UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
O CAVAQUINHO NA OBRA DE WALDIR AZEVEDO
ANA CLAUDIA CESAR
ORIENTAO: PROF. DR. ARNALDO DARAYA CONTIER
SO PAULO
2011
C421c Cesar, Ana Claudia O Cavaquinho na obra de Waldir Azevedo / Ana Claudia Cesar So Paulo, 2010 126 f. : il. ; 30 cm
Dissertao (Mestrado em Educao, Arte e Histria da Cultura Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2010. Referncias bibliogrficas: f. 113-116.
1. Msica urbana. 2. Choro. 3. Cavaquinho. 4. Azevedo, Waldir. I. Ttulo.
CDD 784.1981
2
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
O CAVAQUINHO NA OBRA DE WALDIR AZEVEDO
A N A C L A UDI A C ESA R
DISSERTAO APRESENTADA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PARA A OBTENO
DO TTULO DE MESTRE EM EDUCAO, ARTE E HISTRIA DA CULTURA
O RI E N T A O: PR O F . DR. A RN A L DO D A R A Y A C O N T IE R
SO PAULO 2011
3
A G R A D E C I M E N T OS
In memorian
minha me, Diva Raga Cesar,
por ter me ensinado a ser guerreira e ter conscincia e reverncia ao meu talento.
4
Bolsa CAPES e a reserva tcnica do Mack-pesquisa, que contriburam para a realizao desse trabalho de pesquisa. Arnaldo Contier, meu orientador, por indicar o caminho a ser trilhado. Todos os meus professores do Mackenzie, que sempre me apoiaram e me respeitaram. Em especial a Professora Elcie Masini, por me ensinar a acreditar em minhas ideias. Alceu Maia, amigo e cavaquinista. Dilmar Miranda, pela ateno especial. Camila Bomfim, pela reviso atenta e especial. Paola Pichersky e Cris Machado, pelo incentivo e fora constante. Ademir e Dulclia Buitoni, pelo carinho e pelo Braguinha. Ana Cristina, pela amizade incondicional. Toda minha famlia, que sempre est presente em minhas batalhas e conquistas. Em especial aos meus tios Roberto Penteado e Ana Maria Viola, pela construo da minha auto-estima. Minha irm de todas as horas Ana Paula Cesar, e meu sobrinho Henrique Cesar, pela sua inteligncia, criatividade e generosidade. Minha prima sbia e guru, Letcia Penteado. Rosana Bergamasco, pelas revises, transcries musicais e todo apoio dedicado a mim e ao trabalho.
5
R ESU M O
Esse trabalho procura descrever o caminho do instrumento cavaquinho como
pea fundamental na formao do choro como gnero musical; alm disso, a pesquisa
expe como o compositor e instrumentista Waldir Azevedo conseguiu transformar o
cavaquinho de instrumento acompanhador em instrumento solista, atravs da criao e
execuo de suas obras.
Para isso foi feita, inicialmente, uma abordagem histrica sobre o choro e uma
pesquisa bibliogrfica sobre Waldir Azevedo. Foram selecionadas quatro obras do
autor, consideradas de fundamental relevncia para este trabalho, e foi realizada uma
anlise musical para suas interpretaes ao cavaquinho. Atravs dessa anlise, foi
possvel perceber uma metodologia especfica utilizada por Waldir Azevedo para a
execuo e construo de suas obras.
Palavras-chave: msica urbana; choro; cavaquinho; Waldir Azevedo.
6
A BST R A C T
This work intend to describe the way that the musical instrument named
cavaquinho took as fundamental piece at the formation of the choro as a musical gender.
Besides, this research shows how the composer Waldir Azevedo transformed the old
way of the cavaquinho, an instrument used to accompany to an instrument that could be
(played) solo.
Initially an approach was done about the history of the choro and a bibliographic
research about Waldir Azevedo. Four pieces of this author were selected for this work
and also an attentive musical analysis of his interpretations playing the cavaquinho was
done. Through this, it was possible to realize the specific methodology used by him to
play and to build his works.
K ey words: urban music, choro, cavaquinho, Waldir Azevedo.
7
SU M RI O
IN T R ODU O ................................................................................................................ 8 I - OS C H O R ES E O C H OR O ....................................................................................... 15
I. 1 Abordagem Histrica ..................................................................................... 15 I. 2 - Primeira formao de grupos de chores ......................................................... 20 I. 3 - Chores: alguns perfis biogrficos .................................................................. 30 I. 4 Choro: caractersticas musicais ....................................................................... 43
I I - W A L DIR A Z E V ED O : F OR M A O AR T ST IC A ......................................................... 50 II. 1 - O Msico....................................................................................................... 50 II. 2 - O Cavaquinho................................................................................................ 53 II. 3 - Brasileirinho: o compositor............................................................................ 59 II. 4 - Delicado: choro-baio .................................................................................... 68 II. 5 - O instrumentista ............................................................................................ 73
I I I - A L G U M AS PA RT IT UR AS D E O BR AS D E A UT O RIA DE W A L DIR A Z E V ED O ............... 74 III. 1 Introduo ................................................................................................... 74 III. 2 Brasileirinho ................................................................................................ 76
III.2.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 78 III. 3 Carioquinha ................................................................................................. 82
III.3.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 84 III.4. - Delicado ....................................................................................................... 87
III.4.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 89 III.5 Pedacinhos do Cu ....................................................................................... 93
III.5.1 - Anlise Musical ......................................................................................... 95 I V W A L DIR A Z E V ED O : M T O D O D E E X E CU O D O C A V A Q UIN H O ........................... 98
IV.1 Introduo .................................................................................................... 98 IV.2 - Atrevido - 1967 ............................................................................................. 99 IV.3 - Camundongo - 1951 .................................................................................... 102 IV.4 - Minhas Mos, Meu Cavaquinho - 1976 ....................................................... 105 IV.5 - Flor do Cerrado - 1977 ................................................................................ 108
C O NSID ER A ES F IN AIS ........................................................................................... 110 R E F E R NC I AS B IB L I O GR F I C AS ............................................................................... 113 DISC O GR A F I A ........................................................................................................... 116 A N E X OS .................................................................................................................... 117
8
IN T R O DU O JUST I F I C A T I V A
O cavaquinho um instrumento singular. Desde os primrdios da msica
popular no Brasil, foi fundamental para as execues e criaes musicais e, at a
dcada de 50, era basicamente um instrumento de acompanhamento na msica
popular brasileira.
Originalmente, esteve ligado ao choro, gnero musical surgido entre o final do
sculo XIX e o incio do sculo XX no Rio de Janeiro. Esse perodo foi um marco para
essa cidade; nesta poca, a sociedade vivenciou transformaes polticas, econmicas,
sociais e culturais intensas e significativas, como a mudana de forma de governo, a
passagem do trabalho escravo para o trabalho assalariado, a modernizao das grandes
lavouras e o incio do processo de industrializao que se refletiu gradativamente em
todo o pas.
nesse contexto sociocultural que surgiram os chores, msicos que
acompanhavam os mais variados gneros musicais
Como a maioria da populao de baixa renda, os msicos no frequentavam os
sales das elites burguesas; porm, muitas vezes ficavam de fora das salas ouvindo a
IDPRVD H LQRYDGRUD SROFD P~VLFD europeia que, no incio dos anos 1850, vinha
agitar os sales do Rio de Janeiro; esses msicos, cuja formao musical era na maior
parte das vezes oriunda da tradio oral, reproduziam o que ouviam em instrumentos
populares como violes, cavaquinho e flauta.
A msica popular brasileira urbana comeou, ento, a se definir; os msicos
populares, ao transportar a msica dos bailes da elite na maioria das vezes executada
pelo piano e instrumentos de sopros - promoveram uma releitura dessa msica,
adicionando elementos de sua prpria influncia musical como, por exemplo, os
presentes na dana conhecida como lundu1; desta mistura bem temperada entre a
riqueza harmnica e meldica da msica europeia (no caso, a polca) e a rtmica e
1 'DQoD GH URGD H XPbigada brasileira, teve origem no batuque dos bantos africanos, provavelmente trazida de Angola pelos escravos na segunda metade do sculo XVIII, e posteriormente introduzida nos VDO}HVGDVFRUWHVGR%UDVLOHGH3RUWXJDO'285$'2
9
criativa msica afro-descendente, surgiu o gnero musical nomeado popularmente de
0D[L[H
Segundo Jos Ramos Tinhoro, a polca se transforma em maxixe, via lundu
danado e cantado, atravs de uma estilizao musical efetuada pelos msicos dos
conjuntos de choro. (TINHORO, 1974: 64)
O Maxixe o primeiro gnero difundido entre as camadas populares pelos
sales da cidade e tambm pelo Teatro de Revista; posteriormente, foi assimilado pela
elite brasileira. Nasce como dana popular urbana e, aos poucos, se transforma em
msica instrumental e em cano, lanada tambm pelo teatro de revista. Muitos
elementos musicais do maxixe esto presentes no choro; porm, uma das diferenas
est na sua funo social: o maxixe era msica para se danar, e o choro no trazia esta
mesma inteno.
Os dilogos estabelecidos entre as vrias danas europeias e a msica urbana da
populao em geral (e de suas interpretaes) estavam repletos de caractersticas
prprias, resultando cada vez mais em um som autntico e original que, gradativamente,
foi tomando forma at ser sistematizado como gnero musical, chamado at os dias
DWXDLVGHFKRUR
T E M A
O cavaquinho est presente desde os primrdios da msica popular brasileira
urbana, e sempre se destacou por ser um instrumento basicamente harmnico que
acompanha os solos das flautas, clarinetes e outros instrumentos de sopro.
Em 1949 o instrumentista Waldir Azevedo, atravs de seu desempenho na
execuo desse instrumento, fez com que o cavaquinho mudasse de patamar e passasse
de instrumento acompanhador para instrumento solista. Ele considerado um msico
de importncia fundamental no cenrio da msica popular brasileira, especificamente
para a histria do cavaquinho.
Nesse ano foi lanado o primeiro compacto duplo do instrumentista e
compositor Waldir Azevedo: Brasileirinho (choro), sua primeira composio. Essa
msica transformou-se na maior expresso brasileira do cavaquinho. Esse compacto
duplo apresentou duas das mais populares obras do autor:
10
Lado A: Carioquinha: (choro) - Lado B: Brasileirinho (choro)
Waldir Azevedo no imaginava que Brasileirinho faria to grande sucesso e se
tornaria uma obra essencial para o repertrio dos cavaquinistas; por isso, essa obra
foi lanada no lado %GRFRPSDFWR
A gravao desse primeiro trabalho foi uma ideia do ento diretor da gravadora
Continental, Sr. Carlos Alberto Braga (mais conhecido como Joo de Barro, ou ainda
como o popular Braguinha).
Sem dvida, esta circunstncia foi altamente significativa, pois deu incio a
uma longa carreira do msico, que se caracterizou pela criatividade singular, um
diferencial para a histria da msica brasileira.
6HJXQGR/XL]7DWLW2FDQWRVHPSUHIRLXPDGLPHQVmRSRWHQFLDOL]DGDGDIDOD
No caso brasileiro, tanto os ndios como os negros invocavam os deuses pelo canto.
