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1 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO WILLIAM BEZERRA FIGUEIREDO TEIA METAFÓRICA: A POÉTICA DA NARRAÇÃO E O ETHOS XAMÂNICO NO MEIO URBANO São Bernardo do Campo 2018

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E

HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA

RELIGIÃO

WILLIAM BEZERRA FIGUEIREDO

TEIA METAFÓRICA: A POÉTICA DA NARRAÇÃO E O

ETHOS XAMÂNICO NO MEIO URBANO

São Bernardo do Campo

2018

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WILLIAM BEZERRA FIGUEIREDO

TEIA METAFÓRICA: A POÉTICA DA NARRAÇÃO E O

ETHOS XAMÂNICO NO MEIO URBANO

Tese apresentada em cumprimento às exigências do

Programa de Pós-Graduação em Ciências da

Religião, para obtenção do grau de Doutor.

Orientador: Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

São Bernardo do Campo

2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

F469t

Figueiredo, William Bezerra

Teia metafórica: a poética da narração e o ethos xamânico no meio urbano /

William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018.

267 fl.

Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São

Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo.

Bibliografia

Orientação de: Rui de Souza Josgrilberg

1. Religião – Fenomenologia 2. Hermenêutica filosófica 3. Xamanismo

4. Ricouer, Paul – Critica e interpretação I. Título

CDD 121.686

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A tese de doutorado intitulada: ―TEIA METAFÓRICA: A POÉTICA DA NARRAÇÃO E O

ETHOS XAMÂNICO NO MEIO URBANO‖, elaborada por William Bezerra Figueiredo, foi

apresentada e aprovada em 13 de Março de 2018, perante banca examinadora composta por

Prof. Dr. José Ademar Kaefer (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Helmut Renders (UMESP),

Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth (UMESP), prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UEPA) e Prof. Dr.

Manoel Ribeiro Moraes (UEPA).

__________________________________________

Profº. Dr. José Ademar Kaefer

Presidente da Banca Examinadora

________________________________________

Profº. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Linguagens da Religião

Linha de Pesquisa: Teologias das Religiões e Cultura

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Dedico este trabalho ao meu Pai (em memória)

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Rui de Souza Josgrilberg, por ter me iniciado à fenomenologia,

por sua competência e confiança, as quais me possibilitaram a conclusão deste trabalho,

Gratidão.

Às minhas amigas e aos colegas de curso.

Aos Professores da Pós-Graduação em Ciências da Religião.

Aos mestres que me iniciaram no caminho do Xamanismo: Ramiro Ponce, Wyanã Uia

Thé, Maestro Fermin, Junior Patta, Leo Artese, Sthan Xannia, Luiz Canê Mingue Guaiana,

Aos Guarani, os Fulni-ô, Maestra Ivonne D'albora (Em memória) .

Ao meu grande amigo Vitor Chaves, por sua contribuição nas leituras e traduções de

Ricoeur. E à Rita de Cassia S. Luckner pela revisão exemplar.

Ao querido Tommy Akira Goto por contribuir com a pesquisa, assim como ao Tarik

Ganizev Jimenez e o Marcelo Marques.

Ao amigo Gustavo Alvarenga Oliveira Santos pelo incentivo às leituras decoloniais.

Por fim, ao meu irmão Vagner Bezerra Figueiredo e minha Mãe.

E agradeço também a minha esposa Maria e nossos filhos Isis e Kauã.

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Carta 6 de arcos: jornadas inesperadas. 1

“La temporalité ne se laisse pas dire dans le discours direct d'une phénoménologie, mais

requiert la médiation du discurs indirect de la narration2”

(Paul Ricoeur).

1 Shaman Tarot da Editora Lo Scarabeo – carta 6 de arcos : jornadas inesperadas.

Fonte: <http://shop.loscarabeo.com/index.php?id_product=108&controller=product&id_lang=3>

2 ―A temporalidade não se permite dizer em um discurso fenomenológico direto, requer a mediação do discurso

indireto da narrativa‖.

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Figueiredo, William Bezerra. Teia metafórica: a poética da narração e o ethos xamânico no

meio urbano / William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018. 267 fl. Tese

(Doutorado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo - Escola de

Comunicação, Educação e Humanidades Programa de Pós-Graduação em Ciências da

Religião São Bernardo do Campo, 2018.

RESUMO

Os grupos de Neoxamanismo urbano se multiplicam a cada dia. Nossa tese é que esses grupos

produzem sua própria narrativa, desde o universo do xamanismo indígena até religiões

diversas, por meio de hibridismo discursivo produzido em visões místicas religiosas e

arranjos sócio-culturais. A partir da experiência de constituição de modos narrativos, esses

grupos criam um conjunto híbrido de manifestações, num ato poiético (produtivo e criativo),

o que determina por sua vez o Neoxamanismo urbano como um novo movimento religioso.

Essas narrativas visionárias de grande intensidade e mobilização do ser, estruturalmente,

transfiguram a realidade imediata e possibilitam uma alternativa ao pensamento cotidiano por

meio do processo de redescrição da vida, explicitanto as condições de possibilidade do

fenômeno religioso em si. Esta pesquisa contribui para a compreesão de como a identidade

narrativa garante a aquisição de espaços de constituição da vontade numa relação criativa com

as narrativas mencionadas. A partir dos estudos de Paul Ricoeur, verifica-se que para a

superação da finitude em busca do homem capaz, o ser humano recria os modos de ser. Em

virtude de uma ―cura pessoal‖, se encontra o redimensionamento do mundo em outros

mundos através de uma teia metafórica facilitada pelas narrativas curativas. Este estudo

utiliza-se da fenomenologia hermenêutica, leituras antropológicas, psicologia etc., na medida

em que tais narrativas determinam eixos essenciais para as percepções dos fenômenos que

formam a nova realidade, e determinam a aquisição de práticas comunitárias. Existem

possíveis que são alcançados por intermédio dessas transfigurações diversas, nesse contexto,

provoca-se uma mudança de paradigma, tanto epistemológico como ético, a partir do

contraste e vivência com o pensamento nativo.

Palavras-chave: Fenomenologia Hermenêutica; Paul Ricoeur; Narratividade Visionária;

Poética da Vontade; Neoxamanismo urbano.

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Figueiredo, William Bezerra. Metaphorical web: the poetics of narration and the shamanic

ethos in the urban environment/ William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018.

267 fl. Thesis (Doctorate in Religion Sciences) - Methodist University of São Paulo - School

of Communication, Education and Humanities Postgraduate Program in Religion Sciences

São Bernardo do Campo, 2018.

ABSTRACT

The Neoshamanism groups are multiplying each day. Our thesis is that these groups produce

their narratives, since the Shamanism universe until to the different religions, through the

discursive hybridism produced in religious mystic visions and socio-cultural arrangements.

From the experience of constitution of narrative modes, these groups criate a hybrid set of

manifestations, in a poietic act (produtive and criative), what stablishes the Urban

Neoshamanism as a new religious moviment. These visionary narratives of high intensity and

mobilization of being, structurally, transfigure the immediate reality and alow an alternative

to the daily thinking through the redescription process of life, explaining conditions of

possibility of the religious phenomenon itself. This research contributes to the comprehetion

of de way the narrative identity ensures acquisitions of the spaces of constitution of will in a

criative relation with the mentioned narratives. From the Paul Ricouer‘s studies, it is verified

to achieve the overcoming of the finitude in search of the capable man, the human being

recreates the ways of being. As a result of a ―personal cure‖, it finds the resizing of world to

others worlds through of a web metaphors facilitated by the healing narratives. This study

uses the hermeneutic fenomenology, antropologic readings, psychology etc., in sofar as those

narratives stablish essential points to the perceptions of the phenomena that form the new

reality, and determine the acquisition of community practices. There are possibles tha are

achieve from this diferent transfigurations, in this context it causes a change of paradigma,

both epistemologic as such ethical, from the contrasct and experience with the native thinking.

Key words: Hermeneutic Phenomenology; Paul Ricoeur; Visionary Narrative; Poetic of will;

Urban Neoshamanism.

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Figueiredo, William Bezerra. Réseau métaphorique: la poétique de la narration et l'ethos

chamanique en milieu urbain / William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018.

267 fl. Thèse (Doctorat en sciences des religions) - Université méthodiste de São Paulo -

École de communication, d'éducation et de sciences humaines Programme de troisième cycle

en sciences des religions São Bernardo do Campo, 2018.

RÉSUMÉ

Les groupes de Neochamanisme urbain se multiplient chaque jour. Notre thèse est que ces

groupes produisent leur propre narrative, de l'univers du chamanisme indigène aux religions

diverses, en passant par l'hybride discursif produit dans des visions mystiques religieuses et

des arrangements socioculturels. De l'expérience de la constitution des modes narratifs, ces

groupes créent un ensemble hybride de manifestations, dans un acte poétique (productif et

créatif), qui à son tour, détermine le Neochamanisme urbain comme un nouveau mouvement

religieux. Ces narratives visionnaires de grande intensité et de mobilisation de l'être,

transfigurent structurellement la réalité immédiate et permettent une alternative à la pensée

quotidienne à travers le processus de redescription de la vie, explicitant les conditions de

possibilité du phénomène religieux en soi. Cette recherche contribue à la compréhension de la

façon dont l'identité narrative garantit l'acquisition d'espaces de constitution de la volonté

dans une relation créative avec les récits mentionnés. Des études de Paul Ricœur, on vérifie

que pour le dépassement de la finitude à la recherche de l'homme capable, l'être humain

recrée les manières d'être. En vertu d'un "remède personnel" se trouve le redimensionnement

du monde dans d'autres mondes à travers un réseau métaphorique facilité par les narrative.

Cette étude utilise la phénoménologie herméneutique, les lectures anthropologiques, la

psychologie, etc., dans la mesure où ces narratives déterminent des axes essentiels pour la

perception des phénomènes qui forment la nouvelle réalité et déterminent l'acquisition des

pratiques communautaires. Il y a des possibles qui sont atteints à travers ces diverses

transfigurations, dans ce contexte, un changement de paradigme, à la fois épistémologique et

éthique, est provoqué par le contraste et l'expérience avec la pensée indigène.

Mots-clés: Phénoménologie Herméneutique; Paul Riceour; Narrativité et métaphore;

Poétique de la volonté; Néochamanisme urbain.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: Jehua Supai – Espiritus Sublimes .......................................................... 35

FIGURA 2: Em conexão com os curadores no tempo e espaço................................ 42

FIGURA 3: Feiticeiro Dançador ................................................................................. 69

FIGURA 4: Homem Leão ............................................................................................. 70

FIGURA 5: Neoxamanismo urbano: desaceleração do tempo ............................... 123

FIGURA 6: Avaliação Energética Xamânica .......................................................... 154

FIGURA 7: Jornada de Cura Nativa VIII ............................................................... 155

FIGURA 8: Cerimônia Indígena Guarani ............................................................... 175

FIGURA 9: Opydjere (casa de rezar redonda, ou circular) .................................... 177

FIGURA 10: Animal de poder .................................................................................. 181

FIGURA 11: Cartas Xamânicas ................................................................................ 181

FIGURA 12: América Invertida ............................................................................... 241

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Sumário

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 15

1 CAPÍTULO 1: APORIAS DA TEMPORALIDADE NAS NARRATIVAS

VISIONÁRIAS ............................................................................................................. 35

1.1 Introdução ............................................................................................................... 35

1.2 Tempo do ponto de vista fenomenológico ............................................................ 39

1.3 A temporalidade xamânica e as narrativas visionárias ...................................... 41

1.3.1 Normal, patológico ou visionário? ..................................................................... 45

1.3.2 Categorias visionárias e cultura material .......................................................... 47

1.3.3 Narratividade das visões xamânicas .................................................................. 50

1.4 Visão narrativa e narrativa visionária como etapas narrativas da jornada xamânica

........................................................................................................................................ 53

1.5 Fenomenologia da origem da visão extática ......................................................... 61

2 CAPÍTULO 2: MYTHOS XAMÂNICOS, TIPOLOGIAS, TÉCNICAS E AS

NARRATIVAS ORIGINÁRIAS NA HERMENEUTICA ELIADIANA ................ 64

2.1 O Xamanismo Stricto Sensu ................................................................................... 66

2.1.1 Religião e Xamanismo ......................................................................................... 69

2.1.2 Xamanismo e Psicopatologia .............................................................................. 72

2.1.3 Doente escolhido: do profano ao sagrado .......................................................... 74

2.2 Conceito xamânico de doença ................................................................................ 76

2.2.1 O resgate da alma ................................................................................................ 78

2.2.2 Sonhos e Visões .................................................................................................... 81

2.2.3 Treinamento tradicional ..................................................................................... 84

2.3 Espíritos auxiliares – Animais de poder ............................................................... 89

2.4 Cerimônia iniciática ............................................................................................... 91

2.5 A subida pelo arco-íris – subida aos céus e descida aos infernos ....................... 92

2.6 Os usos das endumentárias xamânicas ................................................................. 95

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2.6.1 A roupa como hierofania .................................................................................... 95

2.6.2 O esqueleto ........................................................................................................... 97

2.6.3 O uso das máscaras e pinturas ........................................................................... 99

2.6.4 O palhaço ............................................................................................................ 101

2.6.5 Tambores e maracás .......................................................................................... 103

3 CAPÍTULO 3: MIMESIS – CONFIGURAÇÕES URBANAS DO NEOXAMANISMO

URBANO ..................................................................................................................... 107

3.1 As novas religiões na atualidade ......................................................................... 109

3.2 Xamanismo, Xamanismos e Neoxamanismo urbano ........................................ 112

3.2.1 Alguns antecedentes .......................................................................................... 115

3.2.2 A multiplicidade do discurso no meio urbano ................................................ 117

3.2.3 Tempos modernos & Neoxamanismo urbano ................................................. 123

3.3 O Neoxamanismo urbano como religiosidade autônoma ................................. 125

3.3.1 O Neoxamanismo: Um estudo no campo religioso ......................................... 127

3.3.2 Neoxamanismo e suas categorias ..................................................................... 130

3.3.3 Autorreferência e formação .............................................................................. 133

3.4 Discurso neoxamânico e literatura ...................................................................... 137

3.4.1 Recepção e discurso histórico ........................................................................... 141

4 CAPÍTULO 4: MYTHOS NEOXAMÂNICOS E MIMESIS: intersecções críticas do

Xamanismo indígena no discurso do Neoxamanismo urbano ................................ 149

4.1 Discurso e campo semântico do Neoxamânico urbano ..................................... 149

4.1.1 Discurso alternativo ........................................................................................... 151

4.2 Narratividade e memória ..................................................................................... 156

4.2.1 As políticas de memória .................................................................................... 162

4.3 Mundo urbano e mundo xamânico – Intersecções de sentido .......................... 169

4.3.1 Sentido e a tarefa da interpretação metafórica ............................................. 169

4.3.2 A Temazcal Guarani e a metáfora material e linguística: um caso de

Neoxamanismo urbano e indígena ............................................................................ 172

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4.4 Teia metafórica: traduções discursivas e leituras urbanas do mythos ............. 178

4.4.1 Mente indígena e concurso xamânico ............................................................. 184

4.4.2 Pensamento índio e memória crítica ............................................................... 185

4.4.3 Horizontes de sentido indígena ........................................................................ 191

4.4.4 Concurso xamânico .......................................................................................... 196

5 CAPÍTULO 5: NARRATIVA COMO CATHARSIS, ETHOS E PHRONESIS NO

NEOXAMANISMO URBANO ................................................................................. 200

5.1 A poética xamânica ............................................................................................... 203

5.2 Narrativas curativas existenciais ......................................................................... 207

5.3 Ser-alguém e mero-estar: considerações acerca do ethos ................................. 210

5.3.1 A falha ontológica e memória crítica .............................................................. 214

5.3.2 Percurso da memória e do homem capaz ........................................................ 216

5.3.3 Reversão: o pensamento ameríndio ................................................................. 221

5.3.4 Mixotrofia e Fagocitação................................................................................... 227

5.4 A Phronesis e a fundamentação de um epistimologia decolonial .................... 230

5.4.1 O paradigma decolonial ................................................................................... 234

5.4.2 Bem viver, Teko Porã e Sumak Kawsay ........................................................... 237

5.4.3 Abya Yala e a hermenêutica pluritópica ......................................................... 240

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 247

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 255

ANEXO: Lista de nomes dos participantes do Xamasconet 2015-2017 e seus respectivos

temas ............................................................................................................................ 265

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INTRODUÇÃO

O Neoxamanismo urbano, apesar de representar um fenômeno bastante sedimentado

no âmbito urbano, trata-se de um tema pouco investigado, principalmente acerca dos estudos

dos fenômenos religiosos contemporâneos urbanos não cristãos e para a discussão da relação

entre religiões indígenas originárias e religiões contemporâneas. A hipótese deste trabalho

trata do como se constrói esse discurso neoxamânico pelo próprio sujeito através das

narrativas visionárias. Para tanto buscamos uma metodologia de como se interpreta uma

narrativa neoxamânica. Defende-se a ideia que a metáfora continuada pode ser aplicada para

identificar nuanças de uma manifestação, descrever o processo da sua formação e identificar

sua originalidade.

Narrativa e sujeito se articulam neste estudo; a memória e a sedimentação da história

pessoal estruturam tomadas de decisão. A temporalidade, como um dos campos de atuação

dessas essências, não é um fluir sem contornos, a narrativa dá esse contorno, nesse contexto a

narratividade é o centro do debate, em suas diversas modalidades, como Identidade Narrativa

e Metáfora, são elementos constituintes de sentido no Neoxamanismo urbano, a Ipseidade, e a

ulterior narrativa como Éthos.

O papel criativo do participante como filtro, tradutor ou mediador entre as tradições

herdadas, as visões recebidas e as realidades encontradas, retroalimentam a constituição da

manifestação religiosa.

A narrativa fundamenta o elo entre sujeito e fenômeno religioso, e, portanto, dedica-se

o primeiro capítulo desta tese para discutir o entendimento da relação ontológica entre

narrativa e temporalidade. O ponto forte desse processo é a busca e compreensividade dos

modos narrativos que permeiam todo o texto como diversidade de olhares e epistemologias.

Para tanto, emprega-se a tipologia dos modos narrativos, buscando ampliar, no último

momento, o discurso através de metodologias decoloniais e pensamento indígena. Por uma

questão de método, ao avançar nas pesquisas realizadas por Ricoeur, e seus continuadores,

neste caso, Richard Kearney, foram adotadas tipologias próprias do léxico desses autores,

mantendo-se um diálogo.

Kearney faz um estudo sobre os modos narrativos aristotélicos (KEARNEY, 2012), e

sua progressão é de fato muito conclusiva para aplicar ao que foi observado no fenômeno do

Neoxamanismo urbano. Há obviamente leituras possíveis que, acredita-se, levariam a outras

leituras hermeneuticas, porém pelo referencial teórico que embasa esta pesquisa, o modelo

compreensivo se mostrou muito produtivo e possível de ser aplicado em outros fenômenos,

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abrindo campo para estudos futuros de análise narrativa de fenômenos religiosos, a partir da

metodologia ricoeuriana.

Observa-se que os mythos antigos se formavam a partir de situações similares ao que

descrevemos nestes capítulos, todo processo de intersecção de discursos sempre ocorreu ao

longo da história, assim como no Neoxamanismo urbano, os mitos antigos também bebiam

em práticas anteriores, e assim por diante. Abordamos neste caso o Xamanismo clássico não

como um fenômeno que existiu no passado e que hoje é inspiração aos novos movimentos,

pelo contrário, o Xamanismo indígena é vivo, em centenas de comunidades e ainda é fruto de

estudos, constantemente, e chegando a novas conclusões. O modelo de Xamanismo, que se

adota aqui, é o do Xamanismo como discurso e não a prática étnica em si. O modelo

apresentado por Mircea Eliade é estruturado a partir da metodologia fenomenológica e

hermenêutica, o que favoreceu uma aproximação teórica e a empregabilidade conceitual.

Nesse sentido, buscou-se tanto a leitura de mundo Eliadiana, e suas tipologias morfológicas,

como também as leituras posteriores de autores como Michael Harner, que relê o autor e

introduz novos discursos em uma literatura Neoxamânica.

Outro ponto relevante de ser levantado é que Xamanismo urbano sempre houve, nas

diversas cidades nas Américas, principalmente na América Latina (URQUIDI, 2008), nas

comunidades de língua quéchua e aimará, no Peru, Bolívia, Equador etc. A função do xamã

urbano é bem comum nessas comunidades, em que a população indígena é proporcionalmente

grande, muito diferente de quando se identifica uma prática de Neoxamanismo urbano em

países fora do continente, por exemplo, conduzido por um não índio. ―Em alguns países como

a Guatemala, a Bolívia, o Peru e o Equador, a população indígena equivale, e pode até

superar, à dos indivíduos não indígenas. Em outros, a superfície habitada por comunidades

indígenas é considerada proporcionalmente superior à ocupada pelo resto da sociedade‖

(URQUIDI et al., 2008, p. 200). Poderia-se conjecturar como seria a prática no império Inca e

suas relações com outras religiões no continente, e o contato com as diversas comunidades

que compunham o império, ou os Astecas e Maias em suas cidades, mas seriam apenas

conjecturas.

A riqueza do método se encontra no aplicar o conceito de configuração da Mimesis

narrativa em diversos casos e, por isso, ópta-se pelo modelo, utilizando termos no formato

clássico, como Mythos, Mimesis, Catharsys, Phronesis e Éthos. O Neoxamanismo urbano,

com sua riqueza de configurações urbanas, de saberes indígenas entre não índios, realiza

rearranjos e redescrições com os métodos do xamanismo indígena empregado pelos não

índios. Os resultados desta interação são revelados pela aplicação metodológica da análise da

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narratividade, do emprego da metáfora continuada, e os desdobramentos destas perspectivas

teóricas.

Algumas questões suscitam-se desta leitura: ―Qual Xamanismo urbano? De qual país?

Localidade?‖ Procura-se ao longo do texto mostrar a teoria de uma definição do

Neoxamanismo Urbano. Pode-se empregar uma primeira definição, encontrada na

Encyclopedia of Latin American Religions3:

O neoxamanismo é um conjunto de discursos e práticas que envolvem a

integração de técnicas xamãs e psicoterapêuticas indígenas (especialmente

americanas) por pessoas de contextos urbanos e ocidentais. Ele surgiu, como

outros modos de espiritualidade da Nova Era, em oposição ao materialismo e

ao positivismo da modernidade europeia e apresenta como central a ideia de

reconectar o conhecimento ancestral pan-indígena que as pessoas do

Ocidente haviam esquecido. Isso resulta em grande medida pela circulação

da literatura sobre o Xamanismo, estados de consciência alterados (muitas

vezes, mas nem sempre, envolvendo o uso de drogas psicoativas) e a

possibilidade de gerar novas modalidades psicoterapêuticas (SCURO, 2014,

p.1).

Esta e outras definições de Neoxamanismo ou Xamanismo Urbano é utilizado por

alguns autores (HARNER 1980, JANE ATKINSON 1992, SERGE KING 2010, LANGDON

1996 e 2014, MAGNANI 1999 e 2005, JUAN SCURO 2014 e 2016), e ao longo da pesquisa

indicam-se definições de Neoxamanismo indígena, entre o Guarani, por exemplo. Acredita-se

que cada uma dessas definições pode ajudar a estudar o fenômeno por um determinado ponto

de vista. E propõe uma definição em contrapartida, de acordo com as observações realizadas.

O emprego do Neoxamanismo em estudos antropológicos para designar uma forma de

sincretismo ou hibridismo na cultura indígena pode gerar confusão ao leitor, que buscar mais

informações sobre a abordagem aqui apresentada, no que se refere à prática do não índio. Por

outro lado o uso de Xamanismo Urbano também pode causar certa desorientação, visto que

existem grupos indígenas tradicionais vivendo nas metrópoles pelo país, e todos praticam seu

Xamanismo, no meio urbano. Então, como definir o objeto desta pesquisa? Para tanto,

propõe-se a junção de ambos os termos, para designar o Neoxamanismo que ocorre no meio

urbano.

Podería-se dizer Neoxamanismo do ―homem ocidental‖, afinal o Neoxamanismo

urbano, é em sua totalidade uma prática do não índio. Exatamente esta relação entre índio e

não índio que determina a intriga da narrativa, a trama nas relações de visão de mundo, e

3 SCURO, Juan; RODD, Robin. Neo-Shamanism. Encyclopedia of Latin American Religions, p. 1-6, 2014.

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como são articuladas. Elegeu-se, portanto, pelo termo urbano, para designar não índio. O que

não quer dizer uma antinomia com o meio rural, mas uma tentativa de manter um lastro

teórico com os termos usados em diversas publicações desde a década de 1980. O termo

urbano é aqui requerido como sinônimo de não índio, falante de língua europeia ou anglófono

e que não foi criado dentro de comunidades ou reservas indígenas.

Define-se, por conseguinte, quem é o sujeito da ação no nosso texto. Além disso, esse

sujeito urbano não índio estrutura esta prática ao longo de três décadas aqui no Brasil.

Formando uma religiosidade própria, autônoma, que tem expandindo muito nos últimos dez

anos, se destacando de outros campos de referência, como a New Age, por exemplo, que lhe

foi incubadora.

Nesse sentido é um Neoxamanismo, utilizando o prefixo neo para designar um novo

movimento religioso. Pelo acréscimo do prefixo ―neo‖, pretendeu-se expressar algumas

ênfases que os grupos identificados como Neoxamanismo Urbano, em geral, fazem uso:

abandono da relação com a hierarquia e iniciação tradicional indígena, valorização dos

saberes da cultura ocidental, utilização de gestão liberal, terapêutica, e comercial; ênfase na

saúde e bem-estar e também discurso de prosperidade material; utilização da rede social para

o trabalho de divulgação, propaganda religiosa e tratamento virtual à distância (aos modos das

cyber churches) e centralidade na promoção de narrativas visionárias em temáticas indígenas,

sobretudo hibridismo com as religiões afro-brasileiras, hinduísta e o Espiritismo. Promovendo

uma desterritorialização dos temas e técnicas do xamanismo indígena para o campo

discursivo e na vida cotidiana das cidades.

Diz-se, portanto, que o Neoxamanismo urbano é uma prática religiosa, híbrida,

polimórfica, polissêmica, que se inspira e apropria dos modos de ser indígena, ou de

religiosidades ancestrais, de suas técnicas de expansão de consciência para aquisição de

narrativas visionárias que visam o empoderamento simbólico do sujeito não índio.

Quando se trata da formação desse movimento, utiliza-se o termo hibridismo para

designar a reciprocidade semântica e criativa de constituição de discursos geograficamente

sedimentados nas metrópoles, e por se tratar de bricolagens transculturais. O modo de

constituição do discurso neoxamânico obedece às normativas do que foi designado nos

estudos culturais como discursos de fronteira e de identidade. O sujeito que busca estes

nichos urbanos para praticar o Neoxamanismo urbano está constituindo uma identidade

narrativa híbrida, e pluritópica, o que será abordado nos capítulos seguintes. Segundo Rogério

Haesbaert:

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Quando falamos de um processo de ―hibridismo cultural‖ como marca maior

da globalização contemporânea ou então, ao contrário, de essencialização

identitária por parte de grupos fundamentalistas, temos que tomar muito

cuidado. É preciso historicizar/geografizar melhor nossa concepção de

hibridismo – ou de hibridização, para valorizá-lo mais enquanto processo – e

reconhecer, sobretudo, os diferentes sujeitos que o produzem e os contextos

geopolíticos em que ele se realiza e em que circula o seu debate, um pouco

como nas ―geometrias de poder‖ propostas por Massey (1994) para

complexificar as relações em que se produz a ―compressão espaço-tempo‖ e

as acessibilidades/velocidades do nosso tempo (HASBAERT, 2012, p. 30).

Tratamos, aqui, por sua vez, do híbrido como discurso e campo semântico, e menos

como utilizado nas teorias culturais como mestiçagem, migração, sincretismo etc. Pois

identificamos o fenômeno religioso, neste caso, como uma construção de identidade narrativa,

não coletiva no primeiro momento, em que tais hibridizações se formam nos sujeitos e depois

encontram formas de prática comunitária. Hibridismos culturais tem relação forte com a

territorialidade, e com os indivíduos que carregam a cultura para outra localidade e tendem a

amalgamar-se com os símbolos e modos culturais locais, buscando introduzir suas práticas de

origem com o mínimo de perdas possível, o território e a identidade tem uma relação

intrínseca.

Tem-se, consequentemente, uma sobreposição de entendimentos conceituais, e usos do

termo, os hibridismos ocorrem aqui como uma intersecção de discursos, mas, não se abdica de

identificar o Neoxamanismo urbano como um movimento maior e culturalmente provedor de

sentido, inclusive, quando se trata do caso de intersecções de discurso com a comunidade

Guarani, ou outras etnias, em que o contato com o Neoxamanismo urbano promove

sincretismos inovadores e desterritorialidades desde o meio urbano às reservas indígenas.

Quando citado, o Neoxamanismo urbano é intermezzo, e com isso oferece uma porta

de entrada para o mundo indígena, os indígenas também vêm abrindo a entrada à aldeia, e o

não índio está buscando cada vez mais o contato com estas comunidades, como comenta um

pajé (COUTINHO, 2016) Huni Kuin durante uma cerimônia:

Estamos reunidos aqui para pedir permissão para entrar no mundo da boa

branca, sempre respeitando seus caminhos e escolhas, pedindo permissão do

povo Huni Kuin para o "povo da cidade grande‖ para aprender um pouco

dessa sabedoria, que é boa sabedoria. (Fabiano Kaxinawá) (COUTINHO,

2016, p. 165).

O mesmo se pode dizer do caminho inverso, os termos de uso indígena se tornam

jargões no meio não índio, como é o caso do termo Haux, que é ao mesmo tempo um

cumprimento, mas também uma palavra sagrada, utilizada pelos pajés para invocar as forças

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positivas dos Yuxibu, seres encantados da floresta4. Essa interação entre o índio e o não índio

gera hibridismos discursivos, intersecções de sentido. Segundo Coutinho:

As palavras são faladas em português, misturadas com a língua Hatxã Kuin.

Durante o período de trabalho de campo, o termo ―haux‖ foi frequentemente

usado pelo xamã como uma saudação empregada no final das frases. Depois

que alguém falou, seja o xamã, sua esposa ou qualquer outra pessoa durante

os ritos, conversas e oficinas, todos os participantes são induzidos a repetir a

palavra três vezes: ―Haux, haux, haux‖ (COUTINHO, 2016, p. 176)5.

Na atualidade, essa interação promove muitos processos de tradução e leituras

hermenêuticas, desde o mundo indígena ao sujeito urbano não índio. Acredita-se que na

relação intercultural busca-se favorecer o entendimento de pessoas com culturas diferentes,

em que a escuta e o enriquecimento dos diversos espaços de relação são facilitados e

promovidos visando ao fortalecimento da identidade própria, do autocuidado, da autoestima,

da valoração da diversidade e das diferenças, além de proporcionar o desenvolvimento de

uma consciência de interdependência para o benefício e desenvolvimento comum.

O Neoxamanismo urbano é hoje um fato de grande impacto nas grandes metrópoles da

América Latina, e também na América central e do Norte. É um movimento religioso e

espiritualista. A cultura cresce e se pluraliza, se multiplica sempre de forma híbrida. Como

podem ser observados nos casos de interação inter-religiosa, os grupos sempre encontram

meios de apropriação dos bens culturais, a exemplo dos ―bolinhos de Jesus‖ na Bahia, em que

evangélicos passam a produzir o acarajé dentro de um modo simbólico mediado pela

comunidade cristã (SANTOS, 2013). A cultura molda os termos, e se apropria deles. O

mesmo ocorre com o uso do termo Xamanismo, muito usado nos dias de hoje.

Até bem pouco tempo atrás se usava o termo Xamanismo de forma pejorativa (como

totemismo e cultura primitiva), porém, com o avanço do Movimento de Contra

Cultura (décadas de 1960 e 1970) e o avanço do Movimento New Age, tem-se aberto o

4 Segundo Erika Mesquita,: ―Haux significa a força vital, força da vida que o pajé passa a outrem e ao espírito

da natureza, ao vento, feita através da fala da palavra e de assopros ao vento, captando e enviando força do

espírito ao ambiente. Força da palavra e do ar em forma de assopro, segundo o pajé, é a força captada do yuxin e

que ele ajuda a propalar. Haux vem sendo comumente usado por outras etnias – cuja língua está ―quase morta‖

em sessões de ayahuasca para chamar a força da floresta. Muitos indígenas a utilizam sem saber ao certo seu

significado, apenas por imitação proveniente da língua e cultura Huni Kuin.‖ (MESQUITA, 2012, p. 391, nota

de rodapé). In: MESQUITA, Erika et al. Ver de perto pra contar de certo. As mudanças climáticas sob os

olhares dos moradores da floresta do Alto do Juruá. Campinas, S.P., 2012.

5 O uso da palavra Haux vem sendo muito popularizada pela vinda dos Huni Kuin aos grupos de Neoxamanismo

Urbano, e aos poucos se tornou um jargão muito difundido entre os não índios. É utilizada principalmente em

grupos que fazem uso de medicinas da floresta, como rapé indígena e ayahuasca, a partir da visão Hui Kuin.

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interesse por práticas autóctones e o termo ―caiu‖ em uso popular saindo do mundo

acadêmico. Com o avanço da chamada ―antropologia interpretativa‖ muitos pesquisadores e

estudiosos das práticas indígenas se colocaram a viver com estes os povos nativos, e alguns

aprenderam suas práticas espirituais, tais como os conhecidos autores: CASTAÑEDA e

HARNER. Criaram escolas de pensamento, cada uma a sua maneira, e popularizaram as

práticas de transe induzido, como mecanismo de tratamento de saúde na cultura ocidental,

principalmente através da produção de uma literatura neoxamânica.

Tem-se, no entanto, que toda tentativa de tradução é lida com algum grau de perda de

significado. Existem modos de ser próprios dos nativos, que não podem ser traduzidos mesmo

que com a máxima similaridade. Tal perda torna-se considerável perto do que seja a

espiritualidade nativa e seu modo de ser no mundo muitas vezes é irreversível.

Outro dado é que certos movimentos religiosos sempre têm uma relação com os meios

de produção vigente, nesse caso o capitalismo. Tudo depende de dinheiro para que possam

realizar algo, esse é o sistema que temos hoje. Assim como o não índio, o indígena também

precisa do comércio. Venda de artesanato e a prestação de serviços ritualísticos, que na maior

parte das religiões são pagos, como por exemplo, as vendas de ex-votos nas igrejas católicas,

ou os serviços de ordem espiritual nos terreiros de candomblé, salário de sacerdotes cristãos

etc. É claro que isso não inviabiliza as trocas simbólicas, a reciprocidade e a mutualidade, em

muitos casos o valor financeiro não supera as relações qualitativas dos encontros. Obviamente

que todo tipo de relação comercial, simbólica ou não, que se estabelece, como o consumo em

nossa sociedade, se estrutura como produto. Os bens de consumo sempre obedecem alguma

norma de consumo, sempre há algum modo de consumo e produção de bens materiais

simbólicos.

O Neoxamanismo urbano não está isento de todo esse contexto. A partir desse

processo, percebe-se a distância do Neoxamanismo urbano dos Xamanismos praticados nas

comunidades originárias, sendo que entre eles, os modos de produção são bem diferentes. Isso

é muito complexo, pois como foi dito, existe uma rede de trocas simbólicas em que os

próprios nativos, bem ou mal, estão envolvidos, e que os incentivam. Os núcleos, rodas e

grupos de Neoxamanismo urbano encontram-se permeados de hibridismos, construindo sua

identidade como uma prática religiosa que está para os Xamanismos indígenas como a Igreja

Universal do Reino de Deus está para o Protestantismo europeu de séculos atrás. São,

portanto, novos movimentos religiosos, e não um braço dos Xamanismos indígenas, ainda que

continue usando o vocativo ―xamanismo‖ em seu nome, e que mantenha certa rede de leitura

simbólica com os povos autóctones.

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Acredita-se, portanto, que possa haver uma autonomia, e que os velhos preconceitos

sobre isso ser ―coisa de índio‖ sejam superados. Primeiramente pelo fato de que ―coisa de

índio‖ já é uma preconcepção errada, há que se estudar cada cultura e etnia em seu modo de

ser e não esperar que uma releitura urbana atual, com todas as intersecções de discurso, seja

uma reprodução ipsis litteris do modo de ser indígena. Pois então, esbarra-se em uma questão

ética. Em tal caminho, a resolução se dá pela ética, em saber que se está usando o nome de

outrem em seu benefício (no sentido de auxílio e proveito). Pois ao fazer o vocativo ao termo

xamanismo, esses grupos estão de alguma forma se filiando ao mundo indígena. E diante

dessa filiação, mesmo que seja de um ―parente distante‖, o DNA continua por aí. E como

seres éticos, dever conta à história desses povos que viveram antes de nós, sua ancestralidade,

e que mantêm a ―cultura xamânica‖ viva até os dias atuais, é uma obrigação moral.

Neste sentido, observa-se que se aproximar de forma ética dessa cultura é fundamental

para que o Neoxamanismo urbano consiga estruturar raízes sólidas, e que os grupos possam

trabalhar em equanimidade com a história, entendendo que o homem ocidental ainda costuma

deturpar e usurpar as culturas alheias para seu proveito próprio. Os usos e abusos da memória

tradicional dos povos originários devem ser bem percebidos e discutidos, assim como exigida

a máxima ética junto às fontes de estudo.

O que hoje se percebe como fundamento das novas espiritualidades é o modo ético e

suas relações com suas origens, do mesmo modo que as matrizes africanas têm com a

terra mater, o Neoxamanismo Urbano também, como espiritualidade de matrizes indígenas.

Deve-se prestar conta aos povos originários, assim como se reconhecer ter uma dívida

histórica com essas comunidades e com a manutenção do seu modo de vida.

**************************************

Foi possível verificar a complexidade do tema, sua multiplicidade e os principais

temas abordados nos trabalhos de Neoxamanismo urbano, como uma prática religiosa,

híbrida, polimórfica, polissêmica, que se inspira e apropria dos modos de ser indígena, ou de

religiosidades ancestrais, de suas técnicas de expansão de consciência para aquisição de

narrativas visionárias que visam o empoderamento simbólico do sujeito não índio. Um

discurso mixotrófico que busca reviver a ritualidade e filosofia de povos ancestrais.

A questão aqui levantada é identificar o processo de teia metafórica, baseada na

linguagem do Xamanismo, sendo que tal leitura tem como base uma abordagem filosófica nos

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termos de Paul Ricoeur. A produção poética da vontade, em situações de plenitude da

linguagem voluntária propiciada pelo domínio da percepção e seus diversos possíveis

alcançados pelo trabalho espiritual, durante o estado xamânico de consciência, a pertinência

da narrativa e dos jogos de sentido abertos pela experiência visionária. Assim, emerge-se um

campo pouco explorado de pesquisa dentro das Ciências da Religião, e que possibilita a

intersecção dos estudos filosóficos da linguagem em Paul Ricoeur, Richard Kearney e Mircea

Eliade; na psicologia com Jürgen Kremer; a filosofia Decolonial como referência de Walter

Mignolo e Rodolfo Kusch e estudos antropológicos sobre o Xamanismo Urbano e

Neoxamanismo em especial: Esther Jean Langdon, Departamento de Antropologia, UFSC;

José Guilherme Cantor Magnani, professor titular do Departamento de Antropologia da

FFLCH-USP e Jane Monnig Atkinson, Department of Sociology/Anthropology, Lewis and

Clark College, Portland, Oregon.

A problemática desta pesquisa é justamente procurar um eixo organizacional,

uma ratio, dentro de um universo ―não teórico‖ e ―não lógico‖. O desafio é romper o universo

gramatical e propor um mundo metafórico como metodologia de pesquisa buscando dentro da

escala do fenômeno suas normativas não racionais, e evidenciar os modos narrativos. Para

Ricoeur o poeta (como artesão que melhor explora essa ferramenta) designaria as suas

metáforas através da (re) construção das imagens. O Xamanismo tem na linguagem um

espaço de compreensão, que é um discurso não controlado por conceitos, mas por um

processo de ausculta simbólica, pré-reflexiva e endógena. Portanto um trabalho de linguagem

sobre a escuta rompe com a rigidez da gramática, o que é possível pela reconstrução de

imagens a partir da metáfora. Pode-se dizer, portanto, que o choque entre os campos

semânticos, num processo de rearranjo da linguagem produz a teia de metáforas.

A partir de então, será construida a proposição sobre a referência metafórica,

na qual possuirá como exemplo o jogo de sentido que existe entre a frase e a palavra

(RICOEUR, 2000). A hermenêutica, que se deslocará da retórica à semântica e dos problemas

de significado para os de sentido do objeto ontológico da enunciação metafórica como algo a

―ser como‖. Em que a metáfora age sobre todo o discurso, e não mais apenas como

ferramenta estilística em um dado texto, mas como elemento estrutural do discurso.

A relação de (re) construção se estabelece nos jogos de identidade, nas composições

narrativas, no processo de comunicação em estados xamânicos de consciência. Através de

atos poéticos de tradução das metáforas o xamanista consegue reescrever a realidade

discursiva, num horizonte onde o mundo é linguagem, e o campo de referência rompe

paradigmas. Seguindo Ricoeur, (RICOEUR, 1989) em Do texto à ação, existe um processo,

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denominado pragma, que é a antecipação pela imaginação, não como uma invasão dos

sentidos, mas como um projeto, um uso linguístico, fático da imaginação. Esse uso

antecipatório da imaginação existe como uma marca da autonomia do sujeito capaz, que pode

dizer, ―eu poderia ter feito isso‖, ―ou aquilo‖, e nesse sentido rompe o pragma como fato

consumado, podendo abrir novos horizontes. O xamanista atua, dessa forma, em dois níveis

distintos, primeiro como meio de recepção e, em segundo momento, como narrador. Segundo

Teixeira:

O «pragma» é o correlato intencional do agir, o «agido» do agir. O objecto

da «realização» não é um gesto avulso, um movimento (aliás a acção não é

um somatório de movimentos nem uma «forma motora»), mas sim o termo

da acção, o factum do facere (paralelo do dictum da dictio), o «facto» ou

«feito por mim», o pragma. Neste sentido, a acção é um aspecto do mundo

(TEIXEIRA, 1994, p. 198).

A autonomia está no fato que a linguagem extática, o estado xamânico de consciência,

não é um transe sem conduta, ou uma psicopatologia, mas sim uma navegação por mundos

visionários, e os xamãs têm domínio semântico de forma a percorrer essa geografia cósmica

sem que se perca no caminho, através da linguagem extática, pelo exercício da vontade.

O Neoxamanismo urbano, por sua vez, atua no campo da intersubjetividade, e também

na história, ou seja, o indivíduo está conectado com um fluxo histórico. A produção da

imaginação social, de um determinado grupo, é a representação desse processo na história; é

uma ―cisão‖ na realidade, desmascarando o poder constituído e invocando a sociedade ao

sonho, rompendo com qualquer pretensão de legitimidade e expondo a mais valia da metáfora

(o jogo de vela e desvela).

Nesse sentido, o processo de autorreconhecimento leva a um dilema ético. O

Xamanismo, visionado a partir de uma dívida histórica com os povos originários, permite

construir espaços de experimentação individual e social. Pois na medida em que se caminha

no mundo xamânico, constrói-se uma redescrição para a sociedade, não somente modelos

narrativos não dogmáticos de construção de uma nova identidade narrativa, mas, coloca-se em

posição de olhar para a história e, assim, pensar uma ética que dê conta desses possíveis. De

acordo com Ricoeur, a metáfora é viva, na medida em que ela não pode ser contida, assim

como a metafísica é metáfora morta, que se tornou legitimidade, que precisa ser transfigurada

pela utopia, pela vivacidade da metáfora viva. Não existe lugar fora da metáfora para

compreender suas limitações, toda tentativa de delimitar a metáfora é uma tarefa metafórica.

O Xamanismo, por estar fora do modelo metafisico ocidental, metáfora morta, usa a

metáfora viva, com modelos que confrontam o modo de ser não índio, criando o espaço dos

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possíveis, espaço de potência e criação ilimitada, Corpos sem Órgãos, espaço por excelência

do homem capaz. Como afirma Ricoeur, é um ―pensar a mais‖, e o símbolo ―dá a que pensar‖

(RICOEUR, 2011, p. 482). Na medida em que é meio de orientação para tudo que é estranho,

para as profundidades existenciais, dos símbolos insondáveis. A tradução entre campos

semânticos é rica, visto que não trai esse elemento fundamental que distingue o pensamento

ocidental do pensamento do indígena, a capacidade de não estacionar a metáfora, a vontade de

se manter sempre criador, sempre extático, sem se agarrar a verdades metafísicas,

possibilitando a produção de narrativas proféticas.

O acento forte dessa teoria é a observação se a apropriação do universo do xamã é uma

tentativa de instaurar a metáfora viva no seio da sociedade, ou se é uma tentativa de legitimar

a ideologia vigente, neste caso, a metáfora cai num abismo dos usos e abusos, e ao invés de

vermos a metáfora viva, vemos apenas uma máscara. Para não cair nesse entrelaçamento é

necessário desnudar a metáfora, e empregar novos usos, tantos quantos forem necessários,

para fugir dos maus usos. Deve-se buscar a melhor metáfora possível (RICOEUR, 2000, p.

385).

Finaliza-se, por uma proposta ética apontada por Ricoeur, a pequena ética, ou

sabedoria prática (phrónesis). Tal modelo de ética, contextualista-interacionista,―a saber, que

o único meio de dar visibilidade e legitimidade ao fundo primordial da ética é projetá-lo no

plano pós-moral das éticas aplicadas‖ (RICOEUR, 2008, p. 57); tem-se, então, um pequeno

lema, partindo do horizonte aristotélico, ―viver bem, com e pelo outro, em instituições justas‖.

(RICOEUR, 2008, p. 62). Ricoeur reverte o conceito de epistemologia, onde o objeto era o

centro do conhecimento do sujeito, o autor pressupõe que o outro é a fonte do saber, ou

melhor, a própria condição humana de existir como sujeito narrativo.

O ponto de conexão entre os dois mundos se dá pela possibilidade de uma criatividade

moral. Para o pensamento xamânico, o outro é mais amplo, não é somente parte da sociedade

de humanos, falantes e de imputabilidade da ação, mas também tudo que existe, e nesse

sentido a proposta aqui é alcançar uma revisão teórica, a partir da mente indígena; analisar a

pertinência de uma ética em que a alteridade seja ampliada para abarcar o todo existente, uma

hermenêutica pluritópica do éthos xamânico.

