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CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DAS ORIGENS DA RAÇA DO BURRO DE POITOU : O COMÉRCIO DE BURROS E MULAS ENTRE A REGIÃO DE POITOU E A PENÍNSULA IBÉRICA, EM PARTICULAR COM PORTUGAL, DESDE A IDADE MÉDIA ATÉ AO FINAL DO SÉCULO XIX Carlos PEREIRA Universidade de Paris III Sorbonne 2007 Com o apoio do gabinete de Charente Maritime Centro de criação do Burro de Poitou

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CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO

DAS ORIGENS DA RAÇA DO BURRO DE POITOU :

O COMÉRCIO DE BURROS E MULAS ENTRE A REGIÃO DE POITOU E A PENÍNSULA IBÉRICA, EM PARTICULAR COM PORTUGAL, DESDE A IDADE

MÉDIA ATÉ AO FINAL DO SÉCULO XIX

Carlos PEREIRAUniversidade de Paris III Sorbonne

2007

Com o apoio do gabinete de Charente Maritime

Centro de criação do Burro de Poitou

(AEPGA )

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Índice

INTRODUÇÃO P. 4

PRIMEIRA PARTE : A SITUAÇÃO DE CRIAÇÃO ASININA E MULATEIRA NA PENÍNSULA IBÉRICA DESDE A IDADE MÉDIA ATÉ AO FINAL DO SÉCULO XIX

A. A política de criação asinina e mulateira p. 71) A legislação « anti-mula » na Península Ibérica p. 8a. Na Idade Média p. 9b. Lei de 1642 p. 10c. Lei de 1650 p. 10d. Lei de 1660 p. 10e. Lei de 1669 p. 112) O recenseamento de 1870 p. 11a. Efectivos mulateiros e asininos p. 12b. Fisionomia da criação mulateira e asinina no distrito de Bragança em 1870

p. 13B. As raças asininas Ibéricas p. 171) As raças espanholas p. 17a. A raça catalã p. 17b. A raça maiorquina p. 18c. A raça Zamorana-Leonesa p. 18d. A raça Andaluza p. 182) As raças Portuguesas p. 19a. Antes de 1900 p. 19b. Ano 2000 : uma nova tipologia para as raças asininas Portuguesas ? p. 22C. As características zootécnicas da produção mulateira Ibérica p. 251) As raças mulateiras em Espanha p. 252) As raças mulateiras em Portugal p. 26

SEGUNDA PARTE : A ORGANIZAÇÃO DO COMÉRCIO DE BURROS E DE MULAS

A. As necessidades específicas do mercado Ibérico p. 271) A agricultura : a importância da tracção animal p. 282) O comércio : o papel chave dos mulateiros p. 283) Os transportes : prioridade das mulas p. 294) Os territórios além mar : a falta de equinos cruzados p. 30a) A introdução dos burros, cavalos e mulas na América Latina p. 31b) Os mulateiros brasileiros ou « tropeiros » p. 325) O exército : o papel dos equinos nas defesas das fronteiras p. 35

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B. Fisionomia das trocas p. 381) Os circuitos comerciais p. 38a. Importações e exportações de burros e de mulas entre Portugal e Espanha

p. 38b. Importações e exportações entre Espanha e a região de Poitou p. 39c. Importações e exportações de burros e mulas entre Portugal e a região de

Poitou p. 402) As rotas comerciais p. 42a. As trocas por via marítima p. 42b. As trocas por via terrestre p. 45

TERCEIRA PARTE : UMA NOVA ROTA A EXPLORAR : O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA

A. Burros e mulas no caminho de Santiago p. 48B. O milagre do burro de Santiago p. 501) O livro dos milagres de Santiago : um autor do livro da região de Poitou ?

p. 502) Um conto sobre uma exportação de um burro da raça asinina espanhola até à

região de Poitou p. 51

CONCLUSÃO P. 53

BIBLIOGRAFIA P. 56

ANEXOS ESTATÍSTICOS P. 57

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INTRODUÇÃO

O burro da raça de Poitou é a mais antiga e espectacular das raças de burros. O tamanho grande, o seu pêlo comprido e o seu carácter jovem fizeram dele, através do tempo, um companheiro precioso para o Homem. O burro de Poitou faz parte, em conjunto com o cavalo da região de Poitou, das raças locais em risco de desaparecerem. Assim é, que no final dos anos 70, restavam apenas 44 animais de raça pura. Graças à intervenção determinante do parque interregional de Marais Poitevin, do Haras Nacional e do Gabinete de Charente Maritime, a extinção foi evitada. E no centro Pôle Nature da Asinerie do Burro de Poitou, na comunidade de Dampierre sur Boutonne, que são levadas a cabo, em conjunto com os criadores, as acções para a conservação de modo a assegurar definitivamente a salvaguarda desta raça emblemática para a região. Hoje em dia, existem muito poucos estudos sobre a origem da raça. Dois clássicos da literatura zootécnica fazendo referência ao Burro de Poitou evocam duas pistas e provavelmente duas hipóteses. Em primeiro lugar, em 1867, Eugène Ayrault evoca o historial do Burro de Poitou no seu célebre tratado intitulado « A indústria mulateira em Poitou »: « A procura por parte de alguns veterinários da origem da raça dos burros ou da sua introdução em Poitou Gascogne, levou-os ao reinado de Filipe V, rei de Espanha, data da sua importação nestas duas províncias de França ; introdução que terá sido consentida pelo rei de França, em virtude de um pacto que Filipe guardou secretamente, pois privava o seu reino de um monopólio que ajudaria à fortuna dos seus intermediários»1.

Em 1925, o doutor Léon Sausseau aprofundou o tema no seu tratado, tornando-se uma referência no estudo do Burro, intitulado « O burro, o cavalo mulateiro e a mula de Poitou » : « Foi afirmado que no reinado de Filipe V, rei de Espanha, (1700/1746), uma importação de burros espanhóis, teria introduzido em Poitou a raça que se conservou até aos nossos dias. É possível que a ascensão ao trono Espanhol do neto do rei Filipe XIV facilitasse as trocas entre os dois países e permitisse uma tal importação, mas, apesar de todas as pesquisas, não foi encontrado nenhum documento dando a conhecer as circunstâncias de tal introdução, a sua data precisa e a quantidade de animais recebidos. Esta afirmação que tende a admitir para a variedade poitevina uma origem estrangeira e relativamente recente, figura, não se sabendo a partir de que fonte na Maison Rustique du XIXème siècle,  « casa rústica do século XIX » (Tome III, p. 438). Foi aceite sem controlo e reproduzida pela maior parte dos autores que escreveram sobre o burro de Poitou sem procurar aprofundar»2.

Este último autor parece pouco convencido pela pista Espanhola, sem ter em conta que uma importação pontual possa ter dado origem a uma raça local. No inicio do século XXI, o mistério permanece. Efectivamente, existe uma raça em Espanha na região de Zamora um burro do mesmo tronco genealógico que o burro de Poitou. Curiosamente em 2000, A engenheira Zootécnica Luísa Samões identifica a raça do burro de Miranda cujas características se aproximam das do Baudet de Poitou e do Zamorano Leonês. Consultando o livro sobre o burro de Zamora do veterinário José Emílio Yanes García, encontramos um esquema que diz respeito à difusão da raça

1 Ayrault, Eugène. A indústria mulateira em Poitou, onde se estuda a raça equina mulateira, o burro e o macho, Paris : edição, 1867 (fac-similée das edições Lavauzelle 2004), p. 1 2 Sausseau, Léon. O burro, os cavalos mulateiros e a mula de Poitou, Paris : edição Office departamental agricola de Deux-Sèvres, (edição fac-similées de Lavauzelle, 2002), p. 33/34

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Zamorana-Leonesa3 : as variedades francesas e portuguesa seriam de origem estritamente espanhola. Analisando a parte histórica, o leitor encontrará poucos elementos convincentes. O autor não faz referência aos autores franceses que estudaram o burro de Poitou. Assinala apenas um único documento português que diz respeito ao burro escrito pelo doutor Ruy de Andrade. Identificar o berço da raça constitui um desafio maior e provavelmente de difícil resolução. Encorajado pela Asinerie do Baudet de Poitou e a sua directora Caroline Charpentier e pela AEPGA (burro de Miranda) e o seu presidente Miguel Nóvoa, decidimos publicar um pequeno estudo aquando da jornada da pesquisa equina de 2006 para tentar perceber as origens as origens do burro de Poitou e os seus « primos » ibéricos. O nosso estudo mostra que aquando da reconstrução da raça de Poitou houve necessidade de reintrodução de sangue ibérico (Miranda e Zamora)

Esta preservação confirma o parentesco genético de três raças autóctones. Actualmente as análises de ADN têm por objectivo compreender a história do burro de Poitou. No trabalho de pesquisa e de previsão, verificamos simplesmente que estas três raças se encontram no eixo Atlântico. Esta constatação associada aos nossos trabalhos anteriores sobre a história das raças em Portugal sugere-nos uma pista marítima e o porto de La Rochelle. Com efeito, este porto francês situado na proximidade da região de Poitou era no século XVII um local estratégico para o tráfico de armas e de equinos vindos de diversas regiões europeias. Nesta época os Portugueses possuíam uma sólida fragata e comercializavam regularmente com França a partir deste porto. Além disso sabemos que os Portugueses possuíam caravelas capazes de transportar vários cavalos : tinham por exemplo o monopólio do comércio de cavalos árabes entre o médio Oriente e a Índia. Também os Espanhóis e os Portugueses introduziram por via marítima os equídeos no novo mundo.

Sabemos também que aquando da restauração da monarquia portuguesa em 1640, os portugueses importaram em massa cavalos franceses, provavelmente por via marítima pois estavam em guerra com os Espanhóis. Estes factos históricos levam-nos a esta proposta de estudo para percebermos as origens do burro de Poitou, com o apoio financeiro do gabinete de Charente Maritime, definimos seis objectivos :

Estudar as relações comerciais entre Portugal e La Rochelle desde o fim da idade média ao século das ideias e das grandes mudanças;

Identificar os pormenores do comércio de equídeos ou mais precisamente de burros, entre os séculos XV e XVIII entre os dois países ;

Identificar o conteúdo das cargas dos navios franceses e portugueses com o objectivo de perceber a importância do comércio de burros entre os dois países ;

Compreender a difusão das características genéticas e zootécnicas através de uma explicação económica ;

Consultar os arquivos do serviço nacional coudélico português e a gestão da produção asinina ;

Estabelecer uma cartografia das trocas de burros entre os dois países. Para bem encaminhar este estudo, consultamos várias fontes em diversos

lugares. Começamos por uma pesquisa nos arquivos departamentais de La Rochelle. De seguida, realizamos duas viagens a Portugal. Consultamos o centro de documentação do serviço nacional coudélico de Alter, da estação zootécnica de Santarém, dos arquivos nacionais de Lisboa (Torre do Tombo) e finalmente a Biblioteca nacional de Lisboa.

3 García, José Emilio Yanes. El asno zamorano -leone, una gran raza autóctona, Zamora : Imprensa jambrina, 1999

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Beneficiamos igualmente do apoio da Associação do burro de Miranda : dados estatísticos, artigos, estudos, legendas de livros, contos, registo genealógicos, tratados zootécnicos…

A pesquisa começou em Maio de 2007 e terminou com a segunda viagem a Portugal no fim de Setembro de 2007 ou seja 5 meses de trabalho. A recolha e análise de dados fazem evoluir as nossas hipóteses de trabalho definidas inicialmente.

Dada a importância dos documentos do século XIX, alargamos o nosso período da história da idade média até ao fim do século XIX. Três pontos analíticos impuseram-se naturalmente.

Inicialmente, uma condição para a criação asinina e mulateira eram essenciais. Os objectivos desta primeira parte têm a ver com a apreensão da política de criação, o recenseamento e tipologia das raças asininas locais e avaliação da produção mulateira Ibérica.

A segunda parte sugere a identificação das rotas comerciais chave e a fisionomia das trocas. A compreensão das relações comerciais luso-francesas exige a integração do mercado Espanhol sem o qual a explicação seria incompleta. Um estudo minucioso das especificidades do mercado Ibérico tornou-se incontornável para compreender a evolução da produção asinina e mulateira em Espanha e em Portugal.

Finalmente, a terceira parte, constitui a criação de uma nova hipótese complementar. A via terrestre devia ser discutida mesmo se não foi abordada no inicio deste estudo. Estas três etapas do nosso trabalho histórico-económico constituem a nossa metodologia para tentar perceber as origens do burro de Poitou e com certeza por via das consequências de todas as outras variedades genéticas, o burro de Miranda e o burro zamorano-Leonês.

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PRIMEIRA PARTE : A SITUAÇÃO DE CRIAÇÃO ASININA E MULATEIRA NA PENÍNSULA IBÉRICA DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XIX

Desde a fundação dos reinos Ibérios ao longo da Idade Média, vários autores sublinharam a importância do gado asinino e mulateiro. Animais com uma grande capacidade de adaptação ao trabalho e às condições climatéricas contribuíram muito para o mesmo título que o cavalo na definição dos territórios hispânicos e lusitanos.

Alguns historiadores não hesitaram em colocar em primeiro lugar o papel das mulas na elaboração das rotas nacionais e na comunicação interregional. O burro e sobretudo a mula tornam-se os concorrentes do cavalo sobre diversos pontos económicos levando o poder real Ibérico a elaborar uma legislação estrita e autoritária em relação à criação asinina e mulateira durante um longo período, que durou desde a Idade Média até ao fim do século XVIII.

Perseguido injustamente, a criação asinina e mulateira, impôs-se não só na Península Ibérica mas também em todas as colónias espanholas e Portuguesas da América e África. O dinamismo da criação Ibérica permitiu o surgimento de uma variedade de raças asininas com reputação pelo seu valor genético e económico. Um estado das situações económicas e zootécnicas impõe-se então como primeira etapa do nosso estudo.

A política de criação asinina e mulateira

Desde a Idade Média que os reis portugueses dão uma importância significativa ao papel dos burros, cavalos e mulas na sociedade. A primeira dinastia Portuguesa procurou desenvolver a criação de cavalos de forma a assegurar a sua independência. Em 1139, a cavalaria lusitana dispunha apenas de 1000 cavalos, o que era insuficiente para reconquistar os territórios do Mouros. O primeiro rei de Portugal D. Afonso I impõe a criação de cavalos aos seus súbditos em função das terras que possuem sob pena de fortes penalizações. Esta medida teve efeitos positivos imediatos uma vez que D. Sancho podia mobilizar 2300 cavalos em 1181. Depois de expulsar os Mouros, a politica equina cai no esquecimento e a criação de cavalos perde a sua importância daí o desenvolvimento das criações de outros equídeos : burros, mulas, póneis4…

Face ao declínio da criação de cavalos, o rei D. Fernando (1367/1383) promulga a primeira lei da coudelaria5 e introduziu provavelmente as primeiras restrições no que se refere ao uso das mulas6. Sem proibir completamente a produção mulateira, ele exigiu que quem possuísse uma mula de sela, teria de comprar um cavalo sob pena de ver confiscada a sua mula. Apenas os membros do clero são dispensados. João I (1385/1433) fundador da segunda dinastia dita de Avis foi responsável pela continuidade. Conseguiu dispor de uma cavalaria de 4600 cavalos na famosa batalha de Aljubarrota, graças à sua politica de criação equina. D. Duarte (1433/1438), que reinou muito pouco, é o autor do primeiro tratado sobre equitação pós moderna intitulado Livro da Ensinança de bem cavalgar toda a sela (por volta de 1434). Rei esclarecido e apaixonado pela arte equestre promulga uma legislação visando a criação de uma

4 Braz, Luísa Amélia Loup B. Estação Zootécnica nacional, do passado para o futuro, Santarém : Instituto Nacional de Investigação Agrária, 1992, p. 185 Entendia-se por coudelaria as milícias obrigadas a possuírem cavalos. O termo evoluiu progressivamente até ao seu significado actual.6 Ibid., p. 18

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verdadeira administração da coudelaria nacional. Nomeia os responsáveis pela criação equina de comarca. Estes « oficiais da coudelaria » eram responsáveis por 30 cavaleiros. Mais tarde promoveu um responsável da coudelaria a nível nacional encarregado de controlar a aplicação das leis sobre a criação equina. João II (1481/1495) reforçou a política dos seus precedentes : importa massivamente cavalos de África do Norte ocupada pelos Portugueses e distribui-os por vários centros de produção. Promove os « cavalos de marca » e proíbe a utilização de mulas de sela. Esta política permitiu ao exército beneficiar de 7 000 a 8 000 cavalos7. Através deste panorama de política de criação equina surge uma preocupação constante dos diferentes reis de Portugal de gerir o equilíbrio dos efectivos de cavalos e mulas. Sem nunca proibir completamente a produção mulateira, orientam-no em função das necessidades militares relativamente aos cavalos. É então importante o interesse particular nesta legislação para compreender o desenvolvimento da criação asinina. Abordamos assim o estudo de alguns textos pertinentes da Idade Média ao séc. XVII período que marca o início de uma verdadeira administração da coudelaria nacional.

1) A legislação « anti-mulas » na Península Ibérica

A produção mulateira conheceu períodos de crise durante a idade média até ao inicio do séc. XIX não somente na Península ibérica mas também em França. As mulas estavam em concorrência directa com os cavalos. Com a falta de cavalos (necessários para a guerra e conquista de novos mundos) um pouco por toda a Europa, a mula era sistematicamente « estigmatizada » enquanto as leis rígidas limitavam a criação de mulas. Carlos Manuel Barreiros Nunes Duarte diz-nos no seu estudo sobre as mulas8 : « criaram-se sociedades anti-híbridos principalmente em Espanha ; os reis católicos proibiram a produção mulateira e em Portugal houve desde a independência uma grande oposição por parte dos reis relativamente a este tipo de criação […] ».

O célebre zootécnico Bernardo Lima faz seguimento: « […] aquando do reinado João II nas cortes de Évora em 1490 pediu-se ao rei a utilização de mulas de sela, mas o rei não o permitiu […] O clero revoltou-se uma vez que teria feito muitas das viagens no dorso de mulas e ameaçava de levar este assunto ao Papa […] O rei respondeu que a sua intenção não era intervir na jurisdição da Igreja, o clero podia ter mulas, mas faria o que a sua jurisdição permitia. Decretou então pena de morte para qualquer homem que negociasse ou fizesse uma mula de sela »9.

A produção mulateira era igualmente muito regulamentada em França, como demonstra o livro de Léon Sausseau10 : « O desenvolvimento desta produção não ocorreu sem inquietação da administração do Haras criado em França para fazer progredir a criação de cavalos ; vive no meio da industria mulateira uma concorrência séria na qual ela se esforçará por travar a acção e, deste modo, um velho regulamento diz que « O guardador de garanhões poderia apenas cobrir burros ou animais, nenhum cavalo menor que 4 pés, desde a extremidade da crina, perto do garrote, até à, crineira, sob pena de confiscar os outros burros, e 20 tipos de multas aplicáveis metade para proveito do denunciador e a outra metade para o cofre dos Haras»11. No século XVIII, a

7 Ibid., p. 218 Duarte, Carlos Manuel Barreiros Nunes. Subsidio para o estudo do gado muar nacional, Estação Zootécnica Nacional, 1959. 9 Ibid. 10 Sausseau, Léon. L’âne, les chevaux mulassiers et la mule du Poitou, Fac-similé edições Lavauzelle, 1925, p. 24411 Ibid., p. 244

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hostilidade dos Haras na opinião dos criadores era tal, que o director do Haras M. Bertin (por volta de 1770) desejava pôr em acção uma legislação visando a castração dos burros de Poitou mas que felizmente não viu a luz do dia12 !

