Volume 3 - O Drama Da Brethanha

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    O Drama da BrETANH

    Romance da mesma srie de

    NAS VORAGENS DO PECADO e O CAVALEIRO DE NUMIERS

    FEDERAO ESPIRITA BRASILEIRADEPARTAMENTO EDITORIALRua Souza Valente, 17-ZC-O8e Avenida Passos, 30 ZC-5820Q00 Rio, GB Brasil

    71 edioDo J-0 ao 15.0 milheiroCapa de RENATO MatoCopyright 1973 byFEDERAO ESPRITA BRASILEIRA(Casa-Mter do Espiritismo)Composio, fotolitos e impresso offset das

    Oficinas Grficas do Depto. Editorial da FEBRua Souza Valente, 17- ZC-082000 Rio, RJ Brasile. a. C. n. 33.644,857/02 1. E. ni' 097.035.01Impresso no Brasil

    INDICEPrefcio 9Prlogo As costas da Bretanha 11A famlia de Guzman 19II Andrea e seu obsessor 31III Victor 41IV O suicida reencarnado 51V O aleijado 59

    VI Marcus de Villiers 69VII Complicaes 79VIII O obsessor 95IX O sedutor 107X Em Saint-amar 117XI Os noivos 127XII O conselho de famlia 137XIII Na hora do testemunho 153XIV Uma viagem ao Infinito 167XV A vitria do obsessor 177XVI Uma pgina de Alm-tmulo 185XVII A ao benfica da prece 195Eplogo A despedida 203

    Prefcio

    H quarenta anos este livro foi-me ditado do mundo espiritual pelaprimeira vez. Seu primitivo autor assinava-se Roberto de Canalejas.Reencarnou, porm, logo depois de haver iniciado o ditado, numaresoluo inadivel, a bem do prprio progresso, e no conseguiuterminar a obra. Eu era, ento, muito jovem e inexperiente, ensaiava aliteratura medlnica sob orientao dos mentores espirituais, logo apso desenvolvimento da faculdade psicogr fica, e a obra saiu imperfeita.Passaram-se os anos. Eu temia destruir os manuscritos porque consideravabeta a narrao, e por isso guardava-os como recordao do amigo Robertoque, como Espi rito, tantas provas de afeio me havia dado. Tambm

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    nunca recebi ordem do Alto para reconstituir o livro, no obstanteoutras obras j me terem sido concedidas, inclusive o romance "NasVoragens do Pecado", o primeiro da srie de trs que se relacionam naseqncia do enredo e das personagens. Trata,portanto, este livro, de episdios vividos por algumas personagens de"Nas Voragens do Pecado", nos trabalhos de reparao de faltas cometidasento. Um outro existe, anterior a este, ditado na mesma ocasio e pelomesmo primitivo autor, isto , h quatro decnios, o qual seria osegundo da srie e onde se conta ahistoria da reencarnao imediata das mesmascitadas personcWefls. Mas, tal como este, conservado incompleto eimperfeito. Foram, pois, ditados salteadamente, comeando do terceiropara o segundo e finalmente o primeiro, "Nas Voragens do Pecado",obtido em 1959.H cerca de sete meses, porm, quando eu j considerava nada mais havera fazer com os apontamentos guardados, apresenta-se o amigo espiritualCharles e diz:- Reconstruiremos "o drama da Bretanha". Seria injusto que perdssemosuma obra que recebeu o beneplcito do Alto para ser divulgada.E hoje ofereo ao leitor estas pginas que, espero,podero servir aos necessitados de amor e justia.Rio de Janeiro, 9 de maro de 1972.

    Prlogo

    AS COSTAS DA BRETANHA (1)- "Na verdade vs, como ns, todos vivemos mergulhados num OceanoEspiritual imensurvel, do qual se originam a cincia e a sabedoriapossveis ao espirito humano.Essa a Comunho com o Esprito Santo, de que tratam as Sagradas Escrituras quandodizem: "Ele mora em vs econvosco existe."

    (Imperador - Esprito - guia deStainton Moses. Ver "Os Enigmasda Psicometria", de Ernesto Bozzano)

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    Desde pocas remotas, a Bretanha foi frtil em lendas sugestivas, pelo

    sabor dramtico com que os bretes souberam revestir os acontecimentosdesenrolados em seu seio, no raramente tocando-os dos matizes domistrio e do maravilhoso. Terra de antigos brbaros, bero de prncipesilustres, a Bretanha, adaptada s prprias lendas, ainda hoje oferece aoviajante algo de estranho e singular que atrai, comove e atemoriza. Suatopografia presta-se s insinuaes da sugesto: enfeitada de montanhasagrestes, bordada de florestas consideradas outrora misteriosas, dandoasas superstio, contornada de ribanceiras selvagens deitando para oAtlntico Norte, sempre bravio em suas costas e cujas guas se esboroamininterruptamente por entre contrafortes de pedras brutais, essa terrade fadas e gnios alados convida o pensador ao exame e meditao poisto preciosos detalhes oferecem vestgios empolgantes de um pretritoatraente e qui inesquecvel. Nenhum filho de solo francs teria sidomais orgulhoso, mais dose dos valores da prpria raa do que o foram osbretes. Talvez porque a Bretanha houvesse demorado a se incorporar aoterritrio francs, os bretes preferiram sempre as suas sete famosasflorestas e as suas supersties, as suas ribanceiras do Atlntico e osseus castelos seculares, suas misrias e suas crendices, seus piolhos esua ignorncia, ao restante do solo do pais, suave e galhardo.A Bretanha h sido rude, sombria, equivoca. Deu Frana a maisaudaciosa e original guerra civil de que h memria na Histria NacionalFrancesa, a da Vendia, conflito estranho e trgico, que escondia o seuexrcito de camponeses, fiel ao realismo, nas entranhas da terra, nointerior das florestas, solapando o terreno com subterrneos, e onde obreto ignorante, miservel e oprimido pelo regime ainda feudal lutavaselvagemente contra os defensores dos

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    seus prprios direitos de cidado livre de uma repblica, preferindodefender a causa absolutista dos seus escraviza dores seculares, isto, os nobres e aristocratas, acomodados ignorncia do servilismodepressor. (1)Mas, acima de tudo, a Bretanha encantadora. H em sua atmosfera certanaustlgia indefinvel, que nos envolve em impresses imorredouras. O cude opala, de um azul esgazeado, a atmosfera saturada de frescasneblinas, o oceano rumoroso, elevando eternos brados hericos ao longode suas costas eriadas de reentrncias pedregosas, as florestaspujantes, de onde se exalam perfumes saudveis e penetrantes, oscastelos feudais, pesados, evocando o rigor medieval, as torres maciasque ornam os seus vilarejos e ainda as runas evocativas de uma pocabela, forte e trgica, cativam o corao daquele que um dia recebeu porbero as suas terras lendrias.Ao aportar na Bretanha, a primeira impresso que assalta o viajante deAlm-tmulo a de que dramas intensos estigmatizaram para sempre suaambincia etrea, tecendo--lhe a singularidade de uma aura-arquivo toda especial, repleta demotivos para especulaes variadas, apaixonadas, impressionantes.Em remota migrao terrena, eu fui breto. Nasci, ento, nessa terra deprncipes ilustres e honrados, orgulhosos e conservadores, que, ao

    explodir a Revoluo, quando caa a cabea infeliz de Lus XVI e anobreza se viu perseguida e batida pelos dias do Terror, preferirammorrer ou emigrar a confraternizar com o povo triunfante, ao qual sehaviam habituado a tratar como vilo.Os Espritos ainda preocupados com os ambientes terrenos no soinsensveis aos locais onde viveram comohomens, onde sofreram, amaram, trabalharam e progrediram.(1) A guerra da Vendla teve lugar durante a Revoluao Francesa e foimovida entre os dois partidos: Nobres e Republicanos, mas auxiliada pelaInglaterra, que se aliara ao partido da nobreza.13Visitam, algumas vezes, essas estncias desoladas da Terra, que lhesserviram de bero e onde, quase sempre, vem reencarnados para pelejasnovas que lhes conferiro mritos indispensveis outros Espritos quecompartilharam de suas vidas e a quem continuam a amar com

    desvanecimento. E colhem, de cada vez que o fazem, novos cabedais deexperincia nas recordaes que a vista do local onde habitaram fazeclodir em sua memria superexcitada.Eram aproximadamente dez horas da manh quando planei sobre Rennes, avelha capital da Provncia, pouco depois do armistcio que ps fim primeira guerra mundial, por todos denominada a "Grande Guerra". (1)Deslizava eu pensativamente por suas ruas atingidas de melancolia devidas neblinas do ms de outubro. Indeciso, procurei o antigo bero natal erevivi, uma a uma, as cenas gratas ou dramticas do que fora a minhavida de ento, como se, sobre um altar sagrado e muito querido, eurelesse pginas inesquecveis de um brevirio frtil, cujas lies meconduziram a etapas novas de progresso. Mas, o muito se concentrar sobreum pretrito que se dever antes esquecer angustia e exaure o corao...e afastei-me, entristecido, preferindo deslocar-me to lentamente quantomo permitisse a condio espiritual, procurando a orla do oceano. Echeguei s ribanceiras rudes de certa localidade prxima de Vannes, ouseja, em certa aldeia outrora denominada SaintOme (2). Encontrei-me,ento, em local singularmente sombrio e agreste, mesmo angustiante.Acheguei-me s bordas do oceano, constatando impressionante abismo deguas enfurecidas em lutas incansveis contra os penhascos precipitososque se suspendiam a alturas no inferiores a cinqenta metros- Em torno,silvas e arvoredos frutferos como que abandonados, velhos carvalheirosrequerendo melhores tratos,(1) 1914-1918.(2) Vannes, uma das cidades principais da Bretanha.14accias e castanheiros evocativos e como desolados, enfrentando os

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    bramidos ininterruptos das guas revoltas.Subitamente, dentro do silncio da manh tranqila, e quando, s oAtlntico parecia traduzir o ritmo da movimentao planetria, um gritodoloroso de desespero, sinistro brade de honor e agonia, de algum quese houvesse precipilado daquelas imensas penedias ao seio das guas,quebrou a placidez do momento, despertando minha sensibilidade para asurpresa a que no me pude furtar. Seguiu-se um gargalhar diablico, talse algum, louco, enfurecido, partilhasse com alegria blasfema dodesastre que motivara o grito angustioso, gargalhar que me levou a reveros esgares das falanges obsessoras que, no mundo invisvel, eu mehabituara a contemplar durante os servios de socorro s trevas daignorncia, no incentivo renovao individual de pobres sofredoresdelinquentes, servios que freqentemente era-me necessrio realizar.Aproximei-me, ligeiro, do local de onde tinham partido as duasvibraes, o brado de horror e o gargalhar. Distendi a viso espiritual,investigando a profundidade das guas, procura do corpo humano quecertamente se precipitara ali, devassando longamente as reentrncias daspedras, as furnas martimas das imediaes, a profundidade e a larguezado oceano, a fim de prestar socorro ao pobre Esprito que em tosinistras condies abandonava o seu fardo corpreo. Nada encontrei,porm, como igualmente nenhum vulto humano ou forma perispiritualdescobri nos locais examinados. Eu percebera, no entanto, que ambos osrumores dir-se-iam difusos pela atmosfera, antes traduzindo a vibrao

    do eco do que mesmo o som imediato do acontecimento, e investigavaainda, examinando as ondas luminosas do ter local, que o magnetismoocenico singularmente conserva, quando trs novos gritos, aflitos eseguidos um do outro, traduzindo inconcebvel desesperao,emocionaram-me vivamente, atestando, porm, vozes masculinas diferentes, maislongnquas15do que os dois primeiros, e repetindo, como se vibrados todos por entrelgrimas de exasperado horror:- Andrea!... Andrea... Andrea!...Quedei-me pensativo, pois nada via no local. O primeiro grito ouvidofora de mulher jovem, certamente de uma ado lescente. O gargalhardir-se-ia de rprobo de Alm-tmulo. Os trs gritos seguidos, chamandoAndrea, seriam de homens jovens e de um ancio. Que teria acontecidopelas imediaes, para que to trgico registro assinalasse de tal modo

