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Waldir Azevedo: cavaquinho

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dissertação

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  • UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    O CAVAQUINHO NA OBRA DE WALDIR AZEVEDO

    ANA CLAUDIA CESAR

    ORIENTAO: PROF. DR. ARNALDO DARAYA CONTIER

    SO PAULO

    2011

  • C421c Cesar, Ana Claudia O Cavaquinho na obra de Waldir Azevedo / Ana Claudia Cesar So Paulo, 2010 126 f. : il. ; 30 cm

    Dissertao (Mestrado em Educao, Arte e Histria da Cultura Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2010. Referncias bibliogrficas: f. 113-116.

    1. Msica urbana. 2. Choro. 3. Cavaquinho. 4. Azevedo, Waldir. I. Ttulo.

    CDD 784.1981

  • 2

    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    O CAVAQUINHO NA OBRA DE WALDIR AZEVEDO

    A N A C L A UDI A C ESA R

    DISSERTAO APRESENTADA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PARA A OBTENO

    DO TTULO DE MESTRE EM EDUCAO, ARTE E HISTRIA DA CULTURA

    O RI E N T A O: PR O F . DR. A RN A L DO D A R A Y A C O N T IE R

    SO PAULO 2011

  • 3

    A G R A D E C I M E N T OS

    In memorian

    minha me, Diva Raga Cesar,

    por ter me ensinado a ser guerreira e ter conscincia e reverncia ao meu talento.

  • 4

    Bolsa CAPES e a reserva tcnica do Mack-pesquisa, que contriburam para a realizao desse trabalho de pesquisa. Arnaldo Contier, meu orientador, por indicar o caminho a ser trilhado. Todos os meus professores do Mackenzie, que sempre me apoiaram e me respeitaram. Em especial a Professora Elcie Masini, por me ensinar a acreditar em minhas ideias. Alceu Maia, amigo e cavaquinista. Dilmar Miranda, pela ateno especial. Camila Bomfim, pela reviso atenta e especial. Paola Pichersky e Cris Machado, pelo incentivo e fora constante. Ademir e Dulclia Buitoni, pelo carinho e pelo Braguinha. Ana Cristina, pela amizade incondicional. Toda minha famlia, que sempre est presente em minhas batalhas e conquistas. Em especial aos meus tios Roberto Penteado e Ana Maria Viola, pela construo da minha auto-estima. Minha irm de todas as horas Ana Paula Cesar, e meu sobrinho Henrique Cesar, pela sua inteligncia, criatividade e generosidade. Minha prima sbia e guru, Letcia Penteado. Rosana Bergamasco, pelas revises, transcries musicais e todo apoio dedicado a mim e ao trabalho.

  • 5

    R ESU M O

    Esse trabalho procura descrever o caminho do instrumento cavaquinho como

    pea fundamental na formao do choro como gnero musical; alm disso, a pesquisa

    expe como o compositor e instrumentista Waldir Azevedo conseguiu transformar o

    cavaquinho de instrumento acompanhador em instrumento solista, atravs da criao e

    execuo de suas obras.

    Para isso foi feita, inicialmente, uma abordagem histrica sobre o choro e uma

    pesquisa bibliogrfica sobre Waldir Azevedo. Foram selecionadas quatro obras do

    autor, consideradas de fundamental relevncia para este trabalho, e foi realizada uma

    anlise musical para suas interpretaes ao cavaquinho. Atravs dessa anlise, foi

    possvel perceber uma metodologia especfica utilizada por Waldir Azevedo para a

    execuo e construo de suas obras.

    Palavras-chave: msica urbana; choro; cavaquinho; Waldir Azevedo.

  • 6

    A BST R A C T

    This work intend to describe the way that the musical instrument named

    cavaquinho took as fundamental piece at the formation of the choro as a musical gender.

    Besides, this research shows how the composer Waldir Azevedo transformed the old

    way of the cavaquinho, an instrument used to accompany to an instrument that could be

    (played) solo.

    Initially an approach was done about the history of the choro and a bibliographic

    research about Waldir Azevedo. Four pieces of this author were selected for this work

    and also an attentive musical analysis of his interpretations playing the cavaquinho was

    done. Through this, it was possible to realize the specific methodology used by him to

    play and to build his works.

    K ey words: urban music, choro, cavaquinho, Waldir Azevedo.

  • 7

    SU M RI O

    IN T R ODU O ................................................................................................................ 8 I - OS C H O R ES E O C H OR O ....................................................................................... 15

    I. 1 Abordagem Histrica ..................................................................................... 15 I. 2 - Primeira formao de grupos de chores ......................................................... 20 I. 3 - Chores: alguns perfis biogrficos .................................................................. 30 I. 4 Choro: caractersticas musicais ....................................................................... 43

    I I - W A L DIR A Z E V ED O : F OR M A O AR T ST IC A ......................................................... 50 II. 1 - O Msico....................................................................................................... 50 II. 2 - O Cavaquinho................................................................................................ 53 II. 3 - Brasileirinho: o compositor............................................................................ 59 II. 4 - Delicado: choro-baio .................................................................................... 68 II. 5 - O instrumentista ............................................................................................ 73

    I I I - A L G U M AS PA RT IT UR AS D E O BR AS D E A UT O RIA DE W A L DIR A Z E V ED O ............... 74 III. 1 Introduo ................................................................................................... 74 III. 2 Brasileirinho ................................................................................................ 76

    III.2.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 78 III. 3 Carioquinha ................................................................................................. 82

    III.3.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 84 III.4. - Delicado ....................................................................................................... 87

    III.4.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 89 III.5 Pedacinhos do Cu ....................................................................................... 93

    III.5.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 95 I V W A L DIR A Z E V ED O : M T O D O D E E X E CU O D O C A V A Q UIN H O ........................... 98

    IV.1 Introduo .................................................................................................... 98 IV.2 - Atrevido - 1967 ............................................................................................. 99 IV.3 - Camundongo - 1951 .................................................................................... 102 IV.4 - Minhas Mos, Meu Cavaquinho - 1976 ....................................................... 105 IV.5 - Flor do Cerrado - 1977 ................................................................................ 108

    C O NSID ER A ES F IN AIS ........................................................................................... 110 R E F E R NC I AS B IB L I O GR F I C AS ............................................................................... 113 DISC O GR A F I A ........................................................................................................... 116 A N E X OS .................................................................................................................... 117

  • 8

    IN T R O DU O JUST I F I C A T I V A

    O cavaquinho um instrumento singular. Desde os primrdios da msica

    popular no Brasil, foi fundamental para as execues e criaes musicais e, at a

    dcada de 50, era basicamente um instrumento de acompanhamento na msica

    popular brasileira.

    Originalmente, esteve ligado ao choro, gnero musical surgido entre o final do

    sculo XIX e o incio do sculo XX no Rio de Janeiro. Esse perodo foi um marco para

    essa cidade; nesta poca, a sociedade vivenciou transformaes polticas, econmicas,

    sociais e culturais intensas e significativas, como a mudana de forma de governo, a

    passagem do trabalho escravo para o trabalho assalariado, a modernizao das grandes

    lavouras e o incio do processo de industrializao que se refletiu gradativamente em

    todo o pas.

    nesse contexto sociocultural que surgiram os chores, msicos que

    acompanhavam os mais variados gneros musicais

    Como a maioria da populao de baixa renda, os msicos no frequentavam os

    sales das elites burguesas; porm, muitas vezes ficavam de fora das salas ouvindo a

    IDPRVD H LQRYDGRUD SROFD P~VLFD europeia que, no incio dos anos 1850, vinha

    agitar os sales do Rio de Janeiro; esses msicos, cuja formao musical era na maior

    parte das vezes oriunda da tradio oral, reproduziam o que ouviam em instrumentos

    populares como violes, cavaquinho e flauta.

    A msica popular brasileira urbana comeou, ento, a se definir; os msicos

    populares, ao transportar a msica dos bailes da elite na maioria das vezes executada

    pelo piano e instrumentos de sopros - promoveram uma releitura dessa msica,

    adicionando elementos de sua prpria influncia musical como, por exemplo, os

    presentes na dana conhecida como lundu1; desta mistura bem temperada entre a

    riqueza harmnica e meldica da msica europeia (no caso, a polca) e a rtmica e

    1 'DQoD GH URGD H XPbigada brasileira, teve origem no batuque dos bantos africanos, provavelmente trazida de Angola pelos escravos na segunda metade do sculo XVIII, e posteriormente introduzida nos VDO}HVGDVFRUWHVGR%UDVLOHGH3RUWXJDO'285$'2

  • 9

    criativa msica afro-descendente, surgiu o gnero musical nomeado popularmente de

    0D[L[H

    Segundo Jos Ramos Tinhoro, a polca se transforma em maxixe, via lundu

    danado e cantado, atravs de uma estilizao musical efetuada pelos msicos dos

    conjuntos de choro. (TINHORO, 1974: 64)

    O Maxixe o primeiro gnero difundido entre as camadas populares pelos

    sales da cidade e tambm pelo Teatro de Revista; posteriormente, foi assimilado pela

    elite brasileira. Nasce como dana popular urbana e, aos poucos, se transforma em

    msica instrumental e em cano, lanada tambm pelo teatro de revista. Muitos

    elementos musicais do maxixe esto presentes no choro; porm, uma das diferenas

    est na sua funo social: o maxixe era msica para se danar, e o choro no trazia esta

    mesma inteno.

    Os dilogos estabelecidos entre as vrias danas europeias e a msica urbana da

    populao em geral (e de suas interpretaes) estavam repletos de caractersticas

    prprias, resultando cada vez mais em um som autntico e original que, gradativamente,

    foi tomando forma at ser sistematizado como gnero musical, chamado at os dias

    DWXDLVGHFKRUR

    T E M A

    O cavaquinho est presente desde os primrdios da msica popular brasileira

    urbana, e sempre se destacou por ser um instrumento basicamente harmnico que

    acompanha os solos das flautas, clarinetes e outros instrumentos de sopro.

    Em 1949 o instrumentista Waldir Azevedo, atravs de seu desempenho na

    execuo desse instrumento, fez com que o cavaquinho mudasse de patamar e passasse

    de instrumento acompanhador para instrumento solista. Ele considerado um msico

    de importncia fundamental no cenrio da msica popular brasileira, especificamente

    para a histria do cavaquinho.

    Nesse ano foi lanado o primeiro compacto duplo do instrumentista e

    compositor Waldir Azevedo: Brasileirinho (choro), sua primeira composio. Essa

    msica transformou-se na maior expresso brasileira do cavaquinho. Esse compacto

    duplo apresentou duas das mais populares obras do autor:

  • 10

    Lado A: Carioquinha: (choro) - Lado B: Brasileirinho (choro)

    Waldir Azevedo no imaginava que Brasileirinho faria to grande sucesso e se

    tornaria uma obra essencial para o repertrio dos cavaquinistas; por isso, essa obra

    foi lanada no lado %GRFRPSDFWR

    A gravao desse primeiro trabalho foi uma ideia do ento diretor da gravadora

    Continental, Sr. Carlos Alberto Braga (mais conhecido como Joo de Barro, ou ainda

    como o popular Braguinha).

    Sem dvida, esta circunstncia foi altamente significativa, pois deu incio a

    uma longa carreira do msico, que se caracterizou pela criatividade singular, um

    diferencial para a histria da msica brasileira.

    6HJXQGR/XL]7DWLW2FDQWRVHPSUHIRLXPDGLPHQVmRSRWHQFLDOL]DGDGDIDOD

    No caso brasileiro, tanto os ndios como os negros invocavam os deuses pelo canto.