A Espanha possui uma legislação semelhante como indica Léon Sausseau : « Em 1505, Cristóvão Colombo queria fazer parte da corte de Ferdinand apesar do seu deplorável estado de saúde e sentindo-se incapaz de montar a cavalo pensou que poderia suportar melhor uma viagem em cima de uma mula, mas isso era permitido apenas às mulheres e aos membros do clero e teve de pedir uma autorização que lhe foi graciosamente concedida. Havia determinadas proibições para os Homens, tal como a utilização das mulas uma vez que a comodidade dos seus serviços tinham negligenciado a reprodução de cavalos de tal forma que não foi possível o aumento dos regimentos de cavalaria.»13

A legislação espanhola, francesa e portuguesa mostram com toda a evidência que os problemas derivados da produção mulateira eram semelhantes nos três países. As qualidades das mulas em termos de tracção e de transporte de bens eram superiores aos do cavalo, que por sua vez eram indispensáveis para a defesa dos territórios em caso de invasão. Uma gestão rigorosa dos efectivos equinos e mulateiros deveria implementar-se a importância da gestão mulateira nestes três países implica forçosamente uma escolha idêntica na selecção dos reprodutores asininos. Como consequência, não podemos compreender a evolução das raças asininas ibéricas e francesas sem compreender os benefícios da produção mulateira e equina.

a) Na idade Média

Desde a criação do reino de Portugal no século XIV (por volta de 1139), os reis portugueses nunca encorajaram a produção asinina e adoptaram uma posição rígida no que diz respeito à criação mulateira até proclamarem leis proibindo a produção mulateira culpada de impedir o desenvolvimento da criação de cavalos, fundamentais para a defesa do reino lusitano.

João Silva de Sousa estudou de muito perto esta interdição durante o séc. XV14 recenseando várias licenças que dizem respeito à utilização de mulas. Assim, relata-nos que o primo do rei D. Afonso, D. Fernando de Guerra autorizou o arcebispo de Braga não só a possuir 30 mulas mas permite a sua utilização pelos seus cavaleiros e pessoal. Outras licenças concedidas a nobres e a membros de certos grupos sociais (clero, notários, médicos…) e incluindo o direito de circular no dorso de mulas foram identificados.

D. João I (1385/1433), fundador da dinastia de Avis, pôs em marcha regras estritas para limitar a utilização de mulas consideradas como obstáculo à utilização dos cavalos. Vários documentos comprovam que a penúria de cavalos em Portugal e a obrigação dos reis de importarem equinos em massa. As éguas deviam obrigatoriamente ser utilizadas para a produção de cavalos e não de híbridos.

O seu filho D. Fernando elaborou uma lei de 29 Março de 1393 tornando obrigatória a posse de cavalo. A lei incluía em primeiro lugar os vassalos e os membros do Palácio real : « O rei […] determinou que passariam a montar a cavalo na sua corte e não em mulas ou “roussins” (póneis do tipo Garranos muito utilizados no Norte de

12 Ibid., p. 24413 Ibid., p. 24514 Sousa, João Silva de. Das autorizações de porte de armas e de deslocação em besta mua rem meados do século XV. Lisboa : edições Editorial Estampa, 1982, p. 298

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Portugal). A sanção materializou-se pela confiscação das ditas mulas. Algumas pessoas beneficiaram de uma autorização especial: « os altos membros da igreja, o clero das missas, os cantores da capela real, os médicos e os juízes […] »15

Outra lei datada de 1º de Setembro do mesmo ano reforça a primeira e interdita aqueles que vivem perto ou na corte, a utilização de mulas. A excepção concedida anteriormente a certas pessoas é mantida. D. João I estabelece uma terceira lei de 25 Fevereiro de 1405 e explicita razões para a interdição e as consequências de uma falta de cavalos para a defesa das fronteiras. D. Afonso V sem deixar de controlar a utilização de mulas trouxe alguma flexibilidade. Autorizou aqueles que possuam um cavalo de ter uma mula. João Silva de Sousa recenseia 92 licenças relativas à utilização de mulas nos três primeiros anos de reinado de D. Afonso V. Os grupos que beneficiam das autorizações são cada vez maiores : membros do clero, oficiais da corte real, médicos, estrangeiros, nobres do palácio real, guardas da caça, juízes, caçadores, comerciantes…

b) Lei de 1642 (D. João IV)

Dois anos depois da restauração da monarquia portuguesa, o rei João IV(1604/1656) põe em acção uma legislação muito penível visando o encorajamento da criação de cavalos. A monarquia denuncia o uso abusivo de mulas e machos que travavam o desenvolvimento da criação equina levando o reino a importar cavalos em massa esvaziando os cofres do reino : « …a tendência dos meus vassalos de utilizar mulas e machos impede a utilização dos poucos cavalos existentes como a experiência o demonstrou […] foi necessário trazer muitos do estrangeiro […] para o bem, espero que não haja mais criação de machos nem de mulas no meu reino […] » 16

Esta medida legislativa foi insuficiente para restabelecer uma criação próspera. Em 1645, João IV faz uma lei muito mais ambiciosa criando uma verdadeira administração da coudelaria nacional encarregada de orientar a criação equina, asinina e mulateira.

c) Lei de 1650 (D. João IV)

Cinco anos depois da promulgação da lei sobre a coudelaria, João IV reforça a legislação relativa à utilização de mulas. Esta lei visa os transportes que utilizam excessivamente mulas. Relembrando o papel crucial do cavalo na defesa das fronteiras em caso de guerra, o rei proíbe a utilização de mulas para atrelagem : « faço saber aos lerem esta lei, considerando a importância de ter em grande quantidade cavalos neste reino, para que em qualquer ocasião, nos possamos socorrer deste recurso, principalmente em tempo de guerra : e para evitar a utilização de atrelagem (carroças, carros) puxados por mulas que trazem prejuízo para a cavalaria… »17. A lei não se aplica aos eclesiásticos.

d) Lei de 1660 (D. Afonso VI)

15 Ibid., p. 29916 Lei proibindo a criação de cavalgaduras muares, Lisboa, Biblioteca Nacional, 164217 Lei de D. João IV ordenando que ninguém possa usar de coche de mulas, excepto os eclesiasticos, & Deze[m]bargadores, nos quaes se não entenderà esta prohibição, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1650

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Face às ameaças espanholas, D. Afonso VI (1656/1683) mantém um enquadramento estrito de criação mulateira adoptando regras mais ligeiras. A flexibilidade é possível uma vez que a criação equina parece melhorar graças à lei da coudelaria. O rei relembra as leis de 1625 e de 1642 e o seu interesse para a defesa do reino. Anuncia a nova lei : « […] com esta nova lei […] agrada-me e é com todo o gosto, que qualquer pessoa qualquer que seja a sua qualidade, ou condição, tendo uma carroça (carro atrelado), uma liteira, macho, mula de sela, seja obrigado a ter um cavalo […] e não o tendo, confiscamos machos e mulas que serão destinadas ao exército [… ] »18 . As excepções são mantidas : religiosos, membros do clero, médicos, cirurgiões. Esta lei restabelece a criação mulateira mas este último não deve crescer mais depressa que a criação de cavalos.

e) Lei de 1669 (D. Pedro)

O príncipe regente D. Pedro (1683/1706) instaura nove anos mais tarde uma nova lei que restringe a utilização de mulas de sela. Visivelmente a lei anterior, muito mais branda, permitiu um desenvolvimento da criação mulateira, fonte de benefícios financeiros significativos : « […] vendo as pessoa que criavam cavalos e que não tinham outra saída, dedicam-se agora exclusivamente à produção de mulas, pelos benefícios que dai tiram […] »19. A presente lei denuncia as fraquezas da lei de 1660. Com efeito, as pessoas emprestavam os cavalos para escapar aos controlos e inquéritos e assim podiam guardar as suas mulas : « não podendo controlar se as pessoas, que usam mulas, possuem cavalos (como obrigava a lei) e sendo fácil apresentar cavalos emprestados quando havia controlos […] decidi que nenhuma pessoa qualquer que seja a sua condição utilize mulas em todo o reino […] »20 . Como na lei precedente as excepções são mantidas.

2) O recenseamento de1870

Em 1870, Portugal procede a um importante recenseamento de criação considerado como o primeiro desta dimensão. Fornece numerosos elementos sobre o estado da criação asinina e mulateira no território lusitano. A análise crítica foi feita pelo célebre zootécnico português Silvestre Bernardo Lima21.

Relativamente à produção mulateira, os efectivos chegam aos 50 690 animais. O número de proprietários de mulas chega a 31 405 pessoas. As mulas são empregadas como animal de atrelagem. São igualmente excelentes auxiliares de trabalho. Um fraco efectivo é usado como animal de sela essencialmente no exército.

A criação mulateira inclui 2 878 jovens animais (crias) com um valor de 40 713, 380 réis. Segundo Silvestre Bernardo Lima a produção portuguesa de mulas é « difusa e pouco intensa » [….] a produção é pouco qualitativa devido a uma má escolha dos reprodutores. Os criadores utilizam « muito raramente garanhões espanhóis ou

18 Lei que determina que toda a pessoa que possua coche, liteira, macho ou mula de sela seja obrigada a possuir um cavalo, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1660.19 Lei que estabelece a quem é permitida a utilização de gado muar selado. Esta lei defende a criação da raça equina em via de extinção, Lisboa, Biblioteca de Lisboa, 166920 Ibid, p.121 Recenseamento geral dos gados no continente do reino de Portugal em 1870 / Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria Lisboa : Imp. Nacional, 1873

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franceses» […] utilizam raças comuns de baixo valor (20 réis a 30 réis) ; os burros espanhóis e franceses (de Poitou) são avaliados a « 200 reis até 600 réis »22. O zootécnico recomenda vivamente a utilização de burros espanhóis e franceses (burro de Poitou muito certamente) para melhorar a produção mulateira portuguesa. Estas observações indicam claramente que Portugal não possuía uma raça local destinada à produção mulateira.

A escolha dos burros não implicava critérios rigorosos. Portugal não possuía cavalos de atrelagem.

Em 1870, a criação asinina contava com 137 950 animais num total de 110 510 proprietários. Os criadores possuíam 9 261 jovens animais. As melhores criações encontravam-se nos distritos de : Bragança, Castelo Branco, Évora, Viseu, Beja, Portalegre, e Faro. Os melhores reprodutores encontravam-se em : Portalegre (Preço médio : 28,314 reis), Lisboa (Preço médio 27,660 reis), Évora (Preço médio : 27,604 reis), Guarda (Preço médio : 19,157 reis), Bragança (Preço médio : 18, 090 reis), Beja (Preço médio : 15,249 reis). Silvestre Bernardo Lima relata que existem muito poucos reprodutores espanhóis. A produção asinina é em geral de fraca qualidade como se pode verificar também ao nível dos preços (preço médio nacional de um burro : 5 reis). Conclui dizendo que a produção asinina está «  em geral ao abandono ».

a) Efectivos mulateiros e asininos

Em 1870, o gado asinino é distribuído de forma desigual nos distritos. A população asinina é mais numerosa em Bragança (10 950), Guarda (10 186), Leiria (13 109), Santarém (14 576), Lisboa (16 291), Beja (12 959), Faro (12 475) e nos Açores (8 500). No Norte do Douro, a população asinina é pouco numerosa, exceptuando o distrito montanhoso de Bragança, onde os três concelhos de Miranda, Mogadouro e Macedo de Cavaleiros constituem os três grandes centros de produção destes animais. A indústria mulateira nesta região é de produção própria. No distrito de Aveiro (1 371) os efectivos asininos são fracos. No distrito de Coimbra (6 890) o burro é utilizado nas actividades turísticas. A cidade da Figueira da Foz conta ela sozinha, mais de 2 000 burros. O distrito de Viseu (4 074) utiliza muitos burros para pequenos trabalhos agrícolas. O distrito de Braga (2 089) utiliza o burro nos trabalhos agrícolas excepcionalmente ; é utilizado sobretudo como animal de transporte. A Estremadura é a província que conta com o maior número de asininos. São empregados em todo o tipo de actividades. Alcobaça, Óbidos, Torres Novas, Torres Vedras, Azambuja, Sintra, são os principais centros de produção asinina. No Alentejo, os pastores utilizam o burro como auxiliar na vigia do rebanho ( animais de transporte). No litoral do distrito de Beja, os pequenos agricultores têm o hábito de atrelar o burro ao arado para lavrar os terrenos duros. No Algarve, atrela-se por vezes o burro ao lado de uma vaca. As norias, herança dos árabes, funcionam muitas vezes com a tracção de um burro. O arquipélago da Madeira conta com um fraco efectivo. Quanto aos Açores, os burros são numerosos na ilha Graciosa23. A produção mulateira é relativamente maior nos distritos do Norte do que no centro e sul do país. Estremadura, Alentejo, e Algarve possuem todavia o maior número de gado. Mas estas três províncias importam essencialmente os seus animais de Espanha. Ao

22 Ibid., p5123 B.C. Cincinnato da Costa et D. Luiz de Castro. Le Portugal au point de vue agricole, Lisboa : Prensa Nacional, 1900, p. 213/215

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contrário, as províncias do Minho, Trás-os-Montes e Beira Alta produzem uma quantidade de mulas, que conseguem ainda exportar jovens para Espanha, e tê um pequeno número de adultos. Os distritos de Viana (294), Braga (1 260) Bragança, Porto (2 034) e Viseu (1 610) são produtores e exportadores. Sul do Tejo, a população asinina ultrapassa a população equina. Na Madeira, os efectivos são fracos. Nos Açores, a população é superior à do Norte de Portugal continental24. Quadro 1/2/3 (ver anexos)

b) fisionomia da criação mulateira e asinina no distrito de Bragança em 1870

Para melhor compreender as origens do burro de Miranda, animal originário da mesma família que o burro de Poitou e o burro Zamorano, identificamos a fisionomia da criação mulateira e asinina dos diferentes concelhos perto de Miranda pertencentes ao distrito de Bragança.

Região de Bragança

Em 1870, o gado asinino era de 1 674 cabeças com um valor de 9 911,500 reis. Segundo Silvestre Bernardo Lima « a produção era comum, o valor por cabeça era de cerca de 6 reis. Os animais são produto do país e é a produção mais maltratada. São os animais de tamanho pequeno, deformados pelo trabalho excessivo ao qual são sujeitos e pelos maus tratos e défice na alimentação […] não procuramos melhorar a produção. . não há escolha de reprodutores. O valor médio de 15 garanhões reprodutores recenseados é de 11,400 reis, o que deixa antever a má qualidade dos reprodutores […] poderíamos relançar esta produção empregando o corpulento e robusto burro espanhol, mas esta raça é cara, e logo que obtenhamos uma cabeça ela é utilizada para reprodução com éguas[…] »25. A criação asinina da região é pouco valorizada e observamos a reputação do burro espanhol. Os fracos rendimentos dos agricultores não permitem o investimento na selecção dos animais. A priori, os animais parecem vir de Zamora, região vizinha. Pelas características dos animais, parece que a raça do tipo de burros de Miranda não esteja bem implementada e isto parece conduzir-nos para a hipótese de uma criação recente no fim do séc. XIX pois os animais parecem ser todos de tamanho pequeno. É preciso de qualquer forma relembrar que o burro de Miranda é mais pequeno que o seu primo espanhol ou francês.

Região de Vimioso

195 mulas foram recenseadas e foram avaliadas na sua totalidade por à 5 024,100 reis. As mulas serviam para o transporte de couro. A produção mulateira é quase nula. O comércio é igualmente nulo. A criação asinina conta com 1 001 animais com um valor global de 655,270 reis. A criação está pouco desenvolvida. Os agricultores valorizam mais as burras. A região conta com 109 burros com um valor de 5,700 reis por animal. As fêmeas têm um preço unitário de 7 reis. A região conta com um só macho reprodutor de origem espanhola e com um valor de 30 reis.

Região de Miranda

24 Ibid., p. 218/21925 Ibid., p. 110

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A região conta com 135 mulas com um valor total de 3122,950 réis. É a região onde a mula tem o valor de troca ou monetário mais fraco. É uma produção desprezada segundo Silvestre Bernardo Lima. As mulas são animais de tracção e alguns trabalham na agricultura.

No que diz respeito aos burros, a região tem uma reputação que lhe permite uma exportação de animais para as regiões vizinhas. A criação de burros conta com 1 174 animais com um valor de 7 752,500 reis. Os burros de Miranda são ligeiramente mais caros, cerca de 6,6 reis por animal. A região possui 970 burras reprodutoras o que mostra notoriamente uma orientação de criação e não simples utilização para o trabalho. Recenseamos 7 burros de cobrição : « muito bonito » burro espanhol com um valor de 34,500 reis ; os outros 6 eram de fraco valor e eram originários de criação local.

Região de Vinhais

A região conta com 86 mulas utilizadas sobretudo como animais de tracção. O seu valor é superior ao dos burros, cerca de 34,800 reis por animal. São originários de criação local. A criação asinina é muito mais importante e conta com 676 cabeças. O preço médio de um burro é de 6 reis por animal. Existem 5 machos reprodutores, todos de origem espanhola e servem essencialmente para produção mulateira.

Região de Mirandela

A criação de mulas não é significativa. A região conta com 61 mulas com um valor médio de 36,580 reis. A criação asinina é de baixo valor, o preço médio é de 6 reis. Os animais são importados de outras regiões. A região conta com 854 cabeças.

Região de Moncorvo

A criação de mulas conta com 261 cabeças. Alguns animais são produzidos localmente mas a maioria é originária de regiões vizinhas. A região conta com 908 burros. O valor médio é de 8, 200 reis, bem superior ao de outras comunidades. A produção local é limitada.

Região de Freixo de Espada à Cinta

A região conta com 155 mulas com um valor médio de 26, 870 reis. A maioria é importada de regiões vizinhas. O gado asinino é constituído por 588 cabeças, essencialmente animais de trabalho, importados de regiões do Norte. O seu preço médio é de 8,870 reis.

Região de Alfandega da fé

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O gado mulateiro conta com 56 cabeças. A maioria é importada mas existe uma pequena produção local. O gado asinino conta com 662 cabeças com um valor aproximado de 6,400 reis. Existe um burro reprodutor. A produção é pouco valorizada.

Região de Vila Flor

A região conta com 43 mulas compradas em diversas feiras de regiões vizinhas. O gado asinino conta com 363 cabeças compradas igualmente em feiras locais.

Região de Macedo de Cavaleiros

O gado mulateiro conta com 37 mulas. A produção local é exportada para o sul do distrito. O valor médio de uma mula é de 30,000 reis. Quanto à produção asinina, contamos com inúmeras burras destinadas à reprodução. A região utiliza os burros espanhóis para a reprodução com um valor aproximado de 36 reis.

Em conclusão, podemos dizer que o distrito de Bragança é essencialmente especializado na produção asinina. A produção mulateira é pouco significativa. As mulas mais bonitas são exportadas para Espanha. Em contrapartida, o distrito importa reprodutores exclusivamente de Espanha. O valor médio das mulas é superior ao dos burros. Dada a fisionomia de criação asinina de Bragança e das relações com Espanha, podemos afirmar a origem espanhola dos burros de Miranda.

Tabela 16

Distribuição da produção no distrito de Bragança - 1870Espécies Número de animais Valor

Cavalos 3 849 90 520,000 reisMulas 1 396 39 456,000 reisBurros 10 950 74 011,020 reis

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B. As raças asininas Ibéricas

Situadas no cruzamento de diferentes civilizações, A Península Ibérica soube desenvolver uma variedade de raças asininas únicas. Os Espanhóis parecem ter adoptado uma politica de reconhecimento das raças locais muito antes que Portugal pois este último reconhece apenas uma raça desde 2000. Encontramos em solo ibérico raças originárias de dois troncos genealógicos : raças africanas e raças europeias. Propomos a definição de uma tipologia de raças locais Ibéricas.

1) Espanholas

Sabendo que o nosso estudo diz respeito essencialmente ao eixo luso-Poitevin, somos obrigados a não aprofundar a história das raças asininas espanholas. As nossas referências são essencialmente o estudo completo de Th. Devimeux intitulado Os equinos em Espanha realizado pela CEREOPA sob a direcção de Emmanuel Rossier.

O autor distingue quatro raças em Espanha : a raça catalã, a raça Maiorquina, a raça Zamorana-Leonesa, a raça andaluza.

a) A raça Catalã

A raça catalã parece ser antiga. Vestígios de ossadas de equus asinus foram encontradas em escavações arqueológicas na Catalunha, lugar onde existem efectivamente criações asininas em larga escala, isto ajudaria a provar a antiguidade da raça catalã. O burro da raça catalã seria conhecido desde a antiguidade : Pline relata a existência de um comércio de um comércio de burros. Na idade Média e até ao século XVIII, é muito apreciado para a produção mulateira. Esta qualidade explica as numerosas exportações, nomeadamente para as Américas. A sua reputação internacional era grande : foi usado em França na reconstrução da raça do burro de gascogne, em Itália com as raças Pantelleria e Martina Franca. Nos EUA, é considerado como fundador do burro do Kentucky. O seu livro genealógico foi aberto em 1880 e abandonado nos anos 50.

