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António Ramos António Ramos Rosa (1924-2013), uma vida dedicada à poesia Rosa (1924-2013), uma vida dedicada à poesia LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 23/09/2013 Autor de uma das obras poéticas mais extensas e marcantes da poesia portuguesa contemporânea, António Ramos Rosa morreu esta segunda- feira aos 88 anos. Funeral é na quarta-feira. Morreu esta segunda-feira em Lisboa, aos 88 anos, o poeta e ensaísta António Ramos Rosa, um dos nomes cimeiros da literatura portuguesa contemporânea, autor de quase uma centena de títulos, de O Grito Claro (1958), a sua célebre obra de estreia, até Em Torno do Imponderável, um belo livro de poemas breves publicado em 2012. Exemplo de uma entrega radical à escrita, como talvez não haja outro na poesia portuguesa contemporânea, Ramos Rosa morreu por volta das 13h30

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António Ramos RosaAntónio Ramos Rosa (1924-2013), uma vida(1924-2013), uma vida dedicada à poesiadedicada à poesiaLUÍS MIGUEL QUEIRÓS

23/09/2013Autor de uma das obras poéticas mais extensas e marcantes da poesia portuguesa contemporânea, António Ramos Rosa morreu esta segunda-feira aos 88 anos. Funeral é na quarta-feira.

Morreu esta segunda-feira em Lisboa, aos 88 anos, o poeta e ensaísta António Ramos Rosa, um dos nomes cimeiros da literatura portuguesa contemporânea, autor de quase uma centena de títulos, de O Grito Claro (1958), a sua célebre obra de estreia, até Em Torno do Imponderável, um belo livro de poemas breves publicado em 2012. Exemplo de uma entrega radical à escrita, como talvez não haja outro na poesia portuguesa contemporânea, Ramos Rosa morreu por volta das 13h30 desta segunda-feira, em consequência de uma infecção respiratória, em Lisboa, no Hospital Egas Moniz.

Além da sua vastíssima obra poética, escreveu livros de ensaios que marcaram sucessivas gerações de leitores de poesia, como Poesia, Liberdade Livre (1962) ou A Poesia Moderna e

a Interrogação do Real (1979), traduziu muitos poetas e prosadores estrangeiros, sobretudo de língua francesa, e organizou uma importante antologia de poetas portugueses contemporâneos (a quarta e última série das Líricas Portuguesas). Era ainda um dotado desenhador.

Prémio Pessoa em 1988, António Ramos Rosa, natural de Faro, recebeu ainda quase todos os mais relevantes prémios literários portugueses e vários prémios internacionais, quer como poeta, quer como tradutor.

Já muito fragilizado, o poeta, que estava hospitalizado desde quinta-feira, teve ainda forças para escrever esta manhã os nomes da sua mulher, a escritora Agripina Costa Marques, e da sua filha, Maria Filipe. E depois de Maria Filipe lhe ter sussurrado ao ouvido aquele que se tornou porventura o verso mais emblemático da sua obra — “Estou vivo e escrevo sol” —, o poeta, conta a filha, escreveu-o uma última vez, numa folha de papel.

Para Pedro Mexia, poeta e crítico, Ramos Rosa mostrou, nomeadamente através das revistas que dirigiu e da primeira fase da sua obra poética, “que era necessário superar a dicotomia fácil entre a poesia ‘social’ e a poesia ‘pura’, e que o trabalho sobre a linguagem não impedia o empenhamento cívico”. Como ensaísta, continua Mexia, Ramos Rosa esteve atento ao panorama europeu e mundial, de René Char a Roberto Juarroz, e aos autores portugueses das últimas décadas, incluindo os novos: “Descobri muitos poetas através de obras como Poesia, Liberdade Livre ou Incisões Oblíquas".

Autor "muitíssimo prolífico", "nunca se afastou do seu caminho pessoal, mesmo quando a abundância e a insistência numa 'poesia sobre a poesia' fizeram com que nos esquecêssemos da sua importância decisiva."

Uma unidade muito grandeO escritor e crítico Fernando Pinto do Amaral prefere eleger como "verdadeiramente singular" em Ramos Rosa “a atmosfera muito espacial que a sua poesia, ou melhor, os seus ciclos de poemas, são capazes de criar”. Atmosfera essa que resulta de uma “conjugação precisa de palavras”: “Isso vê-se muito bem em O Ciclo do Cavalo, de que gosto particularmente, e em Gravitações, onde se sente que há como que uma força cósmica que atrai e repele as palavras e a própria natureza”.

A ideia de respiração é, aliás, muito importante na obra deste autor, continua Pinto do Amaral, admitindo que não é fácil explicar o que dela emana, em parte porque passou por várias fases, “muito distintas”. É numa delas, mais realista, “ligada ao quotidiano e às suas burocracias”, que se insere um dos seus poemas mais conhecidos, O Boi da Paciência. “Ele, que também foi um funcionário de escritório, mostra aqui como pode ser monótona a vida e como é preciso combater a monotonia”: “Mas o homenzinho diário recomeça / no seu giro de desencontros/ A fadiga substituiu-lhe o coração”, escreve.