    (2004: 41)

    No Brasil, as msicas que podem ser cantadas por todos so as que fazem

    maior sucesso, j que so lembradas pela forma mais popular de se difundir uma

    msica - pela tradio oral.

    Com relao a essa questo, importante observar que a repercusso de

    Brasileirinho foi de tal forma significativa que, rapidamente, providenciaram uma

    letra para que ela se tornasse ainda mais popular.

    Esta pesquisa pretende contribuir para um aspecto da construo histrica da

    msica popular brasileira, especificamente sobre a histria do cavaquinho,

    apresentando um novo olhar sobre o tema, j que esse um instrumento pouco

    estudado na academia, apesar do cavaquinho ser um instrumento muito popular no

    Brasil.

  • 11

    C RI T RI OS T E RI C O-M E T O D O L G I C OS

    Para a realizao desse trabalho de pesquisa, foi desenvolvida abordagem com

    fundamentao terica utilizando obras de autores como Michael de Certeau, Peter

    Burke, Nestor Garcia Canclini, Arnold Schoenberg e Luis Tatit.

    Tambm foi realizada uma pesquisa biogrfica de alguns chores

    reconhecidamente consagrados da poca como Antonio Callado, Chiquinha Gonzaga,

    Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Pixinguinha; para tanto, foram pesquisadas e

    utilizadas fontes de autores/pesquisadores como Edinha Diniz, Andr Diniz, Sergio

    Cabral, entre outros.

    Com essa pesquisa, foi traado um percurso cronolgico com o objetivo de

    chegar ao compositor e instrumentista Waldir Azevedo, no final da primeira metade do

    sculo XX.

    Para o entendimento de gnero musical, foi utilizado o autor Carlos Sandroni,

    que traa cuidadosamente um perfil do desenvolvimento da estrutura musical,

    indispensvel para essa pesquisa; outro autor consultado Carlos Almada, que analisa

    especificamente o choro como linguagem musical. Esse material deu todo o suporte

    necessrio para a anlise musical das obras de Waldir Azevedo.

    Recorri nica biografia disponvel de Waldir Azevedo, escrita pelo maestro e

    compositor Marco Antonio Bernardo, que contribuiu para a construo do perfil do

    autor e ajudou na compreenso das circunstncias socioculturais que proporcionaram a

    formao desse artista.

    Foi realizada uma pesquisa discogrfica e coleta de imagens, que ajudaram a

    descrever e entender o autor, suas obras e sua performance no cavaquinho. Foram feitas

    anlises de quatro obras de referncia do autor, escolhidas, como msicas mais

    divulgadas e conhecidas, que alm de alavancar sua bem sucedida carreira, continuaram

    presente at o fim de sua vida.

    Tambm foram selecionados trechos de outras obras de Waldir Azevedo que

    contriburam para a construo de um mtodo de estudo para cavaquinho.

    Todos os autores pesquisados contriburam para a construo de um trabalho

    especfico, possibilitando interlocues entre reas diversas e criando condies para a

    ampliao de conhecimentos relativos ao tema.

  • 12

    O BJE T I V OS

    G E RA L:

    Pesquisar como a obra de Waldir Azevedo, suas interpretaes e as circunstncias socioculturais que o transformaram em uma referncia musical para o

    cavaquinho, para os cavaquinistas e para o choro - como gnero instrumental brasileiro -

    promoveu uma mudana de patamar desse instrumento, que passa de acompanhador

    para solista.

    ESPE CF I C OS:

    1. Pesquisar os fatores que levaram a transio do cavaquinho acompanhador para

    o cavaquinho solista nas performances e composies de Waldir Azevedo, a

    partir de 1949;

    2. Observar a questo da msica instrumental e os motivos pelos quais as

    composies e apresentaes das msicas de Waldir Azevedo alcanaram um

    lugar de destaque no Brasil;

    3. Avaliar porque Waldir Azevedo, mesmo depois de quase sessenta anos da

    primeira gravao de Brasileirinho, continua sendo um referencial significativo

    para a msica brasileira instrumental, especificamente a msica para

    cavaquinho;

    4. Pesquisar a fim de detectar um mtodo de estudo para o cavaquinho atravs da

    obra de Waldir Azevedo;

    5. Este trabalho objetiva fornecer dados que podem ser tanto para professores de

    msica, como para instrumentistas, alm de contribuir para outros pesquisadores

    da rea.

    C O RPUS

    Para entender a obra de Waldir Azevedo, foram realizadas anlises musicais de

    quatro obras que se tornaram grandes referncias em sua discografia:

  • 13

    x Brasileirinho - 1949 x Carioquinha - 1949 x Delicado - 1950 x Pedacinhos do Cu 1950

    Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, a metodologia aplicada foi:

    1) Fundamentao terica, procurando embasar a hiptese da mudana de

    patamar do cavaquinho acompanhador para o cavaquinho solista, atravs da

    obra de Waldir de Azevedo;

    2) Levantamento de imagem (Programas de TV), a partir de 1970,

    aproximadamente;

    3) Anlise das quatro obras musicais citadas acima, que serviram de base para a

    fundamentao terica-prtica da(s) hiptese(s) levantada(s);

    4) Anlise musical de quatro outras obras que permitem observar o

    desenvolvimento do mtodo emprico aplicado pelo autor. So elas:

    Camundongo, Atrevido, Minhas mos, meu cavaquinho e F lor do Cerrado.

    C AP T U L OS: estruturao

    O primeiro captulo trata da contextualizao histrica do princpio do choro,

    msica popular urbana que comeou a se manifestar na segunda metade do sculo XIX.

    Os chores, msicos versteis que tocavam vrios ritmos musicais, tambm foram

    responsveis por essas transformaes culturais que se configuraram no incio do sculo

    XX.

    Foram citados alguns dos principais compositores responsveis pela construo

    do choro como gnero musical, so eles: Joaquim Antonio Calado, Chiquinha Gonzaga,

    Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Pixinguinha.

    Para uma melhor compreenso do choro, foram pesquisadas e descritas vrias

    caractersticas musicais que podem contribuir para a identificao do gnero.

    O segundo captulo trata da formao artstica de Waldir Azevedo, um choro da

    segunda metade do sculo XX que se consagrou por suas obras e por sua performance,

  • 14

    transformando o cavaquinho em instrumento solista, e o choro em msica muito

    popular.

    Sua primeira gravao de Brasileirinho foi um marco em sua carreira, e na

    divulgao de uma msica instrumental que alcanou recordes de vendas, fenmeno

    comum at ento somente para cano.

    Delicado, a segunda gravao, foi ainda mais surpreendente, pois alcanou

    grande divulgao no mercado externo; um choro-baio, uma mistura indita de

    elementos musicais cariocas e nordestinos.

    Este captulo tambm foi dedicado pesquisa do cavaquinho e de Waldir

    Azevedo como o instrumentista de maior referncia do instrumento.

    No terceiro captulo foram escolhidas as quatro obras de maior sucesso de

    Waldir Azevedo, Brasileirinho, Delicado, Carioquinha e Pedacinhos do Cu.

    Foi realizada uma anlise musical e uma pesquisa da execuo dessas obras no

    cavaquinho.

    A pesquisa tambm abordou a concepo histrica da poca e algumas das

    gravaes que ajudaram na divulgao dessas obras consagradas pelo autor.

    O quarto e ltimo captulo dedicado escolha de obras que foram pesquisadas

    como referncias para um mtodo de estudo para cavaquinistas; foi realizado um estudo

    minucioso para a captao de caminhos que facilitem e contribuam para a formao de

    um estudante que quer se aprimorar na execuo e tcnica do instrumento.

    Foram selecionadas quatro obras para a capitao de detalhes que podem ajudar

    na formao de um cavaquinista. Estas foram colocadas em ordem cronolgica, e so

    Camundongo, Atrevido, Minhas mos, meu cavaquinho e F lor do Cerrado.

  • 15

    I - OS C H O R ES E O C H O R O

    I . 1 Abordagem Histrica

    A segunda metade do sculo XIX foi um marco para a Msica Popular no

    Brasil; exatamente em um cenrio urbano da cidade do Rio de Janeiro que surgem os

    primeiros msicos chores, oriundos de camadas sociais excludas da sociedade, que

    desenvolveram habilidades de execuo em instrumentos populares como violo,

    cavaquinho e flauta.

    O pesquisador Marcos Napolitano nos ajuda na compreenso da formao do

    choro:

    'HWRGRVHVWHVHQFRQWURVFXOWXUDLVe da mistura musical resultante, surgiro,

    outros gneros modernos de msica brasileira: a polca-lundu, o tango

    brasileiro, o choro e o maxixe, base da vida musical popular do sculo XX.

    Apesar desta mistura, o mundo da casa e o mundo da rua (para no falar do

    mundo das senzalas, com seus batuques e danas especficas) constituam

    esferas musicais quase isoladas uma das outras at meados do sculo XIX e

    dependiam de compositores e msicos ousados, transgressores,

    anticonvencionais, para comunicarem-VH1$POLITANO, 2005: 44)

    Essa pesquisa tem incio no choro, msica que no princpio do sculo XX se

    consolidou como gnero musical e se perpetua at os dias atuais como uma das msicas

    mais importantes do pas.

    O choro acabou por galvanizar uma forma musical urbana brasileira,

    sintetizando elementos da tradio e das modas musicais da segunda metade

    do sculo XIX. Nele estavam presentes o pensamento contrapontstico do

    barroco, o andamento e as frases musicais tpicas da polca, os timbres

    instrumentais suaves e brejeiros, levemente melanclicos, e a sncopa que

    GHVORFDYD D DFHQWXDomR UtWPLFD TXDGUDGD GDQGR-lhe um toque sensual e

    MRFRVR (Ibidem: 45-46)

  • 16

    Em um contexto sociocultural da segunda metade do sculo XIX surgem os

    chores, msicos que acompanhavam os mais variados gneros musicais como valsas,

    polcas, lundus, modinhas e maxixes, que podiam ser adaptados e tocados por estes

    grupos, formados por violes, cavaquinho e um instrumento de sopro solista, que podia

    ser o oficlide2 ou a flauta. Constantemente convidados para animar diversos tipos de

    comemoraes, das mais familiares s mais bomias, eram formados na sua maioria por

    msicos amadores, alguns funcionrios pblicos dos correios e telgrafos, designados

    para pequenos servios nas reparties onde trabalhavam.

    4XHP QmR FRQKHFH HVWH QRPH" 6y PHVPR TXHP QXQFD GHX QDTXHOHV

    tempos uma festa em casa. Hoje ainda este nome no perdeu de todo o seu

    prestgio, apesar de os choros de hoje no serem como os de antigamente,

    pois verdadeiros choros eram constitudos de flauta, violes e cavaquinhos,

    entretanto muitas vezes o sempre lembrado ophicleide e trombone, o que

    constitua o verdadeiro choro dos chores.

