Dificuldades na segunda fase dos trabalhos 594

9.1.5. Ganhos e conquistas da auto-demarcao 598

9.2. Demarcao participativa: a demarcao da Terra Indgena Mawetek 604

9.2.1. Inconsistncias da demarcao participativa da Terra Indgena

Mawetek

610

9.3. Demarcao tradicional: a demarcao da Terra Indgena Kanamari do

Rio Juru

615

9.3.1. Implicaes da demarcao tradicional da Terra Indgena

Kanamari do Rio Juru

619

9.4. Emancipao e regulao, na demarcao de terras indgenas 623

CONCLUSO

CAPTULO 10 - DA LUTA PELA AUTODETERMINAO S

16

ARMADILHAS DA PARCERIA

10.1. Demarcao: um projeto etnopoltico 650

10.2. Contribuies da auto-demarcao para a construo de relaes

pluritnicas

660

10.3. Armadilhas da parceria: as alianas entre organizaes indgenas e

Estado

669

10.3.1. Institucionalizao da auto-demarcao 674

10.3.2. Trilhas sinuosas em caminhos certos Desperdcio da

experincia indgena

685

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 702

ANEXOS

Anexo A Declarao de Belm sobre ndios isolados 730

Anexo B Os ndios na Constituio Federal de 1988 733

Anexo C Demarcaes de terras indgenas nos governos ps-Ditadura 737

Anexo D Placa de identificao - 1917, Comunidade Limo Surumu 738

Anexo E Resumo dos principais instrumentos de proteo dos direitos

humanos dos povos indgenas

739

Anexo F Consideraes crticas de Julio Cezar Melatti Conveno para a

Grafia dos Nomes Tribais e ao seu uso

740

Anexo G Estatuto do ndio - Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973 742

Anexo H Documento Final Confererncia dos Povos e Organizaes

indigenas do Brasil, 21 de abril de 2000

755

Anexo I Declarao da Aldeia Kari-oca 758

Anexo J Carta da Terra dos Povos Indgenas 759

Anexo K Carta do Rio de Janeiro Documento Final do IX Acampamento

Terra Livre, 20 de junho de 2012

768

Anexo L Letras de msicas Gonzaguinha e outros 772

Anexo M 19 condies para demarcao de terras indgenas STF 816

Anexo N Decreto 1.775/96, de 08 de janeiro de 1996 819

Anexo O Portaria 14/96, de 09 de janeiro de 1996 822

Anexo P Lista dos presidentes da Funai, 1967 2012 825

17

Anexo Q Estatuto das Sociedades Indgenas - Proposta para discusso 827

18

AGRADECIMENTOS

Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmtica, que a selva amaznica,

pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos de minha adolescncia

e pela coragem que me deu para o resto da via. E devia-o, sobretudo, aos annimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmos,

gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crnica definitiva [...].

Ferreira de Castro (1982 : 115)

Ao contrrio de Ferreira de Castro, os anos em que vivi no meio da selva

foram de alegrias imensas, de vivncias profundas, de experincias marcantes, de

descobertas indescritveis, de satisfao cotidiana, de afirmao na confiana do agir

solidrio, da complementaridade como princpio, que faz da competio arremedo

desprezvel do viver em comunidade. Os meus anos de vida na selva foram de

aprendizado inesquecvel, que me marcaro, estou certo, para o resto dos meus dias.

Assim como Ferreira de Castro tambm eu devia essa Tese, majestosa,

soberba, enigmtica, fascinante selva amaznica e suas gentes.

Eu devia essa Tese a muitas pessoas:

Ao velho Pedro Rafael, meu av Apurin, que ao me fazer seu neto por adoo

se fez meu av por filiao afetiva infinita, ao Faustino e sua mulher Corina.

Ao Amadeu, grande amigo-informante-professor do cerimonial e das nuances da

diplomacia Apurin, aos primos Drio, Farnelo e Manuel Chimbica.

Ao Senhor Lus, Dona Iolanda e Helinho.

Ao velho Pedro Carlos e toda sua enorme famlia extensa.

Ao Lopinho e ao Castelo Brasil.

Ao Alfredinho, ao Capito Sur e ao velho Casemiro.

A todos os Apurin que me acolheram em minha iniciao no universo

19

indgena na Amaznia pela porta de entrada atravs do mundo Popengare1.

E, devia, mais especialmente, aos Kanamari que me acolheram em suas aldeias e

no mundo Tkna:

Ao Djahoma, Kayoma, Djoo, Monhawam, Aro, Tsabaro, Daora, Waro e todos

do alto rio Juta.

Ao Oke, Djekeha, Parawe e todos do igarap Bola.

Ao Kadje, Tsewe, Towe, Tamakore e todos do Mawetek.

Ao Kadjohpam, Nare e todos do igarap Santa Rita.

Ao Djoreyom, Panaw, Heyo, Hetsamba e todos do igarap Trs Bocas.

Ao Yodje, Parawe, Maemha, Kawatare e todos do rio Xeru.

Wahdawe, Daora, Paemkarem, Kaeware nhane, Peeam, Naroa, Heyo, Aro, e

todos do igarap Itucum, principalmente Yodje Tsemo e Tsawe, que ao me adotarem

com irmo abriram o caminho para que os Kanamari me acolhessem como parente.

A tantos outros Kanamari, que a falha de memria me faz omitir os seus nomes,

que me fizeram Kaemo, inserindo-me no universo Tkna, onde ainda hoje, apesar da

distncia, e suspeito que para sempre, estou afetivamente ligado.

Devo ainda essa Tese a outras muitas pessoas, pelo apoio, incentivo e

colaborao em diferentes momentos:

Ceclia Maria Vieira Helm e Silvio Coelho dos Santos, os primeiro

orientadores acadmicos, de cujos apoios e ensinamentos esta Tese devedora;

Ao Iasi (Pe. Antnio Iasi Junior), o primeiro orientador na primeira incurso

em campo.

1 Popengare, autodenominao do povo comumente indicado na etnologia como Apurin.

20

Ao Chico (Guenter Francisco) Loebens e os demais primeiros companheiros dos

tempos de indigenismo no mdio Purus.

A todos que me concederam entrevistas para a Tese, em particular: ao Pedro

Incio Pinheiro, ao Brs de Oliveira Frana, ao Bonifcio Jos, ao Edilson Martins

Melgueira, ao Carlos Frederico Mars de Sousa Filho e ao Joo Pacheco de Oliveira

Filho.

Aos amigos que, cada qual ao seu modo, nunca me deixaram sentir a ausncia

do outro lado do Atlntico:

Ao Marcos Marques, amigo desde a primeira acolhida em Coimbra, e que me

permitiu estar em sua casa como se esta fosse a minha casa em Coimbra.

Ao Paulo Bernaschina, amigo de amigo que, para a minha satisfao, me

estendeu a sua amizade.

Paula Martinho e Carlos Lucas, pela acolhida nos ltimos tempos da minha

primeira permanncia em Coimbra.

Cludia DallAntonia comadre em terras lusitanas encontrada, e Carol,

que me permitiram partilharam seus amigos no tempo de nossas distncias.

Eli Weiss e Vitor Macedo, jovens amigos encontrados nas cantinas e

repblicas coimbrs.

Ao Fernando Sidnio, Graa Fonseca, ao Ricardo Manuel Ferreira de Almeida,

Izabel Maria Rodrigues Craveiro, ao Bruno Sena Martins e ao Vasco Pauloro, mais do

que colegas das sesses de seminrios de doutoramento;

Marisa e ao Pedro, amigos queridos, como se desde sempre o tivssemos sido.

Aos amigos do CES que me faziam sentir com se tambm da equipe do CES eu

fosse.

21

(Ana) Carina, carinho imenso, que no precisou ir para alm da amizade

imensa.

Ins Barbosa de Oliveira, amiga querida e interlocutora privilegiada, para

fazer uso de suas prprias palavras, alm de carinho imenso.

Ao Senhor Jos de Almeida e demais funcionrios da Secretaria da Faculdade de

Economia da Universidade de Coimbra, cordiais, atenciosos e sempre eficientes;

Ao pessoal das cantinas universitrias, que fizeram a sua parte, talvez a

principal, em si tratando de um lusitano, para que o componente gastronmico fizesse

eu me sentir em casa, ou na parte da casa que mais importa a um lusitano, na cozinha,

mesa.

Maria Ioannis Baganha, misto de professora rigorosa e amiga meiga; com

saudades.

Maria Jos Carvalho e ao Accio Machado, amabilidade, ateno e eficincia,

sempre dispostos a colaborar no acesso s informaes; um prazer enorme conhec-los.

