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Volume 1, Número 2, jul/dez 2013. ISSN 2318-0129 MORAL, ÉTICA E VIRTUDE Ricardo B. Buchaul REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS DA INSTRUÇÃO ESCOLAR BRASILEIRA: A MAÇONARIA NOS LIVROS DIDÁTICOS Fernando Magalhães O HOMEM QUE QUERIA SER REI: UMA AVENTURA MAÇÔNICA Edgard da Costa Freitas Neto AS LOJAS UNIVERSITÁRIAS E A MODERNIZAÇÃO DA MAÇONARIA: UM ESTUDO NO GOB DA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI Lucas Francisco Galdeano PAVIMENTO MOSAICO: UMA INCURSÃO SIMBÓLICA PELA CABALA MEDIEVAL Rodrigo Peñaloza RITO DE YORK ATUALIZADO: TRABALHO DE EMULAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO (REVIEW) Antônio Jaimar Gomes Parceiro:

Volume 1, Número 2, jul/dez 2013. ISSN 2318-0129 · Loja Maçônica “Flor de Lótus Nº38” PKP – Public Knowledge Project Aviso: Os artigos publicados são de inteira responsabilidade

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  • Volume 1, Nmero 2, jul/dez 2013. ISSN 2318-0129

    MORAL, TICA E VIRTUDE

    Ricardo B. Buchaul REPRESENTAES IDENTITRIAS DA INSTRUO ESCOLAR BRASILEIRA: A MAONARIA NOS LIVROS DIDTICOS

    Fernando Magalhes

    O HOMEM QUE QUERIA SER REI: UMA AVENTURA MANICA

    Edgard da Costa Freitas Neto AS LOJAS UNIVERSITRIAS E A MODERNIZAO DA MAONARIA: UM ESTUDO NO GOB DA PRIMEIRA DCADA DO SCULO XXI

    Lucas Francisco Galdeano PAVIMENTO MOSAICO: UMA INCURSO SIMBLICA PELA CABALA MEDIEVAL

    Rodrigo Pealoza

    RITO DE YORK ATUALIZADO: TRABALHO DE EMULAO E APERFEIOAMENTO (REVIEW)

    Antnio Jaimar Gomes

    Parc

    eir

    o:

  • Misso: Democratizar a produo acadmico-

    cientfica sobre Maonaria e seu acesso.

    Dados Catalogrficos: ISSN 2318-0129

    Julho a Dezembro de 2013 Volume 01. Nmero 02.

    Periodicidade:

    Semestral

    Conselho Editorial: Gabriel Castelo Branco

    Kennyo Ismail Max Stabile Mendes Nihad Faissal Bassis

    Conselho Cientfico:

    Vide in website.

    Contatos: Editor-Chefe: Kennyo Ismail

    [email protected]

    Suporte Tcnico: Nihad Bassis [email protected]

    Portal - www.cienciaemaconaria.com.br

    Parceiros:

    Loja Manica Flor de Ltus N38 PKP Public Knowledge Project

    Aviso: Os artigos publicados so de inteira responsabilidade de seus autores e no exprimem, necessaria-mente, o ponto de vista da Revista Cincia & Maonaria. No necessrio solicitar prvia autoriza-o para reproduzir parte do contedo publicado nesta revista, desde que sejam citados o autor e a fonte.

    Imagem da Capa: Nome: Emblemas Manicos, publicado originalmente em ingls: Masonic Emblems. Autor: William Garey Publicado por: George Kenning Local: Londres, Liverpool & Glasgow, Inglaterra. Data: Abril de 1874. A obra foi respeitosamente dedicada (com permisso) a J. Whyte Melville Esq're of Bennochy, o Mui Respeitvel Gro Mestre da Grande Loja da Esccia. Fonte: http://freemasonry.bcy.ca/art/masonic_emblems1874.html

    A primeira revista acadmico-cientfica brasileira com foco no estudo da Maonaria

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    Sumrio

    A primeira revista acadmico-cientfica brasileira com foco no estudo da Maonaria

    Palavra do Editor 93-94

    Moral, tica e Virtude

    RICARDO B. BUCHAUL

    95-101

    Representaes Identitrias da Instruo Escolar Brasileira: A Maonaria nos

    Livros Didticos

    FERNANDO MAGALHES

    103-115

    O Homem que Queria Ser Rei: Uma Aventura Manica

    EDGARD DA COSTA FREITAS NETO

    117-124

    As Lojas Universitrias e a Modernizao da Maonaria: Um Estudo no GOB na Pri-meira Dcada do Sculo XXI

    LUCAS FRANCISCO GALDEANO

    125-136

    Pavimento Mosaico: Uma Incurso Simblica pela Cabala Medieval

    RODRIGO PEALOZA

    137-156

    Rito de York Atualizado: Trabalho de Emulao e Aperfeioamento (resenha)

    ANTNIO JAIMAR GOMES

    157-162

    Sobre a Revista Cincia & Maonaria 163-164

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    Prezados leitores,

    H novidades desde o lanamento de nosso nmero inaugural e que ficamos felizes em compartilhar nessas pginas preliminares de nos-so segundo nmero. De l pra c, a revista Cin-cia & Maonaria C&M passou a constar em im-portantes diretrios e indexadores internacionais e nacionais: DOAJ Directory of Open Access Journals; Academic Journals Database; Latindex Sistema Regional de Informacin em Lnea para Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y Portugal; Sumarios.org - Sumrios de Revistas Brasileiras; e Diadorim - Diretrio de Po-lticas de Acesso Aberto das Revistas Cientficas Brasileiras. O reflexo disso foi o grande aumento no volume de visitas e downloads, alm da revis-ta agora constar nas bibliotecas virtuais de Uni-versidades de renome internacional, como Har-vard University e Florida Institute of Technology.

    Tal xito graas no somente ao exce-lente corpo editorial e conselho cientfico, que trabalham arduamente para oferecer uma revista de qualidade superior em todos os sentidos, mas tambm aos autores que colaboram com seus estudos e pesquisas, fornecendo artigos com o mximo de rigor e relevncia, e, principalmente, a vocs, leitores, objetivo maior da Cincia & Ma-onaria. At a concluso deste texto, os artigos do nmero inaugural j foram lidos por mais de dez mil leitores diretamente pelo website da re-vista, sem contar a leitura dos arquivos em PDF que circulam por e-mails ou impressos de mo em mo, e que no temos como mensurar. Agra-decemos a cada um de vocs pelo interesse em literatura manica produzida de forma sria e criteriosa por estudiosos e pesquisadores de re-nome.

    Cabe aqui realizar um agradecimento es-pecial ao Irmo Nihad Faissal Bassis, MSc, res-ponsvel tcnico pelo website e o bom funciona-mento do sistema aberto adotado pela revista, que atualmente congrega centenas de leitores e autores cadastrados, alm de proporcionar todo o processo de submisso, avaliao, edio e pu-blicao. Mesmo residindo no Canad, o Irmo Nihad tem sido presente em todas as etapas de melhorias pelas quais a C&M passa.

    Compreender a razo da existncia da C&M no tarefa difcil. Basta que o leitor v at uma livraria e procure por um livro de Maonaria. Muitas vezes no h ttulos disponveis, mas, quando h, esto na prateleira dos... esotricos. Isso mesmo, entre os livros de bruxaria e os de tar! No que haja algo contra bruxaria ou tar, mas, convenhamos, a verdadeira Maonaria no se enquadra nessa seo. E o leitor pode consta-tar facilmente isso ao realizar o mesmo teste em livrarias de pases como Inglaterra, Alemanha, EUA, Canad e tantos outros. Escrever sobre Ma-onaria sempre foi algo levado muito a srio na maioria dos pases. Desejamos veementemente que o mesmo ocorra em nosso querido Brasil, segunda maior nao manica do mundo, atrs apenas dos EUA e logo acima da Inglaterra.

    Nessa importante misso, j sabemos que no estamos sozinhos. Registramos o conheci-mento da revista Fraternitas in Praxis FinP, sediada no Rio de Janeiro, cuja proposta similar da C&M, no sentido de proporcionar literatura manica com rigor normativo e metodolgico e, por esse motivo, recomendamos sua leitura. Esperamos que outras publicaes manicas brasileiras sigam esses exemplos, no necessaria-mente seguindo a vertente acadmico-cientfica,

    C&M | Braslia, Vol. 1, n.2, p. 93-94, jul/dez, 2013.

    Palavra do Editor

    Volume 1

    Nmero 2

    jul/dez. 2013

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    mas, pelo menos, evitando plgios e exigindo um mnimo de referncias bibliogrficas dos arti-gos a serem publicados. Quem sabe assim a Ma-onaria brasileira consiga se movimentar de for-ma mais madura na linha que separa a Escola Hogwarts, de Harry Potter, da Royal Society, de Desaguliers. E quando isso acontecer, os livros manicos com certeza migraro de prateleira.

    Neste nmero, voc ter a oportunidade de ler um interessante artigo, de autoria de Ri-cardo Buchaul, que aborda questes filosficas relacionadas aos conceitos de tica, moral e vir-tude, termos largamente presentes nas instru-es manicas.

    H tambm uma anlise de contedo da presena da Maonaria nos livros didticos de Histria, cujos resultados so apresentados no excelente artigo de Fernando Magalhes, que utiliza de recursos tericos como Foucault em sua anlise.

    J Edgard Neto brinda-nos com uma pro-funda anlise da filosofia e simbologia mani-cas presente na obra literria O homem que queria ser rei, de Rudyard Kipling, um clssico da literatura inglesa que, inclusive, ganhou uma verso cinematogrfica na dcada de 70.

    Apresentamos tambm um estudo de ca-so realizado por Lucas Galdeano sobre as Lojas Universitrias do Grande Oriente do Brasil na pri-meira dcada do sculo XXI, sugerindo esse mo-delo de Loja como importante pilar de reergui-mento, no somente da Maonaria brasileira, mas tambm da sociedade.

    Ainda, Rodrigo Pealoza apresenta em seu artigo, Pavimento Mosaico: Uma Incurso Simblica pela Cabala Medieval, reflexiva anlise simblica do emprego do pavimento mosaico no meio manico pelas concepes cabalistas me-dievais sobre a Tor.

    Esses artigos concentram-se em cincias como Filosofia, Histria, Literatura e Teologia, tendo em comum a Maonaria como campo de estudo, em sintonia com o compromisso institu-cional da revista Cincia & Maonaria, de publi-

    car produo cientfica multidisciplinar relaciona-da Maonaria de forma gratuita.

    Desejamos uma excelente leitura a todos!

    Sincera e Fraternalmente,

    Kennyo Ismail

    Editor-Chefe

    C&M - PALAVRA DO EDITOR

    C&M | Braslia, Vol. 1, n.2, p. 93-94, jul/dez, 2013.