    as vibraes da matria fludica do ambiente?Examinei os arredores: do local onde me encontrava, a uma altura decinqenta metros estimativos sobre o nvel do oceano, prolongava-se parao continente o vestgio de uma estrada nobre que, a despeito do abandonoem que se encontrava, deixava entrever ainda um passado de esplendor.Tufos de velhos rododendros vermelhos, de glicnias e giestas, frondosasgalhadas de lilases e accias e profuso de plantas preciosas, prpriasde antigos parques senhoriais, deixavam-se notar por entre silvas eespnheiros, enquanto carvalheiros e pinheiros soberbos recordavam oesplendor de um parque que outrora teria sido o orgulho de velhosfidalgos bretes. Deslizei sobre essa estrada como que ouvindo ainda asvibraes, dispersas pelo ar, do rodar das carruagens e caleas que porela transitaram em paradas recreativas... e deparei, no longe, umvelho castelo estilo renascena, ornado de heras, meio envolto j nosudrio aniquilador de incipiente runa.Penetrei ento o interior do solar, que era nobre e patriarcaL Umguarda, nico vivente naquela regio desolada, sentado sobre um degraude mrmore, que o limo devastava, fitava o vcuo, sem me perceber suafrente, saboreando seu modesto cachimbo enquanto se aquecia ao solindeciso da manh de outubro. E, porque tivesse eu aguado a viso, afim de tudo investigar com preciso e rapidez, descobri, no vestbulo daentrada nobre, os pergaminhos ali encerrados por descendnciaindiferente, que jamais freqentava o solar16

    perdido entre bosques e o litoral selvagem, e li arquivos de antigaspersonagens ali residentes:

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    - "Relatrio e descendncia (rvore genealgic a) das famlias de Guzmand'Albret e de Guzman d'Evreux, desde o sculo XIII aos atuais titulares.- Vannes, 27 de fevereiro de 1806."Uma rvore genealgica, com efeito, apresentava-se desenhada empergaminho precioso, distendendo os seus galhos de geraes desde o anode 1230, com o enlace do primeiro Conde de Guzman, cuja origem era aEspanha, mas cujos descendentes se ramificaram pela Frana, pela ustriae Pases Baixos, transpondo a eufonia para a pronncia Guttmann.Interessaram-me especialmente, porm, os ltimos habitantes do castelo,pois entre eles descobri o prenome Andrea,e, assim sendo, cientifiquei-me de que foram eles:- O Conde .Toseph Hugo Franois de Guzman d'Albret e sua esposaFranoise Marie de Montalban d'Albret.Seus filhos: Victor Franois de Guzman d'Albret eAndrea de Guzman.- O Conde Ren d'Evreux e sua esposa Amelye de Guzman d'Evreuz.Seus filhos gmeos: Arthur e Alexis de Guzman d'Evreux.Cheio de curiosidade, galguei as escadarias e, uma a uma, visitei asdependncias do castelo, as quais me pareceram impregnadas por vibraesrecentes, vivamente dramticas e fortes. Lembrei-me do grito de horrorque eu ouvira havia pouco, do nome Andrea aflitivamente bradado por trsvozes varonis, e pesada emoo fez palpitar os refolhos do meu serespiritual. Profunda tristeza me sombreou o Esprito, cujas vibraes se

    amorteceram ao impacto terreno. Senti pesar em meu ser, agora integradonuma ambientao material, a intensidade dos acontecimentos que aquelasnobres paredes testemunharam. Aquele solar, ento, apresentouse-me como relicrioaugusto de dramas e lgrimas que um pretritotormentoso havia criado. Sentei-me, comovido, sobre17

    vetusta poltrona Luis XIV, em damasco azul e ouro, e abandonei-me a estainvocao:- " potncias augustas da minha alma! Distendei vossas percepesgloriosas pelo ter que circunda esta regio desolada. Perserutai osarquivos das ondas luminosas que vibram ainda em derredor destahabitao. Aplicai vossos sentidos mais poderosos, mais sensveis, aexaminar a fluidez sagrada das vibraes que ainda flutuam naessncia csmica que envolve esta nobre manso e seus sugestivos

    arredores. Palpitam ainda por aqui, eu bem o sinto, as repercussesimpressionantes do que fizeram, do que pensaram, do que sofreramaqueles que nela habitaram pela ltima vez! Dai-me o poder de ler nasutileza dessas mesmas vibraes, fotografadas e impressas nas ondasluminosas do ter, as cenas dodrama que entrevejo atravs das impresses que me molestam ocorao! E mostrai-me o que sucedeu a Andrea, paraque um fim terreno to trgico a arrebatasse. Quem sabe se lies degrande valor moral eu a colherei para mim prprio, ou para aqueles porquem sou responsvel?"Ento, pouco a pouco, os meus sentidos espirituais, poderosos porquerevigorados pela ao da vontade, se movimentaram, e um panorama extensodescortinou-se aos meus olhos, desenrolando-se o drama que trasladeipara estas pginas, drama que, um dia quem sabe poder tambm serpresenciado pelo leitor na ao da vida espiritual, visto que suas cenasperduraro por milnios impressas nas vibraes da luz.O castelo, nobre e evocativo, apresentou-se ento em todo o seuesplendor passado, fulgurante de luzes e movimentao. e compreendique era a noite do Natal do ano de 1804.18

    CAPITULO 1A FAMILIA DE GUZMAN"A obsesso a ao persistente que um Esprito mau exerce sobre umindivduo. Apresenta caracteres muito diversos desde a simples Influnciamoral, sem Perceptveis sinais exteriores, at a perturbao completa doorganismo e das faculdades mentais. Oblitera todas as faculdades

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    medinicas traduz-se, na mediunidade escrevente pela obstinao de umEspirito em se manifestar com excluso de todos os outros."

    ("Evanglio segundo o Espritismo", de Allan Kardec, Cap. XXVIII,"Coletnea de Preces Espritas", n.o 81)

    Comemorava-se ainda em toda a Frana um dos maioresacontecimentos que sacudiram os seus destinos gloriosos e19os destinos do mundo, porque nenhum acontecimento importante da Franadeixou jamais de se irradiar para alm das suas fronteiras: NapoleoBona-Parte, jovem heri de inesquecveis batalhas, o vencedor deMontenotte e Mondovi, de Castiglione e de rcole, de Rivoli e deMarengo; Bona- parte, o primeiro-cnsul do Diretrio famoso, aps aqueda da realeza, sobre o qual tantas esperanas repousavam, foracoroado Imperador dos franceses, sob os mais lisonjeiros auspcios de umpovo exausto de apreenses e sofrimentos, povo que estremecia ainda trgica lembrana dos dias do Terror e da guerra da Vendia, que regaramde sangue a ptria venervel. Era assunto preferido, em todas ascomunidades da Frana, a capacidade do grande general para conduzir asrdeas do governo altura conveniente a uma nao civilizada, seuspredicados de poltico astuto e sagaz, sua ausadia de soldado. Muitosnobres franceses, exilados desde antes de 1793 (1), regressavam agora

    ptria, saudosos e confiantes, tolerando a usurpao do trono que, pordireito, cabia aos Orlans, esperanados de uma fruio de paz permitidapor um governo bem mais dignificante, porque um Imprio, do que aqueleque se pretendera impor sob a inspirao da Conveno Nacional, enquantoantigos republicanos depunham opinies liberais para servirem ao grandecorso, que tantas glrias j conquistara para as armas francesas,elevando a ptria no conceito mundial. E, na cidade de Lyon, num extremoda grande nao, nascia aquele que seria o escolhido do Alto paraoferecer ao mundo a mensagem do Consolador, que o Cristo prometera aoshomens para seu conselheiro e protetor nas asperidades da existncia:Hippolyte Lon Denizard Rivail, o Allan Kardec, autor da codificao doEspiritismo. (2),(1) Ano em que se Iniciou o perodo governamental republicano denominadoTerror, quando a tirania foi exercida e aguilhotina ceifava vidas preciosas, at mesmo fazendo cair a

    cabea do Rei, Luis XVI, e da Rainha Maria Antonieta.(2) Allan Kardec nasceu a 3 de outubro de 1804.20

    Desde o dia 2 de dezembro, data em que se realizara a cerimnia dacoroao do Imperador, o povo exultava em festas, confiante no adventode uma realidade de paz, de labor e progresso para o pas, tinto dosangue de tantas vitimas e exausto de ver funcionar a sinistra mquinado Dr. Guillotin, ou seja, a guilhotina. Bem cedo tais esperanas seriamdesfeitas por uma realidade igualmente de sangue, pois o Imperador nocorrespondeu s esperanas do povo, que aspirava paz; mas, ento, aalegria era imensa e todos sonhavam com aquilo que s existiria em seuscoraes.Dentre os fidalgos exilados no estrangeiro, com a queda da realeza e aperseguio aos nobres, promovidas pelas leis da Revoluo,destacavam-se, pelo nmero, os bretes, que, por assim dizer, partiramem massa para o exlio ou tombaram em luta inglria. E dentre os bretesacabavam de regressar ao bero natal os Condes de Guzman d'Albret e deGuzman d'Evreux, os quais, sensatamente, prevendo o que sucederia Frana com a tomada da Bastilha pelo povo enfurecido, em 1789, a tempose haviam transportado para a Espanha por via martima, sem que nenhumincidente os perturbasse, pois, vivendo no seu castelo solitrio beira-mar, nos arredores de Vannes, na Bretanha, fora-lhes fcil escaparem embarcaes inglesas que, pela poca, se aplicavam a humanitriotrnsito clandestino de passageiros pelas costas da mesma Bretanha,cuidadosos de salvarem do oprbrio da desonra e da morte a fina raa dafidalguia bret e francesa.

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    Ali, pois, em Espanha, permaneceram os de Guzman d'Albret e de Guzmand'Evreux encerrados no seu palcio de Madrid, onde levaram existnciarecatada, durante o furor desencadeado pela Junta Revolucionria sediadaem Paris, amargurando-se sempre que noticias atrozes chegavam Espanha,quando sabiam que amigos queridos e fidalgos ilustres haviam sucumbidosob a vingana dos revolucionrios, mas glorificando os Cus aoconstatarem que nem uma s gota de sangue dos de Guzman havia corrido,nem mesmo depredaes21

    ou confiscas de sua aprazvel residncia de Saint-Omer, nosarredores de Vannes, onde apenas alguns serviais haviam ficado, a fimde zelarem pela propriedade.Era a noite de Natal.Exultava a numerosa famlia por se ver assim reunida no solo ptrio,pois at mesmo o primognito da casa, o Visconde Victor Franois, quepassara longo tempo no Oriente, agora regressava, jubiloso, ostentandoprecioso pergaminho de doutor em Medicina e em Cincias Esotricas ,curso que fizera em antigas faculdades da velha ptria dos faras, oEgito.Em torno da mesa alinhavam-se todos, para a ceia do Natal, depois dehaverem entoado hinos sacros apropriados para o momento. Tratava-se de

    adeptos da Igreja Catlica Romana como bons bretes que se orgulhavam deser, com exceo de Victor, que, avanado em ideais e convicessorvidos em estudos filosficos da escola egpcia, rendia antes respeitoa todas as crenas, considerando-as sublimes em essncia, masreservando-se o direito de particularmente optar por uma Cincia queseria o ideal augusto da renovao crist aplicado ao transcendentalismodas antigas doutrinas secretas, que desde pocas imemoriais jorram doInfinito revelaes e inspiraes para aqueles que se tm tornadocapazes de receb-las, assimil-las e pratic-las.Alm do velho Conde Joseph Hugo Franois e de sua esposa, FranoiseMarie, viam-se, rodeando a mesa, Victor Franois, o jovemfilsofo-mdico; Andrea, sua irm, linda menina de quinze anos deidade, nascida na Espanha, pelo incio da Revoluo, mas consideradafrancesa por tradio, a qual somente agora realmente conhecia o irmomais velho, a quem deveria amar e respeitar como o segundo chefe da