Em especial:

Elione Angelim Benj, pela ajuda grande na reviso e ajuste para verso final;

obviamente, os erros que subsistem a mim se dem.

Eneida Alice Gonzaga dos Santos, amiga de toda hora, de confidncia, de

angstia, de conversa trocada, de preferncia em torno de uma boa mesa, que ns dois

apreciamos.

Lassalete Paiva e ao Joo Arriscado Nunes, dois primos queridos

(re)encontrados em meu (re)encontro com as origens ancestrais lusitanas.

22

Ao Joo Paulo Dias e Lusa Conceio e Hamilton, e tambm Knia,

companhia e acolhida fundamental no meu retorno Coimbra para o perodo de

finalizao da Tese, amigos para sempre.

Luisa Saavedra Almeida, por tudo, que foi muito, e que podia ter sido mais;

sem esquecer, e nem poderia, o estmulo para a formatao da primeira verso, que se

constituiria no corao da verso final da Tese.

Morena (Irani Chaves de Oliveira), leveza, bom humor, alto astral,

companheirismo, carinho, que em meio do caminho ajudaram a repor as energias

quando elas pareciam faltar; por tudo, que eu no soube e no pude retribuir.

Leila Margareth Rodrigues Gomes, carinho e amizade, que ficou aps o tudo

que foi bom.

Selma de Jesus Cobra, importante como s ela, e por sua terapia de choque

que deu o empurro final no deixando o desnimo tomar conta.

Por tudo que me tm dado, devo essa Tese tambm:

Araci Maria Labiak, apesar dos desencontros, sempre uma aliada.

Ao Diogo Labiak Neves, companheiro de chegada e de instalao nos primeiros

momentos em Coimbra, mais do que filho, um parceiro sempre atento.

Hortnsia Labiak Neves, flor verdadeira, em carinho, ateno, cuidado e tudo

mais; e ainda pelo presentinho Ariel recente que nos deu.

Tia Alzira (Maria Alzira Bento de Medeiros), querida segunda me que

sempre me estimulou.

Ao Rogrio (de Oliveira Neves), irmo, irmo mesmo, em todos os sentidos, que

apesar da minha distncia nunca permitiu que nos distancissemos.

23

Concluir a Tese saldar uma dvida com as instituies que me possibilitaram

este doutoramento. Meus agradecimentos:

Capes, pela bolsa (BEX - 1309/98-6) que me permitiu ficar em Coimbra de

meados de 1999 a meados de 2003, no primeiro perodo de inscrio no doutoramento.

Direo da Universidade Federal do Amazonas e ao Colegiado do Instituto de

Cincias Humanas e Letras, pela liberao de minhas atividades docentes no perodo de

setembro de 1998 a junho de 2003 e de abril a junho de 2008.

Aos colegas do Departamento de Cincias Sociais, pela liberao de minhas

atividades docentes no perodo de setembro de 1998 a junho de 2003 e, em

demonstrao de enorme considerao, os colegas do Departamento Antropologia, pela

liberao de abril a junho de 2008.

Ao Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de

Coimbra, pelas inmeras e diversas atividades (seminrios, palestras, conferncias,

colquios etc.) que contriburam para a minha qualificao acadmica.

Concluir a Tese , ainda, saldar uma dvida com Boaventura, que mais que

orientador, foi sempre um orientador-amigo.

Um agradecimento pela confiana e estmulo demonstrados desde o primeiro

contato, em 1994, pelas sugestes crticas, orientaes atentas, conversas instigantes,

mesmo que disfaradas em convvios das sextas-feiras noite nos memorveis jantares

no Casaro e noutras cantinas coimbrs; pela dose extra de incentivo e pacincia com

relao demora exagerada para a concluso da Tese, demora essa que em algumas

vezes levou-nos, a Boaventura e a mim mesmo, a um sentimento de frustrao que s

conseguiu ser vencido graas ao apoio acadmico e profissional, confiana e amizade

24

que nunca me faltaram de sua parte e que foi renovado em sua acolhida minha

segunda inscrio no doutoramento. Um agradecimento especial, escrito em tintas de

respeito enorme, grande admirao e considerao imensa pela amizade que a mim

sempre demonstrou, e que de minha parte recproca. Um agradecimento especial ao

orientador-amigo, amigo-orientador e amigo Boaventura.

Esta Tese para cinco pessoas queridas que se foram mais rpido do que eu

pudesse entregar-lhes nessa forma concretizada em escrito o muito do meu

agradecimento por tudo:

Para Z Bonotto (Silvio Jos Gasperini Bonotto) e Xar (Ezequias Paulo

Heringer Filho), amigos, irmos e verdadeiros mestres-companheiros que me

ensinaram, cada um ao seu modo, os primeiros passos no indigenismo.

Para Ricardo Pereira Parente, parente no s no nome, tambm no carinho,

respeito e confiana que sempre demonstrou, e que de minha parte foram/sero sempre

recprocos.

Para Lino Filho, meu pai, e Hilda, minha me, por tudo que me estimularam e

me permitiram ser.

Diz Augusto Roa Bastos (1996) que um livro sempre escrito por muitas mos.

Esta Tese foi escrita por muitas vozes de tanta, muita, diferente gente2

ecoando em minha boca/fala, em minhas mos/escrita, e principalmente na saudade boa

guardada em meu peito/sentimento-emoo em t-los em mim.

No marear dos meus olhos/carinho ao record-los. A todos, obrigado.

2 [...] E aprendi que se depende sempre/ De tanta, muita, diferente gente/ Toda pessoa sempre as marcas/ Das lies dirias de outras tantas pessoas/ E to bonito quando a gente entende/ Que a gente tanta gente onde quer que a gente v/ E to bonito quando a gente sente/ Que nunca est sozinho por mais que pense estar [...] (Gonzaguinha, Caminhos do Corao, 1982).

25

INTRODUO

Como pois a escritura seja vida da memoria, e a memoria huma semelhana de immortalidade

a que todos devemos aspirar, pela parte que della nos cabe, quiz movido destas razes, fazer esta breve historia,

pera cujo ornamento nam busquei epitetos exquisitos, nem outra fermosura de vocbulos de que os eloqentes Oradores

costumo usar pera com artifcio de palavras engrandecerem suas obras. Somente procurei escrever esta na verdade per hum estillo facil,

e cho, como meu fraco engenho me ajudou, desejoso de agradar a todos os que della quizerem ter noticia.

Pelo que devo ser desculpado das faltas que aqui me pdem notar: digo dos discretos, que com sam zelo o costumo fazer,

que dos idiotas e mal dizentes bem sei que nam hei de escapar, pois est certo nm perdoarem a ningum.3 Pero de Magalhes Gandavo (1980: 76-77)

Do Prologo ao Lector, escrito por Pero de Magalhes Gandavo para a sua

Histria da Provncia Santa Cruz, publicado originalmente em 1576, em Lisboa, com

o ttulo Histria da provncia scta Cruz a que vulgar mte chamamos Brasil, me veio

a recomendao e orientao geral que de bom grado tomei em conta para a escritura

desta Tese:

Outra no a minha inteno com a escritura desta Tese, seno fazer esta

breve historia (Gandavo,1980: 76) da relao do Estado brasileiro com os ndios,

tomando como foco a demarcao das terras indgenas, em que, assim como em todos

os muitos outros focos das relaes intertnicas, a nenhuma importncia atribuda aos

povos indgenas e o desprezo por tudo que as contribuies possam trazer para o mundo

do branco, marcam uma situao clssica de desperdcio da experincia ditada pela

razo indolente da modernidade, que, como demonstra Boaventura de Sousa Santos

(2000b), historicamente domina as relaes intertnicas entre o Estado e os grupos

tnicos em todas as aldeias do planeta mundo.

3 Grafia mantida como na publicao original.

26

Aps 30 anos de trabalho/vida indigenistas/antropolgicos envolvido com esse

objeto complexo que o ndio no mundo das relaes intertnicas, constato que vrias

iniciativas contra-hegemnicas responsveis por alimentar a perceverana4 otimismo

trgico (BSS) que impulsiona as motivaes e os trabalhos com os ndios foram

transubstanciadas em verdadeiros casos de regulao social a que foram submetidos

lideranas e prprio movimento indgena, fazendo com que, por vezes, uma certa

dimenso trgica parea suplantar as expectativas otimistas.