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    MORAL, TICA E VIRTUDE

    (MORALS, ETHICS AND VIRTUE)

    Ricardo B. Buchaul

    Resumo

    Este artigo rev as conceituaes para moral, tica e virtude, indicando-as como fundamentos para o exerccio da virtude no eterno caminho do aperfeioamento do maom. .

    Palavras-chaves: Maonaria, Moral, tica, Virtude

    Recebido em: 21/10/2013 Aprovado em: 08/11/2013

    Abstract

    This article reviews the concepts to morals, ethics and virtue, indicating them as a basis for the exercise of virtue in the eternal path of improvement of Freemason.

    Keywords Freemasonry, Morals, Ethics, Virtue

    Ricardo B. Buchaul engenheiro agrnomo, com Especializao em Engenharia Sanitria e Ambiental, e em Direito Constitucional. Mestre Maom. Autor do livro Gnese da Maonaria no Brasil (So Jos dos Campos: Clube de Autores, 2011), membro da Loja Manica Arquitetos da Harmonia No. 2829 - GOSP/GOB. E-mail: [email protected]

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    Introduo

    Falar de moral, de tica e de virtude nos tempos de hoje pode parecer um contrassenso ou um tema por demais terico para que oferea alguma utilidade imediata para nossas vidas. Afi-nal, vivemos em uma poca na qual muitos valo-res humanos parecem estar to relegados, to ausentes na sociedade moderna que, por vezes, poderia, at, parecer um tanto piegas tratar de tema dessa natureza. Nas clebres palavras do guia de Haia, Ruy Barbosa:

    De tanto ver triunfar as nulida-des, de tanto ver prosperar a de-sonra, de tanto ver crescer a in-justia, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mos dos maus, o homem chega a desani-mar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.2

    Mas, por isso mesmo, esta talvez seja a melhor oportunidade para faz-lo. E, justamente, por serem to necessrios ao ser humano mo-derno, seja mesmo adequado o momento para falarmos de valores, para pensarmos em virtudes, sobretudo entre obreiros da Arte Real.

    Moral e tica

    O filsofo catalo Jos Ferrater Mora ob-serva que, s vezes, os termos moral e tica so utilizados indistintamente, embora o primeiro tenha um significado bem mais amplo que o se-gundo. Para ele, no entanto, a moral aquilo que se submete a um valor (FERRATER MORA, 1978).

    Um entendimento mais aprofundado da palavra moral, originria de mores, do latim, com o significado de costumes e, por sua vez, da pa-lavra tica, que tem origem grega, em ethos, sig-nificando o modo de ser, permite avanarmos sobre o real e amplo sentido de cada um desses

    termos, de modo a evitarmos costumeiras confu-ses ocorrentes.

    Assim, poderemos pensar a moral como referindo-se aos costumes de uma populao como, por exemplo, o padro moral adotado por um determinado grupo, o conjunto das normas que regulam o comportamento dos indivduos nesse grupo, e que adquirido atravs do apren-dizado, ou seja, pela educao, pela tradio e pelo cotidiano de cada um.

    A moral tem, no entanto, um carter mais normativo e um trao de obrigatoriedade, e se origina na prpria existncia do grupamento hu-mano. Por essa razo, fruto da dinmica de for-mao e de desenvolvimento do grupo em ques-to e pode, dessa forma, ser diferente da moral de outros grupamentos que, por sua vez, possu-am valores prprios, diferentes.

    A tica, por outro lado, muito mais indi-vidual do que grupal. Nair de Souza Motta (1984) assim a define:

    o conjunto de valores que orien-tam o comportamento do ho-mem em relao aos outros ho-mens na sociedade em que vive, garantindo, outrossim, o bem-estar social. (MOTTA, Nair de Souza. tica e Vida Profissional. 1984)

    Talvez, um entendimento inicial compara-tivo poderia ser construdo se olhssemos para a moral como um conjunto de normas que regu-lam o comportamento de um grupo, enquanto, para a tica, olharamos como um conjunto de valores que orientam o comportamento do indi-vduo.

    Podemos dizer, da tica, resumidamente, que se trata da maneira como o indivduo deve se comportar em seu ambiente social e em rela-o s demais pessoas com as quais se relacio-nar. Podemos, ainda, considerar que, a partir de

    BUCHAUL, R. B. MORAL, TICA E VIRTUDE

    C&M | Braslia, Vol. 1, n.2, p. 95-101, jul/dez, 2013.

    2 OLIVEIRA, Ruy Barbosa de - Triunfo das Nulidades. Trecho do discurso Requerimento de Informaes sobre o Caso do

    Satlite, proferido no Senado Federal, no Rio de Janeiro, em 17 de dezembro de 1914.

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    uma tica individual, se constri um valor social e, deste, se elabora a lei, quando aquele valor j se encontra consolidado na sociedade em pauta.

    A tica surgiu no seio do pensamento clssico grego, no sculo IV a.C., quando o filso-fo Scrates demonstrou que ela seria sempre o juiz individual das normas morais, as quais o ho-mem deve seguir, no somente por educao ou por tradio, mas por convico e em razo de sua prpria reflexo. Podemos, ento, perceber, que aqueles filsofos, desde a Grcia Clssica, foram os primeiros a pensar o conceito de tica, associando ao termo as ideias da prpria moral e da cidadania.

    Nesse sentido, tambm importante con-siderarmos que as cidades-estados gregas3, na-quele tempo, encontravam-se em sua fase inicial de desenvolvimento e, portanto, havia uma ne-cessidade implcita de harmonia e de honestida-de entre seus cidados, o que fazia conceber ideias que, ento, fomentassem essas condies entre os moradores da to propalada polis grega (EGG, 2009).

    Por outro lado, tambm no podemos perder de vista que a polis grega era, no dizer de Nicole Loraux (2007), uma estrutura de exclu-so, j que apenas os chamados cidados toma-vam todas as decises da cidade poltica, mesmo tratando-se de uma sociedade onde tambm existiam as mulheres, as crianas, os escravos e os estrangeiros.

    De qualquer forma, os gregos Scrates e Plato, assim como o macednio Aristteles, si-tuam-se entre aqueles filsofos que, inicialmente, lanaram as bases conceituais da tica, cada um deles com a sua devida importncia. Aristteles, no entanto, foi o que mais influenciou nossa civi-lizao ocidental, como j nos referimos em ou-tro trabalho, no qual abordamos a virtude entre os gregos clssicos.4

    Posteriormente, alm do mundo grego,

    Jesus de Nazar e a sua tica do amor ao prxi-mo introduziu no pensamento de sua poca o que, mais tarde, ficou conhecido como a tica crist, da qual, avidamente, se apoderaram as igrejas subsequentes. Ao institurem seus pr-prios dogmas, tais igrejas desfiguraram aquela tica no que tinha de mais original, prtica que se mantm ainda hoje em nossas sociedades.

    Na esteira daquela tica crist, mas incor-porando o ideal e o pensamento de sua igreja, em seu prprio tempo, surgem, ento, grandes pensadores do porte de Agostinho, no sculo IV e Toms de Aquino, no sculo XIII, verdadeiros baluartes das virtudes crists.

    At hoje, podemos observar que os princ-pios intrnsecos tica aristotlica e tica crist influenciam, sobremaneira, a nossa sociedade ocidental e o pensamento dos filsofos que se empenham no seu estudo. A manuteno do conceito grego de virtudes cardinais incorporado pelas igrejas reflete, em parte, aquela tica, anali-sada no Grau de Companheiro, do Rito Escocs Antigo e Aceito.

    Um importante filsofo de nossa era atual (1844-1900) foi Friedrich Wilhelm Nietzsche, que dedicou quase toda a sua obra moral e s con-cepes ticas tradicionais, mas que, por outro lado, tambm foi um rduo crtico da tradio filosfica. Ramiro Fernando Lopes Marques co-menta, de modo sinttico, sobre esse pensador alemo:

    Nietzsche foi um filsofo ator-mentado com a moral e a prova disso que, foi dos poucos, que lhe dedicou toda a sua obra. E f-lo com tanta energia, criatividade e mestria que podemos dizer que h uma tica antes de Nietzsche e um tica psnietzschiana. Toda a sua obra, e em particular os ensaios Para A Genealogia da Moral e Para Alm do Bem e do

    BUCHAUL, R. B. MORAL, TICA E VIRTUDE

    C&M | Braslia, Vol. 1, n.2, p. 95-101, jul/dez, 2013.

    3 A cidade-Estado constitua o modelo de cidade adotado pelos gregos antigos que a chamavam de polis. Tratava-se de uma cidade que era independente, com seu governo e suas leis prprias, embora estivesse inserida em um pas. Assim foram, por exemplo, Atenas, Troia e Esparta. 4 BUCHAUL, Ricardo B. As Virtudes de Todo Dia. No prelo.

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    Mal, so um combate enrgico contra as vrias tradies ticas que o precederam, nomeada-mente a tradio judaico-crist e a concepo individualista intro-duzida por Kant. No , portanto, por acaso que, ao longo da sua obra, se sinta a presena de dois dios de estimao: Aristteles (cuja filosofia foi apropriada pela matriz crist medieval) e Kant (cuja filosofia abre caminho moderna concepo de tica).5

    Existem normas sociais tradicionais (a mo-ral) que, por si, orientam todo o comportamento dos indivduos, como se o seu cumprimento fos-se obrigatrio. Assim, por exemplo, mentir mo-ralmente condenvel e, portanto, deve-se dizer a verdade (todos estamos, moralmente, obrigados a dizer a verdade). A tica surge, justamente, co-mo forma de organizar uma norma que pode, por exemplo, no ser a mais apropriada ou digna de ser cumprida, pelo mal que possa causar con-siderando que, s vezes, no seria adequado di-zer a verdade. O que, tambm, no significa que, de qualquer forma, se autorize a mentira. Mas, dessa forma, por exemplo, que a tica no per-mite que uma moral seja absoluta e, por essa ra-zo, insiste em definir quando ela deve mudar. Eis, desse modo, a tica em ao: existe uma nor-ma, uma regra social tradicional que pode ser inadequada e, portanto, deve ser considerada de outra forma. A tica assim o faz, como nas pala-vras do lusitano poeta: Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevan-ta (CAMES, 2007).

    Podemos, tambm, considerar uma situa-o hipottica, na qual algum esteja morrendo, necessitando de um medicamento cujo valor, de imediato, o torna completamente inacessvel. quando um indivduo decide furt-lo para salvar aquela vida. A norma (moral) no roubar, mas a tica em ao privilegiou o valor representado pela vida, em detrimento da norma.

    Como exemplo derradeiro, durante todo o perodo que se estendeu entre os sculos XVI e XIX, a escravido humana era considerada moral-mente aceitvel e no era errado ter escravos. Pelo contrrio, algumas sociedades privilegiavam a posse desses escravos e enalteciam o status de senhor de escravos. Hoje, qualquer pessoa capaz de reconhecer como absurda aquela posi-o, dantes to comum.