    famlia; Arthur e Alexis de Guzman d'Evreuz, os gmeos, de dezoitoprimaveras, sobrinhos do Conde Joseph Hugo, filhos do Conde Rend'Evreux e da Condessa Antelye, ambos falecidos, alm de outraspersonalidades que, com idntica dignidade,22

    usavam o nome venerando de Guzman, que desde o sculo XIII seorgulhava da sua excelente descendncia.Particularizava-se a familia pela ternura, o respeito e a considera ocom que se prezava, sentimentos que seriam o padro da felicidade queparecia irradiar de cada um daqueles coraes honrados, observadores dajustia e do dever.Nessa noite memorvel, quando j uma rica rvore de Natal fora despojadadas prendas que lhe baloiavam dos galhos, para alegria dos jovens dacasa e de pequeno nmero de comensais infantis arrecadados pelascercanias, dir-se-ia que todas aquelas amorveis personagens haviam sidoescolhidas para destinos invulgares, qui para triunfos singulares emsetores imprevisveis da Vida. A verdade era, porm, que um grupo alihavia, comprometido com as leis da Providncia, por erros graves dopassado, e se reunia para inadiveis reparaes e necessrias reformaspessoais.At ao primeiro e ao segundo briddes, a conversao na mesa limitou-sequase que exclusivamente em torno de Vctor, seu regresso do Oriente,seus estudos sobre cincias esotricas, suas peregrinaes aos lugaresapontados como testemunhas da vida de Jesus, suas investigaes arespeito do Mestre Nazareno, as esperanas que a Frana depositava emNapoleo e sua recente coroao como Imperador dos franceses. A pedido

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    dos presentes, Victor discursava sobre os princpios da Doutrina queadotara durante a permanncia no Oriente: a imortalidade da alma, suaorigem divina, a migrao e a emigrao das almas, ou reencarnao; acomunicao dos Espritos com os homens, a cura de enfermos pelosprocessos espirituais e magnticos, as faculdades da alma, criada semelhana de Deus pelos valores dele recebidos, os quais devemprogredir e se aperfeioar at ao auge das prprias possibilidades, anecessidade de aquisio de virtudes e integrao com o Bem, para apossibilidade de ventura entre os homens, enfim, toda a longa e belaexposio dos ensinamentos das doutrinas secretas que no Orientetiveram o seu bero e de l se expandiram para reeducar e engrandecer oshomens.Todos ouviam o nobre discursador encantados e surpresos, bebendo saspalavras, como se inebriando na revelao de alvssaras celestes quelhes transportassem a alma.A certa altura da solene cerimnia, porm, e aps o terceiro brinde obrinde de honra, feito ao Natal de Jesus o Senhor de Guzman d'Albretexclamou, pedindo vnia em atitude cerimoniosa e passando a ser ouvidocom religiosa ateno, pois tais prembulos indicavam assunto grave aser comunicado famlia:- Passada que foi a borrasca que violentou a Frana- comeou ele, eis-nos novamente reunidos nesta grande noite, meusamados, reiniciando tradio secular em nossa famlia.

    Duplamente jubiloso dirijo-me a vs, depois de convidar-vos, dos quatrocantos da Europa, para as comemoraes desta noite, jbilo por vos tersob meu teto aps to longos perodos de angstia e quando, retornandotodos do exlio, um noivado ser anunciado pelos de Guzman d'Albret.-Suspendeu-se o orador, propositadamente aguando a curiosidade dafamilia. Victor, recm-chegado, percebeu que todos os olhares o fitavam,indagadores. Perturbou-se, imaginando que os pais o haviam surpreendidocom uma noiva que ele absolutamente no pretendera e vendo-se alvo detodas as atenes. Circunvagou, ento, tambm ele, o olhar perscrutadorpela mesa, investigando quem, dentre aqueles primos e primas alireunidos, teria possibilidades de um noivado oficializado naquela noite,pois custava-lhe crer que o pai, to seu amigo, o no consultasse em tosignificativa emergncia.Era, com efeito, tradio da famlia de Guzman anunciar o noivado dos

    seus jovens representantes mesa da ceia do Natal. Muitas vezes, paraessa singular cerimnia, a que emprestavam brilho especial, reuniam-serepresentantes da famlia, provindos de toda a Europa, na residncia dovaro24

    que se comprometeria para futuros esponsais, a fim de abrilhantarem oacontecimento e testemunharem o compromisso, o que a este solidificariade tal forma que a um e outro prometidos seria impossvel recuar napalavra empenhada, a menos que se desonrassem perante o conceito de todaa famlia. L estavam, com efeito, as meninas Ludo e Claire, lindas efolgazs, de Flandres; o Visconde de Guzman de Montalban e seus trsfilhos vares; o Conde e a Condessa de Guttmann de Holeben e seus filhosGracie e Ferdnand, da Baviera, e mais representantes da Lorena, daAlemanha, da ustria, da Espanha, ao passo que Arthur e lexis de Guzmand'Evreux no poderiam ser suspeitos de um compromisso de talresponsabilidade, dado que no haviam atingido sequer a maioridade.No obstante, prosseguiu o Conde Jos Hugo, o anfitrio, apsverificar a emoo dos circunstantes, que continuavam guardando o maisrespeitoso silncio:- h quase dez anos no vemos realizarem-se esponsais na famlia deGuzman. tempo, portanto, meus amados, de os vares da nossa raameditarem sobre a necessidade de se continuar perpetuando esse nome, queh seis sculos vem mantendo a tradio honrosa das suas geraes.Temos, no momento, esparsos pela Europa, vinte e seis jovens da famliade Guzman na idade precisa para o matrimnio. No intuito de a estesincentivarmos para o significativo passo, a Senhora Condessa, minha

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    esposa, e eu acabamos de consertar o compromisso de noivado, para asbodas daqui a trs anos, entre os nossos queridos filhos Alexis deGuzman d'Evreux e Andrea de Guzman d'Albrct...Um murmrio discreto acolheu a inesperada comunicao. Colhida desurpresa, a jovem Andrea titubeou, fitando insistentemente o pai e oprometido que lhe davam, enquanto este, que desde a vspera foracientificado pelos tios da oficializao do acontecimento, que muitograto lhe era ao corao, levantou-se, curvou-se em vnia dirigida aostios e exclamou gravemente, com visvel emoo:

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    - Profundamente me honra essa promessa, Senhor Conde, a qualardentemente desejo ver realizada em aliana perene... Receboa com a maisgrata alegria do corao, visto que minha gentil prima Andrea de Guzman merecedora de todo o meu amor e da minha admirao...Joseph Hugo sorriu, benvolo e satisfeito, enquanto Alexisprosseguia agradecendo a concesso da mo de Andrea e estalevantava-se em sinal de assentimento.Foram ento lidas as bases do contrato de aliana das duas famlias, quetinham como cabimento a leal afeio dos dois jovens, e os bens que cadanubente levaria por ocasio dos esponsais. A seguir, o importantedocumento familiar, passado de mo a mo, em toda a mesa, recebeu a

    assinatura das testemunhas presentes, como se j se tratasse do atooficial a ser realizado dentro de trs anos. Ento, aproximaram-se osnoivos um do outro, como exigia a cerimnia. Alexis osculou,respeitosamente, a destra de sua prometida, sentando-se a seu lado,risonho e encantado, ao passo que a ceia prosseguia e um quarto brindeera levantado, desta vez homenageando as duas figuras que se tornaramalvo das atenes gerais.A partir desse momento que Andrea de Guzman passoua ser atentamente observada por seus desconhecidos parentesda Europa.Ela era formosa e esguia, com a pele alva e acetinada como as ptalas deuma camlia imaculada, os cabelos de um louro fulvo, arruivados, caindoem madeixas encaracoladas pelos ombros e ornando a fronte com anisfartos e caprichosos. Trajava longo vestido branco romana, moda queacabara de ser lanada pelo Imprio, durante a coroao de Sua

    Majestade, pois Josefina Bonaparte, no dia da coroao do esposo, assimse trajava, evocando as modas femininas e o fausto de Roma. Levesnuanas azul-celeste, sobre o tecido branco, delicado e cintilante,emprestavam tons dulcssimos silhueta de Andrea, dado que seusvestidos, amplos e vaporosos,

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    lhe conferiam aspecto angelical de atraente beleza. Mas, acima detudo, eram os olhos dessa jovem bret espanhola que impressionavam oobservador, olhos profundos, rasgados em amndoas, de longos duoscastanhos e expresses melanclicas, por vezes assustadios, cujos ris,de uma tonalidade azul forte, eram encantadores e incomparveis em todaa familia.

    Entretanto, nem todos os circunstantes se rejubilaram cem a participaodo inesperado compromisso. Dentre os presentes, um corao havia que seconservara retrado e decepcionado, sem externar felicitaes oualegrias pelo evento, enquanto a ceia prosseguia entre expansesamistosas.Arthur, o gmeo de Alexis, surpreendido com o compromisso aceito peloirmo, corara ao ouvir o tio anunci-lo, crispando os dedos sob aardncia de forte emoo, ao passo que o corao se lhe precipitava nopeito em pulsaes dolorosas. Arthur amava Andrea tanto quanto o irmo aamava, ambos no ignoravam o que no corao do outro se passava, e essesentimento, to nobre e puro que se eternizaria na vida espiritual,revelara-se na infncia por uma ternura incompreensvel ao entendimento

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    humano comum...Ora, precisamente no instante em que o Conde Joseph Hugo se erguia damesa, dando por terminada a ceia, para que os convidados se apressassempara as danas no salo nobre, onde outros convidados j semovimentavam; quando Alexis oferecia a mo sua linda prometida a fimde conduzi-la, segredando-lhe a ventura de que se sentia possudo,repercutiu pelo recinto, e todos os circunstantes a ouviram, umagargalhada equvoca, abafada, como que difusa pelos quatro ngulos dosalo.Desagradavelmente surpreendidos, os comensais se voltaram, indagadores,buscando localizar o insolente que assim se portava em ocasio tosolene, sem, contudo, distinguirem qualquer novo convidado, enquanto oConde Joseph Hugo, chocado, mas conciliador, exclamava, traindoexcitao:

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    - No, no vos impressioneis com esse fato inslito... Explicarei maistarde o que isso significa...E Andrea, tremente e emocionada, procurava refgio nosbraos maternos, exclamando, por entre convulsivo pranto:- Ele, meu Deus, sempre ele, o meu algoz, que em sonhos ou em vigliano me permite um s dia de verdadeira satisfao! Sim, minha me, sei

    que ele reprova meu casamento com Alexis e que ser em vo que eualimente esperanas de felicidade. Suas preferncias so antes paraArthur.A Condessa repeliu-a, como se se envergonhasse da expanso da filhadiante dos convidados. Andrea ressentiu-se da repulsa de sua me emreconforta-la, pois sabia, compreendia no ser devidamente amada poraquela que lhe dera o ser. Impressionante crise de nervos adveio, ento,prostrando a jovem prometida. Estupefatos, os comensais no sabiam o quepensar em face do que presenciavam. A quem se referia Andrea? De quemfalava, se ningum estranho famlia fora admitido para a cerimnia daceia? Alm dos criados, que se mostravam aturdidos com o singularacontecimento, nenhuma outra personalidade poderia ter atingido orecinto, a no ser que formas invisveis o tivessem assaltadoRetirada nos braos do irmo, que por ela sentia uma ternura todapidosa e paternal, para os seus aposentos particulares, Andrea

    debatia-se em violento ataque de nervos, como se sbita possesso dastrevas se arremessasse sobre ela, impossibilitando-lhe receber oscumprimentos dos convidados de seu pai no dia auspicioso em que seoficializara o seu noivado. Por sua vez, pensativo e inquieto, Alexispasseava de um para outro lado, numa cmara prxima aos aposentos danoiva, enquanto seu gmeo Arthur, abatido sobre uma poltrona,tamborilava nervosamente com os dedos sobre os braos da mesma. Em dadomomento, porm, Alexis saiu, penetrou o recinto do oratrio particular,que pertencera28 sua me, Amelye de Guzman, e sua av, que foraa me que em realidade ele conhecera, Louise de Guzman,e ajoelhou-se diante do altar para orar, desfeito em pranto.