(2004: 41)
No Brasil, as msicas que podem ser cantadas por todos so as que fazem
maior sucesso, j que so lembradas pela forma mais popular de se difundir uma
msica - pela tradio oral.
Com relao a essa questo, importante observar que a repercusso de
Brasileirinho foi de tal forma significativa que, rapidamente, providenciaram uma
letra para que ela se tornasse ainda mais popular.
Esta pesquisa pretende contribuir para um aspecto da construo histrica da
msica popular brasileira, especificamente sobre a histria do cavaquinho,
apresentando um novo olhar sobre o tema, j que esse um instrumento pouco
estudado na academia, apesar do cavaquinho ser um instrumento muito popular no
Brasil.
11
C RI T RI OS T E RI C O-M E T O D O L G I C OS
Para a realizao desse trabalho de pesquisa, foi desenvolvida abordagem com
fundamentao terica utilizando obras de autores como Michael de Certeau, Peter
Burke, Nestor Garcia Canclini, Arnold Schoenberg e Luis Tatit.
Tambm foi realizada uma pesquisa biogrfica de alguns chores
reconhecidamente consagrados da poca como Antonio Callado, Chiquinha Gonzaga,
Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Pixinguinha; para tanto, foram pesquisadas e
utilizadas fontes de autores/pesquisadores como Edinha Diniz, Andr Diniz, Sergio
Cabral, entre outros.
Com essa pesquisa, foi traado um percurso cronolgico com o objetivo de
chegar ao compositor e instrumentista Waldir Azevedo, no final da primeira metade do
sculo XX.
Para o entendimento de gnero musical, foi utilizado o autor Carlos Sandroni,
que traa cuidadosamente um perfil do desenvolvimento da estrutura musical,
indispensvel para essa pesquisa; outro autor consultado Carlos Almada, que analisa
especificamente o choro como linguagem musical. Esse material deu todo o suporte
necessrio para a anlise musical das obras de Waldir Azevedo.
Recorri nica biografia disponvel de Waldir Azevedo, escrita pelo maestro e
compositor Marco Antonio Bernardo, que contribuiu para a construo do perfil do
autor e ajudou na compreenso das circunstncias socioculturais que proporcionaram a
formao desse artista.
Foi realizada uma pesquisa discogrfica e coleta de imagens, que ajudaram a
descrever e entender o autor, suas obras e sua performance no cavaquinho. Foram feitas
anlises de quatro obras de referncia do autor, escolhidas, como msicas mais
divulgadas e conhecidas, que alm de alavancar sua bem sucedida carreira, continuaram
presente at o fim de sua vida.
Tambm foram selecionados trechos de outras obras de Waldir Azevedo que
contriburam para a construo de um mtodo de estudo para cavaquinho.
Todos os autores pesquisados contriburam para a construo de um trabalho
especfico, possibilitando interlocues entre reas diversas e criando condies para a
ampliao de conhecimentos relativos ao tema.
12
O BJE T I V OS
G E RA L:
Pesquisar como a obra de Waldir Azevedo, suas interpretaes e as circunstncias socioculturais que o transformaram em uma referncia musical para o
cavaquinho, para os cavaquinistas e para o choro - como gnero instrumental brasileiro -
promoveu uma mudana de patamar desse instrumento, que passa de acompanhador
para solista.
ESPE CF I C OS:
1. Pesquisar os fatores que levaram a transio do cavaquinho acompanhador para
o cavaquinho solista nas performances e composies de Waldir Azevedo, a
partir de 1949;
2. Observar a questo da msica instrumental e os motivos pelos quais as
composies e apresentaes das msicas de Waldir Azevedo alcanaram um
lugar de destaque no Brasil;
3. Avaliar porque Waldir Azevedo, mesmo depois de quase sessenta anos da
primeira gravao de Brasileirinho, continua sendo um referencial significativo
para a msica brasileira instrumental, especificamente a msica para
cavaquinho;
4. Pesquisar a fim de detectar um mtodo de estudo para o cavaquinho atravs da
obra de Waldir Azevedo;
5. Este trabalho objetiva fornecer dados que podem ser tanto para professores de
msica, como para instrumentistas, alm de contribuir para outros pesquisadores
da rea.
C O RPUS
Para entender a obra de Waldir Azevedo, foram realizadas anlises musicais de
quatro obras que se tornaram grandes referncias em sua discografia:
13
x Brasileirinho - 1949 x Carioquinha - 1949 x Delicado - 1950 x Pedacinhos do Cu 1950
Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, a metodologia aplicada foi:
1) Fundamentao terica, procurando embasar a hiptese da mudana de
patamar do cavaquinho acompanhador para o cavaquinho solista, atravs da
obra de Waldir de Azevedo;
2) Levantamento de imagem (Programas de TV), a partir de 1970,
aproximadamente;
3) Anlise das quatro obras musicais citadas acima, que serviram de base para a
fundamentao terica-prtica da(s) hiptese(s) levantada(s);
4) Anlise musical de quatro outras obras que permitem observar o
desenvolvimento do mtodo emprico aplicado pelo autor. So elas:
Camundongo, Atrevido, Minhas mos, meu cavaquinho e F lor do Cerrado.
C AP T U L OS: estruturao
O primeiro captulo trata da contextualizao histrica do princpio do choro,
msica popular urbana que comeou a se manifestar na segunda metade do sculo XIX.
Os chores, msicos versteis que tocavam vrios ritmos musicais, tambm foram
responsveis por essas transformaes culturais que se configuraram no incio do sculo
XX.
Foram citados alguns dos principais compositores responsveis pela construo
do choro como gnero musical, so eles: Joaquim Antonio Calado, Chiquinha Gonzaga,
Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Pixinguinha.
Para uma melhor compreenso do choro, foram pesquisadas e descritas vrias
caractersticas musicais que podem contribuir para a identificao do gnero.
O segundo captulo trata da formao artstica de Waldir Azevedo, um choro da
segunda metade do sculo XX que se consagrou por suas obras e por sua performance,
14
transformando o cavaquinho em instrumento solista, e o choro em msica muito
popular.
Sua primeira gravao de Brasileirinho foi um marco em sua carreira, e na
divulgao de uma msica instrumental que alcanou recordes de vendas, fenmeno
comum at ento somente para cano.
Delicado, a segunda gravao, foi ainda mais surpreendente, pois alcanou
grande divulgao no mercado externo; um choro-baio, uma mistura indita de
elementos musicais cariocas e nordestinos.
Este captulo tambm foi dedicado pesquisa do cavaquinho e de Waldir
Azevedo como o instrumentista de maior referncia do instrumento.
No terceiro captulo foram escolhidas as quatro obras de maior sucesso de
Waldir Azevedo, Brasileirinho, Delicado, Carioquinha e Pedacinhos do Cu.
Foi realizada uma anlise musical e uma pesquisa da execuo dessas obras no
cavaquinho.
A pesquisa tambm abordou a concepo histrica da poca e algumas das
gravaes que ajudaram na divulgao dessas obras consagradas pelo autor.
O quarto e ltimo captulo dedicado escolha de obras que foram pesquisadas
como referncias para um mtodo de estudo para cavaquinistas; foi realizado um estudo
minucioso para a captao de caminhos que facilitem e contribuam para a formao de
um estudante que quer se aprimorar na execuo e tcnica do instrumento.
Foram selecionadas quatro obras para a capitao de detalhes que podem ajudar
na formao de um cavaquinista. Estas foram colocadas em ordem cronolgica, e so
Camundongo, Atrevido, Minhas mos, meu cavaquinho e F lor do Cerrado.
15
I - OS C H O R ES E O C H O R O
I . 1 Abordagem Histrica
A segunda metade do sculo XIX foi um marco para a Msica Popular no
Brasil; exatamente em um cenrio urbano da cidade do Rio de Janeiro que surgem os
primeiros msicos chores, oriundos de camadas sociais excludas da sociedade, que
desenvolveram habilidades de execuo em instrumentos populares como violo,
cavaquinho e flauta.
O pesquisador Marcos Napolitano nos ajuda na compreenso da formao do
choro:
'HWRGRVHVWHVHQFRQWURVFXOWXUDLVe da mistura musical resultante, surgiro,
outros gneros modernos de msica brasileira: a polca-lundu, o tango
brasileiro, o choro e o maxixe, base da vida musical popular do sculo XX.
Apesar desta mistura, o mundo da casa e o mundo da rua (para no falar do
mundo das senzalas, com seus batuques e danas especficas) constituam
esferas musicais quase isoladas uma das outras at meados do sculo XIX e
dependiam de compositores e msicos ousados, transgressores,
anticonvencionais, para comunicarem-VH1$POLITANO, 2005: 44)
Essa pesquisa tem incio no choro, msica que no princpio do sculo XX se
consolidou como gnero musical e se perpetua at os dias atuais como uma das msicas
mais importantes do pas.
O choro acabou por galvanizar uma forma musical urbana brasileira,
sintetizando elementos da tradio e das modas musicais da segunda metade
do sculo XIX. Nele estavam presentes o pensamento contrapontstico do
barroco, o andamento e as frases musicais tpicas da polca, os timbres
instrumentais suaves e brejeiros, levemente melanclicos, e a sncopa que
GHVORFDYD D DFHQWXDomR UtWPLFD TXDGUDGD GDQGR-lhe um toque sensual e
MRFRVR (Ibidem: 45-46)
16
Em um contexto sociocultural da segunda metade do sculo XIX surgem os
chores, msicos que acompanhavam os mais variados gneros musicais como valsas,
polcas, lundus, modinhas e maxixes, que podiam ser adaptados e tocados por estes
grupos, formados por violes, cavaquinho e um instrumento de sopro solista, que podia
ser o oficlide2 ou a flauta. Constantemente convidados para animar diversos tipos de
comemoraes, das mais familiares s mais bomias, eram formados na sua maioria por
msicos amadores, alguns funcionrios pblicos dos correios e telgrafos, designados
para pequenos servios nas reparties onde trabalhavam.
4XHP QmR FRQKHFH HVWH QRPH" 6y PHVPR TXHP QXQFD GHX QDTXHOHV
tempos uma festa em casa. Hoje ainda este nome no perdeu de todo o seu
prestgio, apesar de os choros de hoje no serem como os de antigamente,
pois verdadeiros choros eram constitudos de flauta, violes e cavaquinhos,
entretanto muitas vezes o sempre lembrado ophicleide e trombone, o que
constitua o verdadeiro choro dos chores.