A sua morfologia foi definida pela A.F.R.A.C. (Associação para o melhoramento da raça catalã) : animal de tamanho grande, com extremidades sólidas, cabeça elegante e tronco alongado.

Cabeça : de tamanho grande ( comprimento : 56 a 68 cm), perfil direito ou côncavo, apófise zigomática desenvolvida, narinas amplas, mandíbula forte e volumosa, orelhas longas (comprimento : 38 a 42 cm) ;

Pescoço robusto, bem proporcional ao corpo ; Garrote pouco desenvolvido ; Garupa ligeiramente angular ; Costas arredondadas, ventre recolhido ; Extremidades sólidas, ombros ligeiramente verticais. 18 a 22 cm de canela ; Pelagem sempre escura, com auréolas em torno dos olhos, da boca, entre coxas e

sob o ventre; Pêlo raso. A Franja é um pouco russa ;

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Temperamento sanguíneo. Animal hiper-metabólico, logo difícil a domesticar. Com reacções rápidas.26

É um animal fungiforme com tendência para acromegalia. As suas origens remontam às planícies e vales de Bergada e Vic e à região de Olot, Luçanes, Urgell e Solsones. É um animal utilizado na produção mulateira. Os produtos foram vendidos durante muito tempo ao exército que pertencia aos regimentos de artilharia nos Pirenéus.

b) A raça maiorquina

É um animal originário do mesmo ramo genealógico que o burro de raça catalã : mesma configuração, mesmo pêlo, apenas o tamanho é mais reduzido : 1m40 a 1m50 ao garrote. Esta raça estava em vias de extinção em 1988 : 4 fêmeas e 2 machos estavam reconhecidos pela delegação de « Cria Caballar » nas Baléares.

c) O zamorano-Leonês

O burro de zamora-Leão provem, tal como o catalão, do Equus asinus Europeus de Sanson. São animais de tamanho grande: 1m47 ao garrote e um peso de 350 kg para os machos e 200/300 kg para as fêmeas. Parece originário do mesmo ramo genealógico que o burro de Poitou.

G. Aparicio, em 1960, descreve-o como sendo um animal hiper métrico, rectilíneo e bem configurado :

A cabeça é muito volumosa, com um perfil direito e côncavo. As orbitas dos olhos são muito desenvolvidos, as arcadas zigomáticas salientes. O « focinho » é largo. As orelhas grandes ;

A crineira direita e musculada, o garrote é pouco saído ; O peito é estreito ; O dorso é direito, com costas redondas. A garupa em ogiva com uma

cauda larga e curta de implantação baixa ; Os membros são curtos, as pernas são frequentemente defeituosos ; A pelagem é de cor preta descolorada com cor mais clara nos olhos,

axilas, entre coxas e ventre. O pelo é abundante na testa, olhos e bordos das orelhas, lateralmente e na parte inferior do ventre.

A sua região de criação corresponde à zona geográfica delimitada pelas montanhas da Cantábria e os rios Cea e Obrigo podendo ser considerado o berço da raça. É uma raça com baixo número de efectivos. É em 1944 que é criada um livro genealógico oficial : 67 animais estavam inscritos até ser abandonado em 1953. Uma esperança de « renascimento » da raça surge com o programa Europeu EQUISAVE.

d) A raça andaluza

26 Devimeux, Th., Les équidés en Espagne, estudo sob a direcção de E. Rossier e N. Baudoin CEREOPA, 1988, p. 126/129

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É provavelmente a raça de burros com o maior número de efectivos, pois esta estava presente em toda a península Ibérica. O burro Andaluz tem como origem o equus Asinus Somalensis do Egipto. Implementada muito provavelmente aquando da conquista islâmica de Espanha e Portugal. Tal como para o zamorano-Leonês, O padrão foi definido por G. Aparicio em 1947 : animal de configuração bastante robusta e harmoniosa, é uma raça hiper-métrica e sublonguilinha:

A altura ao garrote é de 1m45 a 1m58 para os machos, e de 1m35 a 1m50 para as fêmeas. Para um peso de 300 kg a 500 kg.

A cabeça de tamanho médio e forte, a testa é larga e muito frequentemente subconvexa. As orbitas são salientes. As orelhas, de proporções médias são móveis. A pelagem é espessa no interior do pavilhão auditivo. As narinas são dilatadas.

a crineira é proporcional, musculada, ligeiramente convexa no bordo superior. A crina é fina. O garrote saliente.

A linha dorsolombar é direita. O peito largo, o tronco cilíndrico e as costas arqueadas ;

A garupa é arredondada ; Os membros são bons com joelhos largos, machinhos curtos e os cascos

posteriores um pouco altos ; A pelagem é cinzenta clara, e o pêlo é fino.

É um animal com temperamento calmo, com grande energia e resistência. Esta raça foi implementada na Andaluzia. Duas regiões podem ser consideradas como berço de origem :

A província de Córdoba, A zona delimitada pelo Guadalquivir, o rio Guadajoz e as regiões de Genil e de

Baena. Esta raça era importada em grandes quantidades para a região do Alentejo e Ribatejo em Portugal.

2) As raças Portuguesas

a) Antes de 1900

Antes do século XX, os zootécnicos portugueses não tinham estabelecido nenhuma tipologia específica de raças asininas em Portugal. Quanto aos cavalos, a elaboração de padrões das raças portuguesas é recente e data do fim do séc. XVIII, período que marca o surgimento das escolas de veterinária e de zootecnia. Existe então a tentativa de descrever os burros destinados à reprodução. Em 1790, o escudeiro e « zootécnico » português, Manuel Carlos de Andrade dedica um capítulo inteiro ao burro e as mulas no seu tratado de equitação Luz da Liberal e Nobre Arte da Cavalaria. Ele recomenda animais de forte corpulência originários de castas provavelmente Andaluzas :

Os burros destinados à reprodução, devem ser corpulentos : uma testa larga, orelhas compridas, largas, mesmo que caiam para os lados, o pêlo da crina e cauda finos e lisos, os olhos grandes, sem grandes

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fossas, o nariz grande, e achatado, as narinas largas, a superfície do pescoço longa, e de grandes proporções, os ombros largos, lisos e bem formados, a musculatura dianteira forte, os canelas direitas, grandes e lisos, joelhos direitos, e planos os boletos e os machinhos bem proporcionados as patas bem formados, garrote alto, e espesso, dorso direito, o ventre largo, garupa redonda, as pernas bem formadas […] a pelagem deve ser preferencialmente castanha, preta ou cinzenta. Os de Andaluzia, de Ubeda, Baeça, e Jaen Logrão são muito apreciados.27

Manuel Carlos Andrade não fala da raça portuguesa ( que não é o caso para os cavalos : ele evoca varias raças europeias). A selecção dos burros parece muito empírica : só o tamanho constitui o principal critério. Na ausência de raças de cavalos de peso em Portugal, este deveria imperativamente produzir mulas de corpulência forte para rivalizar com os bois e os cavalos de tracção.

Só no fim do séc. XIX é que a preocupação em registar as raças asininas portuguesas aparece. De facto, B.C. Cincinnato da Costa e D. Luiz de Castro propõem um estudo completo da produção asinina e mulateira portuguesa na sua obra Portugal do ponto de vista agrícola ; distinguem assim duas castas :

O gado asinino em Portugal pertence a duas raças diferentes, como indica o perfil tanto convexo como o direito da sua cabeça. O grupo com cabeça convexa é o mais frequente no país. O pequeno número de burros com cabeça direita é francamente representado por animais importados de Espanha e quase exclusivamente destinados à produção mulateira.28

Verificamos que o perfil da cabeça constitui o critério de identificação da raça. Vemos também o estreito elo de ligação entre as raças Espanholas e Portuguesas. Tal como no séc. XVIII, preferimos importar burros de Espanha para a produção de mulas.

os primeiros constituem uma variedade comum da raça Africana (Equus africanus, de Sanson) ; os segundos constituem uma variedade espanhola da raça dita europeia (Equus asinus europoeus, Sanson). Os burros da primeira variedade identificam-se pelo seu tamanho e proporções reduzidas, a inferioridade das condições ou a pobreza dos seus donos forçou-os a sobreviver. Têm a cabeça grande, fina, estreita e convexa ; as orelhas, de largura média , mas longas e um pouco divergentes ; crineira direita ; peito estreito ; costas planas ; a linha dorsolombar horizontal, frequentemente arqueada e proeminente ; ventre grande ; garupa cuneiforme ; membros curtos e finos, associados ao tronco, os pêlos de tamanho médio ; a pelagem de coloração cinzenta ou castanha, geralmente mais clara no ventre ; tamanho raramente abaixo de um metro.29

A segunda casta é sem dúvida próxima da raça Zamorana-Leonesa :

Os burros da outra variedade distinguem-se pela sua cabeça direita e grande, o seu tamanho é maior, e os membros mais altos, com

27 Andrade, Manuel Carlos de. Luz da Liberal e Nobre Arte da Cavallaria, Lisboa : Regia Officina Typografica, 1790, p. 57 (fac-similé Librairie Férin). 28 B.C. Cincinnato da Costa e D. Luiz de Castro. Le Portugal au point de vue agricole, Lisboa : Prensa Nacional, 1900, p. 21129 Ibid., p. 211

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articulações fortes, e uma pelagem cinzenta ou castanha mais escura e uniforme, com pêlo forte e comprido.30

É preciso todavia deixar uma nota : o autor parece colocar duas raças neste grupo de animais. Ele fala de animais cinzentos, o que nos faz pensar no burro Andaluz : este último é de forte corpulência mas não possui pêlo longo, característica da raça Zamorana-Leonesa.

O autor acrescenta ainda que há um cruzamento entre as duas raças :

Encontramos no país dos mestiços das duas raças ; apresentam uma morfologia mal definida , cujas características são uma mistura variável das que venho de descrever. 31

O autor descreve a utilização da segunda raça dita « variedade espanhola » :

Os burros de variedade espanhola, maiores, mas menos temperamentais e menos rústicos, são melhor tratados, com vista à produção de mulas. A norte do Tejo são as províncias de castilha e leão que fornecem a maioria destes burros ; a sul vêm da Estremadura espanhola e da Andaluzia. Raramente se recorre ao burro de Poitou, cujo preço se tornou excessivamente caro.32

É interessante verificar que o autor evoca o burro de Poitou na descrição da segunda casta ; isto levou-nos a considerar seriamente a hipótese da origem zamorana-leonesa-poitevine do burro de Miranda reconhecido nos anos 90. A utilização inferior do burro de Poitou é igualmente confirmada pelo Dr. Ruy de Andrade no seu estudo sobre o burro « como nota, diria que já foram experimentados em Portugal, na produção de mulas ; mas estes últimos nasciam tão grandes, que nunca chegavam a tê-los; na minha opinião não os aconselho, com gémeos do tamanho dos nossos. Estes burros dão mulas muito fortes, mas pouco activas, pois o próprio burro é já muito indolente […] »33. O autor, especialista reconhecido pela conservação das raças equinas autóctones (Alter, Sorraia, Garrano) não nos dá elementos históricos quanto à sua utilização. Todavia, ele sublinha também os laços entre o burro de Zamora e o burro de Poitou : « ela (a pelagem) é muito mais abundante que na catalã, e a forma da cabeça e o pêlo fazem supor que foi melhorada através da importação de burros franceses de Poitou … »34. Relata ainda que a coudelaria Nacional de Fonte Boa em Portugal experimentou cruzamentos com o burro de Zamora: « O ministro da agricultura tentou, em Fonte Boa, a criação de um ramo Zamorano de burros reprodutores, mas o resultado não foi brilhante; eram pequenos e sofriam de várias patologias […] »35. Estas informações confirmam então a influência de uma variedade de animais vindos de um ramo genealógico : ramo espanhol – Zamorano e um ramo Francês – o burro de Poitou.

Carlos M.B. Nunes Duarte em 1959 confirmou a origem hispânica e africana das raças asininas portuguesas :

Nas populações asininas Portuguesas encontramos vestígios de todas as raças mais ou menos disseminadas por todas as regiões.

30 Ibid., p. 21131 Ibid., p. 21132 Ibid., p. 21133 Andrade, Ruy de. O burro, Lisboa : Boletim Pecuário, n°1-ano VII, 1939, p. 1634 ibid., p. 1435 ibid., p. 21

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Naturalmente, sentimos uma maior influência das raças espanholas ou de tipo africano, perfeitamente explicável pelas relações geográficas e politicas existentes entre o nosso país, Espanha e o Norte de África.36

Em 1916, Eduardo Sousa de Almeida considera que Portugal não possui uma raça definida. Descreve tudo com a mesma tipologia:

« Os burros chamados espanhóis, altos, 1m30 a 1m45, cabeça grande, perfil convexo, orelhas grandes, peludas nas bordas, divergentes. Membros altos e fortes, articulações fortes, formas bem definidas, corpo arredondado. São usados na produção mulateira. Os burros de raça comum ou descendentes de raça mediterrânica, cruzados com a raça Europeia (dita A. europeus de Sanson). É frequente encontrar em várias regiões diferentes burros das duas raças. O burro Português ou do « país », resulta do cruzamento aleatório dos tipos de burros acima descritos, formando o gado asinino mais importante em Portugal. »37. O autor recomenda para o melhoramento da criação asinina em Portugal, a importação de uma raça egípcia e espanhola (catalã). O autor exprime admiração pelo burro de Poitou mas chama a atenção para os preços elevados : « os garanhões desta raça atingem por vezes preços escandalosos … »38.

A maioria dos zootécnicos portugueses evocam os preços elevados e não exprimem uma grande convicção nos cruzamentos com as raças locais portuguesas. A barreira financeira leva à importação quase exclusiva de burros espanhóis ou até do Magreb.

Em 1872, surge um manual de criação intitulado Manual dos animais úteis, provavelmente uma tradução de uma obra zootécnica francesa. O autor diz que: « A melhor raça de burros que conhecemos hoje na Europa existe em França, e tem origem espanhola […] de Poitou […] »39

b) Ano 2000 : uma nova tipologia de raças asininas portuguesas ?

No seu relatório intitulado « O estudo do Gado Asinino no Parque Natural do Douro Internacional » de 2000, a engenheira Luísa Samões que identificou a raça asinina de Miranda, propõe uma tipologia de burros portugueses encontrados no Parque Natural do Douro. Define quatro grupos de animais:

O burro de Miranda : animal de pelagem castanha escura, pêlo longo, tamanho grande, e uma conformação do tipo forte, oriundo do ramo europeu ;

36 Duarte Nunes Carlos M. B. Subsídio para o estudo da espécie asinina nacional, Estação Zootécnica, 1959, p. 4137 Almeida, Eduardo Sousa d’. O gado asinino, Coimbra : Edições França e Arménio, 1916, p. 41/4238 Ibid., p. 3339 Manual dos animais úteis…, Edições Ignacio Correa, 1872, p. 138

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O burro cinzento : animal originário do ramo africano, pelagem cinzenta com ou sem banda dorsal e crucial e/ou riscas, tamanhos variáveis, conformação do tipo ligeira e temperamento vivo;

O burro negro : animal originário do ramo europeu, com uma pelagem negra e de pêlo curto e de tamanho grande, inferior ao do burro de Miranda ;

O burro branco : animal originário do ramo africano, com pelagem branca uniforme, e de tamanho pequeno.

« A fundadora » da raça considera que o burro de Miranda é « aquele que foi melhor individualizado »40 pelos investigadores. A sua descrição corresponde à da raça zamorana -leonesa. « São animais propícios para a reprodução mulateira e lavoura de terrenos de grandes dimensões»41.

a) O burro de Miranda

O burro Mirandês pertence à subespécie Equus asinus europeus. Tem um perfil direito e é um animal de corpulência forte (mais de 1,30 m) com pelagem escura. Este trabalho permitiu o reconhecimento da raça na comunidade europeia. O berço da raça é a região de Miranda do Douro situada no Nordeste de Portugal, região seca e montanhosa. O padrão da raça é parecido com o da raça Zamorana-Leonesa. Algumas particularidades devem mesmo assim ser assinaladas : pêlo longo e estatura mais pequena. As características morfológicas da raça são as seguintes :

Animal bem proporcional, com uma acromegalia evidente, corpulento e rústico ; De 1,20 a 1,35 m ao garrote ; Pelagem castanha escura, com variações mais claras lateralmente e face inferior

do tronco ; branco no nariz e em torno dos olhos, hirsutismo acentuado com pêlos longos, espessos e abundantes, aumentando em extensão e abundância lateralmente, a face entre as mandíbulas, bordas das orelhas e extremidade dos membros ; crinas abundantes e ausência de sinais ;

Cabeça volumosa com mandíbulas fortes de perfil direito, testa larga e ligeiramente côncava sobre a linha mediana, coberta por um pêlo espesso ( com uma espécie de franja), arcadas orbitais muito salientes, face curta da fronte larga, canal entre as mandíbulas largas, lábios grosso e espessos, orelhas grandes e largas na base, guarnecidas de bastante pilosidade, redondas nas bordas (formando uma espécie de crina) e dirigidas para a frente, dos pequenos olhos;

Pescoço curto e forte, garrote baixo e pouco desenvolvido, dorso tende para a horizontalidade, curto e bem musculado, peito amplo com a ponta da espádua saliente. Tórax profundo, lateralmente encurvado, garupa em forma de ogiva mais elevada que o garrote, pouco desenvolvido, ombros curtos e bem desenvolvidos, com uma ligeira inclinação. Ventre volumoso ;

Membros fortes com articulações volumosas, guarnecidas de pêlo abundante cobrindo os cascos ; membros posteriores com tendência para a extensão e um pouco curvos; Pernas de grande amplitude mas lentas e pouco ágeis.

40 Marques, Maria Helena Alcade Gonçalves. O burro mirandês : A definição de um património, Memória de Mestrado em Antropologia, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, 2006, p. 3441 Ibid., p. 34

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O padrão a raça indica-nos claramente que estamos perante um animal cujo património genético é próximo ao do burro de Poitou.

b) O burro anão de ilha Graciosa nos açores : uma raça em vias de ser reconhecida ?

Numa das ilhas do arquipélago dos Açores (ilha Graciosa), vivem mais de 70 pequenos burros. Uma tentativa de reconhecimento da raça está a decorrer. Os animais medem em média 105,8 cm. A pelagem é normalmente cinzenta mas também se encontram animais pretos ou castanhos. O ventre, as extremidades dos membros, os olhos e o nariz são « deslavados ». A maioria dos burros tem uma risca crucial. A fronte é subconvexa. O burro da Graciosa é utilizado em pequenas tarefas agrícolas. É um animal dócil42.

Concluindo, em Espanha há uma vantagem em termos de reconhecimento de raças asininas locais comparando com Portugal. Portugal conta com cerca de 100 000 burros e mulas segundo fontes do serviço coudélico Nacional português. Só há uma raça reconhecida e Portugal. A AEPGA tem enormes dificuldades em fazer reconhecer o património asinino. As ajudas públicas são muito limitadas. O serviço nacional coudélico deu pouco apoio ao projecto de desenvolvimento da associação, apesar das diversas acções de promoção. O programa EQUISAVE parece abrir algumas portas mas a iniciativa política das colectividades locais portuguesas é muito tímida. Os apoios à valorização da raça são limitados e as ameaças de extinção são reais pois os animais pertencem sobretudo a criadores na reforma, com 63 anos em média. São raros os burros inteiros, disponíveis para reprodução. Em 2003, a AEPGA avaliava a população em 1 000 fêmeas reprodutoras e 40 machos reprodutores. A utilização tradicional tem tendência a desaparecer (transporte, trabalho agrícola) e a associação AEPGA procura desenvolver novas utilizações no domínio do lazer: passeios, asinoterapia…

C. As características zootécnicas da produção mulateira Ibérica

Apesar das leis proibindo ou restringindo a produção mulateira, a Península Ibérica aparece provavelmente como a mais importante criação mulateira da Europa Ocidental. Duas explicações surgem para compreender esta dinâmica : em primeiro lugar, a Espanha e Portugal não têm por tradição a criação equina de atrelagem contrariamente à França (estes dois países importavam cavalos de tracção franceses mas em proporções economicamente razoáveis pois o preço dos cavalos era elevado em relação ao poder de compra dos camponeses espanhóis e portugueses); em segundo lugar Espanha e Portugal tinham uma necessidade enorme de mulas destinadas às colónias em África e América Latina (os equídeos constituíam uma peça fundamental na exploração das minas de ouro no Brasil, estes animais estavam mais adaptados ao clima do sul e climas tropicais). As características da produção mulateira diferem em Espanha e em Portugal por razões de território e criação de cavalos.

