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O CICLO DE CRESCIMENTO BRASILEIRO ENTRE 2003 E 2014 Ricardo L. C. Amorim 1 Introdução A economia brasileira, depois de quase duas décadas de baixo crescimento, recuperou o ímpeto a partir de 2004. Mesmo a crise internacional que atingiu o país, em 2008, teve seu impacto reduzido e, já em 2010, o país apresentou elevado ritmo de expansão da produção. As dificuldades, no entanto, apareceram logo depois da recuperação na forma de aceleração da inflação, crescente taxa endividamento do setor público e flutuação do PIB. Diante dos problemas, a partir de 2011, uma soma de fatores, além de medidas do Governo Federal para conter a escalada dos preços, dificultou a manutenção do crescimento econômico, impondo um desempenho aquém do esperado, seguido, desde 2015, por dois anos de recessão. Os números conjunturais, no entanto, são insuficientes para explicar o movimento “subterrâneo” que estava movendo a estrutura produtiva do país. A hipótese deste trabalho afirma que o desempenho da economia brasileira, depois de 2010, refletiu o esgotamento de um ciclo protagonizado pelo estímulo ao crescimento, sustentado por políticas do Governo Federal em ambiente externo favorável, descuidando da fragilidade crescente da indústria nacional. Ou seja, compreender o esgotamento do modelo de crescimento econômico daquele período exige, além de observar a conduta do Governo Federal e as alterações no quadro internacional, analisar o comportamento racional do setor privado e as mudanças sofridas pela estrutura produtiva do país. Para dar conta desta discussão, o trabalho foi dividido em quatro seções, além desta introdução. A próxima discute os movimentos do ciclo de crescimento vivido pelo Brasil depois de 2003, subdividindo a análise do período em dois momentos: a ascensão e o declínio. Na seção seguinte, destacam-se as forças que conduziram à fase expansionista e, depois, de desaceleração, buscando evidenciar os limites do modelo de crescimento adotado então. Na terceira, avaliam-se os destaques levantados na seção anterior e discute-se a hipótese proposta. Por fim, os comentários finais recolocam os pontos centrais da discussão e propõe novos problemas para aprofundar a pesquisa. 1 Ricardo Luiz Chagas Amorim é professor visitante da UFABC e pesquisador do NEEDDS (UFABC). 1

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O CICLO DE CRESCIMENTO BRASILEIRO ENTRE 2003 E 2014

Ricardo L. C. Amorim1

Introdução

A economia brasileira, depois de quase duas décadas de baixo crescimento, recuperou o ímpeto a partir de 2004. Mesmo a crise internacional que atingiu o país, em 2008, teve seu impacto reduzido e, já em 2010, o país apresentou elevado ritmo de expansão da produção. As dificuldades, no entanto, apareceram logo depois da recuperação na forma de aceleração da inflação, crescente taxa endividamento do setor público e flutuação do PIB. Diante dos problemas, a partir de 2011, uma soma de fatores, além de medidas do Governo Federal para conter a escalada dos preços, dificultou a manutenção do crescimento econômico, impondo um desempenho aquém do esperado, seguido, desde 2015, por dois anos de recessão.

Os números conjunturais, no entanto, são insuficientes para explicar o movimento “subterrâneo” que estava movendo a estrutura produtiva do país. A hipótese deste trabalho afirma que o desempenho da economia brasileira, depois de 2010, refletiu o esgotamento de um ciclo protagonizado pelo estímulo ao crescimento, sustentado por políticas do Governo Federal em ambiente externo favorável, descuidando da fragilidade crescente da indústria nacional. Ou seja, compreender o esgotamento do modelo de crescimento econômico daquele período exige, além de observar a conduta do Governo Federal e as alterações no quadro internacional, analisar o comportamento racional do setor privado e as mudanças sofridas pela estrutura produtiva do país.

Para dar conta desta discussão, o trabalho foi dividido em quatro seções, além desta introdução. A próxima discute os movimentos do ciclo de crescimento vivido pelo Brasil depois de 2003, subdividindo a análise do período em dois momentos: a ascensão e o declínio. Na seção seguinte, destacam-se as forças que conduziram à fase expansionista e, depois, de desaceleração, buscando evidenciar os limites do modelo de crescimento adotado então. Na terceira, avaliam-se os destaques levantados na seção anterior e discute-se a hipótese proposta. Por fim, os comentários finais recolocam os pontos centrais da discussão e propõe novos problemas para aprofundar a pesquisa.

1. O modelo de crescimento recente do Brasil

O modelo de crescimento vivido pelo Brasil desde 2003, como um ciclo, pode ser dividido em duas fases: uma ascendente (2003 a 2010) e outra de crise e descenso (2011 a 2014). Assim, para discutir o período de crise, é importante, antes, aproximar-se do itinerário feito pela economia nacional para alcançar taxas de prosperidade material acima da média das décadas anteriores. Para tanto, esta seção está subdividida em duas subseções: a primeira discute a fase ascendente do ciclo recente da economia brasileira e, a segunda, analisa a crise e suas prováveis causas.

1.1. Primeira fase: a ascensão

O início do ciclo de crescimento da economia brasileira emerge com a posse do Governo de Lula da Silva. Naquele ano, a balança comercial já apresentava superávit em função, tanto do alívio da sobrevalorização cambial, realizado em 1999, como do crescimento da demanda chinesa por produtos brasileiros. Os crescentes saldos positivos na balança comercial ajudaram, no período inicial, a retomada da economia (Tabela 1).

Apenas a título de exemplo, os termos de troca do país cresceram 38,2%, entre 2003 e 2011, ano de auge da valorização das commodities (Funcex, 2014). Isso significa que o Brasil, com a mesma quantidade exportada, poderia comprar quase 40% mais bens e serviços no exterior em 2011 quando comparado com 2003. Esse ganho se refletiu nas transações correntes e foi revertido apenas com a chegada da crise financeira nos países ricos (Tabela 1). 1 Ricardo Luiz Chagas Amorim é professor visitante da UFABC e pesquisador do NEEDDS (UFABC).

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Tabela 1 – Resultado do Balanço de Pagamentos, 1999-2013

(US$ milhões)

AnoSaldo em

Transações Correntes

Saldo Balança Comercial

Saldo Capital e Financeira

Resultado do Balanço de

Pagamentos**

Acumulação do Resultado do BP

1999 -25.335 -1.199 17.319 -7.822 --2000 -24.225 -698 19.326 -2.262 --2001 -23.215 2.650 27.052 3.307 --2002 -7.637 13.121 8.004 302 --2003* 4.177 24.794 5.111 8.496 8.4962004 11.679 33.641 -7.523 2.244 10.7402005 13.985 44.703 -9.464 4.319 15.0592006 13.643 46.457 17.021 30.569 45.6282007 1.551 40.032 89.086 87.484 133.1132008 -28.192 24.836 29.357 2.969 136.0822009 -24.302 25.290 71.301 46.651 182.7332010 -47.273 20.147 99.912 49.101 231.8332011 -52.473 29.793 112.381 58.637 290.4702012 -54.249 19.395 70.010 18.900 309.3692013 -81.108 2.399 74.245 -5.926 303.443

* Início do período de valorização cambial.** O resultado diferente da soma das partes do Balanço de Pagamentos se deve a rubrica Erros e Omissões.