    Naqueles tempos existiam excelentes msicos, que ainda hoje so citados

    como os cometas que passam de FHPHPFHPDQRV3,172 11)

    Alexandre Gonalves Pinto foi o primeiro autor a escrever um livro de memrias

    que se tornaria um documento histrico devido aos relatos sobre os chores. Seu livro O

    Choro, reminiscncias dos chores antigos tem ajudado muitos pesquisadores a realizar

    diversos trabalhos por ser a primeira referncia a um extenso perodo, que vai de 1870 a

    1936, quando foi lanada a primeira edio da obra. Dentre eles, o jornalista e

    pesquisador Jos Ramos Tinhoro:

    2 Instrumento de sopro da famlia dos metais. Trompa com chaves e bocal, tubo cnico dobrado sobre si mesmo, em uso durante o sculo XIX. Foi patenteado pelo fabricante francs Halary em 1821. A palavra "ophicleide", do francs ophiclide provm do grego "ophis", que significa serpente e "kleis", que quer dizer tampa ou abafador, combinao que pode ser traduzida como "serpente de chaves". O nome oficlide, criado para denominar o instrumento maior do grupo abrangido pela patente de Halary, logo se tornou genrico para todos os tamanhos. O nome oficlide tambm usado como designao para o instrumento. Os oficlides eram construdos com nove a 12 chaves. Instrumento muito utilizado durante o sculo XIX, com inmeras referncias no ambiente da msica popular, foi paulatinamente substitudo nas orquestras e bandas pela tuba. Disponvel em: www.dicionariompb.com.br. Acesso em: 07 setembro 2010.

  • 17

    $PDLRULD desses cantores especialistas em modinhas sentimentais (todos

    lembrados em 1935 pelo velho carteiro Alexandre Gonalves Pinto em seu

    livro de memrias), gravitava em torno dos conjuntos de choro que

    funcionavam como orquestras de pobre, fornecendo msica para festas em

    FDVDVGHIDPtOLDjEDVHGHIODXWDYLROmRHFDYDTXLQKR (TINHORO, 2005:

    23)

    Funcionrio dos correios e telgrafos, Alexandre Gonalves Pinto era integrante

    de grupos de chores, e tocava cavaquinho e violo seis cordas. Esse autor fez um

    verdadeiro dirio desse momento histrico, descrevendo o perfil de cada msico e seu

    instrumento, e relatando situaes cotidianas da vida desses chores.

    Outro pesquisador, o historiador Andr Diniz, descreve os grupos de chores:

    7DPEpP FRQKHFLGRV FRPR JUXSRV GH SDX H FRUGD GHYLGR D IXQomR GH

    flauta de bano com os instrumentos de corda, esses chores pertenciam a

    classe mdia baixa da sociedade carioca. Eram em sua grande maioria

    funcionrios de reparties pblicas, exerciam trabalhos que permitiam uma

    boemia regular e residiam, geralmente, na Cidade Nova, bairro construdo

    sobre o antigo mangue, e nas vilas do centro antigo at os bairros do Estcio

    e da Tijuca.

    Os chores no tocavam por dinheiro. Quando eram convidados para um

    baile sempre arrumavam um jeito de dar um pulinho na cozinha do anfitrio

    SDUD DYHULJXDU VH D PHVD HVWDYD IDUWD GH FRPLGD H EHELGD &DVR R JDWR

    HVWLYHVVH GRUPLQGR QR IRUQR IUDVH TXH H[SUHVVDYD D HVFDVVH] HWtOLFD H

    gastronmica do lar, inventavam uma desculpa e partiam para outras bandas.

    6HUFKRUmRHUDVHUERrPLR (DINIZ, 2003: 14)

    Os chores tocavam em suas horas vagas e aproveitavam para se aperfeioar em

    seus instrumentos; eram msicos que aprendiam a tocar e se aprimorar na execuo de

    maneira totalmente prtica, atravs da oralidade. O solista, na maioria das vezes, era o

    nico que conhecia a linguagem musical formal (portanto lia e escrevia msicas em

    partituras) e tinha que traduzir seus conhecimentos para poder trocar informaes com

  • 18

    os outros instrumentistas. Portanto, foi atravs da tradio oral que estes primeiros

    chores desenvolveram uma maneira prpria de interpretao de cada obra executada.

    Estes msicos desenvolveram grande versatilidade na execuo de diversos

    estilos musicais, adaptando-os com prontido ao grupo instrumental formado por

    violes, cavaquinho e flauta - esta podendo ser substituda por qualquer outro

    instrumento solista.

    $KLVWyULD GDP~VLFD SRSXODUQR%UDVLOQRV LQGLFD TXH DLQGD SHUVLVWHP DV

    mesmas condies que geraram e asseguraram a vitalidade dessa

    manifestao cultural como importante canal de expresso popular: alta

    concentrao populacional nos extratos baixos da sociedade, analfabetismo

    ou baixa escolaridade dos seus integrantes e ausncia ou precrio

    atendimento das suas exigncias sociais.

    O fato de ser um grupo numericamente expressivo e com uma cultura

    singularizada assegura(va) a produo e consumo culturais dentro do prprio

    grupo. Por ser uma manifestao artstica plenamente sustentvel pela

    tradio oral, sempre favorece(u) os menos letrados e, por fim, mas no por

    ltimo, fornece(u) tambm um canal para a expresso de sentimentos,

    DQVHLRVGHVHMRVJRVWRVFUHQoDVH UHLYLQGLFDo}HVFROHWLYDV ',1,=

    82)

    2 WHUPR SRSXODU DSUHQGHU GH RXYLGR - que significa aprender ouvindo e

    repetindo, sem leitura de partitura era, constantemente, o processo de aprendizagem

    pelo qual instrumentistas e cantores aprendiam o choro.

    Os grupos de chores se multiplicaram, considerando que o contingente destes

    msicos era, em sua maioria, formado por excludos sociais. Alguns tinham

    subempregos, outros eram desempregados, podendo ser considerados socialmente

    marginalizados. o que nos confirma o professor e pesquisador Arnaldo Contier:

    Os excludos sociais foram expulsos para os subrbios ou para os morros

    (favelas). As perseguies de policiais tornaram-se freqentes em face da

    presena de homens pobres, descalos ou maltrapilhos que perambulavam

    pela Avenida Central ou pela Rua do Ouvidor. Esses novos espaos

    urbansticos tornaram-se plos de entretenimento das elites branco burguesas.

  • 19

    Paulatinamente, durante os anos 1910 e 1920, com o surgimento dos

    cinemas, dos dancings, cafs, cabars, os chores (em geral, negros e

    despossudos sociais) passaram a se exibir em conjuntos musicais nesses

    QRYRV HVSDoRV considerados FLYLOL]DGRV SHODV HOLWHV GRPLQDQWHV

    (CONTIER, 2004: 07)

    Como j foi dito, grande parte dos grupos de chores eram formados por

    msicos amadores, que no recebiam remunerao para tocar seus instrumentos; por

    este motivo, era comum que os chores escolhessem festas para tocar, tendo como troca

    comida e bebida farta - GRFRQWUiULRRFRPHQWiULRHUDJHUDO 7HPgato dormindo no

    IRJmR (cdigo usado pelos msicos para explicar a ausncia de comida na casa). E isso,

    parDRJUXSRGHFKRU}HVHUDPRWLYRPDLVTXHVXILFLHQWHSDUDWRFDUHFDQWDUHPRXWUD

    IUHJXHVLD6REUHHVVDTXHVWmR$OH[DQGUH*RQoDOYHV3LQWRFRPHQWD

    4XDQGRLDWRFDUQXPEDLOHYHQGRWXGRWULVWHVHPDTXHOHDOHQWRGRVJUDQGHV

    SDJRGHV chamava um colega e dizia: Est me parecendo que aqui o gato

    est dormindo no fogo. E depois arranjava um motivo, procurava o dono da

    casa e pedia para ir ao quintal a fim de passar pela cozinha e ver a fartura ou

    a misria em que se achava o dono da festa, vendo fartura vinha para a sala

    todo satisfeito, em caso contrrio dizia: O gato est no fogo rapaziada,

    YDPRVVDLQGRGHEDUULJD1mRYLHPRVDTXLSDUDSDVVDUJLQMDTXHTXHr dizer

    IRPH-16)

    Um fato que explica o aumento considervel destes msicos que nesta poca

    ainda no tnhamos gravao em disco, j que isso aconteceria somente no incio do

    sculo XX; portanto, a msica como entretenimento era sempre executada em tempo

    real, e estes grupos gozavam de grande prestgio, sendo a atrao principal de diversos

    eventos populares. o que nos confirma o pesquisador e escritor Jos Ramos Tinhoro:

    (PXPWHPSRHPTXHDLQGDQmRKDYLDQHPGLVFRQHPUiGLRRVFRQMXQWRVGHWRFDGRUHV

    de flauta, violo e cavaquinho foram, pois, graas a sua formao eminentemente

    pRSXODUDVRUTXHVWUDVGHSREUHVTXHSRGLDPFRQWDUFRPRPtQLPRGHGLVSRQLELOLGDGHV

    (1974: 108)

  • 20

    I . 2 - Primei ra formao de grupos de chores

    Para entender melhor a estrutura instrumental de um grupo tradicional de choro,

    preciso um breve relato sobre cada instrumento que fazia parte desse grupo, e suas

    respectivas funes:

    x Uma flauta, ou qualquer outro instrumento solista que tocasse a melodia da msica. Muitas vezes este solista era o nico integrante que possua

    conhecimento musical formal (leitura de partitura).

    x Um violo de seis cordas, que tinha como funo o acompanhamento harmnico do solista e servia como base para que ele pudesse iniciar um

    possvel improviso; tambm contribua como apoio rtmico na execuo da

    msica.

    x Um violo de seis cordas, cuja funo era a execuo de contrapontos entre acordes e frases musicais. Pelo fato desta execuo musical ser realizada na

    regio mais grave do instrumento (baixos), at hoje essa linha recebe o nome de

    baixaria, e tambm auxilia o outro violo de seis cordas no acompanhamento

    harmnico e rtmico. (Esse violo foi substitudo pelo violo de sete cordas no

    incio do sculo XX).

    x Um cavaquinho: assim como os violes, uma de suas funes era fazer o acompanhamento harmnico das msicas; mas, o que o diferencia dos outros

    instrumentos do grupo sua execuo rtmica j que, no surgimento desses

    JUXSRV QmR KDYLD LQVWUXPHQWDO GH SHUFXVVmR &DYDTXLQKR FHQWUR p R QRPH

    utilizado para designar a funo desse instrumento nestes grupos.

    $ LQVWUXPHQWDomR RULJLQal do conjunto do choro foi o trio de pau e corda

    (flauta de bano, um cavaquinho, um ou dois violes), formao derivada dos

    ternos da msica dos barbeiros. A flauta, instrumento meldico geralmente

    do msico do trio com leitura musical, respondia pelos solos; o violo,

    instrumento harmnico, fazia as bordaduras em contraponto, executando a

    linha do baixo; o cavaquinho apoiava a melodia, desempenhando o FHQWUR

    rtmico. Depois foram surgindo outros instrumentos solistas como o

    bandolim, o trompete, o clarLQHWHHRVD[ (MIRANDA, 2009: 74)

  • 21

    Algum tempo depois essa mesma formao, com a adio da percusso, foi

    utilizada como alternativa para os programas de rdio nas dcadas de 30, 40 e 50. Estes

    FRQMXQWRV HUDP FKDPDGRV 5HJLRQDO GH FKRUR RX VLPSOHVPHQWH 5HJLRQDO H se

    tornaram uma tima alternativa musical para as orquestras, que eram mais complexas e

    RQHURVDV FRPR DILUPD R DXWRU +HQULTXH &D]HV Assim, com dois ou trs violes,

    cavaquinho, um ou mais ritmistas e um solista para criar introdues em profuso,

    estava resolvido o problema, com uma excelente relao custo-EHQHItFLR (1998: 85)

    Os Regionais animavam os programas ao vivo das rdios, e eram compostos por

    msicos versteis que desenvolveram, com eficincia, a habilidade de acompanhar as

    mais diversas tonalidades.