Naqueles tempos existiam excelentes msicos, que ainda hoje so citados
como os cometas que passam de FHPHPFHPDQRV3,172 11)
Alexandre Gonalves Pinto foi o primeiro autor a escrever um livro de memrias
que se tornaria um documento histrico devido aos relatos sobre os chores. Seu livro O
Choro, reminiscncias dos chores antigos tem ajudado muitos pesquisadores a realizar
diversos trabalhos por ser a primeira referncia a um extenso perodo, que vai de 1870 a
1936, quando foi lanada a primeira edio da obra. Dentre eles, o jornalista e
pesquisador Jos Ramos Tinhoro:
2 Instrumento de sopro da famlia dos metais. Trompa com chaves e bocal, tubo cnico dobrado sobre si mesmo, em uso durante o sculo XIX. Foi patenteado pelo fabricante francs Halary em 1821. A palavra "ophicleide", do francs ophiclide provm do grego "ophis", que significa serpente e "kleis", que quer dizer tampa ou abafador, combinao que pode ser traduzida como "serpente de chaves". O nome oficlide, criado para denominar o instrumento maior do grupo abrangido pela patente de Halary, logo se tornou genrico para todos os tamanhos. O nome oficlide tambm usado como designao para o instrumento. Os oficlides eram construdos com nove a 12 chaves. Instrumento muito utilizado durante o sculo XIX, com inmeras referncias no ambiente da msica popular, foi paulatinamente substitudo nas orquestras e bandas pela tuba. Disponvel em: www.dicionariompb.com.br. Acesso em: 07 setembro 2010.
17
$PDLRULD desses cantores especialistas em modinhas sentimentais (todos
lembrados em 1935 pelo velho carteiro Alexandre Gonalves Pinto em seu
livro de memrias), gravitava em torno dos conjuntos de choro que
funcionavam como orquestras de pobre, fornecendo msica para festas em
FDVDVGHIDPtOLDjEDVHGHIODXWDYLROmRHFDYDTXLQKR (TINHORO, 2005:
23)
Funcionrio dos correios e telgrafos, Alexandre Gonalves Pinto era integrante
de grupos de chores, e tocava cavaquinho e violo seis cordas. Esse autor fez um
verdadeiro dirio desse momento histrico, descrevendo o perfil de cada msico e seu
instrumento, e relatando situaes cotidianas da vida desses chores.
Outro pesquisador, o historiador Andr Diniz, descreve os grupos de chores:
7DPEpP FRQKHFLGRV FRPR JUXSRV GH SDX H FRUGD GHYLGR D IXQomR GH
flauta de bano com os instrumentos de corda, esses chores pertenciam a
classe mdia baixa da sociedade carioca. Eram em sua grande maioria
funcionrios de reparties pblicas, exerciam trabalhos que permitiam uma
boemia regular e residiam, geralmente, na Cidade Nova, bairro construdo
sobre o antigo mangue, e nas vilas do centro antigo at os bairros do Estcio
e da Tijuca.
Os chores no tocavam por dinheiro. Quando eram convidados para um
baile sempre arrumavam um jeito de dar um pulinho na cozinha do anfitrio
SDUD DYHULJXDU VH D PHVD HVWDYD IDUWD GH FRPLGD H EHELGD &DVR R JDWR
HVWLYHVVH GRUPLQGR QR IRUQR IUDVH TXH H[SUHVVDYD D HVFDVVH] HWtOLFD H
gastronmica do lar, inventavam uma desculpa e partiam para outras bandas.
6HUFKRUmRHUDVHUERrPLR (DINIZ, 2003: 14)
Os chores tocavam em suas horas vagas e aproveitavam para se aperfeioar em
seus instrumentos; eram msicos que aprendiam a tocar e se aprimorar na execuo de
maneira totalmente prtica, atravs da oralidade. O solista, na maioria das vezes, era o
nico que conhecia a linguagem musical formal (portanto lia e escrevia msicas em
partituras) e tinha que traduzir seus conhecimentos para poder trocar informaes com
18
os outros instrumentistas. Portanto, foi atravs da tradio oral que estes primeiros
chores desenvolveram uma maneira prpria de interpretao de cada obra executada.
Estes msicos desenvolveram grande versatilidade na execuo de diversos
estilos musicais, adaptando-os com prontido ao grupo instrumental formado por
violes, cavaquinho e flauta - esta podendo ser substituda por qualquer outro
instrumento solista.
$KLVWyULD GDP~VLFD SRSXODUQR%UDVLOQRV LQGLFD TXH DLQGD SHUVLVWHP DV
mesmas condies que geraram e asseguraram a vitalidade dessa
manifestao cultural como importante canal de expresso popular: alta
concentrao populacional nos extratos baixos da sociedade, analfabetismo
ou baixa escolaridade dos seus integrantes e ausncia ou precrio
atendimento das suas exigncias sociais.
O fato de ser um grupo numericamente expressivo e com uma cultura
singularizada assegura(va) a produo e consumo culturais dentro do prprio
grupo. Por ser uma manifestao artstica plenamente sustentvel pela
tradio oral, sempre favorece(u) os menos letrados e, por fim, mas no por
ltimo, fornece(u) tambm um canal para a expresso de sentimentos,
DQVHLRVGHVHMRVJRVWRVFUHQoDVH UHLYLQGLFDo}HVFROHWLYDV ',1,=
82)
2 WHUPR SRSXODU DSUHQGHU GH RXYLGR - que significa aprender ouvindo e
repetindo, sem leitura de partitura era, constantemente, o processo de aprendizagem
pelo qual instrumentistas e cantores aprendiam o choro.
Os grupos de chores se multiplicaram, considerando que o contingente destes
msicos era, em sua maioria, formado por excludos sociais. Alguns tinham
subempregos, outros eram desempregados, podendo ser considerados socialmente
marginalizados. o que nos confirma o professor e pesquisador Arnaldo Contier:
Os excludos sociais foram expulsos para os subrbios ou para os morros
(favelas). As perseguies de policiais tornaram-se freqentes em face da
presena de homens pobres, descalos ou maltrapilhos que perambulavam
pela Avenida Central ou pela Rua do Ouvidor. Esses novos espaos
urbansticos tornaram-se plos de entretenimento das elites branco burguesas.
19
Paulatinamente, durante os anos 1910 e 1920, com o surgimento dos
cinemas, dos dancings, cafs, cabars, os chores (em geral, negros e
despossudos sociais) passaram a se exibir em conjuntos musicais nesses
QRYRV HVSDoRV considerados FLYLOL]DGRV SHODV HOLWHV GRPLQDQWHV
(CONTIER, 2004: 07)
Como j foi dito, grande parte dos grupos de chores eram formados por
msicos amadores, que no recebiam remunerao para tocar seus instrumentos; por
este motivo, era comum que os chores escolhessem festas para tocar, tendo como troca
comida e bebida farta - GRFRQWUiULRRFRPHQWiULRHUDJHUDO 7HPgato dormindo no
IRJmR (cdigo usado pelos msicos para explicar a ausncia de comida na casa). E isso,
parDRJUXSRGHFKRU}HVHUDPRWLYRPDLVTXHVXILFLHQWHSDUDWRFDUHFDQWDUHPRXWUD
IUHJXHVLD6REUHHVVDTXHVWmR$OH[DQGUH*RQoDOYHV3LQWRFRPHQWD
4XDQGRLDWRFDUQXPEDLOHYHQGRWXGRWULVWHVHPDTXHOHDOHQWRGRVJUDQGHV
SDJRGHV chamava um colega e dizia: Est me parecendo que aqui o gato
est dormindo no fogo. E depois arranjava um motivo, procurava o dono da
casa e pedia para ir ao quintal a fim de passar pela cozinha e ver a fartura ou
a misria em que se achava o dono da festa, vendo fartura vinha para a sala
todo satisfeito, em caso contrrio dizia: O gato est no fogo rapaziada,
YDPRVVDLQGRGHEDUULJD1mRYLHPRVDTXLSDUDSDVVDUJLQMDTXHTXHr dizer
IRPH-16)
Um fato que explica o aumento considervel destes msicos que nesta poca
ainda no tnhamos gravao em disco, j que isso aconteceria somente no incio do
sculo XX; portanto, a msica como entretenimento era sempre executada em tempo
real, e estes grupos gozavam de grande prestgio, sendo a atrao principal de diversos
eventos populares. o que nos confirma o pesquisador e escritor Jos Ramos Tinhoro:
(PXPWHPSRHPTXHDLQGDQmRKDYLDQHPGLVFRQHPUiGLRRVFRQMXQWRVGHWRFDGRUHV
de flauta, violo e cavaquinho foram, pois, graas a sua formao eminentemente
pRSXODUDVRUTXHVWUDVGHSREUHVTXHSRGLDPFRQWDUFRPRPtQLPRGHGLVSRQLELOLGDGHV
(1974: 108)
20
I . 2 - Primei ra formao de grupos de chores
Para entender melhor a estrutura instrumental de um grupo tradicional de choro,
preciso um breve relato sobre cada instrumento que fazia parte desse grupo, e suas
respectivas funes:
x Uma flauta, ou qualquer outro instrumento solista que tocasse a melodia da msica. Muitas vezes este solista era o nico integrante que possua
conhecimento musical formal (leitura de partitura).
x Um violo de seis cordas, que tinha como funo o acompanhamento harmnico do solista e servia como base para que ele pudesse iniciar um
possvel improviso; tambm contribua como apoio rtmico na execuo da
msica.
x Um violo de seis cordas, cuja funo era a execuo de contrapontos entre acordes e frases musicais. Pelo fato desta execuo musical ser realizada na
regio mais grave do instrumento (baixos), at hoje essa linha recebe o nome de
baixaria, e tambm auxilia o outro violo de seis cordas no acompanhamento
harmnico e rtmico. (Esse violo foi substitudo pelo violo de sete cordas no
incio do sculo XX).
x Um cavaquinho: assim como os violes, uma de suas funes era fazer o acompanhamento harmnico das msicas; mas, o que o diferencia dos outros
instrumentos do grupo sua execuo rtmica j que, no surgimento desses
JUXSRV QmR KDYLD LQVWUXPHQWDO GH SHUFXVVmR &DYDTXLQKR FHQWUR p R QRPH
utilizado para designar a funo desse instrumento nestes grupos.
$ LQVWUXPHQWDomR RULJLQal do conjunto do choro foi o trio de pau e corda
(flauta de bano, um cavaquinho, um ou dois violes), formao derivada dos
ternos da msica dos barbeiros. A flauta, instrumento meldico geralmente
do msico do trio com leitura musical, respondia pelos solos; o violo,
instrumento harmnico, fazia as bordaduras em contraponto, executando a
linha do baixo; o cavaquinho apoiava a melodia, desempenhando o FHQWUR
rtmico. Depois foram surgindo outros instrumentos solistas como o
bandolim, o trompete, o clarLQHWHHRVD[ (MIRANDA, 2009: 74)
21
Algum tempo depois essa mesma formao, com a adio da percusso, foi
utilizada como alternativa para os programas de rdio nas dcadas de 30, 40 e 50. Estes
FRQMXQWRV HUDP FKDPDGRV 5HJLRQDO GH FKRUR RX VLPSOHVPHQWH 5HJLRQDO H se
tornaram uma tima alternativa musical para as orquestras, que eram mais complexas e
RQHURVDV FRPR DILUPD R DXWRU +HQULTXH &D]HV Assim, com dois ou trs violes,
cavaquinho, um ou mais ritmistas e um solista para criar introdues em profuso,
estava resolvido o problema, com uma excelente relao custo-EHQHItFLR (1998: 85)
Os Regionais animavam os programas ao vivo das rdios, e eram compostos por
msicos versteis que desenvolveram, com eficincia, a habilidade de acompanhar as
mais diversas tonalidades.