Fonte: Banco Central do Brasil (2020).

Os números da Tabela 1 chamam a atenção também para um fato novo: a acumulação de grandes reservas nos cofres do Banco Central. A última coluna mostra que, entre 2003 e 2013, o Brasil viu suas reservas aumentarem 3.471,6%. É interessante observar, então, que os números desfazem o mito de que a balança comercial foi a responsável pela entrada suficiente de dólares, capaz de permitir a acumulação de reservas no Banco Central e valorizar o Real frente ao dólar e outras moedas (Gráfico 1). Isto é, o destacado saldo da conta Capital e Financeira não corrobora com a hipótese de que o Brasil tenha sido atingido pela Doença Holandesa2.

Gráfico 1 – Taxa de câmbio real e taxa de câmbio efetiva real (US$/R$), 1992-2014

(Índice jan/1992=100)

2 Para uma discussão sobre a importância da Doença Holandesa no desempenho de economias capitalistas pobres, ver Pereira, Oreiro e Marconi (2016). Para uma crítica a esta tese, ver Resende e Terra (2018).

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Fonte: Elaboração própria a partir de dados Banco Central do Brasil (2020)

O impacto dessa valorização da moeda nacional se revelou chave para a compreensão da fragilidade do ciclo iniciado em 2003 no Brasil. Para entender o que ocorreu no país nos anos seguintes, é útil ter em mente que o novo Governo Federal foi eleito com a promessa de cumprir dois objetivos: retomar o crescimento econômico e melhorar a distribuição de renda. Nesse contexto, passado o primeiro ano, sujeito às diretrizes orçamentárias da gestão anterior, o Governo Federal criou estímulos ao crescimento econômico e à implantação de programas que elevassem a distribuição secundária da renda (Amorim e Barbosa, 2013). Para fomentar o crescimento, por exemplo, as medidas que facilitaram o acesso ao crédito no país ampliaram a relação crédito sobre PIB de perto de 25%3, em 2004, para 43,9% em dezembro de 2009 e 58,9% em dezembro de 2014 (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020). Se for computado o crescimento econômico em torno de 27%, entre 2007 e 2013, fica evidente o impacto das medidas em termos de ampliação do poder de compra de empresas e pessoas físicas. Ao mesmo tempo, foram retomados os investimentos públicos4 que passaram de 2,5% do PIB, em 2004, para 4,7% em 2010 (IPEA, 2012). Sob o efeito do multiplicador keynesiano da renda, a elevação dos investimentos públicos5 e do credito estimularam o dispêndio de famílias e empresas que, naturalmente, elevaram a demanda e impulsionaram o PIB.

O Governo Federal também retomou a formulação e a implantação de políticas industriais esquecidas nas duas décadas passadas, quando imperou o pensamento de curto prazo6. Foram três fases, traduzidas em três políticas com aprimoramentos sucessivos: a PITCE (2004 a 2008), a PDP (2008 a 2011) e o Plano Brasil Maior (2011 a 2014). A primeira delas buscou aproveitar a ampliação do crédito e a retomada dos investimentos públicos. Sua execução teve o mérito de desbloquear o debate em torno do desenvolvimento industrial. A Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) já navegava sobre o crescimento econômico daqueles anos e objetivava superar os gargalos de oferta que surgiram com os avanços de alguns setores industriais. Para tanto, a PDP focava a competitividade de longo prazo como solução para o desenvolvimento do país. Um dos méritos dessa política foi ter avançado significativamente na criação e melhoria de mecanismos de controle e avaliação da política industrial e de suas medidas (Coronel, Azevedo e Campos, 2014).

3 Dado coletado de FEBRABAN. Apresentação à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.br/comissoes/CAE/AP/APRP2007/APRP_20071016_Febraban.pdf. Acesso em: 01 mar. 2015. O motivo de buscar fonte diferente do Banco Central foi a mudança de metodologia, no computo da variável, ocorrida em fevereiro de 2015.4 Investimento Público da Administração Pública da União que inclui as inversões realizadas pela administração pública e empresas estatais federais. Ver IPEA (2012). 5 Parte importante desse aumento do investimento público dirigiu-se à infraestrutura de transporte e à oferta de energia (IPEA, 2012). 6 Para este trecho, o autor agradece a colaboração de Roberto Sampaio Pedreira, economista, doutor em ciências políticas e técnico da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

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Por fim, o Plano Brasil Maior (PBM), implantado em meio a grandes problemas no cenário externo e agressividade comercial chinesa, propôs medidas desenhadas a partir de dezenas de reuniões que juntavam empresários, trabalhadores e órgãos do Governo Federal. A presença do setor privado foi inovadora e significou uma mudança no patamar técnico na construção da política industrial brasileira, pois, primeiro, deu ao Poder Executivo clareza sobre as necessidades das indústrias e, segundo, envolveu diferentes órgãos públicos no compromisso com os acordos selados (ABDI, 2015).

Neste sentido, as medidas econômicas focaram: 1. o estímulo ao investimento (por exemplo: barateamento dos financiamentos e linhas especiais de crédito); 2. a ampliação e criação de programas de inovação, tanto específicos (por exemplo: Inovar-auto), quanto genéricos, através do aumento dos recursos destinados à FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos)7, agência federal responsável por financiar planos voltados à geração de tecnologia e inovação no país; e 3. a polêmica redução de custos operacionais (por exemplo: reduções tributárias sobre a folha de pagamento).

O empenho foi possível porque o Governo Federal, a partir do esforço para recuperar parte da musculatura perdida nos anos de domínio do pensamento liberal (NOZAKI, 2019), optou por abraçar, marcadamente no segundo mandato de Lula da Silva, parte do desenvolvimentismo, tal como definido por Bielschowsky (2004). A reconstrução de um governo desenvolvimentista, disposto e enfrentar específicas demandas nacionais e desafios internacionais, evidenciou-se também na criação de instituições como a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), a Agência Brasileira Promotora de Exportações e Investimentos (APEX), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), fóruns temáticos de articulação entre órgãos do governo, concursos para reposição de mão de obra tecnicamente qualificada, entre outros.