A hipótese apresentada nesta tese, é que o emprego, da metodologia ricoeuriana de

metáfora continuada, pode mostrar nuances da manifestação religiosa, e nesse desvelar das

intersecções dos discursos torna-se possível observar a formação da manifestação em si,

inclusive sua autonomia. A capacidade narrativa, por sua vez, aliada à possibilidade de

criação de mundo do ser humano, é ampliada nesta análise aplicada, e levanta a necessidade

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de observar os impactos reais da prática e os possíveis que a criatividade humana, entendida

aqui como figuração, pode propor para novos horizontes de sentido, num momento emergente

da sociedade atual.

A capacidade de decisão, dos usos da memória, cultural e pessoal, é mediada pela

experiência na vivência e suas teias metafóricas, e a mediação desse processo pode almejar a

introdução de uma discussão sobre a colonização do discurso e a possibilidade de um novo

éthos. Sendo o Neoxamanismo urbano mixotrófo – produz suas próprias referências internas,

e se alimenta de outras produções simbólicas – cabe a cada liderança introduzir, ou não, a

memória de forma crítica na vivência, possibilitando a aquisição de metáforas vivas ou a

reprodução do status quo, que têm como base os abusos da natureza, do outro, como

horizonte epistêmico em que não se leva em consideração os processos de interação.

***************************************

Observaram-se ao longo do percurso, que fundamentam nossas leituras acerca do

Neoxamanismo Urbano, fenômenos e perspectivas da visão extática designados na

fenomenologia como fenômenos limite. Estão para além da redução eidética, ou de qualquer

abordagem, como se escapassem pelos dedos como água. Esses fenômenos esquecidos, que

neste trabalho se apresenta uma tentativa de dar um contorno, na visão extática são remetidos

às archés, arquivos de humanidade, que estão sedimentados há milênios. São símbolos que

compõem o bloco metafórico que constrói a casa da narrativa.

Quando se é traçado um percurso autobiográfico, torna-se mais nítido esse processo.

São vivências que só podem ser tratadas pela poética. Uma etnopoética é necessária quando

falamos desses fenômenos, pois não estamos buscando os dados empíricos, mas o sentido de

tais vivências. O vivido é poiésis, criativo e doador de sentido, o símbolo dá a pensar

(Ricoeur) e, nesse contexto, é preciso elaborar uma metodologia que possa perpassar esses

fenômenos limite.

Por tanto, visa-se traçar um relato pessoal do autor desta tese, como metodologia de

intersecção de sentidos e buscas nas metáforas limite, para se compreender o percurso que

leva ao caminho do trabalho religioso, e como algumas narrativas de vida podem estar

intrincadas, mesmo que em momentos diferentes, em um único círculo hermenêutico:

Sou William Bezerra Figueiredo, filho de Laurentino Alberto Figueiredo (Torneiro

Mecânico, sem formação escolar, autodidata) e Luzia Maria Bezerra (Dona de casa,

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Analfabeta). Achava muito mágico e misterioso os livros de meu pai, tinham uma aura que

me convocavam para a leitura, mas que nunca me atrevi a ler. Um deles “Luzes e Trevas da

Alma” me chamou muito a atenção. Hoje, sei que se trata de um livro de psicologia

convencional. Mas na época, significava a abertura para outro mundo. Outra questão que me

trouxe muitas vivências foi a religiosidade de minha mãe, católica, ela me levou em muitos

lugares. A formação que ela recebera na infância era um misto de espiritismo e Cristianismo

popular. Eu tinha uma relação muito estranha com as imagens dos Santos, Cristo ou Maria,

que tinha em casa, ou nas casas das outras pessoas, eram imagens que me causavam medo e

admiração.

Eu tinha uma forte bronquite. Essa enfermidade fez com que meus pais buscassem

entre as “simpatias” uma melhora milagrosa. Não resolveu muito no âmbito físico, mas, para

mim, trouxe um olhar plural sobre a vida e a prática religiosa inserida no cotidiano. Entre

sessões espíritas, de candomblé ou nas batidas e benzimentos, conheci a polissemia dos

símbolos religiosos. Lembro-me de uma experiência que tive aos seis anos, quando, em um

dia, andando num terreno baldio atrás da escola sofri uma queda e ao me levantar, me

deparei com uma aranha toda dourada. Essa imagem me petrificou. Em seguida saí

correndo, mas em meio à confusão decidi voltar e contemplar mais um pouco. Bom, ela não

estava mais lá!

Hoje tenho muitas leituras dessas histórias. Todas têm uma forma simbólica muito

forte na minha formação. Encontrava com meus espíritos guardiões, visão dos mortos, e

sonhos que depois se mostravam na realidade. Sempre tinha muito medo desses fenômenos.

Outra paixão da adolescência que persiste até hoje é o estudo pelas escolas místicas.

Pesquisa sobre os místicos medievais e da antiguidade sempre estiveram entre as minhas

leituras. Agora, como terapeuta e facilitador de cerimônias religiosas Neoxamânicas, eu vejo

como tal formação híbrida me ajudou a construir minha história.

Nos dias de hoje, atuo como sacerdote realizando cerimônias sazonalmente, assim

como venho sistematicamente atendendo pessoas que vêm em busca de tratamento para

diversas enfermidades. Nesse período, estudei com mestres do Neoxamanismo urbano, como

Leo Artese, Sthan Xannia Tehuantepelt, em escolas de Neoxamanismo, e principalmente com

mestres indígenas: Ramiro Ponce (herbalista peruano), Maestro Fermin (Xamã Peruano),

Wyanã Uia Thé (Mestre de Cerimônia Fulkaxós), Luiz Canê Mingue Guaiana (Pajé Guaiana,

Historiador), Os Huni Kuin (diversas lideranças, Tadeu, Bainawa, Tuwe), os índios Fulniôs

etc. Também pude fazer uma imersão com os índios Guarani, e tive a oportunidade de

receber financiamento para realizar um projeto de intercâmbio, onde trocamos práticas

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culturais entre as ações de leitura da Biblioteca Central de Diadema e o modo de ser

Guarani de produção da oralidade. Em 2015, houve o primeiro congresso internacional de

Xamanismo na web, o XamãsConet, tal iniciativa realizada pelo facilitador xamânico Samuel

Souza de Paula reuniu mais de sessenta palestrantes do Neoxamanismo urbano, além de

algumas lideranças indígenas. Foi um momento muito útil para avaliar em que ponto está

meu trabalho e o diálogo com mestres, facilitados e xamãs que atuam no Neoxamanismo

urbano. No ano de 2017, foi realizado o segundo encontro internacional do XamãsConet, e

estou entre os mestres convidados das lideranças de Neoxamanismo urbano. Realizei como

pesquisador diversas pesquisas sobre a cultura popular, religião e performance ritual.

Acredito que, como acadêmico, essas leituras têm um propósito específico, pois para além de

um praticante da cultura, ter um olhar científico sobre o fenômeno é o plano de fundo da

abordagem.

Os fatos da formação biográfica contribuem para uma leitura dos fenômenos, como

dito anteriormente, depende de uma sedimentação da linguagem dentro de uma tradição e

cultura. E o que se observa é que essa leitura, que hoje pode ser realizada, tem como plano de

fundo a formação e a pesquisa acadêmica, de anos de estudos sobre a antropologia teatral, a

linguagem da performance e da cultura popular. Por isso, ressalta-se a importância de trazer a

leitura autobiográfica, e ao longo do texto introduzir pesquisadores que também são

facilitadores ou participantes de grupos de Neoxamanismo Urbano e que em algum momento

levaram suas experiências para a universidade e produziram pesquisas a respeito do tema.

Portanto, nesta introdução, compartilha-se o relato da experiência do autor, a primeira

experiência estritamente dentro dos Xamanismos, e que foi uma experiência limite de vida.

Trata-se de uma experiência religiosa, em que foi possível sentir o fenômeno limite:

Minha primeira jornada nos fenômenos extáticos limites foi dentro da religião do

Daime, em uma cerimônia anual, em que é comemorado o hinário do Mestre Irineu, fundador

da seita em meados da década de 40. A princípio fiquei procurando significado nos espaços,

nas representações esotéricas do local, imagens, mesas, posição das cadeiras, disposição das

pessoas, indumentária etc. Conversando com um senhor que acabara de chegar, descobri

também ser sua primeira vez ali. Um dentista que pouco conhecia dos símbolos, muito

humilde diante do espaço. Após o início da cerimônia, fomos “consagrar” a bebida sagrada

(ayahuasca). Tudo começou sem muita novidade, começamos a dançar e seguimos o ritmo do

grupo. Logo reparei que o senhor que estava ao meu lado, o dentista, estava tendo uma

espécie de colapso corporal, mas logo ficou claro que ele havia se tornado um pássaro. Daí

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em diante tudo começou a se abrir, sentia o fluxo de energia que era gerado pela roda, a

dança frenética circular criava vórtices de forças centrípetas e centrífugas.

O texto que líamos no hinário parecia saltar do papel e dançar na minha frente, as

palavras tinham um sentido totalmente fora do que podemos observar com a leitura

convencional, o sentido era profundo e amplo, ancestral. Nesse fluxo, fomos por horas, numa

energia que tomava meu corpo. Depois de algumas horas, paramos e tivemos um momento de

descanso. Fui andar pelo sítio, onde percebi como os caminhos, estradas tinham

personalidades diferentes, foi quando comecei a conversar com as árvores e a pedir

instrução de como lidar com aquele conhecimento novo. Naquele momento, fomos chamados

para reagrupar. Toda a leitura era baseada num contexto de Cristianismo popular, caboclo,

cheio de referências da vida na mata, mas também de elementos da doutrina cristã. Não

conseguia entrar na mesma sintonia e fui buscar elementos mais universalistas no conteúdo,

como a grande mãe, para representar a Nossa Senhora da Conceição, etc. Porém, fui tomado

por um sentimento numinoso profundo, de conexão com o Cristo. Sentia meu peito arder de

emoção, entendia sua jornada pela terra e pensava em como era grande sua majestade, seu

poder, e ao mesmo tempo, grande humildade e pobreza dos bens materiais. Continuamos por

toda a noite, até às dez da manhã. Naquele momento, pude ver várias formações, que tinham

características fractais, eram imagens soltas, mas que abriam para outra dimensão de

sentido, nada do que podemos relatar ou transpor num texto.

Ao amanhecer, ao lado da fogueira, conseguia acompanhar o movimento da fumaça,

não sei se era eu que a movia ou se tinha me integrado a tal ponto ao mundo hilético que

poderia controlá-lo. Uma jornada que me impressionou muito e, por anos, refleti sobre essa

experiência, retornando anos depois para o Xamanismo. Meu retorno foi bem mais intenso,

comecei a participar de cerimônias mais profundamente, e a estudar mais a fundo a tradição,

porém, agora buscando refúgio no Neoxamanismo urbano. Ao total, foram 15 anos desde a

primeira vivência, e estive na presença de lideranças indígenas que me deram a formação

para conduzir as cerimônias. Isso foi algo que mudou muito o perfil dos trabalhos, desde

visões proféticas, sobre conduta a ser proferida, à adivinhação, esta em especial tem ajudado

muito nos trabalhos de cura. Visões são frequentes, com um campo semântico mais definido,

e o contato com o mundo espiritual é muito mais eficaz, desde aprendizados até canções que

são aprendidas durante a experiência extática, são canções sagradas de medicina, que são

entregues aos líderes de cerimônia, homens de medicina.

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O processo, descrito acima, se inter-relaciona com as narrativas anteriores, e outras

narrativas que serão retomandas em capítulos posteriores. Demonstra a permeabilidade da

narrativa em metáforas limite e fenômenos de difícil tradução para a linguagem corrente. São

eventos que constituem uma trajetória biográfica, como o exemplo a seguir. De acordo com a

tradição, todo xamã tem que morrer para se tornar um curador, em 2005 houve uma

experiência marcante, que se liga num círculo compreensivo com o que foi relatado, e dentro

do campo semântico do fenômeno:

Depois de vários dias sofrendo por uma grave crise respiratória, fui levado ao

hospital. Logo que entrei na ambulância, desmaiei e só me lembro de estar em uma gruta,

onde havia várias pessoas desorientadas. Ao perceber tal situação, me pus a procurar uma

saída do local. Andei por dias, até ter sido levado para outro andar, acima de onde

estávamos e lá andei por horas, até que localizei uma grande câmara, onde tinham centenas

de pessoas sentadas. Estavam estudando. Sentei ali e comecei a prestar atenção numa

imagem com dezenas de metros de altura, que movia centenas de braços. Quando suas mãos

passavam na nossa frente projetava hologramas com uma codificação que lhes dava

aparência de hieróglifos ou as mandalas orientais, que eram de fácil entendimento naquele

momento. Quando terminei os estudos, fui orientado a voltar. Foi quando acordei no

hospital, depois de ter passado por duas mortes, uma morte de cinco minutos e outra parada

de três, e quatro dias de coma.

Acredita-se que o caminho ao mundo dos mortos seja necessário para que o homem de

medicina possa ter intimidade com essa dimensão da existência. O sonho passa, portanto, a ter

uma importância dentro dessa perspectiva onírica, mágico-religiosa, refere-se ao sonho como

um modelo possível de compreender tal vivência que se conecta com experiências visionárias

de gênero apocalíptico. O sonho pode ser um espaço para onde se pode direcionar para um

autoentendimento e para acompanhar um momento da vida, isto é, um espaço para

compreensão, e abarca tanto um escape do cotidiano quanto uma profecia. Em diversas

culturas, ele representa um espaço iniciático, ou seja, espaço para acesso a regiões

desconhecidas do ser. É também o acesso ao inconsciente feito por intermédio da psicanálise.

Desde os tempos arcaicos até os dias atuais, o sonho é mistério. É símbolo em transformação,

em movimento. O sonho é uma encenação de símbolos, é performático.

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Aquilo que é vivido e vivenciado é um modelo exemplar, uma arché, um estado

corporal que é motivado pelo dançar dos símbolos diante do indivíduo. A performatividade

pelo seu caráter de estados corporais permite que se tenha acesso a esses símbolos de forma

organizada. É como se um sonho passasse sobre os olhos, é um oráculo. Os símbolos que aqui

são como sonhos que se abrem para decifrar.

Ocorre, portanto, que o indivíduo é interpelado por um conjunto enorme de modelos

exemplares, de modos de ser, em todos os sentidos. É também um espaço de compreensão. O

sonho aqui vivenciado é catártico, é como se todos numa cerimônia estivessem vivendo o

mesmo sonho. Os símbolos remetem a todos. Reintroduzindo de forma tensional dentro da

narrativa geral do texto especulativo, admitindo que não são, mas que podem ser como. Paul

Ricoeur introduz esta sentença Aixo era y no era como um horizonte de sentido da

compreensão de campos de referência tão distantes e que podem ser tão ricos:

A convergência entre as duas críticas internas, a da ingenuidade ontológica e

a da demitização, leva assim a reiterar a tese do caráter ―tensional‖ da

verdade metafórica e do ―é‖ que conduz a afirmação. Não digo que essa

dupla crítica prove a tese. A crítica interna ajuda somente a reconhecer o que

é assumido e aquilo a que se compromete aquele que fala e que emprega

metaforicamente o verbo ser. Ao mesmo tempo, ela enfatiza o caráter de

paradoxo incontornável que se vincula a um conceito metafórico de verdade.

O paradoxo consiste em que não há outro modo de fazer justiça à noção de

verdade metafórica senão incluindo o aguilhão crítico do ―não é‖

(literalmente) na veemência ontológica do ―é‖ (metaforicamente). Nisto, a

tese não faz senão extrair a consequência mais extrema da teoria da tensão.

Da mesma maneira que a distância lógica é preservada na proximidade

metafórica, e da mesma maneira que a interpretação literal impossível não é

simplesmente abolida pela interpretação metafórica, mas lhe cede resistindo,

da mesma maneira a afirmação ontológica obedece ao princípio de tensão e à

lei da ―visão estereoscópica‖. Essa constituição tensional do verbo ser recebe

sua marca gramatical no ser-como da metáfora desenvolvida em

comparação, ao mesmo tempo em que é marcada a tensão entre o mesmo e o

outro na cópula relacional (RICOEUR, 2000, p. 388).

A experiência com os fenômenos limite ajuda a compreender melhor esse universo,

que está além dos limites da ciência empírica, e que só pode ser estudado pelas ciências do

espírito. Ao olhar para eles através do ―como se‖, afirma-se não serem empíricos, mas

metáforas limite, que ganham sentido e condição de possibilidade no intercurso relacional.

Só é possível compreender esse fenômeno por metáforas limite, que podem criar um

campo de transmissão dessas vivências limites para a linguagem extática, para, então ter

possibilidade de dar conta da realidade, ou de outra forma, cocriar a realidade, através das

figurações da consciência extática. Como bem lembra Ricoeur:

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Toda mímesis, mesmo criadora, sobretudo criadora, está no horizonte de um

ser no mundo que ela torna manifesto, na mesma medida em que ela eleva ao

mythos. A verdade do imaginário, a potência de revelação ontológica da

poesia, eis o que, de minha parte, vejo na mímesis de Aristóteles. É por ela

que a léxis é enraizada e que os próprios desvios da metáfora pertencem à

grande tarefa de dizer o que é. Mas a mímesis não significa apenas que

todo discurso está no mundo. Ela não preserva apenas a função referencial

do discurso poético. Enquanto mímesis physeos, ela liga essa função

referencial à revelação do Real como ato. É função do conceito de physis,

na expressão mímesis physeos, servir como índice para esta dimensão da

realidade que não se manifesta na simples descrição do que nela é dado.

Apresentar os homens ―agindo‖ e todas as coisas ―como em ato‖, tal bem

poderia ser a função ontológica do discurso metafórico. Nele, toda

potencialidade adormecida de existência parece como eclodindo, toda capacidade latente de ação, como efetiva (RICOEUR, 2005, p. 74-75).

6

O caminho que nos leva a uma fenomenologia da origem da visão extática, que está

para além do ato religioso, para os xamãs se apresenta na doença iniciática, nos sonhos e, em

outros casos, nas cerimônias, mas está mais além, a realidade empírica não é mais vista como

se vê em consciência ordinária. O real em ato após a experiência de redescrição do fenômeno

limite, pela variação imaginativa, prolonga de forma continuada à metáfora pelo percurso da

vida, tem um lastro na identidade narrativa, marcando o eu longitudinalmente, estabelecendo

horizontes de sentido novos e que serão por sua vez redescritos diante de novos fenômenos

limite que virão.

***************************************

Neste caminho que apresentamos a partir deste ponto uma descrição introdutória sobre

os capítulos. Primeiramente, portanto, de uma aproximação entre o Xamanismo tradicional e

o Neoxamanismo urbano, mostrando o estudo sobre a narrativa a e temporalidade, sobre as

aporias das visões extáticas narrativas, as categorias que encontramos permeiam a cultura

material e são subsídios para tipologias referentes as visões extáticas e as narrativas

visionárias. Em segundo plano, são abordadas as categorias do Xamanismo strito senso

apresentadas por Mircea Eliade; esta perspectiva visa apresentar categorias morfológicas

apresentadas pea filósofo romeno, e que partem de uma leitura hermenêutica de tradição

fenomenológica. Num terceiro momento, exemplificando o Neoxamanismo urbano – e em

defesa dos argumentos aqui expostos – sua característica de um discurso mixotrófico, que ao

6 Grifo nosso

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mesmo tempo em que é produzido dentro de um campo de discursos híbridos, é também

autorreferente, e nesse sentido, fazemos a defesa da manifestação do Neoxamanismo urbano

como um movimento religioso autônomo. A constituição do discurso e do modo de ser

neoxamã é apresentada e aprofundada no corpus dos quarto e quinto capítulos em que – com

a problematização, tema e os dados coletados interligados e/ou contrapostos –, possibilita-se

evidenciar o constituir do fenômeno. Assim, aqui são definidos modos de ser, como estruturas

essências de características intencionais, que visam um habitus de constituição de mundo.

Torna-se essencial salientar que a constituição é um fenômeno de abordagem delicada, e

como salienta Dan Zahavi, especialista na obra de Edmund Husserl:

Constituição é um processo que se desdobra na estrutura subjetividade-

mundo. Por essa razão, a constituição não tem como ser interpretada como

uma animação arbitrária em si mesma de dados sensoriais sem sentido, nem

tampouco como uma tentativa de deduzir o mundo de um sujeito sem mundo

ou de reduzi-lo a tal sujeito. Falar da subjetividade transcendental como de

uma instancia constituinte e doadora de sentido (HUA 8/457, 17/2.51,

15/366) e de objetos como constituídos por essa subjetividade e

independente dela significa, visto formalmente, falar da estrutura

subjetividade-mundo como de um quadro no interior do qual os objetos

podem aparecer (ZAHAVI, 2015, p. 109).

Esta conceituação de constituição de mundo demonstra o que nossa tarefa empreende,

na medida em que devemos mostrar como a relação entre sujeito e mundo se estrutura na

consciência e na identidade narrativa, sendo a narratividade a ferramenta primeira de

constituição subjetividade-mundo. A relação sujeito-mundo é imbricada de tal força que não

pode ser fissurada, a não ser em casos de psicoses, como será discutido ao longo do estudo.

Por se tratar de uma pré-figuração e narratividade sujeito-mundo, é preciso entender, quando

o termo for suscitado, de forma que se possa deixar claro o que aqui entende por constituição.

Na quarta etapa busca-se mostrar as intersecções dos discursos, e a relação entre o

Neoxamanismo urbano e o confronto com a mente indígena, a questão das políticas de

memória e o pensamento descolonizador, através do método como veículo para descortinar as

relações das metáforas vivas e mortas. Em quinto lugar, aborda-se a relação do sujeito durante

a sessão xamânica, a partir do conceito de poética xamânica, e teia metafórica, em que se

compreende a possibilidade de criação e a relação entre o campo de referência xamânica,

demostrando a capacidade do sujeito de apreender o discurso e a constituição de mundo, a

partir dessa teia. Acrescenta-se, a isso, a capacidade do sujeito de tomar a decisão onde e

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como empregar a narrativa que surge da experiência xamânica, a partir da teia metafórica

apresentada durante a vivência.

Por último, chega-se ao campo do discurso ético, onde se pretende mostrar a

pertinência de adotar novos paradigmas para a sociedade contemporânea, para que seja

possível introduzir um éthos xamânico, um pensamento decolonial, que é possível pela

capacidade criativa do sujeito capaz de constituir novos arranjos sociais, como ser em tarefa a

partir da ampliação do conceito de outro, que é apresentado por Ricoeur na pequena ética e

num contexto hermenêutico pluritópico Ameríndio. Posto isto, espera-se que o leitor possa

neste caminho encontrar propostas de estudo para a questão da formação dos fenômenos

religiosos, nos estudos da consciência, da cultura urbana das vivências extáticas, assim como

possa, através de uma abordagem pluritópica, ampliar horizontes de sentido e constituição de

mundos éticos.

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1 CAPÍTULO 1: APORIAS DA TEMPORALIDADE NAS NARRATIVAS

VISIONÁRIAS

FIGURA 1: Jehua Supai – Espiritus Sublimes

Fonte: http://www.ayahuascavisions.com/pablo-amaringo-paintings-1.html

1.1 Introdução

Como nosso tema é a poiesis, falamos mais da estruturação que da estrutura, pois a

temporalidade se faz em estruturações mediadas pela narrativa, pelo relato. Como afirma

Ricoeur em seus estudos:

A escolha dessa categoria literária tem a vantagem evidente de sublinhar a

função mediatriz da intriga. Uma intriga faz a mediação entre os eventos ou

incidentes isolados e uma história tomada como um todo. Esse papel

mediador pode ser lido em dois sentidos: uma história é feita de...

(acontecimentos) na medida em que a intriga transforma esses

acontecimentos em... (uma história). Um acontecimento, desde então, deve

ser mais que uma ocorrência singular e única. Ele recebe sua definição a

partir de sua contribuição para o desenvolvimento de uma intriga. Uma

história, por outro lado, deve ser mais que uma enumeração de eventos em

uma ordem sucessiva, ela deve aferir um todo inteligível dos incidentes, de

tal sorte que seja sempre possível perguntar qual é o ―tema‖ ou o ―sujeito‖

da história (RICOEUR, 2012 p. 303).

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A poiesis opera uma complexa relação de mediação com o tempo, e que propicia as

sedimentações narrativas. A conexão entre as abas temporais, presente, passado e futuro, são

possíveis pela possibilidade de narração. A história é um processo de sucessão:

A capacidade de a história ser seguida converte o paradoxo em dialética

viva. De um lado, a dimensão episódica da narração faz pender o tempo

narrativo para o lado da representação linear do tempo. E isso de diferentes

maneiras. Em princípio, a resposta ―e então‖ que corresponde à questão ―e

depois?‖, sugere uma relação de exterioridade entre as fases da ação. De

outro, os episódios constituem uma série aberta de eventos que autorizam a

acrescentar aos ―e então‖..., ―e então‖, um: ―e assim por diante...‖.

Finalmente, os episódios se seguem segundo a ordem irreversível do tempo

comum aos eventos humanos e físicos (RICOEUR, 2012, p. 304).

A relação entre concordância e discordância entre tempo e narrativa é sempre uma

questão de circularidade hermenêutica, e por isso, tanto a violência quanto a redundância da

interpretação do fenômeno da temporalidade são partes de uma análise do tempo, permintindo

a existência desses paradoxos. ―Entretanto, a objeção não faz justiça a um fenômeno

fortemente intrigante que, a meu ver, nos obriga a conceder à experiência como tal uma

narratividade incoativa‖ (RICOEUR, 2012 p. 308).

Esse processo de início da ação, imputado ao ato da narratividade é fundamental para

que seja possível entender o objeto desta pesquisa, que é a formação poiesis no discurso do

Neoxamanismo urbano. Esse seguimento de intersecção da narrativa pessoal e histórica, como

será visto adiante, é a apropriação ética dos processos visionários. Como comenta o autor, as

histórias ainda não narradas também estão no rol de possíveis da experiência da

temporalidade. A identidade narrativa tem, portanto, um peso importante para esta reflexão

visto sua implicação na constituição da narratividade em geral e ―é a busca dessa identidade

pessoal que assegura a continuidade entre a história potencial ou incoativa e a história

expressa da qual nós assumimos a responsabilidade‖ (RICOEUR, 2012, p. 309).

Há, nesse sentido, um tempo que existe e que é compartilhado como pré-narrativa,

como um acontecer por vir. O sujeito se depara com a narrativa e esta o doa temporalidade,

dentro de um processo paradoxial do tempo enquanto entidade não ―domesticada‖.

Empreende-se a tarefa de construir uma antropologia do Neoxamanismo urbano e, como

resultado, um sujeito que se desdobra mediado pela experiência metafórica da narrativa

visionária, pois a mediação simbólica é que determina este processo como uma linguagem

antiestruturada, como o modo que se conhece.

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A temática da linguagem extática será abordada posteriormente, em momento

adequado. O que é factível acertar nesta reflexão é que todo ser humano quer contar sua

história e merece ser narrado. E se tratando de narrativas visionárias, existem sob uma

codificação que não são histórias para qualquer pessoa, entender, senão aquelas que dominam

certa tradição e codificação. E neste campo torna-se necessário entender a formação híbrida

do Neoxamanismo urbano, como uma imbricada teia metafórica em constantes

transconfiguração. Esse círculo interpretativo passa por essa compreensão da narrativa e sua

condição de intérprete do tempo. Em suma, há um conjunto de perguntas, e nesse aspecto é

possível compartilhar com o pensamento de Ricoeur:

Mas não podemos dizer que o ―potencial hermenêutico‖ das narrativas desse

tipo encontra senão uma consonância, pelo menos uma ressonância nas

histórias não ditas de nossa vida? Não há uma cumplicidade escondida entre

o ―segredo‖ engendrado pela própria narração – ou pelo menos pelas

narrativas próximas das de Marcos e de Kafka – e as histórias ainda não

ditas de nossas vidas que constituem a pré-história, o pano de fundo, a

imbricação viva da qual a história narrada emerge? Em outros termos, não há

uma afinidade escondida entre o segredo de onde a história emerge e o

segredo ao qual a história retorna? (RICOEUR, 2012 p. 310).

Há de se observar a possibilidade do sujeito determinar a sua saída em direção

compreensiva do fenômeno de aquisição poeiética das narrações, visando a estruturação da

existência, com quanto não se perde também a estrutura em que estas manifestações se

apresentam, tal é a tarefa deste capítulo primeiro, onde abre-se a discussão que será

desdobrada ao longo do texto. A compreensão que estabelece a conexão em cada ponto deste

estudo parte da premissa que a experiência de temporalidade e a narratividade estão

imbricadas, e ocorrem pela operação de mediação simbólica a partir de redes metafóricas.

Como acredita Ricoeur, não se pode cair no jogo de negação do paradoxo, mas antes trabalhar

sobre aporia do tempo e da narrativa:

Qualquer que possa ser a força constrangedora dessa última sugestão,

podemos aí encontrar um reforço para o nosso argumento principal, segundo

o qual a circularidade manifesta de toda análise da narração, que não cessa

de interpretar uma pela outra a forma inerente da experiência temporal e a

estrutura narrativa, não é uma tautologia morta. É preciso antes ver aí um

círculo bem sustentado no qual os argumentos apresentados pelas duas

vertentes do problema se mantêm mutuamente socorridos (RICOEUR, 2012,

p. 310).

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É preciso, portanto, abordar mais de perto o tema do tempo e da narrativa sempre com

horizonte no referencial ricoeuriano, sem perder de vista o intuito fenomenológico do estudo e

retomando, sempre que possível, as coisas mesmas. O tempo é um dos temas principais do

estudo da fenomenologia, e seu desdobramento consequente à intencionalidade. Neste campo

aberto de estudo há diversos autores que navegaram em águas profundas. Aplica-se aqui a

metodologia Husserliana e se alcança diversas teses. O intuito deste texto de abertura é

apresentar a temática que nutre esta pesquisa e traçar uma rota de compreensão para entender

o fenômeno do Neoxamanismo urbano e suas características principais, entre elas a

experiência extática visionária, além de mostrar como o quesito tempo e também a narrativa

aparecem dentro da perspectiva xamânica e do Neoxamanismo urbano. O desdobramento e a

compreensão deste estudo irão possibilitar os estudos seguintes.

O tempo se apresenta como fenômeno do tempo vivido, que por sua vez é narrado. Ele

– o tempo – não se doa à consciência de forma pura, ele é sempre mediação pela narrativa e é

um fenômeno de constituição de possibilidades, de temporalização. No caso das narrativas

visionárias, há ainda elementos endógenos, que ultrapassam a coleta de dados pelos sentidos.

E nesse desenvolvimento apresenta-se o sentido maior do mesmo, como condições de

possibilidade estruturantes da constituição de mundo do ser. O método de observação deste

fenômeno apresentado por Husserl em Ideias (2006) é significativo, que em seguida foi

aprimorado pelo autor e pelos seus sucessores a partir de novas abordagens.

Da mesma forma, o conceito de narrativa ricoeuriano é fundamental para podermos

abarcar o tema das narrativas visionárias xamânicas, as narrativas de poder e os aspectos

soteriológicos e éticos resultantes. Ademais, na continuidade deste primeiro capítulo, se

verificará como o fenômeno da experiência extática visionária se apresenta na recepção da

narrativa, na produção da cultura material, e em experiências autobiográficas, como uma

tentativa de alcançar o fenômeno da origem da visão extática. O desdobramento desse estudo

será aplicado nos capítulos subsequentes, seguindo a proposta de tipologias narrativas de

Richard Kearney.

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1.2 Tempo do ponto de vista fenomenológico

A temporalização é fruto da apropriação narrativa, ou vice versa, ambos estão

imbricados, não é possível pensar um sem o outro. Da mesma forma que não se devem pensar

as narrativas sem a composição poética, criativa, operada pela metáfora, e mais

profundamente pelos símbolos, como blocos essenciais de sentido dentro desse sistema.

Neste ponto, será necessário dar um passo atrás para compreender o tempo e seus

desdobramentos conceituais, assim como a relação entre a experiência extática e os

fenômenos da consciência. O tempo é um ato vivenciado, não pode ser pensando fora desse

escopo, segundo Barco:

A fenomenologia não pode deixar a consciência – no caso, do tempo – ser

compreendida como um correlato subjetivo, como se ―estudássemos então,

no fundo, apenas as condições subjetivas de possibilidade de uma intuição e

de um específico conhecimento do tempo‖ (1966, p. 5). Em fenomenologia,

altera-se o ângulo a partir do qual se pensa o tempo: em vez de falarmos de

movimentos e/ou modificações que duram um valor t de tempo, falamos na

duração de atos vivenciados, atos como a percepção de movimentos e/ou

modificações (BARCO, 2012, p. 37).

O tempo é primeiramente elaborado pelo fundador da fenomenologia como um fluxo

contínuo entre dois pontos hipotéticos, que se definem como um antes e um agora, que

pressupõe um depois, ou seja, sempre uma retenção e proteção; esse primeiro modelo é

conhecido como fenomenologia estática.

A partir de Ricoeur o sentido é articulado no tempo pela narrativa, portanto, é a

experiência da existência de mundo, em que a figuração é que determina os horizontes de

temporalização do sujeito, inclusive, pela mediação da tradição, da cultura etc.

A passagem do tempo entre o ponto um e o ponto dois corresponde a uma retenção e,

sucessivamente, a retenções de retenções de sentidos. O que nos leva a uma reflexão sobre o

tempo narrado. O contorno que esse movimento executa na duração dos vividos é próprio do

conceito da metáfora, que desenha a narrativa com uma nova orientação pode reverter todo o

horizonte de sentido em sua pluralidade.

Portanto, segue-se para um campo que é o da compreensão do sentido da experiência

da duração temporal do vivido, o que se contrapõe a uma explicação, nos moldes da ciência

material. O debate navega do tempo para a narratividade como um processo de andamento

consequente. O ser é um constante escoamento do tempo, e a essa característica longitudinal

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de retenções dá-se a possibilidade de uma continuidade do próprio ser, preservando ―o mesmo

no outro‖ (RICOEUR, 2010, p. 47) num contínuo da identidade, o que gera a dedução de uma

necessidade hilética do ser, pois a intencionalidade longitudinal não poderia se afirmar sem a

materialidade do ser, sua corporeidade, ―que garante a continuação do presente pontual no

presente estendido da duração una. Se não fosse assim, a retenção não constituiria nenhum

fenômeno específico digno de análise‖ (RICOEUR, 2010, p. 47).

A ideia de um instante presente com horizonte de passado contribui para pensar a

característica longitudinal, que se apresenta com uma identidade ao longo do tempo e se

produz como conjunto de sentidos a serem intencionados retroativamente. O que caracteriza a

lembrança do agora que imediatamente passou e a sua relembrança. Nesse ínterim cabe uma

análise do ser como identidade narrativa, pois não há tempo que não seja narrado e a poética

criativa está dada como horizonte de possibilidades.

As estruturas fenomenológicas, nesse sentido, dialogam com a noção de tempo como

um todo, não separado, porém com uma crítica mais dura sobre a materialidade dessa

temporalidade pungente e a efetiva condição do conhecimento dado a consciência. Essa

estrutura interna da consciência temporal aqui é vista como uma forma e uma existência,

enquanto memória e consciência é uma única dedução possível da experiência do tempo:

Como outrora reconhecido neste estudo, a forma que este movimento da

temporalidade constitui mundo é figurativa, é uma metáfora, pois, no sentido de metaphorein,

de algo que carrega de um antes para um depois o conjunto do sentido da experiência.

Transferência e transporte para outro lugar, a temporalidade se desenha como uma totalidade

do fluxo do vivido, mas esta operação pode ser decomposta na tripartite condução de tempo, e

a forma da duração é como se entende e se retém o tempo como sentido.

A metáfora como o desenho que a narrativa faz na duração do tempo demostra que a

retenção mantém um conjunto temático, como uma metáfora continuada (RICOEUR, 2000),

que define o sujeito no tempo, como aquele sujeito, que se projeta no futuro sempre como

sujeito presente (êxtase temporalizando) (KEARNEY, 1997), e mantém certa unidade, uma

memória. Uma ipseidade que se projeta dentro de uma identidade que procura manter-se na

duração do tempo, que contém elementos continuados, caraterísticas formais, endógenas, mas

também narrativas (identidade idem) (RICOEUR, 2014).

Nesse contexto, a narrativa surge como caminho prioritário para compreensão da

temporalidade. Como afirma Ricoeur, ―de forma esquemática, nossa hipótese de trabalho

consiste, portanto, em tomar a narrativa por guardiã do tempo, na medida em que não

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haveria tempo pensado que não fosse narrado‖ (RICOEUR, 2010, p. 411), e nesse contexto é

por si o campo de maior legitimidade para compreensão do sentido do vivido.

Como nesse campo da temporalidade e da constituição da narrativa é possível

identificar a experiência xamânica e as narrativas e imagens visionárias? Esse problema se

apresenta de forma singular, visto que a temporalidade xamânica atua fora do contexto de

uma normalidade, de uma consciência ordinária que visa uma evidência de mundo

fenomenológica.

Esta falta de evidência imediata não permitiria uma epoché característica da

fenomenologia extática, pois não há o que se colocar entre parênteses senão a própria noção

de tempo, ou mesmo não há um elo possível de uma temporalidade longitudinal e, por isso, o

tema será abordado a partir das narrativas visionárias, mas também com o suporte da cultura

material, como mecanismo de contato com o mundo das coisas, numa análise comparada e

mostrando as relações entre narrativa visionária, consciência ordinária e patológica, visando

distinguir três modalidades da consciência de tempo, com a proposta de apresentar um

segundo momento da fenomenologia, como genética, que busca o sentido da experiência no

campo de mediação simbólica e suas origens e, por consequência, uma fenomenologia

generativa, na medida em que entende as intersecções do discurso na tradição e na história.

1.3 A temporalidade xamânica e a narrativa visionária

Identificando uma possível metodologia para uma análise das narrativas visionárias

xamânicas e como a intersecção entre a narrativa e a cultura visual podem se intercruzar num

ato intencional, segue-se de categorias fenomenológicas para chegar a uma análise

fenomenológico-hermenêutica das visões xamânicas, ou seja, das experiências da percepção

em geral para o sentido estrito.

Adota-se a proposição que essas visões são narrativas, pois partem de uma articulação

da temporalidade dentro de um mundo não ordinário, mas que sincronicamente participa da

temporalidade vivida, e que ambos os tempos são visíveis à existência sem serem

contraditórios. O mesmo tema, associado a um transtorno psicopatológico, como foi dito em

muitos momentos da história da etnologia, e mesmo hoje entre muitos médicos e cientistas

naturais, também precisa ser superado.

Analisar narrativas visionárias é sempre um desafio, por esse motivo vamos utilizar

exemplos da cultura material, e em seguida tentarmos aplicar a uma narrativa propriamente

dita. Inicía-se este estudo com a descrição de uma obra de Pablo Amaringo (1943 – 2009),

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natural de Puerto Libertad. Pablo Amaringo é um dos maiores artistas visionários do mundo e

é conhecido por suas pinturas altamente complexas, coloridas e intrincadas de suas visões ao

participar de cerimônias xamânicas com a bebida Ayahuasca.

Pablo Amaringo treinou como curandero (curandeiro) na Amazônia, curando-se e

outros desde a idade de dez anos, mas desistiu da profissão espiritual em 1977 para se tornar

um pintor e professor de arte em tempo integral em sua escola Usko-Ayar. A obra Em

conexão com os curadores no tempo e espaço exemplifica o que queremos mostrar. Vejamos

uma descrição da imagem:

FIGURA 2: Em conexão com os curadores no tempo e espaço7

Esta é uma visão produzida pela ayahuasca cielo [ayahuasca céu]. Nós

vemos xamãs de diferentes partes do mundo, todos mediadores vegetais e

espirituais praticantes. Da esquerda para a direita estão três seções verticais:

no topo da primeira seção, nós temos uma mulher mestiça da região

amazônica que pratica Rosacrucianismo e faz uso de plantas. Abaixo, vemos

um ayahuasquero mestiço da selva Amazônia que pratica medicina com

alma e coração puros. Abaixo dele está um Shipibo da selva Ucayali que

realiza cura por meio da ayahuasca e seus aditivos, o piripiri (Cyperus sp.),

O dedo do pé (Brugmansia sp.) e o chiriksanango (Brunfelsia grandiflora).

7 Obra reproduzida do livro de Howard Charing e Peter Cloudsley. ―The Ayahuasca Visions of Pablo

Amaringo‖. Inner Traditions. Vermont, 2011. p. 34.

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Atrás é o magnífico príncipe Tabal em um vestido decorado com penas

sedosas e com uma espada dourada de dois gumes como peneira. Além

disso, presentes são duas mulheres chamadas cuayacunas ou mulheres

caricadas. Ao seu lado é um navio extraterrestre de Ganimedes com uma

escada mágica pela qual a tripulação pode desembarcar. Na parte superior da

seção central é um nativo Cocama que exerce o seus poderes da medicina

tradicional. Por baixo dele está um guru, um mestre sublime de percepção

extrassensorial nos templos de Krishna, purificando sua alma com

Meditação transcendental do sexto sentido. Ao lado do Cocama é uma ninfa

de Conhecimento com as trombetas de seus cornos que ensina como ter

cantos ícaros com exatidão. Abaixo do yogi é um indiano da Campa que

possui conhecimento oculto do máximo de plantas diversas. Este grupo

indiano que também usa ayahuasca sabe melhor do que qualquer outra

pessoa da selva, os usos mágicos da planta. No rio circundante, nós vemos

seus ancestrais chefes indianos se aproximando para conferir conhecimento

sobre ele. Na frente da Campa são dois escribas das sereias, escrevendo

sobre a mística propriedade das flores para as necessidades dos curandeiros.

Nós também vemos o huarmi-vacamarina [mulher-manatee]. Ao seu lado

estão os espíritos do ailco-sacha (cão selvagem), uma planta costumava curar

as pessoas enfeitiçadas com o sangue do cachorro. Abaixo estão dois navios

que vêm de Vênus; Suas equipes se aproximam da casa do xamã com pressa.

Em frente da casa é o supay-tuyuyo (tuyuyo, um grande pássaro), que o

mestre usa como um veículo ao sair para as regiões do mundo exterior e do

espaço. Abaixo estão os champanhas (cogumelos) e a callampa machaco

(cobra de cogumelos). No canto superior direito é um mestiçado oracionista

(praticante que usa a oração como ferramenta de cura) cercada por imagens,

selos, livros de orações e perfumes. Ela pratica medicina com ajuda de

espíritos celestes. Abaixo está uma mulher africana que pratica o fetichismo

para curar. Atrás dela, vemos Grinfel, o conde do império do planeta de

Saturno, cujos poderes são os do hipnotismo sensual. Na frente da

sacerdotisa africana, vemos um gênio em uma formação de triângulos. Este é

um encantamento mágico. Abaixo deles todos está um curandeiro Shipibo

nativo com ayahuasca e outras plantas. No fundo é um sacerdote inca ou

Varayok, guardião dos templos das ciências ocultas desta cultura. Ele teve

contato direto com seres extraterrestres de Andromeda, cuja visão é muito

superior à nossa e que deu especialização e conhecimento para os xamãs

Tahuantinsuyo. À extrema direita, vemos um Lama, ilustre mestre da cura

por meio das plantas das montanhas místicas da Himalaia, cercada por

homens muito sábios que estão bem versados no conhecimento do mundo

vegetal (AMARINGO, 1999, p. 34-36).

A visualização que Amaringo toma a ayahuasca está repleta de referências cultural,

etnobotânica, ocultismo, esoterismo, cultura popular e elementos da formação dos povos

andinos. Durante a visualização tem uma visão que apresenta uma noção de temporalidade

totalmente diversa da ordinária. Os curadores no tempo e espaço se apresentam de forma

simultânea e sincrônica, não uma sucessão, mas uma interconexão que mantém temática da

narrativa visual. O mestre que sobe nas costas do grande pássaro na jornada xamânica é o

próprio Amaringo que se vê, dissociado dentro da própria visão, numa experiência quase

profética, do seu desígnio como curador.

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Empregaremos os conceitos de visualização e visão como complementares não

simultâneos, um diz respeito ao processo mental de produções de imagens e o outro denota

um campo semântico de extensão temporal, segundo Shanon:

Cabe fazer uma distinção terminológica. Na literatura, emprega-se o termo

comum ―visões‖. Pessoalmente, prefiro fazer distinção entre os termos

―visualização‖ e ―visão‖. Emprego o primeiro para designar todo efeito

visual provocado pela ayahuasca, ao passo que o segundo denota apenas as

visualizações que apresentam certo grau de extensão temporal e conteúdo

semântico (SHANON, 2003, p. 111).

Portanto, trata-se de um fenômeno de extensão de sentido, onde são encontrados

elementos que são constitutivamente narrativos. Desse modo fica claro que essa divisão é

puramente pedagógica, pois toda apreensão de imagem pela consciência e na consciência é

produto da temporalidade narrativa. No entanto, pode-se observar na obra de Amaringo a

possibilidade de uma hermenêutica, com base numa experiência de temporalidade não

ordinária.

A imagem adquirida durante a experiência visionária é mais que uma iconografia, pois

é uma territorialidade com uma topografia metafórica, por conseguinte, não se confunde com

alucinações de estados patológicos, ou mesmo com projeções imaginativas do sujeito, é, ao

contrário, a aquisição de outra temporalidade não convencional. Além disso, não são todas as

visualizações que podem ser caracterizadas como visões, como salienta Shanon:

Nem todas as visualizações promovidas pela ayahuasca dão margem a uma

análise temática. A maioria das visualizações que as pessoas experimentam

consiste em elementos figurativos isolados: uma pessoa ou um animal

aparece diante delas, ou uma paisagem ou edificação são vistos de relance.

Em geral, esses quadros singulares (no sentido cinematográfico, do

fotograma) são breves e não comportam complexidade semântica nem

desenvolvimento narrativo. Para que uma análise macro, temática, seja

validamente aplicável, as visões devem consistir em mais que tomadas

fragmentárias (mais uma vez, emprego a linguagem cinematográfica), elas

devem consistir em cenas inteiras que tenham extensão temporal e exibam

complexidade semântica. As cenas grandiosas impressionam bastante os

bebedores, apresentam narrativas elaboradas e trazem mensagens a que os

sujeitos atribuem importância. A sensação é que a experiência visionária não

é meramente visual, mas também ideacional, e por ela algum ensinamento é

transmitido à pessoa que vê (SHANON, 2003, p. 137).

Nesse sentido, a experiência de narrativa ganha um vigor fundamental, pois é através

do tempo vivido numa extensão significativa que se determina como campo de produção de

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sentido, um tempo narrado. Para avançar nesse campo é necessária uma distinção entre

normal e patológico, e também o visionário como categoria narrativa para podermos

estruturar uma metodologia que possibilite uma análise de narrativas visionárias.