    Ento, podemos dizer que a moral mudou, os costumes mudaram, assim como as regras re-formularam-se a partir desses posicionamentos novos onde a tica humanista se manifestou contra o status quo da moral que imperava poca.

    Virtude

    A virtude, por seu turno, pode se caracte-rizar como uma qualidade, um hbito positivo de se insistir na prtica do bem, vale dizer, daquilo que correto, decente, justo, honesto, etc., e que desenvolvido pelo indivduo atravs do prprio exerccio e da constncia de sua prtica.

    A virtude, portanto, fomenta a tica na prtica constante, tanto das aes moralmente corretas, como tambm no exerccio de outras tais que iro corrigir a moral implantada, estimu-lando, assim, a evoluo moral dos indivduos e, consequentemente, de um povo. Desse modo, aqui, talvez, resida a essncia da arte de levantar templos virtude.

    Um pensador moderno, bastante afinado com as vises de Aristteles sobre a virtude, o conhecido filsofo escocs Alasdair Chalmers MacIntyre. Trata-se de um crtico radical do pro-jeto iluminista moderno e um defensor incontes-te da tica clssica das virtudes uma posio, como vimos, diferente da adotada por Nietzche, no que se refere ao platonismo.

    O seu pensamento se caracteriza por uma firme e erudita apropriao das teorias morais e

    BUCHAUL, R. B. MORAL, TICA E VIRTUDE

    5 MARQUES, Ramiro Fernando Lopes. A tica de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Disponvel em:

    . Acesso em: 17 ago 2012.

    C&M | Braslia, Vol. 1, n.2, p. 95-101, jul/dez, 2013.

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    polticas dos gregos antigos aos nossos dias.6 Ele considera que as virtudes so aquelas disposi-es que, no apenas mantm as prticas e nos permitem alcanar os bens internos a essas prti-cas, mas nos conduzem a uma busca do bem, nos auxiliam a vencer os riscos, perigos, tenta-es e as distraes que encontramos, e a procu-rar um permanente e crescente autoconhecimen-to e crescente conhecimento do bem (McINTYRE, 2001).

    Para sua concepo de virtude moral, Ma-cIntyre (2001) toma como ponto de partida a te-oria das virtudes de Aristteles e da tica crist, adotando-as como seus dois principais paradig-mas (CARDOSO, 2010).

    Uma disposio firme e constante de pra-ticar o bem: eis a virtude, em poucas palavras, assim como a v o pensamento exarado dos en-sinamentos da Maonaria.7 A esse conceito, deve-se agregar a ideia de uma verdadeira inclinao, vale dizer, de uma tendncia para a prtica do bem. Andr Comte-Sponville (2009) acrescenta que ela, a virtude, o prprio bem, em esprito e verdade. E o bem no para se contemplar, mas para se fazer e, desse modo, a virtude o esforo para se portar bem que, em ltima instncia, de-fine o bem nesse prprio esforo.

    Para o filsofo alemo Josef Pieper, consi-derado um dos mais conhecidos pensadores cris-tos da atualidade, dono de uma vastssima pro-duo literria, a virtude a fora com a qual o homem inclinado a fazer o bem. Seguindo o pensamento de Toms de Aquino, Josef Pieper considera, como elemento mais importante para o conceito de virtude, assim como apontado por Aristteles, o fato de que a virtude um hbito.8

    Esse conceito insistentemente repetido neste trabalho, como o exerccio da prtica do bem tambm o na formao da virtude.

    Por sua vez, Emmanuel Kant considera o valor moral de uma ao como no residente ne-la prpria, mas no motivo que levou o indivduo a pratic-la. E que tal motivo deve consistir, uni-camente, no respeito lei moral, obtida a partir da razo e livre de quaisquer determinaes em-pricas, como, por exemplo, as inclinaes do in-divduo. O respeito ao dever, somente, , assim, condio necessria para a atribuio de um va-lor moral genuno a uma ao (PETRY, 2007).

    Com isso, Kant mostra que as aes que tm presentes as inclinaes como seus motivos no poderiam ter valor moral. A possibilidade das virtudes constiturem um aspecto importante da ao no que diz respeito sua moralidade eliminada, uma vez que o respeito ao dever a condio subjetiva para o valor moral da ao (Ibid).

    Para o filsofo brasileiro Andr Luiz Souza Coelho,

    Toda virtude distino de car-ter, quer dizer, posse de certa qualidade, disposio e motiva-o especfica que falta aos de-mais (s pessoas comuns) e por isso dota a pessoa virtuosa de um brilho prprio, que a torna merecedora ora da admirao, ora da inveja dos demais (aqui, ambos, admirao e inveja, pode-riam ser considerados dois plos do mesmo padro de reao di-ante do que lhe superior).9

    BUCHAUL, R. B. MORAL, TICA E VIRTUDE

    6 ARAJO, Luiz Bernardo Leite. MacIntyre e a tica das Virtudes. Disponvel em: . Acesso em: 24 jun 2012.

    7 A Maonaria, como Ordem que almeja uma humanidade melhor a partir da evoluo do indivduo, v o desenvolvi-

    mento das virtudes no homem como um instrumento do qual o indivduo se utiliza para o seu aprimoramento como ser social.

    8 ORC COTRIM, Policarpo. A tica das Virtudes no Pensamento de Josef Pieper. Disponvel em: . Acesso em: 29 jun 2012.

    9 COELHO, Andr Luiz Souza. tica: Coragem. Disponvel em: . Acesso em: 19 jul 2012.

    C&M | Braslia, Vol. 1, n.2, p. 95-101, jul/dez, 2013.

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    A abordagem tica da virtude na moderni-dade relaciona-se com o raciocnio intelectual, mas tambm, e sobretudo, com o carter e a busca de excelncia das prticas conduzidas pelo indivduo. Assim, responder s questes Como devo agir? e Que tipo de pessoa devo ser? o exerccio permanente que se coloca diante do homem10, em geral, e do maom, em particular.

    O pensamento do mundo moderno, no entanto, no pode considerar virtuoso e moral-mente vlido um ato a partir, to somente, de seu julgamento interior e dos valores que lhe so implcitos, por mais consensual que possa ser. mister que se veja, antes, os resultados dele de-correntes, isto , quais as consequncias da ao tomada o que, no dizer de Claudio Mano, pode assim ser entendido: a virtuosidade da ao no mais inerente ao ato, mas sim dependente de uma avaliao posterior, efetuada pela socieda-de.11

    Conhecer as principais virtudes humanas, absorver o seu entendimento e exercit-las como modo de vida, como trao de carter nas aes prticas da vida diria o que as consolida e, en-fim, caracteriza o homem virtuoso, uma vez que o hbito da retido impele esse homem virtuoso a uma vida reta. Esse o sentido prtico de polir as arestas para aperfeioar as pedras que cons-troem o templo interior de cada um de ns. Eis, enfim, como antes nos referimos, a operacionali-dade da construo de templos virtude.

    Segundo o professor Andr Luiz Souza Coelho, pode-se reconhecer qualquer virtude a partir de seus quatro elementos constitutivos, quais sejam, aqueles que se referem situao, emoo, ao e finalizao do ato virtuoso.

    O primeiro, o componente situacional da virtude, o que se refere ao tipo de circuns-

    tncia ou de situao que requer o exerccio da-quela virtude, como no caso da coragem, que requer uma situao de risco, por exemplo, para que um ato, naquela circunstncia, se reverta de virtuosidade. Diante da situao que se apresen-ta, deve surgir o segundo elemento constitutivo das virtudes, o que se refere emoo envolvida com o quadro que se tem diante de si. Trata-se, desse modo, do sentimento que despertado no indivduo e o impele ao. Este o terceiro dos componentes, o que define que ao requerida pela situao, a qual apontada pelo sentimento desperto. E, finalmente, existe um componente de finalizao, que remete ao propsito que a virtude requer.12

    Consideraes Finais

    A partir de consideraes, ainda que sin-gelas, como as que compilamos neste pequeno trabalho, podemos, os obreiros da Ordem Real, laborar mais precisamente na implantao dos hbitos que constituiro as virtudes manicas de cada um, j cnscios da moral de nosso tem-po, aprimorada esta, no entanto, pela tica ma-nica, atravs da qual nos pautamos, a fim de que, como tais, sejamos reconhecidos.

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    REPRESENTAES IDENTITRIAS DA INSTRUO ESCOLAR BRASILEIRA:

    A Maonaria nos Livros Didticos

    (IDENTITY REPRESENTATIONS OF THE BRAZILIAN SCHOOLING: Freemasonry in Schoolbooks)

    Fernando Magalhes

    Resumo

    No momento em que nas escolas pblicas o Programa Nacional do Livro Didtico, PNLD 2012, ofereceu aos professores a escolha do livro a ser trabalhado no ensino mdio, elaboramos a leitura de 12 obras oferecidas para esta seleo na disciplina de Histria. Analisamos a insero do tema Maonaria nestas obras, valendo-nos dos recursos tericos de Barthes (1973), Veyne (1976), Foucault (1996) e Revel (2002), sobre prazer, constantes, sociedade de discurso e tempo social. O tema na Histria do Brasil parcamente abordado nas Conjuraes Baiana e Mineira, na Independncia e na questo religiosa. Na Histria Geral, nada foi encon-trado. Conclumos que a atuao da maonaria enquanto lcus de sociabilidade e transmisso de ideias deve ser objeto de maiores estudos histricos.

    Palavras-chaves: instruo escolar; Maonaria; livros didticos.

    Recebido em: 07/10/2013 Aprovado em: 21/12/2013

    Abstract

    When National Schoolbook Program 2012 - PNLD offered teachers the choice of book to be worked in high school, We elaborated the reading of 12 schoolbooks offered for this selection in the discipline of History. We analyze the inclusion of the topic "Freemasonry" in these schoolbooks, using the theoretical resources of Barthes (1973), Veyne (1976), Foucault (1996) and Revel (2002), about pleasure, constant, time of speech and social society. The theme in the history of Brazil is poorly addressed in Bahia and Mi-nas Gerais Conjurations, Independence and the "religious issue." In general history, nothing was found. We conclude that the role of Freemasonry while locus of sociability and transmission of ideas should be subject to higher historical studies.

    Keywords Schooling, Freemasonry, Schoolbooks.