    Voltando origem destes grupos, se faz necessrio compreender melhor as

    msicas da poca e suas diversas origens, com o objetivo de observar os elementos que

    contriburam para a formao da msica popular urbana:

    Voltemos no tempo. No curso do sculo XIX, o Rio, tomado por diversas

    danas e ritmos somados aos j existentes o palco de uma densa massa de

    informaes. No interior dessa agitao, na segunda metade do sculo, toma

    vulto um modo peculiar de interpretar as danas europias. D-se um desfile

    infindvel de danas de salo como os vrios tipos de quadrilha, o galope, a

    valsa, a polca, a escocesa (a schottischi (sic) que depois ser aportuguesado

    para o xote), a mazurca, a polca-mazurca etc.

    So importados procedimentos meldicos-modulatrios, apossados e

    ressignificados, tanto pelo msico com acesso aos sales imperiais, como

    pelo msico popular annimo das serestas, principalmente os das rodas de

    choro que iro se proliferar nas festas populares. Assim, as danas europias,

    D SDUWLU GH JUDoDV DRV FKRU}HV JDQKDP XP IRUWH W{QXV EUDVLOHLUR

    (Ibidem: 63)

    Havia, nessa poca, uma variedade significativa de msicas trazidas da Europa e

    da frica. Dessas muitas fontes, oriundas de lugares to diferentes e distantes, criou-se

    um intenso intercmbio de culturas, possibilitando uma ampliao de conhecimento

    enriquecedor, permitindo grandes transformaes da msica executada e composta no

    Brasil. Estas contribuies musicais estrangeiras foram dialogando e se transformando,

  • 22

    e esses acontecimentos contriburam para a VLVWHPDWL]DomR GR FKRUR FRPR JrQHUR

    musical no incio do sculo XX.

    Canclini expe esse fenmeno, se referindo especificamente s condies de

    hibridao:

    'HVWDFRDVIURQWHLUDVHQWUHSDtVHVHDVJUDQGHVFLGDGHVcomo contextos que

    condicionam os formatos, os estilos e as contradies especficos da

    hibridao. As fronteiras rgidas estabelecidas pelos Estados modernos se

    tornaram porosas. Poucas culturas podem ser agora como unidades estveis,

    com limites preciosos baseados na ocupao de um territrio delimitado. Mas

    essa multiplicao de oportunidade para hibridar-se no implica

    indeterminao nem liberdade irrestrita. A hibridao ocorre em condies

    histricas e sociais especificas, em meio a sistema de produo e consumo

    que s vezes operam como coaes, segundo se estima na vida de muitos

    LPLJUDQWHV(2006: xxix)

    Dentre os vrios tipos de msicas trazidas da Europa e difundidas no Brasil,

    podemos citar como exemplos a valsa, a quadrilha, a mazurca, o schottisch e a polca.

    Do outro lado, a contribuio da msica africana foi intensamente difundida no

    pas e transmitida por tradio oral, atravs das danas e dos batuques, contribuies

    rtmicas que foram extremamente relevantes para a msica criada e executada no Brasil.

    O lundu uma das primeiras danas de origem africana trazidas pelos negros e

    posteriormente transformada em cano pelos portugueses; alm dessa contribuio

    temos outras, como o caso do tango argentino e da habanera.

    'HSRLVHPFKega uma coleo de habaneras do compositor espanhol

    Sebastian YradierHQWUHDVTXDLVDVFRQKHFLGDVLa PalomaH(ODUUHJOLWR,

    sendo esta usada por Bizet como tema para a habanera da SHUD&DUPHQ

    Gneros binrios, de frmula rtmica semelhante, muito populares na

    Espanha e na Amrica Latina no sculo XIX, o tango andaluz e a habanera

    cubana tem provavelmente origem em cantos remotos da frica do Norte,

    levados pelos rabes para a Espanha e pelos negros pDUD &XED

    (SEVERIANO, 2008: 27)

  • 23

    Como o autor acaba de descrever, as contribuies musicais no Brasil vem de

    diversas culturas. A polca, por exemplo, foi uma referncia para a formao da msica

    popular urbana da poca. Trazida da regio da Bomia via Paris, a polca repercutiu

    tanto na Europa como no Brasil. A novidade era sobre a maneira de se danar, pois

    diferente da valsa, essa nova dana permitia mais proximidade entre os casais, fato raro

    para a poca, uma vez que os padres morais eram muito sedimentados pelo poder da

    igreja e prontamente mantidos e divulgados pelas elites vigentes.

    6XEPHWLGDV GHVGH D FKHJDGD D XP SURFHVVR GH QDFLRQDOL]DomR DV GDQoDV

    importadas seriam fundidas por nossos msicos populares a formas nativas

    de origem africana, conhecidas pelo nome genrico de batuque. Foi assim

    que na dcada de 1870, nasceram o tango brasileiro, o maxixe e o choro, ao

    mesmo tempo em que se abrasileirava a tcnica de execuo de vrios

    instrumentos, como o violo, o cavaquinho e o prprio piano. Parentes

    prximos os trs gneros teriam em comum o ritmo binrio e a utilizao da

    sncopa afro-brasileira, alPGDSUHVHQoDGDSROFDHPVXDJrQHVH (Ibidem,

    2008: 28)

    Outra questo relevante a transformao de diversos ritmos pela forma de

    H[HFXWDU GRV P~VLFRV SRSXODUHV QR FDVR RV FKRU}HV ,VWR IRi to determinante que

    acabou revelando o maxixe:

    Na verdade, seria exatamente dessa descida das polcas dos pianos dos sales

    para a msica dos choros, base de flauta, violo e oficlide, que iria nascer a

    novidade do maxixe, aps vinte anos de progressiva amoldagem daquele

    gnero de msica da dana estrangeira e certas constncias do ritmo

    brasileiro. Esse curioso processo de sincretismo, realizado ignoradamente ao

    longo da evoluo cultural das camadas mais baixas da populao do Rio de

    Janeiro, na segunda metade do sculo XIX, est ligado histria do choro

    carioca, e s pode ser compreendido com o conhecimento das suas

    SDUWLFXODULGDGHV (TINHORO, 1974: 61)

  • 24

    O maxixe teve origem popular e, diferente da polca, era mais ousado e sensual.

    Nele, os casais se entrelaavam e a coreografia era realizada com muitos requebros de

    cintura, alm de exigir dos danarinos muitos volteios pelos sales. Foram criados

    diferentes passos para a execuo da dana, como: balo caindo, cobrinha, parafuso,

    corta-jaca e vrias outras nomenclaturas, e os danarinos usavam de muita criatividade

    para se sobressarem. Como j foi dito, o maxixe era uma veUVmRPDLVIRJRVDGDSROFD

    europeia, e a aproximao dos casais era maior e mais audaciosa; por isso, foi uma

    dana muito atacada pelas elites e pela Igreja, sendo classificada como dana imoral e

    lasciva. Era, ento, praticada em locais livres de julgamentos PRUDLV como bares,

    bordis e at prostbulos.

    O maxixe chegou a ser classificado pela igreja como GDQoDH[FRPXQJDGDe,

    como j foi dito, foi muito atacado pelas elites. No entanto, nos ambientes mais

    populares e distantes dos olhares moralistas, o maxixe era muito executado e se

    transformou na verso abrasileirada da polca europeia.

    &RPRDILUPD&DUORV6DQGURQL1mRKiG~YLGDTXHDSDODYUDPD[L[HQDYLUDGD

    do sculo, tinha conotao de vulgaridade mais forte do que tango, que j tinha sido at

    HPSUHJDGD SRU FRPSRVLWRUHV HUXGLWRV FRPR $OEpQL] H QR %UDVLO $OH[DQGUH /HY\

    (1993: 79).

    Maxixe tambm era uma palavra comumente utilizada para designar

    acontecimentos de baixa categoria, alm de ser um fruto comestvel de planta rasteira

    que nasce no mangue (regio de prostituio na cidade do Rio de Janeiro). Isso dava

    uma conotao ainda mais vulgar dana. Quanto mais polmica causava, mais

    popularidade alcanava, aumentando consideravelmente os adeptos da nova dana.

    Maxixe , na origem, uma msica instrumental para ser danada; porm, a

    msica Gacho (Corta-jaca), de Chiquinha Gonzaga, foi composta com letra para fazer

    parte de um musical. Esses musicais eram chamados Teatro de Revista, peas teatrais

    escritas com temas variados, com o objetivo de relatar situaes e acontecimentos

    cotidianos como uma crnica de acontecimentos relevantes - tendo sempre o foco na

    crtica poltica e social da poca. O nome dado a esses musicais representa exatamente o

    fato de passar em revista acontecimentos que, de alguma forma, poderiam ser

  • 25

    comentados e criticados atravs dessas apresentaes. Essa foi uma grande

    oportunidade de trabalho para muitos msicos da poca.

    Segundo a pesquisadora e escritora Neyde Veneziano:

    6HPHQUHGRQRQtYHOGRWH[WRHGRHVSHWiFXORDQRYDUHYLVWDVHHTXLOLEUDULD

    entre as msicas, as coreografias, a iluminao, o figurino e os esquetes, os

    monlogos, as rbulas cmicas de cortina. Um formato de equilbrio e de

    transio, no qual a fantasia ainda no superaria a crtica da atualidade. Por

    isso, 1925 um ano rico em experincias. Um ano em que o pblico assistiu

    entusiasmado s novidades sem que se perdessem a graa e o humor tpico

    brasileiro. O desvio para o luxo e para um maior apelo sensualidade no

    roubaria revista sua relao com a atualidade e com as crises sociais,

    DLQGD

    A popularidade do maxixe chegou at os msicos mais tradicionais que

    possuam conhecimentos formais, permitindo assim escrever, editar e comercializar

    suas obras atravs das partituras; mas, para isto acontecer, esta nova dana precisou ser

    rebatizada.

    Por uma questo de mercado, um dos nomes escolhidos para substituir o maxixe

    IRL tDQJR EUDVLOHLUR (VVD GHQRPLQDomR HUD PDLV DFHLWiYHO XPD YH] TXH R WDQJR

    argentino era difundido nos nobres sales e, assim, mais assimilado pelas elites. Um

    fato relevante dessa circunstncia que tanto o tango argentino como o tango brasileiro

    tiveram origem na habanera, msica cubana.

    $QWHVGHPDLVQDGDpSUHFLVRTXHVHGLVWLQJDRJrQHURPXVLFDOWDQJRGRVHX

    correspondente coreogrfico, o maxixe. Embora hoje em dia o vocbulo

    referia-se msica popular dos argentinos, o tango foi no Brasil um dos

    Gneros musicais que mais se prestou nacionalizao da nossa msica

    popular. Originrio da Espanha precisamente da Andaluzia chegou na

    Amrica na dcada de 1860. Na Argentina sofreu fuso com a habanera

    cubana e a milonga local, nacionalizando-se cedo, e nas primeiras dcadas

    deste sculo lanava-se internacionalmente como tango argentino. No Brasil,

    onde teria chegado na mesma poca, ele fundiu-se tambm com a habanera

  • 26

    cubana e mais a polca e o lundu. Na dcada de 1870 j comeava a exibir

    evidentes sinais de nDFLRQDOLGDGHEUDVLOHLUDDINIZ, 1991: 145-146)

    $ H[SUHVVmR 7DQJR EUDVLOHLUR HUD PDLV UHVSHLWDGD WDPEpP SRUTXH R WDQJR

    argentino comeava a ganhar fama mundial, com sua coreografia extremamente extica

    e sensual.