1) As raças mulateiras em Espanha42 Vieira, Mónica Bugalho. « Burro anão da Graciosa » in Equitação, n°64, p. 68/69

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Espanha foi durante muito tempo a primeira nação produtora de mulas. Espanha não possuía raças de cavalos especializadas na produção de mulas. O gado era muito heterogéneo; mesmo assim podemos distinguir dois tipos de mulas ao longo da história desta produção43 :

Um tipo robusto, de constituição forte, com: Uma cabeça imponente e uma testa tendencialmente direita, Um pescoço e um peito largo e robusto, Uma garupa musculada ; Extremidades fortes, Um temperamento dócil.

Este tipo encontra-se na Catalunha e Aragão com extensão para Este e centro. Corresponde ao cruzamento entre éguas de tracção e burros catalães ou zamorano-Leonês.

O segundo tipo é muito mais delgado : Cabeça convexa, Pescoço fraco garrote mal enquadrado, dorso direito, Garupa redonda e inclinada lateralmente, Tronco cilíndrico, Bons cascos com tendência a jarretes fechados.

De temperamento enérgico, suporta bem as privações e um trabalho intenso. Este tipo encontra-se nas regiões da Andaluzia, Estremadura, Ciudad Real e resulta de uma mistura de éguas de tipo espanhol e burros andaluzes.

2) As raças mulateiras em Portugal

A produção mulateira em Portugal difere pouco da produção mulateira espanhola. A produção mulateira está ligada a uma cavalaria portuguesa constituída essencialmente por cavalos de tipo lusitano ou garrano e de todos os cruzamentos resultantes destas raças equinas. O cavalo de tiro estava pouco presente e praticamente não se utilizava na produção mulateira.

Carlos Nunes Duarte diz a respeito da produção mulateira portuguesa : « As regiões onde vive o tipo galego, ou zonas onde se observa a sua influência, os híbridos produzidos são de pequena corpulência tal como os seus progenitores, éguas garrano ou burro… de tipo africano »44 e acrescenta ainda : « as mulas de qualidade (mais de 1m50) coexistem nas regiões onde a espécie de cavalos de tipo bético- predominantemente lusitano»45. B.C. Cincinnato da Costa fornece elementos sobre os machos : « o macho, pelo contrário, é sempre um produto inferior, pois procura-se o cavalo mulateiro apenas entre os garranos ou cavalos de tamanho pequeno, cujas características são geralmente a agressividade e a indisciplina, defeito que se transmitia ao macho. Este animal indesejado é então, menos estimado e menos comum que a mula. »46Notemos que o autor tem tendência em estigmatizar o macho sem razões genéticas pois os garranos são

43 Th. Devimeux. Les équidés en Espagne, ibid., p. 139/14144 Duarte, Carlos Nunes. Subsídio para o estudo do gado muar nacional. Estação zootecnica, p. 6745 Ibid., p. 6746 B.C. Cincinnato da Costa. Ibid., p. 218

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efectivamente desobedientes pois são criados livremente no parque natural da Peneda do Gerês. Temos muitas dúvidas quanto à transmissão genética do carácter do garrano ? A nossa experiência de educação deste tipo de animais ensinou-nos que são animais efectivamente sociáveis a partir do momento que são educados com rigor. Os agricultores não têm todavia a capacidade para domar os garranos e deste modo os pequenos machos poderiam ter o mesmo comportamento que os garranos a partir do momento em que a técnica de educação estava em falta. Além do mais, estudos em etologia mostram que os animais assustadiços ou medrosos, uma vez que ganham confiança têm uma capacidade de aprendizagem muito elevada comparando com outros animais mais sociáveis. No final é só uma questão de os domesticar…

Concluindo, a produção mulateira Ibérica está hoje em dia em decréscimo. Teve o seu apogeu ao longo do século XVIII e do século XIX. As oportunidades da América Latina dispararam no fim dos anos 60. No berço da raça de Miranda, a produção mulateira é quase nula. A AEPGA quer tentar uma reabilitação dos híbridos resultantes do cruzamento de burros de Miranda e éguas garranas.

SEGUNDA PARTE : A ORGANIZAÇÃO DO COMÉRCIO DE BURROS E DE MULAS

A constatação da existência de uma importante produção mulateira na Península Ibérica leva-nos a questionarmos sobre o funcionamento do mercado de mulas e de burros. A história económica de Espanha e de Portugal revela-nos especificidades da economia rural Ibérica. A estrutura das criações, a tipologia das paisagens e a organização da agricultura produziram necessidades específicas. A política da conquista de novas colónias na América e em África orientou a criação mulateira. A América não possuía equídeos : era então preciso estruturar o mercado dos equídeos para fornecer as colónias, pois os recursos a explorar eram consideráveis e fonte de lucros para a economia espanhola e portuguesa. Uma tipologia das necessidades impõe-se então, para compreender o desenvolvimento da criação de burros e mulas.

A. As necessidades específicas do mercado Ibérico

A especificidade da economia na Península Ibérica permitiu o surgimento de um mercado importante de burros e mulas. Em primeiro lugar, do ponto de vista da criação equina, Espanha e Portugal não possuíam cavalos de transporte ou atrelagem para o trabalho agrícola e desenvolvimento das culturas. Tinham então que encontrar um substituto : empregaram uma grande quantidade de bovinos, burros e depois mulas. Cada animal encontrava a sua especialidade : os bovinos adaptados às terras pesadas. Os burros e as mulas menos robustas mas eficazes serviam para a piquetagem do trigo (eram conduzidos em grupos de dois a mais de uma dezena de animais para o eguariço) mas também para os trabalhos em solos ligeiros.

Ainda hoje, a tracção animal na agricultura tem um papel significativo. Portugal é um país europeu onde as técnicas de trabalho com os animais continuam ainda bem vivas apesar da mecanização da agricultura. Até ao final dos anos 60, o animal era uma força motriz significativa, empregue um pouco por todo o país Hoje em dia, apenas 4 regiões preservaram as suas técnicas de trabalho com os animais : o Minho e Trás-os-Montes regiões do Norte continuam a empregar a tracção bovina e equina

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no trabalho da terra e as regiões de cultivo, Alentejo e Ribatejo são os únicos lugares onde ainda se pratica a equitação de trabalho destinado a triar o gado.

Os portugueses eram grandes comerciantes e souberam fazer da mula um auxiliar privilegiado. Verdadeiras « empresas » mulateiras foram criadas desde a idade média para o transporte de diversos bens (transporte de peixe desde o litoral até às regiões no interior do país). Os mulateiros contribuíram também para a criação de grandes vias de comunicação que permitiram de uma certa forma para a delimitação das fronteiras.

Em Espanha e também em Portugal, a mula era escolhida para a tracção de grandes atrelados desde o inicio da renascença : as carroças eram puxadas tanto por cavalos como por mulas, como nos evocam os vários textos descritivos de viagens de estrangeiros. As celas para mulas eram apreciadas em Portugal e existem ainda alguns exemplares no museu dos coches em Lisboa.

A Península Ibérica jogava um papel determinante na conquista de « novos mundos ». As Américas eram um importante mercado para os equinos pois o cavalo e o burro não estava presente em terreno americano e era então necessário importar estes animais em massa para « o ciclo do ouro» e o desenvolvimento da agricultura. A mula teve um papel crucial na definição das fronteiras brasileiras.

Finalmente, os equídeos constituíam uma peça estratégica para a defesa das fronteiras. Espanha e Portugal tinham uma penúria de cavalos. O burro e a mula continuavam a ser auxiliares estratégicos no transporte de armas e de mantimentos. Em 1640, Portugal criava uma verdadeira administração da coudelaria para orientar eficazmente a produção equina, ponto-chave para a restauração da monarquia portuguesa.

1. A agricultura : a importância da tracção animal

Portugal possui também um património técnico original, produto de uma geografia particular. Orlando Ribeiro em Geografia de Portugal considera dois mundos : um mundo atlântico « animado pelos cânticos das águas correntes e densamente povoado» e um mundo mediterrânico « mais seco, mais luminoso e população mais rarefeita»47. Estas duas paisagens deram origem a culturas técnicas. Segundo Jorge Dias, a paisagem atlântica corresponde ao arado quadrangular de origem da Europa Setentrional e central e a paisagem mediterrânica à do arado ao colar que encontramos em todo o mediterrâneo. Quanto ao terceiro arado português encontramos na região Norte do país: Trás-os-Montes. O burro e a mula foram eleitos pelos agricultores e puxam estes três tipos de arados. Em 1870, Portugal continental empregava 21 042 mulas nos trabalhos. Eram tanto um animal de atrelagem como de sela. O burro era provavelmente essencialmente utilizado como animal para trabalho: contavam-se na época 61 034 burros a trabalhar ou seja três vezes mais que as mulas. Este número explica-se também pelas leis « anti-mulas » e a penúria de éguas destinadas à produção mulateira.

2. O comércio : o papel chave dos mulateiros

Desde a idade média que se metem em marcha verdadeiras caravanas de mulas e burros destinados a acompanhar comerciantes até vários pontos da Península Ibérica . Como o explica muito bem Humberto Baquero Moreno, a acção dos mulateiros foi

47 Ribeiro, Orlando. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Coimbra, 1945

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determinante no desenvolvimento das comunicações interregionais48. Uma conjunção de factores explicam o desenvolvimento do ofício de mulateiro e do seu papel. As mulas tinham uma capacidade de locomoção, uma adaptação aos vários solos muito superior aos cavalos e aos burros. A capacidade de carga era considerável e podia ir até aos 250Kg por mula. A mula tinha uma vantagem considerável na deslocação em montanha. As mulas podiam atravessar territórios muito acidentados contrariamente às carroças de bois.

Existem poucos elementos sobre a legislação relativa ao ofício de mulateiro. O professor Jorge de Macedo dá alguns elementos : « o mulateiro realizava sozinho o transporte de mercadorias, mas não raramente trabalhava por sua conta pessoal ou transportava somente as suas próprias mercadorias, tornava-se assim um verdadeiro comerciante. Mas a sua função era muito mais ampla e não estava associado a nenhuma classe em particular. O mulateiro oferecia os seus serviços tanto ao clero como à nobreza assim como a comerciantes ou funcionários, servia a todos sem depender de nenhum : tanto tratava com o produtor como com o comerciante da vila»49. Eram então trabalhadores independentes. Todas as localidades possuíam pelo menos um mulateiro que fornecia a aldeia ou cidade. Não existe praticamente nenhuma estatística sobre a actividade de mulateiro. No século XVI, Lisboa dispunha de cento e cinquenta mulateiros para os seus serviços interiores. A cidade de Lamego possuía cem mulateiros inscritos na câmara municipal. A pequena localidade de Arruda possuía em 1369, dois mulateiros para uma população de 1 500 habitantes. Para evitar o despovoamento das aldeias, os municípios eram obrigados a disponibilizar infraestruturas para acolher convenientemente os mulateiros e os seus animais.

É necessário fazer aqui um parêntese sobre a origem árabe da palavra portuguesa a que se chamava o mulateiro (almocreve). Isto leva-nos a valorizar o papel dos Árabes na difusão de certas técnicas e de raças asininas do Norte de África50.

A circulação dos Almocreves era muito regulamentada e o transporte de mercadorias deu lugar a um imposto. As mercadorias transportadas eram de origem agrícola e industrial: vinho, azeite, sal, mel, cera, peixe, frutos secos e vários produtos manufacturados. O preço do frete variava em função da estação do ano e de várias circunstâncias. O almocreve tinha um estatuto privilegiado. De facto, dado o seu importante papel estratégico no transporte, ficavam livres do serviço militar. O ofício de almocreve não era livre de perigos : eram vítimas de violência nas travessias comerciais. Este facto leva o professor Luís de Valdeavellano51 a afirmar que o comércio entre Castilha e Leão era pouco intenso no inicio da idade média por haver más condições de transporte e dos bandidos que atacavam os almocreves. Podemos deduzir que o comércio europeu com mulas e burros devia ser limitado. A circulação dos almocreves permitiu a abertura de verdadeiras vias de comunicação (ver mapa). Os almocreves permitiram a abertura de certas áreas regionais fechadas no início da Idade Média. O almocreve teve provavelmente um papel estratégico na elaboração e difusão das raças

48 Moreno, Humberto Baquero. A acção dos almocreves no desenvolvimento das comunicações inter-regionais portuguesas nos fins da idade media, Porto: Brasília Editora, 197949 Ibid., p. 12/1350 « Encontramos por exemplo a palavra Almocreve designando a profissão de mulateiro e provavelmente a profissão do trabalho com burros e mulas. Este termo faz lembrar o saber fazer na tracção mulateira dos Árabes pois sabemos que o burro está presente na África do Norte. Além do mais, no plano zootécnico, sabemos igualmente que o burro africano influenciou fortemente o burro europeu provavelmente na conquista islâmica da Península Ibérica. O termo em português serve para designar aquele que emprega animais de transporte, podemos então aí incluir o cavalo. Encontramos também termos derivados como almocrevar, (transportar com animal de transporte), almoucavar (que é um pastor, um guardador de animais de criação de um ramo inferior ao do patrão de uma exploração agrícola), almocrevaria (grupo de almocreves, agrupamento). » in -« Le vocabulaire du travail de la terre avec les animaux au Portugal », por Carlos Pereira colóquio sobre o « Trabalho da terra », Universidade de Nantes-CNAM-EHESS, Outubro 2006.

51 Ibid., p. 9

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asininas e mulateiras na Europa. Conhecendo perfeitamente os contrastes geográficos, era capaz de aconselhar o criador e orientar indirectamente a criação de burros e mulas.

3. Os transportes : prioridade das mulas

Na ausência de cavalos de tracção, os Espanhóis e os Portugueses optaram pela mula no transporte atrelado. Na sua imponente História das rotas e transportes na Europa,Georges Livet confirma a preferência dos espanhóis pelas mulas na tracção de carroças e outros carros de tracção equina : « De todas as variedades são os coches que mais frequentam estes caminhos. Em primeiro lugar, a diligência levada pelo mayoral, dirigida pelo zagal, acompanhada pelo delantero, o « condenado à morte », pendia sobre a mula. Mais rápido que elas, existe o coche de colleras, puxado por seis mulas e a calesa individual, pequena carroça de duas rodas atrelado a uma só mula, com trote alongado. Cruza de tempos a tempos as galeras longas carroças carregadas de mercadorias e de viajantes, atrelados a mulas robustas. Por todo o lado as mulas formam uma corporação respeitada que frequenta os caminhos. Em Fevereiro de 1763, foi estabelecido um serviço destinado aos passageiros entre Madrid e as províncias, conhecido pelo nome Diligencia general dos coches… »52.

Os testemunhos de viajantes relatam igualmente observações sobre a utilização das mulas. É o caso do relato de um jovem no inicio do século XVIII (1726-1727)  : « De seguida o do príncipe das Astúrias dá dois cuartes, e o príncipe sai da sua carroça, com seis belas mulas que puxam com cordas em vez de tiras de couro […]. Depois dele, sai o seu irmão D. Carlos, tendo a sua carroça seis mulas cinzentas esbranquiçadas, indo os seus valetes de pé atrás da carroça, com a espada ao lado, como era moda em Espanha […]. Depois dele saiu o conde D. Fernando, seu irmão, com seis mulas na sua carroça, sendo também seguido pelos seus guardas […]. Pouco depois, o rei, com seis mulas ruivas, revestidas com um longo manto cinzento esbranquiçado». Este relato dá-nos elementos preciosos : qualquer que seja o elemento da nobreza, a mula parece ser o animal de atrelagem preferido. Trata-se a priori de animais robustos capazes de puxar pesadas carroças ou carros.

Em Portugal o gosto pelas mulas no transporte de pessoas é semelhante. Portugal possui a colecção mais importante de viaturas hipomóveis tanto em quantidade como em qualidade, do mundo : carroças, liteiras ou cadeiras para transporte do século XVI ao século XIX. Instalada no palácio real em Belém, o museu nacional dos coches oferece também aos visitantes um panorama da cultura do cavalo mas também das mulas em Portugal. É em Julho de 1787 que se criavam as primeiras fundações desta arte, criada por Dona Maria I sob a influência de do seu filho Dom João VI, apaixonado pela arte equestre e também cavaleiro. O museu possui peças únicas, entre as quais duas liteiras transportadas por mulas. O primeiro modelo é de estilo « italiano » e o segundo foi feito « à francesa ». O primeiro exemplar data do século XVIII, barroco, foi pintado de verde, e tecto em couro negro, com quatro ornamentos em bronze ; as paredes são decorados com bordados de volutas e conchas e apresentam cenas alegóricas em tons ocre, onde se reconhecem as figuras de Neptuno, Bellona, Ceres, Apolo e Mercúrio. Sobre o painel superior traseiro está pintado um brasão que identifica o seu proprietário. O segundo modelo « à francesa » é uma caixa com duas portinholas e janelas em vidro tornando-se assim confortável no Inverno. O tecto é em couro negro pregado, com quatro ornamentos em bronze dourado. Os painéis são decorados com cenas campestres galantes, estilo Luís XV. O interior, de dois lugares, é alcatifado em vermelho, com

52 Livet, Georges. Histoire des routes et des transports en Europe, Des chemins de Saint–Jacques à l’âge d’or des diligences, Strasbourg : Prensa Universitária de Strasbourg, 2003, p. 383

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cortinas em seda do mesmo tom. No século XVII, o número de coches era excessivo o que levou os reis a promulgarem uma lei que interdiz os coches em determinados lugares. Só podiam aí circular os que tinham prioridade : médicos, eclesiásticos, magistrados…Espanha soube dotar-se de um verdadeiro sistema de transporte internacional empregando vários animais de atrelagem: « a lã e o comércio internacional que suscita». Em Burgos são organizados transportes para encaminhar a lã para Bilbao: «Sete mil a oito mil mulas são empregues »53. O saber fazer em matéria de caravanas de mulas foi provavelmente exportado pelos espanhóis para o Brasil.