“Tudo está em tudo na poesia de Ramos Rosa”, “como no movimento constante de inspirar e expirar”, resume o escritor, defendendo que se trata de um poeta que precisará sempre de antologias: “Um jovem leitor que queira iniciar-se na sua poesia vai sentir-se muito facilmente perdido. Ele escreveu muito, publicou muito. Fazer antologias suas não é, no entanto, tarefa fácil, porque há uma unidade muito grande em cada livro, o que torna difícil escolher um poema em detrimento de outro”.

Obra lírica imensaNascido em Faro em 1924 — faria 89 anos a 17 de Outubro —, António Ramos Rosa frequentou ali o liceu, mas, por razões de saúde, não terminaria os estudos secundários. Uma escassez de estudos formais que a sua avidez de leitor não tardou a compensar largamente.

Trabalhou algum tempo como empregado de escritório — experiência que inspirou o célebre Poema de Um Funcionário Cansado, incluído no seu livro de estreia —, ao mesmo tempo

que dava explicações de português, inglês e francês e traduzia autores estrangeiros, primeiro para a Europa-América e depois para outras editoras.

Envolveu-se, logo após o final da segunda guerra, na oposição ao salazarismo, militando no MUD Juvenil e participando em manifestações. Nos anos 50 ajudou a fundar e coordenou várias revistas literárias, incluindo Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia, nas quais colaborou com textos de crítica literária e poemas.

Embora publicasse poemas em revistas desde o início dos anos 50, o seu primeiro livro só saiu em 1958, aos 34 anos. Mas a partir desta estreia algo tardia, nunca mais deixará de editar poesia a um ritmo impressionante.

Se O Grito Claro é ainda aproximável do neo-realismo, mesmo que já com tonalidades muito peculiares, a escrita de Ramos Rosa não tarda a destacar-se quer deste movimento, quer das inevitáveis influências do surrealismo, enveredando pelo caminho de uma poesia mais elementar, deliberadamente ancorada, sobretudo nos livros iniciais, numa certa rarefacção vocabular. Uma característica que, a par da própria extensão da obra, terá ajudado a gerar o equívoco de que esta seria uma poesia monocórdica. Nada mais falso. Sem detrimento da sua consistência enquanto obra, e mesmo essa talvez mais resultante da fidelidade a um percurso do que propriamente da reincidência de tópicos obsessivos (que também existe), a poesia de Ramos Rosa não só tem ciclos muito marcados como é mais variada, do ponto de vista formal e discursivo, do que se poderia pensar.

Bastante indiscutível é a importância de António Ramos Rosa, quer como poeta quer como crítico, para a evolução da poesia portuguesa (e do gosto dos respectivos leitores) ao longo dos anos 60 e no início da década seguinte. Na atenção à materialidade do texto, numa dimensão política que dispensava a explicitude do neo-realismo, no rigor construtivo, até numa certa contaminação filosófica, a poesia de Ramos Rosa tinha, nos anos 60, afinidades bastante óbvias com poetas como Carlos de Oliveira ou Gastão Cruz. No entanto, foi-se tornando nela cada vez mais insistente a procura de uma espécie de voz original que pudesse cantar o mundo ao mesmo tempo que o criava. E se durante algum tempo a sua poesia ainda inclui explicitamente, como um dos seus tópicos, o fracasso desse impossível retorno à origem, vai depois tornar-se, cada vez mais, um hino reconciliado e extasiado com a diversidade exultante do real, uma música que destaca a sensualidade das formas — de uma mulher, de uma planta, de um curso de água, do flanco de um cavalo, mas também das próprias palavras — ao mesmo tempo que ela própria contribui para erotizar o mundo.

Funeral na quarta-feiraLivros como O Ciclo do Cavalo (1975) ou Volante Verde (1986) costumam ser invocados, e com boas razões, como alguns dos momentos cimeiros desta imensa obra lírica. Mas há obras recentes que tiveram pouco eco crítico e são notáveis, como o criativo Nomes de Ninguém (1997), cujos poemas partem todos de nomes próprios inventados, ou Deambulações Oblíquas (2001), onde encontrámos um inesperado Ramos Rosa a ironizar com o modo como foi sendo lido: "Alguns dizem que eu escrevo de mais/ como se tivesse escrito alguma coisa/ Não, todas as minhas inscrições foram acenos/ a algo que nunca atingi/ e que era a única coisa que eu desejava dizer".

Segundo informação da família, o corpo do poeta será velado terça-feira a partir das 18h30, na Capela do Rato, em Lisboa, estando prevista para as 21h30 uma celebração pelo padre e poeta José Tolentino Mendonça. O funeral parte na quarta-feira de manhã, pelas 10h30, para o Cemitério dos Prazeres, onde será sepultado no Jazigo dos Escritores. com Isabel Salema e Lucinda Canelashttp://www.publico.pt/cultura/noticia/morreu-antonio-ramos-rosa-1606787#/0

24/09/2013

Alguns poemas de António Ramos RosaAlguns poemas de António Ramos Rosa

António Ramos Rosa e os livros, fotografado em 2004 DAVID CLIFFORD/ARQUIVO

António Ramos Rosa publicou perto de uma centena de livros de poesia. Aqui fica uma brevíssima escolha de alguns poemas seus de diferentes épocas, terminando com um texto do livro inédito Música, Contínua Cordilheira, que teve a sua primeira edição no PÚBLICO, a 3 de Março de 2012.