Animado pela sociologia das emergncias (Santos, 2006a) que perscruta as

aes e mobilizaes indgenas como iniciativas tnicas contra-hegemnicas de

construo de contextos pluritnicos, me percebo mais ctico resistente do que otimista

de qualquer matiz; um ceticismo resistente, que, com Florestan Fernandes, busca

descobrir um modo congruente de fazer a ordem social estabelecida voar pelos ares

(1995: 30), que, com Pierre Bourdieu, persevero no antigo propsito de jogar [meu]

gro de areia na engrenagem lubrificada das cumplicidades resignadas (2001: 79). De

minha parte, alimento o meu ceticismo resistente nos processos de resistncia dos

grupos tnicos e nas realidades indgenas resistentes, em si mesmo fruto e origem da

resistncia tnica como princpio e modelo de conduta no enfrentamento etnopoltico.

Embora nas obras de Boaventura no aparea referncia ao nome e s ideias de

Bonfil Batalla, as vises prospectivas destes dois autores sobre as relaes Estado-

povos indgenas tm em comum a convico quanto a necessidade de conformao de

uma sociedade no-colonial e de que esta deve buscar suas bases de referncias

culturais, polticas, epistemolgicas etc. nos povos indgenas que, apesar de todo

controle cultural e poder (Bonfil Batalla), regulao e hegemonia (Boaventura)

das sociedades nacionais herdeiras da modernidade ocidental, preservam operantes os

4 O que aqui estou chamando de perseverana caracterizado por Boaventura como otimismo trgico

27

sistemas tnicos de produo de conhecimento em toda a sua fora e eficcia.

Trabalhando mais diretamente as situaes de contacto intertnico entre sociedades

indgenas e sociedades nacionais mais especificamente a sociedade nacional mexicana

, Bonfil Batalla fala em reconstituio de um Estado nacional plural pluritnico,

como explicitamente defende em Identidad tnica y movimientos indios en Amrica

Latina (Bonfil Batalla, 1988) e Mxico Profundo (Bonfil Batalla, 1990), enquanto

Boaventura trabalhando principalmente sobre as sociedades nacionais, abordando em

obras mais recentes as problemticas que envolvem os povos indgenas e os Estados

nacionais, fala em reinveno de um Estado nacional plural pluritnico e

plurinacional de modo mais explcito em La Reinvencin del Estado y el Estado

Plurinacional (Santos, 2007c) e em vrias outras obras de sua reflexo. Um, falando do

lugar da Antropologia Poltica, da etnologia indgena, dos estudos de relaes

intertnicas, da persistncia cultural; outro, do lugar da Sociologia do Conhecimento, do

debate epistemolgico, dos estudos ps-coloniais, do dilogo intercultural, ambos

acenando para a necessria transformao da forma atualmente predominante de

organizao poltica sob a forma de Estado-nao que venha a ser substituda por um

Estado nacional plural que reconhea a existncias das mltiplas naes indgenas

localizadas no seu interior.

Dizendo, objetiva e diretamente, com Ins Barbosa de Oliveira, Boaventura de

Sousa Santos o nome completo do autor, o que indicaria a necessidade de referi-lo

como Santos. Porm, no s pela inequivocidade do seu primeiro nome como tambm

pela sua beleza e facilidade de reconhecimento, optei por me referir a ele sempre como

Boaventura (Oliveira, 2006: 9). E, nessa linha, tambm aqui Boaventura de Sousa

Santos ser mencionado como Boventura, mantendo, contudo, a forma cannica das

(2006a), conceituao que retomo no Captulo 10, em associao concepo de ceticismo resistente.

28

referncias bibliogrficas precisas, que tendemos a supor que do seriedade e provam o

rigor de um trabalho acadmico (Bonfil Batalla, 1990: 16) para as citaes textuais e

referncias bibliogrficas, no que este autor ser indicado como Santos.

Na conferncia Conhecimento e Transformao Social: para uma ecologia dos

saberes, proferida em Manaus, Estado do Amazonas, em 11 de setembro de 2006,

Boaventura, referindo-se trajetria do seu prprio pensamento, assinalou que ao longo

do tempo, na realizao de um mesmo trabalho ou de trabalhos/anlises sequenciados,

as diferentes tematizaes reforam alguns pontos, redirecionam outros ou at mesmo

colocam outros em segundo plano, dando a forma com que o pensamento se apresenta a

cada momento. Em outras palavras, tambm o pensamento, como toda construo

social, dinmico.

Esta Tese est formulada a partir de dois momentos distintos, com tematizaes

distintas. O primeiro momento, que em linhas gerais corresponde ao primeiro perodo

de inscrio no doutoramento, de 1998 a 2003, com nfase nos temas de: globalizao

hegemnica/globalizao contra-hegemnica, realidades emergentes e

emancipao/regulao, tomados a partir da crtica ao dilogo assimtrico entre o

Estado nacional brasileiro e os povos indgenas e da necessidade de reinveno da

emancipao social. O segundo momento, que para efeitos prticos pode ser pensado

como a partir de 2008, com nfase nos temas de: sociologia das ausncias e sociologia

das emergncias, ecologia dos saberes e traduo intercultural, tomados a partir da

crtica ao desperdcio de conhecimento pela razo indolente que conforma o

pensamento ocidental moderno. Dois momentos5 intimamente relacionados entre si,

articulados por dois eixos centrais de reflexo/anlise que, tomando os povos indgenas

5 Cabe assinalar que de meados de 2003, quando de meu retorno a Manaus aps o largo perodo de permanncia em Coimbra, a meados de 2008, que marca a minha segunda inscrio no doutoramento, a Tese ficou adormecida entre as minhas atividades como professor na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

29

como objeto de estudo, formam as linhas mestras da anlise/reflexo no seu todo: a

urgncia de reinventar a emancipao social e a necessria ruptura com o processo

colonial imposto pelo mundo ocidental moderno sobre as outras culturas no-

europeias.

A auto-demarcao de terras indgenas , sem dvida, o mais vigoroso

processo de afirmao dos direitos indgenas e de questionamento das relaes de poder

impostas pelo Estado brasileiro aos povos indgenas.

Volta ao Comeo: demarcao emancipatria de terras indgenas no Brasil,

toma como objeto central de estudo a participao dos ndios nos processos

demarcatrios de terras indgenas, analisada a partir de dois enfoques: as iniciativas

indgenas como realidades tnicas capazes de inovar as relaes intertnicas e o

desperdcio das iniciativas indgenas promovido pela sua institucionalizada como

programas de ao estatal.

Volta ao Comeo, expresso que d ttulo a este trabalho inspirada nas

palavras da msica De volta ao comeo,6 de Luis Gonzaga do Nascimento Jnior, que

embora no tenham sido inspiradas na realidade indgena falam, ao menos em

interpretao que lhes dou, do processo de resistncia tnica explcito nas lutas

organizadas enquanto movimento social indgena e da retomada de suas terras, nas

quais sobressaem as iniciativas de autodemarcao.

Comeo corresponde, assim, condio tnica da qual os indgenas foram

distanciados poltica e culturalmente pela colonialidade do poder (Quijano, 2005) que

subordinou/subordina os povos extraeuropeus (Gonzlez, 1935) condio de

6 [...] E como se eu despertasse de um sonho/ Que no me deixou viver/ E a vida explodisse em meu peito/ Com as cores que eu no sonhei/ E como se eu descobrisse que a fora/ Esteve o tempo todo em mim/ E como se ento de repente eu chegasse/ Ao fundo do fim/ De volta ao comeo, De volta ao comeo, letra e msica de Luis Gonzaga do Nascimento Jnior, Gonzaguinha.

30

civilizaes e sociedades negadas, de culturas subordinadas ao paradigma da

modernidade ocidental e de populaes condenadas mais completa excluso social.

Negao, subordinao e excluso, situaes nas quais se abrem apenas as portas mais

inferiores de participao na vida nacional s sociedades, culturas e populaes

integradas/ aculturadas, e que no caso do Brasil se expressam inicialmente pela

invaso e ocupao portuguesa e, posteriormente, pela hegemonia do Estado brasileiro,

representante do projeto civilizacional europeu imposto ao Novo Mundo com o

chamado Descobrimento.

Volta ao Comeo no corresponde a um movimento de deslocamento

espacial, nem, tampouco, a um momento temporal de retomada de princpios e valores

tnicos, mas a uma deciso poltica que reafirma explicitamente, categoricamente,

objetivamente, e, portanto, no mais disfarada sob estratgias de bom relacionamento

intertnico, a alteridade tnica da qual os ndios foram forados a manter uma distncia

estratgia que lhes permitisse continuar a ser diferentes como so, e como sempre

foram, convivendo num mundo que nega a possibilidade da diferena positivamente

vivenciada.

Volta ao Comeo pretende assinalar uma postura tnica alimentada pela

resistncia tnica que permite aos povos indgenas continuarem a ser o que sempre

foram apesar de todas as formas de constrio regulao a que esto submetidos

durante estes muitos anos de conquista (Dussel, 1993).