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    CAPITULO II

    ANDREA E SEU OBSESSOR- "Os Espiritos maus pululam em torno da Terra, em virtude dainferioridade moral de seus habitantes. A ao malfazeja que elesdesenvolvem faz parte dos flagelos com que a Humanidade se v a braosneste mundo. A obsesso, como as enfermidades e todas as tribulaes davida, deve ser considerada prova ou expiao e como tal aceita."("O Evangelho segundo o Espiritismo", de Aflan Kardec, cap. XXVIII,"Coletnea de preces espiritas", n SI, 57 edio da FEB.)

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    Entretanto, uma vez iniciado, o baile prosseguiu, estendendo-se ataltas horas da madrugada. Havia certo constrangimento

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    entre os convidados, que se chocaram com o incidenteverificado sada da mesa. Mas a boa educao aconselhava quepermanecessem discretos, no demonstrando impresses desagradveis, ecomo o anfitrio suplicara que se divertissem sem mais preocupaes,todas as vezes que a orquestra apresentava novo nmero de dana o salocintilava sob o encanto dos pares que iam e vinham em graciososmovimentos. Entre a nobreza, danava-se ainda o minueto, no obstante aintromisso de danas mais modernas, e entovia-se que aquela sociedade nada perdera do brilhantismo e da distinoconhecidos nossales anteriores Revoluo; antes dir-se-ia ainda mais nobr e gravedo que o fora no passado- Mas, nem ndrea, nem seu irmo Victor,tampouco seu prometido Alexis e seu primo Arthur compareceram s danas.Retirando-se da mesa acompanhada por seu irmo, a jovem de Guzman, malchegara aos prprios aposentos, tornara-se presa de terrveis explosesobsessoras. Violenta crise adviera, durante a qual acusaes terrveis,exploses de dio, ameaas e queixas dolorosas eram repetidas contra ela

    prpria por uma entidade invisvel, violenta e odiosa, que se revelavacomo personalidade de boa cultura intelectual, mas de inferior educaomoral. E isso era freqente, era comum desde a infncia de Andrea, emMadrid. No podia a menina viver tranqila, no lhe era permitidodesfrutar um nico dia de alegria, pois no momento em que se visse nafruio de uma satisfao advinham tais crises, que a prostravam,depois, dias e dias, enferma e deprimida. Por isso mesmo, Andrea eratriste e enfermia, agitada e nervosa, raramente sorria, apesar de muitobela de formas e feies, e sua instruo no se encontrava altura desua condio social, porquanto o inimigo invisvel no lhe permitiatrguas para o cultivo regular da prpria instruo. Sua me sentia-lhe horror eabandonava-a aos cuidados de criadas e governantas, e seupai demonstrava por ela to manifesta averso que ansiava cas-la paralibertar-se da sua convivncia,

    32Nessa noite de Natal, que seria uma das mais ditosas de toda sua vida, se pudessetornar-se criaturanormal, sua crise fora dasmais fortes. Dir-se-ia contrariado, o seu inimigodominava ento com verdadeira possesso, e dizia, implacvel, atravs dela prpria, aos gritos, em vociferaes odiosas, enquanto ajogava ao cho:- "De forma alguma deix-la-ei unir-se a Alexis... Mat-la-ei antes queisso acontea. So dois criminosos, que merecem castigo... Eu prefeririaArthur, pois ela deve-lhe duas grandes reparaes... mesmo porque eu amoArthur, ele o meu filho querido de sempre... Ai.dela se medesobedecer! Odeio a miservel com todas as minhas foras, pois que duasvezes ela desgraou meu pobre filho, por quem ainda hojerecordando aquele deplorvel passado... Hei de faz-laecer o mesmo que meu filho padeceu por ela, vocs vero, vocs vero!Hei de atorment-la sem trguas, como sem trguas ela nos tematormentado desde aquele fatal dia 20 de outubro de 1572, em que seinsinuou ao meu Lus para destruir-lhe a paz e a vida, quando eu o viato voltado para Deus...Em seguida, calando-se, atirava-a ao cho, como espancando-a;apertava-lhe o pescoo, sufocando-a, fazendo-a espumar com a lngua parafora; rolava-a pelo cho, martirizando-a, enquanto, sem perder aconscincia, ela bradava por socorro e compaixo, chorando e praguejandoinconformada... e se algum a examinasse veria ento que seu rosto, suasmos, seu pescoo estavam arranhados por unhas aguadas, enquanto seu

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    corpo todo mostrava sinais de chicotadas. (1)Ora, Arthur de Guzman d'Evreux, cansado de ouvir asnsias de sua prima, resolveu intervir. Encontrava-se ele numgabinete prximo, velando em companhia do irmo.Era reconhecido por toda a famlia que Andrea era possuda de entidadesinfernais, e seus pais e demais familiares(1) Efeitos fisicos promovidos pelo obsessor.

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    no tinham idia definida sobre o que realmente acontecia mas pelo menoscompreendiam a anormalidade, certos de qu um Esprito diablico aatormentava, tal como aqueles que Evangelho descrevia. Sabia-se tambm,entre a famlia, que Arthur possua o poder de acalmar a jovem nessesmomentosdolorosos, ao passo que Alexis irritava-a ainda mais, o que queleconcedia certa ascendncia sobre a prima. Pedindo pois, permisso aostios, Arthur penetrou o aposento onde a obsidiada se espojava pelo cho emuito naturalmente convidou-a a calar os gritos que proferia, alevantar-se e sentar-se junto dele. Andrea obedeceu. Arthur tomou-lheda mo beijou-a e comeou a falar-lhe docemente, ao passo que essadebulhava em pranto. Mas, Victor penetrara tambm o aposento e assistira cena, enquanto Alexis, aflito e sofredor, permanecia onde se encontrava.

    O doutor em doutrinas secretas, porm, conhecia o fenmeno que severificava com a irm e, pedindo, por sua vez, vnia a seus pais, resolveutentar alvio para a infeliz sofredora e paz para a famlia, com osconhecimentos que possua. Fez com que Arthur se levantasse de junto deAndrea e a esta fez sentar-se no centro do aposento, na mesma poltrona, erogou aos presentes, que eram seus pais e Arthur que a Deus orassemmentalmente e silenciassem. Orou ele prprio, em splicas ao socorro divino,aps, sobre a cabea de Andrea, as mos espalmadas, como transmitindo-lheforas psquicas especiais para a verificao do transe necessrio dechofre, sentando-se diante dela, interrogou to naturalmente como se sedirigisse a uma entidade humana, mas na verdade, dirigindo-se ao obsessor:- Quem s, e por que procedes to desumanamente com minha irm?A entidade invisvel, que se servia das faculdades transmissoras de Andrea,empertigou-se na poltrona, como sisentasse mais comodamente atravs dela, e respondeu:

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    - Com que direito fazes semelhante pergunta? Por que pretendes devassaro mistrio que nos envolve, a mim e aela?...

    - Com o direito que tenho de amar a Deus e ao meu prximo e de praticara beneficncia, e porque, para mim, no mistrio a vida que vives e oque se passa entre ti e minha irm...E, com esse incio, longo dilogo seguiu-se.Victor sabia que no era normal nem vantajoso conversar com aquelaentidade perseguidora por intermdio de sua irm, a quem a mesmaatormentava, pois Andrea no era veculo recomendvel, visto tratar-sede uma enferma afeita s irradiaes vibratrias inferiores do seuperseguidor (1). Sabia que o assdio constante de um perseguidor daquelaordem obliteraria as funes psquicas do intermedirio humano (2) eque, em tal estado, pouco se poder esperar dele para um intercmbionecessrio sua cura. Mas, em vista da urgncia da situao, edesejando Inteirar-se dos acontecimentos que enredavam a irm, tentava ofenmeno esperando xitos da empresa, pois sabia tambm ser possvelconversar com uma entidade perseguidora atravs do perseguido, embora,dessa forma, no seja possvel cur-la ou erradicar o maldefinitivamente.Ouvindo-o, a entidade, vigorosamente dominando a mente de Andreaporque freqentemente o obsessor chega a incorporar-se em sua vtimaouvindo-o, respondeu o Esprito malfico.

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    - Bem... Sou um velho conhecido teu, Sempre te admirei e te respeitei,pois s bom e virtuoso, e at quero-te bem,porque o mereces. Por isso, respondo-te e retraio-me em tua presena.

    (1) O obsessor no deve ser doutrinado atravs do obsidiado e sim deoutro mdium, cujas faculdades psiqucas ofereammaiores garantias de bons xitos.(2) Mdium.

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    Mas, tua irm eu odeio e a ela farei todo o mal que puder...- Trata-se de um dio gratuito ou de uma vingana? Sabes que no existedio gratuito. Cheguei mesmoa amar essa menina, em outro tempo... Trata-se de uma vingana, pois nome conformo em aceitar passivamente a maldade dela.- E a prtica desse crime, a vingana, dar-te- felicidade? Perseguindo,assim acobertado pelo estado invisvel, a um ser indefeso, no vs quesuperas a sua prpria maldade, da qual te queixas? Agradeo-te, porm, obem que me queres, aceito a tua boa-vontade a meu respeito e desejoconserv-la. Queres ser meu amigo?- Sou teu amigo h sculos, embora no momento no possas te lembrar de

    mim... Chamei-me Monsenhor de B... no sculo XVI e fui alta personagemreligiosa no reinado de Carlos IX e Catarina de Mdicis. Chamei-meArnold Numiersno sculo XVII e novamente fui teu amigo... Mas, ela.. Ela nomereceu a ti nem a mim... Traidora sempre, tem levadomeu filho ao desespero com seu corao de ferro, que jamais se comovecom o amor sagrado que ele lhe consagra. Tudo tenho tentado paradestruir no corao de meu filho esse malfadado sentimento que o dominoupara sempre. Mas, ele resiste a tudo porque a quer desde os tempos deRoma... E mais fcil ser destruir cus e Terra do que arrancar do seucorao a imagem desse amor- E quem o teu filho, meu amigo, posso saber?- Chamou-se Lus de Narbonne no sculo XVI, foi religioso e soldado,chamado o "Capito da F" por seus admiradores, foi prncipe e conde,mas morreu numa priso secreta, desesperado de amor e de dor, ali

    atirado por ela e aRainha Catarina, sempre ela... Chamou-se Henri Numiers no sculo XVIIe foi um valente cavaleiro, destemido e generoso, mas suicidou-se,atirando-se de uma pedreira, aniquilado por nova traio. Bem vs querazes me sobram para detest-la

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    e vingar a dignidade ofendida de meu pobre filho. Agora chama-se Arthurde Guzman d'Evreux e a est junto dela. Sei que ele muito sofrer, poisj sofre... Que ser dele? Ele ama-a ainda e sempre, pois no vs? Porque querem dar a ela o outro, em matrimnio? Meu filho, ento, no temdireitos a realizar o que o faria feliz? Talvez que, se eu o vissefeliz, pudesse tudo perdoar e esquecer... Mas, afiano-te que ocasamento que projetam no se realizar: eu o impedirei.Franoise Marie de Guzman, a me de Andrea, ps-se a tremer e a chorar,horrorizada com o que ouvia do "demnio" que se apossara de sua filha.Arthur e seu tio, porm, atriburam a conversao de Andrea s fantasiasda sua mente debilitada pela enfermidade, pois a jovem, segundo eles,era dada a leituras fortes, histrica e epilptica. Somente Victorcompreendia integralmente a verberao da entidade.- D-me impetos de esbofete-la, a fim de v-la cessar esse palavreadoincompreensvel murmurou o pai, enquanto Victor respondia ao serespiritual comunicante:- Lamento tudo isso, meu amigo. Mas bem sabes queno me posso lembrar dos acontecimentos a que te referes.Acredito, porm, no que me dizes e que Andrea seja culpada.