Tabela 2 – Evolução do PIB e PIB per capita brasileiro, 2003-2019

(em R$ de 2018)

PIB % PIB Base 100

PIB per capita

% PIB per capita

Base 100

2003 4.826.784.201.899,99 1,1% 100,0 26.710,36 -0,1% 100,02004 5.104.805.265.026,97 5,8% 105,8 27.915,70 4,5% 104,52005 5.268.267.836.292,86 3,2% 109,1 28.478,49 2,0% 106,62006 5.476.996.013.883,52 4,0% 113,5 29.279,10 2,8% 109,62007 5.809.442.585.086,20 6,1% 120,4 30.731,57 5,0% 115,12008 6.105.386.944.764,50 5,1% 126,5 31.963,66 4,0% 119,72009 6.097.705.635.365,76 -0,1% 126,3 31.597,46 -1,1% 118,32010 6.556.754.686.068,21 7,5% 135,8 33.643,24 6,5% 126,02011 6.817.347.857.574,02 4,0% 141,2 34.675,58 3,1% 129,82012 6.948.321.107.434,09 1,9% 144,0 35.036,80 1,0% 131,22013 7.157.105.835.274,74 3,0% 148,3 35.784,78 2,1% 134,02014 7.193.174.480.969,03 0,5% 149,0 35.659,64 -0,3% 133,52015 6.938.121.533.394,21 -3,5% 143,7 34.098,04 -4,4% 127,72016 6.710.834.437.100,66 -3,3% 139,0 32.710,79 -4,1% 122,5

Fonte: Banco Central do Brasil (2020).

Os esforços somados das políticas do Governo Federal animaram o dispêndio na economia e os números se converteram em expectativas otimistas dos empresários e consumidores, patrões e empregados. Por exemplo, o Índice de Confiança do Empresário Industrial (ICEI), calculado pela Confederação Nacional da Indústria, passou de 47,3 pontos, no quarto trimestre de 2001, para 58,1

7 Os financiamentos da agência para projetos de tecnologia cresceram muito nestes anos, passando de R$ 120 milhões, em 2003, para uma previsão de R$ 14 bilhões, em 2014 (FINEP, 2014).

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pontos, no terceiro trimestre de 2008, apontando significativa melhora nas expectativas do industrial brasileiro (CNI, 2020b). O mesmo se viu com o consumidor: o Índice Nacional de Expectativa do Consumidor (INEC) cresceu de 100,4 pontos para 115,6 pontos no mesmo período8 (CNI, 2019a). Assim, os anos logo após 2003 ensejaram a retomada do crescimento, detonada e ampliada pelos efeitos da política econômica e industrial (Tabela 2). Naturalmente, esse período foi marcado pela queda nas taxas desemprego e por ganhos reais no salário médio pago (Gráfico 2).

Gráfico 2 – Taxa de desemprego e rendimento real do assalariado na região metropolitana de São Paulo, 2000-2014

(Índice jan/2001=100)

Fonte: DIEESE/SEADE (2019)

O Gráfico 1 mostra, entretanto, que a taxa cambial voltou a se valorizar meses antes da posse do presidente Lula da Silva e continuou na mesma tendência até 2011, atingindo, no último ano, patamares semelhantes àqueles observados após implantação do Plano Real. É preciso, então atentar que períodos longos de câmbio valorizado, além de interferir nos preços relativos internos, impactam diretamente a balança comercial, ao encarecer as exportações e aumentar o volume das importações (PEREIRA; OREIRO; MARCONI, 2016). Isto é, câmbio valorizado, ao implicar no barateamento das compras no exterior, inclusive de insumos e máquinas, retira a efetividade de proteções alfandegárias ad valorem e fragiliza extemporaneamente as empresas nacionais, marcadamente a indústria. Quando, sem preparar a economia9, a valorização cambial é permitida ou usada como política econômica, o resultado esperado é a redução da densidade das cadeias produtivas, diminuição da complexidade econômica e, consequentemente, perda de competitividade do país (Gala, 2019) 10. O Brasil, portanto, no período que vai de 2003 a 2011, se expôs ao risco de ampliar a fragilidade da indústria nacional, utilizando, tal como na década anterior, o câmbio valorizado como ferramenta de política econômica11. 8 O ICEI varia entre zero e cem pontos. Valores acima de 50 pontos indicam otimismo entre os empresários industriais. Já o INEC é um índice de base fixa que indica que, quanto maior for a confiança do consumidor, maior será o valor do índice. Ver o sítio da CNI: http://www.portaldaindustria.com.br/publicacoes-e-estatisticas .9 Exemplos de preparação da economia são a criação de fontes de financiamento para investimento a juros baixos, implantação de eficiente política tecnológica e de inovação e defesa alfandegária de indústrias nascentes e de setores considerados estratégicos (CHANG; GRABEL, 2014). 10 Isso acontece, principalmente em economia periféricas, onde a estrutura econômica frágil em relação ao centro e sustentada em atividades de menor valor agregado, não consegue competir com a oferta de bens importados anormalmente baratos. Assim, os setores e empresas de menor produtividade relativa e/ou nascentes são levadas ao prejuízo, falência ou à venda para o capital estrangeiro, desaparecendo, na maioria das vezes, o elo da estrutura produtiva nacional.11 Para Filgueiras (2000), o câmbio valorizado foi utilizado para controle da inflação nos anos 1990.

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Isso parece reforçado pelos números apresentados por Marquetti e Porsse (2014), onde se observa que a taxa de lucro líquido na primeira década do século XXI permaneceu baixa, apesar do crescimento econômico e da elevação da taxa de acumulação na economia a partir de 2003. O dinamismo, aqui, parece situar-se nas estatais, semi-estatais e setor público12.

O que se viu, portanto, foi o Governo Federal se responsabilizando pela retomada do crescimento da economia brasileira e, para tanto, elevou os gastos com investimentos públicos, estimulou inversões privadas, aumentou o salário mínimo em termos reais, facilitou o acesso ao crédito e ampliou os programas sociais de redistribuição de renda (CARVALHO, 2018). Agiu, porém, sem fazer caso, aparentemente, dos graves problemas que se acumulavam na estrutura produtiva em razão do câmbio valorizado por quase duas décadas. De outra forma, o ambiente externo favorável, ao sancionar políticas de estímulo ao dispêndio e a distribuição secundária da renda (CARVALHO, 2018), por outro lado, criou condições para que as novas demandas fossem crescentemente direcionadas para as importações.

O resultante crescimento econômico, é importante lembrar, foi favorecido inicialmente, tanto pelo alívio do problema cambial, em 1999, quanto pela valorização dos preços das commodities, a partir de 2003. Este benéfico cenário externo possibilitou ao novo governo de Lula da Silva administrar com maior tranquilidade problemas recorrentes, como o previsível efeito Balassa-Samuelson, que atingem economias periféricas como a brasileira. De outro modo, os resultados alcançados permitiram que os objetivos assinalados na eleição de 2002, retomada do crescimento econômico e redistribuição secundária da renda, fossem, ao menos parcialmente, atingidos (CARVALHO, 2018). O esforço, porém, foi facilitado porque a inflação não voltou a pressionar, em razão das importações barateadas pela quantidade de divisas oriundas dos saldos positivos do balanço de pagamentos.