O presente estudo est estruturado em quatro partes e uma concluso. Os ttulos

das partes foram tomados em analogia trs etapas principais dos processos de

reconhecimento das terras indgenas: Identificao, Delimitao e Demarcao. Na

Parte I, Identificao: cenrios, paisagens, olhares, apresentada uma viso geral do

cenrio amaznico e da presena indgena na regio e no pas, e do tratamento dado

31

pelo Estado e pelas populaes regionais s questes indgenas. So assinalados em

traos gerais marcos e interpretaes conceituais e tericas que conformam olhares

que podem contribuir para a compreenso da realidade enfrentada pelos povos

indgenas sujeitos lgica colonial que continua a governar as relaes intertnicas, de

modo especial no que diz respeito ao uso e controle da terra. Na Parte II, Delimitao:

ocupao colonial, lutas indgenas, num primeiro momento analisado, a partir de uma

perspectiva histrica, o processo de ocupao das terras indgenas e da conquista dos

mundos indgenas, e, num segundo momento, a partir de uma perspectiva scio-

antropolgica, so analisadas as lutas indgenas no Brasil, as suas vicissitudes e as

expectativas promissoras que parecem acenar para horizontes mais satisfatrios para os

ndios no Brasil. Na Parte III, Delimitao: metodologia, convivncia, pesquisa, como

prprio ttulo indica, so apresentados o objeto de estudo e a sua delimitao, a

metodologia e as tcnicas aplicadas no campo, as hipteses que nortearam a pesquisa.

Como de praxe nos trabalhos acadmicos, a parte dedicada aos procedimentos

metodolgicos e analticos aquela onde tambm so tecidas consideraes sobre o tipo

de pesquisa adotado e as razes acadmicas e/ou polticas que conduzem a tal adoo.

Na Parte IV, Demarcao: territrio, terra, terra indgena, so mencionadas as

diferentes vises de mundo, da parte dos ndios e da parte dos brancos, que do origem

a concepes distintas de territrio, terra e terra indgena, responsveis por posturas

antagnicas de apropriao da terra e dos recursos nela disponveis. So tambm

indicados os dois mecanismo adotados pelo Estado para regular estas situaes: um que

de certa forma se apresenta favorvel aos ndios, a elaborao de instrumentos legais

especficos para a regularizao da posse indgena e outro que totalmente contrrio

aos direitos indgenas, a imposio de processos de regulao de alta intensidade que

transformam o reconhecimento de terras indgenas em uma mera questo de ordem

32

jurdica, quando de fato se trata de uma negociao poltica de interesses distintos, de

ndios e de brancos, mediados pelo Estado. Nesta parte apresentados os estudos de caso

dos trs procedimentos demarcatrios, com nfase especial na participao, ou

excluso, dos ndios e as suas implicaes para as lutas dos povos indgenas. Na

Concluso esto sintetizados os pontos mais salientes vistos nos captulos anteriores,

enfocando a partir da iniciativa Kulina de auto-demarcao e de outras realidades

indgenas resistentes, exemplos de iniciativas indgenas contra-hegemnicas e

fortemente marcadas pela dimenso emancipao, e das parcerias entre entidades

indgenas e indigenista com instituies e rgos pblicos, exemplos da ao

hegemnica e regulao impostas pelo Estado, a positividade das iniciativas indgenas

versus o desperdcio das contribuies indgenas promovido pela racionalidade

proclamada pelo pensamento ortopdico, uma mquina de injustia que se vende a si

prpria como mquina de felicidade (Santos, 2008a).

O Captulo 1, Olhares: Cenrios e paisagens, procura dar uma viso ampla sobre

a Amaznia e a presena indgena no Brasil como um todo e na Amaznia em especial.

O objetivo do captulo apresentar, a partir de introdues rpidas aos temas, a

realidade indgena na Amaznia e como ela vista e tratada pelos poderes pblicos e

pelo senso comum, principalmente no que diz respeito ao sempre oscilante

reconhecimento-negao da presena fsica dos ndios na regio e do sempre negado

direito de existncia dos ndios enquanto etnias diferenciadas. O captulo assinala

continuidade histrica do colonialismo que submete no apenas os ndios, mas tambm

outros segmentos sociais, um colonialismo que se apresenta sob diferentes formas,

sempre renovadas. Frente a este cenrio de subordinao das populaes locais, o

captulo ensaia alguns posicionamentos a serem assumidos para a superao da

33

colonialidade que faz da Amaznia um dos lugares do planeta de maior subalternizao

tnica do planeta.

O Captulo 2, Olhares: tericos e empricos, oferece elementos para uma

aproximao temtica geral dos ndios no contexto de das sociedades nacionais,

apresenta elementos sobre a realidade sociopoltica dos grupos indgenas na vida e na

economia regional e nacional e sugere enquadramentos tericos que possam contribuir

para uma viso crtica sobre a realidade dos povos indgenas submetidos politicamente

aos Estados nacionais. Estruturado a partir de textos breves, onde cada um tomado

como uma unidade em si mesmo, o captulo sugere enfoques que podem ser articulados

livremente compondo o quadro geral das lutas indgenas no Brasil, evitando, com a

formatao textual adotada, a rigidez excessiva das longas sesses argumentativas.

Partindo do princpio de que as questes em torno da terra devem ser entendidas como

resultado do confronto de concepes distintas, tanto do que vem a ser a terra (territrio

simblico de pertencimento tnico versus bem material) como da sua destinao uso

social coletivizado versus apropriao individual privativa , concepes formuladas

por diferentes sistemas de produo de conhecimento, no caso o mundo dos ndios ou

mundos dos ndios uma vez que se trata de etnias diferentes, e no uma nica etnia e o

mundo do homem ocidental moderno, o captulo introduz a discusso sobre os conflitos

pelas terras, que se configuram como os principais problemas enfrentados atualmente

pelos ndios e os principais desafios sua continuidade tnica futura.

O Captulo 3, A conquista da Amaznia indgena, traa em linhas gerais o

cenrio social e poltico do processo de expanso econmica sobre a Amaznia, tendo

como principal foco a ocupao produtivista dos territrios indgenas. O objetivo do

captulo permitir uma viso sobre o tratado que ao longo dos diferentes momentos da

histria poltico-econmica da Amaznia tem sido dispensado pelos Estados nacionais,

34

primeiro portugus e depois brasileiro, ao direito dos povos indgenas de ocupao de

suas terras. Reconhecimento, por um lado, e invaso das terras e ausncia do Estado no

seu papel de defensor pblico dos ndios, por outro; so esses o saldo das diferentes

frentes de expanso econmica e dos projetos e programas de desenvolvimento

responsveis pelo processo de ocupao-invaso-expropriao das terras, e que

repercutem sobre todas as demais dimenses culturais, sociais, de sade, econmicas,

poltica, epistemolgicas etc. do mundo indgena. Bem quisera que ao final este

captulo pudesse contribuir para uma viso positiva, contudo a histria do contato no

nada favorvel aos ndios.

O Captulo 4, O campo do indigenismo no Brasil, faz uma breve histria do

surgimento e consolidao do movimento indgena no Brasil. Analisando o perodo que

vai incio dos anos 1970, quando das primeiras mobilizaes indgenas a nvel nacional

para a estruturao de um movimento social organizado de carter etnopoltico, ao final

dos anos 1990-2000, quando o movimento indgena comea a dar sinais visveis de

perda do seu poder de mobilizao tnica, enquanto as principais organizaes

indgenas vo perdendo gradativamente a sua representatividade junto as comunidade

de base. O objetivo do captulo destacar as lutas de resistncia dos povos indgenas

realizadas atravs de organizaes indgenas. Nesse sentido o captulo destaca duas

mobilizaes em nvel nacional que denunciam a ao hegemnica do Estado de

institucionalizao e cooptao de entidades e lideranas indgenas: Marcha Indgena

e Conferncia Indgena, realizadas em abril de 2000. Como mobilizaes articuladas

por entidades do movimento indgena organizado, Marcha Indgena e Conferncia

Indgena, os componentes indgenas do Movimento Brasil: 500 Anos de Resistncia

Indgena, Negra e Popular Brasil Outros 500 devem ser vistas como manifestaes

contra-hegemnicas da luta dos povos indgenas contrrias s reformas neoliberais

35

adotadas pelos governos do perodo ps-Ditadura Militar e ao poder discriminatrio e

repressivo do Estado. Apesar de tanto a Marcha Indgena, na qual participaram ndios

de diferentes locais do pas, como a Conferncia Indgena, que se realizou Estado da

Bahia, na regio Leste do pas, a presena de ndios da regio do mrio rio Juru ter se

dado em pequeno nmero, estes acontecimentos so aqui mencionados devido a

participao ativa de representantes indgenas de vrios povos da Amaznia e pela

importncia que estes dois momentos polticos representam para o movimento indgena

em todo o Brasil.