    Fernando da Silva Magalhes tem Doutorado em Educao pela UERJ (2013), Mestrado em Educao pela UFRJ (2009), e bacharelado e licenciatura em Histria pela UFRJ (1990). o atual Venervel Mestre da Loja Manica Unio e Tranqui-lidade No. 002 - GOB. E-mail: [email protected]

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    Introduo

    No sculo XVIII, com a ascenso da bur-guesia e a difuso das ideias iluministas, a Mao-naria desenvolveu-se e adquiriu prestgio na Eu-ropa. Aliada aos movimentos liberais, marcou presena efetiva nos grandes acontecimentos polticos. As revolues Gloriosa, Americana e Francesa possuem fortes traos ideolgicos e ampla participao de maons entre suas lide-ranas (HOBSBAWN, 2012). Na Amrica Latina, teve papel decisivo nas lutas da independncia e, no sculo XIX, nas lutas dos liberais contra os conservadores clericais, sobretudo no Mxico, Colmbia e Chile. Na Itlia, maons participaram do movimento de unificao nacional (Risorgimento) (CARVALHO, 2010). Na Sua, a Grande Loja Alpina defende desde 1847 os can-tes protestantes contra a oposio dos cantes catlicos (CASTELLANI, 1991). Na Blgica e na Espanha do sculo XIX, maons combateram a influncia da Igreja. Foi na Frana, porm, que a Maonaria conquistou grande fora poltica e de l se irradiou para os pases latinos (LEPAGE, 1993). Seu perodo ureo comeou depois de 1870, na III Repblica. Infiltrada em todos os par-tidos polticos de centro, esquerda e direita, a Maonaria francesa dedicou-se a persistentes lu-tas contra a Igreja. Conseguiram a abolio do ensino religioso nas escolas, o divrcio, a expul-so das ordens e congregaes (1902) e a sepa-rao de estado e igreja (1905). S aps a 1 Guerra Mundial a influncia da Maonaria france-sa comeou a declinar (COSTA, 2002). Em Portu-gal, as Lojas Manicas difundiram o pensamen-to liberal, propagaram os princpios da revoluo francesa e, como a Maonaria francesa, combate-ram as ordens religiosas e o clero.

    H evidncias documentadas da presena de maons no Brasil desde o final do sculo XVIII.2 Aqui o movimento assumiu as mesmas posies libertadoras que manifestara nas de-mais colnias americanas. A ideologia da inconfi-

    dncia mineira coincidiu, de modo geral, com a da Maonaria da poca. Quando se iniciou o ci-clo das conspiraes nordestinas, a rede de soci-edades secretas formou a base das comunica-es entre os ncleos de intelectuais influencia-dos pelas novas ideias europeias (ALBUQUERQUE, 1959).

    Nas lutas pela independncia e abolio da escravatura, a Maonaria passou a ser o cen-tro mais ativo do trabalho de propaganda eman-cipadora. Sua proposta libertadora continuou at a Repblica. Eram maons ativos Jos Bonifcio, Gonalves Ldo, Caxias, os intelectuais abolicio-nistas, Benjamin Constant, Rui Barbosa, Deodoro da Fonseca e o seu ministrio, alm de todos os presidentes da Repblica Velha, dentre outros (CASTELLANI & CARVALHO, 2009).

    O Grande Oriente do Brasil, organizao manica mais antiga em funcionamento no ter-ritrio nacional, foi regida por mais de vinte constituies, a ltima das quais aprovada em 24 de junho de 1990. H, contudo, uma profunda distino entre as Lojas que seguem o Rito Esco-cs Antigo e Aceito, de 33 graus, que enfatiza a existncia de um Ser Supremo - o Grande Arqui-teto do Universo, com o primado do esprito so-bre a matria, e o Rito Francs ou Moderno, de sete graus; assumidamente laico e materialista. Alm desses, h no Grande Oriente do Brasil os Ritos de Emulao, Schroeder, Adoniramita, Bra-sileiro e Escocs Retificado. Assim sendo, no po-demos falar em Maonaria, e sim, em Maonarias no Brasil.

    Desde a seminal obra de Maurice Agu-lhon, Pnitents et Francs-Maons de lAncienne Provence, (Fayard, Paris, 1984), estabeleceu-se no campo historiogrfico de pesquisa acadmica um conjunto de proposies que se dedicam a reconstruir a pertinncia de uma histria poltica como nvel de anlise; estudando grupos sociais, como neste caso especfico, a Maonaria, atravs de suas formas de sociabilidade e seu potencial

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    Recomendamos, dentre muitas outras obras referentes gnese da Maonaria no Brasil, pela sua pertinncia e apro-fundamento na pesquisa documental relativa ao tema: CASTELLANI, Jos; CARVALHO, William A. Histria do Grande Oriente do Brasil. A maonaria na histria do Brasil. So Paulo: Madras, 2009.

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    para a produo de novas estruturas sociais. Co-mo nos aponta Jacques Revel, certas noes e prticas que, antes, eram aceitas como evidentes, so, na contemporaneidade, objeto de um novo exame, que se interroga tanto sobre suas condi-es de possibilidade como sobre os sentidos com que esto investidos: o caso da histria global e da histria nacional (...) reflexionadas sobre a construo e a natureza das identidades sociais, tanto de grupos quanto de indivduos, sobre a interpretao de suas trajetrias e estra-tgias (REVEL, op.cit. p. 147).

    Anlise de Contedo

    A seguir, apresentamos uma anlise com-parativa das obras didticas pesquisadas. Como se trata de material extenso, visando a no tornar enfadonha a abordagem a doze obras em se-quncia, que por vezes se repetem, buscou-se agrup-las em blocos comparados, de acordo com as suas semelhanas e diferenas de abor-dagem ao tema Maonaria; aqui compreendida como a constante deste nosso inventrio de dife-renas (VEYNE, 1976).

    Na obra de Santiago (2010), encontramos a seguinte referncia maonaria, como na mai-oria das demais obras pesquisadas, abordada no episdio da Histria do Brasil conhecido como questo religiosa.

    Em 1864, o Papa Pio IX pro-mulgou uma bula na qual rea-firmava a supremacia da Igre-ja em todos os mbitos da sociedade e responsabilizava a maonaria por prticas que enfraqueciam a f catlica. O objetivo era eliminar o poder que a instituio possua den-tro da Igreja em todo o mun-do. Nesse sentido, a situao no Brasil era peculiar: muitos clrigos e o prprio impera-dor eram maons (Obs.: Equ-voco do autor. D.Pedro II nun-ca foi maom. Seu pai, Pedro I, sim). A posio papal aca-bou gerando uma srie de

    incidentes, sobretudo com o bispo de Olinda, D. Vital Maria Gonalves de Oliveira. Em 1872, ele proibiu a participa-o de clrigos na maonaria, ameaando-os de expulso da hierarquia da Igreja. (SANTIAGO, 2010, p. 179).

    O trecho seguido de um destaque, inti-tulado Pare e pense, onde o autor define a Ma-onaria:

    Ningum sabe ao certo quan-do teve incio a Maonaria. Alguns especialistas apostam que suas origens esto na Ida-de Mdia, entre membros das corporaes de ofcio. O certo que no sculo XVIII ela fun-cionava regularmente, che-gando ao Brasil algumas d-cadas depois. Aqui no pas seus membros (entre eles mi-nistros, regentes, magistrados, intelectuais e mesmo um im-perador) desempenharam pa-pel poltico importante.

    1.Faa uma pesquisa para sa-ber:

    a). O que a Maonaria;

    b). A atuao de seus mem-bros durante o sculo XIX no Brasil;

    c). Os principais acontecimen-tos em que a instituio este-ve envolvida naquele perodo.

    2. Faa um texto com o ttulo: A Maonaria no Brasil.

    Neste autor, apesar de verificarmos o exguo espao dado a anlise da participao manica nos eventos histricos, observamos uma tentativa de reflexo e aprofundamento, no sentido da elaborao de um questionrio de apoio, onde o estudante instigado a buscar maiores dados a respeito da Maonaria. De todos

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    os livros didticos observados, este o nico que faz uso de tal recurso e, por isso, o apresentamos destacado dos demais que seguem abaixo.

    Na sequncia, analisamos as obras de Mo-raes (2010), Vicentino (2010), Campos (2010) e Cotrim (2010). Em todas, a temtica manica , tambm, abordada no tocante ao evento histri-co conhecido como questo religiosa. Pode-mos observar que os trechos em muito se asse-melham entre si, no aspecto da construo e ela-borao dos eventos. No entanto, em certas construes, podemos observar, como abaixo assinalamos, alm de erros bsicos de pesquisa historiogrfica, como o que afirma ter sido D. Pe-dro II um maom, uma maior ou menor tendn-cia a relativizar os prejuzos polticos da Igreja, como instituio, no desenrolar dos eventos em pauta. As abordagens pouco se prendem s an-lises das estruturas polticas internacionais que ali se apresentam, atendo-se, na maioria dos ca-sos, a tratar unicamente das consequncias ime-diatas do conflito no cenrio nacional. No geral, apontam o governo do Imprio como o que sai mais prejudicado ao final do desenrolar dos acontecimentos, ao, de certa forma, como induz os textos, perder o apoio da instituio eclesisti-ca. curioso que, em nenhum dos trechos, pare-ce haver qualquer crtica no sentido de assinalar a ingerncia de uma potncia estrangeira, no ca-so o Vaticano, nos assuntos internos do Brasil.

    O conflito mais decisivo, de-nominado Questo Religiosa, ocorreu entre 1872 e 1875, e envolveu o bispo de Olinda, dom Vital de Oliveira, e o bis-po do Par, dom Antnio de Macedo Costa. Os religiosos posicionaram-se contra a ma-onaria, proibindo suas mani-festaes e o ingresso de seus membros nas igrejas catlicas. A monarquia no aceitou a atitude rebelde e processou os bispos, que eram funcion-rios do Estado, condenando-os priso. Entre 1874 e 1875, os bispos foram soltos e anis-tiados, mas o fato gerou um

    duplo problema para o gover-no, o que colaborou para isol-lo um pouco mais, pois au-mentou a impopularidade do Imprio e, principalmente, im-pulsionou o desejo de separa-o entre o Estado e a Igreja. (MORAES, 2010, p. 190).

    Observando o trecho acima, perguntamo-nos como o aluno vai compreender a insero da misteriosa entidade Maonaria, sem mais nem menos adentrando as linhas da obra.

    Outrossim, o texto peca pela dubiedade ao seu final, parecendo dar a entender que, Igreja, era interessante separar-se do Estado, desconsiderando assim uma das maiores bandei-ras da maonaria no sculo XIX e a razo maior de sua luta naquele momento: a laicidade do Es-tado.

    A bula papal que impedia membros da maonaria de pertencer aos quadros da Igreja foi rejeitada pelo impe-rador D. Pedro II, como o pai, era maom que acumu-lara o direito de ratificar ou no o cumprimento das or-dens do papa no pas. A maior parte dos religiosos permane-ceu fiel ao imperador, porm os bispos de Olinda e de Be-lm preferiram acatar o papa e expulsaram de suas dioceses procos ligados maonaria. O imperador decidiu punir os bispos rebeldes, processando-os e condenando-os priso com trabalhos forados. (VICENTINO, 2010, p.308.)

    Mais uma vez, na nica referncia em toda a obra Maonaria (mais de novecentas pginas distribudas em trs volumes), identificamos a repetio do mesmo erro. Farta documentao histrica atesta que D. Pedro II preferiu no inici-ar-se na maonaria, ao contrrio do pai. Entre-

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    tanto, questionamos: Se o autor; no sabemos a partir de quais fontes, acreditava que o prprio imperador fosse um maom, como deixar de buscar um aprofundamento no entendimento do significado deste fato? Tal dado no teria maior relevncia histrica a merecer mais do que um pargrafo de texto?