1.3.1 Normal, Patológico ou Visionário?

A temporalidade fenomenológica pressupõe a consciência em termos ―normais‖, ou

seja, em que não há uma perda do contato vital com a realidade (MINKOWSKI , 1927) ou do

senso compartilhado socialmente ou colapso na consistência da experiência natural8.

Portanto, não há uma perda do senso comum para que seja realizada uma redução (epoché). A

narrativa visionária é deslocada da experiência ordinária9 e atua numa temporalidade em que

as proporcionalidades antropológicas (BLANKENBURG, 1982) agem como fora do comum,

o que para a psicopatologia fenomenológica seria um sintoma de um sentido distorcido da

estrutura com relação às essências como tempo, espaço, interpessoalidade, ipseidade,

corporeidade etc. Uma perda clara da relação sujeito/coletivo/universal.

As relações de temporalidade como diacronia e sincronia são totalmente

interpenetrantes, em que não se pode determinar se o que ocorre está em uma determinante

cronológica e se o tempo corresponde ao que está sendo visto (visões do passado não

biográfico, por exemplo).

A sincronia é uma presença diacrônica na realidade ordinária, pois a capacidade de

visualização é simultânea à experiência ordinária. O sujeito continua nas mesmas condições

de facticidade, porém, participante de um visão sendo visualizada. Nesse sentido falamos de

uma performatividade da imagem que é e não representa algo, é uma espacialidade e não

conceito.

Conceitos como retenção do tempo ou protensão são indistintos, ocorrem

sincronicamente. A visão como a pintura que vemos de Amaringo já traz tudo num único

8 Binswanger utiliza este conceito para demonstrar esta perda do contato com a experiência ordinária com o

mundo, veja também: DE SERPA JR, Octavio Domont. Subjetividade, valor e corporeidade: os desafios da

psicopatologia. 2007. E BINSWANGER, Ludwig. O Sonho e a Existência. Natureza humana, v. 4, n. 2, p. 417-

449, 2002.

9 Determinamos experiência ordinária a apreensão da temporalidade e do senso comum, fora da redução

fenomenológica, o que podemos afirmar que haja condições de possibilidade de apreensão do mundo da vida,

sem nenhuma distorção, o que ocorre nos estados psicopatológicos. À experiência ordinária se opõe o estado de

consciência alterado, o transe, êxtase e o estado xamânico de consciência.

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golpe da percepção, o que para o xamanismo representa a capacidade de rompimento de

tempo através de um eterno agora onde a duração é alterada em suas estruturas formais.

Uma lembrança que não pressupõe nenhuma retenção anterior é um dado totalmente

novo ao fluxo de vividos e que determina todo o fluxo a partir de uma experiência, que

poderia ser chamada de ―desencarnada‖ da intencionalidade longitudinal (biográfica).

Nessa acepção, a experiência da jornada xamânica pressupõe um horizonte de sentido

que pode ser confundido com os transtornos psicóticos (neste caso, por ingestão de substância

psicoativa), e ao mesmo tempo propõe ser um elemento vivificador da realidade ordinária e

introduz novos horizontes de sentido à identidade narrativa.

Tal fenômeno poderia ser visto pelo ponto de vista da ciência natural como um ataque

psicótico decorrente de uma intoxicação por uso de psicotrópicos. Mas existem elementos

fundamentais que distinguem ambas as experiências antropologicamente, pois uma delas é um

estado sem protensão da temporalidade, em que a experiência se encerra em si mesma,

achatando a realidade do sujeito, comprometendo a identidade narrativa.

No estado visionário ocorre uma perspectiva de temporalidade clara e projetiva, para o

sujeito e para o grupo do qual participa (muitas visões são importantes para o destino do

grupo religioso, onde a visão define normas e formas de aquisição da realidade, uma profecia,

por exemplo). O que se consideraria como condições de possibilidade alteradas numa

intoxicação, numa embriaguez (MESSAS, 2014), na experiência visionária as condições de

possibilidade são potencializadas e enriquecidas, ou seja, potencializam-se e ampliam-se

elementos da identidade do ser.

O paranóico atualiza integralmente uma realidade, sem observar o futuro, o drogado

não consegue manter a articulação do tempo, enquanto que o sujeito participante de uma

sessão com o curandeiro absorve a territorialidade estranha como particular e como horizonte

temporalizante do mundo projetando-se para frente, criando uma rede semântica repleta de

sentidos doadores de significado e perspectiva. Ambas as experiências afetam a percepção do

sujeito em sua globalidade, mas dialeticamente com destinos bem diferentes para o

participante.

Nesse contexto, entramos numa aporia com a questão das imagens mentais. A visão

ocupa estruturalmente o mesmo espaço e tempo do transtorno mental, das psicopatologias.

Tal aporia só se distingue quando do narrado, pois a região mental de ambos os fenômenos, a

visão religiosa e a alucinação paranóica têm uma mesma doação à consciência, onde o sujeito

é tomado extaticamente por imagens sem que possa controlar o sentido de apreensão do

fenômeno visionário, sem mediação da vontade.

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A psicose e a experiência mística são díspares pelo fato de haver uma protensão que

permite ao místico uma depuração posterior e uma introdução no vivenciado da nova

narrativa, sem que a mesma seja fruto de um processo de intencionalidade primeira, seria uma

intencionalidade segunda, que opera sem o campo da lembrança, contudo, como dado novo a

consciência. Assim como ver algo nunca antes visto, mas que se busca introduzir no horizonte

de sentido vivido.

1.3.2 Categorias visionárias e cultura material

A partir de uma análise mais detida sobre as condições de possibilidade do sentido é

ensejado notar as relações distintas entre estas modalidades normais e patológicas, para

compreender em que consistem as narrativas de experiências visionárias que se distanciam

das duas anteriores. Parte-se de uma tipologia importada da pesquisa de Shanon, e em seguida

aplicada à análise narratológica. Como aponta Shanon:

No entanto, os dados levantados aqui também são instrutivos por definirem,

na sua totalidade, o espaço semântico das visões da ayahuasca. Esse espaço

abrange quatro domínios principais. O primeiro é o domínio da natureza.

Como foi repetidamente apontado na discussão precedente, animais são

alguns dos elementos mais comuns nas visões. Paisagens naturais e cenas de

florestas e jardins são também frequentes. O segundo domínio é o da

cultura. Suas principais manifestações são as cidades majestosas, a

magnificência da realeza, os vários produtos da criação artística, religião e

magia. Usualmente, o que aparece nas visões não são conteúdos relativos ao

meio sociocultural do próprio bebedor, mas sim aqueles associados a

civilizações antigas. Além disso, a maioria dos objetos e artefatos, nas

visões, são esplendidamente ornamentados ou preciosos (ou ambos).

Similarmente, a maior parte dos edifícios que aparecem são palácios ou

templos, e entre os seres humanos muitos são reis e rainhas, ou figuras

religiosas e pessoas de ascendência espiritual. O terceiro é o mundo da

fantasia. Compreende terras mágicas e encantadas e é habitado por todo tipo

de criatura, que não são nem seres humanos nem animais (no sentido

naturalístico). Como foi indicado, os objetos e cenas que de ordinário

aparecem nas visões não são mundanos; estão com frequência associados à

mitologia, aos contos de fadas e à magia. O quarto domínio é o do espiritual

e do sobrenatural. As visões da ayahuasca muitas vezes revelam à pessoa

reinos celestiais. Nestes, comumente, aparecem seres divinos e semidivinos.

O domínio sobrenatural é via de regra associado a significados espirituais e

metafísicos que não são normalmente vistos ou considerados (SHANON,

2003, p. 136-137).10

10

Itálico nosso.

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Ou seja, as categorias, Natureza, Cultura, Fantasia, Espiritual e Sobrenatural são

elementos que recorrentemente aparecem nas experiências visionárias com o uso da

ayahuasca, por exemplo. Esses elementos podem ser vistos se intercalando no quadro de

Pablo Amaringo. A presença predominante da natureza, a descrição de diversas culturas,

elementos da fantasia popular, conectados numa temporalidade, simultaneidade e

espacialidade espiritual e sobrenatural.

O mesmo acontece e é absorvido pela cultura material. Após as visões, é comum essas

comunidades adotarem condutas, e os elementos visados ganham vida na cultura.

Em estudo11

produzido por Carlo Severi, é factível notar como o universo da cultura

entra na produção imagética da ritualística xamânica, em que se permite ver a adoção do

―homem branco‖ como espírito sobrenatural para os trabalhos de cura:

O grande antropólogo sueco E. Nordenskiöld, durante sua expedição de

1927 entre os Kuna, coletou muitos objetos interessantes, agora incluídos

nas preciosas coleções do Museu Etnológico de Gotemburgo. Entre esses

objetos existe uma série de estatuetas, esculpidas em pau-de-balsa, que

representam os "espíritos auxiliares". Essas imagens, usadas pelos

especialistas Kuna na recitação de cantos dedicados à terapia de várias

enfermidades, representam freqüentemente pássaros, tartarugas-marinhas e

outros animais. Às vezes, elas possuem uma vaga forma antropomórfica,

representando alguns dos seres sobrenaturais da mitologia Kuna (Figura 1).

Assim como em outras tradições indígenas americanas, essas imagens são

evocadas e solicitadas a ajudar durante rituais de cura. Entretanto, algumas

dessas figuras Kuna são mais surpreendentes (Figuras 2 e 3), pois

representam pessoas usando camisa, calça, chapéu e até gravata. Resta pouca

dúvida de que, mesmo sendo utilizadas pelos xamãs como espíritos

auxiliares nas suas viagens sobrenaturais, elas representam o Homem Branco

(SEVERI, 2000, p 124).

Nesse exemplo, o ponto intrigante a ser observado é como a interação do indígena e do

―homem branco‖ produzem a cultura material, e as narrativas possíveis destas intersecções do

discurso presente nesse fenômeno específico. Esta apropriação cultural é uma saída para

assimilar a alteridade agressiva do colonizador e transmutar sua intervenção, como Severi

comenta utilizando Taussig, esse movimento de aquisição de poder é fundamental para a

estrutura social dos Kuna:

11 O estudo de Carlo Severi referido é intitulado: Cosmologia, crise e paradoxo: da imagem de homens e

mulheres brancos na tradição Xamânica Kuna, publicada em 2000 na revista digital Mana – Estudos de

Antropologia Social.

Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132000000100005

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M. Taussig, por exemplo, identificou entusiasticamente nessas estatuetas

uma espécie de vingança simbólica da sociedade Kuna contra os invasores

Brancos. Essa interpretação, que pode parecer surpreendente à primeira

vista, é na verdade muito comum, sendo frequentemente aplicada a outras

situações de contato cultural. Manipulando a imagem do Branco, argumenta

Taussig, o xamã Kuna torna-se simbolicamente capaz de capturar o poder

dos seus antagonistas, exatamente como o sacerdote vodu, ou um possuído

Songhay, que ―captura o poder‖ de um padre católico ou de um

administrador francês tomando sua imagem e, assim, tornando-se ―similar a

ele‖ (Métraux 1958; Stoller 1984; 1989). Usando a imagem de um Inimigo

paradigmático em um contexto de ―magia simpática‖, Taussig argumenta

que os Kuna encontraram um modo de assimilá-la (SEVERI, 2000, p. 125).

Compreende-se como a extensão da narrativa pode tomar um corpo na memória

coletiva do grupo, sendo fundamental para assimilação dos conteúdos cotidianos e espirituais.

O que possibilita afirmar é que aplicar estas categorias a uma territorialidade onde se vê esse

universo holístico do mundo xamânico, em que não há uma separação radical como no mundo

ocidental, as experiências visionárias ganham vicissitude nesse universo integrado. Observa-

se como exemplo os Kuna:

No mundo Kuna cada ser tem seu território, e o padrão de organização

desses territórios se assemelha antes a um arquipélago composto por ilhas

separadas do que a uma estrutura única organizada em linhas hierárquicas.

Por outro lado, lá onde o pensamento ocidental estabelece uma

descontinuidade radical entre o homem e o mundo exterior, ou seja, no plano

espiritual (ou, nas versões modernas da mesma ideia, nos planos linguístico e

psicológico), os índios vêem apenas continuidade e troca contínua (realizada,

por exemplo, pela realização de rituais). No pensamento indígena, essa

continuidade sempre leva à representação do reino da natureza como uma

cultura. De acordo com os Kuna, os animais casam entre si segundo seus

próprios costumes; eles constroem suas aldeias na floresta; e falam sua

própria língua. Nem a vida social organizada nem mesmo o fato de falar uma

língua (e atribuir a isso o status de uma forma de conhecimento) pode dar ao

índio um lugar privilegiado no mundo. O que dá a qualquer ser sua própria

especificidade é, do ponto de vista Kuna, seu território: o espaço ao qual ele

pertence no universo (SEVERI, 2000, p. 139).

O contexto é claro, existe um território próprio de apropriação de narrativas

visionárias e onde é possível identificar elementos passíveis de uma análise hermenêutica que

parte da observação da narrativa. O modo de ser do pensamento indígena é diverso do

pensamento ocidental, e isso contribui para que as narrativas tenham uma territorialidade

clara, unificadora e utilitária. Mas, como será visto nos capítulos seguintes, isso também

ocorre de forma xamanóide nos grupos de Neoxamansimo urbano.

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1.3.3 Narratividade das visões xamânicas

Partimos para a aplicação do estudo em uma narrativa oral. Serão analisados dois

exemplos díspares, mas que são relevantes do ponto de vista da apropriação da narrativa como

determinação da realidade e a aplicação projetiva da mesma. No primeiro caso, aponta-se o

exemplo de visões espirituais, num caso jurídico de demarcação de terras pela Funai, na

reportagem de 30 de setembro de 2012, com o título ―Antropóloga bebe chá em ritual

xamânico e tem 'visão' para laudo‖:

Uma antropóloga contratada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) é

acusada de elaborar um laudo para demarcação de uma terra indígena depois

de ter participado de um ritual de xamanismo com o pajés da comunidade. A

denúncia é dos membros da Comissão em Defesa da Propriedade, que reúne

produtores rurais e pequenos empresários dos municípios de Getúlio Vargas,

Erebango e Erechim, no norte do Rio Grande do Sul. ―Sabemos que o Brasil

tem uma enorme dívida com os povos indígenas, mas o governo não pode

corrigir uma injustiça cometendo outra. Vão tirar 300 famílias de

trabalhadores para dar a 15 índios‖, argumenta Roberto Rota, integrante da

Comissão. Segundo eles, a antropóloga Patrícia Melo elaborou toda a

documentação depois de ter tido uma visão de que a área da reserva Mato

Preto, de 4 mil hectares, pertencia a antepassados dos indígenas. ―Os

antropólogos que atuam com questões indígenas costumam fazer juramentos

de fidelidade a estes povos e participam até de rituais com eles. Foi o que

aconteceu neste caso, em que a terra foi demarcada a partir de uma visão que

a antropóloga teve‖, acrescenta Rota. O decreto criando a reserva foi

publicado no Diário Oficial da União pelo Ministério da Justiça na última

sexta-feira (28.9). O deputado federal Jerônimo Goegen (PP-RS) vai

apresentar um decreto legislativo para suspender os efeitos da decisão, que

afeta diretamente 300 famílias de pequenos agricultores.12

Esse relato que mais parece uma anedota (no sentido que ocorre à margem de

narrativas mais importantes), mostra como é possível vincular a visão com aspectos

existênciais, no caso da antropóloga – não identificada na reportagem – definiu o resultado de

uma ação judicial. A decisão por sua vez tem um impacto importante para os indígenas, visto

que é positiva a seu favor, por outro lado, abre um conflito com os agricultores que querem a

propriedade das terras.

Não se tem acesso à visão em si, somente que se trata dos ancestrais daquele povo e,

nesse sentido, categoriza-se como uma visão espiritual e ou sobrenatural, pois para as culturas

indígenas a ancestralidade é sempre de cunho espiritual. Porém, pode-se dizer que, do ponto

de vista do ―homem branco‖, se trata de uma visão cultural, partindo do princípio que a

12

http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=283082

Acesso em 13 de Agosto de 2017.

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antropóloga estava envolvida na pesquisa para a escrita do laudo, e dessa forma, teria se

dando conta da ancestralidade da terra durante o ritual mencionado, propondo uma saída à lá

consciência histórica (RICOEUR, 2010). Nesse contexto, pode-se demonstrar que a visão tem

um olhar duplo e pode ser validada de mais de uma forma.

Outro exemplo, mais emblemático, é a visão do Padrinho Sebastião. Sebastião Mota

de Melo, mais conhecido como Padrinho Sebastião, é um líder religioso brasileiro fundador

da entidade religiosa CEFLURIS. Visão relatada por Alex Polari no livro O evangelho

segundo Sebastião Mota:

Tomei o Daime e fui para o meu cantinho. Era uma Concentração. Estava

todo mundo concentrado e eu como besta, de vez em quando dava uma

olhada. Via tudo quieto, aí eu me aquietava também ... Não sentia nada ...

Olhava os outros, tudo quieto. Com um pouco começou uma fervilhança de

um lado do corpo, passou pro outro, eu pensei: "o tal negócio tá chegando."

Eu fui criando medo e me deu uma desimpaciência, comecei reparar nos

outros. Eu quis sair do lugar onde estava, andei na pontinha do pé, mas

quando chego bem perto de onde a gente tomava o Daime ele me deu um

assopro. Eu achei tão fedorento! Ai voltei para trás. Quando eu vou

chegando no banco para me sentar de novo, uma voz falou: "o homem

perguntou se você era homem e você só fez é gemer!" Foi aí que o negócio

aconteceu. O mundo acabou-se! O corpo velho foi abaixo. O corpo no chão,

e eu, já fora do corpo, fiquei olhando para ele. E me sentia alegre, não tinha

nada de doença só quem sofria era o corpo que estava lá estirado. Nesse

momento se apresentaram dois homens que eram as duas coisas mais lindas

que eu já vi na minha vida! Brilhavam como o Sol! Mesmo que fossem

feitos apenas de fogo não era nada, porque o ser era muito mais bonito

ainda! Traziam uma aparelhagem que parecia muito pesada. Quando eles

chegaram, pegaram meu esqueleto todinho na mão. Puxaram meus ossos por

inteiro, que nem uma espinha de peixe. Olhavam e reviravam aquela ossada,

separando a costela do espinhaço, depois danaram-se a tirar tudo. Viravam e

limpavam tudo. Me mostravam tudo. De repente os ossos sumiram, quando

dei conta já estavam no corpo. Ai, viraram a carcaça que sobrou e partiram

em pedaços, pendurando tudo nuns ganchos. Puxaram para fora o intestino e

ficaram com ele todo na mão. Depois pegaram o fígado, cortaram, abriram, e

me mostraram. Tinham três bichos do tamanho de um besouro. Eram eles

que andavam para cima e para baixo, provocando todo aquele mal. Um dos

homens veio bem pertinho de mim, que a tudo observava fora do corpo, e

disse: "Estão aqui, quem estavam lhe matando eram esses três bichos, mas

não tenha medo que desses você não morre mais." Ai eles meteram os

órgãos e o esqueleto dentro do corpo e fui acordar já dentro dele. Não sabia

mais pra onde tinham ido os doutores, nem por onde tinha estado, levantei e

bati a poeira. Foi assim que fiquei bom e você ainda hoje não vê remendo

dessa operação que recebi. Graças a Deus fiquei bonzinho, igual um menino.

Já no dia seguinte era como se eu nunca tivesse tido nada e estou aqui ate

hoje (POLARI, 1998, 59-60).

No relato exemplificado, observa-se um misto de experiências espirituais, em que

seres de fogo, que brilhavam como sol, realizaram uma cirurgia no corpo de Sebastião que foi

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despedaçado e reunido novamente, como ocorre nas visões tradicionais dos xamãs siberianos

(ELIADE, 2002) que têm seus corpos costurados e seus esqueletos cozidos em grandes

caldeirões etc. Constata-se o quadro geral da visão.

A experiência de cura aqui é fundamental, pois Sebastião tinha uma enfermidade da

qual buscava tratar no trabalho espiritual. Durante a visão, ele pôde ver seu corpo sendo

curado da tal doença e afirma que o ocorrido se efetivou na realidade material. Sebastião

seguiu como membro da religião. Como constatado nos quadros de Amaringo, seres

sobrenaturais realizam as curas durante as sessões com poderes fora desta realidade ordinária,

que vêm e vão deste mundo como passe de mágica.

Essa narrativa é bem figurativa e demonstra o impacto que causa sobre a consciência,

as imagens são vivas e pertencem a um território imagético próprio do narrado, que por sua

vez se torna lembrança e flerta com a imaginação. Mas não se trata de uma visão inventada, e

sim uma visão que precisa ser contada para que outros tenham acesso à experiência de uma

temporalidade distendida da consciência ordinária.

O sentido amplo da narrativa é imagético, por mais que exista em algum momento o

diálogo entre os seres de fogo e Sebastião, a visão é totalmente material, são exemplos do

imaginário, mas que se intercalam com imagens não conhecidas do sujeito, produções

imagéticas típicas de jornadas xamânicas, principalmente com uso de plantas enteógenas.

Apesar de tratar-se de um relato oral, e posteriormente escrito, permite-se traçar uma

análise fenomenológica partindo do relato e voltando para a experiência de temporalidade do

padrinho durante a visualização. Pode-se citar que o mesmo se viu tomado por uma grande

ansiedade, a temporalidade está totalmente tomada pela relação de intersubjetividade com o

grupo, como se comportam e como reagem a seus movimentos. Sebastião se vê tomado por

uma compressão da espacialidade, que pede certa lentidão de movimentos (uma

concentração) e certo cuidado com o silêncio no local, sem movimentos extravagantes. Um

maneirismo toma conta do padrinho, que se vê envolto a um grupo desconhecido e têm

reações diversas de espanto com situações adversas (ser defumado).

Esse ambiente de ansiedade é rapidamente tomado por um ambiente de extrema

tranquilidade, momento em que Sebastião se vê desmaiando e sua alma saindo do corpo, e

passa a observar seu corpo doente. Sua consciência, por sua vez, se mantém tranquila, em paz,

com a sensação de que se libertou do corpo moribundo. Experiência maior é a chegada dos

seres de fogo. Sebastião observa de forma muito tranquila enquanto seu corpo é despedaçado

e reconstruído, sem nenhuma perturbação, na verdade, com certa curiosidade.

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Quando se da conta, já está no próprio corpo e nesse processo não se passaram nem

minutos, porém, uma cirurgia complexa acaba de ser executada. Não há neste sentido

nenhuma crítica sobre a duração da narrativa, pois do ponto de vista visionário a

temporalidade é fora do nosso escopo de evidência natural. Ou ainda, que a narrativa

visionária inaugura outro campo de evidência sobrenatural, que demanda temporalidades

diversas da ordinária, e que compreenda aspectos não coerentes com a realidade cotidiana.

Todos esses elementos ocorrem enquanto Sebastião está deitado, e toda a

temporalidade se sobrepõe, entre mundo vivido, vivenciado e visão espiritual. Nesse campo

de composição narrativa, a consciência que figura a temporalização vai e vem de tempos

míticos ao ordinário numa passagem poética para a narratividade da experiência. A visão é

sobreposta à realidade e vice-versa, transportando sentidos que participam de ambos os

planos, e movimentos de categorias naturais e espirituais de um quadro a outro num presente

contínuo.

Aponta-se aqui uma aplicação da metáfora como mecanismo de observação do

fenômeno narrado, onde o diagrama esquemático da experiência é disposto como duração à

consciência de forma poética, em que a intersecção de discursos ordinário/extraordinário e a

tripartite doação da temporalidade é comprimida num eterno agora, que se enraíza como

protensão no horizonte de sentido. Esse desenho é a metáfora, como capacidade de

constituição e elo de transposição entre as abas temporais. A duração permite que se institua a

consciência como memória de fluxo de vividos. Porém esses vividos são um sentido maior, de

ordenação da temporalidade. Dessa forma, a narrativa tem função fundadora e não secundária

na constituição da consciência humana.

Tal fenômeno, observado em um estado xamânico de consciência, tem elementos

totalmente diversos do ponto de vista ordinário, e é elemento de uma composição temporal

específica, que deve ser estudada sobre novas bases fenomenológicas, cujo movimento só é

possível com a introdução de uma perspectiva hermenêutica.

1.4 Visão narrativa e narrativa visionária como etapas narrativas da jornada xamânica

“Aixo era y no era”.

Todos os modos narrativos se apresentam como um grande modelo da narrativa,

elemento de constituição da noção de temporalização de si mesmo. A proposta de uma

narrativa visionária, aqui como parte da jornada xamânica, é nossa tentativa compreensiva de

orientar o discurso para a leitura do fenômeno do Neoxamanismo urbano.

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Esses modos da narrativa serão desenvolvidos ao longo do texto com exemplos e

aplicação sobre a manifestação religiosa estudada. Nesses parágrafos serão apenas indicados

alguns dos pontos principais, e indicada, oportunamente, a obra, para quem desejar obter

conhecimento mais aprofundado de um dos modos em específico.

O modo narrativo, portanto, é em ultima indicação uma só característica geral de

narratividade humana, modo de ser humano. A narrativa se apresenta diante do sujeito

fenomenologicamente e dentro de um círculo hermenêutico, onde a compreensão de todos os

si mesmo constitui e dá sentido para a narrativa intencionalmente.

Portanto, para uma leitura particular de modalização das narrativas, para uma tentativa

didática de tipologia do fenômeno, alerta-se para o fato que não há uma divisão da narrativa.

O si mesmo é narrador de si, é sujeito da narrativa histórica, país, cidade, da família, dos

amigos, o é também quando acessa narrativas visionárias, proféticas, através de visões, e é

narrador destas ao descrever o que vislumbrou para o grupo religioso que participa. Estas

modalidades das narrativas são simultaneidade, é um único horizonte de sentido imbricado em

toda a vivência.

Nesse sentido, a narrativa é em si um horizonte de sentido, como um caminho a ser

trilhado e como constituinte extático da temporalização humana. E entendendo este campo

complexo de doação da narrativa ao vivido é que se permite falar de condição de

possibilidade do narrar.

Indicam-se as narrativas, ficcional, histórica, pessoal como grandes temas geradores,

em que se encontram os diversos gêneros literários, assim como as questões de memória

pessoal e coletiva, e a composição de si como alteridade narrativa. Também se inclui a

narrativa do cotidiano como elemento significativo, donde surge a experiência vivenciada na

naturalidade da vida. Ademais, há as narrativas que fazem parte da vida religiosa, que estão

interligadas em algum aspecto com o gênero literário, como é o caso dos mitos e profecias,

também será introduzida outra característica de doação de sentido para a narrativa que são as

visões extáticas.

A experiência extática é nova doação, evento novo no horizonte de sentido, e logo

após o ocorrido se torna narrativa visionária, aqui chamada narrativas de poder (KREMER,

1985). Ao contrário de um som, de um elemento simples, como ver uma cachoeira pela

primeira vez (como evento, entendo que o sentido de uma primeira vez é sempre profundo),

ou ver uma pessoa desconhecida (como vemos todos os dias), entrar em uma rua nunca antes

percorrida etc.

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Esses eventos são novidade para a consciência, porém a visão místico-religiosa é em si

uma narração visual, que em muitos casos pode ter também texto (quando espíritos se

comunicam com o xamã durante a jornada xamânica). A visão é completa, pois tem imagem e

som, e em muitos casos sensações físicas. Já é uma narrativa na doação ao vivido. Entretanto,

não é como ouvir uma narrativa, a narrativa de poder é doada diretamente à consciência sem

mediação dos sentidos (os cinco sentidos da percepção) o que a aproxima da psicopatologia,

mas também da imaginação (porém existe um grau de volição no caso da imaginação).

A visão místico-religiosa, neste estudo entendida como jornada xamânica, ou

simplesmente jornada, é complexa, pois é dada a consciência como narrativa sinestésica no

mesmo momento em que a consciência é tomada e perde a volição. Porém, é possível

observar pelos relatos que existe certa autonomia, mas não para interação com a consciência

ordinária, com a realidade hilética, somente com os conteúdos dentro da jornada.

A jornada xamânica permite interação interna, mas não externa. Essa passagem da

doação, da interioridade para posterior exterioridade é em si um processo narrativo, num

contexto mimético de pré-figuração, configuração e refiguração (RICOEUR, 2010), sendo a

pré-figuração uma relembrança sobre elementos endógenos que constituem a visão extática.

Esse caminho apresentando por Ricoeur como a tríplice mímesis em Tempo e Narrativa I, nos

ajuda a entender como atua este processo de constituição do ato narrativo. Ainda em a

Metáfora Viva, já apresenta sua leitura sobre a mímesis aristotélica, introduzindo-a como

horizonte de possibilidade:

Toda mímesis, mesmo criadora, sobretudo criadora, está no horizonte de um

ser no mundo que ela torna manifesto na mesma medida em que ela eleva ao

mythos. A verdade do imaginário, a potência de revelação ontológica da

poesia, eis o que, de minha parte, vejo na mímesis de Aristóteles. É por ela

que a léxis é enraizada e que os próprios desvios da metáfora pertencem à

grande tarefa de dizer o que é. Mas a mímesis não significa apenas que todo

discurso está no mundo. Ela não preserva apenas a função referencial do

discurso poético. Enquanto mímesis physeos, ela liga essa função referencial

à revelação do Real como ato. É função do conceito de physis, na expressão

mímesis physeos, servir como índice para esta dimensão da realidade que

não se manifesta na simples descrição do que nela é dado. Apresentar os

homens „agindo‟ e todas as coisas „como em ato‟, tal bem poderia ser a

função ontológica do discurso metafórico. Nele, toda potencialidade

adormecida de existência parece como eclodindo, toda capacidade latente de

ação, como efetiva. A expressão viva é o que diz a existência viva

(RICOEUR, 2000, p. 74-75).

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O como se apresenta no horizonte doador de sentido na totalidade do discurso como

referencial. O ato de rememorar, assim como o ato de narrar, são elementos vivos, e

acontecem enquanto ação, essa ontologia das ações é uma poética e tratando-se de uma

experiência mística, tem eficácia de transfiguração. O que temos de diferencial é que a doação

à consciência na jornada não é uma doação à consciência do mundo da vida, só será quando

for narrado, tornando-se narrativa de poder13

.

Como afirmado, a metáfora opera a figuração da narrativa na duração da

temporalização, enquanto condições de possibilidade de intencionalidades da consciência, e

por sua vez, do discurso, nesse caso uma narrativa sobre experiências com o sagrado. A

mímesis é vivificante do mythos, mas é também estrutura de acontecimento da constituição de

mundo. Enquanto temos o mythos como tema gerador, a visão narrativa irá ao peso profético

redescrever as normativas, culminando no ato da narrativa visionária, onde todos os membros

da comunidade podem tratar de rever o mythos, e eticamente estabelecer releituras.

Portanto, narrar a visão já é um relembrança, e constitui um momento de doação de

sentido comunitário, mas também é uma busca por compreensão (algumas visões podem ser

estudadas por anos, até que o xamã entenda seu sentido verdadeiro). Assim como na poesia,

no conto de ficção a jornada opera uma variação imaginativa (RICOEUR, 1994) sobre a

consciência ordinária e acrescenta uma configuração à realidade, e a comunidade, por sua vez,

trata de operar uma refiguração. Esse processo é intensificado pela metáfora que opera em

todo o discurso, criando um campo de criação poética, que faz com que o processo narrativo

tenha um desenvolvimento para além da compreensão ordinária, ou seja, a metáfora como

força de transposição de limites. Quando se observa esse fenômeno endógeno da visão

narrativa extática depara-se com situações limites, que precisam de uma transposição da

linguagem para poder ser absorvida e comunicada. Como comenta Ana Maria Lisboa de

Mello:

Na metáfora, a redescrição é guiada, conforme Ricoeur, pela reciprocidade

de ação entre diferenças e semelhanças, processo que provoca tensão no

nível da enunciação. Essa tensão leva à nova visão da realidade, em relação à

qual a visão ordinária oferece resistência, devido à ruptura com o nível

13

Podemos afirmar que a visão narrativa extática é formada e se apresenta com conteúdos do campo da

linguagem corrente, podendo ter elementos que dizem respeito à realidade ordinária, porém não é fruto de

memória, mesmo entendendo que existem conteúdos que a consciência não mais lembrava e que estavam

sedimentados na inconsciência (num contexto psicanalítico), porém, em geral as visões narrativas do mundo

espiritual apresentam conteúdo totalmente inédito ao sujeito, elementos e entidades não existentes na realidade

ordinária.

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cotidiano da linguagem; o eclipse do mundo objetivo é que abre caminho à

revelação de uma realidade e verdade novas (DE MELLO, 2002, p. 87).

Por sua vez a metáfora e a linguagem religiosa são correlatas que compõem a

realidade e a ―linguagem religiosa é uma metáfora-limite. Ou melhor, toda e qualquer

abordagem dialética dessa linguagem se abre ao poder de redescrição.‖ Ademais, ―há,

entretanto, uma tensão semântica que está entre a forma narrativa e o processo que impele a ir

além dos limites da narração, criando uma incoerência narrativa. Esse processo é o processo

metafórico deflagrado pela presença das expressões limite‖ (PACHECO, 2017, p. 154-155).

As jornadas (como imagem narrativa) e as narrativas visionárias derivam de um tipo

de linguagem não ordinária, uma linguagem extática (MÜNERA; BIDOU; PERRIN, 1985). Ela

se diferencia da narrativa mítica, pois têm a função de quebra, de recondução da comunidade.

E a redescrição é criativa, pois como discurso poético recria as ordens sociais. As jornadas e

narrativas de poder são desse tipo de metáfora limite, como exemplo:

Pero hay una importante diferencia entre el discurso de los mitos y las

palabras del chamán. El primero relata los sucesos que provocaron el estado

actual del mundo, cuenta cómo se instauró, se estableció. Es, implícita o

explícitamente, un discurso normativo, común a toda la sociedad. Las otras

son específicas y tienen la capacidad de actuar, de crear, de modificar. El

poder del chamán -sobre todo el de interpretar y de oponerse a las desgracias

humanas emana de sus palabras y depende de su capacidad de comunicarse

con el ―otro mundo‖ (BIDOU; PERRIN, 2000, p. 6).

Esse contexto ajuda a compreender a variação imaginativa provocada pela linguagem

extática. Essa comunicação dialoga com a narrativa mítica e inova suas determinações

primordiais dando e compondo elementos que revitalizam suas diretrizes e introduzem novas

sentenças no fluxo corrente da realidade. As palavras do xamã atuam sobre a realidade,

penetrando sobre e através da criação primeira:

Esta comunicación está además asegurada por diversas sustancias y objetos,

por espíritus auxiliares, que viven en el cuerpo del chamán o en el mundo

exterior, que le ayudan y le protegen, y también por otras prácticas que

movilizan todos sus sentidos y sus energías. Pero el contacto de su espíritu

con otros espíritus, de su cuerpo con otros cuerpos, se efectúa, sobre todo,

por medio de sus palabras, por intermedio de sonidos modulados, de

palabras mágicas que corren por su boca, entran en vibración en el espacio y

penetran la materia para transformarla. Estos encantamientos del chamán son

mal conocidos y poco estudiados; pues no solamente se componen de

palabras particulares, o de palabras ordinarias con significados especiales,

sino que su sintaxis rompe también con el orden discursivo de los mitos que

despliegan linealmente los objetos y entes del mundo. Las fórmulas, los

cantos, las oraciones del chamán recorren los caminos de la creación con

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palabras que no describen únicamente las cosas sino que las tocan

concretamente, en sus constituciones que los desmenuzan en principios

elementales, constituyentes de todo ser. El trabajo del chamán exige una

extrema energía para reproducir, a través de la sinergia de los ritmos y de las

fornidas de sus palabras, los movimientos que animan desde el interior los

cuerpos de los seres y de las cosas. Para estudiar bien las palabras del

chamán, se debe, en cierta manera entender. Entender que los elementos del

mundo están ligados los unos con los otros, a lá manera de los motivos del

mito que el chamán con su mente descompone y compone incesantemente

para descubrir los movimiéntos que los animan. y entender que aquellos

motivos y movimientos ño son, en el plano del pensamiento, más que la

duplicación de las formas y de los flujos que constituyen y reconen el

universo de la material (BIDOU; PERRIN, 2000, p. 6-7).

Esse universo de narrativas compõe o diálogo necessário para que haja um ponto de

comunicação entre o mundo ordinário e o não ordinário, possibilitando a nova acepção do

discurso no mundo vivido.

Segundo Múnera:

El ―lenguaje extático‖ hace referencia a una forma de comunicación, que se

presenta durante los estados alterados de consciencia, conocidos como

éxtasis. A estos estados de ―inconsciencia‖ se llega por diferentes formas: a

través de psicotropos; o como recientemente se les ha denominado,

enteógenos o ―sentir la divinidad adentro‖ (ver Gordon Wasson y Carl Ruck,

entre otros); sicógenos, que en su mayoria son de tipo botánico, en forma de

extractos o como ―naturales‖. otra forma de alcanzar tal paroxismo, es a

través de cánticos, fórmulas ensalmatorias u otro tipo de dicciones

moduladas; que generalmente van acompañadas de movimientos corporales,

como la áanru, el palmoteo y contorsiones ritmicas y acompasadas. El estado

extático puede ser alcanzado mediante una de las formas, o con la

combinación de ambas. Este estado ―alterado‖ es compartido por la

comunidad, que lo comprende y lo revitaliza, a través de los rituales y los

poderes que le son cofiere. El chamán se convierte, entonces, en un

representante de la comunidad, en un mensajero, comunicador y puente,

entre la realidad tangible y otra ―realidad‖ no-ordinaria' El es, a la vez,

emisor de mensajes, receptor e intérprete de un universo semiológico, que

mediaiiza los diferentes canales y elementos, que van desde lo

palpablemente material, hasta lo trascendente, en donde todo es posible:

hasta los ―imposibles‖ (MÚNERA; BIDOU; PERRIN, 2000, p. 121).

Ou seja, a linguagem do impossível feito possível. Nesse sentido, se assemelha ao

discurso profético apresentado por Ricoeur:

O discurso profético, na linguagem religiosa, é impessoal, articulado pela palavra, pelo

diálogo entre um Deus (Ele) e Tu (o ser humano) (RICOEUR, 2011, p. 145-152). É a

palavra que articula, que faz reler os fatos e que se abre a uma inteligência mais

profunda. Ricoeur nos diz que essa palavra não pode se articular em nenhum sistema,

porque entre a segurança que é conferida pela narração dos eventos fundadores e a

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ameaça anunciada pelo profeta, não há nenhuma síntese racional, mas uma confissão

dupla e plena que somente a esperança pode unir (PACHECO, 2017, pg 153).

Essa intersecção dos discursos é fundamental para entendermos posteriormente o

efeito da narrativa como modalidade catártica. No caso, na recepção do discurso visionário

xamânico nas experiências religiosas do Neoxamanismo urbano, encontra-se uma teia

metafórica que liga o evento histórico contemporâneo ao modo narrativo visionário indígena.

Como salienta Múnera esse fenômeno urbano é xamanóide, lembrando terminologia

de Victor Turner, na qual a ritualidade contemporânea não encontra sua profundidade na

liminaridade, como aponta o autor, são sociedades liminóides (TURNER, 2008). As

sociedades urbanizadas não vivem a transformação operada pelo processo ritual, mas ainda

assim se beneficiam da narrativa de poder que advém das jornadas xamânicas, mesmo que

seja uma apropriação xamanóide.

A linguagem extática, por meio da visão narrativa e profetismo, tem a função social

de introduzir um modo poético à narrativa comunitária, que, por sua vez, opera variações

imaginativas no horizonte de sentido do sujeito, criando uma nova possibilidade de interação

com o discurso vigente, seja ele mítico ou liminóide, ambos são atacados de frente pela

linguagem metafórica, que opera a transição no vivido e reescreve as condições de

possibilidade narrativa pela capacidade criadora, ou seja, poiética. Dessa afirmação

determina-se a forma como o Neoxamanismo urbano se introduz na vida da metrópole, como

elemento vivificador do cotidiano. Esse elemento narrativo da jornada xamânica é como

iremos mostrar, o que mantém o elo do hibridismo urbano e o xamã indígena. Onde o xamã se

apresenta como mediador entre mundos, no Neoxamanismo urbano esse processo irá se

democratizar, principalmente com a popularidade do uso de enteógenos14

nesses grupos e com

o discurso de que ―todos somos xamãs‖.

Nesse processo, a palavra imbuída de uma metáfora dentro da linguagem extática

deixa de ser uma palavra comum e passa a operar como mágico-religiosa:

Una paciente me explicaba su experiencia del lenguaje del curandero. Ella

sentia que era él quien la habia sanado: ―Yo estaba tan mal, las pastillas, los

médicos que me veian, nada me ayudaba. Me revolvía en el suelo como una

culebra cuando me daban las crisis. Tántas pastillas y nada. El médico decía

a mis familiares que no se preocuparan, que habian otros pacientes más

graves que yo. El curandero me habló con tanta certeza, con tanta seguridad,

14

Plantas e preparos naturais que promovem a expansão da consciência ordinária e favorecem a comunicação

extática. No caso do Neoxamanismo urbano a planta mais conhecida é a Ayahuasca de tradição amazônica.

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que me hizo sentir que él sabia que me iba a curar. Cuando me rezaba

llamaba a San Gabriel, creo. Llamaba para que lo ayude en la curación.

Después se ponia a hablarle a lo que yo tenia adentro que me hacia daño. 'Sal

de alli', le decía. 'Sal de alli y déjala en paz. Ella ya te conoce, ya te ha

sentido, y no le gusta, no quiere ya nada contigo. ¡Ella no quiere que te

quedes adentro!', así le hablaba hasta que lo fué sacando. Y después me daba

unas aguas para que me bañara en mi casa y al usarlas yo tenia que ir

rezando el Credo‖. Y concluyó, pensando, ―Así me curó, me dejó en paz y

tranquilidad‖ (KREIMER; BIDOU; PERRIN, 1985 p. 169).

Portanto, a palavra na linguagem extática também recebe novas significações,

contribuindo para a afirmação da narrativa de poder como elemento de transfiguração do

vivido e se colocando como expressão limite da realidade. Nesse sentido ―a metáfora envolve

potencialmente os aspectos mais criativos da imaginação humana e cognição‖ (CAMP, 2006,

p. 166), e o projeto inicial passa a obter novos horizontes de sentido nas metáforas limite.

Assim, enquanto que a interpretação existencial coloca o acento

principalmente sobre a decisão pela nova existência, eu quero dizer que a

metanoia produzida pelas metáforas limite significa em primeiro lugar uma

transformação da capacidade de imaginação. Nesse sentido, toda Ética, que

se dirige à vontade para dela solicitar uma decisão, deve agir subordinada a

uma Poética, que abre novas dimensões à nossa capacidade de imaginação

(RICOEUR apud GROSS, 2010 p. 48).

Revendo os parâmetros de composição e recepção das jornadas xamânicas, pode-se,

como Ricoeur, propor uma sedimentação ética que desabrocha com a nova caracterização da

realidade e dos horizontes de sentido refigurados pela narrativa de poder numa fusão de

horizontes desde o imaterial ao mundo da vida metonimicamente.

Conclui-se que:

A visão narrativa é um fenômeno que se doa à consciência sem mediação da

percepção pelos sentidos de forma endógena.

É diferente da imaginação por não ser fruto da volição.

Também se diferencia das psicoses e doenças mentais pela capacidade de

protensão, de criação de conteúdos a serem depurados posteriormente.

A narrativa de poder é uma etapa de comunicação da visão narrativa que compõe

juntamente a comunidade e o sujeito, na redescrição via discurso metafórico da

realidade vivida.

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A narrativa de poder amplia os horizontes de sentido do sujeito e da comunidade.

A metáfora tem a força de figurar a narrativa na duração da temporalização do

vivido.

A redescrição via discurso metafórico deságua em um horizonte ético.

A ética necessita de uma poética.

A proposta de uma fenomenologia da ―origem‖ da visão narrativa extática é

fundamental para compreensão do fenômeno que se dá à consciência.

1.5 Fenomenologia da origem da visão extática

A partir dos problemas até aqui apresentados, nos parece claro que a visão extática

tem origem endógena e que se estrutura a partir de uma linguagem extática. Sua origem é uma

aporia, visto que não temos acesso ao fenômeno primeiro, e pudemos perceber que existem

diversos fatores que estruturam de forma semântica essa vivência. O vivido da visão extática

não parte de uma intencionalidade sensível, mas de uma intencionalidade extática, onde as

vivências involuntárias tomam papel principal.

Observa-se que existe durante a vivência extática, nos estados xamânicos de

consciência, uma integração entre corpo e consciência. Como vivência endógena, ela só pode

ocorrer no corpo, que é onde faz sentido toda a estrutura do ser. O corpo é a porta de entrada

para a jornada interior. São diversas as possibilidades para provocar o estado xamânico de

consciência, seja por intermédio de dança, exaustão física, jejum, meditação prolongada,

ingestão de plantas enteógenas etc. A corporeidade é a porta por onde se instaura o estado de

consciência que permite a visão extática. No entanto, ele não é mero mediador, é também

sobre ele que se efetua toda a vivência. As sensações de leveza, a embriaguez, a vivência de

não sentir o corpo, e até o desligar-se do corpo têm como horizonte de possibilidade a

corporeidade.

Por outro lado, é muito rica a reflexão que compreende a visão extática como uma

vivência que não foi mediada a princípio pelos sentidos. O que é ―visto‖ durante a vivência é

totalmente alheio à memória, a qualquer lembrança, em outras palavras, é uma

intencionalidade na temporalidade extática. Uma semântica narrativa com suas

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especificidades. Percebe-se que não há vivência que não passe por uma temporalização, e

este papel narrativo fundamenta nosso estudo.

A linguagem extática é resultante desse ambiente, em que não há uma retenção

sensível, ou mesmo imaginativa, é uma vivência de total alteridade e involuntariedade. Nesse

campo endógeno é que ancoramos este debate, na perspectiva de aproximação desse

fenômeno pré-reflexivo, que tem tamanha importância para a história humana.

Após algum tempo, mediante estas diversas técnicas, o ser se aprofunda

gradativamente no estado visionário, e passa a se comportar com outra estrutura de

compreensão. Essencialmente, a temporalidade, espacialidade e ipseidade são altamente

modificadas, propiciando uma linguagem extática que garante este novo mapeamento de uma

pré-reflexividade. No campo de metáforas limite, onde toda linguagem é pura criação que se

fundamenta a relação entre estrutura e antiestrutura (TURNER). A antiestrutura se introduz na

estrutura como forma de reestruturação, de redescrição. Como é formada na antiestrutura a

partir de vivências endógenas, e como o involuntário propõe sem consultar elementos

fundadores à consciência do ser, a partir desta linguagem extática a visão é um fenômeno de

difícil recorte. Pode-se dizer que esta é uma experiência de mistério, e que essas imagens são

arquétipos muito antigos, do início da consciência humana. A estrutura depois de formada,

como nossas interações narrativas, passado e futuro, temporalizam o vivido, mas ainda assim,

existem elementos da antiestrutura que nos causam espanto e interesse.