4. Os territórios do Ultra-mar : uma acentuada falta de equídeos

Cristóvão Colombo, é o primeiro europeu da história moderna a atravessar o Oceano Atlântico e a descobrir uma rota de ida e volta entre o continente Americano e a Europa em 1492. Efectua ao todo 4 viagens enquanto navegador ao serviço dos reis católicos espanhóis Isabel de Castilha e Fernando d'Aragon, que o nomearam antes da sua primeira partida, vice-rei das Índias e governador-geral das ilhas e terra firme que descobre-se. A descoberta das Caraíbas marca o início da colonização da América pelos europeus. Os Espanhóis e os Portugueses descobrem a ausência de equídeos, auxiliar estratégico na conquista de novos mundos. É na sua segunda viagem que Cristóvão Colombo encoraja a importação de equídeos. Convencido provavelmente da existência de cavalo e burros, Cristóvão Colombo não achou relevante levar uma grande quantidade na sua primeira expedição. Segundo arquivos da Índia, os cavalos puseram o pé em solo Americano a 28 Novembro de 1493 e em 1494, O almirante escrevia aos reis Católicos : « cada vez que se enviar uma caravela é necessário levar burros, burras e éguas para o trabalho, pois aqui não há nenhum desses animais que o Homem necessita… »54. O primeiro envio de burros e burras teve lugar a 9 de Abril de 1495 : 4 burros e duas burras. O burro e a mula têm doravante um papel importante na economia colonial espanhola e portuguesa.

a. A introdução dos burros, cavalos e mulas na América latina

Na conquista das Américas, espanhóis e portugueses procuraram introduzir todos os animais de criação presentes na Europa e necessários para o desenvolvimento económico e rural : gado asinino, bovino, equino, ovino, suíno…Nos primeiros anos dada a ignorância pelos territórios do novo mundo, os primeiros colonos importaram muito poucos animais como o explica os primeiros relatos das descobertas. Ao que parece segundo Ramón María Serrera, as primeiras exportações foram feitas por etapas. Com efeito « o primeiro cenário natural permitindo iniciar a adaptação, criação e difusão do cavalo (e dos burros e mulas evidentemente desenrolou-se no ambiente da Antilhas»55. É evidente que o cavalo e claro está os burros e as mulas tiveram um papel determinante : permitiram a exploração de diferentes regiões e de se imporem junto aos povos nativos que nunca tinham visto semelhantes animais. Bernal Díaz del Castillo dizia a propósito da conquista do México : « aqui os Índios crêem que o cavalo e o

53 Livet, Georges. Ibid., p. 20354 García, José Emilio Yanes. El Asno Zamorano -Leonés, una gran raza Autóctona, Edições Jambrina – Zamora, 1999, p. 3055 Serrera, Ramón Maria. « El caballo en el nuevo mundo » in Al-Andalus e el caballo, Barcelona : Lunwerg Editores, 1995, p.271/284

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cavaleiro formam um todo! »56. Uma vez instalados os primeiros colonos, a criação equina desenvolveu-se a uma velocidade vertiginosa. Assistimos em certos casos a um desenvolvimento anárquico e descontrolado de criação bovina e equina em medida inferior. Os casos de fuga equina são frequentes e basta ver hoje em dia os rebanhos imensos de mustangs americanos. Em certas circunstâncias, o crescimento incontrolado de equinos punha em perigo a própria existência humana. Alguns viajantes relatam ao longo do século XVII na Argentina a existência de cavalos e éguas sem proprietários57. Imaginamos a mesma situação para os burros e para as mulas mesmo que menos frequentes dada a sua utilização na agricultura e no comércio. Serrena relata « que em 1550, o país (México) estava saturado de cavalos e os preços elevados pagos na fase inicial da conquista desciam de forma vertiginosa [… ]»58. O preço das mulas era ao contrario muito provavelmente elevado devido às leis « anti-mulas » que se aplicavam igualmente na América. Henrique III e Henrique IV de Castilha e os reis católicos interpelaram regularmente as leis proibindo a criação de mulas: « é uma justa causa que em todas as terras do reino disponíveis para a criação de cavalos, que sejam criados cavalos e que façam nascer potros de baixas castas, ordenando que não se faça nascer crias de burras, e a cada vez que aconteça que percam o burro e paguem uma multa de 10 000 maravediès. Cristóvão Colombo teve igualmente que pedir uma autorização especial para usar mulas nos lugares onde não havia cavalos59. A realidade, é provável que a criação de mulateira tenha sido ilegal durante 400 anos em Espanha e em territórios do ultra-mar pois a aplicação da lei era difícil e ia contra os interesses económicos de um certo número de grupos sociais e abrangia o dos nobres que tinham interesses financeiros nas minas de ouro. A implementação da criação asinina e sobretudo mulateira será variável no continente Americano. Parece que a criação mulateira se desenvolve de forma exponencial sobretudo no Brasil, colónia Portuguesa que soube pôr em marcha um comércio internacional de ouro que exigia uma quantidade enorme de mão de obra (escravos) e animais de atrelagem. Em 1956, o Brasil possuía 3 245 000 mulas ou seja o primeiro gado da América latina60.

b. Os almocreves brasileiros « tropeiros »

O estudo dos almocreves brasileiros é determinante para compreender a organização do comércio dos burros e mulas na Península Ibérica e das trocas com o Poitou. Com efeito, o comércio de burros e de mulas dos espanhóis em Poitou está intimamente ligada à do comércio da Península Ibérica com as Américas. Com a descoberta de enormes territórios onde não existiam equídeos, a Península Ibérica tornou-se (sobretudo Portugal pois era um território pequeno) um cliente importante para os criadores de burros e de mulas entre Espanha e Poitou, provavelmente intensivo ao longo do século XVII explica-se pelo desenvolvimento das colónias do Ultra-mar. É muito provavelmente por razões económicas que os mercadores espanhóis compravam em França para depois revender em Portugal. As estatísticas do século XIX entre Portugal e Castilha mostram claramente que Portugal era importador e fornecia-se quase exclusivamente em Espanha. O comércio de animais por via marítima era provavelmente muito custoso. As nossas pesquisas em La Rochelle mostraram que o comércio de animais entre França e Portugal era nulo. Com a descoberta do Brasil, uma 56 Ibid., p. 27357 Ibid., p. 27558 Ibid., p. 27559 Ibid., p. 27960 Goulart, José Alípio. Tropas et tropeiros na formação do Brasil, Rio de Janeiro : edições Conquista, 1961

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possibilidade de circuito comercial pareceu impor-se: Poitou-espanha-Portugal-Brasil. Os preços e as quantidades são difíceis de avaliar e é preciso saber que muitos bens não eram declarados.

Em 1900, B.C. Cincinnato da Costa constata um aumento da exportação de mulas e burros para as colónias Portuguesas : «é ainda de Espanha, que depois de entrar em vigor o tratado do comércio de 1893, vêm estes milhares de burros, que depois de uma curta estadia em Portugal, são expedidos para as colónias  »61. José Alípio Goulart confirma o papel de Espanha no comércio de mulas e burros para o Brasil : « (no século XVII) é pelo sul que entram a partir de Espanha numerosos animais mulateiros, os mineiros preferem-nos aos cavalos, isto explica as grandes quantidades de ouro que partem para Espanha e os baixos preços dos cavalos na região do Sertão […] »62. Esta informação confirma o circuito comercial entre Portugal e Espanha. Esta constatação feita para o século XIX continua válida na nossa opinião depois do inicio das descobertas Portuguesas. É preciso imaginar como os dados o mostram que os Açores eram um lugar de passagem e de habituação na exportação para as Américas. Os Açores constituem um espaço de criação asinino e mulateiro importante. É aliás nos Açores que se avista o reconhecimento de uma segunda raça asinina em Portugal.

Qual é o fenómeno económico que provocou o desenvolvimento das exportações para o Brasil e o desenvolvimento de uma importante corporação de mulateiros provavelmente única no mundo?

É em 1500 que o navegador Pedro Alvares Cabral descobre o Brasil a que chama « Terra de Santa Cruz ». Pero Vaz de Caminha, um viajante e aventureiro que o acompanhava, redigiu um relatório considerado pelos historiadores como o primeiro texto europeu descrevendo uma terra e um povo desconhecido. A descoberta do Brasil dá um evidente avanço económico a Portugal. Os recursos naturais desta colónia são imensos e diversificados. De maneira simplista, a economia brasileira foi descrita como uma sucessão de ciclos : « após o de madeira-brasil », o do açúcar, depois o ciclo do ouro e pedras preciosas, o ciclo misto de com açúcar, cacau, couro graças ao esforço de criação de bovinos, o primeiro ciclo de café com o Rio de Janeiro para pilote e borracha amazónica como acessório […] »63. Mesmo sendo uma redução da realidade, temos elementos económicos que permitem compreender o desenvolvimento da criação mulateira em certas regiões do Brasil.

A vontade de criar rotas para a exploração de minas de ouro parece ser o acontecimento principal que dispara a economia « mulateira » : « Desde então, o Rio recebia e encaminhava para o interior mantimentos alimentares, ferramentas e escravos que as minas necessitavam e recebiam as caravanas de ouro de que se alimentava o estado Português e os tráficos e especulações de comerciantes e particulares. Caravanas de mula eram organizadas, o que supunha uma logística consequente e um recrutamento significativo de mulateiros e guardas armados… »64Em 1747, a estrada desde Sacramento a Curitiba favorecia o crescimento de vastas estâncias consagradas « a cultura de trigo e sobretudo a criação de bovinos e mulas cujo transporte de minerais de Minas fazia grande utilização»65 .

As terras mineiras brasileiras eram importantes consumidores de mão-de-obra e exigiam a criação de um sistema de transporte eficaz capaz de encaminhar o mais depressa possível os mantimentos alimentares necessários às populações e de encaminhar os recursos naturais para o litoral e exportá-los para a Europa. Devido às 61 B.C. Cincinnato da Costa, Ibid., p. 21562 Goulart, José Alípio. Ibid., p. 5263 Bennassar, Bartolomé, Marin Richard. Histoire du Brésil, 1500/2000, Paris: Fayard, 2007, p. 4564 Ibid., p. 11065 Ibid., p. 143

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condições meteorológicas e de relevo era necessário um sistema de transporte flexível e totalmente adaptado. Os carros de bois e os carros hipomóveis não estavam adaptados. O transporte de Homens no dorso que predominava nos primeiros anos de exploração provocava perdas humanas consideráveis : « no inicio, o transporte fazia-se no dorso de homens ; mas esta prática provocava massacres entre os Índios empregados nesta tarefa que tivemos que recorrer a animais»66. O cavalo não era um animal de atrelagem pois a sua capacidade de transporte em longas distâncias era limitado. O burro e a mula tornavam-se animais de atrelagem mais eficazes : proporcionalmente o burro tem mais força e resistência que o cavalo. P. Diffloth considera que o burro pode transportar 2/3 do seu peso durante 28 km enquanto o cavalo só consegue levar metade numa distância equivalente67.

É no meio do século XVIII que surge então um sistema de transporte inovador destinado ao desenvolvimento económico e social do centro-sul (São Paulo), centro-oeste (Minas Gerais) e extremo-oeste (Mato-Grosso) : o sistema de « tropa » de mulas. O « tropeiro » ou mulateiro que dirigia estas caravanas tornou-se um herói pois era o único a enfrentar as dificuldades do transporte ao longo de grandes distâncias (bandidismo, obstáculos naturais…). Ele era o antepassado dos transportes modernos ou camioneiros. Cada mula era uma espécie de vagon e o « tropeiro » a locomotiva.

Notemos que o termo « tropa » é originário da linguagem militar que significa « pessoas de guerra ». esta etimologia faz-nos tomar consciência que a caravana de mulas era organizada segundo uma hierarquia militar estrita. Os mulateiros estavam armados e deviam respeitar regras estritas pois transportavam bens de grande valor e muito desejados. A disciplina, o sentido de combate e de sacrifício constitua o espírito destes aventureiros. O desenvolvimento das caravanas de mulas provocou importações do continente europeu e reduziu drasticamente o preço dos cavalos .Face ao perigo para a espécie equestre, o rei português dirigiu uma carta datada de 19 de Junho de 1761 onde exigia a extinção da criação de mulas em todo o território brasileiro. Esta medida ia contra os interesses da economia colonial o que provocou de imediato o desenvolvimento do contrabando. Em 1764, o rei volta atrás na sua decisão e autoriza a criação mulateira no território brasileiro. A medida não transmitida de imediato pelos responsáveis políticos locais. Progressivamente a corporação de mulas impõe-se e cria uma verdadeira economia que perduraria até aos anos 40. Como eram organizadas estas verdadeiras empresas de transporte comerciais?

Uma caravana ou procissão (Tropa) era composta por vários animais (burros e mulas) e de uma equipa para a dirigir : o mulateiro (tropeiro), os assistentes (camaradas) e os cozinheiros (cozinheiros). Podíamos adicionar em certos casos e em função do número de animais um assistente carregado de arreios (arreeiro). O cão era igualmente um auxiliar precioso. A caravana não pertencia em geral nem a um produtor nem ao comerciante ou mercador. Pertencia na totalidade ao mulateiro. Como um transportador ele alugava os seus meios de transporte. Podia adquirir mercadorias para as revender. Era um vector importante nas trocas comerciais. Realizava viagens entre as cidades do litoral e as cidades do interior criando as rotas e caminhos contribuindo assim para a definição do território brasileiro. O mulateiro « homem rude e ignorante na generalidade […] guiado pelo seu próprio instinto […] tinha adoptado uma divisão do trabalho»68. As caravanas estavam divididas em lotes para optimizar as tarefas dos vários assistentes. Era preciso uma certa ordem, uma disciplina e um alto sentido de responsabilidade. Os lotes eram compostos por sete, nove ou onze animais de

66 Goulart, josé Alípio. Ibid., p. 4767 Ibid., p. 5168 Ibid., p. 67

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atrelagem. Cada lote era orientado por um assistente a pé. O mulateiro optava pelo cavalo como meio de transporte. Era responsável pela caravana, logo o chefe comandante. Algumas caravanas chegavam a ter 200 a 300 animais o que constituía um verdadeiro espectáculo na paisagem brasileira. Havia várias categorias de caravanas : as caravanas com mais de cinco lotes eram de primeira categoria e podiam ser identificadas graças aos arreios das mulas (arreios em prata, penas nos arreios da cabeça, sinos…) e eram conduzidos por uma madrinha, um animal de mais idade e mais experiente. Para as caravanas de cinco a três lotes, não era autorizada a utilização de arreios de cabeça decorativos. O animal possuía apenas uma coleira com as insígnias. Para as caravanas com menos de três lotes, as mulas não possuíam nenhuma insígnia m particular. As insígnias dependiam de convenções e de costumes regionais. Estes sinais de distinção permitiam situar o mulateiro numa hierarquia social e corporativa. A corporação de mulateiros instalou-se num local certo importante mas circunscrito : os estados de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo. A capacidade de carga dos animais era variável. Estimamos uma média de 180 kg transportado por cada animal. Nas zonas montanhosas onde o ar era rarefeito, as cargas eram menores, cerca de 90kg por animal. Uma caravana com 300 mulas podia transportar em média 36 000 kg de mercadorias segundo José Alípio Goulart69. A duração do transporte era de cerca de 30 dias em percursos de mais de 300 quilómetros entre Ouro Prêto e Rio do Janeiro. A organização quase militar dos mulateiros permitiu vencer o espaço e criar uma urbanização fonte de desenvolvimento económico e social. A importância desta corporação dá-nos igualmente pistas de reflexão para compreender a estruturação do mercado dos burros e das mulas na península ibérica. A América Latina. Era então um mercado indirecto para a produção mulateira de Poitou dinamizada por mercadores espanhóis.

5. O exército : o papel dos equídeos na defesa das fronteiras, uma participação crucial no século XVII

A outra hipótese, que merece uma atenção particular, diz respeito à gestão e criação asinina. Com efeito, a aparição de duas raças com características comuns pode ser explicada por um sistema de selecção. Os franceses e os portugueses parecem ter adoptado um modelo de gestão e criação de equídeos inspirando-se nos mesmos princípios. Esta ideia é posta em evidência por Mulliez na sua história sobre a coudelaria real, um saber pertinente para compreender a evolução quase similar de raças asininas em França e em Portugal. O estudo da regulamentação da criação dos equídeos no século XVII em França e em Portugal mostra claramente que a história da administração francesa dos Haras está fortemente associada à coudelaria portuguesa. Vemos aqui as grandes etapas. Como o testemunha o rei D. João IV e o seu embaixador em França, quatro anos depois da sua independência, Portugal sofre de uma falta de cavalos. O pilar mais forte de uma aramada, o cavalo, é indispensável para a defesa das fronteiras. Além do mais, a tracção animal constitui também parte importante para o desenvolvimento do transporte terrestre de armas e de mantimentos daí o interesse em ter uma criação de burros e mulas significativo. É então num contexto de guerra que o rei D. João IV e os seus conselheiros vão imaginar um sistema eficaz e rentável de aumentar fortemente o número de equinos.

A cavalaria é a única estrutura sólida e móvel para vencer o inimigo e mantê-lo longe das fronteiras. Tal é um dos princípios elementares da estratégia militar de D.

69 Ibid., p. 97

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João IV. A ideia parece enfraquecer logo que se sabe que é impossível construir em tempo recorde um muro em pedra, necessário para a defesa de Portugal.

Todavia, a sua aplicação não é evidente, treinada e composta por cavaleiros hábeis e numerosos? Duas soluções: comprar ou criar cavalos. Como vimos, D. João IV considera a primeira solução como transitória. A criação de cavalos é uma solução muito mais complexa. De facto, como produzir cavalos em quantidades significativas em tempo recorde ? Em primeiro lugar, o esforço de reconstrução de uma criação de cavalos devia ser um esforço colectivo importante. Era preciso mobilizar todas as forças da « nação» para produzir cavalos rapidamente. Em segundo lugar, esta empresa devia funcionar como uma verdadeira « indústria de produção animal ». Tratava-se então de racionalizar a produção de equinos e desenvolver um modelo de criação procedente « duma economia de colheita » comum a toda a Europa e que provocasse penúria e preços elevados. Esta « empresa nacional » assenta em quatro pilares que constituem os principais factores de um sucesso de envergadura europeia : uma estratégia, uma estrutura, uma decisão e uma identidade… As orientações da estratégia encontram-se no decreto de 1645 estabelecendo a fundação de uma administração do serviço coudélico. Tratava-se provavelmente da primeira administração da coudelaria centralizada constituída 20 anos antes da dos franceses.

O texto é composto por uma introdução e 58 capítulos. A introdução específica os objectivos da regulamentação : defesa das fronteiras e redução da despesa pública que diz respeito à compra de cavalos. Os capítulos 1 a 29 e 43 a 58 dizem respeito à organização da administração: estrutura da administração (« unidade de produção »), as funções dos diferentes intervenientes (subintendente, ajudantes, criadores, entre outros), os processos de decisão (relações entre os diferentes intervenientes), as sanções para o desrespeito do regulamento. Os capítulos 30 a 42 expõem as regras de selecção dos cavalos.

No projecto de administração da coudelaria Real, a produção asinina não é totalmente negligenciada e bem pelo contrário, é abordada com bastante pertinência pois os burros e as mulas tinham também um papel estratégico na defesa do reino. Serão da mesma forma úteis em projectos marítimos tanto pelos espanhóis como pelos portugueses pois permitiam também a colonização de novas terras nomeadamente na América, continente onde desapareceram todos os equídeos.

No decreto de lei de 1645, o legislador especifica desde a nascença da administração a selecção dos burros destinados à produção mulateira, animais vigorosos para a tracção. O artigo 16 do decreto regulamenta as regras de atribuição de burros aos criadores de éguas reprodutoras. Aprendemos também que era necessário um certificado para as crias válidos por um ano. Havia uma importância dada na escolha da égua destinada à produção de mulas. As relações contratuais eram elaboradas sob a autoridade da coudelaria real e o seu representante. A escolha do burro era também importante uma vez que o legislador especifica no artigo 22 : os burros devem ser « belos » para fazer boas mulas e as éguas ideais devem ser de forte corpulência. Os Portugueses parecem orientar a criação asinina para a produção de animais de grandes dimensões; aspecto que se verifica no fim do século XVIII. Um zootécnico esclarecido e informado das últimas pesquisas sobre a criação de equinos , Manuel Carlos de Andrade propõe um padrão da raça asinina ideal para a produção essencialmente de mulas: « Os burros destinados à reprodução devem ser de forte corpulência [….] »70. O burro de Miranda é antes de mais um burro de tamanho grande.

70 Andrade, Manuel Carlos de. Luz da liberal e nobre arte de cavallaria, Lisboa : fac-similé Férin, 1789, p. 57

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Este modelo de gestão de criação ao nível nacional, mesmo que difícil uma vez que o rei obrigava os seus súbditos a criar equinos permitiu a selecção de raças adaptadas em diversas utilizações. Agradados pelo desenvolvimento da criação em Portugal, os franceses experimentaram copiar o modelo zootécnico e económico. De facto, um informador conhecendo nitidamente muito bem Portugal e o seu sistema de criação, dirigiu uma proposta ao Marechal de Turenne (1611-1675). Ora Turenne foi encarregue oficialmente pelo rei de encontrar um meio de ajudar os portugueses sem que os espanhóis beneficiassem. Mulliez confirma a hipótese segundo a qual o modelo português teria inspirado o modelo francês da coudelaria real : « Segundo o autor, é com este sistema que os portugueses se abasteceram em alguns anos de uma cavalaria abundante, principal suporte na sua luta contra os espanhóis ; também não duvida que se for observado com atenção, no espaço de cinco a seis anos, « sua Majestade terá um número considerável de cavalos, mesmo para a artilharia, poderá ultrapassar a dos seus vizinhos, qualquer grande corpo de cavalaria que deseje ter a seus pés. »71

Antes de propor o seu plano da coudelaria, o informador descreveu o estado dos lugares de criação portugueses e as razões que permitiram o seu desenvolvimento. Vejamos o que nos diz no inicio das suas « memórias » : « Porque os portugueses se revoltaram contra o domínio de Espanha, trabalharam para desenvolver meios para se defenderem […] o mais difícil foi ter uma cavalaria ». Esta introdução mostra-nos bem como a cavalaria teve um papel importante no momento da restauração da independência de Portugal. É interessante observar que o informador conhece bem o sistema de criação instaurado por D. João IV. As informações que forneceu ao Marechal de Turenne são de uma grande precisão e coincidem com a regulamentação de 1645 : « Obrigaram quem tinha rendas, comandantes, juízes reais e particulares e outros oficiais de justiça, agricultores, nobres e os outros a que chamam vulgarmente de escudeiros de ter éguas para que portem crias cada um à medida das suas faculdades […] estabeleceram postos de cobrição em todas os concelhos numa quantidade suficiente , estabeleceram privilégios e direitos aos donos dos garanhões e impuseram severamente a crença a todos os nomeados que levassem as éguas aos postos de cobrição sob pena de grandes penalidades […] »72

Estando dada a qualidade de produção equina em Portugal, recomenda ao rei que importe éguas portuguesas muito superiores às de Espanha : « será com facilidade para o rei que faça trazer uma centena de éguas de Portugal, são mais belas que em Espanha, sobretudo no concelho de Évora […] »73. Nada nos impede de pensar que houve uma igual importação de burros e mulas de Portugal no fim do século XVII. Dizendo respeito aos cavalos portugueses, as informações são mais fáceis de obter graças aos tratados de equitação.