    Em Campos (2010), a meno chamada Questo religiosa ainda mais superficial. H meno instituio do padroado, aqui coloca-do, na viso do autor, como o principal motivo da questo, a partir da recusa de Pedro II em aceitar as regras ditadas pela bula papal de 1864. Os acontecimentos restantes, onde os maons so mencionados em apenas uma linha, so, ao que parece, meras consequncias secundrias deste aspecto principal.

    Com a Independncia, o pa-droado manteve-se como atribuio dos monarcas bra-sileiros. No entanto, em 1864, o papa Pio IX condenou em uma encclica o que conside-rava os 80 erros que o mundo praticava contra a Igreja. Entre eles, o poder dos Estados so-bre os documentos papais, a subordinao do clero ad-ministrao civil, a separao entre Igreja e Estado, e a par-ticipao de membros da Igreja em sociedades secretas, especialmente a maonaria. No Brasil, D.Pedro II negou-se a aprovar a encclica, o que, pelas regras do padroado, tornava-a sem validade. Os conflitos no tardaram a sur-gir. Alguns membros do clero, como o bispo de Olinda, re-solveram seguir as recomen-daes papais e expulsaram das confrarias religiosas os representantes maons. Um recurso Coroa tornou nula a expulso ordenada pelo bis-po, que acabou preso em 1874. (CAMPOS, 2010, p. 226).

    Mais uma vez, a meno Maonaria superficial e no h interesse em explicar ao lei-tor a sua repentina insero no contexto da obra.

    Em Cotrim (2010), encontramos a mesma esquematizao de ideias apresentada pelos au-tores anteriores. H que se destacar, no entanto, neste autor, uma preocupao maior de inserir a temtica da maonaria no contexto da obra, a partir da apresentao de uma definio da insti-tuio em um glossrio definidor do termo.

    Desde o perodo colonial, a Igreja Catlica era uma insti-tuio submetida ao Estado, pelo regime do Padroado. Is-so significava, entre outras coisas, que nenhuma ordem do papa poderia vigorar sem antes ter sido aprovada pelo imperador. Em 1872, no en-tanto, D. Vidal e D. Macedo, bispos de Olinda e de Belm, respectivamente, seguindo ordens do papa Pio IX, puni-ram religiosos ligados ma-onaria. D. Pedro II, atenden-do a pedidos de grupos ma-nicos, solicitou aos bispos que suspendessem as puni-es. Como eles se recusaram a obedecer ao imperador, fo-ram condenados a quatro anos de priso.

    GLOSSRIO: Maonaria. Soci-edade antiga e parcialmente secreta que, utilizando-se de conhecimentos dos antigos construtores de templos (os maons), tem como objetivo principal incentivar a fraterni-dade e a filantropia entre to-dos os seres humanos, sem distino de cor, credo ou ori-gem social. (COTRIM, 2010, P. 287).

    Figueira (2010) e Vainfas (2010), ao con-

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    trrio dos autores j mencionados, apresentam de forma um pouco mais ampliada a Maonaria em duas pginas, relacionadas Conjurao Bai-ana (Figueira), Independncia do Brasil (Vainfas) e questo religiosa (ambos). Apesar de dedicar espao e relevo ao tema, Vainfas (2010) comete um erro grave em A Maonaria no Brasil (p. 153), ao confundir o Grande Oriente do Brasil, o poder central que rene todas as Lo-jas Manicas do perodo com uma nica Loja.

    Uma Loja Manica, denomi-nada Cavaleiros da Luz, funci-onava em Salvador desde ju-lho de 1797. Ponto de encon-tro das figuras da elite da ci-dade, a sociedade era o espa-o em que se discutiam as ideias iluministas difundidas pela Revoluo Francesa. En-tre os frequentadores das reu-nies estavam o mdico Cipri-ano Barata e o tenente Her-mgenes Pantoja, integrantes do grupo que tramava a Con-jurao Baiana. O governante de Lisboa j havia sido alerta-do, por seu representante na Bahia, sobre a difuso preocu-pante dos abominveis prin-cpios revolucionrios france-ses entre a populao baiana. (FIGUEIRA, 2010, p. 168).

    De acordo com a Constituio de 1824, a Igreja Catlica es-tava subordinada ao Estado, que pagava os padres e no-meava os bispos. Nenhuma determinao do papa podia entrar em vigor no Brasil sem a aprovao do imperador. Em 1872, os bispos de Olinda e de Belm, dom Vidal Maria e dom Macedo Costa, foram presos e condenados por pro-ibir a participao de maons nas irmandades religiosas, como recomendava o papa. Trs anos depois, os dois fo-

    ram anistiados, mas a punio deixou claro que haviam difi-culdades incontornveis nas relaes de dependncia esta-belecida entre a Igreja e o Es-tado. (FIGUEIRA, op. cit., p. 222).

    Apesar da original meno de Figueira existncia de uma loja manica em 1797 exer-cendo influncia e participando da Conjurao Baiana, a obra no foge regra. A Maonaria introduzida sem qualquer explicao ou contex-tualizao no texto de forma bastante superficial, dificultando a compreenso por parte do leitor da efetiva participao desta instituio nos acontecimentos em tela.

    Quanto a Vainfas, o que temos uma des-crio da origem da maonaria no Brasil, seguida da mesma insero dos autores anteriores, da maonaria nos episdios da questo religiosa:

    A Maonaria no Brasil. A Ma-onaria uma associao vo-luntria e secreta que se di-fundiu na primeira metade do sculo XVIII, a partir da Ingla-terra para a Europa e a Amri-ca. Seu carter secreto a en-volveu numa aura de mistrio. A partir de 1750, a associao passou a ser um espao de crtica e de discusso sobre a sociedade civil. No Brasil, a primeira Loja Manica (local de reunio dos maons) sur-giu, comprovadamente, em 1800, na futura cidade de Ni-teri, no Rio de Janeiro; era chamada Unio. Logo surgi-ram outras, em vrias regies. Em 1818, um alvar proibiu o funcionamento das Lojas Ma-nicas em todo o Imprio luso-brasileiro, mas elas no fecharam.

    A Loja mais destacada no pe-rodo de independncia foi a Grande Oriente Brasileiro, da

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    qual Jos Bonifcio de Andra-da e Silva foi Gro-Mestre (presidente). Nela ocorreram os debates polticos que influ-enciaram a separao de Bra-sil e Portugal. D. Pedro foi ini-ciado na Maonaria, receben-do o nome de Guatimozin, ltimo imperador asteca. Em 4 de outubro de 1822, foi eleva-do a Gro-Mestre, e logo membros da Maonaria pro-puseram sua aclamao como Imperador do Brasil, fato que ocorreu em 12 de outubro.

    A poltica do governo de D. Pedro I em restringir a liber-dade de expresso fez com que esse tipo de associao fosse proibido em 1823. Mas as reunies prosseguiram clandestinamente. Foram cria-das novas lojas, de tendncia tanto liberal quanto conserva-dora, que funcionavam como local de debates polticos. Com a abdicao de D. Pedro I, em 1831, o funcionamento das Lojas Manicas foi libera-do, mas elas j no tinham o peso poltico do perodo an-terior. Continuaram a funcio-nar, mas ligadas a valores no polticos, como a filantropia, a beneficncia, a sabedoria e a justia. (VAINFAS, 2010, p. 153).

    parte do j citado equvoco, ao confun-dir o nome da agremiao de Lojas Manicas com uma Loja nica, o autor procura contextuali-zar historicamente a instituio manica no ce-nrio internacional, a partir de sua origem euro-peia e posterior expanso para as Amricas; bem como no cenrio nacional, destacando sua im-portncia na construo dos eventos articulado-res do processo que culminou com a indepen-dncia nacional. No entanto, no podemos nos furtar a destacar outra incongruncia no texto

    acima, quando o autor faz meno, nas linhas finais do pargrafo, a perda do peso poltico da instituio manica quando de seu retorno s atividades, em 1831. Como esta afirmao se co-aduna com o descrito no texto seguinte a menci-onar a ordem manica, quando esta, em confli-to com a igreja catlica, ao final do segundo rei-nado, aparentemente, demonstra grande peso poltico? Seria realmente sem peso poltico uma instituio que possui como gro-mestre, sua liderana maior, o prprio presidente do Conse-lho de Ministros do Imprio?

    O incio da crise comeou com um discurso do padre Almeida Martins em uma loja manica no Rio de Janeiro, em 1872, homenageando o visconde do Rio Branco, ento presidente do Conselho de Ministros e gro-mestre da maonaria pela Lei do Ventre Livre. Na Europa, a maonaria era marcadamente anticlerical. Mas, no Brasil, os eclesisticos faziam parte desta organiza-o, apesar de condenada pe-lo papa Pio IX desde 1865 co-mo a responsvel pela impiedade do mundo. Alm disso, o Conclio Vaticano I (1869) decidiu desencadear uma grande campanha contra a maonaria, proibindo a par-ticipao dos catlicos, parti-cularmente os eclesisticos. O problema que, no Brasil, di-versos padres e governantes pertenciam Maonaria.

    O discurso publicado na im-prensa repercutiu profunda-mente entre os altos mem-bros da Igreja catlica no Bra-sil. O padre acabou suspenso pelo bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro de Lacerda. A mao-naria reagiu com dureza ao que considerou uma interfe-rncia da Igreja de Roma nes-

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    sa instituio por meio do bis-po.

    Logo depois, ainda em 1872, outro conflito marcaria a Questo Religiosa. O jovem bispo D. Vital Maria Gonalves de Oliveira, da cidade de Olin-da, seguindo orientao de Roma, proibiu a participao de eclesisticos em lojas ma-nicas. Criou um jornal, A Unio, para combater a mao-naria no Brasil, interditou duas parquias que se recusavam a expulsar os maons e suspen-deu o deo da catedral, sim-patizante da maonaria e lder do Partido Liberal em Per-nambuco. Em reao, a tipo-grafia do jornal A Unio foi saqueada e um sacerdote morto a facadas.

    As bulas papais a respeito da Maonaria no haviam recebi-do a aprovao do imperador D. Pedro II. Portanto, sua apli-cao era ilegal.

    A Coroa tentou em vo acal-mar os nimos, pedindo a D. Vital que revogasse suas in-terdies. O bispo manteve-se irredutvel, alegando que so-mente devia obedincia ao papa. Foi preso e condenado a quatro anos de trabalhos forados, em 1874. O mesmo destino foi dado ao bispo do Par, D. Antonio de Macedo Costa, solidrio ao colega de Olinda e tambm empenhado em combater os maons. Am-bos foram anistiados em 1875, graas a presses de

    Roma e interveno do Du-que de Caxias, ento chefe do gabinete conservador que go-vernava o Imprio. Mas as re-laes entre o imprio e a Igreja catlica estavam defini-tivamente comprometidas. Ao sair da priso, D. Antonio re-sumiu as consequncias da crise dizendo que a Questo Religiosa abalara o trono, mas deixara o altar de p. O bispo estava certo. (VAINFAS, 2010, p. 292).