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    Em nome do Altssimo, porm, desejo fazer contigo um pacto.Queres ouvir-me?- A ti, nobre Carlos Filipe de La-Chapelle, nada podereinegar... Desejo mesmo servir-te, desagravar-te, pois meufilho pecou contra ti e, repito, fui e sou teu amigo...- Chamas-me por um nome que no o que trago presentemente. Que significaisso?- Era o nome que trazias no sculo em que te conheci e em que meu filhoerrou contra ti.. Mas, sei que o perdoaste e sinto-me tranqilo poresse lado. Fala o que desejas.Ento, Victor de Guzman props o seguinte ao obsessorde sua irm:- Se me conheces, meu amigo, sabes que tambm euamo profundamente a minha irm, essa Andrea a quem odeias,da mesma forma que amas a teu filho. Assim, pois, como

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    desejas defender a felicidade de teu filho contra Andrea, eu desejodefend-la contra o teu dio, no, porm, vingando-me de ti oumolestando-te, mas preparando-a para que saiba querer teu filho como elemerece e a lei de Deus permitir. Dizes que teu filho ama Andrea. Pensas

    que ele ser feliz vendo-a desgraada? Crs que, no dia em que ele secapacitar de que s tu que a fazes sofrer, poder ele amar-te erespeitar-te? Em nome de Deus Altssimo, proponho-te trguas nesselitgio em que te empenhas. Em nome de Deus Altissimo, rogo-te, ArnoldNumiers, que me concedas a caridade de suspender teus ataques contraminha irm por algum tempo, ao menos. D-me possibilidade de reeduc-lae torn-la merecedora do amor de teu filho e do teu amor.. Se elaerrou contra vs ambos, foi porque era ignorante, no conhecia Deus...- No! Ela errou porque era m, era prfida, era vil, era ingrata,possua todos os defeitos. No creio que consigas dom-la ou reeduc-la.Ela precisa sofrer para aprender a respeitar ao menos aqueles que a tmamado e servido. Somente a fora do destino ter ao sobre ela. Eu souuma poro dessa fora...- Deixa-me experimentar reeduc-la, faz-la arrepender-se, aprender arenunciar s coisas deste mundo e s viver

    para o Bem...- Pedes-me, ento, que espere sculos para ver se devo ou no castig-laconforme pretendo? O que desejas fazer obra confiada ao tempo, aos sculos.- Ser preciso ento ajudar os sculos e eu os ajudarei, meu amigo.Peo-te trguas ao menos por dois anos. Se nesse espao de tempo eu noconseguir reeduc-la, libertar-te-ei do compromisso para comigo. Agirs,ento, responsavelmente, diante de Deus, a quem prestars contas do quefizeres. No ignoro que minha irm encontra-se seriamente comprometidacom a lei de Deus, e que, por isso mesmo, somente dela prpria dependersua cura. Por isso, proponho-te

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    o que ouves. Se assim for, isto , se vires que Andrea se transformapara Deus e o prximo, quem sabe se tu mesmo no voltars a quer-lacomo outrora e a felicidade conseguir raiar para todos vs? Para ti eteu filho inclusive? Aceitas?O Esprito maligno meditou durante alguns instantes, depois do querespondeu:- Sou teu amigo. Sempre foste amigo dos teus semelhantes, amigo de meufilho, e meu amigo. Oh, lembro-me ainda de como eras bom para todos ns,em nossa aldeia da Flandres, e como consolaste o meu Henri quando ela sefoi com outro homem, abandonando-o... A ti nada poderei recusar. Aceitoa tua proposta, embora no creia na converso dela ao Bem, como desejas.Ela m, prfida, traidora. Mas, concedo-te os dois anos de trguas.

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    Quero ser sincero em avisar-te, porm, que me conservarei a distncia,observando os acontecimentos. primeira falta em que Andrea incorrer,servindo-se da prpria vontade, eu voltarei a agir em torno dela.- Obrigado! E a Deus prometo no ser feliz enquanto no vir minha irmreabilitada das ofensas a teu filho, ou lei de Deus, ainda que talcoisa me custe sculos de trabalho e sacrifcios!Franoise continuava chorando.O Senhor de Guzman d'Albret e seu sobrinho Arthur contemplavam a cenaatenta e gravemente, sem darem crdito ao que presenciavam. No primeiroandar, a orquestra continuava animando o baile. Andrea respirouprofundamente. Levantou-se da poltrona, estremeceu com violncia e caiuestatelada sobre os tapetes, com um grito forte. (1)(1) Modo pelo qual os Espiritos Inferiores deixam os mdiuns, e quandoos mesmos Instrumentos no se acham bastanteeducados na direo da sua faculdade.

    Victor tomou-lhe da mo e disse apenas, docemente:- Levanta-te, Andrea, em nome de Deus Altssimo!E naquela noite a bela jovem de Guzman no compareceu ao baile, masdormiu tranqilamente.40

    CAPITULO III

    VICTOR- "Vinde a mim, todos vs que estais aflitos e sobrecarregados, que euvos aliviarei. Tomai sobre vs o meu jugo e aprendei comigo, que soubrando e humilde de corao e achareis repouso para vossas almas, pois suave o meu jugo e leve o meu fardo."

    (Jesus Mateus, XI:28 a 30.)

    tempo de procurarmos conhecer mais de perto as personagens da nossapequena exposio.Andrea de Guzman at ento fora uma personagem sombria e apagada no seiode sua famlia. Sempre esquiva e solitria, repelida pelos pais, quevisivelmente a depreciavam, considerada problema desagradvel por estese as governantas que a iam criando e educando mais ou menos bem,

    41ela pouco falava e jamais se aliava a folguedos ou a simples recreioscom amigos e parentes. Seu amparo, seu conforto moral eram os doisprimos, Arthur e Alexis, que muito a queriam desde a infncia e a cujaafeio retribuia com verdadeiro apego. Enquanto fora viva sua av,Louise de Guzman, a menina tivera a seu lado um corao desvelado, que aprotegera. Mas Louise morrera quando Andrea era ainda uma menina, demodo que s lhe ficaram, mesmo, os dois jovens primos como esteio econsolo em suas amarguras. Amava ternamente o irmo, de quem ouvia falarcom respeito e admirao, parecendo que de outras etapas reencarnatriasvinha o grande sentimento que lhe consagrava. Mas, pouco o conhecia, porassim dizer, pois Victor fora em misso de estudos para o Oriente e sao findar o drama da Revoluo pudera privar da sua intimidade erefugiar-se na grande ternura com que ele sabia trat-la.No era propriamente culta, mas parecia uma pessoa ansiosa por serevelar e progredir, e sentia-se tolhida pela opresso domstica e pelosempecilhos conseqentes da anormalidade que sofria. As circunstncias desua vida, atormentada por um obsessor, haviam dificultado sobremaneira asua instruo. No obstante, alm de algumas letras sabia msicaaplicadamente e cantava e tocava piano com acerto, o que representavagrande refrigrio para o seu estranho mal. E tinha o hbito de passear ass pelo parque de sua residncia durante a noite e at s primeirashoras da madrugada, procurando os recantos mais sombrios e desoladospara se refugiar, em cujos bancos se sentava, ou mesmo sobre a relva doscanteiros, pondo-se a chorar ou a falar com seres imaginrios, ou,talvez, com entidades adversrias que a assediassem, ou com a prpria

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    conscincia.Muitas vezes, seus primos Arthur e lexis faziam-lhe companhia em taispasseios. Ento, caminhavam os trs enlaados um no outro, mas emsilncio, e, se falavam, tratavam de assuntos banais, aparentementeindiferentes ao tumulto

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    sentimental que lhes inquietava o corao. Mas, comumente, Andrea saasozinha, s ocultas, depois que a casa silenciava, e demorava-se noparque at pela madrugada, sendo, por vezes, encontrada dormindo emalgum banco de mrmore pelo jardineiro que, pela manh, iniciava tarefasentre os canteiros. Vivia, por isso mesmo, enfermia, debilitada,atacada de constantes resfriados e tosses impertinentes. Os paisrepreendiam-na, os primos temiam por ela e procuravam medic-la, e paraque isso no se repetisse fora preciso esconder chaves noite eutilizar ferrolhos resistentes. Mas, pouco tempo depois, ei-la de possede chaves que lhe permitiam tais aventuras.Ora, Andrea de Guznian era um Esprito que errara desastrosamente emsuas duas anteriores encarnaes terrenas e agora encontrava-se emtrabalhos de expiao, resgatando no sofrimento as anteriores faltas derespeito a Deus e desamor ao prximo. Ela fora nada menos do que a belaRuthCarolin de La-Chapeile (1), que desgraara Lus de Narbonne e

    vilipendiara o Evangelho com a traio aos seus princpios, praticandovingana cruel contra uma ofensa em vez de conceder o perdo aoadversrio. Fora, depois, em reencarnao imediata, Berthe deStainesbourg, na Flandres Ocidental, pelo sculo XVII, e reincidira nosmesmos conflitos, agravando-os sobremaneira com novas traies edesacato familha, aos amigos, sociedade, ao prximo, a Deus. Eranecessrio, pois, agora, aceitar as conseqncias dos prpriosdesatinos. A misericrdia do Alto, porm, que no deseja a desgraa dopecador, mas sim a sua converso ao Bem, renovando os ensejos para a suarecuperao moral-espiritual, dera-lhe como amparo nas provaesexpiatrias do momento a presena de trs coraes que muito a haviamamado no passado reencarnatrio: Victor, o irmo bem-amado do sculoXVI; Arthur, o Lus de Narbonne, que errara, que sofrera,(1) Personagem central da obra "Nas Voragens do Pecado", do mesmo Autorespiritual (ed. da FEB, 1960).

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    mas cujo amor por ela resistira a todas as peripcias experimentadas;Alexis, o mesmo generoso Esprito que fora o Prncipe Frederico de G...,que a amara ternamente na mesma poca e a salvara de um fim sinistro naposse de inimigos implacveis. Ela poderia, portanto, vencer ostestemunhos necessrios sob o amparo de to fiis coraes, bastandopara isso elevar-se para Deus atravs do cumprimento de sagrados einadiveis deveres.Por sua vez, os gmeos Arthur e Alexis, se eram umdos pelo nascimento,na realidade eram verdadeiramente estranhos moral e espiritualmente.Ambos possuidores de bom carter, cavalheiros de escol cuja honradez deprincipios demonstravam j aos dezoito anos de idade, revelavam-sepersonalidades respeitveis, dignas do apreo geral. Alexis, porm,era a serenidade personificada, cujos sentimentos religiosos inatos j ohaviam levado a uma temporada de estudos num convento de Madrid, poisaspirava, em verdade, ao ingresso definitivo na vida religiosa. Mas afamlia, contrria a essa vocao, desviou-o da idia religiosa,insinuando-lhe o recurso de ser til ptria atravs da diplomacia e ocasamento com sua prima Andrea, a quem ele docemente se afeioara desdea infncia. Preparava-se, pois, para a carreira diplomtica, pretendiatransferir-se para Paris a fim de iniciar a carreira escolhida, eraestudioso e culto, fino de maneiras, revelando galhardamente asqualidades de aristocrata, jamais esquecendo, no entanto, os deverespara com Deus e o respeito aos principios do Evangelho cristo. Era belode formas, louro e esguio, pensativo e talvez melanclico.