Estas descrições mostram com toda a evidência que Portugal « revolucionou» a criação dos equinos na Europa e o seu modelo era admirado pelos seus vizinhos europeus. O sucesso aparente dos Portugueses inspirou e estimulou muito provavelmente os franceses que decidiram pôr em marcha uma verdadeira administração da coudelaria real capaz de rivalizar com a dos portugueses e dos outros países europeus e mais concretamente com Inglaterra. O modelo Português foi muito provavelmente testado noutras regiões de França no momento da subida ao trono de Luís XIV em 1661. De facto, antes de estabelecer a administração da coudelaria real em

71 Mulliez, op. cit., p. 7972 Arquivos do ministério da guerra, AM A²83, op. cit. 73 Ibid.

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1665, confiou-se a Alain de Garsault, escudeiro da grande coudelaria, um inquérito preliminar que começou em 166374.

A semelhança entre os sistemas centralizados de criação equina em França e em Portugal permitiu muito provavelmente às raças equinas e asininas francesas e portuguesas de evoluir de forma idêntica ao longo do século XVII.

É evidente que a conquista da América constitui um factor maior na dinamização da produção de mulas e de burros. Enquadrado pelas leis restritivas, a produção mulateira ibérica era certamente insuficiente para responder à procura exponencial das Américas. Os espanhóis tornaram-se rapidamente os intermediários para encaminhar a produção asinina e mulateira francesa para as colónias americanas. Os portugueses dispunham de um pequeno gado mulateiro e deviam então importar de Espanha quantidades significativas de mulas (mas também de burros) para os reenviar para o Brasil onde os animais eram empregues nas minas de ouro. É com a exploração das minas de ouro, que vemos surgir verdadeiras empresas de mulateiros capazes de organizar o transporte em caravanas com mais de 300 animais. O valor monetário das mulas sobe de forma vertiginosa para ultrapassar a dos cavalos em certos períodos da história das colónias Ibéricas. Animal totalmente adaptado às duras condições, a mula torna-se um animal raro e muito requisitado. Em França, o Poitou que dispõe de uma criação de mulas de tamanho grande, logo uma capacidade de carga elevada torna-se o « peso pesado » das mulas. Como é preciso pesos pesados para transportar os minerais, o Poitou torna-se uma fonte de aprovisionamento estratégico para os espanhóis sobretudo durante o século XVII, período de frenesim na procura do ouro. Os circuitos comerciais organizam-se entre Poitou e a península Ibérica.

A. Fisionomia das trocas

Para estudar a fisionomia das trocas, expõem-se duas etapas. Em primeiro lugar, é preciso estudar os laços comerciais. Para isso dispomos de várias fontes. Escolhemos analisar as estatísticas do comércio exterior entre França e Portugal. Por razões de tempo e de disponibilidade de documentos, decidimos consultar as estatísticas do final do século XVIII até ao final do século XIX. Estabelecemos uma relação das trocas entre França e Portugal. Em contrapartida, não aprofundamos os dados relativos ao comércio exterior a frança-Espanha pois este trabalho não constituía um eixo principal da nossa pesquisa que se devia interessar essencialmente ao comércio luso-francês. A segunda etapa diz respeito ao estudo da hipótese de partida englobando o comércio por via marítima. A segunda parte tenta compreender o caminho percorrido pelos animais para a península Ibérica: por via terrestre ou marítima?

1 Os circuitos comerciais

Para melhor compreender a difusão da raça do burro de Poitou ou a zamorana-Leonesa, impõe-se a análise económica dos fluxos de animais entre o Poitou e a Península ibérica. É evidente que as trocas se faziam nos dois sentidos. Mas podemos todavia imaginar uma tendência comercial numa das duas regiões. Estaria a península ibérica em posição de cliente ou de fornecedor ? Dito de outra forma, a Espanha e Portugal importavam burros e mulas em maior número do que exportavam ? o balanço

74 Gillotel, Gérard. Les Haras Nationaux, Paris : Lavauzelle, 1985, p. 80

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comercial da península ibérica era deficitário ou beneficiário no domínio do comércio de burros e de mulas ? A tendência económica pode ser um indicador não negligenciável para aproximar os sentidos da difusão de uma raça em diversas regiões. Vimos o caso de Portugal e mais particularmente da região de Bragança, que os Portugueses tinham uma tendência a importar o burro de Espanha e é altamente provável que o burro de Miranda seja de origem espanhola. No caso hispano-poitevin, a tendência geral dos fluxos comerciais podiam ajudar a suster a hipótese de tal origem com a possibilidade de encontrar outros elementos históricos. O nosso propósito é então o de identificar uma tipologia dos circuitos comerciais entre diversos intervenientes neste comércio.

a. Importações e exportações de burros e de mulas entre Espanha e Portugal

Por razões históricas e geográficas evidentes o comércio de burros e de mulas entre Espanha e Portugal foi maior. As fontes históricas revelam-nos um comércio intenso a favor de Espanha. Espanha foi o primeiro fornecedor de Portugal no domínio do comércio de equídeos em geral. A dimensão do espaço lusitano e a envergadura do seu território colonial criou uma situação de procura extrema. Os espanhóis adoptaram naturalmente o papel de intermediários entre a procura (Portugal) e a oferta (França).

Consultamos as estatísticas económicas entre Castilha e Portugal de 1799 a 1830 (tabela 7). Portugal surge fortemente dependente de Espanha. Não existe nenhuma exportação nesta época. Entre 1799 e 1801, nenhuma comercialização de mulas, burros ou equídeos em geral foi registada. Em 1803, 922 equídeos foram importados: trata-se de burros, mulas e cavalos mas não se conhece a repartição exacta. Nos anos 1805/1806/1807, o comércio parece ser nulo. Em 1811, registamos uma forte importação de equídeos. A partir de 1815 à 1830, o comércio de burros, mulas e cavalos é regular. As quantidades diminuem a partir de 1820.

Tivemos dificuldades em encontrar documentos actualizados antes de 1799. Pensamos todavia que Portugal sofria de uma penúria crónica de equídeos. Por razões económicas evidentes, Portugal parece privilegiar o comércio de proximidade. Dois países parecem ser os parceiros principais em matéria de comércio de equídeos: Espanha e Marrocos. É preciso relembrar a insegurança que dominava provavelmente as rotas franco-ibéricas e que constituíam uma ameaça para o comércio terrestre.

As estatísticas comparativas dos efectivos de equídeos mostram claramente que a Espanha domina o comércio mulateiro : os efectivos mulateiros espanhóis chegam aos 1 021 512 animais em 1865. A Espanha possui no mesmo período 1 298 334 burros. Comparativamente, Portugal possuía 50 690 mulas e 137 950 burros. A França em 1866 possuía 345 243 mulas e 518 837 burros. B.C. Cincinnato da Costa avalia o comércio internacional de equídeos para o período de 1877 a 189875 (Tabela 6). De 1878 a 1898, o comércio de equídeos parece favorável para Portugal : a balança comercial é positiva e Portugal exporta mais do que importa. A situação degrada-se a partir de 1886 a 1891. O número explica-se essencialmente pela exigência das colónias africanas portuguesas e pelo seu desenvolvimento rural. A situação endireita-se de 1892 a 1894 para voltar a entrar em declínio a partir de 1895 até ao fim do século XIX. A

75 B.C. Cincinato da Costa., Ibid

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perda progressiva de colónias e a mecanização da agricultura fizeram disparar o número de efectivos de burros e de mulas. A tracção animal não desaparece totalmente mas fica relativamente preservada essencialmente nas regiões do Norte. As regiões de agricultura extensiva do centro oeste abandonarão totalmente a tracção animal depois da revolução dos cravos.

Tabelas 4/5/6/7/8/9/10/11/12/13/14/15

b. Importações e exportações de burros e de mulas entre Espanha e Poitou

O nosso estudo não tinha por objectivo aprofundar o comércio hispano-poitevin. Todavia, somos obrigados a evocar sucintamente este aspecto para compreender o circuito comercial global entre Portugal e Poitou. No século XVII, várias fontes informam-nos sobre o papel dos mercadores espanhóis e o seu interesse pela produção mulateira poitevina.

Na sua tese Os cavalos do reino, Jacques Mulliez informa-nos que os Espanhóis vinham comprar os burros de Poitou nas feiras de Niort e de Saint Maixent a preços muito elevados ao longo do século XVII. Compravam também nas feiras de Saint Flour mulas de Poitou76. No século XIX, não existe uma intensificação das trocas. É preciso mencionar aqui o texto de Eugène Ayrault que evoca a atracção dos espanhóis pela criação poitevina : «É com efeito as mulas que levam em Poitou os Béarnais, os Languedociens, os Dauphinois, os Auvergnats, os Piémontais, os Sardes, os Espanhóis, os armadores de Nantes que levam para lá dos mares o nome e a especialidade da nossa província? »77 acrescenta ainda na sua obra: « Os espanhóis escolheram os mais ligeiros de corpo e membros, os maiores e aqueles com mais distinção […] »78. O comércio com Espanha manteve-se dinâmico até ao inicio do século XX mas notamos um interesse menor pelo burro de Poitou altamente concorrido por raças espanholas. É o que nos parece dizer Léon Sausseau : « a Espanha e a Itália, grandes utilizadores de mulas, importam alguns burros de tempos a tempos, mas este movimento irregular e fraco em comparação com a sua produção mulateira e das suas aquisições de mulas e machos franceses; já existem raças apreciadas de burros reprodutores, em que algumas concorrem seriamente com a nossa, mesmo fora dos seus países de origem. Em Espanha, claramente a « guara » catalana é a mais favorecida, e atravessando a fronteira, encontra-se na maioria das regiões dos Pirenéus […]»79

c. Importações e exportações de burros e de mulas entre Portugal e Poitou

Sabendo que o nosso trabalho consistia em estudar de perto as fontes históricas francesas e portuguesas, procedemos ao estudo das estatísticas do comércio entre França e Portugal. Examinamos as estatísticas comerciais luso-francesas do Porto de La Rochelle no século XVIII (essencialmente via marítima) e as do comércio transnacional entre França e Portugal no século XIX (por via terrestre e marítima). Consultamos

76 Mulliez, Jacques. Os cavalos do reino, Paris : Edições Montalba, 1983, p. 28, p. 32 et p. 40 77 Ayrault Eugène. A industria mulateira em poitou, Paris, Edição Lavauzelle (Fac-similé), 1867, reeditada em 2004, p. 878 Ibid., p. 19479 Sausseau, Léon. O burro, os cavalos mulateiros e a mula de Poitou, Paris : Edições Lavauzelle, (édição fac-similée), 1925, reeditada em 2002, p. 161

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igualmente os arquivos de Bourgogne para o período da idade média. Tiramos deste trabalho que o comércio de burros e de mulas é quase nulo e pouco significativo. É preciso assinalar a exportação de duas mulas portuguesas para França. Só os arquivos bourguignonnes nos dão elementos convincentes sobre o comércio não somente de cavalos mas também, mais raro, de mulas ! Relatam diferentes trocas no domínio equestre : dos quais cavalos franceses e portugueses , selas e arreios equestres.80 Algo surpreendente : a produção mulateira portuguesa parece estimada e tem um certo valor no mercado em França, uma vez que rei português envia ao Duque Filipe duas mulas81. Os únicos animais registados nas trocas entre a casa de Bourgogne e Portugal são os cavalos, as mulas e os carnívoros (leões essencialmente). Em contrapartida, não temos nenhuma referência aos burros. E difícil estimar o volume das transacções na Idade

80 Paviot, Jacques. Portugal e a Bourgogne no século XV, Paris : Fundação Gulbenkian, 1995 ;

Antes de 20 de janeiro de 1414 :

Dono de três cavalos Diogo de Oliveira

A Pierre de Rosimboz, prévôts de Lille, la somme de ijc escuz d’or que mondit seigneur lui devoit pour trois chevaulx, les deux bais a longues queues et l’autre faulve a courte queue, qu’il avoit fait prendre et acheter de lui par Jehan Dormoy dessusnommé ledit pris et yceulx Domner a dyago d’Oliviere, escuier du pays de Portingal, comme contenu est es lettres de mondit seigneur sur ce faictes et Domnees en sa ville de Lille, le XX e jour de janvier l’an m cccc xiij, signees : par monseigneur le duc, G. Vignier … (p.174)

Dezembro 1425 :

Don d’un cheval et d’une selle à l’infant D. Pedro

A Anthoine Blanoet, scellier demourant a Bruges, (…) audit Anthoine Blanoet, pour iiij scelles neufves que, dés le mois de décembre drrain passé, icellui seigneur fist prendre et achetter de lui, c’est assavoir (…) la quarte pour mettre sur le cheval que samblablement il a Domné a Jehan (sic), filz de roy de Portugal, a son derrain partement du pays de Flandres, au pris de xl s chascune scelle, valent viiij (mandement, Bruges, 13 décembre 1426). (p.199)

Avant le 18 décembre 1435 :

Achat d’un cheval à Ivo de Sequeira

A Yvon de Sequiere, escuier, la somme de soixante salus d’or, du pris de xlvj groz monnoye de Flandres chascun salut, a lui deue par monseigneur pour la vendue et délivrance d’un cheval bay a longue queue, que icelui seigneur a fait prendre et achetter de lui par François Pellerin, son escuier d’escurie, et icelui Domner et délivrer a monseigneur le damoiseau de Cleves son nepveu, /v°/ si comme appert par mandement de monseigneur le duc sur ce fait et Domné en sa ville de Brouxelles, le xviij jour de décembre l’an mil cccc xxx cinq, cy rendu avec quittance souffisante dudit Yvon et certifficacion dudit escuier d’escurie sur l’achat, pris, délivrance et recepcion dudit cheval tant seulement ; pour ce cy, ladicte somme de lx salus de xlvj gros (p.259)

Avant le 11 août 1443 :

Don de trois chevaux au duc Philippe par l’infant D. Pedro

A Alvre Vaz, Jehan Loppes et Alvre Fonse, portugalois, pour Dom a eulx fait par mondit seigneur quant ilz luy ont amené de Portugal trois chevaulx jusques en la ville de Bruges, lesquelz l’infant de Dompetre, régent de Portugal, a envoyéz a mondit seigneur, xij ; A Vincent Cristiens et Jehan Martins, pour Dom a eulx fait pour avoir mené lesdis trois chevaulx déz la dite ville de Bruges a Fanpoux avec les aultres chevaulx de sejour de mondit seigneur (p.356)81 Maio 1428 :A Guillaume le Sucet, maistre d’une ref de Portingal, que mondit seigneur lui a ordonné estre baillié pour les frais et despens par lui fais en admenant devers mondit seigneur en son bateau deux mulles que ung de ses serviteurs (sic) estre (a) devers le roy de Portingal lui envoyoit, comme appert par quittance dudit Guillaume et certifficacion de mondit seigneur de Croy sur ce, xviij.

81

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Média. O valor das mulas trocadas explica-se também pelo facto da sua produção ser limitada ou interdita mesmo. Houve importação do burro de Poitou pois Ruy de Andrade e Bernardo Silvestre Lima assinalam-nos mas podemos claramente dizer que se trata de uma experiencia comercial muito limitada em relação à raridade das burras de Poitou e dos seus preços. Só um grande criador da coudelaria Nacional poderia fazer a compra. Os camponeses portugueses na sua grande maioria escolhiam por razões económicas e de proximidade geográfica, os burros espanhóis. Concluindo, diríamos que a influência do burro de Poitou deve ser provavelmente considerada inferior, pouco significativa.

Esquema de um circuito comercial Poitou – Península Ibérica (ver quadro)

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2 As rotas comerciais

No nosso artigo « O papel do comércio luso-rochelais e da administração dos Haras real na formação das raças asininas Poitou e de Miranda entre o século XV e XVII. Um aspecto do comércio de equídeos entre França e Portugal»82 pusemos a hipótese na qual o comércio de equídeos luso-francês teria sido provavelmente organizado a partir do porto de La Rochelle. Esta suposição sedutora podia explicar a repartição de uma raça asinina idêntica no eixo atlântico. De facto, sabíamos que numerosos habitantes de La rochelle emigraram para o Norte de Portugal levando os seus bens tradicionais. A via marítima constituía uma rota comercial séria a explorar. Consultamos os arquivos departamentais de La Rochelle para contrariar ou confirmar a nossa hipótese. Conteúdo do contexto comercial dos circuitos identificados anteriormente decidimos analisar também o comércio por via terrestre.

a. As trocas por via marítima

Partindo do principio que o ramo genealógico espanhol e português conduziu-nos naturalmente à história do porto de La Rochelle. Situado na zona geográfica de expansão da raça asinina de Poitou e encontrando-se no eixo atlântico, este porto é desde a idade média um lugar de trocas comerciais internacionais. Outro facto, a cidade de La Rochelle conta com uma comunidade dinâmica de mercadores portugueses e de numerosos mercadores nativos desta cidade internacional expatriando-se para Portugal, para o Porto, ou Lisboa. As primeiras relações marítimas entre França e Portugal parecem ter sido estabelecidas no século XIII segundo Yves Renouard 83. Os primeiros habitantes de La Rochelle identificados nos arquivos eram um pouco Gomecius de Rupella (1220) que possuía um domínio em Guimarães e outra personagem de nome Pelagius de Rochela que tinha um « casal » na paróquia de Santa Eulália de Fermentões. Os pais destes dois Rochelianos eram provavelmente cavaleiros ou camponeses vindos de Portugal no século XII a pedido de D. sancho I que recomendou em 1199 de acolher convenientemente os emigrantes que vinham povoar o Alentejo. Notemos também que estes rochelianos estabeleceram-se no norte de Portugal. La Rochelle parece começar a ter um papel nas relações franco-portuguesas no seguimento da campanha de S. Luís em Aquitania. A primeira menção de La Rochelle nos relatórios franco-portugueses data de 124584. É em La Rochelle que o príncipe Afonso, que se tornou regente de Portugal devido à morte do seu irmão D. Sancho II, embarcou para reconquistar Portugal e tornar-se rei com o título de D. Afonso III. Depois de Y. Renouard, « tudo se passa como se, em meados do século XIII, La Rochelle fosse o único porto de exportação de produtos do Norte comprados nas feiras de Champanhe e em Paris destinados a Portugal, e o único ponto de entrada no reino dos comerciantes portugueses […] »85. A partir de 1485, data do aniversário do tratado da aliança

82 Pereira, Carlos. O papel do comércio luso-Rochelis e da administração do Haras real na formação das raças asininas de Poitou e de Miranda entre os séculos XV e XVII. Um aspecto do comércio de equinos entre frança e Portugal, Jornada da Pesquisa Equina, Salão da Agricultura, 200583 Renouard, Yves. «As relações de Portugal com Bordeaux e La Rochelle na idade média », in Revista Pörtuguesa de Historia, Tome VI, Coimbra, 1955, p. 24384 Ibid., 24685 Ibid, p. 247

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concluído entre franceses e portugueses, numerosos mercadores portugueses fixaram-se em La Rochelle. No século XVI, La Rochelle, tornou-se um dos pontos principais de entrada em França de pimenta trazida pelos mercadores portugueses. Uma forte comunidade implementou-se por volta de 1550 e acolheu um grande navegador português, nascido no Algarve, de nome João Afonso, rebaptizado Alfonso de Saintonge. As mercadorias portuguesas importadas em La Rochelle eram muito variadas. Possuindo numerosas colónias, Portugal exportava também uma quantidade considerável de laranjas. A laranja portuguesa era tão estimada que era considerada um presente digno de ser oferecido aos filhos do rei.