    Cremos ser um tanto equivocado, para no dizer incorreto, em um livro didtico, o autor emitir em seu texto, juzos de opinio do tipo certo ou errado, em relao a acontecimentos histricos. Infrao ao ritual 3 (FOUCAULT, 1996) da escrita didtica, inscrita em certos sistemas de restrio que regulam a forma e a ordem do dis-curso. Neste caso, ao afirmar que o bispo estava certo temos um posicionamento nesta rea que no se coaduna com a proposta de um livro di-dtico.

    Alguns autores se debruam sobre a ma-onaria no Brasil inserindo-a em outros aconteci-mentos que no a questo religiosa especifica-mente. Curioso de assinalar que, nestas demais obras, a referida questo no associada or-dem manica, e sua influncia no episdio no reconhecida. Enfim, quando se trabalha com o tema manico em um determinado episdio histrico, apaga-se sua participao em outro, assinalado por outro autor.

    Na sequncia, portanto, apresentamos as inseres de Pellegrini (2010), Berutti (2010), Azevedo (2010), Nogueira (2010) e Alves (2010).

    Sobre o conflito de interesses diante da

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    3 A troca e a comunicao so figuras positivas que atuam no interior de sistemas complexos de restrio; e sem dvida

    no poderiam funcionar sem estes. A forma mais superficial e visvel desses sistemas de restrio constituda pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificao que devem possuir os indivduos que falam (e que, no jogo de um dilogo, de interrogao, da recitao, devem ocupar determinada posio e formular determinado tipo de enunciado; define os gestos, os comportamentos, as circunstncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficcia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coero. (FOUCAULT, 1996, p. 38-39).

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    permanncia de D. Pedro no Brasil, assinala-nos Pellegrini a influncia da ordem manica na for-mao, constituio, desenvolvimento e atuao do Partido Brasileiro, fora poltica de acentuada influncia no perodo em questo, assinalando a influncia da maonaria na passagem da Colnia ao Imprio:

    O partido brasileiro, por sua vez, tinha uma formao di-versificada, que inclua gran-des proprietrios rurais, polti-cos conservadores, liberais radicais, republicanos, mem-bros das camadas mdias ur-banas, ex-escravos e, tambm, vrios portugueses estabeleci-dos no Brasil. Muitas dessas pessoas eram adeptas da Ma-onaria. Os grupos que for-mavam o partido brasileiro uniram-se para combater a proposta de recolonizao feita pelos deputados portu-gueses. (PELLEGRINI, 2010, p. 238).

    Na mesma pgina, h um destaque, com ilustrao, explicando o que a Maonaria:

    No existe um consenso so-bre a origem da Maonaria. Muitos estudiosos acreditam, porm, que ela tenha surgido durante a Idade Mdia, nas corporaes de ofcio que agrupavam pedreiros e arqui-tetos (maon, em francs ar-caico, significa construtor), os quais mantinham em se-gredo as tcnicas de seu of-cio. No sculo XVIII, os ma-ons passaram a participar ativamente da poltica, criti-cando o Absolutismo monr-quico por meio da defesa dos ideais liberais inspirados pelo Iluminismo. No Brasil, o pri-

    meiro registro de uma loja manica, como so chama-dos os ncleos manicos, de 1801, no Rio de Janeiro. No sculo XIX eles tiveram um importante papel na Indepen-dncia do Brasil, combatendo o Absolutismo e o colonialis-mo. Foi nas lojas manicas que aconteceram os principais debates entre os lderes do partido brasileiro, mobilizan-do as foras polticas respon-sveis pela Independncia do Brasil. (PELEGRINNI, op. cit, ibid)

    Apesar de correto, o texto parece descolado do restante da obra, por apresentar uma noo bem maior da importncia da Mao-naria, do que no restante do livro, onde nada mais mencionado respeito da ordem mani-ca.

    Em outra obra, o autor Flvio Berutti inse-re a maonaria em um outro evento, at ento no assinalado por qualquer dos autores anterio-res, a conjurao mineira, demonstrando atravs da elaborao da bandeira daquele movimento, e posterior pavilho do Estado de Minas Gerais, a influncia do movimento manico naquele epi-sdio:

    p. 169. Para alguns estudio-sos, o tringulo da bandeira da Conjurao Mineira repre-sentaria a Santssima Trindade ou seria uma referncia Ma-onaria. Originalmente, a cor do tringulo era verde. Mais tarde, quando se criou a ban-deira do estado de Minas Ge-rais, optou-se pela cor verme-lha, que simbolizaria as revo-lues e o sangue dos mrti-res. (BERUTTI, 2010, p. 169).

    Nesta obra, nem a independncia nem a

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    questo religiosa retratam a Maonaria. A nica referncia em todo o texto feita quando da descrio do smbolo da conjurao mineira, que daria origem bandeira do Estado de Minas Ge-rais. Ainda assim, colocada uma certa dvida quanto origem manica da inspirao do de-senho da bandeira, que poderia, tambm, ser de inspirao crist, ficando no ar a dvida sobre a efetiva influncia da maonaria nos episdios ali abordados.

    J em Azevedo (2010) encontramos outra referncia influncia da maonaria na histria brasileira: A conjurao baiana. Citando maons de influncia poltica expressiva no perodo, o autor assinala tambm, paralelamente, uma das possveis origens histricas da maonaria em nosso pas:

    Em meio a essa tensa situao social e poltica (A Conjurao Baiana), em novembro de 1796 chegou a Salvador o ca-pito Antoine Ren Larcher, que participara da Revoluo Francesa de 1789. Durante o tempo em que permaneceu na Bahia, Larcher divulgou intensamente os princpios iluministas, propagando os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Simpatizantes dessas ideias passaram a se reunir com frequncia nos ar-rabaldes da capital baiana. Desses encontros participa-vam inicialmente pessoas li-gadas elite, como o mdico Cipriano Barata, o padre Fran-cisco Agostinho Gomes e se-nhores de engenho da regio do Recncavo. Em 1797, al-guns desses membros da elite criaram em Salvador uma so-ciedade secreta conhecida como Cavaleiros da Luz, em-penhada em organizar um movimento republicano na Bahia. Para alguns historiado-res, esse grupo seria o em-

    brio de uma das primeiras lojas manicas do Brasil (veja a seo enquanto isso...). (AZEVEDO, 2010, p. 237).

    No trecho a seguir, o mesmo autor faz meno a um dos conflitos internos da maona-ria no sculo XIX mais importantes, no sentido do delineamento da atuao manica naquele perodo. Realmente, atravs da leitura dos confli-tos estabelecidos entre as correntes poltico-ideolgicas dos dois mais expressivos lderes manicos de ento, Jos Bonifcio e Gonalves Ldo, pode-se elaborar uma compreenso bem mais aprofundada dos eventos e acontecimentos que conformaram o processo de independncia do Brasil. Infelizmente, apesar da meno ao fa-to, o aprofundamento do debate entre estes dois importantes personagens histricos no se fez.

    p. 261. Essa questo (A Inde-pendncia do Brasil) vinha sendo discutida nas lojas ma-nicas e passou a ser debati-da tambm nos jornais. O de-bate deu origem a duas cor-rentes de opinio: a de Jos Bonifcio, que propunha uma autonomia sem ruptura com Portugal; e a de Gonalves Ldo, proprietrio do Jornal Revrbero Constitucional Flu-minense, que defendia o rom-pimento com Portugal. (AZEVEDO, op. cit. p. 261).

    De todo modo, das obras at aqui analisa-das, esta a que mais coerentemente apresenta a Maonaria em seu texto, fazendo meno, ain-da que superficialmente, participao manica em alguns dos eventos revolucionrios brasilei-ros, assinalando as correntes de pensamento ds-pares que conformavam a atuao manica no perodo e procurando dar uma viso do pensa-mento manico em sua ligao com o Iluminis-mo. Por fim, h de se destacar a insero de um box ilustrado, na pgina 240 da mesma obra,

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    que, ao lado de uma ilustrao representando uma iniciao manica no sculo XVIII, reporta um pouco do simbolismo e ritualstica prprias daquela instituio.

    Outro autor, outra referncia. Em Noguei-ra (2010) encontramos esta nica e curiosa asso-ciao entre as ordens manica e carbonria. Curiosamente, o autor parece utilizar a citao maonaria apenas com o intuito de melhor expli-car o que seria a carbonria, seu objeto maior de interesse:

    A semelhana entre a Mao-naria e a Carbonria inclua o aspecto espiritual e o poltico, pois ambas combatiam a into-lerncia religiosa e o Absolu-tismo. Os carbonrios inspira-vam-se nos ideais iluministas e na Revoluo Francesa; seu lema era Liberdade, Igualda-de, Fraternidade. Embora a Igreja Catlica fosse um de seus inimigos, eles tinham um padroeiro, So Teobaldo. Alm da Itlia, a sociedade secreta dos carbonrios tam-bm atuou na Frana, na Es-panha e em Portugal. (NOGUEIRA, 2010, p. 287).

    Nesta obra, h certa confuso entre a car-bonria e a maonaria por parte do autor. Confli-to este explicitado na afirmao de que esta so-ciedade atuou em vrios pases, sendo a carbo-nria uma sociedade revolucionria essencial-mente italiana. Outros aspectos que geram con-fuso: Em outra parte do texto, que ocupa uma pgina inteira da obra, Garibaldi, o heri de dois continentes, citado como carbonrio, fato esse que no pode ser questionado, j que h consi-dervel documentao na historiografia italiana que comprova o fato. Entretanto, o que o texto no cita, e seria mais relevante de mencionar em um livro que se dedica a explicar a histria do Brasil, que Giussepe Garibaldi tambm era ma-om, j que fora iniciado em Loja do Rio Grande

    do Sul, quando por aqui esteve. Por fim, um lti-mo equvoco por parte do autor no pode deixar de ser mencionado: na ilustrao que se apre-senta mesma pgina 287, o smbolo represen-tado na pgina, o Compasso, manico, e no carbonrio. Esta ltima baseava sua simbologia no em instrumentos ligados arquitetura, como os maons, e sim em instrumentos ligados s flo-restas e s pedras, como o carvo e algumas es-pcies da flora das florestas europeias.

    Encerrando esta compilao de obras di-dticas, deixamos para o final o comentrio a respeito da obra de Alexandre Alves (2010), ape-nas para deixar assinalado que, quanto a este au-tor, nada foi encontrado nos trs volumes que compem a coleo didtica de sua autoria. No h qualquer referncia Maonaria em toda a coleo analisada.