    Um fato curioso que marcou a influncia do maxixe na sociedade brasileira

    aconteceu em 1914, com o ento presidente da repblica Hermes da Fonseca; ao receber

    convidados para uma grande festa no Palcio do Catete sua jovem esposa, Nair de Tef,

    cartunista e aprendiz de violo, teve a ousadia de tocar o maxixe Gacho (Corta-jaca),

    de Chiquinha Gonzaga, ao violo, e esse acontecimento ajudou a propagar ainda mais a

    polmica do maxixe:

    GAC H O (Corta-jaca)

    Neste mundo de misrias quem impera quem mais folgazo

    quem sabe cortar jaca nos requebros De suprema, perfeio, perfeio

    Ai, ai, como bom danar, ai! Corta-jaca assim, assim, assim

    Mexe com o p! Ai, ai, tem feitio tem

    Corta meu benzinho assim, assim! Esta dana buliosa, to dengosa

    Que todos querem danar No h ricas baronesas nem marquesas 4XHQmRVDLEDPUHTXHEUDUUHTXHEUDU

    Foi o bastante para seu adversrio poltico, senador Rui Barbosa, escrever um

    discurso inflamado e repleto de preconceitos com relao execuo da msica,

    intensificando essa rivalidade poltica; este fato foi to contundente que se transformou

    em um documento histrico:

    Uma das folhas de ontem estampou em fac-smile o programa da recepo

    presidencial em que, diante do corpo diplomtico, da mais fina sociedade do

    Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao pas o exemplo das maneiras mais

    distintas e dos costuPHVPDLVUHVHUYDGRVHOHYDUDPR&RUWD-MDFD altura de

  • 27

    uma instituio social. Mas R &RUWD-MDFD GH TXH eu ouvira falar h muito

    tempo, o que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a

    mais grosseira de todas as danas selvagens, irm gmea do batuque, do

    cateret e do samba. Mas nas recepes presidenciais R &RUWD-MDFD p

    executado com todas as honras da msica de Wagner, e no se quer que a

    conscincia deste pas se revolte, que as nossas faces se enrubesam e que a

    PRFLGDGHVHULDApud SANDRONI, 2001: 89)

    O discurso, alm de fazer parte de uma disputa poltica (pois Ruy Barbosa

    perdera as eleies presidenciais para o ento presidente Hermes da Fonseca), tambm

    exerceu claramente o papel de discurso oficial, ou discurso das elites. O autor, ao se

    referir msica executada no evento, demonstra preconceito com relao msica

    popular, referindo-se a ela com absoluto desprezo e reforando, assim, o pensamento

    das elites dominantes com relao valorizao das msicas eruditas dos grandes

    compositores europeus.

    O violo, na poca, era considerado pelas elites como smbolo de ociosidade e

    vagabundagem, e isso perdurou at o incio da Bossa Nova (1958). Lima Barreto

    escreve sobre o preconceito com relao ao violo em sua obra, Triste f im de Policarpo

    Quaresma:

    Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhana. Um violo em casa to

    respeitvel! Que seria?

    E, na mesma tarde, urna das mais lindas vizinhas do major convidou uma

    amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de c para l, a palmilhar o

    passeio, esticando a cabea, quando passavam diante da janela aberta do

    esquisito subsecretrio. No foi intil a espionagem. Sentado no sof, tendo

    ao laGR R WDO VXMHLWR HPSXQKDQGR R SLQKR na posio de tocar, o major,

    DWHQWDPHQWH RXYLD 2OKH PDMRU DVVLP. E as cordas vibravam

    vagarosamente a nota feridaHPVHJXLGDRPHVWUHDGX]LDeUpDSUHQGHX"

    Mas no foi preciso pr na carta; a vizinhana concluiu logo que o major

    aprendia a tocar violo. Mas que coisa? Um homem to srio metido nessas

    PDODQGUDJHQVBARRETO, 1976: 10)

    Por todos esses fatos citados anteriormente, as partituras hoje musicalmente

    consideradas como maxixe eram impressas com as mais diversas e criativas

    nomenclaturas, expressando uma enorme possibilidade de combinaes como: polca,

  • 28

    polca-lundu, polca-habanera, polca-choro, tango-lundu, tango-batuque, tanguinho e

    YiULDVRXWUDV3RUWDQWRWDQJR-EUDVLOHLURIRLXP dos nomes utilizados para definir esse

    estilo de msica que estava sendo composto na segunda metade do sculo XIX.

    Carlos Sandroni explica que o compositor Ernesto Nazareth foi um exemplo

    desta circunstncia:

    1mR p GH VH HVSDQWDU TXH1D]DUHWKQmR JRVWDVse de ver suas composies

    chamadas assim quando se sabe que, por volta, em 1886, o vocbulo servia,

    HQWUHRXWURVILQVpara designar qualqXHUFRLVDUXLPGHPiTXDOLGDGH0DV

    FRPRSUHWHQGHUTXHno teria jamais entrevisto a significao afro-brasileira

    de suas composies um autor cuja primeira pea leva a indicao de gnero:

    polca-lundu, e do qual uma das obras-SULPDV VH FKDPD %DWXTXH? O

    verdadeiro enigma em torno das indicaes de gnero de Nazareth antes a

    unanimidade da crtica em negar-lhes a UHDOLGDGH(2001:79)

    importante esclarecer que a partitura era uma das melhores formas de

    divulgao da msica nesta poca, e ajudava no sustento dos msicos, que muitas vezes

    faziam demonstraes de suas obras em casas especializadas com o intuito de vend-las;

    o compositor e pianista Ernesto Nazareth, novamente citado, foi um deles.

    Voltando a questo do maxixe, como j foi dito ele nasce como dana popular

    urbana e, aos poucos, se transforma em msica instrumental e tambm em cano,

    muito difundida pelo teatro de revista. Muitos elementos musicais do maxixe esto

    tambm presentes no choro; a diferena est na sua funo social: maxixe era msica

    para se danar, e o choro no trazia esta mesma inteno.

    Os dilogos estabelecidos entre essas vrias danas europeias e a msica urbana

    da populao em geral e de suas interpretaes estavam repletos de caractersticas

    prprias, resultando cada vez mais em um som autntico e original que, gradativamente,

    foi tomando forma at ser sistematizado como gnero musical chamado at os dias

    DWXDLVGHFKRUR

    $SDODYUD FKRUR designou a princpio um agrupamento instrumental que

    surgiu por volta de 1870, ao mesmo tempo que a dana maxixe, portanto. Sua

  • 29

    formao clssica era flauta, cavaquinho e violo, e seu repertrio inicial,

    danas de provenincia europia, sobretudo a polca, mas tambm a

    schottisch, a valsa e algumas outras. Estas, como vimos, tinham coreografia

    de par enlaado; de fato, a criao do choro acompanhou, do ponto de vista

    musical, o processo a que nos referimos atrs, de adoo pelas camadas

    populares de novas maneiras de danar. Os conjuntos denominados choros

    estiveram entre os principais artfices das mudanas rtmicas sofridas pela

    polca, que analisamos atravs dos registros que chegaram pelas partituras

    para piano. Mais tarde, a palavra choro passar a designar as composies

    que eram tocadas por estes gruposIbidem: 103)

    Os chores foram os maiores responsveis pela construo desse gnero

    instrumental. Esta transformao foi acontecendo com o passar dos anos e com a prtica

    na execuo das msicas. Dessa forma, cada grupo transmitia o que tinha aprendido, e

    muitas vezes transformado, para outros instrumentistas e outros grupos.

    Mas havia msicos chores que possuam formao diferenciada, e que tinham

    suas msicas editadas atravs de partituras; alguns se tornaram to fundamentais para a

    histria da nossa msica que preciso cit-los, para uma melhor compreenso desse

    tema.

  • 30

    I . 3 - Chores: alguns perfis biogrficos

    Joaquim Antonio da Silva Callado Jnior (1848 1880)

    O flautista Callado foi uma das primeiras referncias para a msica popular

    urbana na cidade do Rio de Janeiro. Sua vida e obra se deram na segunda metade do

    sculo XIX, exatamente no incio da formao dos grupos de chores.

    Filho de um msico semiprofissional, teve o privilgio de ter suas primeiras

    noes musicais em casa; seu pai, alm de tocar, dava aulas de msica, e isto facilitou a

    educao musical do menino, que j apresentava grande habilidade para a compreenso

    da linguagem musical e execuo do instrumento. A pesquisadora e escritora Edinha

    Diniz, em sua biografia sobre Chiquinha Gonzaga, cita dados relevantes da vida musical

    do flautista Callado:

    $OpPGHHYLGHQWHHUDUDLQWXLomRDWDUHIDH[HFXWDGDSRUHOHparece-nos que

    foi facilitada por algumas condies especiais. Chegou a professor do

    conservatrio de msica, o que lhe conferia renome e prestgio pessoal.

    Como mestio sua memria cultural registrava a herana sonora da msica

    sincopada e por ltimo teve uma formao musical facilitada por ser filho de

    XPSURIHVVRUGHP~VLFDHFKHIHGHEDQGD',1,=

    Quando jovem, Callado teve a oportunidade de estudar com o professor de maior

    reputao de sua poca, o maestro Henrique Alves de Mesquita3 que, direta ou

    indiretamente, foi responsvel pela formao de vrios msicos da gerao da segunda

    metade do sculo XIX. 3 $QGUp'LQL]FRPHQWDVREUHDLPSRUWkQFLDGR0DHVWUR+HQULTXH$OYHVGH0HVTXLWD+Hnrique, a quem a nossa historiografia ainda precisa fazer justia devido a sua importncia no meio cultural carioca, virou referncia para o quarteto inaugural da msica popular instrumental no Rio: Callado, Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazar (sic.). S para o leitor avaliar o papel de Henrique na segunda metade do sculo XIX, foi em sua casa que Chiquinha Gonzaga se inspirou, comps e tocou a sua primeiUDPHORGLDGHVXFHVVRDSROFD$WUDHQWH; foi com ele que Anacleto teve aula no Conservatrio de Msica e se apresentou publicamente nos teatros do Rio; foi com ele ainda que Callado aprendeu regncia e composio. O pianista Ernesto Nazar, realando sua importncia, fez para ele o tango Mesquitinha. O maestro foi o primeiro msico do Imprio a ir como bolsista para a Europa, em 1857 ',1,=

  • 31

    Mas, um diferencial significativo na formao musical do flautista foi frequentar

    as rodas populares dos chores; isso fez com que sua formao fosse construda de

    forma hbrida, com a prtica da leitura musical e a criatividade expressa na liberdade

    do improviso.