Os historiadores dispõem de elementos mais importantes sobre o comércio luso-rocheliano ao longo do século XVII. O comércio com o norte de Espanha (Pasajès, Saint Sébastien, Portugalete, Bilbao, Castro, Urdiales, Laredo, Gijon, Avilès, La Corunha) e o norte de Portugal (Viana e Porto) era uma das actividades fundamentais de La Rochelle. Segundo Etienne Trocmé e Marcel Delafosse, o tráfico entre La Rochelle e Portugal tinha muito mais amplitude86. Os portugueses importavam bacalhau seco, papel e tecidos e um pouco de vinho. Os Rochelianos embarcavam em Viana, Porto ou Lisboa cargas de açúcar, especiarias, cana-de-açúcar de origem colonial, sal de Aveiro e de Setúbal, laranjas, limões, figos e uva em menores quantidade. No século XVII, uma comunidade portuguesa estava já bem instalada : os Barbosa Cabeça, os Suarez para os mais conhecidos… um grande número de mercadores portugueses passava uns dias em La Rochelle comprando tecidos, couro e chegavam mesmo a utilizar prenomes Rochelianos para evitar as interdições87. Por seu lado, os Rochelianos expatriavam-se para terras lusitanas e tinham agências para desenvolver o comércio : Nicolas Bobineau tinha um filho em Lisboa em 1561, Pierre Guillemin e Claude de Peyrousset tinham uma agência com o nome de Marc Pineau…88 Registos notariais revelam também a existência de associações de La Rochelle para o comércio com Portugal. Os mercadores mais importantes possuíam um mercado em Viana, Porto ou Lisboa, cidades onde circulavam as principais transacções.

Fora das entradas alimentares e produtos de primeira necessidade, La Rochelle era um importante porto para o tráfico de armas e de equídeos. É o que nos revela o estudo de Etienne Trocmé : « O comércio de cavalos, canhões, armas e pólvora toma uma particular importância durante as guerras civis […] »89. Cavalos do norte da Europa (Alemães e frísios) eram revendidos em La Rochelle a « Gentilshommes », chefes de guerra e mercadores. A partir deste facto histórico, consultamos as balanças comerciais e o estado das mercadorias que transitavam entre o porto de La Rochelle para ou de Portugal90. Não identificamos nenhuma mercadoria viva durante a primeira parte de século XVIII. Recenseamos os seguintes produtos :

Balays de jong

86 Trocmé, Etienne, Delafosse, Marcel. O comércio rochelais desde o fim do século XV até ao fim do século XVII, Paris : Livraria Armand Colin, 1952, p.15887 Ibid., p. 15988 Ibid., p. 15989 Ibid., p. 13890 Estado das mercadoris que entravam e saiam pelos portos na direcção de La Rochelle vindo ou indo para Portugal de 1718 a 1737, doc. 7319, carton XXI, dossier N°8, dados dizendo respeito à globalidade de tráfico de La Rochelle mercadorias de origem ou destinadas a vários países 1725 - 1743

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BarricasbálsamoManteigaMadeira de ébanoBrégrasLimõesCocosDocesContra HijervaCouroCascas de limãoÁgua de flor de laranjeiraFigos e amêndoasSementesAzeitePresuntoscortiçaNates de songazeitonaslaranjaspelesOlariaArrozUvasSabãoSardinhasSquinabanhaTabacoQuadrosjarrasChá

De Forma aleatória, identificamos uma única importação de equídeos vindos de Inglaterra. A pista da importação e exportação de burros vindos do mesmo ramo genealógico no eixo Atlântico. Não podemos descartar totalmente esta hipótese pois em tempos de guerra entre Portugal e Espanha (1640), a via marítima era a rota comercial mais segura. Por razões de eficácia ou de contrariedade do tempo, procuramos no lado da via terrestre.

a. As trocas por via terrestre

As vias terrestres parecem constituir o lugar maior de trocas comerciais entre Espanha e França mas também entre Espanha e Portugal em tempos de paz. O burro e a mula, animais terrestres por natureza e totalmente adaptados aos relevos mais acidentados, constituíam os auxiliares indispensáveis dos viajantes. É importante lembrar uma tipologia dos viajantes que circulavam entre Poitou e a Península Ibérica. Três tipos de viajantes podem ser identificados : o guerreiro, o mercador e o religioso. Estes três intervenientes nas relações internacionais foram os criadores das rotas desde a idade média ao século XIX, período em que se concentra a nossa

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pesquisa. A difusão das raças asininas pode ter começado graças a estes viajantes e através das rotas que eles traçavam. Os períodos de conquista e de reconquista foram a ocasião de criar itinerários e oportunidades de trocas variadas. A reconquista ibérica e a criação de várias ordens (1158-ordem de Calatrava, 1162-ordem d’Avis, 1183-ordem d’Alcantara) permitiu o desenvolvimento de eixos de comunicação entre os reinos de norte da Europa e os do sul. Aquando das expedições militares, o cavalo e outros equídeos foram empregues. As raças equídeas eram então difundidas em contextos militares. Como nós vimos anteriormente os mercadores que utilizavam frequentemente as mulas e os burros para o transporte de mercadorias contribuíram também para o desenvolvimento de raças locais. Finalmente uma outra pista séria é a dos caminhos de peregrinação. Como vimos, a mula e o burro eram animais privilegiados do clero e de religiosos de diversas ordens. Só este grupo social e o dos mulateiros- mercadores tinham o privilégio de obter autorizações para circular com mulas na idade média e em todo o território ibérico. Uma rota parece muito mais interessante de compreender a difusão das raças de burros de pêlo longo: o caminho de Santiago de Compostela. Frequentado de forma constante desde a idade média, constituía o caminho mais curto para ligar a França a Portugal, ora é neste eixo que se encontram precisamente as três raças asininas oriundas do mesmo ramo genealógico : o burro de Poitou, o zamorano-Leonês e o burro de Miranda.

Após este estudo sintetizado de dados comerciais, podemos rejeitar a hipótese do comércio luso-francês por via marítima. Segundo os arquivos da Câmara do comércio de La Rochelle, o comércio de animais por via marítima entre França e Portugal no século XVIII é nulo. É muito provável que o fosse também ao longo do século XVII. Os trabalhos de Trocmé e Delafosse sobre o comércio luso-rochelais não evoca o comércio de animais. Uma dúvida persiste, relativamente ao período 1640 a 1645 (e seguinte!) onde Portugal tinha um conflito aberto com Espanha. Uma importação provável pode ter lugar por via marítima. A questão persiste : Portugal importou burros e mulas de França e de Poitou ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII? A nossa resposta que se inscreve numa perspectiva onde as fontes são mínimas conduzem-nos a avançar na ideia de uma importação indirecta por via dos mercadores espanhóis. É evidente que o gado português não era suficiente para satisfazer as exigências das colónias portuguesas, sobretudo o Brasil. Como diferentes fontes o indicam Portugal importava exclusivamente de Espanha o seu gado asinino e mulateiro para a seguir os reenviar para as colónias e é assim até ao final do século XIX. Os animais eram engordados e educados em Portugal para serem exportados para a Madeira e os Açores e depois directamente para o Brasil. Os colonos brasileiros podiam comprar directamente aos espanhóis.

O caso da procura no mercado latino-Americano e a hipótese do caminho de Santiago leva-nos a uma nova interpretação do comércio luso-frances e ibérico-poitevin. Dito de outra forma, é claro que a procura era sobretudo Ibérica associada à conquista de novos mundos e a França e mais particularmente a região de Poitou dispunha de todas as condições (cavalos de tiro, grandes mulas, burras de grande tamanho, pastagens, capacidade produtiva, saber fazer em matéria de selecção zootécnica, proximidade geográfica…) para satisfazer a procura sobretudo espanhola e portuguesa. A partir daí, podemos estabelecer o sentido dos fluxos comerciais e das trocas. O estudo das rotas comerciais marítimas e terrestres sugere-nos a seguinte hipótese : o caminho de Santiago de Compostela é o caminho mais

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curto que liga Poitou ao norte de Espanha (zamora-Leão, Galiza) e norte de Portugal. Deduzimos que os burros e mulas eram comprados em Poitou e encaminhados por via terrestre no sentido do caminho de Santiago de Compostela. Vendidos em diversas feiras espanholas (Valladolid, Burgos…), os burros e as mulas compradas provavelmente jovens eram engordados e educados e de seguida encaminhados para os portos na Galiza, ou portos no norte de Espanha. Daí eram exportados para a América latina. Notemos um facto interessante, o norte de Espanha privilegiava o desenvolvimento de uma produção mulateira favorecendo o cruzamento de éguas de tracção bretãs com burros catalães ou de zamora-Leão91.

É bastante provável que os espanhóis desejassem implementar ao longo do século XVII uma indústria mulateira idêntica à de Poitou : burros grandes, grandes éguas de tracção e então grandes mulas. Esta indústria mulateira ibérica respondia precisamente à procura do mercado latino-americano. Além do mais, era preciso implementar estrategicamente esta indústria na proximidade de grandes centros de trocas comerciais internacionais que eram os portos. Esta ideia levou-nos à hipótese de uma exportação do saber fazer da indústria mulateira poitevina no norte de Espanha. O sentido do fluxo comercial Poitou para a península ibérica e a fisionomia da produção mulateira do norte de Espanha deixa-nos uma hipótese a debater e aprofundar de uma importação do burro de Poitou e não o inverso, quer dizer uma exportação de burros de pêlo comprido para Poitou. Os espanhóis importaram éguas de tiro francesas, poderiam muito bem importar os burros de Poitou para construir uma indústria mulateira competitiva. Esta pista leva-nos a um desenvolvimento comercial que remonta pelo menos ao início das conquistas ibéricas de novos mundos quer dizer ao século XVI e sobretudo ao século XVII.

É evidente que se trata de uma tentativa de explicar a partir de factos económicos a priori sobre dados da fisionomia do comércio ibérico-poitevin. A pista do caminho de Santiago de Compostela constitui um elemento importante, mas é também preciso considera-la no contexto histórico da idade média onde as necessidades ibéricas eram diferentes : as grandes descobertas eram apenas no seu início.

TERCEIRA PARTE : UMA NOVA VIA A EXPLORAR : O CAMINHO DE SANTIAGO

A hipótese da provável difusão da raça asinina « de pêlo comprido» pelo caminho de Santiago de Compostela parece pertinente pois ele leva-nos a fontes históricas e literárias de interesse maior.

Decidimos revelar no nosso estudo uma fonte principal, tanto histórica como literária : o livro de Santiago chamado também Liber Sancti Jacobi transcrito no celebre Codex Calixtinus. Este documento redigido provavelmente entre 1133 e 1140 está guardado na catedral de Santiago de Compostela. É uma compilação de um conjunto de textos anteriores, litúrgicos, históricos e hagiográficos cujas redacções sucessivas se repartem durante dois ou três séculos. Foi estabelecido em homenagem a Santiago para servir na promoção de Compostela. É para dar mais crédito à sua obra, que os autores escrevem uma carta fictícia, dita « apócrifo », ou seja « assinada » por Calisto II, mas este estava já morto, (nascido por volta de 1060 – eleito papa em 1119 – morto em 1124) e a colocam no topo desta recolha consagrada em honra de Santiago.

91 Devimeux, Th. Os équinos em Espanha, ibid., p. 140

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O primeiro exemplar conhecido foi o de Compostela cerca de 1150. É um dos dois exemplares preciosamente conservados nos arquivos da catedral de Santiago de Compostela, o outro dito de Ripoll, está conservado em Barcelona.

É a igreja de Roma quem, primeiro acolhe com entusiasmo este livro ; encontramo-lo de facto em numerosos lugares : Roma, nas proximidades de Jerusalém, em França, Alemanha, Itália, Frise, e principalmente em Cluny.

« O guia do peregrino de Santiago » que é o último livro do Codex Calixtinus foi [publicado] editado em latim pela primeira vez na sua totalidade em 1882, pelo padre Fidel Fita, titular da Academia real de Madrid, com o apoio de Julien Vinson, Professor de língua oriental viva. Não emprega o título de guia que não existe no manuscrito. Este título foi só dado em 1938 aquando da tradução para francês deste ultimo livro por Jeanne Vielliard.

Mesmo que não represente nem um décimo aproximadamente, este guia é frequentemente confundido com o conjunto da obra que só foi traduzido na sua totalidade em 2003 por Bernard Gicquel92.

Esta obra contém dois elementos que confirmam a nossa orientação, de remarcar que o guia seria provavelmente atribuído a um certo Aimeric Picaud um monge de Poitou e a recolha de milagres contem um testemunho surpreendente chamado « De Poitevin a quem um apóstolo deu a ajuda de um anjo sob a forma de um burro » que seria igualmente uma produção literária do mesmo autor. Relembremos todavia que estes documentos devem ser interpretados com prudência e que constituem apenas um conjunto de indícios podendo conduzir-nos ao desenvolvimento de uma hipótese da difusão das raças asininas no caminho de Santiago. O nosso trabalho é aqui apenas uma primeira pedra para um futuro projecto de pesquisa.

92 Gicquel, Bernard. A lenda de compostela, o livro de Santiago de compostela, Paris: Tallandier, 2003, iniciativa da fundação David Parou Saint-Jacques.

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A. BURROS E MULAS NO CAMINHO DE SANTIAGO

Para compreender o papel do burro e da mula nas peregrinações a Santiago, consultamos duas fontes : o guia de Santiago atribuído provavelmente a Aimeric Picaud e uma recolha de textos conhecidos do meio aos nossos dias.

1) O texto de Aimeric Picaud

« as vias mais frequentadas para ir a Santiago parecem ter sido inicialmente o antigo caminho dito « roumieu » - como todos os caminhos traçados pelos peregrinos partindo de Roma que atravessavam a diocese de Labourd e continuavam pela costa cantábrica. Este caminho passava pelo passo de Somport… »93 ; é o que nos relata Bernard Gicquel. Jacques Chocheyras dá-nos elementos importantes : « até ao inicio do século XI que viu a tomada de controlo dos passos dos Pirenéus de Navarra pelos imperadores desta região, os primeiros peregrinos, por crença dos mouros, encontravam-se em Compostela passando pelo litoral basco em Irún. De seguida, seguiam pelo vale de Aspe e o passo de samport […] tinha sido o hospício santa Cristina. Um século mais tarde, é o passo de Ronceveaux (« porto de Cize ») que lhe vai fazer concorrência […] »94. O guia do peregrino atribuído a Aimeric Picaud, fazendo parte do livro de Santiago, define com precisão o caminho de Compostela no seu célebre primeiro capítulo:

« Quatro caminhos levam-nos a Santiago ; reúnem-se em Puente la Reina :-o primeiro por Saint Gilles, Montpellier e Toulouse, conduz ao porto de Aspe ;-o segundo passa por notre Dame du Puy, Sainte-Foy de Conques e Saint Pierre de Moissac ;-o terceiro, por Sainte-Madeleine de Vézelay, Saint-Léonard em Limousin e Périgueux ;-o quarto, por Saint-Hilaire de Poitiers, Saint-Jean d’Angély, Saint-Eutrope de Saintes e Bordeaux.Estes três primeiros unem-se em Ostabat para atravessar os Pirinéus no porto de Cize e reunir em Puente la Reina (no sul de Pamplona) o primeiro caminho que atravessa as montanhas no porto de Aspe. A partir de Puente de la Reina, há apenas uma via . »95O autor do guia parece ser de origem francesa e poitevina pois faz elogios à região poitevina, e dos seus habitantes e adopta uma visão negativa da paisagem regional ibérica : « Os Poitevins são pessoas vigorosas e bons guerreiros, hábeis a manejar arcos, flechas e lanças de combate, nos afrontamentos, muito rápidos nas corridas, muito bem vestidos, cara aberta , não têm a sua língua no bolso, mas o coração na mão e uma porta aberta […]"96. Aqui vemos o que diz a propósito sobre os de Navarra : « é uma população inculta, diferente de todas as outras raças pelos seus costumes e pela sua natureza, cheia de maldade, tez escura, abominável de se ver, depravada, perversa, hipócrita, desleal e corrupta[…] »97. Na sua descrição quase etnográfica vemos um certo « fanatismo » que leva provavelmente à origem poitevina. É interessante constatar que o autor não faz descrições relativas aos equídeos nas paisagens de Poitou. Fá-lo em relação a Castilha e Galiza: em Castilha, « o país transpira riqueza, ouro e prata, possui 93 Ibid., p. 9594 Chocheyras, Ibid., p. 1495 Chocheyras, ibid., p. 1896 Gicquel, Bernard. Ibid., p. 60497 Ibid., p. 607

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pastagens e cavalos vigorosos […] ».  Dá indícios preciosos sobre a criação de equídeos nos arredores de Leão: « encontramos gado e animais de sela[…] »98. Por animais de sela, devemos entender os cavalos mas também as mulas. Podemos então imaginar uma reputação de região mulateira desde a idade média.

3) Outros testemunhos

O estudo das trocas no domínio do comércio de burros e de mulas no caminho de Santiago conduziu-nos naturalmente a consultar uma séria de textos literários da idade média ao século XVIII publicados numa obra sintetizada intitulada O livro de ouro de Compostela cem lendas e testemunhos de peregrinos da idade média aos nossos dias recolhidos por Sophie Martineaud. 99 Esta recolha contem informações sobre a utilização do burro e da mula. Em muitos casos, estes animais são a companhia privilegiada da peregrinação.No texto intitulado « Ponte de Héras, o senhor arrependia », o autor fala-nos de pistas mulateira por volta de 1132 : « a pista mulateira apaga-se […]. Na lua cheia de Outubro, partiram com o seu burro para os picos da Serra de La Pena para se encontrarem com o abade de São João. No mosteiro, o pequeno grupo propõe os seus serviços para as grandes obras na abadia. Vêm avisa-los que serão mulateiros predestinados a corpos de pedreiros… »100. Este extracto confirma-nos a importância das mulas em Espanha que são utilizadas com frequência nas ordens religiosas. Outro texto datando de 1496, ensina-nos sobre os direitos de circulação dos equídeos (cavalos e provavelmente mulas e burros vindos de vários cantos da Europa) : « Enfim em Logroño, qual não é a surpresa de von Harff de descobrir que aqui revistam para descobrir se não transportas mercadorias, e se for o caso tens de pagar um direito de passagem, e também a soma de dois reais pelo teu cavalo »101. Um dos testemunhos de viagem de Elisabeth de Valois que casará com Filipe II de Espanha datando de 1560, mostra-nos o papel importante das mulas nas grandes expedições no caminho de Santiago: « Em Saint –Jean-Pied-de-Port, Filipe II fez despachar uma caravana de trezentos e cinquenta mulas carregadas de cofres, para facilitar a travessia dos Pirenéus e permitir à princesa de transportar sem embaraço o seu enxoval de casada»102Aparece claramente neste texto que a corte espanhola possuía um importante número de mulas para o transporte de mercadorias. A eficácia da mula em zonas acidentadas e montanhosas é claramente relatado. Finalmente, duas lendas fazem do burro um verdadeiro companheiro do peregrino vivendo também o sofrimento da peregrinação: «Cansado, os pés em sangue, o velho homem é obrigado a montar o seu burro. Pendendo sobre o pescoço do animal os braços balançando, pálido e de olhos fechados, progride com dificuldade, não dizendo uma palavra, respirando com dificuldade. »103. Esta passagem tirada de Martin e o seu burro, texto antigo contando a história de um velho homem de Puy-en-Velay que vinha desde sempre a caminhar até Compostela e aí morrer como os peregrinos anteriores, mostra-nos a simbologia do burro nestes textos bíblicos. Companheiro de Cristo na sua caminhada a Jerusalém, é o amigo ideal nas longas travessias « espirituais ».