O Captulo 5, Vozes Ausentes: resistncia e subordinao, no discurso indgena,

apresenta narrativas de duas importantes lideranas indgenas no Amazonas. Sem

pretender indicar nenhuma das duas narrativas, e muito menos nenhum dos dois lderes

indgenas como exemplo de discurso emancipao nas lutas pela autodeterminao,

tomado em confronto com o outro que poderia ser pensado como exemplo de discurso

regulao submetido a institucionalizao das lutas tnicas, as trajetrias pessoais e

polticas das duas lideranas representam dois dos possveis caminhos

autodeterminao/emancipao e institucionalizao/regulao trilhados pelo

movimento indgena no Brasil, permitindo visualizar horizontes de emancipao e

horizontes de regulao presentes no dilogo intertnico. Este captulo procura levantar

elementos que contribuam para a compreenso dos mecanismos e estratgias do

processo de subordinao das lutas e mobilizaes indgenas operado pelo Estado, um

processo de subordinao tnica que anula o potencial etnopoltico das lutas indgenas,

instrumentalizando lideranas e organizaes do movimento indgena como

viabilizadores da poltica indigenista oficial. O que o captulo evidencia que

emancipao e regulao esto simultaneamente presentes no relacionamento entre

povos indgenas e Estado, o que significa dizer que tanto as iniciativas indgenas

36

contm aspectos de regulao, como em aes promovidas pelo Estado podem estar

presentes aspectos de emancipao, onde o desafio ao movimento indgena que se

pretenda verdadeiramente comprometido com os grupos tnicos potencializar a

dimenso emancipao posta em jogo nas relaes intertnicas.

O Captulo 6, Lutas pela Autodeterminao: a construo de relaes

interculturais, ressalta a importncias das iniciativas indgenas que lograram a formao

de cenrios internacional e nacional nos quais as realidades vividas pelas populaes

indgenas deixaram de interessar apenas aos prprios ndios e as lutas indgenas

passaram a contar com o apoio de diferentes segmentos da sociedade externa.

Considerando a tenso regulao versus emancipao presente nas relaes intertnicas

o captulo apresenta uma leitura introdutria s estratgias e mecanismos de regulao

social acionados pelo Estado para conter as mobilizaes indgenas e questiona o papel

que a Antropologia e do Direito, assim como reas do conhecimento cientfico, devem

desempenhar no contato entre mundos diferentes. Tendo como objetivo indicar a fora,

o vigor e a eficcia da resistncia tnica que permite aos povos indgenas continuarem a

existir apesar de cinco sculos de imposio colonial, o captulo assinala diferentes

estratgias de relacionamento intertnico acionadas por diferentes povos em diferentes

momentos do contato. Nesse mesmo propsito, destaca iniciativas indgenas que

tomadas como realidades emergentes (Santos, 1998b) que afirmam perante os Estados

nacionais os ndios como atores polticos na discusso de questes que lhe dizem

respeito e os povos indgenas como entes sociais e polticos cuja presena

contempornea ao mundo ocidental moderno acena para a necessria construo de

relaes interculturais no mais fundadas na produo da desigualdade a partir de

diferenas tnicas.

37

O Captulo 7, Campo semntico e metodologia, apresenta os procedimentos

analticos e metodolgicos, assim como as tcnicas de pesquisa e prticas que campo a

partir das quais me foi possvel recolher o material emprico da pesquisa em seu sentido

lato7, sejam aqueles que me foram disponibilizados pelos meus informantes dados,

informaes, relatos, depoimentos, testemunhos etc. , sejam aqueles obtidos a partir da

observao direta por via da pesquisa participativa vivenciada em forma

extrema/radical. Tendo como objetivo ir um pouco alm da apresentao da

metodologia e dos procedimentos de pesquisa, este captulo procede a uma discusso,

ainda que breve, e sem a inteno de esgot-la aqui, acerca das adequaes promovidas

nos instrumentos e tcnicas de pesquisa, no prprio estilo da pesquisa, tendo por

finalidade alcanar um melhor resultado do trabalho de campo. O captulo discute ainda

a relao entre pesquisa de campo e ativismo social e o lugar, fsico e conceitual, da

realizao da pesquisa, enfatizando a necessidade de compromisso/comprometimento

do pesquisador para com o pesquisado, tanto no momento da pesquisa em si como

para alm da pesquisa, questionando aquelas propostas que defende uma relao

pesquisador-pesquisado mecanicista como condio de para uma pesquisa cientfica.

O Captulo 7A, Tempo de Recordos, tem duas fontes de inspirao inegveis: o

Captulo (Captulo Trs-ao-Espelho: Relaes entre Percepes a que Chamamos

Identidade: Fazendo Pesquisa em Favela do Rio, de Toward a New Common Sense...

(Santos, 1995) e Mister Book em Nova York (Santos, 2006b), dos quais recolhe tanto

a forma na qual o captulo apresentado como a proposta de autorreflexiva comum aos

dois textos mencionados. O captulo procura indicar balizamentos conceituais, tericos

e polticos que me levaram a adotar a postura assumida durante o perodo de

trabalho/convivncia direta com os ndios no qual me envolvi num misto de pesquisa

7 Aquela etapa da pesquisa que Roberto Cardoso de Oliveira (2000: 18) indica como sendo as etapas do

38

participativa e convivncia pesquisadora, postura/prtica metodolgica que desde julho

de 1979 orienta a minha atuao como indigenista/antroplogo com os ndios, levando-

me a uma situao a que Malinowski certamente qualificaria como anti-etnlogo, uma

vez que sempre estiveram ausentes de mim o sentimento de desnimo e desespero

depois de terem fracassado inteiramente muitas tentativas obstinadas, porm, inteis, de

estabelecer um verdadeiro contato com os nativos e de coletar qualquer material, os

perodos de desesperana, nos quais me enterrava na leitura de romances, do mesmo

modo que um homem recorre bebida num acesso de depresso e do enfado tropical

(Malinowski, 1980: 41). Por tudo isso este captulo autorreflexivo no representa um

olhar sobre o tempo passado nas aldeias ou as recordaes, recordos, da vida com os

ndios. Em conjunto com o captulo anterior, ao qual est intimamente associado, estes

captulos, 7 e 7A, representam o reafirmar do compromisso com o objeto de estudo e

o estilo de pesquisa/convivncia que me fizeram indigenista/antroplogo.

O Captulo 8, Territrio / terra indgena, assinala duas diferentes concepes de

terra, oriundas de vises de mundo distintos, o que significa dizer de sistemas culturais

distintos. A viso indgena, para a qual terra entendida como espao de vida em

sociedade, uma viso para qual homem e terra esto intimamente relacionados, e a viso

do branco, que mais corretamente deve ser dita, viso do mundo moderno ocidental,

para a qual terra entendida a partir de lgica produtivista e individualista em que uso e

propriedade adquirem o mesmo sentido, e na qual homem e terra so dissociados no

sendo concebida nenhuma outra relao que no seja de ordem utilitria. Como assinala

o captulo, a partir destas diferenas de entendimento que surgem os conflitos pela

terra. E dos conflitos pela terra que surge a necessidade de reconhecimento pelo

Estado do direito indgena terra, um direito que apesar de previsto em lei e

ver e do ouvir de apreenso dos fenmenos sociais.

39

seguidamente desrespeitado at mesmo por instncias e interesses do Estado, que criam

dificuldades e artifcios administrativos e jurdicos para dificultar e at mesmo

inviabilizar a legalizao das terras ocupadas pelos grupos locais como terra indgena.

O captulo assinala ainda cenrio poltico de enfrentamento dos direitos indgenas

consignados em dispositivos legais nacionais e internacionais no qual interesses anti-

ndio procuram anular, e mesmo excluir, os direitos coletivos dos grupos tnicos;

cenrio marcado por poderes econmicos, polticos e miditicos que se opem a que o

Estado reconhea terras indgenas destinadas ao uso exclusivo de populaes

indgenas, contraposto pela ao inovadora das iniciativas efetivadas pelos prprios

grupos locais de promover a demarcao das terras que ocupam, e por outro lado. Um

cenrio de conflito alimentado por poderosos interesses de ocupao das terras e pelo

preconceito contra os ndios, dando origem a processos de ordem jurdica que criam

dificuldades ao reconhecimento das terras indgenas. Apesar das diferentes

concepes (dos ndios e dos brancos) de terra, as disputas territoriais no decorrem

apenas das diferentes concepes de terra, mas muito mais pelos interesses diferentes

que tais concepes pem em jogo, principalmente no que diz respeito

ocupao/controle/domnio/posse/propriedade da terra e ao uso produtivo e/ou

mercantil da terra. O captulo introduz a discusso sobre os procedimentos de

demarcao de terras indgenas e a iniciativa dos ndios de demarcar por conta prpria

as suas terras. Os procedimentos demarcatrios e a participao dos ndios nas

demarcaes so analisados mais aprofundadamente no prximo captulo.