    O termo hibridizao, segundo Canclini, contribui melhor para a compreenso

    desse fenmeno:

    &RQVLGHUR DWUDHQWH WUDWDU D KLEUidao como um termo de traduo entre

    mestiagem, sincretismo, fuso e os outros vocbulos empregados para

    designar misturas particulares. Talvez a questo decisiva no seja estabelecer

    qual desses conceitos abrange mais e mais fecundo, mas, sim, como

    continuar a construir princpios tericos e procedimentos metodolgicos que

    nos ajudem a tornar este mundo mais traduzvel, ou seja, convivvel em meio

    a suas diferenas, e a aceitar o que cada um ganha e est perdendo ao

    hibridar-VH[[[YLLL

    Dispondo de todo esse contedo musical, Callado organizou formalmente um

    grupo que se transformaria em referncia para a formao dos primeiros grupos de

    chores da histria. O nome dado ao grupo seria posteriormente o nome dado ao gnero

    PXVLFDOFKRUR&KRUR&DULRFDWDPEpPFRQKHFLGRFRPR2&KRURGR&DOODGR

    Sobre a importncia de Callado, o escritor Andr Diniz escreve:

    $ IDPLOLDULGDGH FRP R DPELHQWH PXVLFDO GD pSRFD VRPDGD DR

    aprimoramento de sua arte, vai despertar no esprito do nosso flautista uma

    linguagem muito particular, possibilitando que ele se torne um dos msicos

    mais populares da cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do sculo

    XIX. E foi como instrumentista, compositor e organizador dos primeiros

    grupos de choro da cidade que Joaquim Callado se tornou conhecido da

    SRSXODomRFDULRFD: 23)

    Como foi citado anteriormente, o grupo tinha em sua formao bsica uma

    flauta, dois violes e um cavaquinho; o solista, alm de ler partitura, tambm podia

  • 32

    improvisar, sendo acompanhado pelos outros instrumentistas que tambm

    improvisavam com habilidade, tocando DP~VLFDGHRXYLGR LVWRFULDYDXPDPELHQWH

    de aprendizagem mtua entre os integrantes do grupo.

    Joaquim Callado foi reconhecido como um dos maiores flautistas de sua poca;

    sua formao musical, aliada habilidade do improviso, lhe garantiu notoriedade em

    todos os ambientes musicais. Tambm se destacou como compositor e criou umas das

    obras que se transformou em referncia para o repertrio dos chores: F lor amorosa.

    Foi contemplado com a comenda (condecorao ou distino de ordem

    honorfica 2UGHP GD 5RVD SUHPLDomR HVSHFLDO GR 6HJXQGR5HLQDGR -1889),

    concedida pelo ento Imperador D. Pedro II.

    Outro acontecimento relevante foi Callado ser o responsvel pela aceitao da

    pianista e compositora Chiquinha Gonzaga no meio musical; esse fato possibilitou o

    livre acesso da musicista nos mais variados ambientes artsticos e intelectuais,

    acontecimento raro devido s restries impostas para as mulheres nesta poca.

    Vtima de meningite, Callado viveu at os trinta e dois anos de idade; mas sua

    obra continua sendo uma das principais referncias para o estudo da msica popular

    brasileira.

    F rancisca Edwiges Gonzaga (1847 1935)

    Passou a vida sendo conhecida como Chiquinha Gonzaga e, assim como

    Joaquim Antonio Callado, suas obras foram de extrema importncia para a formao da

    msica popular urbana.

    Filha de um militar de grande patente com uma escrava recm-liberta, Chiquinha

    Gonzaga quase no foi reconhecida e batizada; porm, foi criada e educada conforme

    todas as formalidades exigidas para uma sinhazinha da poca, recebendo aulas de

    francs e piano. Todo esse cuidado em sua formao tinha como objetivo um casamento

    bem arranjado pelo pai da noiva. No tardou para que os planos do pai se

    concretizassem, e Chiquinha se casou com um bem sucedido empresrio, Jacinto do

    Amaral.

  • 33

    As imposies sofridas pelas mulheres so descritas pela bigrafa Edinha Diniz:

    branca, a desconfiana e a opresso impunham um regime de

    semiclausura, tornando-D XPD HVFUDYD GR ODU Os bordados, os doces, a

    conversa com as negras, o cafun, o manejo do chicote, e aos domingos uma

    visita Igreja, eram todas as distraes que o despotismo paternal e a poltica

    conjugal permitiam s moas e s inquietas espRVDV',1,=

    Nos cinco anos que se sucederam ao casamento, o marido tentou reprim-la de

    todas as maneiras possveis; ao tentar enquadr-la nos padres da sociedade vigente, a

    probe de tocar qualquer instrumento, impondo um distanciamento absoluto msica.

    Chiquinha ento decide separar-se, iniciando um longo processo de afirmao como

    compositora e instrumentista. Edinha Diniz escreve sobre sua trajetria:

    1R FDVR GH &KLTXLQKD *RQ]DJD d-se um fato indito at ento: ela

    transforma o piano de mero ornamento em um meio de trabalho e

    instrumento de libertao. A tarefa exigia talento, coragem e capacidade de

    trabalho. Isso no assustava. Sua personalidade at ento esmagada dava

    OXJDUDJRUDDXPDRXWUDDXW{QRPDHDXGDFLRVDIbidem: 91)

    Rejeitada pela famlia e discriminada pela sociedade, Chiquinha Gonzaga

    gradativamente conseguiu se estabelecer como professora de piano e pianista, iniciando

    sua carreira no grupo do amigo e flautista Joaquim Antonio Callado.

    Apesar de ser uma pianista com formao erudita, Chiquinha Gonzaga foi

    denominada pianeira:

    2 SLDQLVWD GH FKRUR GHVVH SHUtRGR SDVVRX D KLVWyULD FRPR SLDQHLUR,

    executante de formao precria mas intrprete de bossa. O importante era o

    EDODQoR exigido. Foi o primeiro profissional de piano ligado ao choro:

    SULPHLUDSLDQHLUDHSULPHLUDFKRURQDIbidem: 95)

  • 34

    Passou a vida lutando pela emancipao da mulher - alm de outras causas

    polticas, como a libertao dos escravos e a proclamao da repblica. Entre lutas e

    desafios, conquistou o direito de assinar seu nome como autora de trilhas musicais para

    o j citado teatro de revista, recusando a hiptese de ter seu nome substitudo por um

    pseudnimo masculino. Ainda, Chiquinha Gonzaga foi reconhecida como a primeira

    maestrina da nossa histria.

    Um dos fatos musicais mais relevantes de sua carreira aconteceu no ano de

    1899, quando o bloco carnavalesco Rosas de Ouro encomendou uma msica para

    competir no carnaval daquele ano. Chiquinha, ao assistir ao ensaio do bloco, se inspirou

    no ritmo dos passos da dana e comps uma de suas mais famosas composies: Oh

    Abre Alas!

    Pioneira, revolucionria e inovadora a compositora, mesmo sem inteno, criou

    a primeira marcha-rancho (princpio das marchinhas) 4, antecipando o gnero em mais

    de dez anos.

    Abre Alas

    abre alas Que eu quero passar

    abre alas Que eu quero passar

    Eu sou da Lira No posso negar Eu sou da Lira

    No posso negar abre alas

    Que eu quero passar abre alas

    Que eu quero passar Rosa de Ouro

    quem vai ganhar Rosa de Ouro

    quem vai ganhar.

    4 6HJXQGRRKLVWRULDGRU$QGUp'LQL])RLQRVDJLWDGRVDQRVTXHDPDUFKDVHIL[RXFRPRXPGRVprincipais gneros musicais executados durante a folia. Dada sua ligao direta com os ranchos, ela ficou conhecida primeiro como marcha-rancho. Cadenciado, com encaixe perfeito para a evoluo pelas ruas, o gnero surgiu porque aqueles grupos musicais precisavam diferenciar sua apresentaes das dos blocos GRVVXMRV

  • 35

    Outra luta empreendida pela compositora foi a criao da SBAT (Sociedade

    Brasileira dos Autores Teatrais); alm de ter sido uma das fundadoras, lutou muito pelos

    direitos de autoria de uma obra, questo extremamente polmica e relevante at os dias

    atuais.

    Ao longo de sua vida, Chiquinha comps muitos sucessos, principalmente para o

    teatro de revista, que teve importante contribuio para sua vida financeira, e foi um

    meio muito importante para a divulgao de sua obra.

    Chiquinha Gonzaga, ao recusar se enquadrar nos padres de comportamento da

    sociedade vigente, deixou de ser uma sinhazinha obediente e comportada para se

    transformar em uma mulher emancipada e revolucionria.

    Anacleto de Medei ros (1866 1934)

    Filho bastardo de uma escrava liberta, Anacleto nasceu na Ilha de Paquet.

    Estudou em uma escola para meninos carentes, internato onde passou a infncia. Foi

    nesta escola que iniciou seus estudos musicais. Desde cedo, demonstrou muita

    habilidade para tocar instrumentos de sopro e, por fim, optou pelo clarinete.

    A experincia adquirida com vrios instrumentos de sopro lhe proporcionou o

    conhecimento necessrio para formao de bandas, e tambm para arregimentar

    msicos para esta formao.

    Anacleto organizou e dirigiu a Banda do Corpo de Bombeiros e, com muito

    trabalho e disciplina, conquistou lugar de destaque, tornando-se uma referncia do

    gnero. Essa banda se destacava pela desenvoltura rtmica e musicalidade na execuo

    de obras arranjadas que eram, muitas vezes, escritas pelo prprio maestro.

    Um ponto relevante o fato de Anacleto chamar os msicos chores para fazer

    parte de sua banda; esses msicos, como j foi visto anteriormente, eram instrumentistas

    que liam partituras com facilidade e improvisavam muito bem, alm de possurem a

    vivncia rtmica prpria dos grupos de chores.

  • 36

    A ponte que Anacleto realizou entre a cultura das bandas e a das rodas de

    Choro enriqueceu enormemente ambas as manifestaes. Por um lado, a

    Banda do Corpo de Bombeiros conseguiu um resultado nico em termos de

    coeso e musicalidade, por outro, a linguagem chorstica se propagou como

    HPQHQKXPRXWURPRPHQWR&$=(6: 32)

    A sonoridade resultante do trabalho da banda era excepcional, pois os

    instrumentistas - cuidadosamente escolhidos pelo maestro - traziam dos grupos de

    chores uma prtica rtmica caractersticaHDH[HFXomRPXVLFDOHUDUHSOHWDGHJLQJD

    GH PROKR R TXH UHVXOWDYD HP LQWHUSUHWDo}HVPDLV OLYUHV HPDLV RULJLQDLV SDUD XPD

    banda marcial.

    As gravaes mecnicas do Brasil tiveram incio nos primrdios do sculo XX, e

    D&DVD(GiVRQ 5 foi a gravadora pioneira nos registros de msica na cidade do Rio de

    Janeiro. Todo o processo de gravao era muito rudimentar, e a captao do som era um

    ponto delicado, pois quanto maior o volume da execuo da msica, melhor era o

    resultado da gravao6.