    Consideraes finais: Foucault e a ordem do discurso.

    Todo sistema de educao uma maneira poltica de man-ter ou de modificar a apropri-ao dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. (FOUCAULT, 1996, p. 44).

    Michel Foucault nos alerta para a constru-o de uma ordem do discurso, criada no mbito da escrita e da construo dos sentidos desta. Analisando as obras didticas aqui apresentadas, percebemos que uma interdio se manifesta. Ao suprimir da escrita da histria a instituio ma-nica enquanto lcus de atuao de foras polti-cas em diversos momentos da histria nacional, ocorre um apagamento do entendimento polti-co, na acepo original do termo, enquanto as-sunto da polis, atravs de um sistema de exclu-so. H que se manifestar, nesse sentido, uma vontade de verdade que assume a tarefa de res-gatar dos pores da Histria a maonaria en-quanto sociedade de discurso (op.cit. p. 40), ela-

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    boradora de doutrinas transformadoras do social em que historicamente se insere. A Educao o instrumento pelo qual todo indivduo pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, rompendo com o que permite e o que impede o acesso ao que a sociedade entende como o secreto, o murmrio das coisas ditas meia-voz (op.cit. p. 76).

    Tentamos aqui realizar uma reflexo sobre a cincia histrica, visando explicitar seus pressu-postos didticos. Por outro lado, a Didtica da Histria, ao se afastar do processo de pedagogi-zao do ensino e se vincular Cincia da Hist-ria, entende o ensino de Histria como o proces-so pelo qual se busca ampliar e complexizar o pensar histrico humano. Ela se volta, assim, para os conceitos epistemolgicos da Histria da Edu-cao e para as reflexes sobre a prxis historio-grfica, visando ampliar a capacidade dos ho-mens de compreender e explicar, de algum mo-do, historicamente, a sociedade em que vive.

    Enfim, o que se objetivou neste trabalho foi o resgate da participao da instituio manica nesta sociedade, com vista a melhor compreen-der seus acontecimentos histricos. Afinal:

    os discursos no podem ser aceitos seno quando providos da funo autor (...) De onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em que circunstn-cias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe dado, o status ou o valor que nele se reconhece depende da maneira com que se responde a essas questes. (FOUCAULT, 2001, p.276).

    Encerramos este trabalho no com uma concluso, mas com uma proposta aos futuros autores didticos. Consideramos que essa articu-lao envolve tambm uma tarefa poltica situa-da no campo das relaes entre escola e univer-sidade, que poder ser objeto, inclusive, das dis-cusses a serem travadas no futuro. Citando Ro-

    land Barthes, em O prazer do texto, propomos aqui uma ideia: Ideia de um livro no qual estaria entranada, tecida, da maneira mais pessoal, a relao de todas as fruies: as da vida e as do texto, no qual uma mesma anamnese captaria a leitura e a aventura. (BARTHES, 1973, p. 176).

    Este hipottico livro deveria ter a preten-so, utpica, reconhecemos em princpio, de abarcar os projetos dos diversos grupos, dentre os quais tambm se insere a maonaria, que se constituram na busca pela construo de um no-vo imaginrio social em suas pocas, resgatando uma histria viva que est, ainda, se escreven-do. Neste percurso, que fique claro, no se pro-pugna pela elaborao de uma histria totalizan-te, mas sim, posicionamo-nos contra o apaga-mento de uma fatia relevante para o entendi-mento dos motores da histria humana. A busca deste entendimento pode ser caminho profcuo para o intento de compreender o movimento das polticas educacionais e os engendramentos que acusam as permanncias e as transformaes, que forjam prticas, trajetrias e sujeitos no tem-po e espao historicamente determinados.

    Em prol deste entendimento didtico me-lhor elaborado, encerramos com uma reflexo final, ao estilo manico, de Roland Barthes:

    Na cena do texto no existe ribalta; no h por detrs do texto ningum ativo (o escri-tor) nem diante dele ningum passivo (o leitor); no h um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramati-cais: o olho indiferenciado de que fala um autor excessi-vo, Angelus Silsius: O olho com que eu vejo Deus o mesmo olho com que ele me v. (op. cit., p. 140).

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    O HOMEM QUE QUERIA SER REI: Uma Aventura Manica

    (THE MAN WHO WOULD BE KING: A Masonic Adventure)

    Edgard da Costa Freitas Neto

    Resumo

    O presente trabalho busca demonstrar a influncia da filosofia e do simbolismo manico presentes no conto O homem que queria ser Rei, de Rudyard Kipling, ressaltando as lies manicas que se podem extrair daquela obra.

    Palavras-chaves: Rudyard Kipling; O homem que queria ser rei; Literatura Inglesa; Filosofia Manica.

    Recebido em: 02/10/2013 Aprovado em: 21/11/2013

    Abstract

    This paper aims to expose the influence of masonic philosophy and symbolism in Rudyard Kip-lings short story The man who would be King, highlighting the masonic lessons that can be learned from that story.

    Keywords: Rudyard Kipling; The man who would be king; English Literature; Masonic Philosophy.

    Edgard da Costa Freitas Neto Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz - Ilhus, BA e Especialista em Direito e Magistratura pelo convnio Escola de Magistrados da Bahia/Universidade Federal da Bahia. Mestre Maom, o atual 1o Vigilante da Loja Manica Fraternidade, Auxlio e Verdade No. 127 - GLEB. E-mail: [email protected]

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    Introduo

    A literatura, arte milenar, oferece ao autor mltiplas oportunidades de se fazer entender e ao leitor, mltiplas vias de entendimento. So exemplos dessas obras A Divina Comdia, de Dante Alighieri, O Livro de J, de William Blake, Paraso Perdido de John Milton e a presente obra, o conto O Homem que queria ser Rei, de Rudyard Kipling.

    Kipling hoje considerado um dos maio-res autores modernos da lngua inglesa, ainda que seu legado seja hoje controverso, dada a as-sociao de seu nome ao imperialismo britnico. Nasceu em Bombaim, na ento colnia britnica da ndia, em 1865, filho de pai e me ingleses. Aos cinco anos, como era costume entre os colo-nos que possuam condies para tal, foi enviado para a Inglaterra para viver sob a tutoria de um casal de amigos da famlia, a fim de receber uma educao propriamente britnica, um perodo que o marcou negativamente (JAFFA, 2011).

    Demonstrando desde jovem talento para as letras, retornou para a ndia em 1882, aos 16 anos, para trabalhar como jornalista, publicando a partir deste perodo vrios contos e poemas, conquistando com o passar dos anos uma slida reputao, culminando com o Prmio Nobel de Literatura de 1907.

    De esprito cosmopolita, viajou por vrios pases do mundo, sempre registrando suas im-presses sobre as culturas locais.2

    Sua carreira manica principiou com a sua iniciao na Loja Manica Esperana & Per-severana n 782 em Lahore, no atual Paquisto,

    no ms de abril de 1885, pelo Ritual de Emula-o. Kipling necessitou de uma autorizao espe-cial para ser iniciado, posto que contava na oca-sio com 19 anos. Aps um ms foi passado ao grau de Companheiro Maom e, em dezembro daquele ano, foi elevado ao grau de Mestre Ma-om3 4(JAFFA, 2011).

    Sobre este momento, escreveu Kipling:

    Ali eu conheci muulmanos, hindus, sikhs, membros do cul-to de Araya, Brahmos e um sentinela Judeu, que era sacer-dote e aougueiro de sua pe-quena comunidade. Ento um novo mundo se abriu diante de mim. 5

    Apesar de jovem e da rpida carreira pelos graus da maonaria simblica, neste perodo Ki-pling apresentou dois trabalhos em Loja, um so-bre as origens do Grau de Aprendiz Maom e ou-tro sobre as vises populares acerca da maona-ria, nenhum dos quais chegou aos nossos dias (CARR, 1964).

    Kipling foi avanado ao grau de Mestre da Marca6 na Loja de Marca Fidelidade n. 98 em 14 de abril de 1887, sendo elevado ao grau de Nau-ta da Arca Real na Loja Monte Ararat, ambas na cidade de Lahore, no mesmo dia. No consta, to-davia, que tenha sido maom do Real Arco.

    Em 1887, todavia, diante das necessidade profissionais da sua carreira de jornalista e seu

    FREITAS NETO, E. C. O HOMEM QUE QUERIA SER REI: UMA AVENTURA MANICA

    2 Inclusive o Brasil, visitado em 1927 e de onde o autor registrou aspectos do Recife (PE), Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ) e So Paulo (SP). Cf. KIPLING, Rudyard. As Crnicas do Brasil. So Paulo: Landmark, 2006.

    3 No sistema ingls bem como no americano o Companheiro passado (passed) e o Mestre elevado (raised).

    4 Esta data foi apresentada pelo prprio Kipling em sua autobiografia, e repetida pela maior parte dos seus bigrafos.

    Segundo Carr (1964), entretanto, Kipling se equivocara quanto ao ano, que teria sido 1886, apresentando como prova a transcrio das atas de iniciao, elevao e exaltao de Kipling, esta ltima lavrada pelo prprio Kipling, Secretrio da Loja.

    5 Carr (1964). Neste artigo Harry Carr nota, entretanto, que a Loja de Kipling no era exatamente uma babel tnico-religiosa, apesar da capacidade de europeus e no europeus possurem na Loja um espao para se encontrarem no nvel ter impressionado a Kipling. 6 No sistema ingls, frise-se.

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    sucesso ascendente como escritor foraram-no a pedir o afastamento dos trabalhos da Loja, ape-sar de ter continuado a frequentar trabalhos ma-nicos na cidade de Allahabad at 1889, quan-do se afastou definitivamente das Lojas indianas.

    Kipling se destaca entre os maons famo-sos pelo fato de a Arte Real ter deixado profun-das impresses em seu esprito, e por conse-quncia na sua obra, no sendo apenas uma no-ta de rodap na sua biografia.

    Referncias Maonaria veladas ou ex-pressas - esto presentes em vrios dos seus contos e poemas, como em Kim e um belo po-ema chamado minha Loja-me (CARR, 1964) e em Mowgli (DILLINGHAM, 2005), alm, cla-ro, de O homem que queria ser rei, escrito ain-da em 1888, objeto do presente estudo.

    A Narrativa de O homem que queria ser rei

    A histria de O homem que queria ser rei comea na ndia. Um jornalista, cujo nome no declinado (provavelmente um alter ego do prprio Kipling) conhece por acaso um outro eu-ropeu num trem, e ambos se reconhecem como maons. Seu nome Peachey Carnegham. um ex - soldado, veterano de guerra, que vive a vadi-ar pela Colnia.

    Peachey lhe pede um favor, que por conta da fraternidade e de uma dose de curiosidade o jornalista assente em cumprir: ele deveria le-var um recado cifrado a um terceiro sujeito num entroncamento ferrovirio. Eles planejam Pea-chey e seu amigo fingir-se de jornalistas (do mesmo jornal do personagem inominado) para extorquir um Maraj que havia assassinado a vi-va de seu pai (os Marajs tm medo da imprensa britnica).