O Captulo 9, Procedimentos de demarcao de terras indgenas, toma para

estudo de caso os trs procedimentos oficialmente reconhecidos pelo Estado para a

demarcao fsica de terras indgenas demarcao convencional, demarcao

participativa e auto-demarcao , sendo analisadas a iniciativa dos ndios Kulina no

40

mdio rio Juru, a primeira iniciativa de auto-demarcao reconhecida pelo Estado, e

duas outras demarcaes de terras indgenas conduzidas a partir do procedimento

tradicional de demarcao e outra conduzida a partir do procedimento institucionalizado

pelo PPTAL/Funai da iniciativa Kulina. Para a definio dos trs procedimentos

demarcatrios como estudos de caso foram levados em conta aspectos etnolgicos e

de ordem geogrfica. A delimitao geogrfica foi facilitada pelo fato de que numa

mesma regio, mdio rio Juru, foram realizadas trs demarcaes praticamente

simultneas, cada uma efetivada por uma das sistemticas validadas pelo Estado

brasileiro para o reconhecimento de terras indgenas, e, principalmente conhecimento

que acumulei durante longo tempo de trabalho indigenista/antropolgico realizado na

regio. O conhecimento etnolgico sobre os grupos Kulina e Kanamari, advindo deste

tempo de trabalho no rio Juru, foi, talvez, o aspecto que mais pesou para a definio

pelo estudo das trs demarcaes realizadas em terras Kulina e Kanamari no mdio rio

Juru. Um terceiro aspecto que influiu nesta definio o fato de meu envolvimento

pessoal, e como profissional, em diferentes nveis de envolvimento e diferentes

momentos, nas trs demarcaes. O objetivo do captulo no detalhar a dinmica

processual de demarcao das terras indgenas, nem, tampouco, fazer etnografias dos

trs diferentes procedimentos de demarcao operacionalizados pela Funai como

sistemticas de regularizao fundirias das terras ocupadas por grupos indgenas. O

propsito analisar a participao dos ndios nos diferentes procedimentos

demarcatrios, ressaltando as contribuies e/ou obstculos criados por cada um destes

procedimentos para a retomada da autonomia tnica que desde os anos 1970 se constitui

na principal reivindicao dos povos indgenas no apenas no Brasil, mas em toda a

Amrica.

41

O Captulo 10, Da luta pela autodeterminao s armadilhas da parceria,

observa a tenso emancipao-regulao presente em todo relacionado social,

ressaltando a contribuio positiva das diferentes iniciativas indgenas para a construo

de relaes intertnicas plurais, indicando a necessria de superao do Estado moderno

por Estados pluritnicos. Uma nova forma de organizao poltica, portanto um novo

tipo de Estado nacional que na opinio de vrios analistas est em construo,

impulsionada, no exclusivamente, mas muito fortemente, pelas lutas dos povos

indgenas da Amrica Latina, o que significa dizer pelos sistemas sociais, polticos e

epistemolgicos dos grupos tnicos que ainda hoje continuam a existir em toda a sua

fora e eficcia, apesar dos mais de quinhentos anos de regulao hegemonia imposta

pela conquista. Por outra parte, a partir das constataes empricas observadas em

sesses anteriores, este captulo assinala o risco de aniquilamento e anulao da

emancipao social presente em iniciativas tnicas quando estas so submetidas a

parcerias com o Estado para a implementao de polticas pblicas destinadas aos

povos indgenas. Embora o desperdcio das experincias indgenas esteja sempre

presente nas relaes de parceria entre organizaes e entidades indgenas e rgos

pblicos, sendo possvel identific-lo atravs de uma anlise conduzida pelo

pensamento crtico, o captulo no pretende assumir um tom negativo, sugerindo a

postura de um ceticismo resistente nas relaes do Estado nacional com os povos

indgenas, uma postura poltico-intelectual que adota o sentimento ctico para a crtica e

que se alimenta na resistncia tnica dos povos indgenas para afirmar a seu

componente efetivao da resistncia ctica. Todo o captulo toma como foco a

autodemarcao enquanto um projeto etnopoltico para a construo de realidade futura,

dando nfase na auto-demarcao Kulina, a forma mais completa iniciativa

emancipatria produzida pelos povos indgenas no Brasil.

42

Durante os debates em um dos seminrios acadmicos realizados no Centro de

Estudos Sociais (CES), Boaventura, em sua forma de instigar a discusso, perguntou-

me: Por que estabelecer fronteiras para os ndios quando a globalizao derruba,

elimina fronteiras? Por que demarcar terras indgenas hoje?.

claro que a pergunta de Boaventura foi uma provocao, um convite ao

debate, at porque o conjunto de suas proposies conceituais transio

paradigmtica, globalizao contra-hegemnica, hermenutica diatpica, ecologia de

saberes, traduo intercultural, democracia intercultural, estados pluritnicos e

plurinacionais, justia cognitiva, igualdade na diversidade etc. deixa claro que no h

uma contradio entre globalizao, ou globalizaes, como o prprio Boaventura

prefere dizer, e a afirmao de identidades particulares, que para alm das fronteiras

desfeitas pelos processos de globalizao, o que de fato vem ocorrendo a expresso

cada vez mais forte de grupos locais que no contato entre povos diferentes se fortalecem

enquanto expresses sociopolticas diferenciadas.

O que eu espero que essa Tese se oferea como uma resposta quela pergunta

(Por que estabelecer fronteiras para os ndios quando a globalizao derruba, elimina

fronteiras? Por que demarcar terras indgenas hoje?). Uma resposta surgida da

constatao de que para alm de simultneos ao mundo moderno os ndios conformam

sociedades polticas contemporneas e que dessa contemporaneidade dos grupos tnicos

com o mundo moderno podem surgir contribuies efetivas e eficazes para a construo

de novas formas de organizao poltica que abdicando da uniformizao (ilusria!) e

hegemonia (trgica!) estejam fundadas no reconhecimento da pluralidade e na cogesto

do poder entre as diferentes parcialidades socioculturais que se completam no todo

preservando as suas respectivas diferenas.

43

A palavra falada provem de muita gente, de muitos lugares. Surge em um

tempo despojado de sua durao. A palavra escrita a de uma pessoa que no fala e se

dirige a outra que tampouco fala, a quem no conhece e a quem nunca viu nem ouviu

(Roa Bastos, 1996: 51). Em suma, o que diz Augusto Roa Bastos que um livro, e por

extenso, uma tese, uma dissertao, um artigo, nunca escrito por uma nica pessoa.

Esta Tese foi escrita por palavras de muitas pessoas de muitos lugares da

Amaznia. Muita gente, muitos olhares, muitas vises de mundo; algumas que se

articulam em harmonia, outras que se interrogam, e outras mais que se conflituam,

como acontece na maior parte das vezes com os povos indgenas em situao de contato

com as sociedades nacionais. Por muitos olhares, muitas histrias de vida e muitas

estrias vividas, muitas narrativas de experincias pessoais, muitos relatos de estratgias

de lutas e resistncias; muitas confidncias trocadas; muitas expectativas partilhadas.