A visão se assemelha a uma vivência dos sentidos, são imagens que se formam

diretamente no nosso campo mental, sem que haja interferência. Porém, dependendo do nível

de aprofundamento é possível dialogar nessa linguagem extática, buscando compreensão e

conexão com esse universo. Nesse campo é que existem as comunicações espirituais, onde o

xamã navega entre os mundos. Tal interação entre a intencionalidade da consciência ordinária

e a linguagem extática é fruto de um treinamento, e os xamãs aprendem uma nova forma de

comunicação, a conexão com o mundo espiritual, a linguagem dos espíritos.

É uma vivência que prescinde de doação, não pode haver muito interferência, o ser

precisa de certa disposição para o involuntário, sem julgamento ou fuga. Essa disposição e

pedagogia próprias para a compreensão dessa linguagem extática são frutos de treinamento

tanto espiritual, ou seja, de permanência nesse lugar, como de instrução cultural específica.

Dessa forma, o Neoxamanismo urbano têm se estruturado em torno de uma nova

tradição, que possa dar conta da codificação necessária para que esta vivência faça sentido

para os participantes, que hoje, democraticamente buscam acesso a este horizonte de sentido.

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No terceiro e quarto capítulos se estrutura o Neoxamanismo urbano como tradição

contemporânea, a partir de diversos estudos e tipologias. Assim, é possível apresentar o

quinto estudo, onde iremos aprofundar a questão do sujeito da ação deste estudo; a

constituição das identidades que são fruto da elaboração a partir das visões narrativas e das

narrativas visionárias próprias do mundo do Neoxamanismo urbano.

Porém, como apresentado neste estudo, essas narrativas são parte de uma estrutura

pré-reflexiva da própria humanidade. A partir de tipologias e morfologias possibilita-se

identificar estes ―arquétipos‖ que são base do imaginário ao longo de mais de cinquenta mil

anos de descobertas arqueológicas sobre o xamanismo.

Em grande parte, as comunidades ―não ocidentais‖ têm preservado algumas destas

modalidades de ser e de narrar o tempo e o espaço. Antes de estruturar o Mythos do

Neoxamanismo urbano, a intriga, analisa-se as principais metáforas que se encontram no

estudo fenomenológico sobre o xamanismo nativo. Portanto, parte-se da leitura Eliadiana,

demonstrando as morfologias que o filósofo encontrou nos estudos clássicos, acrescentando

em alguns pontos elementos de estudos atuais, sem perder de vista a hermenêutica estruturada

pelo autor, onde as morfologias e os modos de ser aparecem como ferramentas de observação

do fenômeno religioso.

Outro ponto forte a indicar é que a obra de Eliade sobre o xamanismo é um dos poucos

estudos de fôlego na área hermenêutica e fenomenológica, e não se pode passar por este

trabalho sem tratar desse estudo dentro da nossa tradição epistemológica.

Quando oportunamente forem aplicadas essas metodologias, para elaborar o Mythos

no Neoxamanismo urbano, haverá um plano de fundo para uma análise comparativa. Neste

sentido, será abordado primeiramente o Mythos do xamanismo tradicional pela hermenêutica

morfológica de Mircea Eliade, depois, será estruturada uma hermenêutica própria do

Neoxamanismo urbano e sua narrativa.

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2 CAPÍTULO 2: MYTHOS XAMÂNICOS, TIPOLOGIAS, TÉCNICAS E AS

NARRATIVAS ORIGINÁRIAS NA HERMENÊUTICA ELIADIANA

O objetivo deste capítulo é mostrar o pano de fundo que dá suporte para as narrativas

do Neoxamanismo urbano. O Xamanismo tradicional praticado por diversas etnias pelo

mundo são um manancial, arquivos de humanidade, que são a base do enredo que figura as

narrativas dos participantes desses grupos. Nesse sentido, segue-se primeiramente do Mythos

para tratar dos aspectos que fundamentam o ―mundo antes do texto‖; em verdade existe um

mundo da vida que é chão da manifestação xamânica Strictu Sensu, mas, aqui, refere-se a

uma segundidade dos símbolos, onde ocorre a configuração destas narrativas no horizonte

urbano das grandes metrópoles.

As narrativas que encontradas no Neoxamanismo urbano bebem nesse manancial e,

por esse motivo, é preciso dar uma atenção especial ao vocativo do Neoxamanismo urbano,

mesmo que, como será visto no capítulo seguinte, o Neoxamanismo urbano não tenha origem

no Xamanismo indígena. O fato é que esse manancial sobrevive como infraestrutura das

narrativas que tocam as vidas dos praticantes, num processo de desvelamento da

espiritualidade de cada indíviduo que participa das rodas de Neoxamanismo urbano. Há uma

rede temática que percorre cada um desses centros espirituais e que constitui uma teia de

metáforas que contribuem para essas narrativas.

As narrativas têm importância crucial nesse processo, pois:

Toda existência humana é uma vida em busca de uma narrativa. Isto, não

apenas porque ela se empenha em descobrir um padrão com o qual lidar com

a experiência do caos e da confusão, mas, também, porque cada vida humana

é quase sempre implicitamente uma história. Nossa própria finitude nos

constitui enquanto seres que, em resumo, nascem no começo e morrem no

final. E isso dá a nossas vidas uma estrutura temporal que busca algum tipo

de significação em termos de referências ao passado (memória) e ao futuro

(projeção). Assim, poderíamos dizer que nossas vidas estão constantemente

interpretando a si próprias – pré-reflexivamente e pré-conscientemente – em

termos de começos, meios, e fins (ainda que não necessariamente nessa

ordem). Em síntese, nossa existência já segue de algum modo um enredo

prévio, antes mesmo que conscientemente busquemos uma narrativa na qual

reinscrever nossa vida como história de vida (KEARNEY, 2012 p. 412).

A história de cada pessoa é a narrativa que se fundamenta nas peripécias da vida. Em

cada ocorrência, nos amores e tristezas, nos arrependimentos e nas descobertas. Em cada

narração há uma possibilidade de inovação da vida, de tomadas de decisão e de possíveis que

se abrem para a estrutura já vivenciada até o momento. Todo corpo tem uma história de vida,

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e toda história de vida tem um corpo, parafraseando Binswanger (2002), as narrativas são

fundamentos mais que importantes para a vida do sujeito, não há uma bifurcação entre a

mente e o corpo, ou mesmo entre as narrativas das diversas pessoas, pois se narrando e sendo

narrado é que se estrutura a própria indentidade.

As narrativas são primordiais nas comunidades indígenas, em que a oralidade é a

principal ferramente de perpetuação da cultura, dos saberes. Sendo assim, narrar e ser narrado

é fundamentalmente à prática cotidiana. Mas também narrar os mitos fundadores e etiológicos

é fundamental nas mudanças de ciclos como ações exemplares.

Como salienta Kearney:

Aristóteles foi um dos primeiros filósofos a identificar esse padrão

prénarrativo, ao ponto de perceber que a existência humana é uma existência

de ação, e que a ação é sempre conduzida tendo em vista alguma finalidade –

ainda que esse final seja o seu próprio. Em outras palavras, como agentes

humanos estamos sempre prefigurando o nosso mundo em termos de uma

vida interativa com os outros. O trabalho do mythos, tal como definido na

Poética, fornece uma gramática específica a essa vida de ação, ao transpô-la

para 1) um contar; 2) uma fábula ou fantasia; e 3) uma estrutura construída.

Todos os três sentidos do mythos trazem a função comum da narrativa

enquanto poiesis: ou seja, um modo de fazer de nossas vidas histórias de

vida. Este processo já está em ação em nossa existência cotidiana, mas

apenas se explicita quando transposto para os gêneros poéticos da tragédia,

da épica ou da comédia (os três gêneros reconhecidos por Aristóteles)

(KEARNEY, 2012, p. 413).

Sendo assim, será deleniado o Mythos que dá origem às narrativas do xamanismo

urbano, mostrando as metáforas, e as narrativas do xamanismo indígena e suas primeiras

relações com o xamanismo urbano. O xamanismo urbano, de onde surgem os símbolos para

tornarem figurativas as ações, oferece o chão de onde podem surgir as redes de relações

simbólicas para a constituição narrativa, como afirma Kearney:

Mas a questão que mais precisamos ter em mente é que, desde a descoberta

grega da vida humana (bios) como ação significativamente interpretada

(praxis) até as mais recentes descrições da existência enquanto

temporalidade narrativa, existe um perpétuo reconhecimento de que a

existência seja inerentemente narrativa. A vida está prenhe de histórias. Ela é

um enredo nascente em busca de uma parteira. Porque dentro de cada ser

humano existem inúmeras pequenas narrativas tentando escapulir.

(KEARNEY, 2012, p 413).

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Ou seja, a vida é um movimento contínuo de narrações, e o xamanismo urbano é um

lugar para si narrar e narrar histórias, como nos velhos tempos em que as primeiras nações se

reuniam ao redor da fogueira e contavam suas narrativas.

2.1 O Xamanismo Strictu Sensu Eliadiano

Desde o início do século, os etnólogos se habituaram a utilizar como sinônimos os

termos xamã, medicine-men, feiticeiro e mago (também podemos falar de pajés e curandeiros)

para designar certos indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso encontrados em todas

as sociedades ―primitivas‖. Por extensão, aplicou-se a mesma terminologia ao estudo da

História dos povos ―civilizados‖ e falou-se, por exemplo, em Xamanismo indiano, iraniano,

germânico, chinês e até babilônico para referir-se aos elementos "primitivos" encontrados nas

respectivas religiões (ELIADE, 1998).

Por várias razões, tal confusão só pode prejudicar a compreensão do fenômeno

xamânico em si. Os relatos de cura sempre aparecem repletos dos símbolos que de alguma

forma se apresentam como elementos sobrenaturais, mas que observam padrões peculiares e

repetidos em diversos casos. Nesse âmbito, utilizavam o termo xamanismo como sinônimo de

algo ultrapassado, pois não seria mais praticado no novo mundo. Todavia, ao relatar esses

fenômenos os mesmos etnólogos e ulteriormente os antropólogos estavam exatamente

vivendo no ambiente de nascimento desses xamãs, desses feiticeiros, e não em solo europeu.

O que mostra como os mesmos estavam utilizando um modelo de fora para observar o

fenômeno, e não usando a própria escala de conhecimento.

Mircea Eliade dá um passo à frente e busca estabelecer conceitos mais precisos para a

análise da História das religiões. Por este motivo o filósofo parte para uma definição em

Xamanismo e as Técnicas Arcaicas de Êxtase. Ora, para o Neoxamanismo urbano, o

Xamanismo indígena, tradicional, é um manancial de conhecimento, é um lugar de inspiração,

é um modelo a ser seguido, rompendo o conceito moderno de ciência positivista e mesmo as

metafísicas ocidentais (se observará que em muitos casos os grupos de Neoxamanismo urbano

repreduzem a metafísica ocidental, mas conseguem reverter padrões e modelos há muito

arraigados na cultura moderna, a partir do contato com rodas de cura):

Gracias a la reivindicación de la identidad indígena, los ―neochamanes‖

encuentran uma posición de visibilidad que viene acogida y captada con

particular atención em Europa. Lo que se presenta a los occidentales en la

búsqueda del chamanismo es una tradición que se desarrolla en un tiempo

mítico, un ―illo tempore‖ lamentablemente perdido, y es aquí donde la figura

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del chaman se constituye como el eslabón entre este espacio perdido y el

presente. Quienes consultan el chamanismo aprenden, a través de la practica

de la filosofía oriental como la meditación, el modo de restablecer la

conexión entre la ruptura del cuerpo y del espíritu. La reconstrucción de esta

dualidad es la base del bienestar mental y físico, en una visión de la

enfermedad física que es considerada como bloqueo energético. La lectura

de la medicina occidental es considerada como peligrosa y vista como

consecuencia de la colonización cultural de los Estados Unidos. Cuando se

habla de relación entre el chaman y el seguidor occidental estamos de frente

a um ―nomadismo de la creencia‖ donde el recurso a la acreditación de la

tradición tiene una doble utilidad: primero - la reivindicación política

orientada a una revalorización del ―ser‖ indígena, y también - una

presentación de la alteridad exótica como sistema coherente de creencias que

sirven como una especie de conversión al revés, donde los indígenas llevan

la "Palabra" a lós occidentales (LOMBARDI, 2011, p. 3).

Este nomadismo de crença auxilia a inserção de paradigmas xamânicos no meio

urbano e amplia a aceitação da prática no cotidiano, desde o uso de artesanato indígena, como

elementos de conexão identitária, como a defesa de políticas indigenista e até, em alguns

casos, adotar nomes indígenas.

O Xamanismo indígena é um vasto baú de narrativas, pois o xamã tradicional é

psicopompo e pode ainda ser sacerdote, místico e poeta. Para Eliade, o Xamanismo strictu

sensu é, por excelência, um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático. A palavra chegou

até nós por intermédio do idioma russo, do tungue saman. Nas outras línguas do centro e do

norte da Ásia, os termos correspondentes são o iacuto ojun, o mongol bügä, bögä (buge, bü) e

ugadan (cf. também o buriate udayan e o iacuto udoyan, a ―mulher-xamã‖), o turco-tártaro

kam (altaico kam, gam; mongol kami etc.). Tentou-se explicar o termo tungue a partir do páli

samana (ELIADE, 1998). ―Uma primeira definição desse fenômeno complexo, e

possivelmente a menos arriscada, será: Xamanismo = técnica do êxtase‖. Mas, observa-se seu

movimento na história, ganhando diversas qualidade e distinções, apesar de identificar a

estrutura geral do fenômeno:

O Xamanismo é para Eliade, uma técnica entre as técnicas arcaicas do

êxtase. Apresenta-o em diferentes aspectos históricos e culturais, analisando

a formação do Xamanismo na Ásia Central e Setentrional. Investiga ao

mesmo tempo sua ideologia, técnicas, simbolismo e mitologia. Considera o

Xamanismo em geral e suas técnicas como ―universo mental vasto e

movediço‖ (1976:16). Visando limitar o uso do vocábulo, adverte que o

xamã é também mago, medicine-man, sacerdote, místico e poeta, sem que o

inverso seja necessariamente verdadeiro. O Xamanismo tem "estrutura"

específica e ―história‖. Localiza a ―história‖ do Xamanismo stricto sensu

como fenômeno siberiano e central - asiático, por considerar que nessa

região a ―(...) experiência extática é a experiência religiosa por excelência‖.

Baseado nesse dado ele formula a primeira definição: ―o Xamanismo é a

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técnica do êxtase‖ (1976:22). Assinala que os mesmos fenômenos do

Xamanismo asiático foram observados e descritos na América do Norte.

América do Sul, Indonésia. Oceania e em outras partes, advertindo que a

presença de ―complexo xamânico‖ não indica, forçosamente, que a vida

religiosa em questão tenha se ―cristalizado em torno do Xamanismo‖.

Admite que isso possa acontecer e cita como exemplo ―determinadas regiões

da Indonésia‖. Destaca que o mais comum é a ―coexistência do Xamanismo

com outras formas de magia e de religião‖ (CEMIN, 1976, p. 22).

Por isso, nas comunidades siberianas o xamã não pode ser confudido com um mago ou

um medicine man, um feiticeiro ou qualquer outro sacerdote, ele tem especificidades, usa

ferramentas de transe específicas, como comenta o antropólogo Michael Harner:

Quando um xamã curandeiro é chamado para tratar de um paciente, sua

primeira tarefa é o diagnóstico. Ele bebe a ayahuasca, água de fumo verde,

e, às vezes, o suco de uma planta chamada pirípirí, quando chega o fim da

tarde e a noite se inicia. As substâncias que modificam a consciência

permitem-lhe ver o interior do corpo do paciente como se ele fosse de vidro.

Se a doença for causada por feitiçaria, o xamã curandeiro verá a entidade

intrusa no corpo do paciente, de forma nítida o bastante para determinar se

possui o espírito auxiliar apropriado para extraí-la por sucção (HARNER,

1995, p. 46).

Esse processo é mediado pela formação e instrução do xamã, que obedece a uma

estrutura tradicional, segundo Eliade (1998), na Sibéria e no nordeste da Ásia, as principais

vias de recrutamento dos xamãs são: 1) transmissão hereditária da profissão xamânica e 2)

vocação espontânea (o ―chamado‖ ou ―escolha‖). Há também casos de indivíduos que se

tornam xamãs por vontade própria (como, por exemplo, entre os altaicos) ou por vontade do

clã (tungues etc.). Mas, estes últimos são considerados mais fracos do que aqueles que

herdaram a profissão ou atenderam ao ―chamado‖ dos deuses e dos espíritos. Qualquer que

tenha sido o método de seleção, um xamã só é reconhecido como tal após ter recebido dupla

instrução: 1) de ordem extática (sonhos, transes, etc.), 2) de ordem tradicional (técnicas

xamânicas, nomes e funções dos espíritos, mitologia e genealogia do clã, linguagem secreta,

etc.). Essa dupla instrução, a cargo dos espíritos e dos velhos mestres xamãs, equivale a uma

iniciação. A partir dessas definições, Mircea Eliade, partiu para um olhar pormenorizado de

detalhes das práticas xamânicas em outras culturas, e também se aprofundou no uso das

indumentárias, do tambor, os mitos, as experiências visionárias etc.

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2.1.1 Religião e Xamanismo

A religião é uma área de conhecimento e, como tal, ajuda a compreender o ser

humano. Da mesma maneira como a arte, a filosofia, a ciência, a religião tem todo um

conjunto de elementos que fundamentam sua prática. O Xamanismo é considerado por muitos

teóricos, arqueólogos, antropólogos, cientistas da religião etc., como a primeira religião, e por

isso, existem traços do Xamanismo em todas as religiões: no Budismo, no Judaísmo, no

Shintoísmo, no Cristianismo etc.

Em determinadas cavernas, encontramos dezenas de imagens de um momento da

História onde possivelmente nasceu o Xamanismo. Descoberta em 1994, por exemplo, a

Caverna de Chauvet, no sul da França, tem cerca de 400 metros de extensão e guarda relíquias

de mais de 30.000 anos. São verdadeiros painéis onde é possível constatar os primórdios da

relação entre o ser humano e os espíritos animais. Pode-se ver até um crânio de urso num

possível altar.

Figura 3: Feiticeiro Dançador

Fonte: https://ahmetustanindefteri.blogspot.com.br/search/label/%C5%9Faman

A figura da gruta de Les Trois Frères nos Pirineus franceses, que foi chamada de

Feiticeiro Dançador, é considerada por alguns estudiosos como representando um xamã.

Outra interpretação possível é a de que represente um espírito Senhor dos Animais

personificando simultaneamente a essência de todas as espécies. Sabemos que, até hoje, em

diversas reservas indígenas norte-americanas, ou em alguns casos, como na América do Sul,

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os xamãs usam indumentárias que reproduzem os espíritos guardiões do xamã ou da

comunidade, aparecem também em diversas danças, como na Bear Dance Lakota.

Também da mesma época, a imagem de um meio humano meio leão da montanha é

bem conhecida.15

Esculpida a partir da presa, a escultura gigantesca combina animal com

atributos humanos. Beastly é composta pela cabeça do leão, o corpo alongado e os braços na

forma de corridas e patas de um gato grande, pernas humanas e pés e a postura ereta. Novas

observações durante a restauração sugerem que a estatueta foi identificada como do sexo

masculino.

Figura 4: Homem Leão

Fonte: https://ahmetustanindefteri.blogspot.com.br/search/label/%C5%9Faman

Em qualquer caso, a vista fantástica do homem leão como uma relíquia única para o

mundo espiritual do povo da última era do gelo, mesmo sem a possibilidade de decifrar a sua

visão de mundo complexo, é significativa, como um processo de narração das ações, de um

xamã, ou de uma visão com o espírito animal.

Para Eliade, no momento em que o homem simboliza a realidade, esta, ganha um

sentido totalmente diferenciado, e tal sentido possibilita a temporalidade. (Eliade, 1971) A

possibilidade de investigar a sua experiência e se projetar no mundo, e desse processo culmina

a narrativa, que se alimenta de símbolos para revelar o ser:

15

A figura maior e mais espetacular de marfim é o leão-homem, uma criatura mítica de animais e seres

humanos. Fragmentos de escultura tinham sido descobertos na Caverna Stadel em Hohlenstein no vale de Lone,

no último dia da campanha de escavações em 1939, que foi cancelado por causa da eclosão da Segunda Guerra

Mundial. Apenas cerca de 30 anos mais tarde, as peças de marfim foram identificadas como partes de uma

figura, mais de duas décadas se passaram até que a estatueta foi restaurada profissionalmente. No entanto, ainda

carecia de partes importantes da figura.

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O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que

desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e

os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma

necessidade e preenchem uma função; revelar as mais secretas modalidades

do ser (Eliade, 2002, p. 8 e 9).

Ao simbolizar um objeto qualquer, este passa a fazer parte de um sistema complexo,

que cria uma unidade entre estados e espaços da natureza que antes não tinham relação, um

sistema de significação que garante ao homem constituir sentido à sua existência e, em

consequência, ao mundo. Esta capacidade de simbolização é gênese do ser-no-mundo, do

homem propriamente dito. O saber indígena, por sua vez, por ter deixado de participar do

processo da modernidade europeia, pode nos ajudar a compreender esse fenômeno, e o

Xamanismo nessas comunidades étnicas é uma chave interpretativa muito rica em metáforas

fundadoras.

O conhecimento do fenômeno religioso nas tradições indígenas sugere um repensar

sobre o nosso conceito acerca desses povos e sua milenar sabedoria e cultura. Porém, desde a

colonização, os povos indígenas têm sido explorados e excluídos no Brasil. Tomemos um

exemplo, os Kariri-Xocó, que estão localizados na região do baixo São Francisco, no

município alagoano de Porto Real do Colégio, cuja sede fica em frente à cidade Sergipana de

Propriá. Os Kariri-Xocó vêm se apropriando deste fenômeno novo do Xamanismo urbano, e

vindo para São Paulo a fim de oportunidades para apresentarem seus cantos, venderem seu

artesanato e conduzirem cerimônias espirituais.

Eles, entre outras etnias, veem esse espaço como um local onde podem gerar renda e

falar de sua cultura. Muitos, inclusive, saem da aldeia e se alojam na cidade de forma

definitiva. Os Kariri-Xocó:

[...] representam, na realidade, o que resta da fusão de vários grupos tribais

depois de séculos de aldeamento e catequese. Seu cotidiano é muito

semelhante ao das populações rurais de baixa renda que vendem sua força de

trabalho nas diferentes atividades agro-pecuárias da região. Contudo, pode-

se dizer que é um grupo que tem sua indianidade preservada pela

manutenção do ritual do Ouricuri (ritual religioso secreto). A denominação

Kariri-Xocó foi adotada como conseqüência da mais recente fusão, ocorrida

há cerca de 100 anos entre os Kariri de Porto Real de Colégio e parte dos

Xocó da ilha fluvial sergipana de São Pedro. Estes, quando foram extintas as

aldeias indígenas pela política fundiária do Império, tiveram suas terras

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aforadas e invadidas, indo buscar refúgio junto aos Kariri da outra margem

do rio.16

Denomina-se Ouricuri o complexo e secreto ritual e o local onde se realiza. É

praticado por vários grupos do nordeste. Na aldeia, as festividades duram de 15 a 30 dias, nos

meses de janeiro/fevereiro. Na mata cerrada, há uma clareira, o "limpo", onde ocorre o ritual.

Em volta do ―limpo‖ há construções de tijolo para alojar as pessoas durante sua permanência.

É outra aldeia, a taba, construída para fins religiosos. Ali os Kariri-Xocó vão fazer o uso

religioso da Jurema, planta psicoativa, e terem experiências visionárias e contato com o

―segredo‖, o qual não é comentado por eles fora de lá, e a ciência nativa que é ensinada pelos

espíritos.17

A etnia Kariri-Xocó, em si já demostra a mobilidade de saberes, o hibridismo que

ocorre no Brasil desde o processo de colonização, os êxodos tribais geraram grupos muito

mais diversos. Em seguida, esses grupos vão para o meio urbano, e sofrem novamente a

introdução do discurso do Neoxamanismo urbano. Tornando as narrativas e os discursos

muito mais ricos, e as metáforas muito mais vastas. A religiosidade indígena, ou a

espiritualidade nativa, o termo mais comum no meio do Neoxamanismo urbano se relaciona

com a cultura narrativa, como o culto aos antepassados, e pela matriz estrutural

homem/natureza como um processo relacional e não objetal.

2.1.2 Xamanismo e Psicopatologia

Existem casos em que o Xamanismo está interrelacionado com estados

psicopatológicos. Mas em geral, essa relação é apenas uma má interpretação do fenômeno.

Como comenta o xamã urbano Wagner Frota:

Trava-se entre os estudiosos um persistente debate sobre se o Xamanismo é

ou não uma vocação culturalmente atribuída às pessoas mentalmente

perturbadas, em particular os esquizofrênicos. Embora esta posição

constituísse o ponto de vista antropológico até meados do século passado,

hoje ela tem poucos partidários. Entre os mais frequentemente citados, estão

16

Artigo pesquisado, site: http://www.karirixoco.com.br/2006/index.php

17

Podemos encontram mais elementos no texto: MOTA, Clarisse Novaes da. e ALBUQUERQUE, Ulysses P.

de. (ORGs). As Muitas Faces da Jurema – de espécie botânica à divindade afro-indígena. Ed. Bagaço. Recife/PE,

1996 ver também LANGDON, E. Jean Matteson. Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis:

UFSC, 1996.

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Devereux, que sustenta com firmeza que não há motivo para não considerar

os xamãs neuróticos, e até mesmo psicóticos; e Silverman, que associa o

estado xamânico de consciência à esquizofrenia aguda. Por outro lado, Jilek

acha o rótulo de patologia ―absolutamente insustentável‖, após seus anos de

experiência com xamãs na América do Norte, África, Haiti, América do Sul,

Tailândia e Nova Guiné. Ele tem formação em psiquiatria e antropologia, e

acredita que a opção pela patologia será progressivamente refutada, à medida

que se expandir o campo da psiquiatria transcultural. Um artigo da autoria de

Richard Noll recapitula as colocações dos dois polos da controvérsia e

conclui que metáfora da esquizofrenia de um fracasso em discriminar

diferenças fenomenológicas entre o estado xamânico de consciência e o

estado esquizofrênico de consciência. Ele afirma que a distinção mais

importante é pertinente à violação: o xamã, como ―mestre do êxtase‖, entra e

sai conforme deseja do estado alterado; o esquizofrênico não tem controle

algum sobre esta atividade e é uma infeliz vítima da desilusão, com uma

notável deterioração no desempenho dos papéis. Harner enfatiza que o xamã

deve comportar-se de modo apropriado tanto na realidade ordinária, como no

estado xamânico de consciência para ser uma pessoa em que se possa

acreditar e manter seu status na comunidade. Distinguir conteúdos dos

diferentes níveis de realidade é impossível para o esquizofrênico, mas,

conforme coloca Noll, ―a validade de ambos os reinos é reconhecida pelo

xamã, cuja mestria deriva de sua capacidade de não confundir os dois‖.18

De certa forma existe a propensão para uma relação entre os dois estados pra quem está

olhando sem compreensão do fenômeno, o que era comum desde o início das pesquisas

etnológicas no século dezenove. Como comenta Eliade, alguns teóricos chegam mesmo ―a

fazer a distinção entre um Xamanismo ártico e um subártico, dependendo do grau de doença

mental de seus representantes‖ (ELIADE, 2002, p. 37-38).

Entre tribos australianas e os esquimós é comum o caso de membros que tenham epilepsia

sejam direcionados para se tornarem xamãs. Isto pelo fato que têm de entrar num estado de

consciência alterado.

Os sinais de vocação espontânea podem surgir em qualquer idade e, em

geral, são acompanhados de alguma doença física ou mental ou de ambas.

Quando criança, é muito provável que o candidato tenha sido nervoso,

retraído e pensativo. Ele ou ela pode apresentar alguma deformidade ou

deficiência física. Em algumas culturas, notavelmente a africana e a dos

esquimós, a epilepsia é considerada como sinal de vocação xamânica. Entre

os Shona, quando uma doença não responde as formas convencionais de

tratamento (geralmente herbário), a família convoca um nganga (xamã). Se

este declarar ser a doença um sinal de vocação, intercederá em nome do

espírito que está tentando possuir a pessoa, e se ele ou ela concordar em

atuar como médium a aceitação da vocação será acompanhada de

recuperação. A recusa é interpretada pela maioria das sociedades xamânicas

18

Em: http://www.xamanismo.com/universo%20xamanico/o-xamanismo-e-a-esquizofrenia-2/

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como grave erro que quase certamente findará em morte (FROTA, p. [26],

[200?].19

Por serem figuras que transitam entre os dois mundos, e em geral permanecem nesse

estado de ambiguidade durante a vida toda, tendem a se assemelharem a pessoas antissociais,

introvertidos etc. Casos de transe também são comuns, como atos histéricos, onde eles saem

pela aldeia às vezes imitando o animal guardião, se aprofundam na mata etc. O xamã não é

um doente. É um curador, que primeiro curou a si mesmo. Quando ocorre nos casos o ataque

epilético, é sinal que a iniciação teve início. Muitas vezes o xamã tenta ser tratado por outros

xamãs e curandeiros da aldeia, mas não têm resultado, ele precisa curar a si mesmo como

parte do processo iniciático.

Isso pressupõe que ele passe a ter domínio sobre a doença, ou seja, passa a ter controle

sobre os maus, e sobre espíritos malígnos. As doenças por vezes iniciadas por espíritos

malignos, logo que são tratadas pelo empenho do xamã, passam a serem seus aliados. A

singularidade da doença xamânica já evidencia o fato do sujeito ser um vocacionado para tal

finalidade. Nesse sentido, pode-se dizer que o xamã se torna um mestre das enfermidades. Ele

conhece muito bem a doença, e tem domínio sobre ela. Por isso se fala de um curador ferido,

ou seja, aquele que teve o corpo dilacerado para que pudesse ter o conhecimento e o domínio

no processo da doença, acaba por curar os outros, sendo que doou sua própria sanidade e

bem-estar para ser um portal de tratamento dos membros da comunidade.

2.1.3 Doente escolhido: do profano ao sagrado

Sabe-se que de um modo geral todas as religiões, e mesmo as formas mágicas das

religiões dos primitivos, são psicoterapias, são formas de cuidar e curar os sofrimentos da

alma e os padecimentos corporais de origem psíquica. E o efeito simbólico no corpo é

impressionante, e pode ajudar a aliviar diversas enfermidades:

O sistema imunológico é violentamente agredido por muitos tipos de

comportamentos e pensamentos. De acordo com pesquisas, imagens

específicas, sentimentos positivos, sugestões, são elementos que têm poder

de aumentar a capacidade do sistema imunológico para combater a doença.

Os rituais têm efeito terapêutico direto sobre o paciente ao criar imagens

vívidas e induzir estados alterados de consciência que conduzem a autocura

(STRAPASSON, 200, p.26-27).

19

http://www.xamanismo.com.br/Teia/SubTeia1191316319It001

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A doença é um elo de conexão do xamã com o tratamento do doente e é uma relação

com o sagrado. A doença é sagrada no corpo do xamã, pois ensina a curar os outros. Pode-se

afirma que o xamã é um escolhido para cumprir essa atividade de curador do seu grupo. Da

mesma forma que se pode afirmar que ele é um elo entre o mundo do sagrado e do profano.

Sua experiência de morte e renascimento, provocada pela doença iniciática, é fundamental.

O corpo do xamã é um corpo que saí do universo do mundano e voa para o mundo do

sagrado. Sendo assim, sua presença na comunidade é a própria experiência de imersão no

mundo sagrado.

Portanto, a doença é uma representação de comunicação com o mundo espiritual. É a

porta de entrada ao mundo dos mortos e de contato com os espíritos protetores. Em muitos

casos, os espíritos que causam a doença se tornaram os aliados do xamã.

Durante o final do século XIX e início do XX, a cura foi a principal função dos xamãs

siberianos (ELIADE, 2002). Eles curavam muitas doenças diferentes, tais como esterilidade,

parto prolongado, dor no coração, distrofia, tosse, doenças de pele, dores de estômago,

doenças da garganta e dos olhos, dores nos membros, e loucura. Durante as epidemias eles

também tentaram curar varíola e sarampo, o que exigiu muito esforço.

Um único princípio foi fundamental para o tratamento médico xamânico: um xamã

agia em nome dos espíritos e divindades, entidades supremas mais potentes do que os

humanos. A doença foi associada com as atividades dos espíritos. Portanto, os xamãs tinham

de realizar 1) o banimento de um espírito maligno – origem da doença – a partir do corpo do

indivíduo doente, e 2) o retorno da alma roubada por espíritos malignos. Para atingir esses

objetivos foram usados vários objetos e métodos rituais.

Como comenta Lévi-Strauss,

A cura consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente

em têrmos afetivos, e aceitáveis para o espírito, as dores que o corpo se

recusa a tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade

objetiva, não tem importancia: a doente acredita nela, e ela é membro de

urna sociedade que acredita. Os espíritos protetores e os espíritos malfazejos,

os monstros sobrenaturais e os animais mágicos, fazem parte de um sistema

coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente os

aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que ela não

aceita são dores incoerentes e arbitrárias que constituem um elemento

estranho a seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar

num conjunto onde todos os elementos se apóiam mutuamente (LÉVI-

STRAUSS, 1975, p. 228).

Lévi-Strauss em sua análise nos diz que a experiência do doente na cura xamanística é

menos importante que a crença coletiva, no entanto, sem desconsiderar que este pode torna-se

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um xamã após a cura20

. ―As experiências do doente representam o aspecto menos importante

do sistema, se excetua o fato de que um doente curado com sucesso por um xamã está

particularmente apto para se tornar, por sua vez, xamã [...]‖ (LÉVI-STRAUSS, 1967 p. 208).

Dentre esses modos básicos de aquisição dos poderes xamânicos, algumas explicações

apontaram para patologias como fatores determinantes. Algumas teses indicaram o meio

ártico como motivo geográfico para a manifestação de doenças nervosas que passariam a

caracterizar o Xamanismo. Outras afirmam que se tratava de uma doença real, que passou a

ser imitada dramaticamente. Eliade não considera essa visão patológica, pois conclui que há

um equilíbrio mental entre os atores do fenômeno, ao contrário do que até então se propalava

em outros estudos. A iniciação de um xamã dá-se pela cura e pelo poder de autocura; cura-se

pelos espíritos que se tornam protetores e auxiliares (ELIADE, 2002).

2.2 Conceito xamânico de doença

Os indivíduos podem buscar a cura xamânica para muitas doenças diferentes. Se eles

estão vivendo dentro de uma cultura xamânica, a cura xamânica é tipicamente parte de uma

abordagem multidisciplinar usada para qualquer doença ou desequilíbrio, em parceria com

curandeiros, utilizando medicamentos botânicos, mudanças na dieta e outras terapias.

Na sociedade ocidental contemporânea, a cura xamânica é desconhecida para a

maioria dos indivíduos não-indígenas. Apesar disso, as pessoas estão encontrando seu

caminho no Neoxamanismo urbano para todos os tipos de problemas de saúde, mas

especialmente quando eles não estão tendo melhorias satisfatórias com a medicina alopática.

A perspectiva sobre a doença no indivíduo é diferente no Xamanismo do que na visão

médica alopática. Em uma visão xamânica:

Sintomas ou doenças similares não se originam do mesmo problema energético ou raiz

subjacente.

Desarmonias na comunidade muitas vezes se manifestam na doença individual.

Qualquer doença pode ser um problema espiritual ou energético, independentemente

da forma em que essa doença se manifesta – física, mental, emocional, espiritual

ou relacional.

20

Para ampliar o assunto, consultar Lewis (1977) e Maués (1990)

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Certas doenças são mais propensas a ter um componente espiritual que pode responder

a técnicas de cura xamânicas. Essas incluem diagnósticos psicológicos como depressão,

ansiedade, vícios etc.

Doenças que se manifestam fisicamente ainda podem ter fundamentos espirituais

significativos. Isto é especialmente verdadeiro para as doenças que têm apresentações atípicas

ou prematuras em adultos, ou jovens, tal como no caso de doença degenerativa, que

normalmente ocorre em pessoas mais velhas.

A sensação de que algo está ―ausente‖ ou que ―eu não tenho sido a mesma pessoa

desde...‖ muitas vezes pode ser um indicativo de uma perda de energia de algum tipo,

incluindo perda da alma.

O trabalho de cura xamânica requer duas fases distintas:

O diagnóstico preciso das energias visíveis e invisíveis na raiz do problema.

Realização da ritualística específica para resolver o problema.

O xamã pode remover energias que estão inadequadamente presentes, ou devolver

energias que foram perdidas. Isso inclui a recuperação da alma para alcançar a cura através do

retorno de partes perdidas. Esse processo, em sua totalidade, é mediado pela narrativa, e

prioritarimante pela linguagem apropriada:

O xamã fomece à sua doente uma linguagem, na qual se podem exprimir

imediatamente estados não-formulados, de outro modo informuláveis. E é a

passagem a esta expressão verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob

uma forma ordenada e inteligível, uma experiência real, mas, sem isto,

anárquica e inefável) que provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto

é, a reorganização, num sentido favorável, da sequência cujo

desenvolvimento a doente sofreu (LEVI-STRAUSS, 1975, p. 228).

Quando um indivíduo está vivendo dentro de uma comunidade que existe esse tipo de

trabalho, há tempo e apoio para a integração e processamento que um indivíduo deve fazer

para completar a maioria dos processos de cura. Na sociedade contemporânea, o xamã e o

―cliente‖ devem criar os recursos e estrutura para o indivíduo ajustar-se à mudança simbólica

no ambiente totalmente diferente e sem lastro de crenças, criando um trabalho muito mais

complexo de ser realizado. Nesse sentido, o Neoxamanismo urbano precisa encontrar uma

linguagem própria ao ambiente de seu domínio.

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2.2.1 O resgate da alma

A cura xamânica é um método de cura espiritual que lida com o aspecto também

espiritual da doença. Do ponto de vista xamânico, há três possíveis causas para uma doença.

Uma pessoa pode ter perdido seu poder, o que causa depressão, doenças crônicas, ou uma

série de desventuras. Nesse caso, o xamã realiza uma jornada para restaurar o poder da

pessoa. Ou a pessoa pode perder parte de sua alma ou de sua essência, o que causa a perda da

alma, e isso geralmente ocorre durante um trauma físico ou emocional, como um acidente,

uma cirurgia, abuso, trauma da guerra, presenciar um desastre natural, a morte de um ente

querido, ou outras circunstâncias traumáticas.

A perda de alma pode resultar em dissociação, síndrome pós-traumática de estresse,

depressão, indisposição, problemas de deficiência imunológica, vícios, aflição interminável,

ou coma. A perda da alma impede que se criem relacionamentos saudáveis, ou a vida que se

deseja. É esta a função do xamã: rastrear as partes que partiram e se perderam devido ao

trauma, através de uma cerimônia de recuperação da alma. Outra causa de doença, segundo a

perspectiva xamânica, seria qualquer obstrução espiritual ou energias negativas que um

cliente absorve, devido à perda de seu poder ou sua alma. Essas obstruções espirituais

também causam doenças, geralmente em uma área localizada do corpo. Esta é a função do

xamã: extrair e remover as energias prejudiciais do corpo.

―Doença = desintegração‖, essa fórmula ajuda a compreender esse processo, é um

modo diferente do ocidental de pensar o tempo, a doença iniciática tem contextos diferentes.

Vejamos um exemplo, em entrevista21

o Pajé Sapaim (Kamayurá) comenta como foi sua

iniciação:

Sapaim: Olha eu... é... tem muito pajés na tribo...e...pajé não aprendeu com

eles. Eu fui escolhido por Mamaé. Mamaé que significa o espírito.

Na época que eu nasci de minha mãe.... o espírito estava lá olhando quando

eu nasci... quando eu nasci de minha mãe o espírito sentiu minha energia...

quando eu nasci. Disse que para ela eu nasci forte e muito bom. Então o

espírito me escolheu..... para eu ser pajé. E, eu não sabia que ele tinha me

escolhido para ser pajé.... e eu cresci ...andei...e eu acho... que eu tinha mais

ou menos nove anos de idade. E chegou meu sonho... primeira coisa eu

sonhei.....eu fumava charuto...um charuto grande...eu fumava....e voava...e

corria no sonho. Eu cai dentro da lagoa e vi todos os espíritos dos peixes, os

espíritos que vivem na água. E com isso eu ficava sonhando...

sonhando...sonhando.... até que me deu medo esse sonho. E... meu pai já foi

pajé também. Meu pai ele entrou....

21

http://www.xamanismo.com.br/Aldeia/SubAldeia1192137359It007

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79

Continua

Aí eu cresci... e fiquei rapaz... eu acho que mais ou menos 12 anos... que

aconteceu. Eu acompanhei meu irmão mais velho... ele é pajé também...o

nome dele é Tacumã. O meu pai já tinha falecido. Aí eu lembrei muito meu

pai e fiquei muito triste... e lembrava o que ele dizia de eu ser pajé....e

acompanhava meu irmão...no começo... e a gente fou plantar mandioca,

milho, melancia, abacaxi, banana...e de manhã, por volta das 10h não tinha

vento...e de repente veio a luz do Mamaé, bem grande, onde nasce o Sol...

Aí veio bem branco e caiu em nosso lado... caiu e estourou.... bummm...aí

subiu...e de repente eu recebi uma energia dele...Como se a gente está com

febre né...aí eu falei: Meu irmão...eu não to bem...to com febre . Ele disse:

Então...vamos para a nossa oca. Vamos voltar. Aí nós chegamos tarde... por

volta das 4:30h...quando eu cheguei na minha oca, piorei muito...Piorei

bastante. E, deitei na rede.... e quando o Sol acabou...ele veio....Mamaé veio.

Entrou e foi direto onde eu estava... onde estava a minha rede...aquele

charutão grande e comprido... (...) Aí Mamaé sentou...s ó que a família da

oca não viu ele entrar...Ele sentou ao meu lado e ...minha irmão e meu

irmão...fizeram fogueirinha para me esquentar... eu tava tremendo... e eu via

ele....Ele disse: Você ficou com medo de mim quando eu cai de seu lado

(tratava-se de uma queda)...eu que cai de seu lado...eu que escolhi você para

ser pajé. Aí não tem como fugir né? Do que ele falou!

Após várias tentativas de cura Sapaim continuou caído da enfermidade até

que o Mamaé decidiu passar a sua força pra ele: (...) E ele ficou passando a

energia em meu corpo e eu fiquei um mês na rede sem comer, sem beber,

sem falar, sem enxergar. Depois de um mês ele disse... Ele me chamava de

neto... Ele disse: Neto! Você agora está bem preparado, você agora está

muito forte, e você vai ser o maior curandeiro da tribo. Os pajés daqui

diziam que era tudo mentira, Que ele não mostrava energia. Que ele tem que

mostrar. Aí depois de um mês ele me fez mais uma vez desmaiar. Eu fiquei

mais de uma hora desmaiado. Depois ele soprou e eu respirei. Aí ele disse:

Agora você já está bom e pode levantar. Aí eu não sentia mais aquela

energia toda na cabeça e fiquei livre. Fiquei bom.

Depois ele disse: Agora você já está bom e eu vou tirar aqui (olhos). Tirou

pendurou soprou e sumia. Depois tirou daqui (boca) soprou e sumiu. Ele

disse: É assim que você vai tirar a dor de seu povo e de toda a sua família.

Você tem que mostrar para todos os pajés da aldeia. (...) E aí fiquei bom!

Fiquei bom e nunca senti mais nada. Aí ele disse: Agora, você vai ficar na

sua oca, não pensa em sai, não pensa em pescar, não pensa em caçar...

(...) Sem comer, sem beber... Ele ficava jogando a fumaça... para eu não

sentir fome. Daí... fiquei bom . Aí ele disse: Agora eu não vou dizer para

você ficar um mês, dois meses na sua oca não! Agora você vai ficar dentro

da sua oca um ano. E, fiquei um ano... (...) Aí eu não saia nem de dia e nem

de noite. Ficava lá preso. Eu só ficava rodando dentro da casa.... da oca. Aí

depois de um ano ele mandou sair: Pode sair!

(...) Não sei quantos anos eu tenho (gargalhadas...). E eu saí e depois ele

mandou voltar para eu ficar mais dois anos dentro da minha oca.

O tempo aqui é fundamental, o tempo da espera, de ouvir, o tempo de rezar, de comer,

o tempo de falar com o espírito. É um tempo lento, cíclico, demora três anos, em constantes

provações, em estudo, isolamento. Ao conversar é constante com as lideranças, com os

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espíritos, os pajés que visitam o menino não têm pressa. Todos estão num estado de espera

interminável, não existe o caos, tudo é previsto e têm seu desenlace natural.

O tempo dentro do modo de ser indígena é muito mais cíclico, com isso se quer dizer

que é um tempo que segue os ciclos naturais, as estações do ano, as marés etc. Não está fora

do tempo da natureza, isso num sentido geral, afinal sabemos que o indígena pratica um

tempo por ele estabelecido e não necessariamente o tempo da natureza, mas ele se esforça por

observar os tempos, e por tentar reproduzir e se tornar parte desses ciclos naturais. O mesmo

se dá para as iniciações para a vida adulta, eles vão acompanhar o amadurecimento biológico,

como dado predominante para esse fim.

O mesmo pode ser observado nas religiões de herança africana:

Antes da imposição do calendário europeu, os iorubás, que são a fonte

principal da matriz cultural do candomblé brasileiro (Prandi, 2000b),

organizavam o presente numa semana de quatro dias. O ano era demarcado

pela repetição das estações e eles não conheciam sua divisão em meses. A

duração de cada período de tempo era marcada por eventos experimentados

e reconhecidos por toda a comunidade. Assim, um dia começava com o

nascer do sol, não importando se às cinco ou às sete horas, em nossa

contagem ocidental, e terminava quando as pessoas se recolhiam para dormir

(Mbiti, 1990, p. 19), o que podia ser às oito da noite ou à meia-noite em

nosso horário. Essas variações, importantes para nós, com nosso relógio que

controla o dia, não o eram para eles (PRANDI, 2001, p. 43-58).