    Andr Diniz afirma a importncia das gravaes:

    O principal meio de preservao da obra de um compositor consiste na

    possibilidade de ela ser registrada durante os anos. J dissemos que, nos

    5 Em homenagem a Thomas A. Edison, deu ao seu estabelecimento o nome de Casa Edison. Mais tarde GHFODURX desde que me mudei para a rua do Ouvidor, dei o nome Casa Edison a minha casa, em homenagem ao inventor do fongrafo, no me preocupando se era legal o meu procedimento, e desde que os Davidson Pullen ET Cia. comearam a importar os fongrafos e cilindros da National Phonograph Co., todos caixes vinham com a marca F.F./Casa Edison isWRGXUDQWHTXDWURDQRVHSRXFR Coincidindo com o incio do sculo XX, comeou a se estabelecer estreita relao entre a Casa Edison e a cultura popular. Na poca, ningum se deu conta da importncia que isso teria futuramente. Era uma atividade puramente comercial e Figner, por toda a vida, no se props a nada disso. (FRANCESCH, 2002: 51) 6 A Banda do Corpo de Bombeiros soava com uma maciez de interpretao inesperada para uma banda militar e, ao contrrio das outras, com surpreendente rendimento tcnico de gravao. A escolha dos msicos, os tipos de instrumentos empregados e a disposio deles na sala de gravao talvez sejam o segredo desse sucesso. A limitao fsica da sala, apenas um puxado nos fundos da loja na rua do Ouvidor 105, com pouco mais de 5 metros de largura por menos do dobro de comprimento, no permitia mais do que 8 a 12 figuras. O nmero dos elementos determinava o tipo de arranjo a ser feito, e o toque marcial que eles produziam supria as necessidades dos tcnicos estrangeiros, que operavam os precrios equipamentos de gravao; essa sonoridade de metais permitia uma qualidade, no rendimento final, melhor do que as gravaes feitas com cantores acompanhados de piano e conjuntos de flauta, violes e cavaquinho. (Ibidem: 118)

  • 37

    primrdios da Casa Edson, o compositor mais gravado pela Banda do Corpo

    GH%RPEHLURVHUDRSUySULR$QDFOHWRGH0HGHLURV',1,=: 75)

    As bandas eram o tipo de grupo mais adequados para a captao destes registros,

    por serem exatamente a unio de vrios instrumentos de sopro que dispunham de uma

    potncia sonora ideal para estas primeiras gravaes. Por esta razo, temos muitos

    registros de gravaes da Banda do Corpo de Bombeiros, regidas pelo maestro Anacleto

    de Medeiros.

    O maestro tambm se destacou pelas composies de sua autoria, que

    demonstram claramente a transio da polca europeia para o maxixe brasileiro; dois

    exemplos que podem ilustrar esta observao so a polca Medrosa e o maxixe O

    Bomio.

    E rnesto Nazareth (1863 1934)

    Ainda menino, Ernesto Nazareth teve suas primeiras aulas de piano em casa;

    desde ento, o pianista - que teve como primeira formao o estudo da msica erudita -

    nunca mais deixou de tocar piano. Comeou a compor aos quatorze anos de idade e

    seguiu compondo por mais de cinquenta anos.

    Estudou profundamente as obras de compositores europeus, e isso lhe deu uma

    grande compreenso da tcnica do piano; ainda, passou a maior parte de seu tempo

    estudando, com o objetivo de se tornar um concertista.

    Em suas composies possvel observar seu profundo conhecimento pianstico,

    somado aos sons populares que estavam sendo executados e ouvidos na cidade do Rio

    de Janeiro. Nazareth conseguiu estabelecer dilogos com os estudos dos grandes

    compositores europeus, como Chopin - que era sua especialidade - e os diversos sons

    que vinham das ruas, para criar uma msica autntica e original; suas obras so de

    difcil execuo, mas a sonoridade muito acessvel.

  • 38

    Sua obra possui caractersticas de profundo conhecimento musical, mesclado a

    ritmos populares; foi um compositor que conseguiu traduzir, atravs de sua obra, as

    riquezas culturais que borbulhavam pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

    $R FRQWUiULR GRV FROHJDV 1D]DUHWK QmR FRPS{V VLPSOHVPHQWH WDQJRV

    polcas, schottisches. Ele captou o esquema rtmico-meldico criado pelos

    chores enfim, a alma do choro e o levou para o piano, estilizando-o de

    forma magistral. E como era grande compositor, enriqueceu-o com belas

    melodias. Uma caracterstica peculiar de sua obra a localizao na fronteira

    do popular cRP R HUXGLWR 8P WDQJR FRPR R %UHMHLUR, por exemplo,se

    executado ao piano como o autor o escreveu, uma pea refinada, digna de

    qualquer sala de concerto. Se, entretanto, interpretada por um msico

    popular, passa a ser uma composio chorstica autntica, retornando s

    RULJHQV6(9(5,$12: 39)

    No conseguiu ser concertista, e mesmo sendo um compositor reverenciado em

    sua poca, Nazareth passou a vida tendo muitas dificuldades financeiras, dividindo-se

    entre tocar em recepes das elites e salas de cinemas, alm de ser pianista

    demonstrador em casas de piano.

    2SUySULR1D]DUHWKQRPHRXDPDLRULDGHVXDVREUDVFRPR7DQJR%UDVLOHLUR-

    como j foi citado anteriormente; essa era uma exigncia para a comercializao de

    partituras em sua poca.

    A vida de Nazareth foi acompanhada por diversos problemas de sade; desde a

    perda da audio de um ouvido na infncia, que o perturbava constantemente, at

    problemas psquicos graves, que se estenderam at sua morte em uma casa de repouso

    para doentes psiquitricos.

    Suas obras so executadas em diversos pases, e suas msicas aplicadas como

    estudos para piano, alm de ser repertrio obrigatrio para os estudantes de choros.

  • 39

    Pixinguinha/ A lfredo V iana da Rocha F ilho (1897 1973)

    Pizindin era como sua prima Santa o chamava7, e Pixiguinha foi o apelido

    adquirido depois das marcas herdadas por uma epidemia de varola; a doena deixava

    marcas na pele que eram chamadas de bexiga, e bixiguinha seria um dos codinomes que

    com o tempo resultaria em seu apelido definitivo. De acordo com o depoimento do

    prprio Pixinguinha para o MIS (em entrevista para o Museu da Imagem e do Som, em

    1966), segundo o autor Srgio Cabral, dessa combinao de nomes com fonemas

    parecidos, surgiu o apelido que o consagraria como um dos maiores compositores de

    toda nossa histria.

    Pixinguinha um dos raros exemplos de msicos que possuem uma srie de

    caractersticas especiais, difceis de serem encontrada em um s artista. Foi exmio

    flautista, compositor reconhecidamente talentoso, arranjador autodidata, possuidor de

    uma tcnica incomparvel, e maestro.

    20DHVWUR*XHUUD3HL[HHPHQWUHYLVWDFRQFHGLGDDR-RUQDO27HPSRGH6mR

    Paulo no ano de 1952, declarou:

    &LWDUHLXPD~QLFDILJXUDTXHSRUVLUHSUHVHQWDWUrVFODVVHs de intrpretes: o

    orquestrador, o instrumentista e o compositor, segundo a ordem de influncia

    de suas atividades. Refiro-me a Pixinguinha. Realmente, este artista deve ser

    encarado como um ponto de partida a ser seguido pelos orquestradores

    brasileiros. Seus trabalhos nessa especialidade, ainda, quando realizados para

    orquestra de jazz, deixam transparecer valores tpicos da nossa msica

    popular, seja em harmonia, contraponto, ritmo e feio regional. Tanto assim

    que, apesar do menosprezo daqueles tais modernistas que o acham passadista,

    Pixinguinha considerado, e com muita razo, o nico orquestrador que d

    IRUoDUHJLRQDOjQRVVDP~VLFD3(,;(Apud SILVA e OLIVEIRA FILHO,

    1998: 251)

    7 $SHVDU GH H[LVWLU XP VHQVR FRPXP TXH DWULEXL HVVH DSHOLGR D DYy DIULFDQD GH 3L[LQJXLQKD IRUDPHQFRQWUDGDVRXWUDVIRQWHVSDUDVXDRULJHP$OpPGLVVRRDSHOLGRQmRWLQKDVLGRLQYHQWDGRSRUTXDOTXHUdas avs. Tinha sido atribudo ao menino por uma prima, Eurdice, esposa de Antonio Macedo Costa. Essa prima mais conhecida como Santa, era irm de Alzira (Cabocla), casada com Honrio Cavaquinho, que ainda vivo em 1977, com mais de noventa anos, confirmou o que disseram as irms de Pixinguinha: foi a sua cunhada Santa, que deu o apelido Pizindin ou Pizinguim ao filho do seu AlfredR%$5%2=$da SILVA e OLIVEIRA FILHO, 1998: 11-12)

  • 40

    Sua casa era conhecida como Penso Viana e sempre eram organizados saraus,

    animando as noites cariocas no incio do sculo XX, e reunindo muitos msicos, para o

    deleite dos participantes. Seu pai era flautista amador, e frequentemente proporcionava

    reunies musicais que no tinham hora para acabar; por esta razo, tinha como hbito

    hospedar em sua casa msicos com dificuldades financeiras.

    Srgio Cabral escreve sobre o assunto: 3HQVmR9LDQDou seja, o casaro

    no Catumbi (oito quartos e quatro salas) onde o velho Alfredo da Rocha Viana abrigava

    a famlia e alugava quartos para os amigos msicos como o compositor Sinh Jos

    Barbosa da Silva e o instrumentista e compositor Irineu de Almeida.

    Todo este ambiente colaborou para que o jovem Pixinguinha iniciasse sua

    carreira musical aos sete anos, com o cavaquinho, passando pouco tempo depois para a

    flauta transversal, comprada por encomenda pelo pai, que logo detectou o talento do

    filho.

    Um dos msicos hospedados na penso Viana foi o j citado trombonista Irineu

    Batina, instrumentista responsvel pelas primeiras noes musicais de Pixinguinha.

    Com quatorze anos de idade, Pixinguinha teve seu primeiro emprego

    SURILVVLRQDO VXEVWLWXLQGR R IODXWLVWD 3DVVRV QD FDVD GH FKRSH /D &RQFKD H IRL QR

    JUXSR 3DVVRV GR FKRUR TXH R MRYHP IODXWLVWD WHYH D RSRUWXQLGDGe de mostrar

    publicamente, pela primeira vez, seu talento musical.

    7RFRX QR JUXSR &D[DQJi FRQVWLWXtGR SRU TXLQ]H LQVWUXPHQWLVWDV FXMR

    repertrio era composto por msicas regionais; mas, devido a um pedido de um

    empresrio, o grupo foi reduzido praticamente pela metade para tocar em um cinema:

    DVVLP QDVFHX R JUXSR 2V 2LWR %DWXWDV 8. Destas audies na anti-sala do cinema

    surgiu o convite para tocar em Paris.

    8 Foi o prprio Isaac Frankel que deu o nome de Oito Batutas ao conjunto que, a partir de sete de abril de 1919, passou a tocar no Cinema Palais. O nascimento dos Oito Batutas resultou na morte do Grupo do Caxang, cuja despedida se deu naquele carnaval, tocando na sede dos Tenentes do Diabo, numa das famosas batalhas carnavalescas da Rua Dona Zulmira e num concerto montado em frente ao Clube de So Cristvo. Os Oito batutas apresentaram-se no Cinema Palais com a seguinte formao: flauta, Pixinguinha; violo, Donga; violo e canto, China; cavaquinho, Nlson Alves; violo, Raul Palmieri; bandola e reco-reco, Jacob Palmieri; bandolim e ganz, Jos Alves de Lima, o Zez. (CABRAL, 1997: 44-45)

  • 41

    Foi a primeira viagem de um grupo de choro Europa; nessa viagem, tiveram a

    oportunidade de conhecer e dialogar com muitas culturas diferenciadas pois Paris era,

    na poca, referncia em todo o mundo.

    Pixinguinha trabalhou como arranjador e maestro da gravadora RCA Victor,

    onde inaugurou uma maneira particular e pessoal de fazer esse trabalho.

    Trabalhou a vida inteira tocando, compondo e fazendo arranjos; contudo, teve

    uma vida muito simples e passou por vrias dificuldades; embora tenha sido autor de

    msicas reconhecidas, difundidas e excessivamente gravadas, no conseguiu se

    beneficiar financeiramente com esse fato.