Muitas vozes, algumas distantes, outras hoje j silenciadas pelo passar do tempo que as

levou para outros lugares ainda mais distantes. De modo especial o Captulo 7 foi

escrito por muitas vozes que me ajudam pensar/repensar a minha prtica enquanto

indigenista/antroplogo em contato com os ndios e o Captulo 7A, por muitas vozes

que me ajudaram a pensar a mim mesmo, a partir do meu trabalho vivido entre os

ndios. Por entender, como Malinowski, que uma breve descrio das atribulaes de

um etngrafo, tal como eu mesmo as vivi, poder esclarecer melhor a questo do que o

poderia qualquer longa discusso abstrata (Malinowski, 1980: 40), optei por adotar

nestes captulos de metodologia uma atitude mais reflexiva, onde assinalo os enfoques e

abordagens terico-conceituais, a postura metodolgica e as tcnicas de pesquisa que

me acompanharam durante o perodo de permanncia/convivncia na aldeia e de

pesquisa de campo para o doutoramento; em fim, os olhares e posturas que contriburam

para a minha vida/trabalho com os ndios me permitisse tambm compreender ainda

44

que uma compreenso parcial, limitada pelo olhar que a minha cultura me condiciona

de uma forma mais distanciada, mais mediada por teoria a vida/trabalho dos ndios,

No muito tempo para a sua finalizao, essa Tese, essa bendita Tese, se tornou

para mim uma obsesso insana, incontrolvel; uma nsia desenfreada de rechear, mais e

mais e mais, a dita cuja com falas, expresses, ideias, conceitos, reflexes e

formulaes tericas, minhas prprias e pinadas de outros, novos dados empricos mais

recentes, atualizaes sempre interminveis. Obsesso insana, incontrolvel, at mesmo

em sonho pesadelo!? , que no me deixava ver que uma Tese sempre inconclusa,

sempre experimental; experimental, no sentido que Darcy Ribeiro e Boaventura do

ao termo:

Aqui na UnB, quando se fez a Lei fui eu que a redigi. Nela se inscreveu que esta uma Universidade experimental, livre para tentar novos caminhos na pesquisa e no ensino. [...] O importante que no se perca a liberdade de tentar acertar por diversos caminhos. A responsabilidade de ousar. O direito de errar (Ribeiro, 1986: 17); Por que fao aqui essa proposta de experimentalismo? Por duas razes. A primeira, como dizia, que realmente no temos as solues. [...] E muitas vezes no se pode antecipar tudo. O experimentalismo permite em primeiro lugar desdramatizar os conflitos. [...] Ter um marco, um horizonte temporal que depois se revisa, ou ter questes que se deixam abertas ajuda nessa direo tambm. A segunda razo que apia o experimentalismo constituinte que permite que o povo mantenha o poder constituinte (Santos, 2007c: 29).

Uma Tese sempre inconclusa, sempre experimental; nunca perfeita, e, ao

mesmo tempo, a mais completa que possvel a todo tesista candidato a doutor

produzir no seu determinado momento histrico, intelectual, pessoal, emocional,

afetivo, poltico etcetera.

Descobri, por fim, apoiado em mxima de Boaventura em muitos textos exibida,

que, para alm de viver obsessiva e insanamente a Tese eternamente prolongada/adiada,

a compreenso do mundo muito mais ampla que a compreenso ocidental do mundo

que a minha Tese me permitiria continuar a compreender. Assim, finalmente, descobri

45

que, em mim, a Tese estava pronta, bastando apenas format-la nos cnones ditados por

essa Coimbra, cidade to ilustre, de to velhos sbios (Saramago, 1982: 116-117).

Descobri... Redescobri em mim a necessidade, muitas vezes adiada de concluir a Tese e

tornar a Coimbra para, em fim, defender a Tese e concluir o doutorado iniciado em

1998; afinal conveniente que me saia doutor, ttulo sem o qual no me so permitidos

novos vos.8

Em guisa de prefcio, Florestan Fernandes, um dos mais, se no o mais

ntegro cientista social brasileiro, realiza uma verdadeira profisso de f em seu ltimo

livro, publicado aps a sua morte: Para o socilogo, no existe neutralidade possvel: o

intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados

(1995: 29), e, para que no paire dvidas, sem meias palavras declara o seu

compromisso:

A recusa ostensiva do poder, em um poeta, e o colocar-se em cima do muro, atravs da neutralidade tica, de um cientista social ou de um filsofo, no so apenas modalidades disfaradas ou sublimadas de participar do poder e de exerc-lo hipocritamente. Elas constituem limites correntes de aceitar o poder maldito ou perigoso da inteligncia corrosiva e devastadora. [...] Ir s razes das coisas pode ser, para um escritor liberal, descobrir uma maneira inteligente de preservar a ordem social estabelecida, e, para um escritor revolucionrio, um modo congruente de fazer a ordem social estabelecida voar pelos ares (Fernandes, 1995: 29-30).

Repetindo as palavras do mestre Florestan Fernandes, estou convencido que

No momento atual, o que me impele para o movimento poltico no a ambio de poder, mas a compulso de servir. Servir a quem e por qu? Aos proletrios [no meu caso aos ndios], de onde provenho [aos quais adotei, e que me adotaram], e para que eles conquistem peso e voz na sociedade civil, poder real nas relaes com o Estado e com a demolio da ordem existente. Enfim, desempenhar um papel ativo na ruptura definitiva com um passado que se reproduz constantemente, sob novas formas. No quero ser ventrloquo ou o outro de um proletariado [de um ndio] que comea a lutar com evidente vitalidade. Porm, ocupar algum lugar no processo pelo qual esse proletariado

8 [...] Bartolomeu Loureno, que no Brasil nasceu e novo veio pela primeira vez a Portugal, [...] (Saramago, 1982: 62); [...] vai tornar a Coimbra, um homem pode ser grande voador, mas -lhe muito conveniente que saia bacharel, licenciado e doutor, e ento, que no voe, o consideram (Saramago, 1982: 115).

46

[esse ndio] se transforma e, ao mesmo tempo, modifica a sociedade brasileira (Fernandes, 1995: 30).

H sempre uma diferena fundamental entre objetividade e neutralidade. Ns

precisamos ser objetivos, mas, no devemos ser neutros, so palavras de outro

mestre (Santos, 2006c), que, convencido, repito,

[...] Porque ser objetivo respeitar todas as metodologias que ns podemos criar para criarem uma coisa que fundamental a toda pesquisa cientfica: deixarmo-nos surpreender pela realidade. Ns s no seremos dogmticos se nos deixarmos surpreender pela realidade. [...] Ns devemos sempre saber de que lado estamos. Porque, neste mundo moralmente injusto, h os opressores e os oprimidos e ns, como cientistas, como cidados, devemos saber de que lado estamos. Devemos saber para que serve nossa cincia ou nosso conhecimento (Santos, 2006c).

E, para que no paire dvidas sobre o meu compromisso, repito, aqui, as

palavras destes dois mestres Florestan e Boaventura , que me acompanharam na

feitura desta Tese, que agora lhes entrego.

Portanto, no se iluda comigo, leitor. Alm de antroplogo, sou homem de f e

de partido. [...] No procure, aqui, anlises isentas (Ribeiro, 1995: 17). E o meu

partido, h muito j est tomado; o meu partido o ndio.

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CAPTULO 1

CENRIOS E PAISAGENS

1.1. Amaznias Amaznia

Quando se fala na Amaznia,

a imensa regio que ocupa dois quintos da Amrica do Sul, falta consenso e sobram polmica, fantasia e impreciso.

Em torno dessa terra cujo nome foi tirado das brumas da fantasia, foi-se formando uma srie de mitos e meias verdades

que se incorporaram ao imaginrio coletivo. s vezes, tal imaginrio chega prpria cincia

ou aos discursos oficiais dos pases que a compem. Esteves, Antnio R. (1993: 7)

A Amaznia um espao em tudo diversificado; um espao mltiplo no apenas

na sua configurao fsica, mas tambm imensamente diversificado em aspectos sociais,

culturais, tnicos e polticos.

A grandiosidade territorial e fsica da Amaznia de tal modo impactante que

desde as primeiras investidas europeias a regio passou logo a dominar o imaginrio

ocidental. Desse modo, a grande maioria das produes, no apenas no campo da

literatura e dos meios de comunicao, mas mesmo nas chamadas cincias humanas,

esto filiadas diretamente a uma episteme naturalista pautada em vastas digresses

sobre o meio fsico como condio para elucidar os homens (Souza Santos, 2008).

Uma grandiosidade territorial, fsica e ambiental que na maior parte das vezes acaba por

impor uma determinao geogrfica aos estudos das sociedades amaznicas, sendo este

um dos primeiros obstculos a serem superados para a formulao de uma viso no-

etnocntrica que supere prenoes essencialistas sobre a Amaznia e suas populaes.

A Amaznia um espao apenas homogneo no tratamento que lhe foi dado

pela colonizao recente orientada por um modo de ser externo e um modelo estranho

de ocupao social que no consideraram/consideram as experincias acumuladas pelas

48

populaes nativas que h milnios se acham instaladas na regio; uma colonizao

externa baseada em princpios e fundamentos que para alm de seus objetivos

pragmticos imediatistas, primeiro de tomada de posse e ocupao territorial colonial e

logo a seguir, e quase sempre concomitante, de explorao econmica dos recursos

naturais, pouco interesse manifesta, tanto pela rica diversidade natural como pela

imensa diversidade social responsvel por fazer da Amaznia uma das reas de maior

sociobiodiversidade no planeta.

Embora hoje j se fale na importncia e riqueza que representa a

sociobiodiversidade da regio, as populaes amaznicas continuam a no despertar um

interesse efetivo em si mesmas, mas unicamente, e quando muito, como fonte de

conhecimento sobre a biodiversidade e como agentes facilitadores do acesso aos

recursos naturais (Oliveira Neves, 2009).