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    Arthur, igualmente admirvel, igualmente afeito a principios nobres,era, contudo, avesso religio, um descrente em Deus, um quasematerialista aos dezoito anos de idade. Apaixonado pelo militarismo, jcursara escolas do gnero na Espanha e agora preparava-se paradirigir-se a Toulon (1),(1) Toulon, cidade francesa, maritima, onde existem ciebres escolasmilitares.44

    onde seguiria a carreira das armas. Conhecia bem o hipismo e a esgrima,era valente e destemido e tudo indicava que seria brilhante o seu futuronas armas. Escolhera a cavalaria como arma, era admirador das paradasmilitares e ansiava pelo dia em que pudesse partir para a Escota deGuerra, a fim de tratar do prprio futuro. Uma particularidade, porm,preocupava a famlia a seu respeito, e a ele prprio: Arthur nosuportava a sensao das alturas. Uma nuvem de sangue explicava eleturbava-lhe os sentidos se porventura chegasse ao balco de um terrao eolhasse para baixo. Ele tonteava, cambaleava e caia, privado de foraspara dominar-se. Seguia-se uma crise de convulses e contoresimpressionantes, durante as quais seus olhos se dilatavam de horror, aboca se escancarava, como se gritos imaginrios a dilatassem, e seusbraos e suas mos se agitavam, aflitos, procurando qualquer corpo ondese agarrasse, a fim de Socorrer-se.

    que Arthur, o Lus de Narbonne do sculo XVI, reencarnara como HenriNumiers no sculo seguinte, num pequeno burgo da flandres Ocidental, efora suicida, atirando-se do alto de uma pedreira de granito edando-se, assim, morte violentissima e tenebrosa, cujas repercussesmentais-vibratrias o seu corpo espiritual (perispirito) carrearampara a existncia seguinte os espasmos da agonia sofrida anteriormente.Naqueles momentos, portanto, explodiam dos refolhos da conscincia deArthur os choques vibratrios que seu ser espiritual sofrera, e elerevivia o instante supremo da sua queda na passada existncia fsica.Esse traumatismo hediondo somente depois de longo tempo desaparecer daindividualidade espiritual do suicida.Consultados desde o principio da estranha enfermidade, os mdicos deMadrid e de Paris declararam que se tratava de choques nervosos pelasensao da altura, o que era verdade, mas que tais impressesdesapareceriam com a idade e, principalmente, com a intensidade da vida

    militar, que o aguardava. Que apressassem o ingresso do jovem na vida45

    militar e a cura seria certa. Mas, em verdade, Arthur sofria taisconvulses desde a primeira infncia, mesmo sem qualquer sensaoprovocada por alturas. Estas, porm, invariavelmente provocavam ofenmeno, ainda que se sentisse bem. Era considerado epilptico pelafamlia, e essa fora a razo da escolha de Alexis para o matrimnio comAndrea, pois que no conviria aos de Guzman uma descendncia assinaladapor um mal incurvel. Mas, enganavam-se todos, porque o mal, conquantoincurvel, no era fsico e sim psiquico e, portanto, no transmissvelpela gerao.Os dois jovens irmos pelo sangue no eram verdadeiramente amigos.Recproco sentimento de desconfiana e repulsa impedia-os de se umremcom o amor fraterno. Eles no se compreendiam, censuravam-se por tudo epor nada, e jamais se confidenciavam, abrindo os coraes em presena umdo outro. A hostilidade mais pronunciada, porm, provinha de Arthur, queera provocador e se aprazia em atingir o irmo com ofensas sempre quepossvel. Alexis como que o temia e jamais o provocava, limitando-se adefender-se quando as admoestaes ultrapassavam os limites dasconvenincias. Freqentemente, Andrea reconciliava-os, sem contudoconseguir extinguir a animosidade que parecia infelicitar a vida dosgmeos. Ambos amavam a prima e sentiam cimes dela, esforando-se semprepor ultrapassar as gentilezas do outro para com ela.Antes do anncio oficial do noivado de Alexis, porm, nem ele nem Arthur

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    haviam percebido que o sentimento que animava seus coraes era o amorpassional, esse sentimento que no raro altera e at infelicita aexistncia de uma criatura, quando o equilbrio da razo no o orienta.Depois daquela noite de Natal, porm, em que o Senhor de Guzman davacomo oficializado o noivado de sua filha com Alexis, este e seu irmocompreenderam que o que sentiam por Andrea era o verdadeiro amor dohomem pela mulher e se transfiguraram. Alexis passou a examinar melhoros encantos femininos de sua prima e seus pensamentos se povoaram

    46

    de sonhos, misturando-se s aspiraes religiosas. Arthur passou a terinsnias e interrogava a si mesmo, a cada dia:- Por que escolheram Alexis para casar-se com Andrea e no a mim? Comodeliberaram esse noivado sem ouvirem a qual de ns dois ela ama? Tenhorazes para supor que a mim que ela ama... E quando advm suas crisesde histeria no a mim que ela acata, e no se aquieta, presa minhamo? Afirmam nossos parentes que dentre ns, os gmeos, sou eu o maisvelho, pois nasci em ltimo lugar, o que indicaria que fui gerado pormeus pais primeiro do que o meu gmeo. Se assim , porque me preteriramno casamento, se sou mais velho do que o meu irmo? Porventura as crisesque costumo sofrer impedem-me de constituir famlia? No poderei, ento,casar-me?

    E perdia-se em interrogaes e dedues ingratas que,por si mesmas, constituiam uma tortura moral indescritvel.Entrementes, comprometendo-se com o obsessor da irm a tentar, no prazoexguo de dois anos, a reeducao moral e mental da mesma, a fim dehabilit-la a uma defesa contra as trevas espirituais que a perseguiam,Victor de Guzman ps mos obra logo nos primeiros dias aps a noite deNatal, durante a qual presenciara Andrea debater-se contra o seu inimigoinvisvel. Como proslito das doutrinas espiritualistas e mdico queera, principiou por escolher alimentao conveniente enferma:hortalias, legumes, frutas, leite, ovos, ch. Em seguida, ginsticasrespiratrias e demais exerccios apropriados elasticidade e bem-estarfisiolgico, como a circulao do sangue, o funcionamento renal,intestinal, etc. Exerccios de higiene mental: educao do pensamento,represso aos desejos menos discretos, renovao dos hbitos dirios, seestes no condissessem com a harmonia divina, projeo das idias no

    sentido do Bem e do Sublime, procura do Ser Divino e da sua essnciadentro de si mesma, e leituras moralizadoras e recreativas que ainstrussem para a vida prtica, e o estudo sobre a Natureza, para queela se sentisse agradavelmente umda criao divina que

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    cerca o homem no belo planeta em que vive e no continuasse a profan-locom a seqncia dos prprios erros, que necessariamente quebrariam aharmoniosa teia que poderia ser a sua vida. Tratava-se de um cursorpido de introduo Doutrina Espiritualista ento aceita pornumerosos filsofos orientais e mesmo ocidentais, tentando salvar a irmde si mesma e, logicamente, da inferioridade moral que lhe escancaravaas portas para a ao obsessora.No era, porm, de boa mente que Andrea se submetiaa esses rigorosos mtodos, pois a prpria msica e a anlisee a declamao dos grandes poemas, ento muito em voga,eram incluidas na terapia a que o mdico ocultista desejavasubmet-la.Mas, Victor era tambm cristo, alm de ser adepto das doutrinasorientalistas. noite, convidava seus familiares, que o respeitavam comuma quase obedincia, convidava os visitantes ou os hspedes do dia etambm a criadagem, e a todos reunia a ele e a Andrea no salo nobre dopalcio. Seus pais, orgulhosos, preconceituosos, zelosos de uma castailustre, que vinha do sculo XIII, sentiam-se humilhados vendo a famliaassim umda a viles, como consideravam os serviais. Mas,desencorajados de protestar, curvavam-se s idias do filho, certos de

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    que a Revoluo transformara visivelmente a sociedade francesa.Uma vez todos reunidos, Victor principiava por delicadamente exigir quea irm executasse ao piano uma ou mais peas musicais de Mozart, de Bachou outro autor de renome na poca. Fazia com que todos se sentassemconvenientemente, em crculo, para ouvi-lo, aps terem ouvido oconcerto. Postava-se, de p, no centro do salo, como em anfiteatro, e,porque fosse orador de grande mrito didtico, entrava a expor aDoutrina Crist e a personalidade admirvel de Jesus-Cristo.Falava-lhes dos apstolos do Senhor, de suas trentendasresponsabilidades diante de Deus e dos homens, de suas lutase sofrimentos pela difuso da Boa-Nova do CrIsto, de seus

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    deveres e sua devoo aos princpios do Evangelho. Falava--lhes dos mrtires que, por amor nova f ensinada pelo Filho de Deus,tudo suportaram de boa mente e cheios de esperanas, recordando, paraexemplo aos ouvintes, o grande amor e a grande esperana que todos elestiveram na vitria do reino de Deus, na proteo do Cristo e naressurreio da alma e sua imortalidade aps a morte do corpo. Toda aepopia sublime do Cristianismo desenrolava-se, ento, em presena dosouvintes pela palavra ardente de Victor, que viajara pela Palestina e sesentia como que impregnado daquelas cenas vividas pelos seguidores de

    Jesus. E explicava--lhes ainda o cdigo de leis morais existente em o Sermo da Montanha,nas prdicas do Senhor beira dos lagos ou a ss com seus amigos ediscipulos. Dava-lhes o Evangelho redentor raciocinado, meditado,detalhado. E at s primeiras horas da madrugada entreLinha-os com a suapalavra bela e sbia. /De outras vezes, Victor apresentava como temas para suas belas preleeso raciocnio sobre a existncia da alma e seus poderes, suaimortalidade, sua marcha para o progresso e o Bem at Deus, atravs dassucessivas migraes, ou reencarnaes; a comunicao com a alma dosmortos, o poder da orao, enfim, mil ensinamentos redentores de que ohomem no pode prescindir para a sua evoluo geral e conquista da pazdo corao. Visitava os pobres e os enfermos das aldeias prximas,tratava gratuitamente de suas enfermidades e minorava suas aflies;ministrava-lhes os conhecimentos evanglicos, lecionava alfabetizao s

    crianas das cercanias, era, por assim dizer, um apstolo do Bem, umservidor do Cristo, tal como o fora em suas duas anteriores existncias,quando devotadamente servira a Deus, amando o prximo. E, por toda parteaonde ia, fazia Andrea acompanh-lo, ensinando-lhe o caminho a seguir, eassociava-a a todos os movimentos tentados em favor do prximo, ao passoque Alexis o seguia voluntariamente, comovido e encantado,

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    considerando-o mestre, e Arthur se mantinha pouco menos que indiferente.Oh! Ele era bem a reencarnao daquele generoso CarlosFilipe de La-Chapelle, que dera a vida por amor ao Evangelho no sculoXVI. (1)Infelizmente, porm, se muitos daqueles servidores e visitantespresentes e Alexis, encantados, sorviam com avidez as palavrasiluminadas do ilustre orador e seus exemplos de cristo, assinalando-osna mente e tambm no corao, para tristeza do prprio Victor Andrea nos deixava de se interessar pelas palavras do irmo como at adormeciaprofundamente, enquanto ele discursava. Mas, o moo orientalista eraperseverante e dedicado e novamente, em dias e horas aprazados, voltava sua prdica de instruo moral famlia e aos amigos. Por sua vez, oConde e a Condessa de Guzman, se consideravam belas as dissertaes dofilho orgulhando-se do seu saber, longe estavam de compreend-lo eassimilar a grande doutrina de redeno que o Cu lhes enviara atravsdele. Continuavam acastekdos no seu grande orgulho, enquanto o coraose esquivava aceitao do que ouviam.Um pensador, um psiclogo, um espiritualista reencarnacionista