    Na data acertada o narrador se dirige ao entroncamento e d o recado para Daniel Dravot, o amigo de Peachey.

    Preocupado, entretanto, com a segurana dos dois, o narrador denuncia suas pretenses s autoridades britnicas, que os deportam antes que cheguem ao Maraj.

    O tempo passa e o jornalista no ouve

    mais falar dos dois vagabundos do trem. Um dia, entretanto, ambos aparecem de surpresa no seu jornal. Se apresentam propriamente e pedem a ajuda do relutante jornalista. Eles explicam suas pretenses: Tendo decidido que no havia mais espao para lucrar com a ndia, j tomada pela interveno estatal da Coroa Britnica, os dois querem seguir rumo ao Kafiristo, um territrio nunca visitado por europeus (ao menos desde Alexandre, O Grande, 3.000 anos antes) e nem por muulmanos, sem estado central, com uma populao de tribos pags em estado permanen-te de guerra umas com as outras. L pretendem oferecer sua expertise militar a qualquer dos l-deres tribais, montar um exrcito, ajud-lo a con-quistar o pas, para ento derrub-lo em seguida, tornarem-se reis, saquearem o pas e voltarem ricos para a ndia.

    Para tanto firmam entre si um contrato. Possui trs clusulas, apenas. A primeira, de que ambos sero reis do Kafiristo; A segunda, de que no consumiro lcool ou se deitaro com mulheres at completarem a primeira clusula; Terceiro, que se portaro com dignidade e discri-o, clusula que, alegavam, conferia regularida-de ao instrumento.

    O jornalista serve de testemunha do con-trato, apesar de no lev-los a srio, deixando-os entretidos com mapas e enciclopdias. No dia seguinte, entretanto, ele os encontra no ponto de partida das caravanas, disfarados de sacer-dote e ajudante, entretendo os nativos. Ao en-contr-lo, eles lhe mostram a carga de contra-bando: vinte fuzis Martini-Henry, os mais avana-dos da poca, e bastante munio no lombo dos camelos, dissimulados sob quinquilharias.

    O jornalista percebe ento que eles esto falando srio apesar de todos os riscos. Deseja-lhes sorte, apesar de ter certeza de que morre-ro.

    Deles tem notcia dez dias depois por meio de uma mensagem escrita. Haviam cruza-do, efetivamente, a fronteira entre a ndia e o Afeganisto. O tempo passa, sem notcias deles, at que trs anos depois uma figura esfarrapada

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    e alquebrada aparece no escritrio do jornalista suplicando um trago de bebida. Era Peachey, contando que chegara do Kafiristo, onde de fa-to ele e Daniel foram reis.

    Peachey passa a narrar a sua epopeia. Aps separarem-se da caravana e seguirem sozi-nhos em direo ao Kafiristo, Peachey e Daniel enfrentam ladres e as montanhas at se depara-rem com duas tribos em guerra. Aps tomarem partido da mais fraca e vencerem a refrega contra a mais forte graas aos fuzis os dois ca-em nas suas graas.

    O plano se desenvolve como esperado. Qual um domin as tribos vo caindo, uma a uma, engrossando o exrcito dos trambiqueiros at que todas as tribos estivessem unificadas sob um comando.

    ento que o inusitado acontece. Os dois descobrem que os lderes das tribos conhecem os sinais, toques e palavras dos dois primeiros graus da Maonaria, e tambm tm suas marcas gravadas na pedra, apesar de no conhecerem os elementos do Grau de Mestre.

    Eles decidem, ento, abrir uma Loja. Orde-nam a confeco de aventais no padro e pintam quadrados brancos sobre o piso negro de uma sala, criando um pavimento mosaico.7

    Mais uma surpresa ocorre quando os he-ris se preparam para abrir a Loja. Um dos sacer-dotes, um velho que no tirava o olho dos dois, viu a marca distintiva do avental de Venervel Mestre vestido por Daniel e se exaltou, revelando no fundo da pedra que servia de trono de Salo-mo a mesma marca, convencendo-se e a todos que Peachey e Daniel eram deuses. Os dois so entronados como Reis e Daniel, ainda, como Gro Mestre da Maonaria no Kafiristo.

    Eles comeam, ento, a governar salomo-nicamente o pas, utilizando-se dos conhecimen-tos que possuem da Bblia, ensinando os nativos a se organizar, a plantar, a estocar os gros, a

    lanarem pontes de corda entre as montanhas, unindo o pas.

    Nesse ponto o plano dos dois comea a se desfazer. Daniel comea a gostar de ser rei do Kafiristo, e resolve se casar, violando o contrato. Peachey contra, alegando que eles no podem desviar o foco naquele momento. Os dois se es-tranham.

    Os nativos tambm so contra o casamen-to, pois no lhes parece prprio de um Deus des-posar uma mortal, visto que ela com certeza morreria. Um dos lderes tribais mais fiis tam-bm adverte contra o casamento.

    No momento em que Daniel tenta beijar a esposa ela, aterrorizada, o morde, fazendo com que sangre. visto do sangue os sacerdotes e o pblico percebem que Daniel e Peachey so, afi-nal, mortais, e portanto, impostores.

    Uma revolta dos nativos toma corpo, e Daniel e Peachey esto cercados e sozinhos, sal-vo por alguns poucos aclitos, lutando por suas vidas contra uma turba numericamente muito superior.

    Percebendo a futilidade da resistncia, Da-niel se entrega para a turba, que o faz atravessar uma ponte de corda sobre o desfiladeiro, o que o faz com dignidade e altivez, aps pedir perdo a Peachey. A ponte cortada e Daniel mergulha para a morte. Peachey crucificado, mas tendo sobrevivido, libertado pelos nativos, conse-guindo retornar ndia aps uma longa e exaus-tiva jornada.

    O jornalista permanece incrdulo, at que Peachey lhe exibe a cabea coroada de Daniel, ltima prova de que eles foram um dia reis do Kafiristo.

    Peachey est desidratado e sofrendo de insolao, perdendo a sanidade. O jornalista o encaminha para um hospital. Ao visit-lo, no dia seguinte, descobre que ele no sobrevivera, e que a cabea coroada do Irmo Dravot desapare-

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    7 A traduo brasileira de Cristina Carvalho Boselli, publicada pela Editora Abril, no consegue, infelizmente, captar e expressar as expresses manicas com clareza, fazendo com que o leitor que no conhea de antemo estes detalhes da histria passe batido pelas referncias explcitas e veladas do texto original.

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    O conto se tornou filme na dcada de 70 do sculo passado, dirigido por John Huston e estrelado por Sean Connery e Michael Caine, que interpretam Danny e Peachey, respectivamente. O filme traz inovaes em relao narrativa do conto, mas sua conduo magistral o eleva condio de complemento do livro.

    Uma Lio Manica

    O homem que queria ser rei narra a his-tria de um fracasso. A chegada da figura estro-piada de Peachey ao escritrio do jornalista no comeo da histria j adverte ao leitor que ele no foi bem sucedido na sua pretenso de se tornar rei do Kafiristo.

    A entronao de Daniel como Rei e Gro-Mestre da Maonaria se revela um sucesso ef-mero: Para ser Rei Daniel tem que se assumir pri-meiro como um deus, abdicando da sua humani-dade. E de nada adianta ser um rei verdadeiro sem gozar dos prazeres que se esperavam de tal posto.

    De incio o papel de deus relativamente fcil: eles se utilizam do conhecimento que tm da Bblia e mimetizam o poder divino ao ditar semi-mandamentos e semi-profecias.8

    Kipling adere na histria s correntes, po-pulares desde as Constituies de James Ander-son, que atribuam Maonaria origens ances-trais, antediluvianas. No caso do conto Alexan-dre, o Grande, rei da Macednia que morreu em 323 a.C. teria sido o introdutor da Maonaria no Kafiristo.

    Neste contexto a Maonaria aparece como o elemento que liga e une os desconhecidos: o jornalista aos pilantras e depois eles ao povo do

    Kafiristo. Eles s conhecem os dois primeiros graus, mas no o terceiro. Aparentemente tam-bm conhecem o grau de Mestre da Marca, ou algo parecido com ele, pois Danny nota que eles tm suas marcas gravadas na pedra.9

    Apesar de no falarem a mesma lngua os aventureiros e os nativos se entendem na Loja ad hoc montada. A concesso do terceiro grau vira um sinal inequvoco de autoridade, pois todos os chefes de tribo desejam t-lo. Para no banalizar o grau Danny e Peachey conferem-no somente aos lderes mais fieis entre eles um, apelidado Billy Fish, que d uma prova final de fidelidade quando a farsa cai.

    Mas a incapacidade de Danny de frear su-as paixes e controlar seus instintos pe tudo a perder. Sendo um deus ele no poderia desposar uma mortal. Na interpretao de Peachey tal comportaria, ainda, uma violao do contrato firmado entre eles, ao que Danny d a entender j estar superado.

    Disse Danny:

    Eu no vou fazer uma nao ele dizia vou construir um Imprio! Estes homens no so negros, so ingleses! Veja os seus olhos, veja as bocas. Veja o seu jeito de ficar em p. Sentam em cadeiras den-tro das prprias casas. So as Tribos Perdidas, ou qualquer coisa parecida, e nasceram para ser ingleses(...) Vamos ser imperadores, Imperadores da Terra! O Raj Brooke vai pare-cer criana perto de ns. Vou falar com o Vice-Rei de igual para igual. (...) vou escrever pedindo uma Dispensa para a

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    8 Por exemplo: ao determinar que uma tribo se mudasse de Vale Danny lhes disse: ide arar a terra, e ela dar frutos e os

    multiplicar (KIPLING, 2010, p. 32). Em outro momento, mandando cessar o ciclo de violncia mimtica que punham as tribos em permanente estado de guerra umas contra as outras, vaticinou: ningum nunca mais vai levar tiro nem lana se agir com correo (KIPLING, 2010, p. 39). Esses comandos so bastante similares aos dados por Deus a No, na sada da Arca, vide Gen 9: 6-7. 9 Tanto no sistema ingls como no sistema americano (Rito de York) o grau de Mestre da Marca conferido somente a quem tenha o terceiro grau. Entretanto, a histria narrada no grau se passa antes da narrativa da lenda do terceiro grau.

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    Grande Loja pelo que fiz como Gro Mestre (...) Quando tudo estiver no ponto eu entrego a coroa, esta coroa que estou usando agora, de joelhos para a Rainha Vitria e ela vai dizer: levantai-vos Sir Daniel Dravot! Ah, mximo! o mximo, estou lhe dizendo! (KIPLING, 2010, p. 40-41)

    S que o inverno se aproxima e Daniel de-seja uma esposa. Peachey o adverte: eles estari-am violando o contrato. H muito