Assim como nas antigas expedies naturalistas oitocentistas, os ndios, e

tambm agora as populaes tradicionais, como so chamados os segmentos no-

indgenas da sociedade regional, continuam a ser vistos no como produtores e

mantenedores da biodiversidade, mas apenas como informantes, guias ou carregadores

nativos; quase como uma espcie de matria prima disposio para ser tambm ela

explorada na mesma lgica predatria descompromissada com qualquer princpio de

direitos humanos e de cidadania.

O olhar prtico sobre a Amaznia continua a perceber a regio segundo os dois

termos clssicos da modernidade: natureza e cultura, tomados como entidades

dissociadas, inconciliveis e mutuamente excludentes, principalmente no que se refere

aos ndios, que antes de tudo so vistos como obstculo ocupao produtiva e ao

desenvolvimento amaznico, tomados ocupao produtiva e desenvolvimento a

partir da concepo positivista (Oliveira Neves, 2009). Em termos polticos, a

49

Amaznia uma extensa faixa de de 7,5 milhes de km2, o que representa 43% da

Amrica do Sul, e que se estende por nove pases: Bolvia, Brasil, Colmbia, Equador,

Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.

MAPA 1 AMAZNIA INTERNACIONAL E

AMAZNIA BRASILEIRA

Fonte: www.geografiaparatodos.com.br

Institudo em 1953, Amaznia Legal brasileira (Amaznia Legal) um conceito

poltico, e no geogrfico, destinado a dotar o Estado brasileiro de dispositivos de

governo para o planejamento e promoo do desenvolvimento da Amaznia brasileira,

regio que abrange a totalidade dos Estados do Acre, do Amap, do Amazonas, do Par,

de Rondnia e de Roraima e parte dos Estados do Mato Grosso, de Tocantins e do

Maranho, com uma superfcie de aproximadamente 5.217.423 km, correspondendo a

cerca de 61% do territrio brasileiro e 68% do territrio da Amaznia internacional.

50

MAPA 2 AMAZNIA LEGAL BRASILEIRA

Fonte: http://www.google.com.br/imgres

A Amaznia uma regio ambgua e, ainda hoje, tratada com ambiguidade,

onde o discurso de preservao mera retrica de polticas pblicas, sendo

frequentemente suplantado por prticas no-sustentveis.

Nos ltimos anos a presso econmica tem sido a maior razo para a devastao

da floresta e para o conseqente prejuzo na qualidade de vida amaznica, situao que

j atingiu ndices crticos na fronteira sul da Amaznia Legal brasileira com a regio de

cerrado do Centro-Oeste, onde o arco do desmatamento, como denominada a rea

de floresta que se estende de Rondnia ao oeste do Maranho, passando pelo norte do

Mato Grosso e sul do Par, funciona como a porta de entrada para a destruio

51

ambiental que o agronegcio vai deixando no rastro da expanso de seus campos de

monocultura sobre a floresta tropical.

Destruio ambiental, apoiada e estimulada pelos programas governamentais de

desenvolvimento que a expanso do agronegcio, a extrao madeireira, a explorao

mineral e a ocupao desordenada empurram cada vez mais para o interior da floresta.

Soja, arroz e biodiesel; concesso de explorao florestal e mineral; projetos

hidreltricos e abertura de estradas; muito mais do que novos modelos de

desenvolvimento regional e nacional, so estes os atuais responsveis pelo

desenvolvimento amaznico s custas da floresta em p e do desperdcio de saberes

produzidos por sistemas de conhecimentos nativos (ndios e populaes tradicionais)

menosprezados por uma lgica desenvolvimentista pseudocientfica de construo a

partir da predao (Oliveira Neves, 2009).

Por fim, cabe assinalar que esta sesso, Amaznias Amaznia, foi

inicialmente pensada como Amaznia, Amaznias, pretendendo com isso ressaltar a

existncia de muitas Amaznias, muitas realidades amaznicas distintas e

profundamente diferentes entre si, que configuram aquilo genericamente denominado

de Amaznia. Embora eu continue a pensar que o ttulo originalmente pensado o mais

indicado, a opo adotada de inverso dos termos para a formatao do ttulo final desta

sesso tem como propsito fugir repetio da expresso Amaznia, Amaznias, que

d nome ao livro de Carlos Walter Porto Gonalves (2001). Assim, para no incorrer,

ainda que inconsciente, no erro sempre imprprio e desnecessrio da reproduo do

nome de uma obra, fao aqui uma alterao na ordem dos termos, at mesmo porque a

52

forma final adotada, Amaznias Amaznia, no modifica o sentido inicialmente

pretendido para este texto9.

1.2. Por que Amaznia?

O nome Amaznia est ligado expedio do navegador espanhol Francisco

Orellana, que em 1541, procura das lendrias civilizaes de ouro do El Dorado

rasgou a floresta do Pacifico ao Atlntico, constituindo-se no primeiro europeu,

juntamente com aqueles que o acompanhavam na expedio, a percorrer o rio-mar em

toda a sua extenso10. Tendo lutado contra uma tribo que lhes pareceu de ndias

guerreiras, Orellana e seus homens fizeram associao s amazonas, mulheres

guerreiras da mitologia greco-romana, advindo da o nome Amaznia que perdura at os

dias atuais. Muito provavelmente o que os espanhis julgaram serem mulheres

guerreiras tenham sido ndios Omgua, avistados nas margens do alto-mdio rio

Solimes, que resistiram entrada dos espanhis11.

A toponmia amaznica est praticamente toda ela ligada presena indgena,

numa prova inconteste da presena dos ndios anterior s populaes de origem

europeia que apenas a partir da segunda metade do sculo XVI se instalou na regio.

So vrias as teorias que procuram explicar as origens dos nomes dos estados brasileiros

que compem a Amaznia:

Acre derivao das palavras tupi a'kir (rio verde) ou da forma a'kir (dormir,

sossegar).

Amap derivao da palavra tupi ama'pa.

9 Agradeo Diogo Labiak Neves pela leitura crtica, e por me apresentar o livro de Carlos Walter Porto Gonalves, chamando a minha ateno para a reproduo de nomes a que eu estava incidindo. 10 Rio-mar: o rio Amazonas, pela sua extenso. 11 Na cultura dos antigos Omgua, tradicionalmente habitantes da regio do alto rio Solimes, na fronteira Brasil Colmbia Peru, os homens usavam longos cabelos, o que deve ter contribudo para o mal entendido pelos membros da expedio Orellana.

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Maranho derivao das palavras tupis pa'ra (mar), na, ana (semelhante) e jh

(sair, ir correr), onde o significado semelhante a um mar que corre, era a forma como

os indgenas das terras que hoje forma o Peru chamavam o rio Maraon.

Par derivao da palavra tupi pa'ra (mar).

Roraima derivao das palavras caribe rora (verde) e im (monte), sendo

monte verde a forma como os indgenas chamavam o monte Roraima.

Tocantins derivao da palavra tupi tucan-tim (nariz de tucano); etnnimo de

um povo indgena, que batizou o rio de mesmo nome e mais tarde o estado.

Rondnia nome atribudo em homenagem ao marechal Cndido Rondon, o

fundador do Servio de Proteo ao ndio (SPI)12 e responsvel pela definio das bases

da poltica indigenista no Brasil.

Amazonas nome atribudo pelos espanhis ao rio Amazonas, a partir da

associao com as amazonas guerreiras que pensaram ter avistado em suas margens.

Mato Grosso nome atribudo pelos bandeirantes s minas de ouro encontradas

na regio Centro-Oeste.

1.2.1. O mito do vazio populacional

Paralelamente percepo da grandiosidade da Amaznia, na mesma medida

desenvolveram-se os preconceitos sobre a regio e suas gentes. Talvez um dos mais

consolidados preconceitos seja aquele que toma a Amaznia como uma terra sem gente,

um imenso vazio demogrfico, como em meados dos anos 1800 propagandeava o

Imprio brasileiro13, vido por atrair para a regio um contingente populacional que

12 Inicialmente SPILTN: Servio de Proteo ao ndio e Localizao dos Trabalhadores Nacionais. 13 No por acaso, o novo pas, criado em 1822 [com a Independncia], no se chamou reino como a metrpole, mas Imprio. S a designao imprio parecia adequar-se dimenso geogrfica e dimenso de suas ambies para o futuro. Este complexo de grandeza, ao lado do mito ednico, passou a fazer parte do imaginrio do pas (Carvalho, 2006).

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alm de ocupar produtivamente a regio tambm viesse contribuir para a sustentao da

Coroa, j, ento, ameaa