E continua:

Nesta nossa sociedade do tempo irreversível, cada vez mais as imagens e

referências do tempo circular vão se perdendo: o relógio analógico, com seus

ponteiros sempre dando a volta para retornarem ao ponto zero, são

substituídos pelo relógio digital; os supermercados 24 horas e outros

negócios essenciais ao consumo na vida cotidiana não fecham para

descanso; os canais de televisão ficam no ar noite e dia; trabalha-se em

qualquer período; a internet mantém ininterrupto o acesso aos arquivos de

informação dos computadores ligados na rede mundial; até o amor se faz a

qualquer hora nos motéis full-time; a eletricidade há muito acabou com a

escuridão e fez da noite, dia; a engenharia dos transgênicos nos faz sonhar

com uma natureza transformada a cada colheita. Se até na natureza o tempo

cíclico vai perdendo importância, que dirá na vida do terreiro (PRANDI,

2001, p. 43-58).

No Xamanismo não poderia ser diferente, a temporalidade é lenta com relação à

sociedade ocidental contemporânea. As iniciações duram anos. A doença da qual o pajé

Sapaim passou é de outra qualidade, têm haver com a aptidão para receber o espírito. No

contexto xamânico a perda da alma têm relação com o trauma que o nativo sofre, ou então

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pelo roubo feito por um espírito ou ainda um xamã de outra tribo, que prende a alma do

indígena. E onde está a alma? Os três mundos conhecidos do xamã, citados anteriormente,

ficam no eixo do mundo, na àrvore do mundo, onde o xamã irá realizar sua jornada, e

resgatar, onde quer que estejam, as almas perdidas ou aprisionadas.

Quando a alma retorna ao corpo o xamã pode perceber, pelo relinchar de um cavalo,

pelo vento nas árvores, pois há diversos sinais que contribuem para o xamã ter a assertiva que

a alma está de volta ao doente. Nesses casos, o xamã então direciona a alma ao corpo com um

sopro forte, às vezes no peito ou no topo da cabeça.

2.2.2 Sonhos e visões

Para os gregos, o destino se dava através dos sonhos, ou ―incubação dos deuses‖, onde

passavam pelo menos uma ou mais noites dormindo no solo sagrado, em templos como o de

Delfos, para receber um recado, que sempre vinha através do sonho. Os oráculos de Zeus

eram transmitidos, entre outros, por incubação das sacerdotisas. Estas, para estarem em

contato com o deus num aspecto ctônico (o que demonstra sua antiguidade), deviam dormir

no chão, andar descalços e não lavar os pés.

Entre os índios Siona na Amazônia boliviana, existe um complexo de imagens

metafóricas capaz de explicar todos os sonhos, um conjunto bem elaborado de símbolos e

significados (LANGDON, 1999). O sonho aqui vivenciado pelo grupo é catártico, é como se

todos estivessem vivendo o mesmo sonho. Os símbolos remetem a todos.

―A investigação dos sonhos em culturas distintas às do observador integra a

mais antiga tradição antropológica, ainda que a etnologia mexicana - com

algumas exceções - não tenha se ocupado muito do tema. Jacques Galinier

(2009:93), em seu ensaio sobre o sonho otomí, nos lembra que o renomado

especialista dos Maias, Robert Laughlin, assinalava, em 1976, que tudo o

que sabia sobre o sonho entre os indígenas mesoamericanos poderia caber

em três páginas. Houve alguma evolução, mesmo que ainda reste muito por

aprender. Neste ensaio, não pretendemos desenvolver a história dos estudos

a este respeito, e sim destacar alguns autores e temas - geográfica e

culturalmente distantes - cujos aportes teóricos são particularmente

interessantes para que se entenda melhor o resultado das pesquisas em nosso

contexto. Talvez uma das mais sugestivas obras pioneiras tenha sido

desenvolvida por Baldwin Spencer e Francis Gillen (1899) entre os Araunta

da Austrália Central, que o advertiram sobre a existência de uma noção

cultural constituída pela concepção de um âmbito de residência dos

ancestrais dos seres humanos chamado Alchera, espaço que se vinculava

com o tempo das origens, no qual transcorriam os mitos, e que era

qualificado por eles também como "tempo do sonho" (dreamtime)

(BARTOLOMÉ; BARABAS, 2013).

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O sonho é uma medicina muito importante no Xamanismo, devido a sua inte-relação

com os estados xamânicos de consciência, o xamã se esforça para permanecer sempre em

contato com o mundo espiritual e, entre o estado xamânico de consciência e o sonho, o xamã

passa pouco tempo desperto, ou seja, ele está num estado de sonho constante. De modo que o

sonho é um intercurso com a realidade, uma encruzilhada.

O sonho é praticado como um modelo permanente dentro das práticas religiosas

indígenas. Entre os Guarani, por exemplo, o sonho é profético, e o ancião/xamã têm sonhos

que podem determinar o destino da comunidade, promovendo por vezes êxodos entre as

Tekoas (aldeias). Como vimos o Xamanismo é uma prática religiosa indígena, que vem de

muito longe na história, e se confunde com o próprio nascimento da humanidade. Nessa

acepção, o sonho é um exemplo claro de relação entre a mente atual e a ancestralidade da

própria humanidade. A caverna era um grande quadro, uma tela mental onde se projetam os

sonhos, por isso, essa relação estreita entre esses aspectos no Xamanismo.

A iniciação do xamã, portanto, parte de um contato profundo e complexo com os

sonhos. Esses processos são determinados por dietas específicas e reclusão. Esse aprendizado

inclua momentos de provações intensas, com dietas, abstenções sexuais e isolamento,

períodos nos quais o próprio xamã irá passar por um processo de cura, lembrando aqui Levi-

Strauss, para quem o xamã seria ―o feiticeiro curado‖:

No mundo indígena podemos destacar dois tipos de mestres. Um primeiro

mestre poderá ser aquele indivíduo mais velho, provavelmente um pajé mais

velho, que, possuindo um conhecimento milenar sobre o uso das plantas

sagradas, realiza todo um trabalho de formação do neófito. Funcionaria, nos

moldes demarcados por Foucault, como um mestre que ensina pela simples

transmissão de conhecimento. Os Huni Kuin valorizam muito os anciãos da

aldeia, como aqueles que possuem o conhecimento ancestral, aqueles que

sabem contar as estórias antigas, as façanhas dos pajés de antigamente. Um

pajé mais velho tanto pode lhes ensinar as canções como realizar as dietas e

encontrar as plantas medicinais. Pode servir também como verdadeiro

exemplo vivo, atuando como modelo de comportamento. Mas para um

indígena existe ainda um outro mestre, é aquele que acreditam viver dentro

do chá, uma espécie de outro nele mesmo, que poderá ser acessado toda vez

que o neófito, ao se utilizar da ayahuasca seguindo suas prescrições rituais,

invoca sua força e pede seus conselhos. O processo de aprendizagem de um

pajé se esclareceu melhor para mim quando eu estava realizando meu

trabalho de campo e um pajé contou-me a seguinte história: ―Um aprendiz

me relatou que aos sete anos chegou perto de onde seu pai estava tomando a

ayahuasca e o pai lhe disse: ‗Criança não deve chegar perto de pajé tomando

Nixi Pae. Você parece que quer ser Deus, não é? Então toma a ayahuasca

que ela vai te ensinar‘‖ (COSTA, 2009, p. 27).

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Durante esses retiros profundos que podem durar anos, o xamã fica isolado; no Brasil

pajés chegam a ficar dois ou três anos dentro de uma oca, sem contato com o mundo exterior.

Pajé Sapaim da Nação Kamayurá é o Pajé geral do Xingu e pertence a uma categoria especial

de Pajés, pois não aprendeu seu ofício de outro Pajé, mas sim de um ―Mamaé‖ – espírito guia.

Seu aprendizado veio através de sonhos, durante o período em que ficou recolhido em sua oca

ou no meio da mata sem ter contato com pessoas. Até hoje, esse ―Mamaé‖ está a seu lado,

trazendo orientações sobre os casos que atende, seja dizendo o que deve ser feito na

continuidade do tratamento, ou na indicação de folhas, vegetais (remédio) adequados para

cada caso.

―A gente trabalha pra quem pegou a energia de um espírito ruim. Todos os

Pajés fazem uma grande pajelança para a cura. A gente tá tirando a doença

que o espírito ruim jogou pra pessoa. A gente cuida muito das pessoas que

pegaram uma energia ruim. A gente fica com a pessoa 5, 10 dias. Se a

pessoa não fica boa é por causa da energia do espírito ruim. A gente fica

curando e tirando a energia do espírito ruim, a doença que a pessoa tem.

Algumas pessoas demoram a ficar boas, mas todo o dia a gente vai tirar a

doença da pessoa, até Mamaé ruim deixar pessoa na sua paz.‖22

O Pajé Sapaim está se referindo à materialização da doença. Sapaim esfrega as mãos

na região do corpo onde a doença se alojou e a materializa, em seguida, a desmaterializa, e

assim, a doença embora.23

Eu curo pela mão, eu sinto a energia da pessoa pela mão. A dor da pessoa

passa na minha mão, dá choque. Os locais que eu sinto, coloco fumaça em

cima, jogo a fumaça na minha mão e aperto, essa energia aparece na minha

mão e eu mostro. Jogo a fumaça, sopro e some. Isso é o meu trabalho.

Depois disso, eu rezo as pessoas. Eu sinto energia diferente quando pode

tratar e quando não vai curar, mas pode melhorar.24

Além dessas experiências, o sonho de desmembramento, diálogo com os mortos, tais

processos aconteceram em cavernas e cemitérios. Plantas espirituais professoras são também

muito utilizadas para finalidade de gerar visões e profecias, além de ser um momento de

aprender os cantos e invocações dos espíritos curadores. Segundo Leo Rutherford25

, um

neoxamã, muitas vezes foi vítima de algum evento traumático entre um e sete anos de idade.

22

Texto pesquisado em: http://amigosdacura.ning.com/profiles/blogs/paj-sapaim

23

Texto pesquisado em: http://amigosdacura.ning.com/profiles/blogs/paj-sapaim

24

Pajé Sapaim, O Mensageiro do Tempo, programa exibido pela TV Cultura em 07/Fev.2010, na série de

documentários Janela Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=nweYxWG72ew

25

Exemplo de uma entrevista em: http://www.xamanismo.com.br/Aldeia/SubAldeia1192137359It027

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Esses acontecimentos traumáticos costumam romper a matriz embrionária do ego e destruir o

sentido natural de limites que a criança possui. Quando o sentido natural de individuação e a

percepção do próprio espaço sagrado se enfraquecem, começa a se estabelecer uma

comunicação involuntária entre aquele pequeno ser e vozes advindas de outros planos.

Um xamã é aquele indivíduo que caminhou até os portais do seu inferno pessoal e teve

coragem de entrar. Um verdadeiro xamã é aquele que enfrentou e venceu os demônios

autoconcebidos do medo, da insanidade, da solidão, da autoimportância e dos vícios ao passar

pela gama de mortes do xamã. Como afirma Roger Walsh (1993), o Xamanismo deve

representar em qualquer renascimento autêntico das formas arcaicas vitais de ser, viver e

compreender. O xamã consegue entrar num mundo que está oculto para quem vive a realidade

comum. Nessa outra dimensão se escondem tanto poderes úteis quanto malévolos. Suas

regras não são as regras de nosso mundo.

Em muitas culturas a morte representa o momento de uma nova vida. Muitas etnias

são conhecidas por tratar doentes trocando o nome do sujeito. A vida anterior é esquecida

coletivamente, não se fala mais no sujeito (nome), que se foi, em contrapartida, a vida nova é

uma abertura para um mundo novo que se inicia. A morte e o renascimento representam o

momento de conexão entre o mundo comum e o espiritual.

2.2.3 Treinamento tradicional

Para o Xamanismo, o treinamento tradicional é fundamental, ele acompanha o

conhecimento transmitido pelos espíritos. O xamã não aprende só com o mundo espiritual,

mas boa parte do seu saber vem dos anciãos da comunidade:

A consciência xamânica não é simples hipnose, fantasia, possessão,

contorção, depressão, terror ou intoxicação, ainda que possa se apropriar

dessas coisas. Tocando o tambor ou ingerindo uma planta de poder,

sonhando lucidamente ou caindo em transe, o xamã permanece focado e

consciente, sabendo bem que as viagens internas não significam nada a

menos de que seus frutos são trazidos de volta e transformados em realidade

mediante os rituais, danças, palavras, arte, música ou sessão de cura

(especialidade mais frequente do xamã), vertendo o poder acumulado do

outro lado em atividades úteis aqui. Alguma das artes criadas pelos xamãs

para tais realizações incluem: tocar tambores, música, acrobacia, teatro,

arquitetura, escultura, entalhes, pintura, pintura em areia, pintura corporal,

tatuagens, mudrás, talismãs, malabarismos, ilusionismos, ventriloquia,

cultivo de plantas, astronomia, metalurgia, pirofagia, treinamento de

animais, escrituras e as artes da navegação. Tais proezas requerem um

treinamento rigoroso e muitos anos de paciente prática. Por outro lado, a

instrução xamânica tradicional é supervisionada externamente por outros

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xamãs e internamente por seres ou guardiães espirituais que oferecem sua

amizade e outorgam poder ao aprendiz. Os seres espirituais são

particularmente importantes: nenhum xamã se converte em xamã sem

receber uma senha de aprovação transpessoal deles.26

Sendo assim, o xamã passa boa parte de sua vida estudando, se instruindo com os mais

velhos, até se tornar um mestre na sua tradição. Isso ocorre por que o xamã precisa receber de

um ancião as artes, as narrativas, os saberes da cultura. Eliade exemplifica que:

Ora esta modificação da sensibilidade obtida espontaneamente pela prova de

um acontecimento insólito, é laboriosamente procurada durante o período de

aprendizagem por aqueles que buscam a obtenção do dom xamânico. Entre

os Esquimós Iglulik, o jovem ou a rapariga que desejam tornar-se xamãs

apresentam-se diante do mestre com um presente e declaram: ―Venho a tua

casa porque quero ver‖. Instruído pelo mestre, o aprendiz passa longas horas

na solidão: esfrega uma pedra sobre outra ou fica sentado na sua cabana de

neve a meditar. Mas deve passar pela experiência da morte e da ressureição

místicas; cai ―morto‖ e ficar inanimado três dias e três noites, ou é devorado

por um enorme urso branco, etc. ―Sairá então o urso do lago, devorará toda a

carne e fará de ti um esqueleto, e tu morrerás. Mas recuperarás a tua carne,

despertarás e as tuas roupas voarão para ti‖. O candidato acaba por obter a

―luz‖ ou a ―iluminação‖ (qaumaneq), e essa experiência mística, que é

decisiva, dá ao mesmo tempo origem a uma nova ―sensibilidade‖ e revela-

lhe capacidades de percepção extrassensorial. O qaumaneq consiste numa

―luz misteriosa‖ que o xamã sente subitamente no corpo, no interior da

cabeça, no próprio coração do cérebro, um inexplicável farol, um fogo

luminoso, que o torna capaz de ver no escuro, tanto o concreto como o

visualizado, porque ele consegue agora, mesmo de olhos fechados, ver

através das trevas e aperceber-se de coisas e acontecimentos futuros,

escondidos aos outros seres humanos (ELIADE, 2002 p. 90).

Percebe-se que o xamã pede ao mestre para recebê-lo em sua casa. Tal gesto

representa esse estado de discípulo de um curador mais velho, que detém a sabedoria da

comunidade. Ele recebe as práticas e os exercícios que devem fazer parte do seu treinamento,

e começa a realizar o treinamento a partir das indicações do ancião. Simultaneamente ao

treino tradicional, o xamã atua com os espíritos, em geral tais espíritos são pássaros, que

ajudam o xamã a realizar os primeiros voos:

Como afirma Eliade:

Mesmo onde a indumentária não apresenta estrutura ornitomorfa visível –

como, por exemplo, entre os Manchus, fortemente influenciados por

sucessivas vagas de cultura sinobudista –, o ornamento da cabeça é feito de

penas e imita pássaro. O xamã mongol de ―asas‖ nos ombros sente-se

transformado em pássaro assim que enverga o hábito. [...] Baseado em seus

26

http://www.xamanismo.com.br/Universo/SubUniverso1191052266It003

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informantes tungues, Shirokogorov afirma que a indumentária de pássaro é

indispensável para o voo ao outro mundo (ELIADE, 2002, p. 181).

Apesar da presença dos pássaros estar disseminada em quase todo o mundo,

vinculando-se ao xamã, ou a feiticeiros, seres míticos ou personificações desses, precisamos:

[...] levar em conta as relações míticas existentes entre a águia e o xamã.

Recordemos que a águia é considerada o pai do primeiro xamã,

desempenhando papel considerável na sua iniciação e encontrando-se no

centro de um complexo mítico que engloba a Árvore do Mundo e a viagem

extática do xamã. Não se pode tampouco perder de vista que a águia

representa de certo modo o Ser Supremo, ainda que fortemente solarizado.

Todos esses elementos parecem contribuir para definir de modo bastante

claro o significado religioso da indumentária xamânica: ao vesti-la,

recupera-se o estado místico revelado e fixado durante as longas

experiências e cerimônias de iniciação (ELIADE 2002, p. 182).

Em outra assertiva:

O xamã voou para os Céus sentado em seu tamborim, avistou a alma da

jovem e, para libertá-la, transformou-se em aranha amarela, picando o rosto

de Deus; este retirou o dedo, e a alma da jovem fugiu. Furioso, Deus limitou

o poder de Khara-Gyrgän, e daí por diante os poderes mágicos dos xamãs

diminuíram muito (S. SHASRKOV, 1864, apud ELIADE, 2002).

Mais que uma relação direta com o voo, o xamã descende desse espírito criador:

Nos mitos de origem xamã a presença do ser supremo ocorre com

frequência. O representante deste ser supremo é a águia. ―Os deuses

decidiram dar um xamã à humanidade para lutar contra a doença e a morte, e

enviaram a águia.‖ (ELIADE, 2002). A águia, portanto, desempenha papel

fundamental no mito de origem dos xamãs; ela também está nas vestes do

xamã, o que caracteriza seu voo cósmico; seu ninho está na árvore cósmica

que liga os três mundos (Eliade, 2002). Todos os xamãs descendem deste

ancestral criado pelo deus supremo por intermédio da águia. [...] Na prática

da cura, haveria um voo mágico de um pássaro encantado em que o xamã,

abrindo seus braços, representava asas alcançando os ares, os céus. Neste

périplo ao mundo invisível, assume o poder de conhecer o futuro, fazer

cessar tempestades, reencarnar mortos, duelar com outros xamãs, num

processo de nascimento, morte e renascimento (NETO at al. 2010 p. 3-8).

Antes disso, Peter Furst, numa importante contribuição ao estudo do uso de

psicotrópicos pelos indígenas meso e sulamericanos, já havia lembrado que:

Wassén (1965; 1967) e Zerries (1965) demonstraram recentemente que as

conhecidas imagens de ‗alter ego‘ procedentes do baixo Amazonas, em que

um jaguar aparece atrás e acima de um homem, são partes da parafernália

relacionada ao preparo, armazenamento e uso do poderoso psicotomimético

inalável Piptadenia [e que] a junção ou combinação de jaguares e pássaros

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em utensílios de inalação está intimamente relacionada ao conceito

amplamente difundido de pássaros como espíritos do tabaco ou como

patronos de intoxicações extáticas, e como avatares ou espíritos

coadjuvantes do xamã no voo celestial que ele empreende no estado de

êxtase induzido por substâncias psicotrópicas (FURST, 1968, p. 161-162).

A árvore do mundo é central, dela nasce todo o poder do xamã, e por intermédio dela

encontra-se o espírito. O voo é elemento preponderante, e, por isso, é preciso o retorno ao

centro do mundo para acessar os mundos possíveis:

O Senhor da Árvore deu também ramos a todos os homens que se achavam

no alto da árvore. Mas, surgindo no meio da árvore em forma humana até à

cintura acrescentou: ―Só um ramo não dou aos xamãs, pois o reservo para o

resto da humanidade. Com ele, os homens poderão fazer habitações e, assim,

usá-lo de acordo com as suas necessidades. Sou a Árvore que dá a vida a

todos os homens.‖ Pegando o ramo, o candidato estava pronto para continuar

o vôo, quando ouviu novamente uma voz humana, desta vez revelando-lhe

as virtudes medicinais das sete plantas e instruindo-o a respeito da arte de

xamanizar. Porém - acrescentavam as vozes - ele devia casar-se com três

mulheres (o que, aliás, ele fez, mais tarde: casou-se com três meninas órfãs

que ele curara da varíola). Depois disso, chegou a um mar sem fim; lá,

encontrou árvores e sete pedras. As pedras lhe falaram, umas após as outras.

A primeira tinha dentes como os do urso e uma cavidade em forma de cesta.

Disse-lhe que era a pedra que sustentava a terra; com seu peso, fazia pressão

sobre os campos para que eles não fossem arrebatados pelo vento. A segunda

servia para fundir o ferro. Ele permaneceu com as pedras durante sete dias,

aprendendo, assim, como podiam ser úteis aos homens (ELIADE, 2002, p.

57).

O espírito e o xamã criam um elo fundamental, que defini sua força, sua capacidade de

interagir com mundo espiritual está vinculada à realidade profunda dessa conexão. Por sua

vez, Reichel-Dolmatoff descreve um ritual Desana:

No idioma Desana, o pajé se chama ye‘e, palavra que também significa

onça, e de fato se supõe que o pajé pode se transformar nesse animal (...). O

poder de transformação de um pajé é um dos aspectos mais importantes do

seu ofício (...). A transformação em onça pode ter dois objetivos (...) [a

proteção ou a agressão; para poder agredir] (...) ele também se transforma

em sucuri; neste caso, o pajé toma a forma de um tipiti e, boiando pelo rio,

procura devorar a sua vítima ‗espremendo-a‘(REICHEL-DOLMATOFF

1968, p. 99-102).

Vemos outro exemplo:

Um pajé é chamado Maï de ripã, ―suporte das divindades‖, ou ha'o we

moñîña, ―cantador das almas‖. Não há iniciação ou ―chamado‖

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formais à pajelança. Certos sonhos, se frequentes, podem indicar uma

vocação de pajé, especialmente os sonhos com onças e com a ―Coisa-

Onça‖, um Maï bastante perigoso. Mas, mais que alguém que sonha,

um pajé é alguém que fuma: petî ã î, ―não-comedor-de-tabaco‖, é o

modo usual de se dizer que um homem não é pajé. O tabaco é o

emblema, o instrumento de fabricação e de operação do pajé. O

treinamento para pajé consiste em um longo ciclo de intoxicações por

tabaco, até que o homem mo-kiyaha, ―faça-se translúcido‖, e os

deuses ―cheguem‖ até ele.27

Os dois exemplos – dos Desana e dos Arawete – mostram como existe uma conexão

profunda entre o xamã e o espírito aliado. Os Asurini têm uma relação direta com esses

espíritos, são como aliados, que ajudam o xamã nos trabalhos de cura. Tais espíritos servem

de alimento energético para esses pajés, que utilizam sua energia para se fortalecerem:

Como os xamãs, os espíritos guardiões são intermediários entre homens e as

categorias únicas e auxiliam seus colegas humanos a combaterem os males

dos anhynga. Para tornar-se familiar aos espíritos e participar de seu mundo,

o xamã asurini passa por uma iniciação, isto é, um treinamento para obter e

controlar, através do exercício da dança e da aspiração da fumaça do tabaco,

o estado de transe, interpretado como ―morte‖ do pajé, pelos ataques do

espírito. Para suportar estes ataques, o pajé manipula substâncias (ka´a) que

entram em seu corpo. O treinamento do xamã consiste em ―tomá-las‖ do

espírito em questão. Deve aprender também a manejar certos instrumentos,

como apitos, que fazem o som dos espíritos e têm procedência

sobrenatural.28

Ver os espíritos é mais que uma relação imaginativa, é uma realidade que transcende a

nossa forma de conhecer o mundo. Isso porque o ―ver‖ no Xamanismo é o ver profundo, e

esses espíritos se apresentam de forma real neste mundo, e através deles se pode iniciar a

conexão que irá se aprofundar no mundo espiritual. Talvez não haja uma divisão entre os

mundos e sejam, na verdade, uma continuidade um do outro, e os xamãs podem acessar esse

processo imeditamente durante o transe. O espírito tem uma materialidade, e é o que ocorre

no chamado casamento celeste, onde esses espíritos se reúnem ao xamã de uma forma

amalgamada.

27

Pesquisa em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/arawete/110

28 Pesquisa em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/asurini-do-xingu/1284

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2.3 Espíritos auxiliares – animais de poder

Um exemplo disso é a prática de indicação dos ―animais aliados‖, ou ―animais

guardiões‖, ou ―totem animal‖, ―espirito animal‖ etc. Essa prática é comum entre os nativos

norte-americanos e aparece de diversas formas em várias culturas. Mircea Eliade comenta que

―esses espíritos auxiliares de forma animal desempenham papel importante no preâmbulo da

sessão xamânica, ou seja, na preparação da viagem extática aos céus ou aos infernos‖

(ELIADE, 2002, p 111). É comum entre os grupos de Neoxamanismo urbano a conhecida

Jornada em Busca do Animal de Poder. Uma prática comum que praticamente todos os

grupos utilizam como mecanismo de apropriação do Xamanismo. Eliade descreve melhor

essa experiência:

Geralmente sua presença é evidenciada pela imitação feita pelo xamã das

vozes dos animais ou de seu comportamento. O xamã tungue, que têm uma

serpente como espírito auxiliar, esforça-se por imitar através de mímicas os

movimentos do réptil durante a sessão; [...] Aparentemente essa imitação

xamânica dos gestos e das vozes dos animais pode passar por ―possessão‖,

mas talvez fosse amis exato dizer que o xamã toma posse de seus espíritos

auxiliares: é ele que se transforma em animal, do mesmo modo como obtém

resultado semelhante usando uma máscara de animal; ou então poderia falar

de nova identidade do xamã, que se torna animal-espírito e ―fala‖, canta ou

voa como os animais e pássaros. A ―linguagem dos animais‖ não passa de

uma variante da ―linguagem dos espíritos‖, linguagem xamânica secreta [...]

Gostaríamos de chamar a atenção para o seguinte aspecto: a presença de um

espírito auxiliar na forma animal, o diálogo com este numa língua secreta ou

a encarnação desse espírito-animal pelo xamã (mascaras, gestos, danças etc.)

são também meios de mostrar que o xamã é capaz de abandonar sua

condição humana, que é capaz, em suma, de ―morrer‖ (ELIADE, 2002, p

112-113).

Essa linguagem secreta representa uma linguagem metafórica, que o xamã toma

contato ao se relacionar com o mundo espiritual, é uma linguagem universal, no sentido que

convoca imagens materiais que podem ser observáveis pela audiência de observadores do

transe xamânico. O conhecimento e poder sobre esses animais são muito importantes, visto

que ―aprender a linguagem dos animais, sobretudo a dos pássaros, equivale, em qualquer

parte do mundo, a conhecer os segredos da natureza e, portanto, a ser capaz de profetizar‖

(ELIADE, 2002, p 117).

O domínio sobre a natureza, e como diz Eliade, a principal característica de que o

xamã pode viajar pela àrvore do mundo, entre mundo subterrâneo, intermediário e superior,

representa para muitos uma capacidade extra-humana, que tem um chamariz muito forte

dentro dos grupos de Neoxamanismo urbano, e que não pode deixar de figurar como uma das

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características marcantes da ideologia de um grupo, o poder dos xamãs é a fonte de interesse

com o mesmo.

Entre os quéchuas, os três mundos são representados por animais, o subterrâneo Uhu

Pacha pela serpente, o intermediário Kai Pacha pelo puma, e o superior Hanan Pacha pelo

condor, são conceitos relativos ao tempo/espaço dentro do pensamento andino (QESPI, 1994).

Para a etnia Huni Kuin, do Acre, não existem prioritariamente animais guardiões, mas existe

uma infinidade de histórias em que os animais trouxeram remédios, medicinas e rituais para

esse povo, em especial a mamãe jiboia, que é um animal guardião de toda a comunidade, e

todos de alguma forma tomam contato com ela. Os desenhos da pele da jiboia estão presentes

em todo o vestuário e nos adornos do povo. (CAMARGO & VILLAR, 2013). Joseph Epes

Brown em sua obra Animales Del Alma – Animales sagrados de los oglala sioux, comenta

como é a busca pelo espírito animal:

Entre o povo de cultura nômade e os animais de seu habitat se exerce

necessariamente uma interação intensa. Isso é evidente em uma ampla

variedade de expressões culturais que projetam o que poderia chamar de

visão total de mundo por parte do homem. Os sioux oglala das planícies

norte americanas são um clássico exemplo deste tipo de cultura. Nas

palavras de um deles, Bufalo Bravo de Standing Rock, ―quando tinha dez

anos me coloquei considerar os montes e os rios, o céu no alto e os animais

ao meu redor, e não, pude deixar de compreender que os fizera algum Poder

muito grande. Tão ansioso estava em entender esse Poder que sai

perguntando as arvores e aos arbustos‖. [...] qual é precisamente, o conceito

oglala de poder que se manifesta através dos animais? Qual a relação entre a

multiplicidade de tais ―poderes‖ e o conceito unitário de ―Ser Supremo‖?

Quem é o ―espírito guardião‖ adquirido pelo índio, e qual é a relação entre

este ―poder espirito‖ e o ―senhor‖ dos animais? (BROWN, 1994, p. 17).

Esse encontro ocorre durante a Vision Quest, lamento por uma visão, busca da visão,

uma cerimônia tradicional em que o índio vai para as planícies e cânions, e fica em jejum por

uma dezena de dias em busca de uma profecia, ou em torno de uma missão que deverá guiá-lo

na comunidade, essa visão em geral pode vir acompanhada da revelação do espírito guardião.

O espírito é um elemento importante de aquisição de poder no Xamanismo, mas a conexão é

através da ida do xamã ao mundo espiritual, esses espíritos, quando se apresentam nesta

realidade, são bem palpáveis. Como mencionado, um espírito animal é muito importante para

o xamã adquirir poder, e mesmo para toda comunidade.

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2.4 Cerimônia iniciática

A vocação xamânica, à semelhança de qualquer outra vocação religiosa, manifesta-se

por uma crise, por uma ruptura provisória do equilíbrio espiritual do futuro xamã. Ela se

manifesta por uma violação temporária do equilíbrio mental.

Todas as observações e análises feitas, até este ponto desta pesquisa, foram capazes de

reunir dados extremamente valiosos: eles mostram que é possível dizer que este modo de ser,

que se reflete na psique, Eliade nomeia como dialética entre o sagrado e o profano: a

separação radical entre secular e o sagrado. A partir daí tais elementos distinguem-se, pela

intensidade, da comunidade com suas experiências religiosas pessoais. Essa elite mística

eleita não controla só a vida religiosa da sociedade, mas também, de certa maneira se

preocupa com sua ―alma‖. O xamã é um grande especialista da alma humana; somente ele

pode ―ver‖, porque ele conhece a sua ―forma‖ e destino.

A prova disso é que o Xamanismo – uma vocação, tipo de profissão – é um complexo

sistema de seleção de candidatos. A dupla instrução dada pelos espíritos e velhos mentores,

xamãs, é o equivalente à iniciação. Às vezes é uma iniciação pública e se constitui um ritual

autônomo. No entanto, a falta desse tipo de ritual não significa a ausência de iniciação: é

bastante comum ser realizada em um sonho de êxtase entre a experiência dos neófitos.

(ELIADE, 2002, p. 26).

Eliade afirma que:

Os documentos de que dispomos sobre os sonhos xamânicos mostram de

modo pertinente que se trata de uma iniciação cuja estrutura é sobejamente

conhecida na história das religiões; não se trata em nenhum caso de

alucinações anárquicas ou de fabulação estritamente individual: essas

alucinações e essa fabulação seguem modelos tradicionais coerentes, bem

articulados e com um conteúdo teórico espantosamente rico (ELIADE, 2002,

p. 26).

O futuro xamã, um ―louco‖ ou não, em conexão e a dedicação para passar por certo

numero de testes e receber instruções - às vezes extremamente complexas, não pode

necessariamente ser um doente comum. Como expõe Eliade:

Entre os voguls, afirma Gondatti, o Xamanismo é hereditário e se transmite

também por linha feminina. Mas o futuro xamã se sobressai desde a

adolescência. Desde cedo torna-se nervoso e em certos casos chega a estar

sujeito a ataques de epilepsia, interpretados como um encontro com os

deuses (ELIADE, 2002, p. 27).

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Mesmo quando o xamã recebe a orientação hereditária, existe um outorga celestial,

[...] entre os votyaks, por exemplo, o Xamanismo é hereditário, mas também

é outorgado diretamente pelo deus supremo, que instrui pessoalmente o

futuro xamã através de sonhos e visões. Ocorre exatamente o mesmo entre

os lapões, onde o dom se transmite dentro da família, mas os espíritos

também podem concedê-lo a quem quiserem (ELIADE, 2002, p. 28).

Acredita-se que ele é ensinado pelos deuses, e, claro, é algo incomum para o homem

moderno compreender essa forma de instrução mística. Mais frequentemente toda a

aprendizagem começa com o aparecimento de um distúrbio mental ou distúrbios de

comportamento do futuro xamã, considerados como um sinal de eleição para a ―profissão‖

xamânica, e ainda requer uma iniciação especial, ―iniciação‖, que também é levada a cabo em

sonhos e transes (Estados Xamânicos de Consciência) de natureza dolorosa:

A seleção xamânica nos Andes pode ser realizada por uma série de

indicadores. Acredita-se que uma pessoa tem vocação xamânica e talento

para ver além dos limites da realidade empírica. Profissionais muitas vezes

alegam ser descendentes de uma longa linha de xamãs, como uma forma de

demonstrar tanto o seu poder e autenticidade aos potenciais clientes. A

vocação também pode ser indicada por ser apontada no nascimento de

alguma forma. Nascendo um irmão gêmeo, que tem marcas de nascença

visíveis, ou ter defeitos de nascimento óbvios são exemplos dessa marcação

xamânica. Outros indicadores de vocação incluem as visões ou sonhos

(inspirados ou não pela ingestão de enteógenos) que sinalizam um chamado

divino para servir sua comunidade. Essas visões ou sonhos podem revelar

uma tendência para ver o mundo espiritual, adivinhar o futuro, curar o

doente, ou comandar falanges espirituais. Porém a vocação xamânica é mais

frequentemente revelada para o futuro praticante através da experiência de

quase morte, na chamada doença do xamã. A sobrevivência de uma

enfermidade com risco de vida que se foi curado por outro xamã ou por

autocura é um exemplo disso. Sobreviver a um acidente ambiental incomum

(especialmente o de ser atingido por um raio) fornece outro.29

2.5 A subida pelo arco-íris: subida aos céus e descida aos infernos

A subida pelo arco-íris é uma das mitologias mais comuns entre os xamãs, os

Wapichana tratam deste tema, para poder acessar a partir dos índios brasileiros, por exemplo:

O xamã é denominado marinao e seus cantos, marinaokanu. Os cantos

xamânicos são qualificados pela expressão upurz karawaru, que os

Wapichana traduzem por ―corrente do marinao‖. Tais cantos o xamã entoa,

29

Fonte: http://www.xamanismo.com/universo%20xamanico/xamaria-andina/

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acompanhado pelo ritmo de um molho de folhas de ingá ou pau-tipiti, para

―subir‖, ou seja, deixar o corpo e permitir que outros entes – em especial

xamãs já mortos – se manifestem por meio do seu corpo, enquanto sua alma

– udorona – visita os habitantes invisíveis das serras e outros locais. O

princípio vital do marinao permanece ligado a seu corpo por meio deste

canto-corrente e, por esse motivo, em guerras xamânicas, um marinao

tentará cortar a corrente de seu adversário. Um marinao que não possui um

repertório upurz karawaru, ou seja, sua corrente, é dito chanaminuru, um

xamã voltado para o mal, que se utiliza do arco-íris para sua subida. Em uma

sessão xamânica, os cantos upurz karawaru são intercalados a diálogos,

eventualmente estabelecidos entre os entes que se manifestam através do

xamã e seus assistentes. Muitas vezes, esses entes expressam-se em línguas

estrangeiras, trazendo ao discurso do Xamanismo um certo grau de esoteria.

O ponto fundamental da iniciação de um xamã consiste da incorporação,

através da ingestão pelas narinas e boca, de certa categoria de plantas –

wapananinao – que, mágicas, possuem, estas sim, o dom do canto.

Marinaokanu são, portanto, cantos de plantas wapananinao que o xamã

guarda em si e que já se mesclaram à sua própria natureza. Em uma sessão

de cura, o canto dirige-se à alma do doente, bem como ao ente que a

aprisiona, motivo da doença, operando persuasivamente sua recondução ao

corpo. Os cantos não descrevem a batalha pela alma, antes consistem eles

próprios em batalha.30

Esta variação de subida aos céus é muito difundida, Eliade fala sobre a subida aos céus

na iniciação do xamã siberiano, que é levado pelo xamã mais velho até o topo do arco-íris e

de lá é jogado para que se despedace, em seguida é remontado, como parte do processo de

renascimento. ―Deve-se ter em mente um fato: durante a sessão, o xamã restabelece só para si

uma situação que na origem era de todos‖ (ELIADE, 2002, p. 196).

Está intrínseca em todo o trabalho da viagem do xamã a árvore como simbolismo do

centro do mundo, uma passagem para o cosmos. Verificou-se, sucintamente, a ascensão pela

árvore. No seguimento, será observado como ela se dá através do arco-íris.

O xamã sobe pelo arco-íris; o arco-íris tem ligação com um animal, a serpente, é como

montar numa grande serpente colorida. Ainda que de modo indireto, esses mitos fazem alusão

ao tempo em que a comunicação entre o Céu e a terra era possível. Percebe-se, também, o

simbolismo da ponte apresentado pelo arco-íris (ELIADE, 2002).

A iniciação do medicine-man australiano da região de Forest River comporta

tanto a morte e a ressurreição simbólicas do candidato quanto uma subida ao

Céu. O método habitual é o seguinte: o mestre assume a forma de esqueleto

e prende em si mesmo um saquinho, no qual introduz o candidato que ele

reduziu magicamente às dimensões de criancinha. Em seguida, montado na

Cobra-Arco-Íris, começa a impelir-se com a força dos próprios braços, como

30

EQUIPE DE EDIÇÃO DA ENCICLOPÉDIA POVOS INDÍGENAS NO BRASIL, dez. 2008. Edição a partir

do texto: FARAGE, Nádia. Os múltiplos da alma: um inventário de práticas discursivas wapishana (1998).

Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/wapichana/2007

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se subisse por uma corda. Chegando perto do topo, arremessa o candidato

para o Céu, ―matando-o‖. Uma vez no Céu, o mestre introduz no corpo do

aprendiz pequenas cobras-arco-íris, as brimures (n.b. pequenas cobras de

água doce) e cristais de quartzo (que têm, aliás, o mesmo nome da Mítica

Cobra-Arco-Íris). Após essa operação, o candidato é trazido de volta à terra,

ainda montado no Arco-Íris. O mestre volta a introduzir nele objetos

mágicos pelo umbigo e toca-o com uma pedra mágica para despertá-la. O

candidato volta ao tamanho normal. No dia seguinte, repete-se do mesmo

modo a ascensão pelo Arco-Íris (ELIADE, 2002, p. 153-154).

A origem do xamã, segundo uma lenda siberiana, se deu num momento de caos total

na terra. E o ser Supremo envia a Águia para colocar um pouco de ordem. Por ser um pássaro,

ela não é compreendida pelos humanos. A Águia (símbolo da consciência) encontra uma

mulher (identificada como liberdade) sob a copa de uma árvore, copula com ela e daí nasce o

primeiro xamã. Depois de sua morte, o primeiro xamã passa a habitar a montanha sagrada,

onde o grande rio da criação deságua. Diz-se que o xamã iniciado deve subir a montanha para

receber a iniciação do primeiro xamã que lá habita.

Por esse motivo, um xamã cura tanto os vivos quanto os falecidos. No processo com

os que já faleceram, o xamã realiza uma cerimônia de psicopompo, a fim de ajudar aqueles

que morreram a atingir um local cheio de paz e conforto. A cerimônia também pode afastar da

casa ou local os espíritos que não conseguem descansar.

De acordo com a cosmologia suruí, as almas devem atravessar um caminho

cheio de perigos. Por exemplo, um urubu gigante os devora; uma pedra os

esmaga; dejetos de um lagarto imenso os soterra; uma mulher ou um homem

com órgãos sexuais descomunais amedrontam os homens ou mulheres

(respectivamente) que chegam; entre muitos outros tormentos. As pessoas

corajosas conseguem atravessá-los e chegam a uma moradia eterna e segura,

junto com todos os que já foram xamãs. Os covardes, ou que cometeram

incesto, morrem uma segunda vez, ou ficam vivendo nas aldeias das almas

imprestáveis. Não se deve pronunciar o nome dos mortos, para que sua alma

não ronde os vivos, e para que ele faça em paz a travessia final.31

Três características são importantes neste caso:

(1) Ser capaz de abandonar ―impunemente‖ (ou seja, sem morte definitiva) o próprio

corpo e, assim, assumir a forma espiritual da alma que deve conduzir;

(2) Ser capaz de orientar seu voo para cima (―Céu‖) ou para baixo (―Inferno‖), de acordo

com as necessidades;

(3) Ter acesso ao ―além‖, ou aos ―mundos sobrenaturais‖, e dessa forma, transpor a

―passagem difícil‖ que tradicionalmente prende a alma do morto recente ao mundo

dos vivos, causando os mais variados problemas.

31

Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/surui-paiter/853

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É sempre ele quem conduz a alma do morto aos Infernos, pois é o

psicopompo por excelência. O xamã é curandeiro e psicopompo porque

conhece as técnicas do êxtase, isto é, porque sua alma pode abandonar

impunemente o corpo e vagar por enormes distâncias, entrar nos Infernos e

subir ao Céu. Ele conhece, por experiência extática pessoal, os itinerários

das regiões extraterrenas. Pode descer aos Infernos e subir ao Céu porque já

esteve lá. O risco de perder-se nessas regiões proibidas é sempre grande,

mas, santificado pela iniciação e munido de seus espíritos guardiães, o xamã

é o único ser humano que pode correr esse risco e aventurar-se numa

geografia mística (ELIADE, 2002, p. 208).

O Xamã deve conhecer a ―geografia mística‖ de forma a conduzir a alma, sem

transtornos, para o seu destino adequado. Sendo esses os elementos básicos da psicopompia, e

sendo a psicopompia uma possível aplicação das técnicas do êxtase, é lógico que possamos

tomá-los como uma das técnicas do êxtase, ou melhor, dos estados xamânicos de consciência.

2.6 Os usos das indumentárias xamânicas

As indumentárias, adereços e instrumentos do Xamanismo são importantes, são partes

essenciais do trabalho xamânico. Isso por que a cultura material dos povos nativos é muito

rica, com grande variedade de matérias primas, metais, tecido, pedras preciosas, peles de

animais, penas de pássaros etc. Esse universo a parte dentro da cultura xamânica é um mundo

vasto de sentidos e símbolos, e são as ferramentas do xamã, são sua força primordial.

2.6.1 A Roupa como Hierofania

A Roupa xamânica representa uma manifestação do sagrado. Sua utilização é para o

xamã como uma licença para o mundo espiritual. Hierofania (do grego hieros (ἱερός) =

sagrado e faneia (φαίνειν) = manifesto) pode ser definido como o ato de manifestação do

sagrado. É um conjunto simbólico de elementos, que compõe a cultura e o sistema de relações

daquela comunidade com o mundo espiritual:

A indumentária xamânica constitui em si mesma uma hierofania e uma

cosmografia religiosa: revela não apenas uma presença sagrada mas também

símbolos cósmicos e itinerários metafísicos. Examinada com atenção, a

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indumentária revela o sistema do Xamanismo com a mesma transparência

que os mitos e as técnicas xamânicas (ELIADE, 2002, p.169).32

Todos os detalhes da indumentária são como elementos combinados que representam

uma narrativa do conjunto de informações do sistema religioso. A roupa é um objeto sagrado

em si mesmo, e mesmo sem a presença do xamã que a anima ela já é sagrada, que pode em

muitos casos ser passada entre as gerações, sendo, em cada momento, carregada

espiritualmente com forças poderosas. O uso da roupa também significa que o xamã deve

passar pelo treinamento, para poder envergá-la:

A indumentária representa, em si mesma, um microcosmo religioso

qualitativamente diferente do espaço profano circundante. De um lado,

constitui um sistema simbólico quase completo e, de outro, está impregnado,

pela consagração, de forças espirituais múltiplas e, principalmente, de

―espíritos‖. Pelo simples fato de vestí-la – ou de manipular objetos que a

substituem – o xamã transcende o espaço profano e prepara-se para entrar

em contato com o mundo espiritual. Em geral, essa preparação é quase uma

introdução concreta nesse mundo, pois enverga-se a indumentária após

longas preparações e justamente às vésperas do transe xamânico (ELIADE,

2002, p. 171).

A roupa está carregada com as forças ancestrais e é conectada com o mundo

primordial, do primeiro xamã, representa um renascimento do mundo, um estado primordial

do tempo e espaço:

Mas, como já vimos e voltaremos a ver, o mesmo simbolismo aéreo é encontrado em

quase todo o mundo, vinculado justamente aos xamãs, aos feiticeiros e aos seres

míticos que estes, às vezes, personificam. Por outro lado, é preciso levar em conta as

relações míticas existentes entre a águia e o xamã. Recordemos que a águia é

considerada o pai do primeiro xamã, desempenhando papel considerável na sua

iniciação e encontrando-se no centro de um complexo mítico que engloba a Árvore do

Mundo e a viagem extática do xamã. Não se pode tampouco perder de vista que a

Águia representa de certo modo o Ser Supremo, ainda que fortemente solarizado.

Todos esses elementos parecem contribuir para definir de modo bastante claro o

significado religioso da indumentária xamânica: ao vesti-la, recuperasse o estado

místico revelado e fixado durante as longas experiências e cerimônias de iniciação (ELIADE, 2002, p. 182).

A vestimenta do pajé Waiãpi se torna instigante nesse sentido, ele carrega elementos

que são visíveis neste mundo, mas que têm efeito no mundo espiritual. Esse caso é muito

interessante (GALLOIS, 1996), o que ele chama de i-paie, que representa a força espiritual,

32

ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 169.

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como em redes. O xamã pode, por exemplo ter uma adaga, ou mesmo uma arma de fogo

costurada em sua indumentária, para que esta seja utilizada no mundo espiritual.