Voltando origem destes grupos, se faz necessrio compreender melhor as
msicas da poca e suas diversas origens, com o objetivo de observar os elementos que
contriburam para a formao da msica popular urbana:
Voltemos no tempo. No curso do sculo XIX, o Rio, tomado por diversas
danas e ritmos somados aos j existentes o palco de uma densa massa de
informaes. No interior dessa agitao, na segunda metade do sculo, toma
vulto um modo peculiar de interpretar as danas europias. D-se um desfile
infindvel de danas de salo como os vrios tipos de quadrilha, o galope, a
valsa, a polca, a escocesa (a schottischi (sic) que depois ser aportuguesado
para o xote), a mazurca, a polca-mazurca etc.
So importados procedimentos meldicos-modulatrios, apossados e
ressignificados, tanto pelo msico com acesso aos sales imperiais, como
pelo msico popular annimo das serestas, principalmente os das rodas de
choro que iro se proliferar nas festas populares. Assim, as danas europias,
D SDUWLU GH JUDoDV DRV FKRU}HV JDQKDP XP IRUWH W{QXV EUDVLOHLUR
(Ibidem: 63)
Havia, nessa poca, uma variedade significativa de msicas trazidas da Europa e
da frica. Dessas muitas fontes, oriundas de lugares to diferentes e distantes, criou-se
um intenso intercmbio de culturas, possibilitando uma ampliao de conhecimento
enriquecedor, permitindo grandes transformaes da msica executada e composta no
Brasil. Estas contribuies musicais estrangeiras foram dialogando e se transformando,
22
e esses acontecimentos contriburam para a VLVWHPDWL]DomR GR FKRUR FRPR JrQHUR
musical no incio do sculo XX.
Canclini expe esse fenmeno, se referindo especificamente s condies de
hibridao:
'HVWDFRDVIURQWHLUDVHQWUHSDtVHVHDVJUDQGHVFLGDGHVcomo contextos que
condicionam os formatos, os estilos e as contradies especficos da
hibridao. As fronteiras rgidas estabelecidas pelos Estados modernos se
tornaram porosas. Poucas culturas podem ser agora como unidades estveis,
com limites preciosos baseados na ocupao de um territrio delimitado. Mas
essa multiplicao de oportunidade para hibridar-se no implica
indeterminao nem liberdade irrestrita. A hibridao ocorre em condies
histricas e sociais especificas, em meio a sistema de produo e consumo
que s vezes operam como coaes, segundo se estima na vida de muitos
LPLJUDQWHV(2006: xxix)
Dentre os vrios tipos de msicas trazidas da Europa e difundidas no Brasil,
podemos citar como exemplos a valsa, a quadrilha, a mazurca, o schottisch e a polca.
Do outro lado, a contribuio da msica africana foi intensamente difundida no
pas e transmitida por tradio oral, atravs das danas e dos batuques, contribuies
rtmicas que foram extremamente relevantes para a msica criada e executada no Brasil.
O lundu uma das primeiras danas de origem africana trazidas pelos negros e
posteriormente transformada em cano pelos portugueses; alm dessa contribuio
temos outras, como o caso do tango argentino e da habanera.
'HSRLVHPFKega uma coleo de habaneras do compositor espanhol
Sebastian YradierHQWUHDVTXDLVDVFRQKHFLGDVLa PalomaH(ODUUHJOLWR,
sendo esta usada por Bizet como tema para a habanera da SHUD&DUPHQ
Gneros binrios, de frmula rtmica semelhante, muito populares na
Espanha e na Amrica Latina no sculo XIX, o tango andaluz e a habanera
cubana tem provavelmente origem em cantos remotos da frica do Norte,
levados pelos rabes para a Espanha e pelos negros pDUD &XED
(SEVERIANO, 2008: 27)
23
Como o autor acaba de descrever, as contribuies musicais no Brasil vem de
diversas culturas. A polca, por exemplo, foi uma referncia para a formao da msica
popular urbana da poca. Trazida da regio da Bomia via Paris, a polca repercutiu
tanto na Europa como no Brasil. A novidade era sobre a maneira de se danar, pois
diferente da valsa, essa nova dana permitia mais proximidade entre os casais, fato raro
para a poca, uma vez que os padres morais eram muito sedimentados pelo poder da
igreja e prontamente mantidos e divulgados pelas elites vigentes.
6XEPHWLGDV GHVGH D FKHJDGD D XP SURFHVVR GH QDFLRQDOL]DomR DV GDQoDV
importadas seriam fundidas por nossos msicos populares a formas nativas
de origem africana, conhecidas pelo nome genrico de batuque. Foi assim
que na dcada de 1870, nasceram o tango brasileiro, o maxixe e o choro, ao
mesmo tempo em que se abrasileirava a tcnica de execuo de vrios
instrumentos, como o violo, o cavaquinho e o prprio piano. Parentes
prximos os trs gneros teriam em comum o ritmo binrio e a utilizao da
sncopa afro-brasileira, alPGDSUHVHQoDGDSROFDHPVXDJrQHVH (Ibidem,
2008: 28)
Outra questo relevante a transformao de diversos ritmos pela forma de
H[HFXWDU GRV P~VLFRV SRSXODUHV QR FDVR RV FKRU}HV ,VWR IRi to determinante que
acabou revelando o maxixe:
Na verdade, seria exatamente dessa descida das polcas dos pianos dos sales
para a msica dos choros, base de flauta, violo e oficlide, que iria nascer a
novidade do maxixe, aps vinte anos de progressiva amoldagem daquele
gnero de msica da dana estrangeira e certas constncias do ritmo
brasileiro. Esse curioso processo de sincretismo, realizado ignoradamente ao
longo da evoluo cultural das camadas mais baixas da populao do Rio de
Janeiro, na segunda metade do sculo XIX, est ligado histria do choro
carioca, e s pode ser compreendido com o conhecimento das suas
SDUWLFXODULGDGHV (TINHORO, 1974: 61)
24
O maxixe teve origem popular e, diferente da polca, era mais ousado e sensual.
Nele, os casais se entrelaavam e a coreografia era realizada com muitos requebros de
cintura, alm de exigir dos danarinos muitos volteios pelos sales. Foram criados
diferentes passos para a execuo da dana, como: balo caindo, cobrinha, parafuso,
corta-jaca e vrias outras nomenclaturas, e os danarinos usavam de muita criatividade
para se sobressarem. Como j foi dito, o maxixe era uma veUVmRPDLVIRJRVDGDSROFD
europeia, e a aproximao dos casais era maior e mais audaciosa; por isso, foi uma
dana muito atacada pelas elites e pela Igreja, sendo classificada como dana imoral e
lasciva. Era, ento, praticada em locais livres de julgamentos PRUDLV como bares,
bordis e at prostbulos.
O maxixe chegou a ser classificado pela igreja como GDQoDH[FRPXQJDGDe,
como j foi dito, foi muito atacado pelas elites. No entanto, nos ambientes mais
populares e distantes dos olhares moralistas, o maxixe era muito executado e se
transformou na verso abrasileirada da polca europeia.
&RPRDILUPD&DUORV6DQGURQL1mRKiG~YLGDTXHDSDODYUDPD[L[HQDYLUDGD
do sculo, tinha conotao de vulgaridade mais forte do que tango, que j tinha sido at
HPSUHJDGD SRU FRPSRVLWRUHV HUXGLWRV FRPR $OEpQL] H QR %UDVLO $OH[DQGUH /HY\
(1993: 79).
Maxixe tambm era uma palavra comumente utilizada para designar
acontecimentos de baixa categoria, alm de ser um fruto comestvel de planta rasteira
que nasce no mangue (regio de prostituio na cidade do Rio de Janeiro). Isso dava
uma conotao ainda mais vulgar dana. Quanto mais polmica causava, mais
popularidade alcanava, aumentando consideravelmente os adeptos da nova dana.
Maxixe , na origem, uma msica instrumental para ser danada; porm, a
msica Gacho (Corta-jaca), de Chiquinha Gonzaga, foi composta com letra para fazer
parte de um musical. Esses musicais eram chamados Teatro de Revista, peas teatrais
escritas com temas variados, com o objetivo de relatar situaes e acontecimentos
cotidianos como uma crnica de acontecimentos relevantes - tendo sempre o foco na
crtica poltica e social da poca. O nome dado a esses musicais representa exatamente o
fato de passar em revista acontecimentos que, de alguma forma, poderiam ser
25
comentados e criticados atravs dessas apresentaes. Essa foi uma grande
oportunidade de trabalho para muitos msicos da poca.
Segundo a pesquisadora e escritora Neyde Veneziano:
6HPHQUHGRQRQtYHOGRWH[WRHGRHVSHWiFXORDQRYDUHYLVWDVHHTXLOLEUDULD
entre as msicas, as coreografias, a iluminao, o figurino e os esquetes, os
monlogos, as rbulas cmicas de cortina. Um formato de equilbrio e de
transio, no qual a fantasia ainda no superaria a crtica da atualidade. Por
isso, 1925 um ano rico em experincias. Um ano em que o pblico assistiu
entusiasmado s novidades sem que se perdessem a graa e o humor tpico
brasileiro. O desvio para o luxo e para um maior apelo sensualidade no
roubaria revista sua relao com a atualidade e com as crises sociais,
DLQGD
A popularidade do maxixe chegou at os msicos mais tradicionais que
possuam conhecimentos formais, permitindo assim escrever, editar e comercializar
suas obras atravs das partituras; mas, para isto acontecer, esta nova dana precisou ser
rebatizada.
Por uma questo de mercado, um dos nomes escolhidos para substituir o maxixe
IRL tDQJR EUDVLOHLUR (VVD GHQRPLQDomR HUD PDLV DFHLWiYHO XPD YH] TXH R WDQJR
argentino era difundido nos nobres sales e, assim, mais assimilado pelas elites. Um
fato relevante dessa circunstncia que tanto o tango argentino como o tango brasileiro
tiveram origem na habanera, msica cubana.
$QWHVGHPDLVQDGDpSUHFLVRTXHVHGLVWLQJDRJrQHURPXVLFDOWDQJRGRVHX
correspondente coreogrfico, o maxixe. Embora hoje em dia o vocbulo
referia-se msica popular dos argentinos, o tango foi no Brasil um dos
Gneros musicais que mais se prestou nacionalizao da nossa msica
popular. Originrio da Espanha precisamente da Andaluzia chegou na
Amrica na dcada de 1860. Na Argentina sofreu fuso com a habanera
cubana e a milonga local, nacionalizando-se cedo, e nas primeiras dcadas
deste sculo lanava-se internacionalmente como tango argentino. No Brasil,
onde teria chegado na mesma poca, ele fundiu-se tambm com a habanera
26
cubana e mais a polca e o lundu. Na dcada de 1870 j comeava a exibir
evidentes sinais de nDFLRQDOLGDGHEUDVLOHLUDDINIZ, 1991: 145-146)
$ H[SUHVVmR 7DQJR EUDVLOHLUR HUD PDLV UHVSHLWDGD WDPEpP SRUTXH R WDQJR
argentino comeava a ganhar fama mundial, com sua coreografia extremamente extica
e sensual.