Em resumo, o quadro que se desenhou nessa primeira fase foi: 1. a economia brasileira cresceu a olhos vistos até 2008 e recuperou-se da crise de 2009 já em

2010 (Tabela 2), conseguindo manter o nível de emprego mesmo após a eclosão da crise financeira mundial (DIEESE, 2014) (Gráfico 2);

2. houve a retomada das políticas industriais, com foco na ampliação do investimento [(Ipea, 2012) e ABDI (2014)];

3. nunca o país havia conseguido distribuir renda a ponto de reduzir o Índice de Gini por anos consecutivos13;

4. houve avanços na infraestrutura, na educação e no aparelho de Estado (Fonseca e Fagnani, 2013);

5. a inflação foi controlada através da valorização cambial, possibilitada pela grande quantidade de dólares gerada na conta Capital e Financeira do Balanço de Pagamentos. A tese de Doença Holandesa fica, portanto, enfraquecida.

Mas isso não foi tudo. Primeiro, o custo dessa política foi pago pelo Estado com a elevação dos gastos públicos (Serrano e Summa, 2012) e o setor privado reagiu, sem buscar protagonismo. Segundo, a fragilidade do modelo era perceptível quando se observava as trocas comerciais com o resto do mundo. Os resultados da indústria brasileira, por exemplo, mostravam que a fase ascendente do ciclo não repercutiu com a mesma intensidade nas plantas fabris (Arbache, 2012). Naqueles anos, a concorrência internacional foi pouco a pouco ocupando os espaços de demanda que o parque produtivo do país, em competição com o exterior, não conseguia atender. Verbi gratia, o comércio exterior exerceu o papel de abastecer a demanda interna em expansão que caminhou à frente da capacidade produtiva nacional. A Tabela 2 mostra, por exemplo, que o PIB cresceu entre 2003 e 2013, significativos 48,3%. Ao mesmo tempo, a indústria de transformação elevou sua produção no período em 20,6% e as vendas no varejo mais do que dobraram em volume no mesmo

12 Se, como afirmam Marquetti e Porsse (2014), a taxa de lucro de longo prazo é determinada pela produtividade do capital, então, para o período recente, quando a taxa de lucro encontrava-se em patamar baixo e relativamente estável, não haveria motivo para o setor privado investir, mesmo que na fase expansiva do ciclo econômico. De outro modo, coube ao Estado protagonizar as inversões, puxando, quando possível, o capital. 13 A redução do Índice de Gini nesses anos está vinculada à redução das desigualdades salariais. Os muito ricos, segundo estudos, como os de Marcelo Medeiros, não foram negativamente afetados pelas ações redistributivas do Governo Federal.

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período, segundo IBGE (2017). Assim, observa-se que a manufatura nacional, longe de reduzir sua produção, na verdade, perdeu espaço relativo no mercado interno, cada vez mais suprido por bens importados (Gráfico 3), dando azo ao debate sobre a desindustrialização precoce do Brasil14.

Gráfico 3 – Coeficiente de penetração das importações de diversos setores, 4ºtrim/1996-4ºtrim/2013

(em porcentagem)

a) geral, ind. extrativas, petróleo e gás, ind. transformação b) químicos e farmacêuticos e farmoquímicos

c) alimentos, têxteis e vestuários e acessórios b) metais, informática e eletrônicos, elétricos, máquinas e equipamentos e veículos automotores, carrocerias e reboques

Fonte: CNI (2020a).

1.2. A segunda fase: o declínio

A chegada da crise internacional, no entanto, restringiu significativamente os graus de liberdade da política econômica e impactou o balanço de pagamentos brasileiro. Os números observados evidenciam que, mesmo superando rápido os piores momentos da crise internacional, a desaceleração enfrentada pelas nações mais ricas foram sentidas no país. Mais do que isso, o reposicionamento de algumas economias, marcadamente a China, dentro do quadro de baixo crescimento mundial, gerou novos problemas que o Brasil sentiu dificuldades de contornar (Cunha, Lélis e Lima, 2012). Por exemplo:

1. entre 2003 e 2011, a valorização da moeda nacional retornou (Gráfico 1), barateando a importação de qualquer mercadoria;

2. a redução nas trocas internacionais elevou a agressividade dos parceiros comerciais que buscaram mercado para suas produções (Cunha, Lélis e Lima, 2012);

3. a liderança dos oligopólios transnacionais nos mais dinâmicos setores produtivos do país, marcadamente na indústria, elevou a remessa de lucros no período e reforçou a tendência

14 Sobre o conceito de desindustrialização precoce, ver Tregenna (2016). Para o debate brasileiro sobre o tema, ver, por exemplo, Nassif (2008) e Oreiro e Feijó (2010).

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de aquisição de insumos no exterior para a produção de bens finais no Brasil [Cunha, Lélis e Lima (2012), Dieese (2014) e Cruz (2008)];

4. os preços dos serviços non-tradeables cresceram frente à ampliação da demanda interna em contraponto a oferta limitada [Ipea (2020) e Carvalho (2018)];

5. ao mesmo tempo, os preços internacionais de alimentos começaram a subir a partir de 2004 e continuaram em ascensão, com oscilações, até o fim do período em tela (FAO, 2015).

O primeiro problema manteve as dificuldades para a indústria brasileira competir com seus pares internacionais. O simples barateamento das importações se veria agravado pelo momento internacional, onde oligopólios mundiais, alocando da melhor maneira possível seus custos e produções, consideraram o Brasil, recuperado rapidamente da crise internacional, peça importante para garantir resultados positivos em seus balanços mundiais consolidados [Cunha, Lélis e Lima (2012), Dieese (2014) e Cruz (2008)]. Desta maneira, além do preço atraente das importações, havia um cenário competitivo internacional que poucas oportunidades criava para a atuação das empresas localizadas no país. Os coeficientes de penetração das importações refletiam o cenário descrito (Gráfico 3) e os números da balança comercial expunham os riscos do período que se iniciava: as compras no exterior continuavam a crescer, apesar do desempenho mais fraco da economia brasileira após 2010.

Havia, no entanto, outra questão tão exigente de atenção quanto o comércio exterior: a elevação dos preços no Brasil. A inflação que costuma acompanhar o país em tempos de crescimento econômico ressurgiu, sustentada em duas motivações: encarecimento dos non-tradables (CARVALHO, 2018) e aumento dos preços internacionais de alimentos [(ESTADÃO ONLINE, 2014) e (FAO-UN, 2015)]. A primeira causa se vinculou diretamente ao período de significativo aumento da renda e geração de empregos, elevando não apenas a demanda por serviços, mas indo além e pressionando a oferta limitada de mão de obra prestadora desses serviços (IPEA, 2014). A segunda causa, os preços internacionais, fugia ao controle da política econômica nacional.