Nota-se que nas mesas andinas (tecidos que são dispostos no chão em frente ao xamã)

também são colocados objetos congêneres, que também buscam representar esta força do

xamã. A mesa andina não é necessariamente uma vestimenta, mas é uma extensão dos

adereços do xamã. De qualquer forma, na cultura Waiãpi pode-se observar essa dinâmica das

forças espirituais:

Não terá passado despercebida a opção de falar em concentração do

Xamanismo. Esta formulação permite ser mais fiel a uma concepção wajãpi

de que a ação xamânica é baseada em substâncias e capacidades - é um estar,

antes que um ser; por isso, opto também por falar em pessoas empajezadas e

não em pajés ou em xamãs. (...) o fato de os Wajãpi se referirem a pessoas e

seres como ipaje (i- = prefixo de posse de terceira pessoa; pajé = potência

xamânica) demonstra que não estamos diante de especialistas, mas de

sujeitos que podem concentrar qualidades xamânicas, possuindo alta

capacidade de ação. Por isso, é comum ouvir apreciações sobre pessoas ou

donos cosmológicos (ijarã) a cerca de sua força xamânica, sendo

considerados rovijã (chefe muito grande), wasu (grande), miti (pequeno),

ounipajei (sem pajé). Como explica Gallois (1996, 1998), qualquer um pode

experimentar em um determinado momento da vida as capacidades

xamânicas, pois ao ser soprado (-peju), por alguém empajezado, em um

processo de reconstituição do estado de saúde, recebem-se substâncias

(opiwãrã) responsáveis pela cura. Cabe, então, ao soprado cuidá-las

conforme seu interesse em mantê-las ou não em seu corpo. A ideia de

concentração e fixação de substâncias xamânicas, altamente voláteis já que

refratárias ao sol quente, ao odor de fluídos corporais, às carnes de aroma

forte etc (OLIVEIRA, 2015, p. 307).

O uso da vestimenta é uma abertura para o sagrado, é uma possibilidade de encontrar

os poderes xamânicos, e como visto no caso dos waiãpi, é um poder que pode ser revelado e

presente em todos. Pode-se ainda dizer que existem contextos mitológicos de como o xamã

encontra sua roupa, assim como, em alguns casos, há trocas de adereços e objetos.

As roupas são repletas de simbologia, percebidas pelos peitorais de metal, para

espantar os maus espíritos, assim como nas costas, a reprodução de sons, com a costura de

sinos nas roupas etc. Pode-se dizer o mesmo dos espelhos, gorros chapéus etc.:

Entre os diversos grupos tungues do norte da Manchúria (tungues khingans,

birartchens etc.) os espelhos de cobre desempenham papel importante (cf.

Shirokogorov, Psychomental Complex, p. 296). A origem é claramente sino-

manchu (ibid., p. 299), mas o significado mágico desses objetos varia de

uma tribo para outra; diz-se que os espelhos ajudam o xamã a ―ver o mundo‖

(isto é, concentrar-se), ou a ―situar os espíritos‖, ou a refletir as necessidades

do homem etc. V. Diószegi mostrou que o termo manchu-tungue que

designa espelho, panaptu, deriva de pana, ―alma, espírito‖, mais

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precisamente ―alma-sombra‖. O espelho é portanto um receptáculo (-ptu) da

―alma-sombra‖. Olhando no espelho, o xamã pode ver a alma do defunto

(ELIADE, 2002, p. 178).

Encontram-se esses elementos em muitos lugares, como nas representações da cultura

popular em diversas partes do mundo. Na cultura popular brasileira há alguns casos, como a

folia de reis, ―O palhaço porta uma máscara que representa os Reis Magos, feita de materiais

variados, como veludo ou, tradicionalmente, pele de animais. Na folia de Zé Reis os palhaços

também portam coroas e trazem um espelho colado na máscara, na altura da testa, cuja função

é espantar os maus-espíritos‖ (FIGUEIREDO, 2013, p. 63).

Portanto, a indumentária tem uma finalidade muito específica no contexto do uso

ritual, e torna-se bastante importante, além de outros tantos símbolos que o xamã pode portar.

2.6.2 O esqueleto

Como mencionado anteriormente, a indumentária tem profundo simbolismo e uma

utilização eficaz para o trabalho xamânico. Dentre um dos símbolos importantes está o do

esqueleto. O xamã é aquele que é renascido, e o esqueleto é um símbolo forte para representar

essa passagem:

De qualquer modo, as duas hipóteses afinal remetem para a mesma ideia

fundamental: tentando imitar o esqueleto, de homem ou pássaro, a

indumentária xamânica proclama o status especial daquele que a veste, ou

seja, o status de alguém que morreu e ressuscitou (ELIADE, 2002, p. 183).

É como se o xamã sempre se se relembra de sua iniciação primeira, de passagem entre

os mundos, de morte e renascimento. Reviver esta transição toda vez que usa a indumentária é

uma forma de legitimar o processo de transformação que ele passou, o esqueleto têm o poder

de reviver a iniciação com toda sua traumática representação:

O esqueleto presente na indumentária do xamã resume e reatualiza o drama

da iniciação, isto é, o drama da morte e da ressurreição. Pouco importa que

seja considerado representação de esqueleto de homem ou de animal; em

ambos os casos, trata-se da substância vital, da matéria prima conservada

pelos ancestrais míticos. O esqueleto humano representa, de certo modo, o

arquétipo do xamã, pois representaria a família de que nasceram,

sucessivamente, os ancestrais-xamãs. (O tronco familiar é, aliás, designado

por ―osso‖; diz-se ―do osso de N‖ no sentido de ―descendente de N‖.) O

esqueleto de pássaro é uma variante da mesma concepção; por um lado, o

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primeiro xamã nasceu da união de uma águia com uma mulher e, por outro,

o próprio xamã trata de transformar-se em pássaro e voar; na verdade, ele é

um pássaro, porquanto tem acesso, como este último, às regiões superiores.

No caso em que o esqueleto – ou a máscara – transforma o xamã em outro

animal (cervo etc.), trata-se de teoria similar, pois o animal-ancestral mítico

é concebido como matriz inesgotável da vida da espécie, matriz reconhecida

nos ossos desses animais (ELIADE, 2002, p. 184-185).

Os ossos são uma forma de eternizar o processo iniciático e como comenta Eliade, este

processo de portar esqueletos ou visualiza-los é uma forma de representação do contanto com

o mundo espiritual:

Ainda a respeito da ressurreição a partir dos ossos, poderíamos mencionar a

célebre visão de Ezequiel, embora ela se integre num horizonte religioso

totalmente diverso do dos exemplos citados acima. ―A mão do Eterno

pousou sobre mim; o Eterno arrebatou-me em espírito e levou-me para o

meio de um vale cheio de ossadas [...] Perguntou-me: ‗– Filho de homem,

podem estas ossadas reviver?‘ Respondi: ‗– Senhor Eterno, apenas vós

sabeis!‘ Então Ele me disse: ‗– Profetiza sobre essas ossadas, e diz a elas:

‗Ossadas secas, ouvi a palavra do Eterno.‘ Assim fala o Senhor, o Eterno, a

essas ossadas: ‗Farei o espírito entrar em vós, e revivereis; e sabereis que sou

o Eterno‘. Profetizei, como me fora ordenado; e enquanto eu profetizava,

houve um tremor, depois um estrépito, e os ossos aproximaram-se uns dos

outros. Olhei, e vi que sobre eles formavam-se músculos e carne‖ etc.

(Ezequiel, 37,1-8 SS.) (ELIADE, 2002, p. 187).

O esqueleto tem forte representação dentro da prática xamânica, e não se pode deixar

de tratar dele neste módulo.

2.6.3 O uso das máscaras e pintura

Como partes da indumentária têm as máscaras, mas também em muitos casos o uso de

pinturas corporais, em todos os casos elas carregam a mesma simbologia que discutimos até

aqui, vejamos uns exemplos:

Na Ásia, os raros casos registrados encontram-se quase exclusivamente entre

tribos meridionais. Entre os tártaros negros, os xamãs às vezes utilizam

máscaras de casca de bétula, com bigodes e sobrancelhas feitos de rabo de

esquilo. O mesmo costume se encontra entre os tártaros de Tomsk. Entre os

altaicos e os goldes, quando o xamã leva a alma do defunto para o reino das

sombras, besunta o rosto com fuligem para não ser reconhecido pelos

espíritos. Entre outros povos encontra-se a mesma utilização das máscaras,

com o mesmo objetivo, no sacrifício do urso. Cabe lembrar, a propósito, que

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o costume de sujar o rosto com fuligem é bastante difundido entre os

―primitivos‖ e que seu significado nem sempre é tão simples quanto parece.

Nem sempre se trata de camuflagem ou de proteção contra os espíritos, mas

sim de técnica elementar na busca da integração mágica no mundo dos

espíritos (ELIADE, 2002, p. 191).

Pintar o rosto para a guerra, para espantar os maus espíritos, ou mesmo para adquirir

uma nova identidade é todas características do trabalho xamânico. Cobrir o rosto de fuligem é

um dos meios:

[...] mais simples de mascarar-se, isto é, de incorporar as almas defuntas. As

máscaras estão, por outro lado, relacionadas com sociedades secretas

masculinas e com o culto dos ancestrais. Para a escola histórico-cultural, o

complexo máscaras-culto dos ancestrais de sociedades secretas de iniciação

pertencem ao ciclo cultural do matriarcado, sendo as sociedades secretas,

ainda no entender dessa escola, uma reação contra a dominação das

mulheres. A raridade das máscaras xamânicas não deve surpreender. Na

verdade, como notou Harva (op. cit., pp. 524 ss.) com propriedade, a

indumentária do xamã é em si mesma uma máscara, e pode-se dizer que

derivada de uma máscara originária (ELIADE, 2002, p. 192).

A indumentária é uma ferramenta fundamental do trabalho xamânico, e deve ter um

olhar muito sofisticado sobre ela, no sentido de observar as nuances que a olho nu não

transparecem, convém afirmar que:

Por essas razões, e considerando os múltiplos valores que ela assume nos

rituais e nas técnicas do êxtase, pode-se concluir que a máscara desempenha

o mesmo papel que a indumentária do xamã e dizer que os dois elementos

são intercambiáveis. De fato, em todas as regiões onde é utilizada (e fora da

ideologia xamânica propriamente dita), a máscara proclama manifestamente

a encarnação de um personagem mítico (ancestral, animal mítico, deus). A

indumentária, por sua vez, transubstancia o xamã, transformando-o diante

dos olhos de todos em ser sobre-humano, seja qual for o atributo

predominante que se procure ressaltar: prestígio de um morto ressuscitado

(esqueleto), capacidade de voar (pássaro), situação de marido de ―esposa

celeste‖ (roupas de mulher, atributos femininos) etc (ELIADE, 2002, p. 193).

Nessa perspectiva, o estudo da indumentária xamânica é um ramo que pode ser

desenvolvido por toda uma vida, e pra quem é praticante é muito importante ter clareza desses

aspectos.

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101

2.6.4 O palhaço

A principal função de um palhaço sagrado é para esvaziar o ego de poder, lembrando

que estão no poder de sua própria falibilidade, ao mesmo tempo, lembrando aqueles que não

estão no poder que o poder tem o potencial para corromper se não for equilibrada com outras

forças, ou seja, com humor. Eles não são comediantes, por si só, embora eles possam ser. Eles

são mais como trapaceiros, abrindo buracos em coisas que as pessoas levam muito a sério:

A ideia que Heyoka é um palhaço sagrado, vem do comportamento oposto;

que é parte da sua medicina de Heyoka, para lembrar-nos que nós somos

seres meramente humanos e para não nos tornarmos demasiado sérios, para

não imaginar que somos mais poderosos do que somos realmente,

lembrando-nos que é no espírito que está todo o poder. Para os lakotas,

Wakinyan é primeiro Ser Trovão e é chamado também de Pássaro-Trovão.

Wakinyan representa também limpeza e quando Wakinyan voa sobre a terra

no momento das tempestades limpa a terra de modo que as nações plantas

possam viver para sempre. A direção de Wakinyan está no oeste e é feito do

cedro. E Wakinyan instruiu a queimar o cedro durante as tempestades

porque o fumo de cedro ardente limpa a área onde é queimado. Assim

quando Wakinyan voa sobre as casas, serão favoráveis aquelas casas que

queimam o cedro como limpeza. Quando uma pessoa sonha e tem visões do

trovão e do relâmpago, essa pessoa pode transformar-se em Heyoka, que faz

tudo ao contrário, que faz com que as pessoas riam. Assim como o

relâmpago ilumina a terra, um Heyoka traz um raio para diminuir o peso

daqueles que estão deprimidos, doentes, sozinhos, etc.. Somente aqueles que

tiveram visões dos seres trovão do oeste podem agir como heyokas. Têm o

poder sagrado e compartilham com todas as pessoas, com ações engraçadas.

Quando uma visão vem dos seres do trovão do oeste, vem com o terror como

uma tempestade; mas quando a tempestade passa, o mundo é mais verde e

mais feliz; por onde quer que venha a visão da verdade, é como uma chuva.

Vemos o mundo mais feliz após o terror da tempestade.33

A ambiguidade e a integração dos opostos é um temos que irá retomar ao longo do

texto, e a possibilidade escárnio e exposição do palhaço é um das funções do xamã, que

precisa de uma prática teatral durante os ritos, em que se apropria das diversas técnicas de

modo integrado. Grandes mestres de diversas religiões eram fortes exemplos desta função

integradora, quando Jesus zombava do pensamento estabelecido, ou quando se enfurece no

templo, Buda, superando o ego e as coisas do mundo, dando as costas aos bens mais

pomposos, ou mesmo Mandela, quando assume o poder perdoando seus opressores e

33

Fonte: http://www.xamanismo.com.br/Teia/SubTeia1192610740It003

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integrando as raças em meio à apartheid. Os palhaços sagrados são o epítome de tal

integração:

O heyokah é uma palavra lakota (Sioux) para se referir a um tipo de xamã

bem especial, o ―Tolo Sagrado‖. A tradição narra que um heyokah é aquele

que ―sonhou com os espíritos do trovão‖. Esse sonho traz um grande poder

ao xamã, pois se considera que ele recebe um dom especial para lidar com as

tempestades. Para lidar com esse poder, esse xamã se transforma num

―contrário‖.34

Heyokas, por exemplo, lembram seus povos que Wakan Tanka, o grande mistério, está

além do bem e do mal; que a sua natureza primordial não corresponde a limites humanos de

certo e errado. Heyokas agem como espelhos, refletindo as dualidades misteriosas do cosmos

de volta para seu povo. No caso, nem sempre o indivíduo deve seguir os preconceitos do que

é esperado e adequado. Como exemplo desses povos, realmente eles não se preocupam com

os problemas e preocupações humanas. Palhaços sagrados são adeptos a unir alegria com dor,

agindo sobre os imperativos mais altos e inescrutáveis do grande mistério. Eles tendem a

governar transição, introduzir paradoxo, fronteiras, e misturar o sagrado com o profano. Eles

são chamados a restabelecer a ponte entre os mundos físico e espiritual.

Eles se atrevem a fazer as perguntas que ninguém quer respostas. Eles são os avatares

incontroláveis do arquétipo Malandro, imagem constante de contingência e arbitrariedade da

ordem social, abrindo buracos em qualquer coisa levada muito a sério, especialmente

qualquer coisa assumindo o disfarce de poder. A ambiguidade e a integração dos opostos: Que

é a verdade? Essa questão impulsiona o palhaço na dimensão sagrada. Ele se torna sagrado,

abrindo-se. Como uma criança, ela é vulnerável, fluido e aberto à força da vida. Ao contrário

de uma criança, no entanto, ela aprendeu a proteger-se e mover-se com segurança através de

um mundo insano usando máscaras, disfarces, truques e transformações. Em um mundo são

ele poderia arriscar um pouco mais de exposição.

Os nativos americanos dizem que os Palhaços Sagrados são grandes amantes de

crianças, curando-as e protegendo-as. Além disso, um dos seus poderes é trazer fertilidade

para pessoas estéreis. Se o Guerreiro Sagrado personifica o Sol, o palhaço sagrado personifica

o vazio da grande abertura negra do espaço, o grande útero do qual todos nós nascemos.

(ARBOR, 1974).

Na sociedade Lakota o heyoka, o palhaço é visto como uma pessoa muito poderosa, e

importante quando se tem uma visão dos seres trovão, ele é chamado por Wakinyan, o Ser

34

Fonte: http://www.xamanismo.com.br/Teia/SubTeia1192610740It003

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Trovão. Com esse serviço, ele deve fazer tudo ao contrário do que se entende. Isso muitas

vezes significa violar normas.

2.6.5 Tambores e maracás

Quando se fala da indumentária, máscaras etc., nota-se como é complexo o trabalho

xamânico, mas uma das ferramentas, de longe a mais importante, é o tambor, e suas

variações, como a maracá, chocalhos, guizos etc.

O tambor é o centro do trabalho xamânico, ele é o veículo pelo qual o xamã encontra o

estado de transe, é possível traduzir o tambor como o ritmo interno, e seu toque como a

representação da expansão desse ritmo. O tambor é muito importante e fundamental:

O tambor desempenha papel de primeira ordem nas cerimônias xamânicas.

Seu simbolismo é complexo, suas funções mágicas são múltiplas. É

indispensável ao desenrolar da sessão, seja por levar o xamã para o "Centro

do Mundo", por permitir que ele voe pelos ares, por chamar e "aprisionar" os

espíritos, seja, enfim, porque a tamborilada permite que o xamã se concentre

e restabeleça o contato com o mundo espiritual que está prestes a percorrer

(ELIADE, 2002, p. 193-194).

Por ser o veículo de contato com o mundo espiritual ele é considerado o cavalo, aquele

que carrega o xamã nas costas. Ele é o elo entre os mundos, o meio pelo qual se pode navegar

pela arvore cósmica:

Visto por esse prisma, o tambor pode ser equiparado à árvore xamânica de

vários degraus pela qual o xamã sobe simbolicamente ao Céu. Escalando a

bétula ou tocando o tambor, o xamã aproxima-se da Árvore do Mundo e a

escala efetivamente. Os xamãs siberianos também possuem suas árvores

pessoais, que outra coisa não são senão representantes da Árvore Cósmica;

alguns deles utilizam ainda "árvores invertidas" (fixadas com as raízes para

cima), que estão sabidamente entre os símbolos mais arcaicos da Árvore do

Mundo. Todo esse conjunto, somado às relações já notadas entre o xamã e as

bétulas cerimoniais, mostra os estreitos vínculos existentes entre a Árvore

Cósmica, o tambor xamânico e a ascensão celeste (ELIADE, 2002, p. 194-

195).

O toque do tambor leva ao transe, suas batidas repetidas de 180 a 200 batidas por

minuto levam o xamã a um estado xamânico de consciência. Este processo como dizíamos

anteriormente têm relação direto com in ilo tempore, no tempo sem tempo, nos primórdios da

criação. Ele não tem somente a finalidade de acompanhamento musical, mais que isso, ele

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representa a cosmologia do xamã, é a entrada nos mundos, é o preparativo para a jornada. Por

ora, é suficiente mostrar que,

[...] tanto a caixa quanto a pele do tambor constituem instrumentos mágico-

religiosos graças aos quais o xamã é capaz de realizar a viagem extática ao

"Centro do Mundo". Em diversas tradições, o ancestral mítico teriomórfico

vive no mundo subterrâneo, perto da raiz da Árvore Cósmica, cujo topo

atinge o Céu (A. Friedrich, Das Bewusstseineines Naturvolkes, p. 52). Trata-

se de idéias distintas, mas estreitamente vinculadas. Por um lado, o xamã, ao

tocar seu tambor, voa em direção à Árvore Cósmica; veremos depois que o

tambor contém grande número de símbolos ascensionais (pp. 199 ss.). Além

disso, graças às suas relações místicas com a pele "reanimada" do tambor, o

xamã consegue compartilhar da natureza do ancestral teriomórfico. Em

outras palavras, consegue abolir o tempo e recuperar a condição original de

que falam os mitos. Tanto num caso como noutro, estamos diante de uma

experiência mística que permite ao xamã transcender o tempo e o espaço. A

metamorfose em animal-ancestral e o êxtase ascensional são expressões

diferentes, porém equiparáveis, de uma mesma experiência, a transcendência

da condição profana, a recuperação de uma existência ―paradisíaca‖ perdida

no final dos tempos míticos (ELIADE, 2002, p. 196-197).

Muito comum vermos os tambores com desenhos, e suas representações estão ligadas

aos processos Iniciáticos do xamã, os ornamentos do tambor, com objetos mágicos, espíritos

aprisionados, referência aos ciclos naturais etc.:

Os desenhos que adornam a membrana do tambor constituem uma

característica de todas as tribos tártaras e lapônias. Entre os tártaros, as duas

faces da membrana são cobertas de imagens. Distinguem-se pela grande

variedade, embora sempre seja possível discernir os símbolos mais

importantes, como por exemplo Árvore do Mundo, Sol, Lua, Arco-Íris etc.

Na verdade, os tambores constituem um microcosmo: uma linha de

demarcação separa o Céu e a terra e, em certos lugares, a terra e o Inferno. A

Árvore do Mundo, isto é, a bétula sacrificial escalada pelo xamã, o cavalo, o

animal sacrificado, os espíritos auxiliares do xamã, o Sol e a Lua que ele

atinge em sua viagem celeste, o Inferno de Erlik Kan (com os Sete Filhos e

as Sete Filhas do Senhor dos Mortos etc.), onde ele penetra quando desce

para o reino dos mortos, todos esses elementos que de certa forma resumem

o itinerário e as aventuras do xamã encontram-se representados em seu

tambor (ELIADE, 2002, p. 198).

O tambor é um escudo, uma representação do condutor do xamã, o cavalo que conduz

aos estados xamânicos de consciência. Como orientador do xamã o tambor cumpriu uma

tarefa essencial do trabalho xamânico:

A imagística dos tambores é dominada pelo simbolismo da viagem extática,

isto é, das viagens que implicam uma ruptura de nível e, portanto, um

―Centro do Mundo‖. A tamborilada inicial da sessão, destinada a invocar os

espíritos e a ―prendê-los‖ no tambor do xamã, constitui as preliminares da

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viagem extática. Por essa razão, o tambor é chamado de ―cavalo do xamã‖

(entre os iacutos e buriates). A imagem do cavalo é desenhada no tambor

altaico; acredita-se que, ao tocar o tambor, o xamã sobe ao Céu em seu

cavalo (Radlov, Aus Sibirien, II, pp. 18,28,30 e passim). Entre os buriates, o

tambor, feito de pele de cavalo, também representa esse animal

(Mikhailowski, p. 80). Segundo O. Mänchen-Helfen, o tambor do xamã

soyote é considerado um cavalo e chamado Khamu-at, o que significa,

literalmente, "xamã-cavalo"; quando a pele é tirada de um cabrito, chama-se

"cabrito do xamã" (karagasses e soyotes) (ELIADE, 2002, p. 199).

Como dito anteriormente, o tambor também é utilizado como escudo, por espantar os

maus espíritos, e por ser utilizado como veículo. O trabalho com o tambor é muito rico, e sua

representação é pontencialmente relevante para iniciar e finalizar uma cerimônia xamânica, de

fato, o tambor às vezes,

[...] é utilizado para expulsar os maus espíritos (Harva, p. 537), mas nesses

casos seu emprego particular é esquecido, e o que ocorre é ―magia do ruído‖,

com a qual se expulsam os demônios. Exemplos semelhantes de modificação

de função são bastante frequentes na história das religiões. Mas não nos

parece que a função original do tambor fosse a de afugentar espíritos. O

tambor xamânico distingue-se justamente de todos os outros instrumentos da

―magia do ruído‖ por possibilitar uma experiência extática. A possibilidade

de essa experiência ter sido preparada, na origem, pelo encanto dos sons do

tambor – encanto ao qual se atribuiu o valor de ―voz dos espíritos‖ – ou de a

ela se ter chegado em decorrência da concentração extrema provocada por

uma tamborilada prolongada é problema de que não trataremos por

enquanto. Uma coisa é certa: o que determinou a função xamânica do tambor

foi a magia musical, e não a magia do ruído antidemoníaco (ELIADE, 2002,

p. 200).

O simbolismo do coração e da baleia é o centro de muitas tradições, pelo fato de o som

do tambor reproduzir os rítmos das batidas do órgão. Pode-se dizer o mesmo do uso das

maracás, ele representa o centro do mundo:

Maracá, do tupi, mbara-ká (BODIN, 1978), instrumento idiofônico, de

forma globular ou ovóide feito com o fruto da cabaceira. Ele é usado para

marcar o ritmo dos cantos nas cerimônias indígenas em geral. Sua confecção

e uso são privativos de homens iniciados. A razão para isso é que, sendo

instrumento usado por pajés na mediação com o mundo paralelo e também

por chefes de ritos, função essa exclusiva de homens iniciados, as mulheres e

os homens não iniciados não podem manipulá-lo (ZANNONI; BARROS,

2012, p. 27-28).

Ele guarda espíritos e doenças que ficam aprisionadas dentro do instrumento. É

comum vermos maracás que estouram depois de muito tempo de uso devido sua capacidade

de armazenamento espiritual. O centro do maracá representa o universo, a haste é a árvore

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cósmica, assim como as sementes, que representam os seres, e sua abóboda representa mundo.

Quando o xamã toca a maracá ele está movimentando o universo, ou o ―pluriverso‖ Por isso,

os grandes tocadores de maracás são bem respeitados nas tribos:

Entre os Tupinambá, segundo Metraux (1979, p. 60), ―o maracá servia de

receptáculo ao espírito. A veneração pela qual era tido o maracá, assim como

seu caráter eminentemente sagrado, repousava na crença de que o seu ruído

reproduzia a voz dos espíritos.‖ Esse autor ainda diz que ―os bons tocadores

gozavam de respeito geral e, quando caíam prisioneiros, deviam a seu talento

a circunstância de escapar à morte‖ (METRAUX, 1979, p.168).

Ambos os instrumentos, o tambor e o maracá, são fundamentais para o trabalho

xamânico. Neste ponto desta tese, finaliza-se o pano de fundo sobre o Mythos do Xamanismo

e suas diversificações, segue-se agora para o estudo da recepção dessa narrativa nas

configurações urbanas. Buscou-se estabelecer parâmetros para os estudos seguintes estruturar

leituras comparadas, o Mythos na cultura indígena tem especificidades que não serão passíveis

de reprodução no Neoxamanismo urbano, por questões óbvias dos modos de ser do homem

ocidental.

De qualquer forma, as trocas simbólicas, a reciprocidade dos discursos e a constituição

de sentidos que transitam do Xamanismo indígena até o Neoxamanismo urbano podem ser

bastante esclarecedores. A questão crucial é da identidade narrativa que se estrutura nessa

relação de sentido. Nos próximos capítulos, essa análise comparativa será analisada com

maior substancialidade, até chegar aos elementos essenciais da formação do Neoxamanismo

urbano, e sua especificidade em contraponto ao Xamanismo indígena.

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3 CAPÍTULO 3: MIMESIS – CONFIGURAÇÕES URBANAS DO NEOXAMANISMO

URBANO

Toda grande história merece ser contada, e também vivida. A ação humana, não

pretende somente a narração, mas a ação da narração. A imitação de história de vida, de

Mythos é fundamental para a perpetuação da cultura e, nesse sentido, da espiritualidade

nativa. Este capítulo e o seguinte se ocuparão em retratar a recepção do discurso e da

linguagem própria do Xamanismo indígena no meio urbano, da Mímesis das narrativas

estudadas, até então, neste trabalho.

Todas estas histórias são potentes no imáginario humano, pode-se dizer que são ações

exemplares, e que valem ser replicadas, e ―é por isso que a ação de toda pessoa pode ser lida

como parte de uma história em desdobramento, e que cada história-de-vida clama por ser

imitada, ou seja, transformada na história de uma vida‖ (KERNEY, 2012, p. 413).

A Mimesis ―refaz o mundo, por assim dizer, à luz de suas verdades potenciais‖

(KEARNEY, 2012, p. 414) da experiência cumulativa da humanidade, e o entretecer das

histórias afirmando a necessidade da vida de se inscrever no futuro, e ela mesma agente de

sua interpretação. O conflito é movimento que define o ser humano como sujeito que se

constitui narrando e sendo narrado, mas também agindo e recriando as histórias de vida.

Esse processo é comum em comunidades indígenas, visto que a oralidade sofre

mudanças ao longo dos tempos, sem com isso ter algum problema com as práticas, que

evoluem com as narrativas tradicionais. Obviamente que não é uma mudança brusca, são anos

de pequenas mudanças até chegar aos novos paradigmas. Mesmo assim, há mudanças

consideráveis.

No Neoamanismo urbano, o processso é muito mais rápido e muito mais diverso. O

Neoxamanismo urbano se distingue do Xamanismo tradicional encontrado em sociedades

indígenas por adaptações ocidentais que se baseiam em raízes contemporâneas e modernas. O

Neoxamanismo urbano é praticado principalmente por pessoas que não se originam de uma

sociedade indígena tradicional e que criam métodos únicos que não seguem ou reivindicam

autenticidade em qualquer tradição anterior. O Neoxamanismo urbano enfatiza a manutenção

de respeito pelas tradições indígenas, reconhecendo enraizamento profundo das sociedades

indígenas em contato imediato com o mundo natural.

O Neoxamanismo urbano traça os seus começos para chegarem a um acordo com as

experiências de plantas psicoativas e de expansão da consciência usando seus próprios

quadros modernos de referência cultural influenciado pelos ritos indígenas em que a medicina

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de plantas é tradicionalmente baseada. Para além dessas noções, vai experimentando,

elementos de culturas orientais, adaptando o que for preciso de outras práticas religiosas,

como da Umbanda, Espiritismo, Cristianismo, Hinduísmo etc.

Enquanto as grandes religiões têm o Xamanismo em sua base, o Neoxamanismo

urbano têm grandes religiões como base híbrida e sincrética. O que problematiza muito o

objeto, mas tratamos esse fenômeno às vistas do hibridismo cultural, pois o meio urbano

permite tais rearranjos religiosos, para dar conta da vida em suas ruas e encruzilhadas.

Neste interim que se estruturam as narrativas e como vocativo o Xamanismo indígena,

busca dar corpo ao que fundamenta a prática urbana, como será retratado nos capítulos que se

seguem, o fundamental é que,

[...] enquanto a existência pode assim ser considerada como pré-narrativa,

ela não será plenamente narrativa até sua recriação em termos de um

recontar verbal formal. Ou seja, até que o pré-enredo tácito de nossa

existência temporalizante-sintetizante seja colocado estruturalmente em um

enredo. Até que o mythos implícito torne-se poiesis explícita. O duplo

movimento da narrativa propriamente dita envolve um segundo padrão de

nossa experiência já padronizada (simbolicamente mediada) (KEARNEY,

2012, p.414).

A mediação narrativa é fundamentada na ação, na possibilidade de reescrever a

história, a de si mesmo e a história de outrem, rica em sua totalidade. Portanto, identificamos

no Neoxamanismo urbano o segundo movimento do Mythos, e para tanto vamos delinear suas

origens e a forma de hibridização que sofre na sua composição.

A capacidade de recriar mundos atuais, a partir de mundos ―in illo tempore‖ na forma

de mundos possíveis, ou seja, a possibilidade de se colocar na história, no enredo. E essa

relação entre o viver e o narrar uma história exemplar, ouvir as histórias indígenas, os feitos

dos xamãs, é sempre um acalanto para a vida, e poder contar estas histórias, ou melhor viver

uma delas é algo indescritivo. Representa a possibilidade de criação em si, da relação entre a

ficção e a vida, nas palavras de Kearney:

Este poder de recriação mimética mantém uma conexão entre ficção e vida,

ao mesmo tempo em que reconhece a diferença entre elas. A vida pode ser

adequadamente compreendida apenas ao ser recontada mimeticamente

através das histórias. Mas o ato de mímesis que nos permite passar da vida

para a história-de-vida introduz uma lacuna (ainda que mínima) entre a vida

e seu recontar. A vida é vivida, como nos relembra Ricoeur, enquanto as

histórias são contadas. E, em certo sentido, a vida não contada talvez seja

menos rica do que uma vida contada. Por quê? Porque a vida recontada abre

perspectivas inacessíveis à percepção ordinária. Ela marca uma extrapolação

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poética dos mundos possíveis que suplementam e remodelam nossas

relações referenciais com o mundo-da-vida existente antes do recontar.

Nossa exposição às novas possibilidades de ser reconfigura nosso estar-no-

mundo cotidiano (KEARNEY, 2012, p. 414).

O Neoxamanismo urbano representa essa transição no campo religioso, no que tange o

Mythos do xamã indígena. No que se refere a tríplice mímesis desenvolvida por Paul Ricoeur

em Tempo e Narrativa I, II e III.35

O importante notar é que como uma prática de religião

popular, o Neoxamanismo urbano se aproxima muito da cultura popular, no que se refere a

sua possibilidade de contato com o mundo da vida, a releitura e transformação, e o legado

para o ―mundo do leitor.‖ (FIGUEIREDO , 2013).

O trabalho da mímesis avança em muito na ficção, na medida em que é na escrita que

se estabelece a recriação poética, como é apontado por Aristóteles, seja pela Tragédia, Épica,

ou Comédia, mas ela é um ato artístico. A prática de espiritualidade contemporânea não é

uma criação arbitrária, ela é regida pelos processos de hibridização cultural, e tem seus

fundamentos, dogmas etc. Mas, aqui busca-se afirmar que esse processo se estabelece como

paralelismo discursivo. E, no final deste capítulo, será abordar o fenômeno da literatura

neoxâmanica, como desdobramento e fundamento da prática do Neoxamanismo urbano.

3.1 As novas religiões na atualidade

No Brasil, é possível ver sempre um avanço em inovação no campo religioso, e esse

processo ocorre significamente pelo trânsito religioso, além do nato sincretismo na formação

do Brasil colônia.

As diversas práticas do sagrado em contato, em geral, se reestruturam sem mesmo

perceber esse movimento interno, como diria Brandão ―tudo se passa – e é justamente isto o

que torna tão fecundo e atraente o mundo das invenções culturais do sagrado – como se afinal

lograssem estar próximos, quase irmanados os campos de vocação antes e até hoje tão

conflitados‖ (BRANDÃO, 2004 p. 263). A diversidade é gigantesca e tende sempre a uma

organização em muitos casos hibrida:

Vejamos: Os errantes do novo século; Milagre em Juazeiro; A comunidade

eclética espiritualista universal; O vale do amanhecer, A marginália

35

O tema já foi tratado no trabalho de 2013: FIGUEIREDO, William Bezerra. Performance e Símbolo: uma

análise da folia de reis. São Bernardo do Campo, 2013.129 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) –

Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2013.

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sagrada; O carnaval devoto; Os cavaleiros do bom Jesus; A morte branca

do feiticeiro negro; Vovô Nagô, papai branco; O mundo invisível; Os deuses

do povo; Os deuses canibais; A Terra sem males; Rezadores, pajés e

puçangas; Religioso por natureza; A obra e a mensagem; A experiência da

Salvação; Dentro de um ponto riscado; O refúgio das massas; Fazendo

estilo, Criando gênero; Guerra de Orixás; Os escolhidos de Deus;

Comunidade eclesial, comunidade política; Tempo de Gênesis; Religião e

dominação de classe; Os santos nômades e o Deus estabelecido.

Eles poderiam ser muitos outros, mas por enquanto esta lista nos serve.

Temos aí uma intrigante coleção de nomes de estudos sobre religiões

indígenas, de origem afro-brasileira, sobre o espiritismo, as várias confissões

evangélicas, o catolicismo, os movimentos messiânicos do passado e novas

religiões que dificilmente poderiam se enquadrar no mesmo setor do campo

de qualquer uma das outras já existentes. Tomado no seu todo e na

multiplicidade de suas diferenças, existem muito mais alternativas de

afiliação religiosa (BRANDÃO, 2004, p. 264).

Esse quadro mostra a variedade de práticas religiosas. E que podem ser atualizadas

desde a publicação deste artigo. Tal quadro também está repleto das diversas modalidades do

Cristianismo, não só da cultura popular, mas também dentro do Protestantismo, que mesmo

tendo uma narrativa de origem mais ou menos definida (Lutero, Calvino etc.), está imersa na

diversidade e pluralismo de ritualidades brasileiras.

A exemplo disso são as chamadas igreja Neopentecostais, que mesmo tendo como

discurso o ataque á diversas designações religiosas, bebem da prática mágico religiosa

popular, como banhos de ervas, uso do sal grosso, arruda, sete águas etc (LOPES, 2012).

Tais religiosidades neocristãs têm um espaço de autonomia em sua narrativa, e mesmo

que em muitos casos busquem sua origem até no antigo testamento (IURD) ainda têm a

preocupação de se tornarem independentes do Cristianismo ―oficial‖. Nesta ―luta‖ por espaço

religioso, tem ganhado quem mais oferece liberdade do ponto de vista social, grupos mais

ortodoxos vêm perdendo fiéis devido à rigidez do cânon e por não abrir espaço para

inovações. Um exemplo relevante é a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus):

Encabeçado pela Igreja Universal, o Neopentecostalismo é a vertente

Pentecostal que mais cresce atualmente e a que ocupa maior espaço na

televisão brasileira, seja como proprietária de emissoras de TV, seja como

produtora e difusora de programas de televangelismo. Do ponto de vista

comportamental, é a mais liberal. Haja vista que suprimiu características

sectárias tradicionais do Pentecostalismo e rompeu com boa parte do

ascetismo contracultural tipificado no estereótipo pelo qual os crentes eram

reconhecidos e, volta e meia, estigmatizados. De modo que seus fiéis foram

liberados para vestir roupas da moda, usar cosméticos e demais produtos de

embelezamento, frequentar praias, piscinas, cinemas, teatros, torcer para

times de futebol, praticar esportes variados, assistir a televisão e vídeos,

tocar e ouvir diferentes ritmos musicais (MARIANO, 2004, p. 124).

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Ou seja, existe abertura para o consumo e para ―tempos modernos‖ da vida mundana.

E em contrapartida deste movimento de diversidade religiosa vêm os ―sem religião‖. Que

cada vez mais aumentam nas pesquisas do senso, sendo já um fenômeno que deve ser

pesquisado com aproximação:

Para quem se interessa pela dinâmica do campo religioso de um país

periférico em modernização retardatária apoiada na precariedade de um

desenvolvimento econômico capitalista estilo ―balança mas não cai‖, estilo

(ou falta de) que no entanto não o impede de assolar por dentro o País com a

vertigem estonteante de um processo cada vez mais açodado de

destradicionalização cultural, as estatísticas reveladas pelo Censo 2010, na

comparação com as dos censos anteriores, são, além de inteiramente

coerentes com a teorização sociológica mais canônica, eloquentes por si

mesmas. As curvas demográficas das diferentes religiões que essas

estatísticas desenham, tanto as ascendentes quanto as declinantes, desenham

com números sólidos a rota sem volta de uma destradicionalização cultural

que mergulha definitivamente o Brasil nas teias liquescentes, ave Bauman!,

de um pós-tradicional sem rumo (Bauman, 2001), vivido também em

religião aqui por essas plagas (PIERUCCI, 2012 p. 96).

Esse universo laico também orienta a busca por práticas religiosas mais libertárias e

menos dogmáticas. O que, acredita-se, seja um elemento importante que está levando muitas

pessoas, principalmente jovens, para a prática do Neoxamanismo urbano. Um dado

importante é apresentando nesta pesquisa publicada na Revista Horizonte:

O Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

revela que os ―sem religião‖ são o terceiro maior grupo do cenário religioso

brasileiro: 8,04% da população brasileira se declara sem religião, o que

corresponde, em termos absolutos, a 15.335.510 indivíduos (IBGE, 2014b).

Além disso, os dados revelam que os sem religião não param de crescer e

apresentam uma média de crescimento continuamente superior à da

população brasileira (IBGE, 2014g) (VIEIRA, 2015, p. 605).

E também:

E desses dados podemos pontuar alguns elementos para uma posterior

reflexão acerca do fenômeno dos sem religião. Esses elementos são:

ateísmo, mas o rompimento crescente de indivíduos quer com as instituições

religiosas, quer com a religião (doutrina / crenças);

é Deus, é o elemento

divisor do grupo dos sem religiões. Os que creem cultivam essa crença

desligados das instituições religiosas e independentes das prescrições da

religião;

primordial e, em grau de importância, está acima de qualquer religião;

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na atualidade podem ser cultivados fora da religião, porque ―uma pessoa

pode ser boa independentemente da religião‖ (ideia ratificada pelo grupo).

Diante do conjunto dos elementos transcritos acima é prudente afirmar que

no fenômeno dos sem religião se vislumbra a formação de uma

espiritualidade não religiosa, ou sem religião, na contemporaneidade. Além

disso, é plausível pensar que as transformações profundas e contínuas que

acontecem na atualidade são favoráveis ao seguimento do crescimento e da

disseminação do fenômeno dos sem religião. Não obstante, tudo isso

demanda o desenvolvimento da reflexão acerca dos sem religião para uma

compreensão mais profunda do fenômeno (VIEIRA, 2015 p. 611).

Desses elementos apresentados pode-se traçar um paralelo com a novidade do

Neoxamanismo como um espaço de espiritualidade não ortodoxo que pode dar conta de um

conjunto da sociedade brasileira que migra de espiritualidades e busca um espaço de liberdade

sem grandes amarras. Como veremos adiante o Neoxamanismo urbano é um espaço de

novidades e sempre aberto para agregar as diversas alteridades.

3.2 Xamanismo, Xamanismos e Neoxamanismo no meio urbano.

“O Índio, antes massacrado, transfigura-se no hierofante de uma nova revolução planetária, revela-

se como o bom selvagem de Rousseau, que é não apenas bom, mas também sábio, e que, visto assim,

passa a inspirar uma nova ordem cosmológica, proposta pelos nativos urbanos, estes modernos

tradutores e críticos” (Wesley Aragão de Moraes).

As metáforas utilizadas nos processos soteriológicos podem acasionar novos

paradigmas, as quais pode-se analisar algumas fontes e localizar alguns exemplos da prática

do Neoxamanismo urbano, o que permite definir, a princípio, como uma prática não ortodoxa

de formação híbrida que busca reviver a ritualidade e filosofia de povos ancestrais. O

professor Dr. José G. C. Magnani (NAU-USP) comenta:

Assim, com o objetivo de estabelecer um ponto de apoio concreto para sua

análise, preferi partir da especificidade do contexto onde se manifestam em

vez de aceitá-las, de pronto e sem mais, como uma espécie de variante do

Xamanismo: e este contexto é o atual quadro dos caminhos alternativos em

busca de novas experiências espirituais, terapêuticas, de religiosidade e até

de sociabilidade, nos grandes centros urbanos. Considero, pois – com base

no corpus contemplado pela pesquisa – que o denominado xamanismo

urbano é um dos tantos arranjos produzidos neste cenário e, mais

particularmente, no contexto do circuito do Neoesoterismo (MAGNANI,

1999, p. 117).

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Conceitualmente, o prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani, busca a partir do

conceito de circuito Neoesotérico, um roteiro simbólico, mapeando a cidade e a suas relações

com cidades em contexto rural, onde ocorrem cerimônias neoxamânicas, mas tendo como

―quartel general‖ centros terapêuticos nos centros e região metropolitana das cidades. Esse

circuito leva em consideração o contexto da ―Nova Era‖, como um conceito que reuni as mais

diversas práticas espiritualistas não ortodoxas e que se introduzem no contexto histórico da

pós-modernidade. Como salienta Aldo Natale Terrin:

A Nova Era é ‗esse algo de novo e de antigo‘, que está hoje em nossa

sociedade: ela é uma moda e uma cultura, um lampejo espiritual e uma

colagem de sentimentos; é, ou desejaria ser, sobretudo um mundo religioso

novo que supera a estagnação e o impasse da secularização selvagem destas

ultimas décadas, trazendo alívio e oxigênio para a visão espiritual

enfraquecida pelos vários derreamentos e desfalecimentos da religião

provocados pelos ‗emancipados‘ dos grandres maîtres a penser, iluministas

ou não, que até ontem erguiam a voz em nome da razão contra tudo aquilo

que cheirava a religião e experiência religiosa [...] O novo e o antigo se

misturam, e, se o novo é fascinante, o antigo vem de longe, de épocas

anteriores ao próprio exercício tirânico e despótico da razão, vem do mundo

do transe religioso e extático, da dança sagrada, traz consigo reminiscências

da velha religiosidade ‗materna‘ e ‗natural‘ dos milênios que precederam o

patriarcado e se veste de tudo aquilo que ontem parecia ridículo e irracional

(Terrin, 1996, p. 14-15).

Este contexto de resgate da ancestralidade é que garante à prática do Neoxamanismo

urbano um lugar de privilégio entre grupos muito diversos, desde pessoas que buscam

experiências meditativas a grupos que são mais extáticos, buscando plantas de poder, com

capacidades enteógenas. ―A Nova Era, além dessa lufada de ar fresco que procura substituir o

mundo asfixiado em nível cultural e religioso das últimas décadas, traz também consigo o

revival de um mundo antigo‖ (TERRIN, 1996, p. 15).

A pós-modernidade, portanto é o contexto histórico que desencadeia este conjunto de

práticas, e que contituem uma nova ordem de revivamento das práticas nativas em vários

contextos de bricolagens. Magnani complementa:

Geralmente visto sob o prisma de sua fragmentação e de uma suposta

ausência de princípios ordenadores, esse fenômeno já foi considerado como

uma espécie de ―religião pós-moderna‖: desprovido de uma hierarquia

centralizadora, de uma doutrina revelada e um corpo unificado de rituais,

aparecia como um imenso bricolage, resultado da livre escolha e junção –

regida apenas pela criatividade de cada participante e encerrada nos limites

de sua individualidade – de elementos tirados das mais diversas tradições e

filosofias. Deslocando, porém, o eixo da análise do campo religioso para o

da dinâmica urbana pude verificar, nos trabalhos acima citados, que sob a

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multiplicidade das propostas, sistemas e experimentos havia, no entanto,

princípio ordenadores – na distribuição espacial, na programação dos

eventos conformando um calendário, num discurso de base. A partir dessa

recorrência foi possível identificar a presença de um estilo de vida mais

amplo que inclui, como um dos fatores de desenvolvimento das

potencialidades pessoais e autoconhecimento, a busca por novas formas de

espiritualidade e também de religiosidade (MAGNANI, 1999, p. 117).

Atualmente o Neoxamanismo urbano pode ser dividido em duas escolas. O

Xamanismo tradicional que segue as tradições nativas e o Neoxamanismo que adapta a

essência com práticas terapêuticas e de linhas diversas numa realidade urbana.