[Não posso adiar o amor para outro século]Não posso adiar o amor para outro séculonão possoainda que o grito sufoque na gargantaainda que o ódio estale e crepite e ardasob montanhas cinzentase montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraçoque é uma arma de dois gumesamor e ódio

Não posso adiarainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demorenão posso adiar para outro século a minha vidanem o meu amornem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

O Grito Claro, 1958

[Mas agora estou no intervalo em que]Mas agora estou no intervalo em quetoda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.Escrevo para não viver sem espaço,para que o corpo não morra na sombra fria.

Sou a pobreza ilimitada de uma página.Sou um campo abandonado. A margemsem respiração.

Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabea ciência certa da navegação no espaço,o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,o corpo pode vencer a fria sombra do dia.

Todas as palavras se iluminamao lume certo do corpo que se despe,todas as palavras ficam nuasna tua sombra ardente.

A Construção do Corpo, 1969

[Viste o cavalo varado a uma varanda?]Viste o cavalo varado a uma varanda?Era verde, azul e negro e sobretudo negro.Sem assombro, vivo da cor, arco-irís quase.E o aroma do estábulo penetrando a noite.

Do outro lado da margem ascendia outro astrocomo uma lua nua ou como um sol suavee o cavalo varado abria a noite inteiraao aroma de Junho, aos cravos e aos dentes.

Uma língua de sabor para ficar na sombrade todo um verão feliz e de uma sombra de água.Viste o cavalo varado e toda a noite ouvisteo tambor do silêncio marcar a tua força

e tudo em ti jazia na noite do cavalo.

Ciclo do Cavalo, 1975

Sem segredo algumRodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,vagueio dentro das tuas formas nebulosas.Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.

A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de águaou és o fogo azul das casas silenciosas?Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nadaou és a evidência rápida, inacessível,que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.

O que és não és, não há segredo algum.Selvagem e suave, entre miséria e música,o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.Estou no interior da árvore, entre negros insectos.Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.

Volante Verde, 1986

A Festa do SilêncioEscuto na palavra a festa do silêncio.Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.Concentram-se, dilatam-se de ondas silenciosas.É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,o ar prolonga. A brancura é o caminho.Surpresa e não surpresa: a simples respiração.Relações, variações, nada mais. Nada se cria.Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.É aqui a abóbada transparente, o vento principia.No centro do dia há uma fonte de água clara.Se digo árvore a árvore em mim respira.Vivo na delícia nua da inocência aberta.

Volante Verde, 1986

[Apreender com as palavras a substância mais nocturna]Apreender com as palavras a substância mais nocturnaé o mesmo que povoar o desertocom a própria substância do desertoHá que voltar atrás e viver a sombraenquanto a palavra não existeou enquanto ela é um poço ou um coágulo do tempoou um cântaro voltado para a sua própria sedeTalvez então no opaco encontremos a vértebra inicialpara que possamos coincidir com um gesto do universoe ser a culminação da densidadeSó assim as palavras serão o fruto da sombrae já não do espelho ou de torres de fumoe como antenas de fogo nas gretas do olvidoserão inicialmente matéria fiel à matéria

O Livro da Ignorância, 1988

Agrípia

Agrípia, foi a partir de ti que eu renascina luminosa corola de um sorrisoe os meus navios cinzentos e perdidosseguiram a bondade do teu rumo.Esta casa não seria a minha casase não fosse a tua branca arquitecturae o teu hálito límpido que me guardanas suas tranquilas coordenadas.Por ti o horizonte está em casae nele eu vivo contigo a onduladapermanência da alma iluminada.

Nomes de Ninguém, 1997

[Talvez a minha vocação não seja esta]Talvez a minha vocação não seja estaou seja esta por ter perdido o espaço que nunca tiveEra algo selvagem algo violentamente vivoo espaço na sua integridade deslumbranteo mar na sua plenitude de felina substânciaas ilhas de ouro verde as ilhas solaresas grandes pradarias com os seus cavalos vagarosos e tranquilosa liberdade de ser o fogo com as suas veias indolentesSim eu perdi todo esse espaço que nunca tivee se escrevo é para inventar um espaço a partir desta perdana ficção de respirar o que há de mais selvagem e mais nucomo se estivesse entre escarpas verdes inundado pela espumaou como se estivesse no esplendor do deserto à hora do meio-diaMas o que faço não é mais do que um trabalho de insectoque perfura a cal e as páginas dos livrospara traçar a sua caligrafia insignificantena nulidade de uma matéria árida e anónima

Deambulações Oblíquas, 2001

[Vivi tanto]Vivi tantoque já não tenho outra noçãode eternidadeque não seja a duração da minha vida

Em Torno do Imponderável, 2012

http://www.publico.pt/cultura/noticia/alguns-poemas-de-antonio-ramos-rosa-1606857