    Srgio Cabral escreve sobre a importncia de Pixinguinha como artista:

    $ VXD SDVVDJHP SHOD P~VLFD SRSXODU EUDVLOHLUD IRL WmR ORQJD TXDQWR

    marcante. Compositor, instrumentista, orquestrador e regente, Pixinguinha

    apontado por quase todos os que mergulham fundo no estudo de nossa

    msica como um dos maiores nomes que ela produziu em todos os tempos.

    Ao mesmo tempo em que criou para as suas necessidades de artista genial,

    foi tambm o inventor de uma linguagem para os outros. Produziu as suas

    obras e alicerou uma cultura. sem dvida, um dos pais da msica popular

    EUDVLOHLUD$VVLPpWDPEpPXPGRVSDLVGDQRVVDQDFLRQDOLGDGH

    Pixinguinha foi pea fundamental para a organizao do choro como linguagem

    e, atravs de suas obras, criou receitas que puderam ser usadas como frmulas para a

    criao do choro.

    O choro s se tornou um gnero consolidado em 1910, com Pixinguinha o

    maior choro de todos os tempos. Na poca de Anacleto, o estilo era

    considerado mais um jeito de tocar os gneros estrangeiros, como a polca, a

    valsa, a quadrilha, o schottish. O flautista Joaquim Callado, tido como o pai

    dos chores e os pianistas Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth foram

    LPSRUWDQWtVVLPRVSDUDDFRQVROLGDomRGRJrQHUR',1,=5-46)

  • 42

    Pixinguinha, ao transitar em diversos campos musicais, deixou como herana

    todo um material que pde ser explorado pelos compositores que surgiram depois de

    sua obra. Um destes compositores o tema desta pesquisa: Waldir Azevedo.

  • 43

    I . 4 Choro: caracter sticas musicais

    Ao tentar descrever qualquer gnero musical, podemos citar algumas

    caractersticas que contribuem para essa definio; no caso, essas caractersticas dizem

    respeito ao choro. Para tanto, se faz necessrio pontuar algumas delas, descrevendo-as,

    com o objetivo de esclarecer questes sobre esse tema. So elas:

    x Forma; x Ritmo; x Modulao; x Anacruse; x Contratempo.

    Com a inteno de identificar essas caractersticas, foram escolhidas algumas

    obras que serviro de exemplos musicais, auxiliando a compreenso deste gnero.

    Forma: Rond9

    Herdada da msica europeia, a forma rond possui trs partes: A B C,

    estabelecendo uma maneira particular de executar a msica.

    Arnold Schoenberg, em seu livro Fundamentos da composio musical, no

    captulo sobre a forma rond, FRQWULEXL SDUD D FRPSUHHQVmR GHVWH WHPD As formas-

    rond so caracterizadas pela repetio de um ou mais temas separados por sees

    contrastantes

    Os choros at o final do sculo XIX possuam trs partes e eram executados da

    seguinte maneira:

    : A :%$&$

    9 Por influncia da msica europia os choros, at o final do sculo XIX, eram compostos em trs partes; porm, a partir do sculo XX, encontramos vrios exemplos de choros compostos em duas partes, como Carinhoso e Lamentos. O autor Henrique Cazes nos confirma este fDWR+DYLDXPFRPSURmisso muito rgido em se criar choros em trs partes num esquema originrio da polca e conhecido havia muito tempo como forma rond. Essa forma em que se toca cada parte e sempre se volta primeira j estava presente em gneros anteriRUHVjSROFD

  • 44

    A parte A executada duas vezes, seguindo para a parte B que, assim como a

    parte anterior, repetida; a msica retorna, ento, para a parte A, sem repetio e segue

    para a parte C, sendo executada com repetio, finalizando com o retorno parte A.

    O pesquisador e escritor Carlos Almada comenta sobre esta forma musical:

    6HPVLPLODUHVHPUHODomRDRXWURVJrQHURVGDP~VLFDSRSXODUDHVWUXWXUDGH

    um choro (e dos outros estilos correlatos, como a polca, o xtis, o maxixe

    instrumental, o tango brasileiro, a valsinha) adota a chamada forma rond. O

    rond uma das mais antigas estruturas utilizadas na organizao de um

    discurso musical. Consiste basicamente numa parte ou tema principal

    (tambm chamado de refro), que sempre retorna aps intervenes

    FRQWUDVWDQWHVGHRXWUDVSDUWHVRXWHPD

    Essa execuo pontuada pelo constante retorno parte A da msica, que o

    tema principal; portanto, comeamos e terminamos em um mesmo ponto, remetendo ao

    nome rond, que seria uma referncia a um crculo ou roda10, onde o princpio e o fim

    se encontram.

    Exemplos de choros que obedecem esta forma:

    F lor Amorosa (J. A. Callado)

    Odeon (Ernesto Nazareth)

    Os oito Batutas (Pixinguinha)

    Ritmo

    O ritmo um elemento fundamental para a construo estrutural de um choro.

    No caso, existem duas questes relevantes para serem observadas:

    1 - Acompanhamento do choro: executado por todos os instrumentos que no

    exercem a funo de solista; no caso de um grupo de choro tradicional, os

    violes de seis e sete cordas, o cavaquinho e a percusso.

    10 'H DFRUGR FRP5RODQG GH &DQGp R URQGy p D FRPSRVLomRPXVLFDO EDVHDGD QD DOWHUQkQFLD GH XPUHIUmRHGH YiULDVFRSODV(VWD IRUPDPXLWRVLPSOHVGHULYDGR URQGyFDQWDGRHGDQoDGRTXHQRVpFXVIII, que servia para acompanhar a roda. Contudo, o princpio mais antigo e corresponde a um LQVWLQWRQDWXUDOGRDPDQWHGDP~VLFDRGDUHSHWLomR&$1'eVG

  • 45

    Ritmos Bsicos:

    2 - A melodia do choro, realizada por instrumentos solistas, como a flauta, o

    clarinete e o bandolim, entre outros.

    Clulas rtmicas musicais recorrentes nas composies de choro:

    Fig.1 Fig.2 Fig.3 Fig.4 Fig.5 Fig.6

    Exemplos: Carinhoso Pixinguinha Fig.1

    Proezas de Slon Pixinguinha Fig.2 e Fig.4

  • 46

    Eu quero sossego K- Ximbinho e Hianto de Almeida Fig.3 e Fig.4

    Carioquinha Waldir Azevedo Fig.5

    Vibraes Jacob do Bandolim Fig.6

    Modulao

    Chamamos de modulao a mudana de tonalidade de uma parte para a outra da

    msica, e a volta para a tonalidade inicial, no caso do choro.

    Segundo o autor Roland de Cand:

    (P OLQJXDJHPFRUUHQWH FKDPD-se modulao passagem de um tom para

    outro no decurso de uma composio musical. Etimologicamente modular

    (modulari de St Agostinho) significa conduzir convenientemente um canto,

    QRPRGRTXHFRQYpPRXSRUH[WHQVmRSDVVDUGHXPPRGRDRXWUR (p. 150)

    O choro comea com um tema principal (A); na passagem para a parte (B),

    ocorre mudana de tonalidade; retorna-se, ento, para a parte (A) e, na passagem para

    parte (C), muda-se para nova tonalidade; por fim, retornamos para A, finalizando a

    msica. Este caminho musical caracterstico do choro.

  • 47

    e WDPEpP FDUDFWHUtVWLFR GR FKRUR XP HVTXHPD KDUP{QLFR JUDYLWDFLRQDO

    (que obviamente tambm deriva dos ronds antepassados) no qual as

    tonalidades das partes B e C so vizinhas da tonalidade central, de A. Com o

    passar do tempo a cristalizao da prtica composicional, a preferncia pelos

    esquemas de relaes de tonalidades entre as partes reduziu-se a um nmero

    EDVWDQWHUHVWULWRGHSRVVLELOLGDGHVALMADA, 2006: 09)

    Na msica Vou Vivendo, de Pixinguinha, a parte A est em F Maior,

    modulando posteriormente, na parte B, para R Menor (relativa menor de F maior); a

    parte A , ento, repetida, e a msica modula na parte C para D Maior (Subdominante

    de F maior); por fim, finalizada na parte A, na tonalidade inicial.

    Anacruse

    A Anacruse se d quando a entrada da msica acontece no tempo fraco, ou seja,

    so tocadas algumas notas que antecedem o tempo forte, tambm denominado como

    cabea do tempo.

    Segundo Carlos Almada, anacruse um recurso de construo meldica bastante

    comum em choros. Em suas pesquisas constatou que os tipos de anacruses em choro so

    em nmero relativamente reduzido (trs no total), sendo alguns mais recorrentes que

    outros. (2006: 61)

  • 48

    Exemplos:

    Brasileirinho Waldir Azevedo

    Cochichando Pixinguinha

    Naquele Tempo Pixinguinha

  • 49

    Contratempo

    Alm da presena marcante da anacruse no incio da msica, o contratempo

    uma questo recorrente na construo de um choro, e comum estar presente em todas

    as partes da msica.

    O contratempo, assim como o prprio nome diz, a utilizao de clulas

    musicais rtmicas que esto fora do tempo forte; esse fato contribui para uma concepo

    musical ritmicamente mais variada e criativa, qual comumente chamada de

    EDODQoRPROKRJLQJD (entre outros nomes) QRMDUJmRPXVLFDOHSURSRUFLRQDXPD

    sensao musical prpria do choro.

    Alguns exemplos musicais de contratempo no choro:

    Vou Vivendo Pixinguinha

    Pedacinhos do Cu Waldir Azevedo

  • 50

    I I - W A L DIR A Z E V E D O : F O R M A O A R T ST I C A 6yDOJXPDVSHVVRDVHVFROKLGDVSHODIDWDOLGDGHGRDFDVRSURYDUDPGDOLEHUGDGHHVTXLYDHGHOLFDGDGD

    vidD Clarice Lispector

    I I . 1 - O M sico

    Waldir Azevedo nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 27 de janeiro de 1923,

    filho nico de uma famlia de classe mdia; seu pai era funcionrio da Light e sua me

    dona de casa.

    Seu primeiro contato efetivo com msica aconteceu pelo interesse na flauta

    tocada por um vizinho; esse fato despertou tanto encantamento em Waldir que ele

    resolveu capturar e vender passarinhos para compr-la e comear a tocar. Mais tarde, o

    jovem Waldir comeou a tocar violo e participar de uma roda de choro com amigos.

    Tudo ocorria de maneira informal, e Waldir Azevedo iniciava sua aprendizagem

    musical pela tradio oral - caminho muito utilizado pelos msicos populares, como j

    foi citado no captulo anterior.

    O escritor Michel de Certeau, em seu livro Cultura no Plural, nos ajuda a relatar

    este processo:

    O cotidiano est semeado de maravilhas, espuma to fascinante, nos ritmos

    prolongados da lngua e da histria, quanto dos escritores ou dos artistas.

    Sem nome prprio, todas as espcies de linguagens do origens a essas festas

    efmeras que surgem, desaparecem e retornam. (1995: 245)

    Uma roda de choro que acontecia frequentemente na vizinhana facilitou o

    primeiro contato com os vrios instrumentos de cordas dedilhadas, possibilitando assim

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    suas primeiras escolhas; seu interesse inicial se deu pelo bandolim e, em seguida, pelo

    violo, at chegar ao violo-tenor11.

    Este um instrumento de quatro cordas inventado e difundido pelo grande

    instrumentista Garoto12 (Augusto Anbal Sar