Pode-se, numa abordagem mais abrangente, dizer que a Doutrina Santo Daime é um

Xamanismo cristão, assim como a Native American Church nos EUA, a Umbandaime, a

União do Vegetal, a Barquinha, o Catimbó, e outros. O mesmo pode-se afirmar das práticas

mais afastadas das grandes metrópoles, mas que atuam em grandes cidades na região

amazônica; a pajelança, tradicionalmente de origem e prática indígena, está livre da aldeia, e

anda pela cidade em diálogo com outras práticas cultural e religiosas, como citamos aqui o

caso identificado pelo professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal

do Pará, Raymundo Heraldo Maués:

A pajelança cabocla, cuja prática se encontra disseminada, principalmente,

nas áreas rurais e pequenas cidades interioranas — mas que não deixa de

existir mesmo nas maiores cidades da região, como Manaus e Belém —, não

constitui, para seus praticantes, uma religião à parte, sendo que todos eles

consideram-se ―católicos‖ e, em casos raros, alguns chegam a transitar entre

o Catolicismo e o Pentecostalismo. Além disso, mais recentemente, mesmo

sacerdotes católicos ou pentecostais entrevistados, em Belém e no interior do

estado, têm demonstrado certa tolerância em relação a essa prática, a qual

pode ser vista como atividade curativa característica da cultura local e,

também, de caráter ―psicossomático‖. A pajelança, segundo Galvão (1955),

tem origem indígena Tupi, sendo sincretizada com o Catolicismo e com

determinadas crenças e práticas de origem europeia, além de receber

influências de Umbanda, do Catimbó nordestino, do Espiritismo kardecista e

de outras religiões de matriz africana (Mina e Candomblé) (MAUÉS, 2007

p.13).

Portanto, observa-se que existe uma circularidade que expande a simples atuação

como um fenômeno urbano, de certas classes sociais, ditas abastardas que se orientam pelos

orientalismos e pelas escolas de Yoga etc. É um complexo fenômeno, que possivelmente é

anterior a pós-modernidade, mas que encontra neste momento histórico um aporte

metodológico e social para ampliar sua presença, em grande parte das cidades.

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3.2.1 Alguns antecedentes

Além disso, lança-se à possibilidade de citar um fenômeno que em grande número de

casos é um elemento agregador. No Brasil, o grande catalisador e formador de grupos é o uso

da Ayahuasca. A realização de encontros e trabalhos de cunho espiritual e laico, a partir do

uso do Jahré ou Ayahuasca, obtido do preparo das plantas ―Jagube‖ (nome científico

Banisteriopsis caapi) e ―Chacrona‖ (nome científico Psycotria viridis).

O chá produzido pelos indígenas autorizados é obtido pela decocção das plantas

―Jagube‖ e ―Chacrona‖, cujos alcalóides Beta-carbolínicos, ―Hamina‖, ―Harmalina‖,

―Tetrahidrohamina‖ e "Dimetiltriptamina DMT‖, induzem a um estado ampliado na

consciência em seus usuários (origenário dos povos indígenas pré-colombianos, sendo

considerado como uma bebida sagrada para os Incas e de várias tribos do território nacional, e

o seu uso ritualístico é legalmente autorizado para os diversos grupos religiosos do país pelo

CONFEN, Conselho Federal de Entorpecentes, bem como pelo CONAD, Conselho Nacional

Antidrogas, o qual aprovou o parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico que

reconheceu a legitimidade jurídica do uso nessas condições).

Finalmente, com o auge das experiências psicodélicas no mundo ocidental, muitas

pessoas buscam a experiência da ayahuasca unicamente para experimentar as mais diversas

finalidades. Alguns querem uma experiência ―autêntica‖ e viajam em busca de ―verdadeiros

xamãs‖, enquanto que outros ingressam nessa experiência guiados pelas oportunidades de seu

entorno.36

O contexto de uso das ―plantas de poder‖ aviva a prática do Neoxamanismo urbano, e

como um elemento agregador, o yagé passa a figurar como um dos pontos principais de

ritualidades, que se apropriam do uso na metrópole e grandes centros urbanos. No Brasil, no

início do século vinte, aparecem os primeiros sincretismos religiosos envolvendo o

Cristianismo, o Espiritismo e tradições indígenas e africanas a partir da ayahuasca.

Esse processo se relaciona com a urbanização do uso da planta no período da extração

da borracha na floresta amazônica, onde diversos grupos sociais de vários estados imigraram

para os seringais. O processo de sincretismo como um catalisador social avança como uma

resposta à violência simbólica contra os latifundiários, assim como mecanismos de agregação

social (TAUSSIG, 1993). Alguns desses seringueiros tiveram contato inicial com os nativos

36

"Visión Chamánica" número 1 - Bogotá, fevereiro de 1999.

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que utilizavam a planta sagrada, criando as religiões que se estabeleceram após os ciclos da

borracha (MIKOSZ, 2009).

A partir das religiões fundadas após o ciclo da borracha, o Alto Santo, a Barquinha, o

Santo Daime (CEFLURIS) e a UDV, surgem muitos outros grupos que, se formaram,

buscando uma abordagem mais independente das religiões, os quais deram origens a grupos

descendentes.

É interessante notar que o uso da ayahuasca passa constantemente por

rupturas e ―reinvenções‖ no Brasil (tomando emprestado o termo de Labate),

criando novos grupos religiosos e outros voltados de forma não dogmática

ao crescimento do indivíduo, usos terapêuticos e centros de pesquisa. O

sincretismo inicial que deu origem aos três primeiros grupos religiosos no

Brasil aparece, agora, ainda mais evidente no grande ecletismo sobre o qual

esses grupos mais novos são criados. Os exemplos apresentados aqui apenas

dão uma pequena ideia desse universo, o suficiente para observar a expansão

e os diversos usos atuais da ayahuasca. Não se pretende esgotar de modo

algum o tema, pois a cada dia surgem mais grupos entre tantos já existentes e

não citados aqui (MIKOSZ, 2009, p. 82 - 83).

Pode-se destacar alguns grupos que estão presentes no contexto paulista,

principalmente na capital paulistana, onde encontramos um grande número de grupos e sedes

de espaços esotéricos e de Neoxamanismo urbano. Afirma-se que, com o boom econômico

dos últimos dez anos, a maioria da população que se encontrava nas classes mais baixas

tiveram uma ascensão para a classe média, e, com o avanço da mobilidade social, os espaços

terapêuticos, ou mesmo o contexto de participação do indivíduo na Nova Era, ou nas religiões

pós-modernas, está vinculado a um excesso de individualidade próprio das classes mais altas.

Portanto, na medida em que houve uma diminuição da desigualdade de renda (RIBEIRO,

2012), possibilitou-se que essa faixa da população tivesse acesso a tais espaços. E não só no

Brasil e entre as classes abastardas, mas também em grande parte dos países da América do

Sul a ayahuasca é usada para fins medicinais. Segundo o um exemplo dado pela professora

Dra. Langdon:

Apesar de algumas diferenças entre as práticas de cura indígenas dos

Sibundoy e dos Siona serem discutidas mais adiante, pode-se falar, em

termos gerais, de um sistema regional na Colômbia meridional que se

fundamenta nas práticas xamânicas e no uso de alucinógenos entre os grupos

da bacia amazônica, como os Quéchua, os Kofan, e os grupos Tukano

ocidentais, incluindo os Siona, os Makaguaje e os Coreguaje. Seus conceitos

e métodos etiológicos de diagnóstico e cura são similares, e o xamã é

definido como mediador com o mundo invisível. Seu poder de adivinhar as

causas das doenças, assim como os eventos passados e futuros, é obtido por

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meio da ingestão de yajé, uma bebida psicoativa derivada principalmente da

trepadeira Banisteriopsis sp. Nem todas as doenças são atribuídas a causas

sobrenaturais, como feitiçaria ou ataques por espíritos, mas aquelas doenças

que não respondem a tratamentos habituais com ervas ou drogas biomédicas,

que se caracterizam por uma crise súbita ou sintomas incomuns, ou que são

mais graves, são suspeitas de terem uma causa que só pode ser diagnosticada

e combatida por um xamã, realizando a cerimônia do yajé (LANGDON,

2012, p. 65).

Portanto, o consumo da ayahuasca, tem um apelo significativo para entender a oferta

de práticas e espaços que atuam no universo do Neoxamanismo urbano. Mas não só a

ayahuasca tem esta assombrosa utilização no meio urbano, outra planta também comum é a

Jurema. Menos utilizada em espaços Nova Era, pois é mais tradicional entre os Kariri-Xocó,

essa planta está presente em um grande número de religiões populares em periferias, como é o

caso do Catimbó e Umbanda. A urbanização da Jurema dá-se também por um segundo

interesse repentino nos nativos, em que se evidencia uma maior curiosidade sobre o que é

fascinante para a sociedade urbana (Mota, 2005).

3.2.2 A multiplicidade do discurso no meio urbano

Acredita-se que este processo, através dos hibridismos e sincretismo está presente e

ativo há muitas décadas. Assim, também devemos dizer que os nativos, entre si, têm práticas

Neoxamânicas, que ocorrem no contato da aldeia com o meio urbano, e a religiões

neoxamanistas (ROSE, 2012)37

. Por fim, Magnani oferece um modelo muito útil de tipologias

para a nossa realidade local; oportunamente, este estudo avançará e introduzirá novos

elementos a este modelo:

Essas atividades são representativas, grosso modo, das cinco linhas em que,

a partir de indícios autorreferenciais, foram divididas, numa primeira

classificação, as principais práticas do Neoxamanismo urbano com presença

na cidade de São Paulo:

a) ―Norte-americana‖: sua principal referência são os ritos, mitos e práticas

xamânicas atribuídas a povos indígenas situados no território dos Estados

Unidos e Canadá.

b) ―Andina‖: sua referência é a cultura de povos da região dos Andes,

incluindo sua porção amazônica e também práticas xamânicas do território

do México e da América Central; em alguns casos faz-se alusão a plantas

psicoativas, como peyote, ayahuasca, don Pedrito, etc. e em outros trabalha-

se evocando principalmente as cosmologias daqueles povos.

37

Ver: Rose, Isabel Santana de. Tata endy rekoe – Fogo Sagrado: Encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o

Caminho Vermelho - Tese de Doutorado em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina

Florianópolis, Outono de 2010.

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c) ―Indígena brasileira‖: desenvolvida e conduzida por membros de

diferentes nações indígenas do território brasileiro, escolarizados e com bom

trânsito em diversos setores da sociedade nacional como universidades,

ONGs, órgãos governamentais, instituições religiosas e espaços do circuito

neoesotérico. Têm como base referências a uma cultura indígena em geral,

ainda que com alusões a este ou aquele povo, sem que mantenham

necessariamente algum tipo de relação permanente com suas aldeias.

d) ―Eclética‖: articula elementos de várias tradições desde, por exemplo, as

tibetanas pré-budistas, as da Ásia central e do norte, passando pela

incorporação de alguns elementos das religiões afro-brasileiras até,

finalmente, pela inclusão de certas formulações referidas a determinadas

especialidades científicas.

e) ―Independente‖: constituída por praticantes que utilizam algumas técnicas

xamânicas tradicionais para efeitos terapêuticos e em sessões mais fechadas;

trata-se de experiências em consultório que procuram estabelecer e explorar

relações entre determinadas propostas das ciências psicológicas com

tradições xamânicas, vistas como outra via de acesso às dimensões do

inconsciente. Esta linha não foi objeto de observação durante a pesquisa

(MAGNANI, 1999, p. 120).

Nota-se que o pluralismo de práticas do Neoxamanismo urbano, e como se pode ver

até o momento, sua prática está predominantemente presente na metrópole. Nesse modelo,

observa-se claramente, que a tipologia compreende características de etnias e culturas

tradicionais presentes no continente americano.

Destaca-se a influência das práticas norte-americanas, pois sua influência na

ritualidade e nos mitos é bem importante para definir a dinâmica da maioria dos grupos

estudados. A parcela andina é responsável pela utilização de plantas psicoativas, que não são

comuns entre os nativos americanos, os quais induzem os estados xamânicos de consciência

através da dança e dos tambores. Portanto, a ideologia mais presente, que como se sabe, é

transmitida pela narrativa e ritualidade, é a norte-americana.

O caso do índio brasileiro, das pajelanças dos caboclos amazonenses só chega

tardiamente em São Paulo, e em geral sofre hibridização com o modelo norte-americano. Há

grupos que buscam uma pureza, tentando não misturar e divulgando os trabalhos, como

―puramente brasileiros‖ etc.

No caso das pajelanças, esse fenômeno é anteriormente praticado no meio rural, nas

pequenas cidades e que só atualmente foi adotado nas cidades, como comenta Alhena Caicedo

Fernández, antropóloga da Universidad Nacional de Colombia:

En varias ciudades colombianas y al menos desde hace unos quince años, el

consumo ritual de yajé (ayahuasca) se ha diseminado extraordinariamente.

El uso de este sicotrópico o enteógeno – como se le denomina actualmente-,

propio de las prácticas chamánicas de los grupos indígenas del piedemonte

amazónico en el suroccidente colombiano – Putumayo – Caquetá (Inga,

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Kamëntsá, Cofán y Siona) se ha extendido a sectores de la población urbana

que hasta entonces no habían tenido contacto directo con prácticas de este

tipo. Si bien el yajé y las tradiciones terapéuticas a él asociadas han estado

presentes en ciudades como Bogotá desde hace al menos cuarenta años –

como lo evidencian investigadores como Pinzón et al. (1991 y 1997)-, su uso

se había concentrado en las clases populares de campesinos inmigrantes,

escenario tradicional de hibridación y mestizaje de sistemas médicos y por

donde circulan históricamente los flujos de intercambio entre curanderos

mestizos y chamanes indígenas del suroccidente colombiano. Así podemos

decir que aunque el yajé haya llegado a la ciudad desde hace tiempo, solo

hasta hace poco empezó a ser referenciado por las elites y la clase media

urbana (FERNÁNDEZ, 2009, p. 17).

Não é de estranhar que o Neoxamanismo urbano figure como uma prática muito

comum entre classes altas, mas hoje, com o avanço e popularização desta prática em espaços

terapêuticos, há uma grande oferta, e se torna comum entre classes mais baixas como

mencionado anteriormente.

Fernández também concorda com o fato de o Neoxamanismo figurar como um

movimento pós-moderno de superação da crise contemporânea por identidade religiosa, como

se costuma dizer, o ―fim das grandes narrativas‖. Fernández também lembra que existe uma

inovação, no sentido que muitos podem aprender a ―xamanizar‖, sendo assim, a experiência

xâmanica aparece como um modo de ser, que é acessível para além das comunidades

autóctones:

Frente al malestar de la época y a la situación de crisis que experimenta el

mundo moderno, el Neochamanismo posiciona al chamán como fuente de

alivio o salud. Pero el presupuesto último es devenir chamán por si mismo o

convertirse en el propio agente de curación (...) La figura del chamán solo se

retoma como modelo y desaparece su papel como agente activo del proceso.

Aprender a «chamanizar» equivale entonces a «encontrar el chamán que hay

en mi interior», «descubrir mis potencialidades internas» y de esa manera

«curar el malestar que me embarga». Pero solo yo como individuo puedo

experimentar el proceso. Es en este sentido que la experiencia terapéutica se

convierte también en una búsqueda de trascendéncia que concibe la curación

como forma de emancipación y que hace deslizar la dimensión terapéutica

hacia uma dimensión puramente espiritual e individual (FERNÁNDEZ,

2009, p. 22).

Portanto, esta possibilidade de acessar, de forma livre e autônoma a experiência dos

estados xamânicos de consciência, e mesmo desencadear processos soteriológicos de forma

independente é um modelo muito útil para a prática religiosa na contemporaneidade, com a

ênfase no caráter individual das escolhas religiosas e sistemas de representação simbólica e

certamente o timbre forte do Neoxamanismo urbano, que dá fundamento a sua identidade

como movimento religioso.

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O modelo, independente de optar por uma experiência particular de contato com o

sagrado, não é tão atual e verificam-se suas origens ainda no final do século XVIII, porém

este boom aparece agora bem mais definido. A forma como esse processo de aproximação

com a prática nativa e sua apropriação pode ser positivo e criar novos caminhos de formação

dessas representações simbólicas, ao mesmo tempo, pode criar confusões:

O xamã urbano parodia as práticas do xamã tradicional, reinserindo-as em

uma outra cosmologia. O neoxamã acredita, assim, dar continuidade ao que

faz e ao que pensa o xamã tradicional. Este, conforme é descrito nos textos

de Harner, de Castañeda, pode conversar com os seres naturais, atribuir

sensibilidade e consciência a uma pedra ou a um objeto inanimado – como

um tambor ou uma flauta. O xamã tradicional é visto como animista. O

neoxamã o imitará, mas a partir de uma forma peculiar, ocidental, de

animismo. O neoxamã, como Branco, pensa conforme as categorias do

naturalismo objetivante ocidental, descrito atrás. Há aqui um encontro entre

dois mundos diferentes, entre duas epistemologias. E deste encontro surgem

convergências, divergências e equívocos (MORAES, 2004, p.288).

Acredita-se que essa possibilidade amplia a fascínio sobre o Neoxamanismo urbano

em relação às práticas tradicionais nas aldeias, pois estas são mais duras e demandam uma

pré-identificação com as cosmologias específicas. No caso do Neoxamanismo urbano esse

universo é ecumênico e pluralista, demandando pouco engajamento específico do sujeito,

como nos casos tradicionais. Como observa Magnani num artigo intitulado ―Xamãs na

Cidade‖:

No caso do Neoxamanismo urbano, entretanto, tal traço assume

características particulares, pois essa função não é necessariamente atribuída

ou encomendada a um especialista: todos podem exercê-la. Essa particular

leitura e apropriação deve-se a um dos fatores mais insistentemente

apresentados como pressuposto da Nova Era: a experiência do sagrado é do

âmbito do indivíduo, cabendo-lhe perscrutar, continuamente, os diversos

planos de sua vida interior, buscar a harmonia entre eles e quando necessário

estabelecer os devidos contatos entre, por exemplo, seu ―eu básico‖ e seu

―eu superior‖. Essa ênfase na reflexividade da experiência pessoal e íntima

de cada um faz da prática xamânica uma das possibilidades à sua disposição

para tal busca: nesse sentido, todos podem ser xamãs, todos têm o potencial

para empreender a ―viagem xamânica‖ em busca de contatos com planos

superiores: basta aprender e pôr em prática determinadas técnicas

disponíveis nos inúmeros cursos, workshops e assessoramentos oferecidos

no circuito dos espaços neoesotéricos (MAGNANI, 2005, p.222).

Além desta predisposição para a aceitação das práticas no meio urbano secularizado,

temos atualmente muitos mestres indígenas que vêm para os centros urbanos divulgar a

cultura tradicional e promover encontros nesse circuíto neoxamânico, os índios em situação

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urbana também são hoje um caso a parte, pois muitos vêm para São Paulo, para ficarem na

casa de indígenas que já se fixaram na metrópole. Porém, muitos ficam hospedados em

espaços Nova Era, em geral, têm por objetivo conduzir cerimônias e vender artesanato nativo,

que é um produto muito procurado nesses espaços. Como exemplo se verifica na citação de

Tiago Coutinho Cavalcante, professor colaborador do departamento de Antropologia da

UFRJ, sobre o caso da apropriação do ritual Nixi Pae, que é como se intitula a ayahuasca,

yagé entre os Huni Kuin (Kaxinauas):

Os ritos urbanos do Nixi Pae são antecedidos por uma outra cerimônia

oferecida aos participantes a um custo extra por um dos sócios do espaço

Nova Era, junto com a esposa do pajé que promove os encontros. A chamada

―tenda do suor‖, ―sweat lodge‖ ou ―cerimônia do temazcal‖ é oriunda das

tradições do Xamanismo americano e foi introduzida no rito urbano do Nixi

Pae por um terapeuta iniciado na tradição lakota. Em um período de quatro

anos, os pajés saíram do Acre e rapidamente foram acolhidos em centros de

espiritualidade Nova Era, que incluíram o ritual do Nixi Pae no seu mosaico

de saberes tradicionais ao lado de ioga, biodança, acupuntura, shiatsu,

xamanismo dos povos norte-americanos, massagens de diversas correntes e

terapias alternativas. Despesas com alimentação, moradia, transporte, escola

e cursos de inglês são pagas pelos próprios índios a partir do montante

mensal obtido pelos rituais, de consultas particulares, aplicações de kampô e

workshops. Nos anos de 2006 e 2007, os encontros urbanos do Nixi Pae

aconteciam simultaneamente nessas duas importantes capitais brasileiras,

formando um público heterogêneo que tem em comum o interesse em

preservar a cultura do povo kaxinawa (CAVALCANTE, 2013, p. 97).

Outro exemplo pode ser visto numa página de internet, o espaço ―Neo Xamanismo‖,

que fica localizado em Mairiporã. Esse espaço comumente realiza encontros com as chamadas

―medicinas da floresta‖ e promove intercâmbios, como mencionado circuito do

Neoxamanismo urbano:

Ritual de pajelança com Dona Francisquinha no Neoxamanismo.

Francisca das Chagas, ou Dona Francisquinha como é conhecida, é parteira

desde os 15 anos de idade. Indígena da etnia Shawanawa do Vale do Juruá,

Acre, desenvolve um importante trabalho com as plantas nativas daquela

região. Apresenta o conhecimento ancestral do seu povo a tribo Arara nos

trabalhos de pajelanças com cânticos nativos e as referidas medicinas da

Floresta (Ayuaska, Rapé, e Sananga) por todo país. Em 2013 participou do

8º Circulo Sagrado de Abuelos y Abuelas Sabios del Planeta (Encontro de

Avôs e Avós Sábios do Planeta), em Barcelona (Espanha), somando às suas

experiências no exterior onde já esteve (Estados Unidos e Noruega). Com

muito amor e carinho ela faz ainda atendimentos individuais, identificando

problemas físicos, emocional ou espiritual de quem a procura. O tratamento

pode ser continuado com a utilização de seus remédios preparados por ela

mesma com toda sabedoria da floresta

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Ritual – O ritual de pajelança é uma oportunidade de conexão espiritual onde

os participantes buscam o seu aprimoramento e autoconhecimento. Durante

o trabalho, são alternadas as medicinas ayuaska, rapé e sananga, com

cânticos nativos e momentos de meditação.

Trajes – O ideal é vestir roupa bem confortável, sendo homens calças e

camisas/camisetas e, as mulheres, saias longas, com calça tipo leg por baixo,

blusas sem decote ou transparências. Normalmente os trabalhos acontecem a

noite, portanto, aconselha-se estar bem agasalhado (inclusive levar meias e

gorro). Quem quiser pode levar colchonete e coberta, para melhor

acomodação. 38

E também outro exemplo no Espaço ―Aos Filhos da Terra‖ em Cotia:

Aos Filhos da Terra convida...

―Um Convite Especial para a véspera do feriado‖ quarta-feira, dia 30 de abril

ás 22:00 h. Conhecido como ―O Urso Kofan‖, e herdeiro do Taita Querubin

Queta, Taita maior da tradição Cofán e guardião do yagé ( Ayahuasca) e

médico tradicional amazônico, vem compartilhar seu saber e sua maestria

nativa. Uma linda oportunidade especial de mergulhar dentro de si mesmo, e

vivenciar com quem conhece e lidera com maestria a ayahusca.

Em um momento da noite, Taita Oscar realiza uma limpeza profunda em

cada participante, utilizando seus cantos, ervas, sopradas de perfumes e rezas

sagradas. Organização e Realização: Aos Filhos da Terra39

Nesses casos observa-se como é comum a saída da aldeia para a cidade de São Paulo,

e como é possível encontrar espaços, que recebem estas atividades e ajudam a divulgar as

culturas nativas. Em muitos casos configuram processos migratórios, pois muitos indígenas,

vislumbrados com a possibilidade de avanço financeiro, querem se estabelecer na cidade onde

são tratados de forma diferenciada. Nesse processo vão se criando redes sociais (FOLLÉR,

2002), que como fala o professor Magnani, configuram o circuito neoesotérico, ou uma rede

social neoxamânica. Essa rede propicia que certos indígenas, lideranças locais em suas

comunidades, tenham agendas anuais em São Paulo, onde fazem turnês em espaços de

Neoxamanismo urbano.

Nosso diagnóstico é que existe um grande apelo pela participação nessas atividades

em dezenas de cidades por todo o país, mas com o enfoque em São Paulo. Tais grupos

desenvolvem suas próprias metáforas, onde podem compartilhar símbolos e relações

coletivas. A pluralidade de experiências e práticas xamânicas em diversas categorias e

tipologias demonstram a polissemia do Neoxamanismo urbano e dos xamanismos que através

de processos de hibridismo, contaminam a religiosidade contemporânea nos centros urbanos.

38

Fonte: https://www.facebook.com/neoxamas. Último acesso em 28 de Abril de 2014.

39

Fonte: https://www.facebook.com/events/490993181029903/?notif_t=plan_user_invited. Visitado em 28 de

Abril de 2014

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123

3.2.3 Tempos modernos & Neoxamanismo urbano

É claro o antagonismo do Xamanismo tradicional, nativo, com a recepção do mesmo

no meio urbano. Obviamente o tempo de sua prática acompanha o ritmo da metrópole e do

império da velocidade. No entanto, propõe-se outro olhar, que diz respeito à possibilidade de

que o Neoxamanismo urbano seja uma reversão do tempo da velocidade. A velocidade

chegou a termos nunca antes vistos, mais que uma mudança temporal, a mudança é cultural,

de formas e modos de ser que se estruturam para acompanhar uma ideologia e um modo de

produção neoliberal.

Ao propor, por exemplo, encontros aos finais de semana, e em alguns casos jornadas

mais longas em feriados etc. o Neoxamanismo urbano está contribuindo com a desaceleração

do tempo da sociedade da informação e comunicação. São muitas horas sem uso do

smartphone, muitos dias fora da correria da cidade, em muitos casos imersos em locais no

campo e em chácaras e sítios.

Esses grupos encontram refúgio nessas práticas, visto que não tem como acessar o

pensamento índio de outra forma.

FIGURA 540

: Neoxamanismo urbano: deseceleração do tempo

Os encontros, que vendo do ponto de vista nativo são apenas produtos de curta

duração, do ponto de vista da sociedade contemporânea que vive nas metrópoles, são

verdadeiros oásis de tempo. Dessa forma, encontra-se no gráfico acima um modelo de como

essa relação se estabelece.

De um lado os grupos tradicionais podem ver tais encontros como uma deturpação dos

modos cíclicos naturais à prática do Neoxamanismo urbano. Por sua vez, para a sociedade

capitalista também é ruim, visto que é uma tentativa de retomada, mesmo que temporária, do

40

Fonte: acervo pessoal.

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modelo anterior. Porém, como é patente, tudo de alguma forma vira mercadoria neste

turbilhão.

Por essas premissas não se quer dizer que exista uma divisão tão clara em todos os

campos, mas é possível traçar um corte conceitual para compreender como esse processo

pode ser exemplificado de forma geral.

Xamanismo Tradicional Xamanismo Urbano

Acessível apenas por aquele que foi escolhido

pelos espíritos na tradição sócio-geográfica.

Acessível a qualquer pessoa. As tradições

religiosas ou culturais não importam.

O xamã futuro não opta por ser um xamã, se ele se

recusa a ser um xamã, os espíritos podem deixá-lo

doente. É um presente que não se pode recusar.

É voluntária a escolha. Se uma pessoa se recusa a

ser um xamã, ela não ficará doente.

A mudança muitas vezes é incurável. Radical,

recuperação espontânea após uma longa doença.

Mudança na personalidade e de vida menos

radical. Nenhuma doença grave ou alteração de

personalidade.

O Xamanismo é uma ocupação principal na vida

de uma pessoa, o resto é subjetivo.

O Xamanismo pode ocupar um lugar primário ou

secundário na vida de uma pessoa, pode-se

associar com outros caminhos espirituais.

Um número significativo de tabus, a sua violação

pode ter consequências perigosas.

Tabus são quase inexistente, exceto para os

acordos com o espíritos auxiliares, violando um

tabu leva a pior perda do espírito auxiliar. Existem,

porém, tabus importados de outras religiões.

O xamã pode trabalhar apenas em seu grupo

étnico.

O xamã pode praticar sozinho, ele não está

vinculado a uma localização geográfica.

O contexto simbólico e cultural é um imperativo

para o xamã.

O xamã não está ligado a um contexto simbólico

ou cultural.

Nota-se com a segunda tabela que as relações entre o Xamanismo tradicional e o

urbano são claras, e têm uma relação direta com a flexibilidade. Todos os tabus tradicionais

são flexibilizados, buscando maior abertura de participação. Em certa medida, esse processo

está relacionado com o mercado de consumo religioso. E por esse motivo, acompanha a

relação volúvel com a temporalidade, na medida em que as suas práticas são adequadas para o

modo da sociedade ocidental e ao império da velocidade (HASSAN, 2009), assim como ao

modelo de consumo neoliberal.

Porém, esse modelo flexível favorece a imersão de um número maior de pessoas,

criando um verdadeiro nicho onde os adeptos podem reservar algumas horas para se

desconectar da sociedade da informação. Nos momentos em que tais grupos se reúnem, cria-

se um elo ancestral, e na medida em que o Neoxamanismo urbano é uma releitura da prática

originária, ocorrem nesses encontros muitos debates e formações visando conhecer o modo

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indígena de ver o mundo. Mesmo que estas narrativas, e a recepção do Neoxamanismo no

meio urbano ocasionam perdas de sentido do modo de ser originário, existe a possibilidade de

muitas pessoas começarem a pensar de forma diferente da imposta pela sociedade, pelo país,

como referido anteriormente.

Há entre esses participantes, pessoas que realmente mudam o estilo de vida em busca

de conhecer e se voltar para a direção contrária à velocidade caótica. Dessa forma, pode-se

olhar sobre os dois pontos de vista, e assim, traçar aspectos positivos que advêm dessa prática

religiosa no contexto urbano, como uma saída que visa romper com as patologias da

velocidade em que vivemos, mesmo que seja uma pequena contribuição no meio do mar de

informação. Tais ritos são ―saídas‖ para que os participantes possam encontrar refúgio do

modo de vida ocidental, e a partir desses parâmetros torna-se possível compreender como são

tão atrativos para muitas pessoas.

3.3 O Neoxamanismo urbano como religiosidade autônoma

Foram levantados até aqui alguns antecedentes e conceitos gerais sobre estudos feitos

a respeito do fenômeno do Neoxamanismo urbano, desde redes sociais e grupos religiosos

―Nova Era‖, às cerimônias com indígenas em situação urbana, cujo assunto, atualmente, tem

ganhado interesse nos meios acadêmicos. Há, porém, uma defesa de que o Neoxamanismo

urbano seja uma espécie de xamanismo, uma variação do Xamanismo tradicional, indígena.

Portanto, o termo Neoxamanismo urbano, como um Xamanismo que acontece na cidade, pode

causar confusão, como por exemplo, cerimônias indígenas nas cidades, ou mesmo o caso dos

indígenas em situação urbana realizando cerimônias (LOPES, 2011); em alguns casos, o uso

do termo Neoxamanismo quer designar que se trata de um tipo de inovação, distinção da

vertente indígena, mas entre os membros não se busca essa distinção, mas sim uma

aproximação com o Xamanismo tradicional. Entretanto, o tema pode ser tratado como um

caráter de continuidade entre a prática urbana e o modelo tradicional nativo. Acredita-se que

seja algo mais amplo, ou na verdade, que exista certa confusão ao se tratar do tema com tal

abordagem.

Pode-se definir, a princípio, o Neoxamanismo urbano como uma prática religiosa,

híbrida, polimórfica, polissêmica, que se inspira e apropria dos modos de ser indígena, ou de

religiosidades ancestrais, de suas técnicas de expansão de consciência para aquisição de

narrativas visionárias que visam o empoderamento simbólico do sujeito não índio.

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Primeiramente, devemos olhar a partir do modo de ser indígena para a prática do

urbano, o que gera diversas contradições, pois são visões de mundo por vezes opostas, ao

exemplo do modo de vida indígena e as comunidades urbanas que vivem a ideologia

ocidental, capitalista etc. E, em segundo lugar, é que essa abordagem insere no estudo um

olhar de origem, como se o Neoxamanismo urbano tivesse um berço no Xamanismo

tradicional, e por isso deve ser tratado como um braço do mesmo.

Ocorre fato similar nas religiões do Candomblé, que relatam ter sua origem na África,

quando na verdade é um fenômeno brasileiro de sincretismo, branqueamento e futura

africanização (PRANDI, 1998). Essas narrativas de origem auxiliam os grupos a ganharem

uma pureza do ponto de vista religioso, por se tratarem de ramificações de uma origem maior

e antiga, um mito de origem de uma nação (HALL, 2014).

Já a Umbanda, por exemplo, trata de se orgulhar por ser brasileira de nascimento. O

que ajuda, por exemplo, a pluralidade de religiosidades que podem ser praticadas nos diversos

centros espirituais. Versa a abertura para a diversidade a partir de uma narrativa de origem de

brasilidade, a saber, índios, negros e toda sorte de espíritos que tenham interesse em

comungar num ambiente universalista. Ou mesmo, para ampliar o quadro de exemplos, a

presença dessa religiosidade na religião do Daime (ALVES, 2009), que faz uso da ayahuasca

e que também, em alguns casos, é tratado como Neoxamanismo e que pelo grupo é chamado

de Umbandaime (GREGANICH, 2011).

Outro ambiente que semeia esse universo de pluralidade brasileira é a cultura popular.

O Catolicismo popular não tem medo de encarar essa diversidade e pluralidade, em grande

parte por sua proximidade com o povo (FIGUEIREDO, 2013). Diferente das lideranças das

igrejas que temem por uma desordem sempre iminente. Já há casos mais objetivos, o próprio

Daime, a Barquinha, e o Catimbó, que têm uma diversidade de intercruzamentos com a

espiritualidade indígena (o uso da planta Jurema), com a magia popular, Catolicismo popular

e as matrizes africanas (TEIXEIRA, 2014). O Catimbó poderia ser tratado como um

Neoxamanismo, pelo uso da Jurema e pelas diversas relações com o mundo indígena. Porém,

ganhou autonomia como uma religiosidade autônoma, o que garante em muito seu estudo em

particular. Portanto, esse horizonte de abordagem, onde o Neoxamanismo urbano é tratado

como um desmembramento do Xamanismo tradicional, ou como sua continuidade e origem,

não contribuem para um olhar mais amplo do fenômeno religioso. Torna-se preciso declarar a

autonomia desse movimento religioso para sejam dados os próximos passos.

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3.3.1 O Neoxamanismo: um estudo no campo religioso

Em artigo (1992) publicado no início da década de noventa, a pró-reitora do Lewis

& Clark College, Jane Monnig Atkinson, delineia os principais pontos do Xamanismo

contemporâneo presente nas metrópoles, como a abordagem sóciopsicológica presente nas

escolas atuais e nos workshops de Neoxamanismo urbano, ou seja, uma psicologização do

Xamanismo, a abordagem do Xamanismo como terapia, psicoterapia e a aproximação com as

questões biomédicas, ―cura xamânica‖ etc., e a abordagem do Xamanismo como base de

contextos políticos, Xamanismo e gênero, a dimensão performativa do ritual, abordagens

importantes para o estudo atual do Xamanismo tradicional e do Neoxamanismo urbano. Nesse

particular, a autora comenta que o:

[...] ―Neoxamanismo‖ ou ―Neoxamanismo urbano‖ oferece uma forma de

esforço espiritual que alinha seus adeptos de uma só vez com a Natureza e

Outro primordial, em oposição às institucionalizadas religiões ocidentais e

mesmo ás ordens políticas e econômicas ocidentais. Apresenta-se na década

de 1980 e 1990 como o que o Budismo e o Hinduísmo eram em décadas

anteriores, ou seja, uma alternativa espiritual para os ocidentais distantes das

grandes tradições religiosas. Particularmente atraente pelas suas qualidades

―democráticas‖ que ignoram a institucionalização e hierarquias religiosas

(ATKINSON, 1992, p. 322).

A autora aponta ainda a pluralidade de hibridismos que ocorrem no Neoxamanismo

urbano, e que garante a possibilidade de democratização do acesso religioso.

Porém, identifica-se e defende-se nesta tese que, depois de mais de duas décadas da

crescente influência do Neoxamanismo urbano nas práticas religiosas, identifica-se que, aqui

no Brasil, a partir de análise de fontes consultadas, que o fenômeno hoje é um campo

religioso definido, mesmo que ainda mantenha uma dinâmica agradável, existem espaços que

são conservadores nas suas acepções, pelo fato de serem autorreferenciais.

Portanto, é importante observar o fenômeno no Brasil, com suas particularidades

territoriais, o que vai levar autores brasileiros, como Magnani, a tratar o tema do

Neoxamanismo urbano como uma variação do movimento Nova Era (MAGNANI, 2016),

entendendo que o Neoxamanismo urbano faz parte do circuíto neoesotérico. Como comenta

Atkinson, ―em suma, o engajamento romântico dos xamãs na cultura popular obriga os

antropólogos a repensar seus próprios papéis e posições discursivas em relação à prática

xamânica de uma manifestação do que Clifford (35a) considerou o ―dilema‖ que enfrenta a

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etnografia contemporânea‖ (ATKINSON, 1992, p. 323), mostrando que esse processo de

inserção do Xamanismo no campo de estudos e práticas para fora da antropologia criou um

campo amplo de debate.

Por outro lado, alguns autores preferem tratar o Neoxamanismo urbano por dois

ângulos. Num primeiro momento é o índio que pratica cerimônias na cidade, vindo da aldeia e

em alguns casos traduzindo algumas referências para o meio urbano e, por outro lado, líderes

não índios que realizam as cerimônias, independente da presença de indígenas no local

(MERCANTE, 2015).

O termo Neoxamanismo aparece na Encyclopedia of Latin American Religions, e

acrescenta que o mesmo é favorecido pela produção dos antropólogos Carlos Castañeda e

Michel Harner, que quebraram o paradigma neutralidade científica e tornaram suas pesquisas

de campo o espaço para interferência e participação do pesquisador nas cerimônias (SCURO,

2016), em ambos os casos com o uso de plantas de poder, ademais, os antropólogos se

tornaram multiplicadores dos ensinamentos dos xamãs, criando as novas escolas que deram

origem ao Neoxamanismo na Europa e América, em seguida vindo para o Brasil.

No Brasil, a psicóloga Carminha Levy41

iniciada no ―Xamanismo core‖ (na The

Fundation of Shamanic Studies) em 1981 por Michael Harner - (Esalen), funda

posteriormente a sua própria escola de Xamanismo, a Paz Géia Instituto de Pesquisas

Xamânicas, cuja estrutura pedagógica básica é a integração entre a psicologia, antropologia e

o Xamanismo. A Paz Géia é considerada a primeira escola de Neoxamanismo no Brasil. Em

1986, Carminha, com o artigo O que a Psicologia deve aos feiticeiros da revista ―Viver

Psicologia‖ marca o inicio de sua prática como neoxamã.

Existem também estudos em andamento que são muito importantes, como o caso de

Juan Scuro, principalmente o uso do conceito de Dispositivo neoxamânico. Partindo do

conceito Foucaultiano estabelece as bases da pesquisa:

41

Importante notar que uma mulher como representante do movimento no país é muito significativo, visto que

em sua maioria as religiões têm homens em posição de lideranças, a flexibilidade as práticas místicas e

esotéricas abrem espaço para estas práticas de inserção de gênero. Muitas mulheres vão assumir a posição de

lideranças religiosas dentro do Neoxamanismo Urbano, inclusive um avanço em relação ao modo de ser do

Xamanismo indígena, onde em sua totalidade o xamã é um homem. Segundo ATKINSON esta é uma das

características do neoxamanismo. Como afirma a autora ―Explorar a dialética do poder xamânico em relação ao

gênero deve levar em conta as ambigüidades e multivalências do poder xamânico e antecipar complexidades

relacionadas em idéias e práticas de gênero.‖ (ATKINSON, 1992, p. 319)

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Esta tesis es una cartografía del dispositivo del neochamanismo, un mapa de

los procesos que forman y transforman el conjunto de prácticas y discursos

permeados por un imaginario pan-indigenista vinculado al uso de sustancias

psicoactivas (plantas de poder) en ámbitos terapéutico/espirituales. En lo que

respecta al neochamanismo en el Uruguay, la tesis trata de comprender los

efectos que éste produce en ese país. El neochamanismo es un dispositivo

alimentado por varias fuentes que, si bien surge en un contexto de

contracultura interpelante de paradigmas euro-estadounidenses-modernos

hegemónicos, produciendo subjetividades que pretenden relativizar las

relaciones de saber-poder, es consecuente y producto del mismo proyecto de

modernidad/colonialidad en una relación, grados y formas que esta tesis

pretende mostrar. Cartografiar ese dispositivo, mapearlo, es colocar mi

propia subjetividad en juego en esas relaciones (SOMMA, 2016, p. 17).

Nesse trabalho, o autor descreve o processo de formação e transformação do campo

neoxamânico no Uruguai a partir de suas origens no Brasil, Peru e México. Seu conceito de

Dispositivo aplicado ao Neoxamanismo urbano é muito rico, e abre espaço para pesquisas

futuras. O NEIP (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos), na USP também

tem realizado diversas pesquisas sobre o uso dos psicoativos, e invariavelmente têm citado o

caso de grupos neoxamânicos e ayahuasqueiros no Brasil e nos países vizinhos (SCURO,

2012) (o caso das religiões de Santo Daime, ayahuasqueiras terem uma grande repercussão

depois da morte do cartunista Glauco, que era liderança da igreja de Daime Céu de Fátima,

devido à forma desrespeitosa e infortuna do tratamento da mídia no caso42

). Há pesquisadores

na universidade Federal de Santa Catarina, coordenados pela Dra. Esther Jean Langdon,

coordenadora do Instituto Nacional de Pesquisa: Brasil Plural. Trabalham diversas áreas de

pesquisa, entre elas está o Xamanismo como categoria dialógica: estudos sobre Xamanismos

contemporâneos.

A Dra. Langdon defende a existência de ―xamanismos‖, ou seja, não há como

defender um único tipo de xamanismo, mas uma diversidade deles e suas interações

(LANDGON, 2012). Percebe-se claramente sua posição na introdução do livro que organizou

Xamanismo no Brasil: novas perspectivas (1996). Um dos estudos importantes é sobre o

cruzamento do Neoxamanismo (DE ROSE; LANDGON, 2012) com a cultura Guarani, na

aldeia Yynn Morothi Wherá ou Mbiguaçu, localizada no município de Biguaçu, litoral sul de

Santa Catarina (ROSE, 2010).

Um dos grupos que participam dessa interação é o Fogo Sagrado de Itzachilatlan, que

é uma ramificação brasileira da The Native American Church (NAC). O Fogo Sagrado foi

oficializado por Tekpankalli no início da década de 1980, sendo ele a liderança máxima

42

Fonte: da pesquisa: http://neip.info/novo/wp-content/uploads/2015/04/lamentavel_veja_glauco_labate.pdf

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internacional do grupo - Chefe dos Chefes do Fogo Sagrado de Itzachilatlan. No Brasil, o

grupo começou a organizar suas atividades por volta do final da década de 1990, dirigido por

Haroldo Evangelista Vargas, médico psiquiatra, natural de Canoinhas/SC, que conheceu

Tekpankalli em viagens pela América do Sul para participar das cerimônias do Fogo Sagrado,

consolidando-se o movimento no país no início dos anos 2000 como FSI do Brasil.

Conforme conta Tekpankalli (2005), a fundação da igreja se deve mais ao fato da

necessidade de reconhecimento como associação oficial pelo Estado do que por opção, sendo

que nos Estados Unidos o registro do Fogo Sagrado como igreja ou associação religiosa

garante ao grupo o direito legal de realizar suas cerimônias.

Itzachilatlan do Brasil é o único instituído juridicamente como Igreja Nativa

Americana no país e que inclui na sua proposta formar carregadores da tradição (RESSEL,

2013).

A igreja nativa americana já carrega desde sua origem a nomeação de Igreja. Muitos

grupos de Neoxamanismo urbano vêm fazendo uso dessa nomenclatura, como uma forma de

legitimação. É comum o uso da palavra ―Céu‖ na frente do nome do grupo, principalmente

dos que querem guardar uma identidade com a religião do Daime. O ―Céu‖ é um termo

utilizado para designar uma igreja que faz uso da ayahuasca, assim como a estrela de seis

pontas em materiais gráficos. Alguns desses grupos evitam utilizar o termo Daime para o uso

da ayahuasca, justamente para terem uma autonomia em relação às igrejas, mas mantêm o

termo ―Céu‖ no início do nome do centro espiritual, para que os seguidores saibam que ali se

faz uso da ayahuasca.

De forma geral, pode-se observar que o fenômeno do Neoxamanismo cresceu muito

na última década, saindo de uma dezena de centros espirituais para milhares nos dias atuais.

Não é um movimento religioso de pequeno porte, e sim uma religiosidade autônoma e que

deve ser tratado como tal. Como um fenômeno religioso, que tem um estatuto próprio e que

deve ser entendido a partir de suas próprias categorias, mesmo que sejam antropofagicamente

adquiridas de outros movimentos religiosos.

3.3.2 Neoxamanismo e suas categorias.

Em sua atividade cotidiana, o Neoxamanismo parte de uma iconofagia (BAITELLO

JUNIOR, 2005) imagética numa sociedade de informação (DE ALMEIDA ASSIS, 2015)

de

imagens religiosas, xamânicas, e acesso irrestrito às imagens de diversas comunidades, além

da própria produção imagética interna ao grupo, que é constantemente reestruturada.

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Outra inovação é a ciber-religião (MIZEK, 2008), pois muitos destes grupos

disponibilizam formações on line, atendimento via Skype, hangout, vídeos ao vivo no

facebook etc. onde a experiência corporal deixa o lugar de magnitude da vivencia religiosa e

passa a ser secundário, a exemplo das conhecidas ―cyber churches‖ (MICZEK, 2008) cristãs,

onde a participação é feita numa sala on line, e o grupo congrega com horário marcado,

relatando inclusive ―milagres alcançados‖(CHILUWA , 2012).

Por outro lado, os grupos de Neoxamanismo urbano oferecem um espaço de vivência

corporal incomum, que justamente vêm em contraponto ao mundo digital e sedentário

contemporâneo, assim como uma saída para a temporalidade veloz que se é cobrado do

indivíduo. O Dr. Magnani aponta bem tal questão no seu estudo (MAGNANI, 1999), no qual

se percebe que esses espaços urbanos sempre buscam refúgios em chácaras e sítios nas

imediações da metrópole para realizarem seus workshops de imersão, que podem durar um

final de semana, ou até mais dias, no caso de feriados.

O que determina outra característica destes grupos são os workshops. O workshop é a

reunião de pessoas com objetivos semelhantes em que há troca de experiências e realidades

entre pessoas, na maioria das vezes referente a um assunto específico. É uma metodologia

norte-americana, em que o público interage, sendo mais que uma palestra, em que ocorrem

―dinâmicas‖ e vivências para as pessoas internalizarem os novos conhecimentos acerca do

tema que as impulsionaram a se encontrarem.