Em resposta, o Governo Federal e o Banco Central do Brasil, diante da aceleração dos preços, principalmente após a rápida recuperação de 2010, adotaram medidas horizontais de contenção da demanda a fim de suprimir potencial escalada inflacionária. Naquele momento, o Banco Central, por exemplo, elevou a taxa SELIC de 8,8% ao ano, em abril de 2010, até 12,5%, em julho de 2011 (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020a). O Bacen foi além e, diante do crescimento do financiamento imobiliário e sem espaço para continuar a elevar os juros, adotou medidas para frear a expansão do crédito na economia15: aumentou o valor do depósito compulsório, elevou o capital mínimo exigido dos bancos para realizar empréstimos de prazo mais longo ao consumidor, aumentou os impostos sobre operações de crédito ao consumidor e majorou o pagamento mínimo dos cartões de crédito (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020b).

Na mesma direção e ainda em 2011, o Governo Federal, após reduzir o superávit primário para pouco mais de 1% do PIB em 2009, auge do impacto da crise internacional no país, voltou a perseguir um resultado de 3,1% do PIB. Assim, se, em 2009 e 2010, a União arrefeceu o controle sobre seu consumo final, voltou a ser austero em 2011 (IPEA, 2012).

Além disso, outras duas medidas pressionaram para baixo a demanda no país em 2011:1. o Governo Federal decidiu não aumentar o salário mínimo em termos reais, interrompendo

tendência iniciada em 1994 (Ipea, 2020);2. as empresas estatais (financeiras e não-financeiras) reduziram o valor de seus

investimentos em 2011 (IPEA, 2012). Em resumo, as dificuldades internacionais somadas à postura, agora, contracionista do

Governo Federal, forjaram uma mudança negativa no ambiente macroeconômico (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020c), marcadamente para indústria brasileira, pois: a) a competição internacional tornou-se excessivamente penosa em razão do câmbio valorizado e da agressividade

15 Foram as chamadas medidas “macroprudenciais”.

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dos parceiros comerciais; e b) a aceleração da inflação levou o Governo Federal a tomar medidas de contenção de demanda, reduzindo, por consequência, o potencial de crescimento econômico.

O Gráfico 4 mostra a deterioração das expectativas dos empresários industriais com o cenário econômico do país logo após a recuperação dos piores momentos da crise de 2009.

Gráfico 4 – Expectativas dos empresários (ICEI) e consumidores (INEC), 2012-2014*

(INEC transformado em índice mar/2010=100 e ICEI cálculo original em pontos)

* ICEI é o Índice de Confiança do Empresário Industrial calculado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). INEC, por sua vez, é o Índice Nacional de Expectativa do Consumidor também produzido pela CNI. Fonte: CNI (2019a e 2020b)

As questões delineadas, no entanto, criaram e magnificaram uma consequência que se tornou um novo e maior problema: o cenário externo, o ambiente econômico interno e a deterioração das expectativas contra-arrestaram as forças que haviam iniciado a fase expansiva do ciclo de crescimento vivido pelo país a partir de 2003. Na verdade, disparou a armadilha construída pelo modelo de crescimento que se sustentava no consumo das famílias, nos gastos do governo e estímulos às inversões, mas, também, no controle da inflação via valorização cambial que, por sua vez, fragilizava o principal motor da dinâmica econômica nacional: a indústria de transformação.

A reação dos empresários industriais, por exemplo, foi conter suas recentes decisões de investimento, atrasando gastos e diminuindo a proporção da formação bruta de capital fixo no dispêndio do país (Gráfico 5).

Gráfico 5 – Indústrias com intenção de investir e investimento realizado, 2010-2016

(em porcentagem)

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Fonte: CNI (2020c).

O Governo Federal, por sua vez, não se esforçou para compensar a redução na taxa de investimento privado e nem mesmo trabalhou para manter os níveis de gastos e inversões públicos. O efeito esperado, potencializado pelo multiplicador keynesiano, foi a desaceleração rápida do crescimento do PIB e, a partir de 2014, a diminuição intensa da utilização da capacidade instalada (Gráfico 6).

Gráfico 6 – Nível de utilização da capacidade instalada com ajuste sazonal, 2010-2014

(em percentual)

Fonte: FGV (2017)

A queda nos investimentos, somada à penetração dos insumos importados nas cadeias produtivas, naturalmente, pressionou a complexidade da economia brasileira e, portanto, impactou sua competitividade. O problema se torna claro quando se concentra o olhar sobre o tema da produtividade do trabalho. O Gráfico 7 mostra que, apesar do crescimento vigoroso do número de trabalhadores ocupados, a economia não perdeu produtividade entre 2001 e 2012. Na verdade, a partir de 2004, a produtividade superou a estagnação e seguidas melhoras anuais proporcionaram, até 2012, ganhos acumulados de 19,2% na eficiência da estrutura econômica nacional16.

Já o rendimento médio real das pessoas acima de 10 anos, por outro lado, sofreu mudança intensa de comportamento no mesmo período. Num primeiro momento, a diferença entre os ganhos de renda e de produtividade cresceu em razão da queda no poder de compra do rendimento médio da PIA. Em seguida, a partir de 2005, os rendimentos e a produtividade cresceram, tendo os

16 Houve intensa discussão na literatura econômica brasileira sobre a produtividade brasileira, seus avanços e comparações internacionais. Para De Negri e Cavalcante (2014), os ganhos de produtividade, embora existam, são insuficientes para fazer frente aos avanços alcançados por outros países concorrentes do Brasil. Para uma ampla discussão, ver DE NEGRI, F. e CAVALCANTE, R. Produtividade no Brasil: desempenho e determinantes. 1.ed. Brasília: ABDI e IPEA, 2014.

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rendimentos um desempenho mais acelerado, a ponto de superar o aumento da produtividade. Os dados, no entanto, chamam a atenção para os anos posteriores a 2010, quando os ganhos de produtividade desaceleraram e passaram a preocupar em 2012. Contraditoriamente, os ganhos de renda pessoal, embora também mostrassem desaceleração no mesmo período, continuaram a crescer.

Gráfico 7 – Evolução da produtividade do trabalho e do rendimento médio real na economia brasileira, 2001-2012*

(Índice 2001 = 100)

* A produtividade foi medida como produtividade simples do trabalho: PIB a preços constantes de 2013 sobre população ocupada.

Fonte: elaboração própria, a partir de dados do SIDRA (2017).

No caso específico da indústria de transformação, a questão da produtividade do trabalho exigia ainda maior atenção. O próximo gráfico permite observar que, desde a recuperação da economia brasileira, em 2010, após o momento mais difícil da crise internacional, o setor não apresentou ganhos de produtividade, sequer recuperando os níveis de 2008. Do outro lado, a queda nos ‘salários, retiradas e outras remunerações’ pagas pela indústria de transformação foi observada apenas em 2009, auge dos efeitos da crise internacional no Brasil. Tais comportamentos criaram um descolamento entre as duas variáveis, denotando que o custo de pessoal sobre a produção industrial cresceu nesses anos, pressionando a participação do excedente operacional bruto sobre a renda nacional (Gráfico 8). A observação dos Gráficos 2, 7 e 8 é compatível com a interpretação de que o aumento dos custos de pessoal na indústria de transformação respondeu diretamente à diminuição da mão de obra disponível no mercado de trabalho, encarecendo os salários.