Um fato curioso que marcou a influncia do maxixe na sociedade brasileira
aconteceu em 1914, com o ento presidente da repblica Hermes da Fonseca; ao receber
convidados para uma grande festa no Palcio do Catete sua jovem esposa, Nair de Tef,
cartunista e aprendiz de violo, teve a ousadia de tocar o maxixe Gacho (Corta-jaca),
de Chiquinha Gonzaga, ao violo, e esse acontecimento ajudou a propagar ainda mais a
polmica do maxixe:
GAC H O (Corta-jaca)
Neste mundo de misrias quem impera quem mais folgazo
quem sabe cortar jaca nos requebros De suprema, perfeio, perfeio
Ai, ai, como bom danar, ai! Corta-jaca assim, assim, assim
Mexe com o p! Ai, ai, tem feitio tem
Corta meu benzinho assim, assim! Esta dana buliosa, to dengosa
Que todos querem danar No h ricas baronesas nem marquesas 4XHQmRVDLEDPUHTXHEUDUUHTXHEUDU
Foi o bastante para seu adversrio poltico, senador Rui Barbosa, escrever um
discurso inflamado e repleto de preconceitos com relao execuo da msica,
intensificando essa rivalidade poltica; este fato foi to contundente que se transformou
em um documento histrico:
Uma das folhas de ontem estampou em fac-smile o programa da recepo
presidencial em que, diante do corpo diplomtico, da mais fina sociedade do
Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao pas o exemplo das maneiras mais
distintas e dos costuPHVPDLVUHVHUYDGRVHOHYDUDPR&RUWD-MDFD altura de
27
uma instituio social. Mas R &RUWD-MDFD GH TXH eu ouvira falar h muito
tempo, o que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a
mais grosseira de todas as danas selvagens, irm gmea do batuque, do
cateret e do samba. Mas nas recepes presidenciais R &RUWD-MDFD p
executado com todas as honras da msica de Wagner, e no se quer que a
conscincia deste pas se revolte, que as nossas faces se enrubesam e que a
PRFLGDGHVHULDApud SANDRONI, 2001: 89)
O discurso, alm de fazer parte de uma disputa poltica (pois Ruy Barbosa
perdera as eleies presidenciais para o ento presidente Hermes da Fonseca), tambm
exerceu claramente o papel de discurso oficial, ou discurso das elites. O autor, ao se
referir msica executada no evento, demonstra preconceito com relao msica
popular, referindo-se a ela com absoluto desprezo e reforando, assim, o pensamento
das elites dominantes com relao valorizao das msicas eruditas dos grandes
compositores europeus.
O violo, na poca, era considerado pelas elites como smbolo de ociosidade e
vagabundagem, e isso perdurou at o incio da Bossa Nova (1958). Lima Barreto
escreve sobre o preconceito com relao ao violo em sua obra, Triste f im de Policarpo
Quaresma:
Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhana. Um violo em casa to
respeitvel! Que seria?
E, na mesma tarde, urna das mais lindas vizinhas do major convidou uma
amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de c para l, a palmilhar o
passeio, esticando a cabea, quando passavam diante da janela aberta do
esquisito subsecretrio. No foi intil a espionagem. Sentado no sof, tendo
ao laGR R WDO VXMHLWR HPSXQKDQGR R SLQKR na posio de tocar, o major,
DWHQWDPHQWH RXYLD 2OKH PDMRU DVVLP. E as cordas vibravam
vagarosamente a nota feridaHPVHJXLGDRPHVWUHDGX]LDeUpDSUHQGHX"
Mas no foi preciso pr na carta; a vizinhana concluiu logo que o major
aprendia a tocar violo. Mas que coisa? Um homem to srio metido nessas
PDODQGUDJHQVBARRETO, 1976: 10)
Por todos esses fatos citados anteriormente, as partituras hoje musicalmente
consideradas como maxixe eram impressas com as mais diversas e criativas
nomenclaturas, expressando uma enorme possibilidade de combinaes como: polca,
28
polca-lundu, polca-habanera, polca-choro, tango-lundu, tango-batuque, tanguinho e
YiULDVRXWUDV3RUWDQWRWDQJR-EUDVLOHLURIRLXP dos nomes utilizados para definir esse
estilo de msica que estava sendo composto na segunda metade do sculo XIX.
Carlos Sandroni explica que o compositor Ernesto Nazareth foi um exemplo
desta circunstncia:
1mR p GH VH HVSDQWDU TXH1D]DUHWKQmR JRVWDVse de ver suas composies
chamadas assim quando se sabe que, por volta, em 1886, o vocbulo servia,
HQWUHRXWURVILQVpara designar qualqXHUFRLVDUXLPGHPiTXDOLGDGH0DV
FRPRSUHWHQGHUTXHno teria jamais entrevisto a significao afro-brasileira
de suas composies um autor cuja primeira pea leva a indicao de gnero:
polca-lundu, e do qual uma das obras-SULPDV VH FKDPD %DWXTXH? O
verdadeiro enigma em torno das indicaes de gnero de Nazareth antes a
unanimidade da crtica em negar-lhes a UHDOLGDGH(2001:79)
importante esclarecer que a partitura era uma das melhores formas de
divulgao da msica nesta poca, e ajudava no sustento dos msicos, que muitas vezes
faziam demonstraes de suas obras em casas especializadas com o intuito de vend-las;
o compositor e pianista Ernesto Nazareth, novamente citado, foi um deles.
Voltando a questo do maxixe, como j foi dito ele nasce como dana popular
urbana e, aos poucos, se transforma em msica instrumental e tambm em cano,
muito difundida pelo teatro de revista. Muitos elementos musicais do maxixe esto
tambm presentes no choro; a diferena est na sua funo social: maxixe era msica
para se danar, e o choro no trazia esta mesma inteno.
Os dilogos estabelecidos entre essas vrias danas europeias e a msica urbana
da populao em geral e de suas interpretaes estavam repletos de caractersticas
prprias, resultando cada vez mais em um som autntico e original que, gradativamente,
foi tomando forma at ser sistematizado como gnero musical chamado at os dias
DWXDLVGHFKRUR
$SDODYUD FKRUR designou a princpio um agrupamento instrumental que
surgiu por volta de 1870, ao mesmo tempo que a dana maxixe, portanto. Sua
29
formao clssica era flauta, cavaquinho e violo, e seu repertrio inicial,
danas de provenincia europia, sobretudo a polca, mas tambm a
schottisch, a valsa e algumas outras. Estas, como vimos, tinham coreografia
de par enlaado; de fato, a criao do choro acompanhou, do ponto de vista
musical, o processo a que nos referimos atrs, de adoo pelas camadas
populares de novas maneiras de danar. Os conjuntos denominados choros
estiveram entre os principais artfices das mudanas rtmicas sofridas pela
polca, que analisamos atravs dos registros que chegaram pelas partituras
para piano. Mais tarde, a palavra choro passar a designar as composies
que eram tocadas por estes gruposIbidem: 103)
Os chores foram os maiores responsveis pela construo desse gnero
instrumental. Esta transformao foi acontecendo com o passar dos anos e com a prtica
na execuo das msicas. Dessa forma, cada grupo transmitia o que tinha aprendido, e
muitas vezes transformado, para outros instrumentistas e outros grupos.
Mas havia msicos chores que possuam formao diferenciada, e que tinham
suas msicas editadas atravs de partituras; alguns se tornaram to fundamentais para a
histria da nossa msica que preciso cit-los, para uma melhor compreenso desse
tema.
30
I . 3 - Chores: alguns perfis biogrficos
Joaquim Antonio da Silva Callado Jnior (1848 1880)
O flautista Callado foi uma das primeiras referncias para a msica popular
urbana na cidade do Rio de Janeiro. Sua vida e obra se deram na segunda metade do
sculo XIX, exatamente no incio da formao dos grupos de chores.
Filho de um msico semiprofissional, teve o privilgio de ter suas primeiras
noes musicais em casa; seu pai, alm de tocar, dava aulas de msica, e isto facilitou a
educao musical do menino, que j apresentava grande habilidade para a compreenso
da linguagem musical e execuo do instrumento. A pesquisadora e escritora Edinha
Diniz, em sua biografia sobre Chiquinha Gonzaga, cita dados relevantes da vida musical
do flautista Callado:
$OpPGHHYLGHQWHHUDUDLQWXLomRDWDUHIDH[HFXWDGDSRUHOHparece-nos que
foi facilitada por algumas condies especiais. Chegou a professor do
conservatrio de msica, o que lhe conferia renome e prestgio pessoal.
Como mestio sua memria cultural registrava a herana sonora da msica
sincopada e por ltimo teve uma formao musical facilitada por ser filho de
XPSURIHVVRUGHP~VLFDHFKHIHGHEDQGD',1,=
Quando jovem, Callado teve a oportunidade de estudar com o professor de maior
reputao de sua poca, o maestro Henrique Alves de Mesquita3 que, direta ou
indiretamente, foi responsvel pela formao de vrios msicos da gerao da segunda
metade do sculo XIX. 3 $QGUp'LQL]FRPHQWDVREUHDLPSRUWkQFLDGR0DHVWUR+HQULTXH$OYHVGH0HVTXLWD+Hnrique, a quem a nossa historiografia ainda precisa fazer justia devido a sua importncia no meio cultural carioca, virou referncia para o quarteto inaugural da msica popular instrumental no Rio: Callado, Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazar (sic.). S para o leitor avaliar o papel de Henrique na segunda metade do sculo XIX, foi em sua casa que Chiquinha Gonzaga se inspirou, comps e tocou a sua primeiUDPHORGLDGHVXFHVVRDSROFD$WUDHQWH; foi com ele que Anacleto teve aula no Conservatrio de Msica e se apresentou publicamente nos teatros do Rio; foi com ele ainda que Callado aprendeu regncia e composio. O pianista Ernesto Nazar, realando sua importncia, fez para ele o tango Mesquitinha. O maestro foi o primeiro msico do Imprio a ir como bolsista para a Europa, em 1857 ',1,=
31
Mas, um diferencial significativo na formao musical do flautista foi frequentar
as rodas populares dos chores; isso fez com que sua formao fosse construda de
forma hbrida, com a prtica da leitura musical e a criatividade expressa na liberdade
do improviso.