98 Ibid., p. 60899 Martineaud, Sophie. Le livre d’Or de Compostelle – Cents légendes et récits de pèlerins du Moyen Âge à nos jours, Paris : Bayard, 2004100 Ibid., p. 68101 Ibid., p. 161102 Ibid., p. 177103 Ibid., p. 227

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B. O MILAGRE DO BURRO NO LIVRO DE SANTIAGO

No livro de Santiago figura uma recolha de lendas relatando vários milagres. Um dos milagres intitulado « De Poitevin a quem Apôtre dava ajuda de um anjo em forma de burro » faz-nos lembrar estranhamente a lenda de Balaam, segundo a qual Deus dava o dom da visão e da palavra a uma burra104. Nas duas lendas há um milagre. O burro ou a burra são servidores das almas errantes no caminho de Deus. Os animais são antropomorfizados a vários níveis : no primeiro caso o burro de Santiago é uma encarnação de um anjo e a burra de Balaam, é dotada de uma consciência mais que humana. Nos dois textos, intervém um anjo. Nos dois casos, o burro, amigo de Deus, serve-lhe de mensageiro. É sempre este animal dócil e humilde companheiro de Cristo que abre os olhos do peregrino e lhe faz tomar consciência da imensa bondade e amor de Deus que ajuda os que decidem procurar o caminho espiritual conduzindo ao conhecimento da realidade mística de Deus. Todavia, não é a dimensão espiritual do milagre do burro de Santiago que interessa ao historiador procurando as origens do burro de Poitou, é precisamente a dimensão cultural que pode fornecer elementos para o conhecimento do burro de Poitou. Pois o que é estranho neste milagre, é a ligação com a cultura de Poitou. Convém esclarecer aqui, os elementos de contextualização desta recolha de lendas e identificar o autor.

1) O livro dos milagres de Santiago

Na sua edição crítica, Bernard Gicquel procura identificar o autor da recolha dos milagres do livro de Santiago. A sua hipótese escolhe Aimeric Picaud, ancião poitevin, como autor provável. Segundo l’Historia compostellana105, o patriarca de Jerusalém, Guillaume de Messines, teria recomendado por volta de 1131, a Pierre o Venerável, abade de Cluny, e a Diego Gelmirez, arcebispo de Compostela, um ancião regular de nome Aimeric, que devia recolher fundos em benefício dos estabelecimentos de da Vila Santa. O ancião da região de Poitou teria ido de Jerusalém a Compostela passando por Cluny. É interessante reparar como o assinala Bernard Gicquel que « a repartição geográfica dos milagres atribuídos a Santiago podem muito bem corresponder ao itinerário de um viajante que vai de Jerusalém a Compostela passando por Cluny »106. Bernard Gicquel deduzindo que o ancião teria sido encarregado de transmitir a Compostela os milagres que o patriarca de Jerusalém tinha composto e recolher na rota todos os que pudessem vir a enriquecer a sua compilação. Esta hipótese é a hipótese mais sedutora pois notamos que o « milagre do burro de Santiago » deixa antever uma cultura poitevina. O ancião de origem poitevina tentava recolher milagres com origem na cultura popular religiosa poitevina. Sabemos que o burro é um animal

104 « Balaam põe-se em marcha com a sua burra. Uma vez, ela afasta-se do caminho em direcção aos campos, outra vez tenta entalar o seu cavaleiro contra um muro, e finalmente deita-se, desmontando-o. Cada vez, Balaam bate-lhe para que avance. Depois da terceira paragem, a burra fala a Balaam : lembrando-lhe as pancadas, ela explica-lhe que ela apenas obedeceu ao anjo enviado por Yahvé para lhe barrar o caminho e que ela era a única a ver. Yahvé abre então os olhos de Balaam e lembra-lhe de ter batido três vezes na burra. Ele explica-lhe que, se ela não se tivesse afastado do caminho, ele teria morto Balaam. Yahvé sacrificou sete touros e sete carneiros sobre sete altares com três pernas, e depois baniu os Isrealita (Números, 22-24) » in L’Abécédaire de l’âne, por Janine Carette, Paris : Edições Flammarion, 2000, p. 37105 Gicquel, Bernard. Ibid., p. 111106 Ibid., p. 112

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importante em Poitou assim como a mula. Ora estes dois animais estão presentes neste texto. Bernard Gicquel conclui assim : « parece que a compilação de milagres redigida por Aimeric circulou durante algum tempo anónima, desde que Guibert de Gembloux a consultou por volta de 1180 em Marmoutier e a menciona sem lhe atribuir um autor. Mas ganha em importância e prestígio logo que seja constituída, com os dois primeiros textos de tradução e a exposição de tais celebrações, a célula inicial do livro dos milagres atribuída ao papa Calisto II. Os textos redigidos por Aimeric Picaud sofreram algumas modificações. »107

2) Relato de uma exportação de um burro espanhol para Poitou

Entre os 22 milagres recolhidos por Aimeric Picaud, há um relato extraordinário muito interessante pela história do burro de Poitou. Trata-se de um milagre cujo título capta a atenção do historiador : « De Poitevin a quem Apôtre deu ajuda com um anjo em forma de burro»108. A história põe em cena um Poitevin refugiado da sua região no ano 1100. O narrador explica as motivações do Poitevin que o metem no caminho de Santiago : « uma peste mortal terrível abateu-se sobre os Poitevins … » e o Poitevin « desejando evitar este mal, decidiu fugir para Espanha pelo caminho de Santiago. ». O peregrino acompanhado pela sua mulher e seus filhos utilizam uma mula. Este indício mostra que a lenda contém elementos com uma certa realidade. De facto a região de Poitou é uma terra de criação de mulas. As mulas Poitevins são robustas e capazes de

107 Ibid., p. 114108 « Ano de 1100 da incarnação de Nosso Senhor, Guillaume sendo conde de Poitiers e Louis rei de França, uma terrível peste mortal abate-se sobre os poitevins, a tal ponto que apenas um pai escapa com toda a sua família. É então que um homem corajoso, aterrorizado com esta calamidade e desejando fugir, decidiu ir para Espanha pelo caminho de Santiago. Acomoda a sua mulher e os seus dois filhos ainda pequenos, sobre a sua mula, até à cidade de Pamplona. Aí morre a sua mulher, e o hospedeiro consegue ficar com o que o homem e a sua mulher conseguiram trazer com eles. Assim privado da sua mulher, sem dinheiro e sem mula que transportava as crianças, o homem desolado segue o caminho com os filhos pela mão. Nesta situação extrema e sem meio de transporte, encontra um homem que lhe parece honesto, acompanhado pelo seu burro bem robusto. Contando-lhe tudo o que lhe aconteceu, este diz-lhe, cheio de compaixão : « vendo as tuas enormes dificuldades, empresto-te o meu excelente burro que aqui está para transportar os teus filhos até à cidade de Compostela onde moro, na condição de que mo devolvas. » o peregrino pegou no burro, pôs os seus filhos e chegou ao santuário de Santiago. Vendo que finalmente ia passar a noite ao abrigo de um canto da basílica, o glorioso apóstolo, vestido com um hábito resplandescente, aparece-lhe e diz-lhe simplesmente: « pois bem, meu irmão reconheces-me ? – Não, responde o outro. Eu sou apóstolo do Senhor, o que te deu o burro em Pamplona quando estavas na miséria. Agora empresto-te até que estejas em tua casa. E informo-te que o hospedeiro criminoso de Pamplona, porque ficou com os teus bens, vai cair do telhado de sua casa e morrer. Ensino-te que todos os maus hospedeiros do caminho, que retêm injustamente o dinheiro dos seu hóspedes vivos ou mortos, serão condenados para a eternidade». Imediatamente o peregrino quis inclinar-se para lhe beijar os pés, mas o apóstolo desapareceu aos seus olhos humanos. De seguida o peregrino, feliz por esta visão do apóstolo e de uma sensação de reconforto, partiu de Compostela aos primeiros raios de luz. Quando chegou a Pamplona, descobriu que tal como o apostolo lhe tinha dito, o hospedeiro tinha caído do telhado, partido o pescoço e morrido. Quando chegou ao seu país, fez descer as crianças do burro e diante da porta, o burro desaparece aos seus olhos. Vendo isto a multidão rapidamente espalhou a notícia de admiração e só se ouvia: « onde era um anjo verdadeiro, onde o anjo, que o Senhor envia frequentemente no caminho daqueles que necessitam do seu auxilio, tinha tomado o aspecto de um burro. Isto foi feito pelo Senhor e é admirável que todos os hospedeiros que não sejam honestos e que guardem os bens dos seus clientes, mortos ou vivos, são condenados à morte eterna, e é preciso dar às igrejas e aos pobres para o repouso dos defuntos. Nosso Senhor Jesus Cristo, deseja pelos méritos de Santiago apagar todas as fraudes e condenações aos que acreditarem verdadeiramente nele. » in La légende de Compostelle, Ibid., p. 480

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enfrentar os caminhos mais diversos. As mulas Poitevins são originárias do cruzamento entre burras e cavalos de tracção de tipo mulateiro. Sabemos também que os espanhóis apreciavam as mulas de Poitou pois um comércio bilateral existia entre Poitou e Espanha. Curiosamente, na sua viagem uma infelicidade surge e ele perde a mulher. O alberguista espanhol exige-lhe fraudulentamente a mula. A atracção dos espanhóis pelas mulas e machos em geral confirma-se nesta lenda. O poitevin desamparado encontra-se sem meio de transporte num país que não conhece. Os seus filhos não poderão enfrentar as dificuldades do caminho de Santiago. É aí que um milagre acontece. Um homem, com boa aparência, confia o seu robusto burro ao nosso Poitevin e salva-o. A troca dá-se em Pamplona que é uma zona de burro catalão. Esta raça asinina é apreciada pelos franceses que a importam regularmente. O burro catalão é um animal robusto e grande mas um pouco afastado do burro de Zamora. O burro o conduzirá a ele e aos seus filhos à cidade santa de Compostela. O homem que lhe confiou o burro é na verdade Santiago e este autoriza-o a leva-lo para a região poitevina. Fora do seu contexto religioso, a transacção que nos é relatada é provavelmente corrente. Os peregrinos que partiam de Poitiers levavam animais de atrelagem por exemplo mulas e podiam adquirir outros animais em Espanha por diversas razões: perda do animal que deveria ser substituído, troca de animais (por exemplo uma mula de Poitou com um burro reprodutor). O peregrino de Poitou leva o seu burro espanhol para a região de Poitou e este último desaparece. Esta lenda escrita provavelmente por um ancião de Poitou dá-nos uma hipótese viável para explicar a repartição dos « burros de pêlo longo ». É curioso de ver que as raças asininas de Poitou, de Miranda e de Zamora encontram-se repartidas no caminho de Santiago de Compostela. É todavia difícil compreender o sentido da difusão. Com esta lenda, podemos dizer que o comércio de burros e de mulas entre Poitou e a Península Ibérica existia desde o século XII. Tratar-se-ia da primeira exportação de um burro espanhol ? Não podemos chegar lá. Uma coisa é certa : o caminho de Santiago fornece sem dúvida uma pista séria para compreender as origens do burro de Poitou.

O estudo dos textos e lendas de Santiago mostram que o burro e a mula eram companheiros privilegiados dos peregrinos. Uma identificação a Cristo não está excluída. Montaria do « mecenas » na sua peregrinagem a Jerusalém, o burro é símbolo da pobreza e toma frequentemente a forma de mensageiro. Encarnação de um anjo como no milagre de Santiago ou guia « espiritual » como no caso de Balaam, o burro amigo do pobre, da alma perdida acompanha o peregrino e ajuda-o a ultrapassar os obstáculos naturais e « espirituais ». O caminho de Santiago constitui uma pista para compreender a origem do burro de Poitou. Terá servido aos peregrinos do norte da Europa, que faziam escala em Poitou (Poitiers era uma etapa inscrita no guia de Santiago como o indica Aimeric Picaud) e quem durante a sua peregrinação exportava o burro de Poitou para as regiões periféricas de Compostela? O caminho de Santiago, dada a sua importância, constituía uma rota internacional e então propicia às trocas comerciais diversas. Uma pista « espiritual » poderia ser evocada : de facto, podíamos imaginar que o milagre do burro de Santiago relatado por Aimeric Picaud pode te dado origem a um dado momento da história ( Idade Média) a uma crença popular fazendo do burro espanhol (de pêlo longo) um objecto de culto. Existe de facto a concha de Santiago, não podemos imaginar o burro de Santiago. Todo o peregrino de Poitou indo a Santiago devia levar um burro de Compostela… esta pista etnológica merece particular atenção pois ela levaria a um estudo mais aprofundado das lendas e relatos de Poitou onde o burro está presente, é ainda difícil definir exactamente a origem do burro de Poitou: espanhol, ou de origem poitevina?

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CONCLUSÃO GERAL

O nosso estudo histórico e económico a pedido da Asinerie do burro de Poitou e Conselho geral de Charente Maritime permitiu-nos estudar duas hipóteses principais e de explorar outras rotas de pesquisas futuras que permitirão certamente aproximar-nos da origem do burro de Poitou.

Primeira hipótese : o burro de Miranda é de origem francesa ? A nossa análise da situação de criação asinina na idade média revela-nos que o

burro do distrito de Bragança é de origem espanhola. O estudo de 1870 de Silvestre Bernardo Lima indica que os camponeses e os criadores da região de Trás-os-Montes importavam e utilizavam essencialmente os reprodutores espanhóis cujo valor económico era bem superior que a do burro português. A produção mulateira era modesta. Há indícios que deixam supor que o burro de Miranda era provavelmente uma criação zootécnica recente do século XIX pois os pesquisadores definiram um gado asinino de pequeno tamanho e originários de vários cruzamentos. Uma utilização do burro de Poitou na região não é de excluir mas é preciso relembrar que estes animais eram raros e o preço era demasiado elevado para os pequenos camponeses pobres. Além do mais, as recomendações zootécnicas « apontavam » mais facilmente para os burros espanhóis. No inquérito de 1870, o autor não menciona o burro. É no entanto necessário assinalar a circulação de obras zootécnicas traduzidas do francês que faziam o elogio dos burros de Poitou. Estes manuais zootécnicos tiveram talvez alguma influência sobre os zootécnicos portugueses. Alguns tentaram de facto experiências com o burro de Poitou ao longo do século XIX como o diz Ruy de Andrade no seu estudo sobre o burro. No século XIX, Portugal importa exclusivamente equídeoos de Espanha. Não exporta praticamente até meados do século XIX.

Segunda hipótese : os burros de Poitou foram exportados para Portugal a partir de La Rochelle ? E o inverso foi igualmente estudado.

A consulta de dados sobre o conjunto do tráfico do porto de La Rochelle no início do século XVIII (mercadorias de origem ou com destinação de vários países de 1725 – 1743) mostram a inexistência de um comércio marítimo de equídeos luso-franceses. No século XVII, Trocmé e Delaffosse chegaram às mesma conclusões. Uma importação isolada verifica-se entre 1640 e 1645 no momento da restauração da monarquia portuguesa não é de excluir. O transporte de burros e de mulas por via marítima devia comportar custos elevados o que dissuadia as importações.

A consulta de outras fontes históricas permitiu a identificação de outras pistas.Em primeiro lugar, o estudo da legislação anti-híbridos e o desenvolvimento das

colónias ibéricas da América latina mostram claramente a necessidade específica do mercado dos burros e das mulas na península ibérica. De facto, a Espanha e muito mais Portugal são clientes natos de animais de transporte e de trabalho (burros e mulas). O Brasil desprovido de equídeos constitui um importante importador. As minas de ouro exigem uma mão-de-obra e de meios de transporte consideráveis, de onde a nascença de verdadeiras empresas mulateiras geravam até 300 animais de tracção. O transporte de minerais exige animais corpulentos. Era preciso mulas corpulentas resultantes de cruzamentos entre éguas de atrelagem e burros grandes. Poitou possuía esta indústria mulateira que inspirou muito provavelmente a indústria mulateira espanhola. Os

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espanhóis importavam muitas mulas e burros de Poitou ao longo do século XVII (período estratégico de exploração das minas de ouro para o Brasil). Exportavam igualmente cavalos de tracção (bretões com certeza e provavelmente de Poitou também). Curiosamente, a Espanha possuía raças de equídeos corpulentos (burro de Zamorana- Leonesa, cavalos bretões, mulas) sobre o eixo da rota de Santiago (o que une Poitiers a Compostela). Além do mais, o caminho de Santiago dá para os portos do norte de Espanha mais concretamente na Galiza. O caminho de Santiago ligando Poitiers a Compostela constitui o itinerário mais curto para ir a Portugal e também aos portos lusitanos do Norte (Porto, Viana). Importados de Poitou, os burros, os cavalos e as mulas eram conduzidas traçando o caminho de Santiago . Engordados, educados, eram expedidos para os portos do norte de Espanha e provavelmente para os do Norte de Portugal. Embarcados em barcos, eram exportados para as Caraíbas estando dado o sentido principal dos fluxos comerciais das necessidades, temos tendência a seguir a pista de uma exportação do burro de Poitou para Espanha ao mesmo tempo que o Bretão via poitevina?

Em segundo lugar, o comércio não explica sozinho a difusão das raças locais europeias. De facto, os textos e lendas de Santiago mostram que o burro é um companheiro de viagem incontornável da idade média aos nossos dias. Os peregrinos na sua busca espiritual possibilitaram a difusão das raças asininas locais. Burros de Poitou fizeram o caminho de Santiago com o seu companheiro e acabaram por ficar em terras espanholas por várias razões. A viagem a Santiago é fonte de enriquecimento cultural : os peregrinos de Poitou puderam importar burros espanhóis por diversas razões como o refere a bela lenda de Aimeric Picaud.

Resumindo, o nosso estudo forneceu-nos elementos que permitem aproximar-nos das origens do burro de Poitou mas não pode ser concluída definitivamente. Um estudo do comércio hispano-Poitevin impõe-se para completar o presente estudo. Permitiria de confirmar definitivamente a posição económica da Espanha em matéria de importações e exportações de burros e de mulas. A pista dos caminhos Santiago merece um aprofundamento. De facto, as crenças populares do imaginário colectivo mas também de uma certa realidade poderiam reservar algumas surpresas.

Antes de concluir definitivamente e com o fim de abrir novas pistas, convém aqui lembrar que devemos também pesquisar a via ecológica. De facto é curioso constatar que a região de Poitiers possui actualmente raças locais de pêlo comprido : burro de Poitou e a cabra poitevina. Além do mais, descobrimos igualmente na região de Miranda (chamada « terra fria » pelos geógrafos portugueses) possui igualmente raças locais de pêlo comprido: o burro de Miranda, a cabra « Serrana » e a ovelha « Churra Galega Mirandesa». Deduzimos que o pêlo comprido constitui então « um meio biológico » para se proteger de certos ecossistemas em climas frios. Os pêlos longos fariam destas raças, raças « arcaicas » ou ditas « primitivas ». É muito provável que estes animais produziram simplesmente « uma pelagem » espessa para se protegerem do frio e das chuvas glaciares. A zona do eixo atlântico, onde se encontram os burros de pêlo comprido, é uma zona relativamente fria e é normal encontrar animais de pêlo comprido. Existem aliás casos semelhantes no mundo: vacas highland no Reino Unido, yak no Tibete, Porco laineux (raça mangalicza) na Hungria…Por consequência, a hipótese de definir Zamora-Leão como berço das raças de pêlo comprido parece suspeita.

A história do comércio ibérico-poitevin mostra-nos que houve trocas de animais mas daí a sustentar que o berço está hoje identificado, parece-nos agora resultado de pesquisas aleatórias. É preciso relembrar que o Homem levou uma selecção menos intensa no domínio da criação asinina. De facto, as leis e decretos em França e em

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Portugal encorajaram essencialmente a selecção de cavalos. Não vimos orientação da produção zootécnica tão precisa como a dos cavalos desde a idade média. Descobrimos numerosas obras sobre técnicas de criação de cavalos. Para o burro, a produção assistida de criação é quase nula. Para os cavalos e mais particularmente o comércio equídeo entre França e Portugal, notamos o interesse dos escudeiros, príncipes e reis franceses pelos cavalos ibéricos desde a idade média. Apesar do entusiasmo e as trocas comerciais, a França não desenvolveu uma criação de cavalo lusitano antes do fim dos anos 60! Porque é que os criadores franceses o fariam para o burro sabendo que este era o animal dos pobres, dos camponeses e o seu valor económico era bem inferior ao do cavalo ? Estas observações levam-nos à prudência sobre a identificação do berço da raça. As raças asininas ibéricas são provavelmente muito antigas. E necessário hoje explorar a pista do caminho de Santiago e a hipótese dos ecossistemas para compreender finalmente os mistérios deste fabuloso património vivo europeu que constitui as raças de burros de pêlo comprido…

BIBLIOGRAFIA

Arquivos

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