Gráfico 8 - Indústria de transformação: evolução da produtividade e da média dos salários, retiradas e outras remunerações, 2007-2012

(Índice 2007=100)

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* A produtividade foi medida como produtividade simples do trabalho: valor bruto da produção industrial em moeda de 2012 sobre pessoal ocupado na indústria de transformação.

Fonte: elaboração própria, a partir de dados do SIDRA (2017).

Destarte, o problema, na verdade, era triplo: o câmbio barateou as importações, encareceu as exportações e tornou a mão de obra brasileira relativamente cara, elevando os custos da produção local e reduzindo a competitividade dos tradables. Quando o alívio cambial surgiu, a partir do primeiro semestre de 2011, os problemas na indústria de transformação já eram profundos. Primeiro porque a produção nacional havia se adequado a quase duas décadas de dólar barato e, agora, dependia de grande quantidade de insumos importados para ser competitiva no mercado17. Segundo porque a elevação dos custos pressionava os preços dos bens industriais que, somados à inflação de serviços e de alimentos, contribuía para dificultar o freio que o Governo Federal pretendia estabelecer sobre o aumento da inflação (Amorim, 2015).

Enfim, o quadro inflacionário se agravou porque, apesar de desacelerada, a economia do Brasil ainda crescia e, por isso, gerava renda e demanda sobre itens que pressionavam a inflação: alimentos, serviços e, agora, a indústria de transformação. O Governo Federal, buscando, então, atuar sobre o aumento dos preços, optou restringir o aumento das tarifas de energia (elétrica e petróleo), com vistas nos custos industriais (ABDI, 2014). Infelizmente, diante do cenário em deterioração, a perspectiva de realinhamento de preços reduziu ainda mais as expectativas dos empresários para o fim de 2014 e o ano de 2015 (Gráfico 4).

A conjuntura foi ainda especialmente abalada em razão das eleições presidenciais de 2014, afinal o pleito trazia mais do que questões relativas à alternância de partidos. O debate colocado naqueles dias ia além, pondo em questão o modelo vigente de crescimento com forte presença do Estado, em contraposição a outro, liberal. A disputa gerou ansiedade nos mercados financeiros e cautela nos setores produtivos, movimentos que colaboraram para o clima morno da produção naqueles dias.

O que se anunciava, portanto, era o descenso do ciclo econômico e não se podia esperar, para os meses seguintes, a recuperação da produção, marcadamente industrial. Em poucas palavras, a eficiência marginal do capital estava deprimida e caindo em razão, primeiro, de um cenário macroeconômico preocupante que rebaixava as avaliações e encolhia a demanda efetiva dos empresários e, segundo, porque a indústria de transformação brasileira estava sendo sucateada havia décadas e o período de crescimento recente não conseguira mudar a tendência18.

17 Afinal, desvalorizações cambiais elevariam seus custos. Mais interessante, no entanto, é ressaltar que a desvalorização do Real, ocorrida a partir de meados de 2011, foi insuficiente, pois o movimento de desvalorização da moeda brasileira foi acompanhado por ações semelhantes de vários países, inclusive concorrentes no mercado internacional (Banco Itaú, 2014).18 Havia alguma esperança, marcadamente no mercado financeiro de que o quadro poderia ser revertido. Alguns analistas, por exemplo, afirmaram, em 2014, que, a partir de 2015, várias concessões da União em rodovias, ferrovias, terminais portuários e aeroportos começariam a surtir efeito sobre a economia (DEPEC-Bradesco). O motivo estaria no volume de investimentos que seriam obrigatoriamente realizados em razão dos contratos. A consultoria McKinsey também apostava, em 2014, que, passada a

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2. O recente modelo de crescimento brasileiro em destaque

O Brasil, após 2003, parecia ter reencontrado o caminho do crescimento. A partir dali, ações e gastos do Governo Federal estimularam a economia, tanto através do crédito, da retomada dos investimentos públicos, quanto do aumento do salário mínimo, seguridade social e outros programas de redistribuição de renda, com reflexos as vendas, inclusive industriais. O cenário externo era favorável: o crescimento acelerado chinês favoreceu as exportações de commodities em volume e preço, gerando superávits comerciais significativos. Mais do que isso, o crescimento brasileiro e as elevadas taxas locais de juros atraíram, a partir de 200719, elevados volumes de dólares que permitiram ao Brasil alcançar reservas acima de US$ 300 bilhões em 2013 (Tabela 1). O balanço de pagamentos, então, deu folga ao Brasil para executar políticas de estímulo ao crescimento, redistribuição de renda e, ao mesmo tempo, controlar a inflação (CARVALHO, 2018). Todavia, a mesma folga terminou por voltar a valorizar a taxa de câmbio em patamar semelhante ao vivenciado nos anos 1990 (Gráfico 1) e gerar quatro resultados importantes: a) barateamento das importações, ajudando a controlar os impulsos inflacionários que surgem em momentos de rápido crescimento econômico; b) encarecimento das exportações (reduzindo a competitividade da indústria brasileira no exterior); c) favorecimento da entrada de bens importados baratos (em moeda nacional), principalmente insumos, partes e peças, que reduziram a densidade e a complexidade da indústria brasileira; e d) elevação do custo da mão de obra em dólares, colaborando para reduzir a competitividade da economia brasileira como um todo, mas principalmente dos tradeables. Enquanto a economia brasileira cresceu rápido e o setor externo não enfrentou crises, o modelo escolhido pelo Governo Federal foi internamente legitimado ao causar demanda à produção nacional, reduzir o desemprego e distribuir renda junto à população mais carente.

Quando a crise internacional eclodiu, porém, os limites do modelo que havia iniciado o ciclo de crescimento começaram a exigir atenção. A atuação rápida da política econômica, em 2009 e 2010, ao favorecer a recuperação da produção ante os impactos dos problemas externos, fez também os olhos de países e transnacionais se voltarem para uma das únicas economias importantes do planeta que continuou a apresentar bom desempenho. Mas o Brasil que, já em 2010, parecia ter superado o abalo de 2009, sentiu as dificuldades da nova realidade internacional:

1. com o câmbio sobrevalorizado – desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, ajustado em 1999, mas desfasado a partir de 2003 −, as empresas brasileiras elevaram, ano após ano, seus níveis de importação de peças e insumos aos quais se somaram os esforços de outros países para alcançar o mercado brasileiro. A fragilização ou mesmo desaparecimento de elos das cadeias produtivas nacionais frente à concorrência internacional continuou a pressionar a densidade industrial do país, reduzindo a competitividade da economia brasileira (Gráfico 3);

b) a inflação acelerou, respondendo a causas internas e componentes internacionais, inclusive a desvalorização cambial, a partir de 2011. O Governo Federal adotou, então, medidas de contenção, cujo impacto nublou o horizonte das expectativas empresariais e reduziu a demanda efetiva. Moto contínuo, o número de empresas decididas a investir caiu, o PIB desacelerou a partir de 2011, a incorporação de inovações diminuiu, a abertura de vagas de empregos melhor remunerados desacelerou, a renda per capita cresceu cada vez menos e a arrecadação tributária sofreu o impacto.