O termo hibridizao, segundo Canclini, contribui melhor para a compreenso
desse fenmeno:
&RQVLGHUR DWUDHQWH WUDWDU D KLEUidao como um termo de traduo entre
mestiagem, sincretismo, fuso e os outros vocbulos empregados para
designar misturas particulares. Talvez a questo decisiva no seja estabelecer
qual desses conceitos abrange mais e mais fecundo, mas, sim, como
continuar a construir princpios tericos e procedimentos metodolgicos que
nos ajudem a tornar este mundo mais traduzvel, ou seja, convivvel em meio
a suas diferenas, e a aceitar o que cada um ganha e est perdendo ao
hibridar-VH[[[YLLL
Dispondo de todo esse contedo musical, Callado organizou formalmente um
grupo que se transformaria em referncia para a formao dos primeiros grupos de
chores da histria. O nome dado ao grupo seria posteriormente o nome dado ao gnero
PXVLFDOFKRUR&KRUR&DULRFDWDPEpPFRQKHFLGRFRPR2&KRURGR&DOODGR
Sobre a importncia de Callado, o escritor Andr Diniz escreve:
$ IDPLOLDULGDGH FRP R DPELHQWH PXVLFDO GD pSRFD VRPDGD DR
aprimoramento de sua arte, vai despertar no esprito do nosso flautista uma
linguagem muito particular, possibilitando que ele se torne um dos msicos
mais populares da cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do sculo
XIX. E foi como instrumentista, compositor e organizador dos primeiros
grupos de choro da cidade que Joaquim Callado se tornou conhecido da
SRSXODomRFDULRFD: 23)
Como foi citado anteriormente, o grupo tinha em sua formao bsica uma
flauta, dois violes e um cavaquinho; o solista, alm de ler partitura, tambm podia
32
improvisar, sendo acompanhado pelos outros instrumentistas que tambm
improvisavam com habilidade, tocando DP~VLFDGHRXYLGR LVWRFULDYDXPDPELHQWH
de aprendizagem mtua entre os integrantes do grupo.
Joaquim Callado foi reconhecido como um dos maiores flautistas de sua poca;
sua formao musical, aliada habilidade do improviso, lhe garantiu notoriedade em
todos os ambientes musicais. Tambm se destacou como compositor e criou umas das
obras que se transformou em referncia para o repertrio dos chores: F lor amorosa.
Foi contemplado com a comenda (condecorao ou distino de ordem
honorfica 2UGHP GD 5RVD SUHPLDomR HVSHFLDO GR 6HJXQGR5HLQDGR -1889),
concedida pelo ento Imperador D. Pedro II.
Outro acontecimento relevante foi Callado ser o responsvel pela aceitao da
pianista e compositora Chiquinha Gonzaga no meio musical; esse fato possibilitou o
livre acesso da musicista nos mais variados ambientes artsticos e intelectuais,
acontecimento raro devido s restries impostas para as mulheres nesta poca.
Vtima de meningite, Callado viveu at os trinta e dois anos de idade; mas sua
obra continua sendo uma das principais referncias para o estudo da msica popular
brasileira.
F rancisca Edwiges Gonzaga (1847 1935)
Passou a vida sendo conhecida como Chiquinha Gonzaga e, assim como
Joaquim Antonio Callado, suas obras foram de extrema importncia para a formao da
msica popular urbana.
Filha de um militar de grande patente com uma escrava recm-liberta, Chiquinha
Gonzaga quase no foi reconhecida e batizada; porm, foi criada e educada conforme
todas as formalidades exigidas para uma sinhazinha da poca, recebendo aulas de
francs e piano. Todo esse cuidado em sua formao tinha como objetivo um casamento
bem arranjado pelo pai da noiva. No tardou para que os planos do pai se
concretizassem, e Chiquinha se casou com um bem sucedido empresrio, Jacinto do
Amaral.
33
As imposies sofridas pelas mulheres so descritas pela bigrafa Edinha Diniz:
branca, a desconfiana e a opresso impunham um regime de
semiclausura, tornando-D XPD HVFUDYD GR ODU Os bordados, os doces, a
conversa com as negras, o cafun, o manejo do chicote, e aos domingos uma
visita Igreja, eram todas as distraes que o despotismo paternal e a poltica
conjugal permitiam s moas e s inquietas espRVDV',1,=
Nos cinco anos que se sucederam ao casamento, o marido tentou reprim-la de
todas as maneiras possveis; ao tentar enquadr-la nos padres da sociedade vigente, a
probe de tocar qualquer instrumento, impondo um distanciamento absoluto msica.
Chiquinha ento decide separar-se, iniciando um longo processo de afirmao como
compositora e instrumentista. Edinha Diniz escreve sobre sua trajetria:
1R FDVR GH &KLTXLQKD *RQ]DJD d-se um fato indito at ento: ela
transforma o piano de mero ornamento em um meio de trabalho e
instrumento de libertao. A tarefa exigia talento, coragem e capacidade de
trabalho. Isso no assustava. Sua personalidade at ento esmagada dava
OXJDUDJRUDDXPDRXWUDDXW{QRPDHDXGDFLRVDIbidem: 91)
Rejeitada pela famlia e discriminada pela sociedade, Chiquinha Gonzaga
gradativamente conseguiu se estabelecer como professora de piano e pianista, iniciando
sua carreira no grupo do amigo e flautista Joaquim Antonio Callado.
Apesar de ser uma pianista com formao erudita, Chiquinha Gonzaga foi
denominada pianeira:
2 SLDQLVWD GH FKRUR GHVVH SHUtRGR SDVVRX D KLVWyULD FRPR SLDQHLUR,
executante de formao precria mas intrprete de bossa. O importante era o
EDODQoR exigido. Foi o primeiro profissional de piano ligado ao choro:
SULPHLUDSLDQHLUDHSULPHLUDFKRURQDIbidem: 95)
34
Passou a vida lutando pela emancipao da mulher - alm de outras causas
polticas, como a libertao dos escravos e a proclamao da repblica. Entre lutas e
desafios, conquistou o direito de assinar seu nome como autora de trilhas musicais para
o j citado teatro de revista, recusando a hiptese de ter seu nome substitudo por um
pseudnimo masculino. Ainda, Chiquinha Gonzaga foi reconhecida como a primeira
maestrina da nossa histria.
Um dos fatos musicais mais relevantes de sua carreira aconteceu no ano de
1899, quando o bloco carnavalesco Rosas de Ouro encomendou uma msica para
competir no carnaval daquele ano. Chiquinha, ao assistir ao ensaio do bloco, se inspirou
no ritmo dos passos da dana e comps uma de suas mais famosas composies: Oh
Abre Alas!
Pioneira, revolucionria e inovadora a compositora, mesmo sem inteno, criou
a primeira marcha-rancho (princpio das marchinhas) 4, antecipando o gnero em mais
de dez anos.
Abre Alas
abre alas Que eu quero passar
abre alas Que eu quero passar
Eu sou da Lira No posso negar Eu sou da Lira
No posso negar abre alas
Que eu quero passar abre alas
Que eu quero passar Rosa de Ouro
quem vai ganhar Rosa de Ouro
quem vai ganhar.
4 6HJXQGRRKLVWRULDGRU$QGUp'LQL])RLQRVDJLWDGRVDQRVTXHDPDUFKDVHIL[RXFRPRXPGRVprincipais gneros musicais executados durante a folia. Dada sua ligao direta com os ranchos, ela ficou conhecida primeiro como marcha-rancho. Cadenciado, com encaixe perfeito para a evoluo pelas ruas, o gnero surgiu porque aqueles grupos musicais precisavam diferenciar sua apresentaes das dos blocos GRVVXMRV
35
Outra luta empreendida pela compositora foi a criao da SBAT (Sociedade
Brasileira dos Autores Teatrais); alm de ter sido uma das fundadoras, lutou muito pelos
direitos de autoria de uma obra, questo extremamente polmica e relevante at os dias
atuais.
Ao longo de sua vida, Chiquinha comps muitos sucessos, principalmente para o
teatro de revista, que teve importante contribuio para sua vida financeira, e foi um
meio muito importante para a divulgao de sua obra.
Chiquinha Gonzaga, ao recusar se enquadrar nos padres de comportamento da
sociedade vigente, deixou de ser uma sinhazinha obediente e comportada para se
transformar em uma mulher emancipada e revolucionria.
Anacleto de Medei ros (1866 1934)
Filho bastardo de uma escrava liberta, Anacleto nasceu na Ilha de Paquet.
Estudou em uma escola para meninos carentes, internato onde passou a infncia. Foi
nesta escola que iniciou seus estudos musicais. Desde cedo, demonstrou muita
habilidade para tocar instrumentos de sopro e, por fim, optou pelo clarinete.
A experincia adquirida com vrios instrumentos de sopro lhe proporcionou o
conhecimento necessrio para formao de bandas, e tambm para arregimentar
msicos para esta formao.
Anacleto organizou e dirigiu a Banda do Corpo de Bombeiros e, com muito
trabalho e disciplina, conquistou lugar de destaque, tornando-se uma referncia do
gnero. Essa banda se destacava pela desenvoltura rtmica e musicalidade na execuo
de obras arranjadas que eram, muitas vezes, escritas pelo prprio maestro.
Um ponto relevante o fato de Anacleto chamar os msicos chores para fazer
parte de sua banda; esses msicos, como j foi visto anteriormente, eram instrumentistas
que liam partituras com facilidade e improvisavam muito bem, alm de possurem a
vivncia rtmica prpria dos grupos de chores.
36
A ponte que Anacleto realizou entre a cultura das bandas e a das rodas de
Choro enriqueceu enormemente ambas as manifestaes. Por um lado, a
Banda do Corpo de Bombeiros conseguiu um resultado nico em termos de
coeso e musicalidade, por outro, a linguagem chorstica se propagou como
HPQHQKXPRXWURPRPHQWR&$=(6: 32)
A sonoridade resultante do trabalho da banda era excepcional, pois os
instrumentistas - cuidadosamente escolhidos pelo maestro - traziam dos grupos de
chores uma prtica rtmica caractersticaHDH[HFXomRPXVLFDOHUDUHSOHWDGHJLQJD
GH PROKR R TXH UHVXOWDYD HP LQWHUSUHWDo}HVPDLV OLYUHV HPDLV RULJLQDLV SDUD XPD
banda marcial.
As gravaes mecnicas do Brasil tiveram incio nos primrdios do sculo XX, e
D&DVD(GiVRQ 5 foi a gravadora pioneira nos registros de msica na cidade do Rio de
Janeiro. Todo o processo de gravao era muito rudimentar, e a captao do som era um
ponto delicado, pois quanto maior o volume da execuo da msica, melhor era o
resultado da gravao6.