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    reconheceria em Victor a ressurreio, na carne, de um antigo instrutorde coletividades, um mentor de almas em aprendizado na Terra, um pastorda Reforma, um sacerdote da Igreja de Roma.- Sim, ele fora tudo isso em antigas etapas da sua vida de Esprito emtrnsito entre o mundo astral e a Terra, e agora era o filsofo de umagrande Doutrina, ento ainda no devidamente difundida entre os homens:a Doutrina da Imortalidade, revelada do Cu Terra pelas almas boas,mensageiras de Deus.(1) Aluso a episdios descritos no romance "Nas Voragens do Pecado", domesmo Autor espiritual.50

    CAPITULO IV

    O SUICIDA REENCARNADO

    - "Quanto aos suicidas, a perturbao em que a morte os imerge profunda, penosa, dolorosa. A angstia os agrilhoa e segue at a suaencarnao ulterior, O seu gesto criminoso causa ao corpo fludico umabalo violento e prolongado que se transmitir ao organismo carnal pelorenascimento. maior parte deles volta enfermo Terra. Estando nosuicida em toda a sua fora a vida, o ato brutal que a despedaaproduzir longas repercusses no seu estado vibratrio e determinar

    afeces nervosas nas suas futuras vidas terrestres,"

    "o Problema do Ser, do Destinoe da Dor", de Lon Denis, l' Parte,cap. X, " Morte", 8 edio da FEB.)51

    O Natal j ia longe e agora era apenas uma recordao a mais, agradvele muito grata, no corao daqueles que, nesse dia sugestivo, se haviamreunido em famlia depois de quinze anos de incertezas e angstias. Tudocorria normalmente em Saint-Omer, a bela residncia dos de Guznland'Albret. Andrea nunca mais sofrera as terrveis crises que amortificavam. Seu noivado com Alexia transcorria docemente, por entre

    juras de amor e sonhos de felicidade. Suas relaes de amizade comArthur decorriam no menos bem, e um estranho que de longe observasse ostrs jovens no compreenderia qual dos dois mancebos seria o venturosoprometido de Andrea, pois ela parecia abranger a ambos nun s raio doseu afeto. Por sua vez, ela se alindara visivelmente. Tornara-se maisforte, mais viva, mais mulher, para gudio do irmo, que a viaressurgir fisicamente das antigas indisposies que a atormentavam. Se, porm,eram notrios o progressos fisiolgicos da jovem prometida, os moraiseran bem menores, quase nulos, mesmo.Andrea aceitava os importantes ensinamentos do irm como aceitaria aslies de um curso escolar qualquer, po dever e condescendncia para coma necessidade da circunstncia que vivia, sem calor, sem f, sem entusiasmo. Ashoras dasprelees, para ela, eram enfadonhas, momentos fatigantes, que nem asatisfaziam nem a emocionavam. No raro queixava-se mesmo da falta dedistraes, da escassez de divertimentos em Saint-Omer e em Vannes.Confessava ao irmo e aos pais, agastada, no sem justas razes, que desjaria viverum pouco no mundo, pois ainda no o fizera, econhecer grandescidades, assistir a bailes, a teatros, visitar outras terras e adotaroutros costumes que a aliviassem da eterna monotonia da vida que vivia. Eela estava, certamente com a razo. A distrao uma higiene mental etraz bene fcios, quando bem escolhida e equilibrada. As almas frges no sebastam a si mesmas e necessitam do estmulo social para se equilibraremnum termo de vida menos solitrio penoso. Mas, a Frana acabava de sairdede um amontoado

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    dramas e os franceses, aristocratas ou no, cuidavam de reequilibrar avida e as prprias finanas arruinadas pela Revoluo, atentos sualavoura e rendimentos antes de escolherem o gnero de distraes maisconvenientes, numa sociedade que se erguia entre desconfianas e noisenta de temores. Ningum, pois, nem mesmo Victor, cuidou de favorecer impressionvel menina o refrigrio de algumas semanas de distraes emlocais diferentes do seu marasmo cotidiano, afastando-a das apreensesque a assediavam. De outro modo, os Senhores de Guzman tendiam para ognero de vida patriarcal e no abriam mo dos hbitos conservadorespara satisfazerem a filha. Por sua vez, Victor acreditava que a vidamundana seria funesta ao restabelecimento psquico de sua irm, a qual,para libertar-se do obsessor que a espreitava, deveria antes voltar-separa Deus, renovar a mente e o corao para um sentido bom, escudar-sena f e no conhecimento da Cincia Espiritual, a fim de se impor aosadversrios e venc-los pelo amor e a prtica do Bem, e no seria,certamente, por entre festas e bailes, teatros e galanteios que elapoderia adquirir to significativos valores morais e espirituais.A vida, pois, decorria normalmente no palcio de SaintOmer Alexisd'Evreux preparava-se para buscar Paris, pois os primeiros deveres dadiplomacia o chamavam. Arthur arrumava as malas para dirigir-se aToulon. Victor aplicava-se no labor da Medicina, no tratamento da irm e

    da educao moral dos prprios familiares, dos serviais de sua casa edos colonos de seu pai e da vizinhana. Era um professor de letras e ummestre de moraL Quanto Condessa Franoise Marie e suas serviais,punham mos nos preparativos do enxoval de Andrea. A me tinha pressa emcasar a filha que tanto a importunava.Essa era a situao no palcio de Saint-Omer, quandoum fato decisivo para a famlia teve lugar.Arthur d'Evreux, no obstante suas estranhas crises nervosas, que muitosda prpria famlia sussurravam tratar-se

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    de ataques epilpticos, insistia em querer tentar a carreira militar.Pleno de entusiasmo, sonhava ser herdeiro da gloriosa tradio militarda famlia, que tantos soldados dera Ptria, servir o Imperador, obter

    a patente de Capito, possuir a sua companhia de cavaleiros,exercit-los, disciplin-los a seu modo, para que se pudesse orgulhardeles frente de todo o Exrcito da Frana. Para isso, pensava e dizia:- Preciso exercitar-me para vencer essa morbidez que me faz desfalecerquando me arrojo a alturas ou me emociono. Se tal fraqueza persistir,como poderei enfrentar as provas que me esperam em Toulon? Serei,porventura, invlido?E prosseguia em exerccios, ginsticas, corridas individuais ou acavalo, esgrima, tiro ao alvo e at saltos. Para isso, contrataramestres vindos de Paris, antigos militares cheios de glrias eexperincias, os quais, a peso de bons salrios e hospedagem,forneciam-lhe instrues para as provas que dele exigiriam. Mas,malgrado tanto entusiasmo, esses exerccios freqentemente o prostravamcom terrveis convulses e ataques nervosos, que o levavam ao leitodurante dois ou mais dias.O carter de Arthur era bem o carter do oficial militar, de umcomandante de tropas. Mas, era em vo que se esforava: no possua, emverdade, possibilidade fsica para a vida militar.No obstante, desde o evento do noivado da prima com o seu gmeo, Arthurparecia no ser o mesmo homem. Retraa-se de todos, prolongava osexerccios a que se dedicava, durante mais horas do que devia, sabendoembora que as convulses seriam o arremate do excesso, ou postava-sesobre os penedos da beira-mar, contemplando as guas que se esboroavamde encontro s pedras. Mostrava-se triste e pensativo, mais do que nuncaevitava conversaes com o irmo e torturava a mente com a deprimenteinterrogao:- Por que me negaram Andrea, sabendo que eu a amo tanto? Porventura

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    rejeitam-me devido s crises que sofro?54Mas, se no for um militar, poderei ser um castelo; possuo fortunabastante para isso... Que importncia tm essas convulses? PorventuraAndrea no as sofre tambm? E Alexis am-la- realmente? E ela... amarAlexis? Pois no a mim, ento, que Andrea ama? Quantas vezes ela me hconfessado o seu amor e quantas vezes tem aceitado os meus beijos,acolhendo os meus protestos?...Tais pensamentos enervavam-no, deprimiam-no, afastavam-no cada dia maisdo irmo, e ele se irritava com a impossibilidade de resolver a situaocom a rapidez que desejaria. E rematava as prprias conjeturas com estaesperana, que tinha o dom de acalm-lo:- Bem... Tenho trs anos de espera para agir... Alexis seguir adiplomacia e estar ausente de casa, constantemente... Apertarei ocerco em torno de Andrea... Farei o meu curso de cavalaria, vencerei, eAndrea ser minha, hei de consegui-lo, ainda que me seja necessrioromper com toda a famlia e rapt-la.Entrementes, Victor, observando as atitudes da irmpara com os primos, preocupou-se desagradavelmente e interrogou-a,forando-a a uma confisso decisiva:- Afinal, minha querida Andrea, qual dos dois amas:Alexis, teu prometido diante de toda a famlia, ou Arthur, que pareceadorar-te e a quem favoreces com um carinho inequvoco? Que significa o

    que observo em torno de ti e de Arthur?A jovem relutou, esquivando-se s instncias do irmo.Mas este insistiu e ela declarou, em lgrimas:- Sou muito infeliz, meu caro Victor! No somente a perseguio do meuinimigo invisvel tortura os meus dias, mas tambm as indecises do meuprprio corao. Amo Alexis profundamente, e sei que no poderei viversem ele, mas amo tambm Arthur, embora, s vezes, sinta um certo temordele e uma instintiva repulsa, logo dominada pelo corao. Em ambos que tenho encontrado amparo e consolo para o meu isolamento... Entre ume outro, eu no poderia

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    escolher qual seria o meu marido; foi preciso que escolhessem para mim.E por isso aceito Alexis. Mas como? ... como viver sem Arthur, uma vez

    casando-me com Alexjs? Sinto por meu noivo um sentimento capaz de todosos sacrifcios, uma admirao infinita, mas tambm sinto por Arthur umamor piedoso, uma atrao irresistvel, que no poder ser esquecida...Perguntas o que significa tudo isso? Mas, eu no sei, Victor, apenasreconheo, desgostosa, o que vai pelo meu corao...O mdico ocultista no respondeu. Quedou-se pensativo, certo de que airm querida se envolvera em terrvel enredo de antigas encarnaes,enredo que ele o reconhecia dificilmente a vontade do homem poderiaremediar.Assim se desenrolava a vida em Saint-Omer, quando, uma tarde, poucosdias antes da data fixada para a partida dos gmeos, e quando o frioainda soprava fortemente, Arthur resolvera provar a prpria capacidadede enfrentar a altura, a ver se se corrigira da fraqueza inslita que oconfinava numa situao ridcula, seno dramtica. Havia j algum tempoque suas terrveis crises, a que chamavam epilpticas, no se repetiam.Esperanado, resolveu provar a si mesmo a prpria cura, certo de que osexerccios continuados e o tratamento sem trguas j haviam demonstradoo restabelecimento da prpria sade.Encontrava-se parte da familia, isto , os trs jovens e mais Victor, emamistosa palestra numa sala do segundo andar, cujas portas envidraadasdeitavam para um terrao nobre, rodeado de balces artsticos, comoeram os das edificaes senhoriais dos sculos XVII e XVIII. Junto, bem junto aessaparte do edifcio, e deitando galhadas rentes ao alpendre, existia umsoberbo carvalheiro, cujos braos, meio despidos ainda pelo fim doinverno, seriam capazes de oferecer apoio seguro a quem temerariamentedesejasse passar do alpendre para o arvoredo. Sentado junto janela, em

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    dado momento Arthur v o gato de estimao da famlia sobre o galho docarvalheiro, indeciso se saltaria para o alpendre