O resultado das ações de contenção foi, naquele momento, abater a economia e mostrar que problemas profundos haviam sido acumulados. Tanto assim que o tamanho da desaceleração da produção, já em 2012, diminuiu o ímpeto contracionista da política econômica e deu ensejo a adoção de programas pontuais, visando melhorar o desempenho de setores chaves (ABDI, 2014). Mas a produção não reagiu como esperado. De outro modo, as expectativas dos empresários se eleição, o Brasil, caso não ocorresse nenhum desastre externo, tinha condições de voltar a crescer 4% ao ano sem enfrentar processos de aceleração inflacionária. Para isso, a condução da economia deveria evitar represar os movimentos que já estavam em preparação na economia, como os projetos de infraestrutura. O cenário, no entanto, com os problemas da Petrobras e o envolvimento de grandes empreiteiras brasileiras não fez outra coisa além de deteriorar-se. 19 Não por acaso, início do segundo mandato do presidente Lula da Silva.

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deterioraram irremediavelmente e, marcadamente os industriais, não ousaram investir em cenário incerto, com economia fragilizada e estrutura produtiva pouco competitiva20. O baixo crescimento resultante, naturalmente, não ajudou as contas do Governo Federal.

Outros fatos já apontavam, desde os anos 1990, para a crescente fragilidade da indústria de transformação no Brasil. Mais recentemente, a contar de 2003, foi marcante o insuficiente crescimento da oferta frente à rápida expansão da demanda interna, abrindo uma brecha que foi preenchida rapidamente pela importação dos mais diferentes bens, dos mais sofisticados aos mais simples. Na verdade, desde o início do período em tela, se o crescimento do PIB elevou a renda das famílias e seus gastos, as decisões microeconômicas de produção e investimentos estiveram condicionadas por um ambiente macroeconômico antigo e desestimulante: primeiro, havia a sobrevalorização cambial (e suas consequências) e as elevadas taxas de juros (e suas consequências) (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020a); depois, na segunda fase, apesar do ensaio de desvalorização da moeda nacional, efeitos negativos se somaram como, por exemplo, a conjuntural política fiscal errática do Governo Federal e a já não mais conjuntural adequação da estrutura produtiva aos preços básicos, principalmente taxa de câmbio. Os dois preços, juros e câmbio, desde o Plano Real, mostravam-se hostis à indústria de transformação − e parecem não responder à Doença Holandesa (RESENDE; TERRA, 2018) −, tornaram a indústria dependente de importação para se manterem competitivas. Como resultado, apesar do crescimento econômico e dos estímulos do Governo Federal que deveriam elevar a demanda efetiva, a taxa de lucro líquida no Brasil não cresceu e a taxa de acumulação foi elevada a partir dos recursos públicos destinados aos investimentos e às compras (MARQUETTI; PORSSE, 2014).

Diante disso, a produtividade não evoluiu suficientemente e, portanto, a competitividade da economia brasileira, marcadamente industrial, se reduziu frente aos competidores internacionais e a insuficiente ampliação do parque produtivo nacional e sua módica modernização estavam na raiz dos problemas.

3. Entre a ação e a acomodação

Surpreende pouco que o ambiente macroeconômico desenhado desestimule investimentos e inovações ao nível das empresas e termine por reduzir ou, no limite, paralisar os ganhos de produtividade do parque industrial do país. A racionalidade das decisões empresariais, marcadamente na indústria de transformação, diante de quase duas décadas de sobrevalorização cambial – além de juros elevados −, de adequação da produção aos preços básicos e, mais recentemente, de uma política econômica pouco previsível apontou para um potencial maior de lucratividade quando as empresas importam partes, peças e máquinas e revendem os produtos no mercado interno que demorou a sofrer recessão. Naturalmente, a densidade das cadeias produtivas se reduziu e a competitividade brasileira diminuiu.

Assim, na segunda fase do ciclo, o resultado das ações de contenção do Governo Federal foi abater a economia e mostrar que problemas profundos haviam sido acumulados. Não houve mudança pontual de política econômica e nem mesmo esforço de desvalorização da moeda nacional capaz de mudar a direção ou tendência ao esgotamento do modelo de crescimento aplicado pelo Brasil naqueles anos. E a razão para isso era aguda: a estrutura produtiva do país havia sido remodelada, com a indústria de transformação se adequando aos preços básicos que haviam sido alterados desde o início da sobrevalorização cambial, ainda durante o governo Fernando Henrique

20 Havia ainda o que comentaristas da época chamavam de “Custo Brasil”, vagamente definido como o conjunto de problemas burocráticos, financeiros, tributários, logísticos e de energia que encareceriam a produção brasileira frente à competição internacional. Na verdade, o “Custo Brasil” destacava os típicos problemas daquelas atividades comuns aos países primário-exportadores, onde cada tonelada produzida possui baixo valor agregado e que, por isso, necessita de formas de escoamento baratas. O tema foi discutido em jornais e esteve em discursos de representantes de entidades empresariais sem, contudo, oferecer um conceito, foco ou item claros. O anseio dos capitalistas se voltava para a redução de custos, compreensível frente à competição dos produtos estrangeiros. Não se aventava nessa narrativa, porém: a) o problema cambial, pois o dólar barato, do ponto de vista da empresa individual, reduzia o custo de insumos e máquinas; b) a integração subalterna do Brasil às cadeias globais de valor, com o país oferecendo produtos de baixo valor agregado e prováveis fábricas maquiladoras; e c) estratégias de desenvolvimento tecnológico e industrial para o país. Ou seja, a reivindicada redução do “Custo Brasil” não afetava obrigatoriamente a estratégia de empresarial dos capitalistas, mas certamente permitiria elevar os lucros.

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Cardoso e prosseguido no período Lula da Silva. Foram mudanças importantes, pois o preço da divisa internacional influenciou o comportamento da taxa de juros e, ambos, impactaram a expansão da economia e, portanto, os salários. Assim, as empresas se adaptaram, se reposicionaram e alteraram sua rede de fornecedores e, consequentemente, mudaram a composição e a densidade das cadeias produtivas. A mudança da densidade das cadeias, por sua vez, se refletiu na competitividade do país, continuando tendência observada desde os anos 1990 (LAPLANE; SARTI, 2004).