Andr Diniz afirma a importncia das gravaes:
O principal meio de preservao da obra de um compositor consiste na
possibilidade de ela ser registrada durante os anos. J dissemos que, nos
5 Em homenagem a Thomas A. Edison, deu ao seu estabelecimento o nome de Casa Edison. Mais tarde GHFODURX desde que me mudei para a rua do Ouvidor, dei o nome Casa Edison a minha casa, em homenagem ao inventor do fongrafo, no me preocupando se era legal o meu procedimento, e desde que os Davidson Pullen ET Cia. comearam a importar os fongrafos e cilindros da National Phonograph Co., todos caixes vinham com a marca F.F./Casa Edison isWRGXUDQWHTXDWURDQRVHSRXFR Coincidindo com o incio do sculo XX, comeou a se estabelecer estreita relao entre a Casa Edison e a cultura popular. Na poca, ningum se deu conta da importncia que isso teria futuramente. Era uma atividade puramente comercial e Figner, por toda a vida, no se props a nada disso. (FRANCESCH, 2002: 51) 6 A Banda do Corpo de Bombeiros soava com uma maciez de interpretao inesperada para uma banda militar e, ao contrrio das outras, com surpreendente rendimento tcnico de gravao. A escolha dos msicos, os tipos de instrumentos empregados e a disposio deles na sala de gravao talvez sejam o segredo desse sucesso. A limitao fsica da sala, apenas um puxado nos fundos da loja na rua do Ouvidor 105, com pouco mais de 5 metros de largura por menos do dobro de comprimento, no permitia mais do que 8 a 12 figuras. O nmero dos elementos determinava o tipo de arranjo a ser feito, e o toque marcial que eles produziam supria as necessidades dos tcnicos estrangeiros, que operavam os precrios equipamentos de gravao; essa sonoridade de metais permitia uma qualidade, no rendimento final, melhor do que as gravaes feitas com cantores acompanhados de piano e conjuntos de flauta, violes e cavaquinho. (Ibidem: 118)
37
primrdios da Casa Edson, o compositor mais gravado pela Banda do Corpo
GH%RPEHLURVHUDRSUySULR$QDFOHWRGH0HGHLURV',1,=: 75)
As bandas eram o tipo de grupo mais adequados para a captao destes registros,
por serem exatamente a unio de vrios instrumentos de sopro que dispunham de uma
potncia sonora ideal para estas primeiras gravaes. Por esta razo, temos muitos
registros de gravaes da Banda do Corpo de Bombeiros, regidas pelo maestro Anacleto
de Medeiros.
O maestro tambm se destacou pelas composies de sua autoria, que
demonstram claramente a transio da polca europeia para o maxixe brasileiro; dois
exemplos que podem ilustrar esta observao so a polca Medrosa e o maxixe O
Bomio.
E rnesto Nazareth (1863 1934)
Ainda menino, Ernesto Nazareth teve suas primeiras aulas de piano em casa;
desde ento, o pianista - que teve como primeira formao o estudo da msica erudita -
nunca mais deixou de tocar piano. Comeou a compor aos quatorze anos de idade e
seguiu compondo por mais de cinquenta anos.
Estudou profundamente as obras de compositores europeus, e isso lhe deu uma
grande compreenso da tcnica do piano; ainda, passou a maior parte de seu tempo
estudando, com o objetivo de se tornar um concertista.
Em suas composies possvel observar seu profundo conhecimento pianstico,
somado aos sons populares que estavam sendo executados e ouvidos na cidade do Rio
de Janeiro. Nazareth conseguiu estabelecer dilogos com os estudos dos grandes
compositores europeus, como Chopin - que era sua especialidade - e os diversos sons
que vinham das ruas, para criar uma msica autntica e original; suas obras so de
difcil execuo, mas a sonoridade muito acessvel.
38
Sua obra possui caractersticas de profundo conhecimento musical, mesclado a
ritmos populares; foi um compositor que conseguiu traduzir, atravs de sua obra, as
riquezas culturais que borbulhavam pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro.
$R FRQWUiULR GRV FROHJDV 1D]DUHWK QmR FRPS{V VLPSOHVPHQWH WDQJRV
polcas, schottisches. Ele captou o esquema rtmico-meldico criado pelos
chores enfim, a alma do choro e o levou para o piano, estilizando-o de
forma magistral. E como era grande compositor, enriqueceu-o com belas
melodias. Uma caracterstica peculiar de sua obra a localizao na fronteira
do popular cRP R HUXGLWR 8P WDQJR FRPR R %UHMHLUR, por exemplo,se
executado ao piano como o autor o escreveu, uma pea refinada, digna de
qualquer sala de concerto. Se, entretanto, interpretada por um msico
popular, passa a ser uma composio chorstica autntica, retornando s
RULJHQV6(9(5,$12: 39)
No conseguiu ser concertista, e mesmo sendo um compositor reverenciado em
sua poca, Nazareth passou a vida tendo muitas dificuldades financeiras, dividindo-se
entre tocar em recepes das elites e salas de cinemas, alm de ser pianista
demonstrador em casas de piano.
2SUySULR1D]DUHWKQRPHRXDPDLRULDGHVXDVREUDVFRPR7DQJR%UDVLOHLUR-
como j foi citado anteriormente; essa era uma exigncia para a comercializao de
partituras em sua poca.
A vida de Nazareth foi acompanhada por diversos problemas de sade; desde a
perda da audio de um ouvido na infncia, que o perturbava constantemente, at
problemas psquicos graves, que se estenderam at sua morte em uma casa de repouso
para doentes psiquitricos.
Suas obras so executadas em diversos pases, e suas msicas aplicadas como
estudos para piano, alm de ser repertrio obrigatrio para os estudantes de choros.
39
Pixinguinha/ A lfredo V iana da Rocha F ilho (1897 1973)
Pizindin era como sua prima Santa o chamava7, e Pixiguinha foi o apelido
adquirido depois das marcas herdadas por uma epidemia de varola; a doena deixava
marcas na pele que eram chamadas de bexiga, e bixiguinha seria um dos codinomes que
com o tempo resultaria em seu apelido definitivo. De acordo com o depoimento do
prprio Pixinguinha para o MIS (em entrevista para o Museu da Imagem e do Som, em
1966), segundo o autor Srgio Cabral, dessa combinao de nomes com fonemas
parecidos, surgiu o apelido que o consagraria como um dos maiores compositores de
toda nossa histria.
Pixinguinha um dos raros exemplos de msicos que possuem uma srie de
caractersticas especiais, difceis de serem encontrada em um s artista. Foi exmio
flautista, compositor reconhecidamente talentoso, arranjador autodidata, possuidor de
uma tcnica incomparvel, e maestro.
20DHVWUR*XHUUD3HL[HHPHQWUHYLVWDFRQFHGLGDDR-RUQDO27HPSRGH6mR
Paulo no ano de 1952, declarou:
&LWDUHLXPD~QLFDILJXUDTXHSRUVLUHSUHVHQWDWUrVFODVVHs de intrpretes: o
orquestrador, o instrumentista e o compositor, segundo a ordem de influncia
de suas atividades. Refiro-me a Pixinguinha. Realmente, este artista deve ser
encarado como um ponto de partida a ser seguido pelos orquestradores
brasileiros. Seus trabalhos nessa especialidade, ainda, quando realizados para
orquestra de jazz, deixam transparecer valores tpicos da nossa msica
popular, seja em harmonia, contraponto, ritmo e feio regional. Tanto assim
que, apesar do menosprezo daqueles tais modernistas que o acham passadista,
Pixinguinha considerado, e com muita razo, o nico orquestrador que d
IRUoDUHJLRQDOjQRVVDP~VLFD3(,;(Apud SILVA e OLIVEIRA FILHO,
1998: 251)
7 $SHVDU GH H[LVWLU XP VHQVR FRPXP TXH DWULEXL HVVH DSHOLGR D DYy DIULFDQD GH 3L[LQJXLQKD IRUDPHQFRQWUDGDVRXWUDVIRQWHVSDUDVXDRULJHP$OpPGLVVRRDSHOLGRQmRWLQKDVLGRLQYHQWDGRSRUTXDOTXHUdas avs. Tinha sido atribudo ao menino por uma prima, Eurdice, esposa de Antonio Macedo Costa. Essa prima mais conhecida como Santa, era irm de Alzira (Cabocla), casada com Honrio Cavaquinho, que ainda vivo em 1977, com mais de noventa anos, confirmou o que disseram as irms de Pixinguinha: foi a sua cunhada Santa, que deu o apelido Pizindin ou Pizinguim ao filho do seu AlfredR%$5%2=$da SILVA e OLIVEIRA FILHO, 1998: 11-12)
40
Sua casa era conhecida como Penso Viana e sempre eram organizados saraus,
animando as noites cariocas no incio do sculo XX, e reunindo muitos msicos, para o
deleite dos participantes. Seu pai era flautista amador, e frequentemente proporcionava
reunies musicais que no tinham hora para acabar; por esta razo, tinha como hbito
hospedar em sua casa msicos com dificuldades financeiras.
Srgio Cabral escreve sobre o assunto: 3HQVmR9LDQDou seja, o casaro
no Catumbi (oito quartos e quatro salas) onde o velho Alfredo da Rocha Viana abrigava
a famlia e alugava quartos para os amigos msicos como o compositor Sinh Jos
Barbosa da Silva e o instrumentista e compositor Irineu de Almeida.
Todo este ambiente colaborou para que o jovem Pixinguinha iniciasse sua
carreira musical aos sete anos, com o cavaquinho, passando pouco tempo depois para a
flauta transversal, comprada por encomenda pelo pai, que logo detectou o talento do
filho.
Um dos msicos hospedados na penso Viana foi o j citado trombonista Irineu
Batina, instrumentista responsvel pelas primeiras noes musicais de Pixinguinha.
Com quatorze anos de idade, Pixinguinha teve seu primeiro emprego
SURILVVLRQDO VXEVWLWXLQGR R IODXWLVWD 3DVVRV QD FDVD GH FKRSH /D &RQFKD H IRL QR
JUXSR 3DVVRV GR FKRUR TXH R MRYHP IODXWLVWD WHYH D RSRUWXQLGDGe de mostrar
publicamente, pela primeira vez, seu talento musical.
7RFRX QR JUXSR &D[DQJi FRQVWLWXtGR SRU TXLQ]H LQVWUXPHQWLVWDV FXMR
repertrio era composto por msicas regionais; mas, devido a um pedido de um
empresrio, o grupo foi reduzido praticamente pela metade para tocar em um cinema:
DVVLP QDVFHX R JUXSR 2V 2LWR %DWXWDV 8. Destas audies na anti-sala do cinema
surgiu o convite para tocar em Paris.
8 Foi o prprio Isaac Frankel que deu o nome de Oito Batutas ao conjunto que, a partir de sete de abril de 1919, passou a tocar no Cinema Palais. O nascimento dos Oito Batutas resultou na morte do Grupo do Caxang, cuja despedida se deu naquele carnaval, tocando na sede dos Tenentes do Diabo, numa das famosas batalhas carnavalescas da Rua Dona Zulmira e num concerto montado em frente ao Clube de So Cristvo. Os Oito batutas apresentaram-se no Cinema Palais com a seguinte formao: flauta, Pixinguinha; violo, Donga; violo e canto, China; cavaquinho, Nlson Alves; violo, Raul Palmieri; bandola e reco-reco, Jacob Palmieri; bandolim e ganz, Jos Alves de Lima, o Zez. (CABRAL, 1997: 44-45)
41
Foi a primeira viagem de um grupo de choro Europa; nessa viagem, tiveram a
oportunidade de conhecer e dialogar com muitas culturas diferenciadas pois Paris era,
na poca, referncia em todo o mundo.
Pixinguinha trabalhou como arranjador e maestro da gravadora RCA Victor,
onde inaugurou uma maneira particular e pessoal de fazer esse trabalho.
Trabalhou a vida inteira tocando, compondo e fazendo arranjos; contudo, teve
uma vida muito simples e passou por vrias dificuldades; embora tenha sido autor de
msicas reconhecidas, difundidas e excessivamente gravadas, no conseguiu se
beneficiar financeiramente com esse fato.