    56ou se atingiria os galhos mais baixos, at tocar o cho. No secontendo, e a preferir esperar que o animalzinho resolvesse a prpriasituao, pois a resolveria perfeitamente, Arthur decidiu auxili-lo epensou:- Ser excelente ocasio para a mim mesmo provar que estou curado do meumal de nervos...Distrados no ardor da palestra, seus primos e seu irmono prestaram a devida ateno a que ele se levantara, abriraas portas envidraadas e se dispusera a auxiliar o gato.A prudncia mandaria que Arthur se munisse de uma bengala, um bastoqualquer, e do balco do alpendre o estendesse at o galho que seelevava acima deste, oferecendo ao animal um apoio para passar. Mas, nofoi assim que o futuro militar agiu. Subiu ao balco, equilibrando-se dep. O galho mais prximo balouava-se, impelido pelo vento, e fugiu-lhedas mos quando o moo pretendeu agarr-lo, a fim de apoiar-se e agarraro bichano. Fez, ento, uma segunda investida. Mas, casualmente, seusolhos se desviaram do galho que tencionava agarrar e resvalaram parabaixo, onde se erguia outro balco de mrmore semelhante ao primeiro e,em baixo, degraus e calamentos de pedras. Sua vista turvou-se, ele

    tonteou e seu corpo vacilou, suspenso no balco. Num momento supremo,soltando um grito lancinante, como de alarme e terror inexprimvel, eleainda tentou agarrar-se ao galho e apoiar-se nele. Mas o vento soprava earrebatou--lhe o frgil auxlio, que apenas resvalou por suas mos. Ento, Arthurdespenhou-se do alto, vindo cair sobre os balces e as pedras do cho,onde ficou inanimado. Dessa vez, no entanto, no houve a crisecostumeira, as convulses, os estertores pavorosos das anterioresocasies. Houve apenas o silncio, como que traduzindo a morte, sangue,desmaio profundo, ossos fraturados e o desespero da famlia, que nosabia como agir. Foi ainda Victor quem tomou a iniciativa em hora todramtica. Usando da energia do que era dotado, afastou os familiares dolocal do acidente, improvisou um leito, auxiliado por alguns criados, ecuidadosamente retirou

    57o primo de sobre as pedras. Puseram-no em um aposento do primeiro andar.Victor examinou o acidentado minuciosamente: Arthur vivia. Estava,porm, sem sentidos, em estado desesperador, vencido por violentotraumatismo. Prontamente, expediu portadores a Vannes, requerendo apresena de mdicos, pois, sendo tambm mdico, no quis assumir sozinhoa responsabilidade do tratamento, que seria melindroso; feito o que,reuniu a famlia e declarou:- Devo ser-vos franco. bom no guardardes esperanas de cura. Arthursomente ainda no morreu porque milagrosamente no feriu o crnio. Mas,fraturou a coluna espinhal. Se no morrer, ficar aleijado para sempre.A medicina pouco poder fazer. Somente a natureza dele prprio poderajud-lo, alm dos favores divinos.

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    CAPITULO VO ALEIJDO- "Todas as nossas aes esto submetidas s leis de Deus. Nenhuma h,por mais insignificante que nos parea, que no possa ser uma violaodaquelas leis. Se sofremos as conseqncias dessa violao, s nosdevemos queixar de ns mesmos, que desse modo nos fazemos os causadoresda nossa felicidade, ou da nossa infelicidade futuras."("O Livro dos Espritos", de AllanKardec, Parte 4', cap. II, "Das penas e

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    gozos futuros", n' 964, 32' edio daFEB.)

    E Andrea?Aps o desastre, tal como os demais membros da famlia,Andrea descera em correrias desesperadas as escadarias que

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    levavam ao parque, at o local onde, semimorto, o jovem cara.Impressionvel e nervosa, a noiva de Alexis desmaiara ao ver o estado doprimo to querido, caindo inanimada entre as folhagens de um canteiro.Aflitas, e no af de socorrerem o acidentado, a quem julgavam ver morrera cada instante, as pessoas presentes no prestaram ateno na enfermiamenina e nem mesmo perceberam o que lhe acontecera. Mas, quando j todosse haviam retirado para o interior do palcio e se movimentavam na aode socorro a Arthur, um homem aproximou-se dela, ajoelhou-se sobre aterra, tomou-lhe da mo, que sentiu gelada e, retirando do bolso umleno alvo, enxugou-lhe o rosto, pois comeara a chover e a jovem tinhao rosto molhado pela chuva. Depois, levou a destra sobre o corao damesma, auscultando-o. Vendo que a menina de Guzman respirava, emborafracamente, sua fisionomia desanuviou-se. Ele levantou-a, ento, nosbraos, como se fora uma pluma. Comprimiu-a docemente de encontro ao

    corao, fitando-lhe o rosto plido e abatido, com dolorosa ternura.Seus olhos, luz indecisa do crepsculo, se umedeceram de uma emooprofunda. Em seguida, dilatando o corao num suspiro longo, entrefechouas plpebras e, comprimindo mais ainda o corpo de Andrea contra ocorao, deps em sua boca gelada um beijo quente e apaixonado.Esse homem era um jovem de vinte anos de idade e chamava-se JacquesBlondet. Exercia as modestas funes de guarda das matas e parques depropriedade dos condes de Guzman d'Albret. Era valente, sincero ehonrado, mas sombrio e retrado e certamente triste, inconformado comsua modesta posio social.Jacques Blondet levou aquele corpo amado at os aposentos competentes,nos quais pudesse penetrar, e entregou-o criada de quarto da jovem,Matilde. Mas, levara-o com o cuidado e a devoo com que levaria umdolo, para deposit-lo no relicrio.Jacques amava Andrea, sabia que seu amor era ignorado

    e impossvel, e sofria por isso. Freqentemente, ele a seguia60

    durante os passeios noturnos que a menina fazia pela solido do parque,e no raro tambm por ela velava quando a via adormecer sobre um bancoou estender-se na relva de algum canteiro, durante suas noites deexcitao obsessiva, que a arrastava a tais excessos. E muitas vezesJacqaes pensava, confabulando consigo prprio, enquanto vigiava seuspassos pelo parque, temeroso de que algo de anormal lhe sucedesse:- Por que a amo, meu Deus, se meu amor somente angstias e decepespromete? Que culpa tenho eu de t-la amado desde o primeiro dia em que avi, sozinha e infeliz, vagando por este parque imenso? Sei que jamaisserei amado, que ela nem mesmo ainda reparou em mim. Que ser de mim?Como fazer para esquec-la?Entretanto, Arthur continuava desacordado e, apesar da solicitude dafamlia e dos cuidados dos mdicos que, to rapidamente quanto possvel,haviam atendido ao chamamento de Victor, no recuperava os sentidos.Durante oito dias assim permanecera, inanimado, sem contudo expirar. Osmdicos haviam confirmado o diagnstico de Victor, isto , Arthurfraturara a coluna vertebral e, caso resistisse aos sofrimentos, nomais poderia caminhar. Ao expirar dos oito dias, porm, o jovem comeoua apresentar os primeiros sintomas de ressurgimento para a vida.Balbuciou algumas palavras, chamou pelos pais, falecidos desde muito,pediu-lhes que o beijassem e que orassem a Deus, com ele, agradecendo ono ter sucumbido na queda desastrosa. Aceitou alimentos e ingeriudrogas medicamentosas prescritas pelos mdicos. Queixou-se de dores

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    atrozes nas regies tombares, no peito, nos quadris, e declarou que suaviso se tornara deficiente, E chorou copiosamente, enquanto Victororava fervorasamente, beira do seu leito, com as mos estendidas para ele, e afamlia reunida chorava e orava com o doente.A convalescena foi longa e penosa. No entanto, com surpresa, toda a famlia eainda Alexis perceberam que grandetransformao se operara no corao do pobre moo durante aquelesangustiosos dias em que permanecera

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    seme-morto. Em vez de desespero, viam nele chocante passividade ao destino.Em vez de blasfmias, resignao singular, mesmo incompatvel com ocarter que conheciam. Declarara aos seus que sabia que se inutilizarapara sempre, que jamais voltaria a caminhar, que seus sonhos de glriasmilitares se haviam desfeito, e que seu desejo, agora, seria instruir-setal como seu primo Victor de Guzman d'Albret e voltar-se para o amor deDeus e do prximo. Tais confisses, porm, mais enterneciam a famlia, aqual se reconhecia inconsolvel com os acontecimentos. Seu irmo Alexis,sua prima Andrea, seus tios e demais parentes, que acorreram para juntodele, e at a criadagem do palcio, rodearam-no de ternura e o nodeixavam jamais a ss.E Andrea dizia-lhe a cada instante:

    Consagrarei minha vida a ti, meu caro Arthur! Serei a tua enfermeira, atua segunda me, que velar at pelos sorrisos dos teus lbios. Ns note abandonaremos jamais neste palcio imenso. Seguirs comigo e Alexispara onde formos.E beijava-o ternamente, esquecida de que era prometidado irmo desse a quem assim tratava, beijava-o at que ovisse sorrir consolado e feliz.Finalmente, Arthur restabeleceu-se e pde deixar o leito para dar o seuprimeiro passeio depois do acidente. Mas f-lo em uma cadeira de rodas,tocada por Victor e seu irmo Alexis, ao passo que Andrea caminhava aolado, a mo presa sua mo.Um dia, vendo-o j refeito tambm psicologicamente, Victor, que at alise contivera e nada indagara das impresses do infeliz primo, no maispde conter-se e resolveu manter conversao confidencial com o mesmo.Para isso, convidou-o a um passeio solitrio pelo parque, desacompanhado

    de quem quer que fosse, e, certa altura da conversao, exclamou:- Narra-me, caro Arthur, o que te sucedeu durante o desmaio... Sei quefatos inslitos se passaram contigo

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    durante aqueles dias... Conta-mos, pois no ignoro o fenmeno ocorridocontigo. Dize ainda a tua impresso no instante da queda...Arthur sorriu tristemente e falou:- Sim, meu caro Victor, sei que fatos importantes se sucederam durante omeu desmaio, e, apesar de me encontrar desmaiado, guardo lembrana degrande parte do que me foi sucedido, ao passo que nada posso lembrar doque ao redor de mim se passou, em nossa casa. Durante esse estranhoperodo, em que tive uma vida extraterrena, minha alma renovou-se eposso at dizer que me sinto como que outra personalidade, nascinovamente, sinto-me diversamente do que era. No entanto, no comexatido que me posso recordar do que se passou, pois a sombra de um vuenigmtico parece toldar parte das minhas lembranas quando mais meesforo por tudo esclarecer a mim prprio.Arthur fez uma pausa e continuou comovidamente, enquanto o primoaguardava, sem nada dizer:- Quando, naquela tarde, dispus-me a galgar o parapeito do balco, que largo e muito cmodo, para salvar o nosso gato de estimao, eu mesentia perfeitamente bem- Ao estender o brao, porm, a fim de segurar ogalho do carvalheiro e firm-lo, para reaver o bichano, tive ainfelicidade de olhar para baixo. Ento vacilei, como sempre... Senti,

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    dessa vez, uma faixa negra tenebrosa envolver-me a viso e tomar-me todoo ser... Como por encanto, surgiram ao meu pensamento todos os fatos deminha vida, de diante para trs, isto , do presente em direo aopassado... Perdi, depois, a noo de mim mesmo, Victor, para emseguida sentir dentro de mim outra personalidade, a qual, sendo eumesmo, no era, no entanto, Arthur de Guzman d'Evreuz. Mas, tudo foi torpido, to fugaz e, no entanto, to real e circunstanciado tomo se euvivesse tais momentos durante sculos... Vi-me singularmente trajadocom vestes do campo e senti-me no alto de uma montanha abr