Logo, o freio macroeconômico, a incerteza sobre o comportamento fiscal do Governo Federal, o incerto reajuste de tarifas de energia, somados aos problemas criados pela valorização cambial e a adequação das empresas a essa realidade já de longo prazo, apontaram um horizonte onde a conjuntura negativa convergiu com a estrutura produtiva fragilizada, pouco capaz de multiplicar e, menos ainda, gerar impulsos positivos em investimento, ampliação e modernização do parque. De outro modo, as expectativas dos empresários se estiolaram, tanto para o curto, como para o longo prazo.

É interessante, portanto, perceber que o debate sobre a desindustrialização precoce no Brasil parece deslocado, levando alguns economistas a diagnosticarem os sintomas de Doença Holandesa em função do aumento das exportações de primários no início dos anos 2000. O problema, entretanto, afigura outro componente interno mais decisivo: o uso da taxa de câmbio como política econômica de controle inflacionário. Primeiro porque a valorização cambial é anterior aos superávits do balanço de pagamentos da primeira década deste século, remontando ao governo de Fernando Henrique Cardoso. Segundo, porque as reservas formadas no governo Lula da Silva não dependeram dos superávits comerciais e o dólar barato foi usado para repetir o controle inflacionário do governo anterior, diluindo os impactos dos aumentos dos rendimentos dos trabalhadores e do crescimento econômico. Não se tratou, deste modo, da abundância de recursos naturais causar problemas, mas da entrada de recursos na conta Capital e Financeira outorgar o uso da taxa de câmbio como meio para executar específica política de estabilização de preços que, irrecorrivelmente, traria custos elevados no longo prazo.

Outra questão merece ainda ser citada. Diante da longa fragilização da indústria de transformação nacional, marcadamente devido valorização cambial, a produtividade do país, que recuperou pontos na primeira fase do ciclo, não voltou a crescer após a crise internacional de 2008. E aqui duas causas se somam: primeiro, como já discutido, a baixa demanda efetiva do capital brasileiro e, segundo, o fato de os setores industriais mais dinâmicos serem liderados por transnacionais. Estas últimas decidem o nível tecnológico empregado no Brasil, levando em conta suas cadeias globais de valor e a lógica da competição oligopólica mundial. Logo, diante da crise internacional e da recuperação rápida do Brasil, o país se tornou importante fonte de lucros e elo relevante na readequação, no uso de ativos e reposicionamento nas cadeias de fornecedores para garantir a rentabilidade das matrizes. Isto é, não se tratou de elevar o investimento, a produtividade ou o valor agregado dos produtos, mas, sim, de, a partir de rearranjos, garantir, no curto prazo, taxas de rentabilidade para grupos econômicos atingidos pela crise mundial que afetou os principais mercados consumidores do globo.

Chama a atenção, todavia, que a salutar diversidade e o vínculo entre as unidades fabris do país, mesmo frente aos desafios descritos, revelou significativa resiliência em cada fase do ciclo econômico. Isso permite afirmar que a indústria brasileira, por seu tamanho, diferentes elos, níveis e complexidade, ainda é capaz de repercutir, principalmente a montante, a estímulos gerados por políticas que permitam aos empresários antever maior lucratividade em seu horizonte de planejamento.

4. Comentários finais

O cenário desenhado pelos números da economia brasileira mostraram que, se houve uma política decidida de retomada do crescimento econômico e de diminuição das desigualdades sociais, esta se fez sobre bases instáveis e sujeitas a intempéries não apenas internas − ao usar reservas

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cambiais para controlar a inflação − mas também externas, como demonstrou o período após o impacto da crise de 2008.

Nos anos entre 2003 e 2014, os avanços sociais alcançados legitimaram as decisões do Governo Federal, mas, por outro lado, o prolongamento do modelo de crescimento escolhido esgotou as possibilidades de o país sustentar o aumento da produção e da renda nacionais. Afinal, o principal motor de uma economia industrializada como a brasileira, o setor fabril, escolheu racionalmente utilizar cada vez mais bens importados em detrimento da produção nacional. O motivo, no entanto, não se amparou em alocações mais eficientes com maior produtividade, mas, sim, na constatação de que o insumo comprado no exterior era mais barato do que o fabricado em território nacional e a causa básica deste fenômeno estava na taxa de câmbio valorizada desde antes de 2003.

Diante disso, suspeita-se que as decisões do Governo Federal não observaram a gravidade da situação que se desenhava para a segunda metade da década de 2010. Havia, na primeira fase, clara incompatibilidade entre as políticas de estímulo à produção e à demanda interna e a intenção de utilizar a taxa de câmbio para evitar aceleração da inflação. Essa descoordenação de intervenções econômicas parece revelar, na verdade, que havia ausência de planejamento de longo prazo entre as autoridades da República. Já na segunda fase, quando a crise internacional expôs os problemas acumulados por quase duas décadas, a malfadada combinação entre políticas estruturais21 e contenção de preços enfrentou impasses. Havia reclamações sobre as taxas privadas de retorno de curto prazo, horizonte de planejamento nebuloso, inflação e fragilidade competitiva da estrutura produtiva nacional. Todos nós cuja gravidade era difícil desatar. Existia, porém, temas que iam além da economia e escalavam para a esfera política. A consequente desaceleração do crescimento da renda nacional caminhou pari passu com problemas de legitimidade do governo da época. De outro modo, o desafio para o segundo governo Dilma Rousseff era especialmente complexo e desafiador, dada a profundidade da armadilha em que a economia brasileira havia sido presa, essencialmente por decisões de mais de uma autoridade máxima do próprio Governo Federal.

O apontamento dos problemas, no entanto, longe de significar uma crítica apenas contra as decisões do Governo Federal, tenta chamar a atenção que a sociedade brasileira também se acomodou ao modelo e, por isso, não mostrou clareza sobre qual futuro antevia ou ambicionava. Isto é, o Brasil parecia não saber realmente se deseja se desenvolver, posto que isto implicasse em provável ascensão das classes subalternas ao consumo e aos direitos, reduzindo, de outra parcela da sociedade, privilégios e poder.

Hoje, parece claro que, apenas depois de resolvida ou superada esta escolha, o país poderá debater seu futuro e será capaz de construir seu projeto nacional. Até lá, provavelmente, o Brasil continuará patinando entre surtos de crescimento e crise, às vezes mais brandos, às vezes mais violentos, mas que repetirão as posições de classe ao final de cada ciclo, mantendo, ainda por um longo tempo, a estrutura social injusta, fortemente hierárquica e pouco democrática.

5. Referências bibliográficas

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BANCO CENTRAL DO BRASIL. Séries Temporais (Balanço de Pagamentos, Saldo da carteira de crédito em relação ao PIB, Taxas de câmbio real e efetiva, Meta Selic definida pelo

21 Desvalorização cambial, estímulo ao investimento em setores considerados chave, apoio à pesquisa e à ciência, entre outros.

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