Srgio Cabral escreve sobre a importncia de Pixinguinha como artista:
$ VXD SDVVDJHP SHOD P~VLFD SRSXODU EUDVLOHLUD IRL WmR ORQJD TXDQWR
marcante. Compositor, instrumentista, orquestrador e regente, Pixinguinha
apontado por quase todos os que mergulham fundo no estudo de nossa
msica como um dos maiores nomes que ela produziu em todos os tempos.
Ao mesmo tempo em que criou para as suas necessidades de artista genial,
foi tambm o inventor de uma linguagem para os outros. Produziu as suas
obras e alicerou uma cultura. sem dvida, um dos pais da msica popular
EUDVLOHLUD$VVLPpWDPEpPXPGRVSDLVGDQRVVDQDFLRQDOLGDGH
Pixinguinha foi pea fundamental para a organizao do choro como linguagem
e, atravs de suas obras, criou receitas que puderam ser usadas como frmulas para a
criao do choro.
O choro s se tornou um gnero consolidado em 1910, com Pixinguinha o
maior choro de todos os tempos. Na poca de Anacleto, o estilo era
considerado mais um jeito de tocar os gneros estrangeiros, como a polca, a
valsa, a quadrilha, o schottish. O flautista Joaquim Callado, tido como o pai
dos chores e os pianistas Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth foram
LPSRUWDQWtVVLPRVSDUDDFRQVROLGDomRGRJrQHUR',1,=5-46)
42
Pixinguinha, ao transitar em diversos campos musicais, deixou como herana
todo um material que pde ser explorado pelos compositores que surgiram depois de
sua obra. Um destes compositores o tema desta pesquisa: Waldir Azevedo.
43
I . 4 Choro: caracter sticas musicais
Ao tentar descrever qualquer gnero musical, podemos citar algumas
caractersticas que contribuem para essa definio; no caso, essas caractersticas dizem
respeito ao choro. Para tanto, se faz necessrio pontuar algumas delas, descrevendo-as,
com o objetivo de esclarecer questes sobre esse tema. So elas:
x Forma; x Ritmo; x Modulao; x Anacruse; x Contratempo.
Com a inteno de identificar essas caractersticas, foram escolhidas algumas
obras que serviro de exemplos musicais, auxiliando a compreenso deste gnero.
Forma: Rond9
Herdada da msica europeia, a forma rond possui trs partes: A B C,
estabelecendo uma maneira particular de executar a msica.
Arnold Schoenberg, em seu livro Fundamentos da composio musical, no
captulo sobre a forma rond, FRQWULEXL SDUD D FRPSUHHQVmR GHVWH WHPD As formas-
rond so caracterizadas pela repetio de um ou mais temas separados por sees
contrastantes
Os choros at o final do sculo XIX possuam trs partes e eram executados da
seguinte maneira:
: A :%$&$
9 Por influncia da msica europia os choros, at o final do sculo XIX, eram compostos em trs partes; porm, a partir do sculo XX, encontramos vrios exemplos de choros compostos em duas partes, como Carinhoso e Lamentos. O autor Henrique Cazes nos confirma este fDWR+DYLDXPFRPSURmisso muito rgido em se criar choros em trs partes num esquema originrio da polca e conhecido havia muito tempo como forma rond. Essa forma em que se toca cada parte e sempre se volta primeira j estava presente em gneros anteriRUHVjSROFD
44
A parte A executada duas vezes, seguindo para a parte B que, assim como a
parte anterior, repetida; a msica retorna, ento, para a parte A, sem repetio e segue
para a parte C, sendo executada com repetio, finalizando com o retorno parte A.
O pesquisador e escritor Carlos Almada comenta sobre esta forma musical:
6HPVLPLODUHVHPUHODomRDRXWURVJrQHURVGDP~VLFDSRSXODUDHVWUXWXUDGH
um choro (e dos outros estilos correlatos, como a polca, o xtis, o maxixe
instrumental, o tango brasileiro, a valsinha) adota a chamada forma rond. O
rond uma das mais antigas estruturas utilizadas na organizao de um
discurso musical. Consiste basicamente numa parte ou tema principal
(tambm chamado de refro), que sempre retorna aps intervenes
FRQWUDVWDQWHVGHRXWUDVSDUWHVRXWHPD
Essa execuo pontuada pelo constante retorno parte A da msica, que o
tema principal; portanto, comeamos e terminamos em um mesmo ponto, remetendo ao
nome rond, que seria uma referncia a um crculo ou roda10, onde o princpio e o fim
se encontram.
Exemplos de choros que obedecem esta forma:
F lor Amorosa (J. A. Callado)
Odeon (Ernesto Nazareth)
Os oito Batutas (Pixinguinha)
Ritmo
O ritmo um elemento fundamental para a construo estrutural de um choro.
No caso, existem duas questes relevantes para serem observadas:
1 - Acompanhamento do choro: executado por todos os instrumentos que no
exercem a funo de solista; no caso de um grupo de choro tradicional, os
violes de seis e sete cordas, o cavaquinho e a percusso.
10 'H DFRUGR FRP5RODQG GH &DQGp R URQGy p D FRPSRVLomRPXVLFDO EDVHDGD QD DOWHUQkQFLD GH XPUHIUmRHGH YiULDVFRSODV(VWD IRUPDPXLWRVLPSOHVGHULYDGR URQGyFDQWDGRHGDQoDGRTXHQRVpFXVIII, que servia para acompanhar a roda. Contudo, o princpio mais antigo e corresponde a um LQVWLQWRQDWXUDOGRDPDQWHGDP~VLFDRGDUHSHWLomR&$1'eVG
45
Ritmos Bsicos:
2 - A melodia do choro, realizada por instrumentos solistas, como a flauta, o
clarinete e o bandolim, entre outros.
Clulas rtmicas musicais recorrentes nas composies de choro:
Fig.1 Fig.2 Fig.3 Fig.4 Fig.5 Fig.6
Exemplos: Carinhoso Pixinguinha Fig.1
Proezas de Slon Pixinguinha Fig.2 e Fig.4
46
Eu quero sossego K- Ximbinho e Hianto de Almeida Fig.3 e Fig.4
Carioquinha Waldir Azevedo Fig.5
Vibraes Jacob do Bandolim Fig.6
Modulao
Chamamos de modulao a mudana de tonalidade de uma parte para a outra da
msica, e a volta para a tonalidade inicial, no caso do choro.
Segundo o autor Roland de Cand:
(P OLQJXDJHPFRUUHQWH FKDPD-se modulao passagem de um tom para
outro no decurso de uma composio musical. Etimologicamente modular
(modulari de St Agostinho) significa conduzir convenientemente um canto,
QRPRGRTXHFRQYpPRXSRUH[WHQVmRSDVVDUGHXPPRGRDRXWUR (p. 150)
O choro comea com um tema principal (A); na passagem para a parte (B),
ocorre mudana de tonalidade; retorna-se, ento, para a parte (A) e, na passagem para
parte (C), muda-se para nova tonalidade; por fim, retornamos para A, finalizando a
msica. Este caminho musical caracterstico do choro.
47
e WDPEpP FDUDFWHUtVWLFR GR FKRUR XP HVTXHPD KDUP{QLFR JUDYLWDFLRQDO
(que obviamente tambm deriva dos ronds antepassados) no qual as
tonalidades das partes B e C so vizinhas da tonalidade central, de A. Com o
passar do tempo a cristalizao da prtica composicional, a preferncia pelos
esquemas de relaes de tonalidades entre as partes reduziu-se a um nmero
EDVWDQWHUHVWULWRGHSRVVLELOLGDGHVALMADA, 2006: 09)
Na msica Vou Vivendo, de Pixinguinha, a parte A est em F Maior,
modulando posteriormente, na parte B, para R Menor (relativa menor de F maior); a
parte A , ento, repetida, e a msica modula na parte C para D Maior (Subdominante
de F maior); por fim, finalizada na parte A, na tonalidade inicial.
Anacruse
A Anacruse se d quando a entrada da msica acontece no tempo fraco, ou seja,
so tocadas algumas notas que antecedem o tempo forte, tambm denominado como
cabea do tempo.
Segundo Carlos Almada, anacruse um recurso de construo meldica bastante
comum em choros. Em suas pesquisas constatou que os tipos de anacruses em choro so
em nmero relativamente reduzido (trs no total), sendo alguns mais recorrentes que
outros. (2006: 61)
48
Exemplos:
Brasileirinho Waldir Azevedo
Cochichando Pixinguinha
Naquele Tempo Pixinguinha
49
Contratempo
Alm da presena marcante da anacruse no incio da msica, o contratempo
uma questo recorrente na construo de um choro, e comum estar presente em todas
as partes da msica.
O contratempo, assim como o prprio nome diz, a utilizao de clulas
musicais rtmicas que esto fora do tempo forte; esse fato contribui para uma concepo
musical ritmicamente mais variada e criativa, qual comumente chamada de
EDODQoRPROKRJLQJD (entre outros nomes) QRMDUJmRPXVLFDOHSURSRUFLRQDXPD
sensao musical prpria do choro.
Alguns exemplos musicais de contratempo no choro:
Vou Vivendo Pixinguinha
Pedacinhos do Cu Waldir Azevedo
50
I I - W A L DIR A Z E V E D O : F O R M A O A R T ST I C A 6yDOJXPDVSHVVRDVHVFROKLGDVSHODIDWDOLGDGHGRDFDVRSURYDUDPGDOLEHUGDGHHVTXLYDHGHOLFDGDGD
vidD Clarice Lispector
I I . 1 - O M sico
Waldir Azevedo nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 27 de janeiro de 1923,
filho nico de uma famlia de classe mdia; seu pai era funcionrio da Light e sua me
dona de casa.
Seu primeiro contato efetivo com msica aconteceu pelo interesse na flauta
tocada por um vizinho; esse fato despertou tanto encantamento em Waldir que ele
resolveu capturar e vender passarinhos para compr-la e comear a tocar. Mais tarde, o
jovem Waldir comeou a tocar violo e participar de uma roda de choro com amigos.
Tudo ocorria de maneira informal, e Waldir Azevedo iniciava sua aprendizagem
musical pela tradio oral - caminho muito utilizado pelos msicos populares, como j
foi citado no captulo anterior.
O escritor Michel de Certeau, em seu livro Cultura no Plural, nos ajuda a relatar
este processo:
O cotidiano est semeado de maravilhas, espuma to fascinante, nos ritmos
prolongados da lngua e da histria, quanto dos escritores ou dos artistas.
Sem nome prprio, todas as espcies de linguagens do origens a essas festas
efmeras que surgem, desaparecem e retornam. (1995: 245)
Uma roda de choro que acontecia frequentemente na vizinhana facilitou o
primeiro contato com os vrios instrumentos de cordas dedilhadas, possibilitando assim
51
suas primeiras escolhas; seu interesse inicial se deu pelo bandolim e, em seguida, pelo
violo, at chegar ao violo-tenor11.
Este um instrumento de quatro cordas inventado e difundido pelo grande
instrumentista Garoto12 (Augusto Anbal Sar