A modalidade ―oficina‖ é própria do mundo dos negócios, mas também, comum no

campo das artes. ―Oficinas culturais‖ é um termo comum para estudantes iniciantes em

formação das belas artes.

Por último, outra característica significativa é que o líder religioso, o neoxamã, não

tem uma formação religiosa específica, ele vai seguir e estudar com diversas lideranças do

Neoxamanismo urbano, até chegar a conduzir seu próprio grupo ou centro religioso. Então, os

lideres vêm de diversas formações profissionais, por não existir uma formação oficial na área,

como é o caso dos teólogos no Cristianismo. Assim, os neoxamãs se aproximam mais da

formação da cultura popular, onde o discípulo segue um mestre até adquirir habilidades para

seguir sua própria carreira no seguimento.

Essa modalidade de ser do Neoxamanismo urbano, de iconofagia, cyber comunicação,

formação por workshops e liberdade profissional, cria um ambiente movente, de um rearranjo

constante. A incomensurabilidade do discurso pós-moderno e certa impossibilidade de

definição, devido à velocidade da mudança, pode ser um indicador importante que ajuda a

identificar categorias para o Neoxamanismo. Muitas vezes, como bem coloca Magnani, o

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Neoxamanismo carece de estruturas claras e o próprio termo ―xamânico‖ pode ter um

emprego que não necessariamente tem sua origem na prática indígena:

O que se propõe, aqui, é entender a lógica desse particular arranjo, o

xamanismo urbano, em que o qualificativo ―xamânico‖ é muitas vezes mais

evocativo do que realmente constitutivo de uma prática clara e

especificamente demarcada, procurando inicialmente mostrar sua inserção –

processos de produção, circulação e consumo – no contexto onde se

manifesta de forma recorrente e significativa (MAGNANI, 2005, p. 221).

Essa definição ajuda a entender possivelmente de onde surge um movimento religioso.

Como falado sobre os ―sem religião‖, o movimento ―Nova Era‖ é um espaço contemporâneo

e útil para a nascente ascensão do Neoxamanismo urbano. Mas acreditamos, que passados

quase vinte anos da pesquisa do Dr. Magnani, o Neoxamanismo urbano ganhou novos

contornos e hoje se tornou uma prática religiosa para além do circuíto neoesotérico, pois

ganhou sua independência e autonomia ao criar suas próprias referências internas. Como

apontado na tese de Juan Scuro, o dispositivo cria estruturas internas de geração e

perpetuação.

Por outro lado, como é bem apontado por Magnani, tampouco o termo ―xamânico‖

pode ser empregado. Em muitos casos a metodologia apresentada por Langdon, sobre a

existência de xamanismos, no plural, e também muito rica pede que se avance nessa

autonomia do movimento. Gostariamos de acrescentar mais uma tese as já existentes. Com o

risco de perspectivas e tensões teóricas, mas positivas. Partindo da proposta de que não é um

tipo de Xamanismo, nem uma corrente Nova Era, então, o que é o Neoxamanismo urbano?

Na contemporaneidade, com o avanço da comunicação, com a iconofagia e o

constante desenvolvimento de Workshops, pode-se dizer que o Neoxamanismo urbano, criou,

depois de pouco mais de duas décadas, sua própria tradição.

Hoje, pode-se falar de nomes de referência, como lideranças que falam e representam

o Neoxamanismo urbano. Em 2015 e 2017, houve uma atividade própria dessas metodologias

indicadas nesta tese. Um congresso de xamanismo na internet43

.

Totalmente on line, com as referências, do Neoxamanismo urbano da atualidade, esse

congresso, idealizado por Samuel Souza de Paula, um neoxamã e pesquisador de práticas

―bioxamânicas‖ (PAULA, 2014), conseguiu reunir as diversas tendências mais atuais do

Neoxamanismo urbano no Brasil, com mais de cem palestras com essas diversas lideranças,

43

http://www.xamasconet.com.br/

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em que se incluem claramente os nomes dos principais líderes do Neoxamanismo urbano, e

com isso estabelecer e afirmar que, hoje, o Neoamanismo urbano tem sua própria tradição,

com diversos seguimentos próprios que não dependem nem de outros movimentos religiosos

para gerar seu campo referencial, nem dos ―Xamanismos tradicionais‖ para compor seu modo

de ser. É totalmente autônomo do ponto de vista de origem ou referencial.44

Isto não quer

dizer que a iconofagia e o hibridismo não ocorra constantemente nas bases, nos novos grupos,

mas pode-se dizer que existe um centro da semiosfera de sentidos (FIGUEIREDO, 2017) para

uma tradição do Neoxamanismo urbano.

3.3.3 Autorreferência e formação

Portanto, pode-se afirmar que o Neoxamanismo urbano constituiu um campo

referencial onde ele se orienta para poder desenvolver suas atividades, assim como um espaço

metafórico icônico, que garante a produção de discursos, sejam eles imagens pictóricas e

objetos de poder, sejam imagens visionárias. Essa nova possibilidade de auto-formação abre a

possibilidade de criação de uma identidade religiosa (BURITY, 2013) nos grupos de

Neoxamanismo urbano (VON STUCKRAD, 2005), assim como jovens e mesmo adultos, que

buscam novos paradigmas religiosos, e encontram nessa nova modalidade religiosa um

espaço para construção de novas identidades (LEANDRO , 20114).

Baseia-se, aqui, em alguns poucos exemplos, apenas em São Paulo, mas a lista é

plural. Umas das lideranças citadas é o xamã urbano Leo Artese, que coordena o Kiva

Urbana. Além de coordenar o Kiva Urbana, é também padrinho de uma Igreja de Daime, o

Céu da Lua Cheia, em Itapecirica da Serra, e dono do portal xamanismo.com.br.

No modelo apresentado por Magnani a Kiva Urbana têm a função de base na cidade,

enquanto o sítio de propriedade da Igreja é onde se realizam os retiros para os workshops e

cerimônias. Leo Artese, por sua vez, não ―mistura‖ os discursos da Igreja, da doutrina do

Daime, com o discurso do Neoxamanismo urbano e tradicional. Na verdade, ele propõe a

união de ambos, a partir de uma visão universalista:

Atualmente o Xamanismo pode ser dividido em duas escolas. O Xamanismo

tradicional que segue as tradições nativas e o Neoxamanismo que adapta a

essência com práticas terapêuticas e de linhas diversas numa realidade

urbana. O Xamanismo cobre práticas de cura de ancestrais primitivos e

44

O ―XamãsConet‖ é um bom exemplo da representatividade de lideranças do Neoxamanismo urbano, com mais

de cem palestrantes que são representantes do fenômeno religioso. (Ver anexo no final da tese)

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indígenas ao redor do mundo. Gosto de trabalhar num conceito de

Xamanismo Universal, que une o Xamanismo tradicional e o

Neoxamanismo num só movimento para uma "Nova Consciência", fazendo

conexões entre os conhecimentos esotéricos do Oriente e do Ocidente, sem

cair na xenofobia dos povos do passado e nem na banalização típica de

muitos movimentos New Age. Atualmente muitos xamãs, inclusive no Peru,

rezam para Cristo e aceitam que Jesus foi um Xamã Iluminado. [...] Isso

torna muito desafiante a tarefa de separar o que é e o que não é Xamanismo,

pois tudo está conectado! Quando percebemos a conexão Universal entre nós

e todos os que viveram e que estamos todos ligados, conectados,

compreendemos que todas as histórias fazem parte da nossa história. A

consciência da conexão é vital ao aprendizado da convivência mútua.

Ninguém vence sozinho. Todos temos a necessidade de nos conectar com

algo fora de nós, com nossos companheiros de caminhada e com algo maior

que nós todos. No Xamanismo, procuramos aprender com as vozes dos

ancestrais, dos velhos, das tradições, das crenças. Esse aprendizado é básico

para podermos traçar o mapa de nosso caminho de acordo com o livre

arbítrio.45

A partir disso, podem-se traçar alguns paralelos, primeiramente, a proposta de

―Xamanismo universal‖ dialoga com a proposta de Michel Harner de Xamanismo Core46

, ou

seja, o indivíduo absorve essência de cada xamanismo e cria um sistema próprio.

Na Kiva Urbana, Leo Artese mantem um grupo contínuo de formação de neoxamãs e

curiosos, chamado grupo de estudos Voo da Águia. Nesses grupos, que semestralmente

reúnem de 20 a 30 pessoas, Leo Artese passa os principais métodos e características do

Xamanismo Universal. Destes, alguns podem se inscrever para participar da formação de

Multiplicadores da Roda de Estudos Voo da Águia, onde participam de um Workshop no

retiro em Itapecerica da Serra, por alguns dias, e recebem a outorga de iniciarem suas próprias

Rodas de Estudo, como multiplicadores do Voo da Águia.

Nesse Workshop são passados os seguintes conteúdos:

Completando, agora em 2014, vinte e três (23) anos dirigindo grupos de

estudos de Xamanismo para mais de 4.000 pessoas, senti em 2011 o

chamado para compartilhar a metodologia com irmãos que estejam

habilitados para conduzirem grupos de iniciantes em Xamanismo Universal

e serem multiplicadores da Roda de Estudos de Xamanismo Voo da Águia

nos vários bairros, cidades e estados do País e também em outros países. A

partir dessa jornada de julho de 2011, formamos vinte multiplicadores da

Roda Voo da Águia, sendo três da Itália, quatro de outros estados, quatro em

outras cidades e oito na capital de São Paulo. Desta forma expandimos a

45

http://www.xamanismo.com.br/Universo/WebHome

Acesso em Ago 2016.

46

http://www.shamanicstudies.net/Page/ID/219. Acesso em Ago 2016.

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capacidade do Centro de Estudos de Xamanismo Voo da Águia trabalhar na

―Ressacralização da Consciência‖. Formamos irmãos e parceiros, um grupo

amoroso e unido; e juntos compartilhamos ferramentas xamânicas, adaptadas

ao mundo atual, a fim de enfrentar os males da alma humana, aumentar o

poder pessoal integrar o homem à natureza e melhorar a qualidade de vida:

Munir os facilitadores com metodologia para que os praticantes de seus

grupos possam se reconectar com o Sagrado, buscando o ―Espírito

Essencial‖ que está dentro deles, na natureza e em todos os seres.

Capacitar o facilitador xamânico a criar uma atmosfera sagrada, que permita

ir além do racional, para que seu grupo possa obter maior equilíbrio físico,

emocional, mental e espiritual.

Desenvolver o facilitador com técnicas para inspirar seu grupo a uma nova

forma de viver, a compreender melhor a linguagem e a essência do

Xamanismo e a estabelecer comunicação com outros níveis de realidade,

para que possam obter conhecimento, poder pessoal, equilíbrio, saúde e

encontrar a Medicina Pessoal. Aprofundar o estudo das diversas linhas

(enteógenas, nativas, néos, doutrinárias, etc.) e conscientizar o multiplicador

a trabalhar como canal de cura, ter o conhecimento do poder das plantas,

pedras, espíritos dos animais e dos seres da natureza.

Inspirar a devoção à Criação: o Sol, a Lua, as Estrelas e o reconhecimento da

presença de Deus em todas as manifestações do Universo.

Credenciar o facilitador numa teia de condutores da Roda de Estudos de

Xamanismo Voo da Águia, através do Portal de Xamanismo, divulgações

conjuntas, aulas presenciais, apoio de conteúdo e uso exclusivo da

metodologia.47

Pode-se concluir que essa metodologia passa então a ser divulgada para diversas

pessoas de diversas partes do país, além de outros países. A metodologia da roda de estudos

passa pelo conteúdo aplicado atualmente nas diversas rodas de Neoxamanismo. Dividido em

16 módulos, um por semana, além de grupo de e-mail (conteúdo Web), desafios e vivências

pessoais e convite para participar da cerimônia Voo da Águia. Tais encontros semanais e

tarefas são denominados Rodas de Fogo, A Tribo Virtual, O Passo do Guerreio e o Voo da

Águia (Opcional).48

Esses conteúdos são importantes para a formação do xamã urbano.

O caso do Aos Filhos da Terra é um pouco diferente, o líder Sthan Xannia tem uma

preocupação de tratar sua formação a partir de um modelo mais próximo da tradicional,

sempre com a presença de nativos nos trabalhos e conduzindo cerimônias, mas também

oferece esporadicamente uma formação para neoxamãs. Não tem um espaço urbano, e apenas

o ―Ecocentro multicultural‖, como chama a chácara onde ocorrem as atividades.

47

http://www.xamanismo.com.br/Voo/SubVoo1323113008 . Acesso em agosto/ 2016.

48

http://www.xamanismo.com.br/Espaco/SubEspaco1277983424 . Acesso em agosto/ 2016.

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136

Uma das contribuições de Sthan ao Neoxamanismo no Brasil está na Busca da

Visão49

, cerimônia anual, a partir do modelo tradicional norte-americano, de meditação na

montanha, em jejum, em busca de visões proféticas. Além da tenda do suor, ritual também

norte-americano, do qual já se tem estudos a respeito (BRAGA, 2010).

Nesses dois casos (de Artese e de Sthan) observa-se a importante função de lideranças

na formação de neoxamãs, que em muitos casos, devido à mobilidade e a facilidade de

comunicação, podem estudar em diversos centros xamânicos, e ir fundamentando seu

trabalho. Vale ressaltar, que ambos, Leo Artese e Sthan Xannia, tiverem trabalhos realizados

junto à Carminha Levy, na Paz Géia no início dessa escola.

Também é possível citar o caso de outros espaços, como o Instituto Inatekié & Centro

de Estudos Xamânicos50

, coordenado por William Figueiredo, autor desta tese; o

NeoXamanismo51

, coordenado pelo neoxamã Alecs Auá; também a Aldeia de Shiva – Centro

Espiritualista Entheogenista e onde o fundador, Akaiê Sramana, ensina o ―Xamanismo

Ancestral‖, além de funcionar como Centro Espírita Indígena.52

A proposta desse espaço é

muito interessante, pela introdução de ritos sincréticos com o Hinduísmo, Shivaísmo etc.,

formando neoxamãs que atuam nesse campo de referência religiosa. Todos oferecem cursos

de formação em Neoxamanismo urbano. Há uma extensa lista de espaços já consagrados no

roteiro do Neoxamanismo urbano, assim como milhares de espaços ―informais‖ que fazem a

prática em um quarto de casa, no quintal etc.

Além dos exemplos relacionados acima, segue-se com a introdução de mais um

elemento fundante do movimento, a literatura Neoxamânica, e seus principais autores que são

como ―gurus‖ do movimento.

49

http://www.aosfilhosdaterra.com/vision-quest-2017 . Acesso em agosto/ 2016.

50

http://www.inatekie.com.br/

51

http://www.neoxamanismo.com.br/

52

http://www.aldeiadeshiva.org/

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3.4 Discurso neoxamânico e literatura

Cada ser humano tiene dos lados, dos entidades distintas, dos partes

contrarias que toman fuerza en el momento del nacimiento; una se llama tonal,

la otra nagual [...] El nagual es aquella parte de nosotros para la cual no hay

descripción, ni palabras, ni sentimientos, ni conocimiento (Don Juan in

Castañeda,1975).

O bater monótono dum tambor é uma via eficaz de acesso à outra realidade

(Michael Harner).

No decorrer dos livros de Castañeda, pode acontecer que o leitor comece a

duvidar da existência de Don Juan o índio, e de muitas outras coisas. Mas isto

não tem qualquer importância. Melhor ainda se estes livros são a exposição de

um sincretismo ao invés de uma etnografia, e um protocolo de experiências ao

invés de um relatório de iniciação (Deleuze e Guatarri).

Será abordado o discurso encontrado na obra de dois antropólogos, que ao tomarem

contato com a cultura nativa se tornaram adeptos das práticas tradicionais, e ao longo dos

anos se tornaram grandes referências para grupos e pesquisadores contemporâneos que fazem

do Neoxamanismo urbano uma prática ritual e religiosa.

Busca-se com esta abordagem econtrar um comum entre os autores, e identificando

como os discursos interagem com o que encontramos nas divulgações, sites, publicações que

tratam do Neoxamanismo urbano. Ambos os autores tiveram experiências religiosas muito

intensas em seus trabalhos de campo, e em seguida, receberam treinamento tradicional nas

comunidades que visitaram, sendo considerados curandeiros pelos nativos que os receberam

num primeiro momento.

Após terem recebido a experiência de forma estruturada pela dinâmica do grupo

estudado, produziram material que posteriormente fora publicado e assim, ambos os textos, A

Erva do Diabo (Ensinamentos de Don Juan, no original) e o Caminho do Xamã, de Carlos

Castañeda e Michael Harner respectivamente, se tornaram Best Sellers de venda, e

posteriormente ―bíblias‖ do Neoxamanismo.

Castañeda continuou sua produção romanesca53

, com uma dezena de títulos seguintes,

contando sua continuidade e treinamento com o Brujo Don Juan; já Harner criou a The

53

Cuando menos al principio, los textos de Castañeda fueron considerados verídicos por algunos científicos

sociales. Su influencia, sumada a la de Eliade (1986) y Harner (1980), propulsó la generación de investigaciones

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Foundation for Shamanic Studies, como uma escola pós-moderna de Xamanismo essencial

(Xamanismo Core, como é identificado pelo autor).

Pretende-se mostrar nesta análise que ambos os autores têm um discurso formador

sobre os procedimentos ritualístico e ideológico de vários grupos, para tanto, será atido o

discurso adotado por cada um deles. Os autores vivenciaram experiências muito intensas de

transe e se aprofundaram nas técnicas nativas de tratamento da saúde, mas cada um teve um

caminho diferenciado, sendo que Castañeda se aprofundou no uso das chamadas plantas de

poder, enquanto Harner se afastou do uso desses veículos de expansão da consciência e se

aprofundou no uso do tambor, assim como do uso de técnicas de psicologia transpessoal.

Nos dois casos existe a utilização do que Harber chama de Estados Xamânicos de

Consciência (EXC), em oposição ao Estado Cotidiano de Consciência (ECC) (HARNER,

1995, p. 15-16), o que para Castañeda seria o Nagual e o Tonal respectivamente. Mesmo

utilizando-se de estados alterados de consciência, ideologicamente os dois autores seguem

caminhos diversos:

A partir de las décadas de 1960 y 1970, con el surgimiento de varios

movimientos contraculturales, los saberes indígenas comenzaron a ser

revalorados por los no indígenas como formas alternativas a los modos de

vida occidentales.5

Dentro de este contexto, las experiencias ―místicas‖ de

Gordon Wasson con la célebre terapeuta mazateca María Sabina y la obra

fantasista de Carlos Castañeda (1968, 1973 y 1975) han tenido un gran

efecto en el público. Castañeda, apodado el Nagual,se presenta como un

estudiante de antropología de la Universidad de California que, tras su

encuentro con un brujo yaqui llamado don Juan Matus, se convierte en su

aprendiz. En sus libros describe viajes extracorporales, transformaciones en

animales y múltiples manifestaciones sobrenaturales. Todo ello en un

lenguaje ambiguo que, supuestamente, proviene de la transcripción del

discurso de don Juan Matus (GONZÁLEZ, 2006, p. 109).

No Caso de Harner, tem-se a formação pela Fundação através de Workshops

internacionais, o que se verifica com um exemplo em um cartaz:

O Workshop Básico em Xamanismo Essencial:

Durante este workshop experiencial, os participantes são iniciados no

Xamanismo essencial, nos métodos básicos universais e quase universais dos

xamãs para entrar na realidade não-comum ou não-vulgar e obter cura e a

resolução de problemas. Particular ênfase é dado à viagem xamânica

clássica, um dos métodos visionários mais notáveis utilizado pela

en torno al uso de estados de conciencia alterada en el misticismo indígena mexicano (GONZÁLEZ, 2006, p.

109).

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humanidade para explorar o universo escondido – também conhecido

principalmente através do mito e do sonho. Os participantes são iniciados na

viagem xamânica, auxiliados por tambores para experimentar o estado

xamânico de consciência e para o despertar de capacidades espirituais

adormecidas, incluindo as conexões com a Natureza. A prática inclui

partilha por parte dos participantes das suas descobertas nas viagens

xamânicas, bem como iniciação na divinação e na cura xamânica. Também

lhes são fornecidos os métodos de viagem para conhecer e estudar com os

seus próprios ajudantes espirituais a realidade não-comum, um passo

clássico na prática xamânica. Os participantes aprendem como a viagem é

utilizada para restaurar poder espiritual e saúde e como o Xamanismo pode

ser aplicado na vida quotidiana contemporânea para ajudar a curar a si

mesmo, os outros e o Planeta.54

Foram constatadas algumas metáforas do Xamanismo, como cura, voo místico,

espíritos auxiliares, EXC, ECC etc. Castañeda também desenvolveu seu próprio método de

trabalho, a Tensentricidade55

e os Passes Mágicos:

La Tensegrity® est la version moderne du chemin du navigateur, c‘est à dire

les pratiques et les principes qui soutiennent la recherche et le voyage sur un

chemin qui a du cœur que don Juan Matus enseigna à ses quatre étudiants:

Carlos Castañeda, Florinda Donner-Grau, Taisha Abelar et Carol Tiggs. Don

Juan était un voyant indien Yaqui et le leader d‘un groupe d‘hommes et de

femmes dont la lignée des voyants remonte au Mexique des temps anciens.

Pour marcher le long d‘un chemin que l‘on aime vraiment, disait don Juan, il

faut la passion, le courage, l‘imagination, la vigilance, la discipline, la

conscience de soi, la grâce, la force, l‘ingéniosité, l‘efficacité, la patience,

l‘adaptabilité et l‘humilité du navigateur.

C‘est ce à quoi les praticiens de Tenségrité aspirent: L‘esprit de la

navigation, l‘être qui prend l‘engagement continu de parcourir le chemin de

la conscience à chaque instant. Le combat du navigateur n‘est pas avec ses

semblables, disait don Juan. Ni avec soi-même. Et ce n‘est finalement pas un

combat. Il s‘agit plutôt d‘un acquiescement à des courants énergétiques de la

mer de la conscience de l‘univers.56

54

Fonte: FSS Portugal: www.xamanismo.net

Visitado em Agosto de 2014.

55 O Tensentricidade é a versão moderna do caminho do navegador, ou seja, os princípios e práticas de apoio à

pesquisa e viagem sobre o caminho do coração que Don Juan Matus ensinou a seus quatro estudantes: Carlos

Castaneda, Florinda Donner-Grau, Taisha Abelar e Carol. Don Juan era um índio Yaqui vidente e líder de um

grupo de homens e mulheres cuja linhagem remonta aos videntes mexicanos dos tempos antigos. Para caminhar

ao longo de um caminho que nós realmente gostamos, disse Don Juan, é necessário paixão, coragem,

imaginação, assiduidade, disciplina, autoconhecimento, a graça, a força, o criatividade, eficiência, paciência,

capacidade de adaptação e humildade do navegador. Isto é o que os praticantes de Tensentricidade aspiram: O

espírito da navegação, o ser que tem engajamento contínuo para percorrer o caminho da consciência a cada

instante. A luta do navegador não é com os outros, disse Don Juan. Nem consigo mesmo. E isso não é,

finalmente, uma luta. Em vez disso, uma aceitação das correntes de energia do mar da consciência do universo.

56

Fonte: http://www.cleargreen.com/fr/ .Visitado em Setembro de 2014.

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Como indicado, ambos os casos têm elementos relativos. Como afirma Gonzáles,

muitos destes ―ditos‖ ensinamentos não são necessariamente uma versão do Nahualismo, pelo

contrário, é uma crença, desenvolvida dentro dos grupos de Neoxamanismo, leitores da obra

do autor, que atribuem um grau de veracidade ao universo do simbólico apresentado por

Castañeda:

Asimismo, se comprueba la total ausencia de evocaciones a lo sobrenatural

dentro del discurso neonahualista, y aun cuando en ocasiones se haga

referencia a Dios, a lo divino o a la Madre Tierra, lo esencial del dis- curso

se estructura en torno a la salvación personal. En otros términos, el análisis

de los textos presenta- dos por los neonahuales nos muestra la inexistencia

de nociones propiamente indígenas en el discurso. En conclusión podemos

decir que, para sus partidarios, el nahualismo no es más que una de las

possibles formas sino que puede adoptar un conjunto de creencias que se

encuentran ampliamente difundidas entre los seguidores de diversos

movimientos psicomísticos contemporáneos (GONZÁLEZ, 2006, p. 136).

Por quanto que esses autores, como antropólogos, fizeram uma leitura da obra de

Mircea Eliade, pode-se dizer que o apoio teórico serviu como modelo para elaborar um

universo próprio a partir de suas experiências durante o trabalho de campo antropológico.

Como afirma, em sua apresentação, ele propõe uma leitura fenomenológica. Harner afirma

que:

Esta é, essencialmente, uma apresentação fenomenológica. Não estou

tentando explicar concepções e práticas xamânicas com termos de

psicanálise, ou de qualquer outro sistema ocidental contemporâneo de teoria

causal. A causalidade envolvida no Xamanismo e na cura xamânica, é,

realmente, uma questão muito interessante, que merece detalhada pesquisa;

entretanto, uma pesquisa científica orientada para a causalidade não é

essencial para o ensino da prática xamânica, que aqui se trata do objetivo

maior. Em outras palavras, as indagações ocidentais sobre o porquê do

funcionamento do Xamanismo não são necessárias para que se façam

experiências e se empreguem os métodos (Harner, 1995, p. 20).

Nesse sentido, a leitura do texto de Eliade ajuda a compreender o universo teórico

onde beberam esses autores, além, é claro, da experiência viva, como visto na afirmação de

Harner.

Iniciar uma pesquisa sobre xamanismos ou Neoxamanismo nos dias atuais pressupõe

que haja um número significativo de teoria que seja aplicada, visto que o tema é estudado de

diversas formas. O movimento de contra cultura, durante os anos de 70, 80 e 90 se

amalgamou com a Nova Era e o movimento ecologista, se tornou um espaço de lutas sociais,

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ao posso que se estrutura como um novo movimento de espiritualidade pós-moderna

(JAMESON, 1995).

Tratar el tema del chamanismo, significa enfrentarse con un campo de

investigación sobre El cual los antropólogos se debaten después de años y en

este fenómeno vemos un mosaico de las variables que cruzan ámbitos

diferentes (Galinier, Lagarriga, Perrin, 1995:11). Para examinar un

argumento sobre el cual la mayoría de los antropólogos se han confrontado,

es necesario cruzarlo con las nuevas instancias de la modernidad. Esto

significa adelantarse a los espacios tradicionales donde el chamanismo

estaba situado como religión y sanación, para enfrentarse en el debate que

pertenece a nuevas solicitudes tal que las reivindicaciones políticas teniendo

como referente las instituciones occidentales, y la creaciones des las

economías locales que miren a trasladar dinero del viejo al nuevo mundo

explotando la nueva búsqueda de espiritualidad vehiculada por el New Age

(LOMBARDI, 2011, p. 1).57

Percebeu-se que há similaridades entre o discurso dos dois autores, mesmo que

tenham escolhido seguirem por caminhos diferentes. Michael Harner tem uma preocupação

ainda acadêmica, apesar de optar por uma abordagem típica das culturas nativas, de qualquer

forma, mantém publicações de artigos, e ainda a manutenção da Fundação. Carlos Castañeda

torna-se uma espécie de ―Guru‖ Nova Era, e mantém grupos de trabalhos como se fosse uma

sociedade secreta. Apesar disso, ambos dialogam em suas obras.

3.4.1 Recepção e discurso histórico

Um ponto crucial a ser apontado no trabalho de Harner é seu trabalho sobre o transe

xamânico através do uso do tambor. O tambor é um objeto significativo dentro da iconografia

e do simbolismo xamânico de muitas nações. Primeiramente, é um instrumento de poder, ou

seja, é um objeto que é revestido de forças sobrenaturais, podendo atuar como oráculo, como

escudo de proteção etc.. Em segundo lugar, é o instrumento que induz o transe, pois através

das batidas (em média 150 por minuto), leva à alteração do estado de consciência. Em terceiro

lugar, seu simbolismo é relativo ao voo xamânico, para alguns é considerado um cavalo, que

leve o xamã para outras dimensões, e, dentro do universo siberiano, é associado às batidas do

coração da baleia.

Em todos esses casos o tambor, e neste sentido outros instrumentos que provocam o

ritmo, são poderosos, induzem o transe e são carregados metafórica e simbolicamente com

símbolos relativos à viagem xamânica. O trabalho sobre o tambor é valorado por Harner como

um exemplo de trabalho prioritariamente estruturante do Xamanismo.

57

Lombardi, Denise. Neo-chamanismo: el ritual transferido. halshs-00562253, version 1 - 2 Feb 2011.

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142

Michael Harner ainda discorda levemente de Mircea Eliade, quando afirma que a

técnica xamânica é muito mais ampla que o êxtase, que é um conceito ocidentalizado e que

carece de elaboração, como é aplicado pelos nativos onde realizou a pesquisa de campo.

Harner afirma:

Tal como Mircea Eliade observa, o xamã distingue-se dos outros tipos de

mágicos e curandeiros pelo uso que faz de um estado de consciência que

Eliade, a exemplo da tradição mística ocidental, chama de ―êxtase‖. Porém,

apenas a prática do êxtase, como ele enfatiza com propriedade, não define o

xamã, porque o xamã tem técnicas específicas para o êxtase. [...] O EXC não

só envolve um ―transe‖ ou um estado transcendente de discernimento, mas

também um sábio discernimento dos métodos e suposições quando se está

nesse estado alterado. O EXC se opõe ao Estado Comum de Consciência

(ECC) ao qual o xamã retorna depois de ter feito seu trabalho característico.

O EXC é a condição cognitiva na qual a pessoa percebe a ―realidade

incomum‖, de Carlos Castañeda e as ―extraordinárias manifestações da

realidade‖, de Robert Lowie. O que se sabe sobre o EXC inclui informação

sobre a geografia cósmica da realidade incomum, para que seja possível

saber para onde viajar no intuito de encontrar o animal, a planta ou outros

poderes apropriados. Isso inclui o conhecimento de como o EXC dá acesso

ao Mundo Profundo xamânico (Harner, 1995, p. 50 e 51).

Este debate é intenso e leva toda a obra o Caminho do Xamã de Michael Harner, mas

aqui não se aterá a esta contenda, e sim, o que se propõe é observar como esses discursos são

formadores de opinião. No convívio com os praticantes do Neoxamanismo urbano,

Neoxamanismo, Nova Era etc., pode-se observar a presença de discursos como esse.

Exemplo:

Ao encontrarmos o nosso Animal de Poder, a energia vital e a criatividade

começam a interagir e podemos enfrentar velhos e insolúveis problemas com

a sabedoria da ―entrega‖, o grande aprendizado que o Animal de Poder nos

lega. Após o seu encontro, estamos prontos para iniciar o caminho do Xamã.

Como passo inicial nesta jornada, precisamos fazer uma viagem de autocura.

Essa viagem consiste em soltar algum animal que esteja preso. Um dos

princípios básicos do Xamanismo é que só podemos realizar curas se

buscarmos primeiro o que precisa ser curado em nós. As doenças, em grande

número, são decorrentes da prisão do Animal de Poder. A nossa capacidade

de curar, de produzir, de concluir um objetivo, também pode estar bloqueada

por um animal que nos dá a força naquela área e que precisa ser solto e

curado. Só após a nossa autocura podemos estar a serviço do outro com a

força animal, pois além da ―entrega‖, ele nos ensina a humildade de primeiro

olhar em nós o que está preso e ferido (o Xamã é Um Curador Ferido) e

curar, com a dor da nossa ferida, que nos abre o coração e traz a compaixão

por todos os seres sencientes.58

58

Fonte: http://www.pazgeia.org.br/arquivos/textos/animais.htm. Visitado em Outubro de 2014.

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Para Harner, ―sem um espírito guardião é praticamente impossível ser um xamã,

porque o xamã deve ter essa sólida fonte básica de poder para tratar, e dominar, os poderes

incomuns ou espirituais, cuja existência e ações ficam normalmente ocultas para o ser

humano‖ sendo adotado como um aliado que atua diretamente na condução do tratamento dos

males, e ―o espírito guardião costuma ser um poder animal, um ser espiritual que não só

protege e serve o xamã como também se toma outra identidade ou alter ego para ele‖

(HARNER, 1995, pg 78).

Observa-se como a leitura de Harner aparece na descrição que Carminha Levy aplica

em suas atividades com tratamento. É comum que se conclua que exista uma influência direta,

pela proximidade da psicóloga com o autor, mas não se pode deixar de notar a importância de

Escola Paz Géia, na formação dos grupos de Neoxamanismo hoje, em São Paulo e mesmo no

Brasil. Portanto, verifica-se outro exemplo:

Uma das ferramentas mais poderosas para o crescimento pessoal do Xamã é

o trabalho com os espíritos animais. Para os mais experientes neste caminho,

os animais podem aparecer frequentemente, principalmente quando se

necessitam do auxílio deles. Mas encontrar um Animal de Poder às vezes

pode ser uma tarefa difícil. O modo mais fácil para começar a trabalhar com

os animais de poder é estudar primeiro as habilidades naturais do animal e

seus modos de como metaforicamente você vai aplicá-las em diversas

situações na vida. Por exemplo, por causa da sua visão, a águia poderia lhe

ajudar a manter uma visão de suas verdadeiras metas. 59

Nesse exemplo, do centro ―Neo Xamanismo‖, aparece novamente o discurso que

vemos na obra de Harner. Pode-se deduzir, obviamente, que esse universo simbólico está

presente na estrutura do próprio Xamanismo, como afirmava Eliade, mas é notável a síntese

do discurso apresentado por vários trechos do livro de Michael Harner.

O trabalho de Carlos Castañeda também é muito influente no meio xamânico,

principalmente todas as descrições deontológicas do Brujo Don Juan de Matos. O chamado

caminho vermelho, ou caminho do coração, ou caminho do guerreiro etc. são sinônimos de

um universo altamente regrado apresentado por Don Juan, em que o Brujo define sua teoria e

prática dos ensinamentos do caminho sagrado.

Castañeda ficou muito famoso entre os adeptos da psicodelia. Afinal todo o trabalho

de Don Juan é através das plantas de poder, comumente chamadas de enteógenas, para

distinguir dos alucinógenos. O uso dessas plantas também foi o início do trabalho de Harner

59

Fonte: http://www.neoxamanismo.com.br/pages_artigos_03.htm. Visitado em Outubro 2014.

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144

como facilitador xamânico, mas ele abandonou utilização de plantas para se dedicar ao uso do

tambor. No caso de Don Juan, as plantas são espíritos que auxiliam na aprendizagem, mesmo

afirmando em vários momentos que xamãs mais velhos não precisam mais delas. De qualquer

forma, o movimento de contra cultura se apropriou desse discurso, como uma forma de

contrapor o pensamento moderno que tanto lutavam. A prática com psicodélicos assume uma

importância estratégica para vários grupos que na época estavam se posicionando contra a

racionalidade tecnicista (VALDERRAMA , 2009).

A saída para uma pós-modernidade era, então, se aproximar das culturas não

ocidentais e o uso das plantas seria uma forma de afirmar e definir uma identidade.

La divulgación del chamanismo a través de disciplinas como la antropología

permitió una aproximación al conocimiento de estas prácticas ancestrales y

su función cultural. En lo que interesa en el contexto colombiano, la

presencia y usos de ciertas drogas como embriagantes chamánicos en el

marco de los rituales ancestrales, generó muchas inquietudes científicas y

culturales. En este sentido lãs obras: botánica de Schultes, química y

farmacológica de Hoffmann y antropología de Dolmatoff. Igualmente, la

amplia divulgación de la obra de Carlos Castañeda. Todas ellas son de

obligada referencia (VALDERRAMA , 2009, p.122).

Nesse horizonte de sentido, cabe uma reflexão, qual o olhar que os pesquisadores

devem admitir sobre a verossimilhança dos escritos de Castañeda com a ―realidade‖

científica? Não se pode afirmar, pois, que o universo simbólico apresentado pelo autor alude a

uma prática empírica que dificilmente a ciência conseguiria acessar. Porém, é preciso se ater

aos fatos, e é fato que o livro A erva do Diabo vendeu milhões de cópias a mais de trinta anos.

Ainda é um livro de referência para muitos adeptos ao Neoxamanismo.

Nesse universo de significações, se assume duas linhas fundamentais da teoria de

Castañeda a partir das anotações de campo. Um dos pontos cruciais é a distinção entre o

Nagual e o Tonal (RAMO Y AFFONSO, 2008). Estas duas linhas formam o que falamos

anteriormente como a linha do cotidiano mecanicista e o universo inexplorado dos mundos de

uma Estranha Realidade60

. Onde podemos especificar dois modos de ser. Sendo que o xamã

tem domínio sobre o segundo.

O mundo tal como o conhecemos é um produto do Tonal. Conhecer, ou seja.

julgar, avaliar, testemunhar o mundo de uma determinada forma é uma tarefa

do Tonal. Podemos inclusive dizer, dentro do contexto da presente análise,

que ele é a própria forma ,ou a sua determinação. [...] Nossa vida é, então, a

atuação do Tonal Individual. Digamos, e assim facilitamos as coisas, que a

60

Título de uma das obras de Carlos Castañeda.

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nossa Cultura e a nossa sociedade (pelo menos enquanto conhecidas pela

nossa episteme) são o Tonal de nosso Tempo, modos determinados de ser no

tempo e estar no espaço. Duração e memória, que proclamam a História, ou

o modo de ser fundamental das empiricidades, como o incontornável do

pensamento moderno (RAMO Y AFFONSO, 2008, p. 22).

Ou seja, o Tonal é a forma como se apreende o mundo formal, o domínio da

linguagem corrente etc. Assim também como a tecnicidade, seja ela em que grau, representa

esta ordem das coisas. Como diria Wittgenstein (1921), o mundo é o limite da minha

linguagem.

Esse universo de discurso exemplifica a noção narrativa dos limites linguístico ao qual

se está inserido, como em um sonho, pois o sujeito está vivenciando esse universo de sentido,

e é uma poderosa metodologia, se avaliado do ponto de vista da verossimilhança, o que ocorre

no mundo do mito,

contudo, permite observar que, se pessoas de uma determinada cultura

sonham os mitos dessa cultura, seus sonhos por isso autenticam os mitos,

sobretudo em culturas em que o sonhar é interpretado como ‗ver‘ outro

mundo. Os mitos modelam os sonhos, mas os sonhos, por sua vez,

autenticam os mitos, em um círculo que facilita a reprodução ou

continuidade cultural (BURKE, 2000, p. 45).

Portanto o Tonal é o que determina as estruturas onde variam as estratégias da

linguagem, possibilitando a entrada e saída no mundo dos mitos. Por outro lado, tem-se o

Nagual, como um contraponto, de um universo que não pode ser domesticado. Não há

certezas nem razões neste caminho, o Nagual, como apontado pelo filósofo Gilles Deleuze, é

um potência, é um corpo sem órgãos (CsO).

O Nagual, a outra parte, a outra face, de cada ser humano (Castañeda RP:

161) é aquilo que não conhecemos, para o qual não há descrição, nem

palavras, nem nomes nem sensações. (RP: 168). O Nagual não tem limites;

ele nunca acaba, nem mesmo após a morte. O Nagual é puro efeito; ele é

acessível a nós unicamente através do efeito que ele causa, o que faz com

que o entendamos melhor em termos de poder (RP: 187). Se no contexto do

presente trabalho chamamos o Tonal de forma, podemos nos aventurar

também a chamar o Nagual de força, mas, por muito tentadora que seja esta

tradução, devemos segurar o nosso impulso comparativo e aceitar as

premissas colocadas pelo mestre, já que a única coisa que podemos fazer em

relação ao Nagual é sermos testemunhas de seus efeitos. (RP: 188)

(DELEUZE E GUATARRI, 1999, p. 23).

Ou seja, a força que se move por entre as coisas sem se notar, enquanto Tonal, parece

ter uma extensão disparatada: ele é o organismo e também tudo o que é organizado e

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organizador, determinando o mundo e seu contorno, o Nagual é sua contradição, é a pura

força motriz e Deleuze e Guatarri completam:

O Nagual, ao contrário, desfaz os estratos. Não é mais um organismo que

funciona, mas um CsO que se constrói. Não são mais atos a serem

explicados, sonhos ou fantasmas a serem interpretados, recordações de

infância a serem lembradas, palavras para significar, mas cores e sons,

devires e intensidades (e quando você se torna cão não vai perguntar se o cão

com o qual você brinca é um sonho ou uma realidade, e se é ―a puta da tua

mãe‖, ou outra coisa ainda). Não é mais um Eu que sente, age e se lembra, é

―uma bruma brilhante, um vapor amarelo e sombrio‖ que tem afectos e

experimenta movimentos, velocidades. Mas o importante é que não se desfaz

o Tonal destruindo-o de uma só vez. É preciso diminuí-lo, estreitá-lo, limpá-

lo, e isto ainda somente em alguns momentos. É necessário preservá-lo para

sobreviver, para desviar o ataque nagual. Porque um Nagual que irrompesse,

que destruísse o Tonal, um corpo sem órgãos que quebrasse todos os

estratos, se transformaria imediatamente em corpo de nada, autodestruição

pura sem outra saída a não ser a morte: ―o Tonal dever ser protegido a

qualquer preço‖ (DELEUZE E GUATARRI, 1999, p. 23 e 24).

O Tonal é o veículo pelo qual se acessa a total imanência, sem ele o sujeito seria

desintegrado. Porém, é justamente este o princípio da técnica xamânica para Castañeda, é

desconstruir tudo que seja o sujeito, para dali nascer pura energia e impulso. É o exemplo da

grande águia de luz que devora as mônodas, que somos nós, como afirma Don Juan. Essas

linhas de saída são, por sua vez, o caminho esperado pelos praticantes, que buscam novos

olhares sobre a vida, sobre o cotidiano, ou a superação do mesmo. Por esse motivo, ―a palavra

‗transe‘ será quase sempre evitada aqui, porque as concepções culturais que temos no

Ocidente quanto a essa palavra, muitas vezes levam consigo a implicação de que se trata de

um estado não consciente‖ (HARNER, 1995, p. 87), o que é justamente o contrário

empregado por Harner e Castañeda, que enxergam nos EXCs um mecanismo de

conhecimento muito claro. Dom Juan pregava que os EXCs eram a única forma de adquirir

conhecimento.

Aqui também se permite empregar outro termo muito utilizado na obra de Castañeda,

que é o fato de Don Juan chamar esta Estranha Realidade de Segunda Atenção. Assim, defini-

se o Tonal como Primeira Atenção, ou ECC, e o Nagual como Segunda Atenção, ou EXC. A

Segunda Atenção é então o domínio do xamã, e é o que os grupos de Neoxamanismo vêm

buscando, como metodologia de acesso a realidades não comuns.

Esse conjunto de práticas, que os xamãs da antiguidade tinham acesso, era chamado

por Don Juan de ―A arte de sonhar‖, por se referir a esta Segunda Atenção, e por definir-se

como um caminho não racional, não regrado, e sem limites. Importante notar, que a

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linguagem de Castañeda é bem diferente de Harner, por tratar de temos muitos abstratos,

termos como percepção, energia, consciência etc., ao contrário, Harner mostra mais em seu

trabalho imagens arquetípicas, modelos exemplares de mitos, animais, plantas, totens

minerais, vegetais etc. Mais comuns nas cosmologias nativas.

Esses padrões que são encontrados na narrativa de Castañeda trazem em si uma única

intenção, a de mostrar que tudo no trabalho do Nagual opera na maneira como se dispõe

diante da realidade, é o Intento. O que Castañeda chama de Intento é um modo de ser, de agir,

de uma Impecabilidade da consciência, da vontade, que opera sobre o Tonal e obriga-o a agir

de acordo com o desejo. Assim como a Espreita, é uma arte de se tornar invisível aos olhos

alheios, e que possibilita, através do próprio corpo, reestruturar a ―realidade‖ circundante.

Mas descobrir esse Intento demora muitos anos, e tem muitas provações, que num

futuro podem garantir ao Homem de Conhecimento a saída para a morte de forma honrosa, ele

só pode ser atingido pela prática constante, e pelo aprendizado realizado na Segunda Atenção,

com o uso das plantas de poder, plantas mestras, enteógenos etc. A Drª em antropologia,

Beatriz Caiuby Labate, cita algumas pistas sobre a continuidade da obra de Castañeda:

Carlos Castañeda é um antropólogo, autor muito discutido e controverso, e

as controvérsias sobre sua obra podem ser muito úteis para tentarmos

entender as questões que foram discutidas durante o encontro. Não podemos

negar o efeito que seus livros tiveram sobre um número enorme de pessoas,

das mais diversas áreas do pensamento contemporâneo, e do seu papel como

divulgador das práticas xamânicas para o público leigo. Sem dúvida, Carlos

Castañeda foi um dos grandes impulsionadores do que hoje chamamos de

Neoxamanismo. Não vou defendê-lo ou tentar provar que ele não era um

farsante, vou apenas narrar os fatos como ele os colocou e esclarecer pontos

importantes sobre a tradição que ele representa e sua função dentro dela.

Devo dizer aqui que Carlos Castañeda representa apenas uma única

linhagem, uma entre as muitas ainda existentes, pertencentes ao que hoje se

chama de Nagualismo, Toltequismo ou Toltequidade.61

Castañeda, além de sua fama de romancista, representa uma vião sobre a pesquisa com

os índios Yaqui62

, uma leitura de mundo, que encontramos nos grupos de Neoxamanismo

urbano.

61

Fonte : http://www.bialabate.net/news/o-xamanismo-de-carlos-castaneda-apropriacao-ruptura-ou-continuidade

Visitado em Outubro de 2014.

62

Os Yaqui ou Yoeme são uma tribo indígena dos Estados Unidos e do México que vivia originalmente no vale

do rio Yaqui no norte do estado mexicano de Sonora. Don Juan Matos é dentro da obra de Castañeda um

indígena desta tradição.

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Como explica Labate não é o seu status que importa aqui, mas como determinou um

comportamento, e uma época, pois desde a publicação de Erva do Diabo em 1968, que

milhares de jovens começaram a fazer peregrinações para os desertos do México em busca

dos conhecimentos aprendidos com o Brujo. Como aponta Bia Labate, existe um universo

totalmente diferente nos escritos de Castañeda, e que podem ser tomados como inverossímeis:

Sua obra tem momentos que soam completamente fantásticos e isso é um

outro ponto de polêmica. Há por exemplo o episódio onde Castañeda pula de

um penhasco num deserto mexicano, mas não chega a completar a trajetória

de queda até o solo. Pressionado pela morte eminente, realiza a façanha

mágica de entrar em um mundo paralelo se desmaterializando e retornando a

esse mundo em sua cama em Los Angeles; há ainda várias descrições de

transformações em animais e outros do gênero. Enfim, exemplos de

fenômenos que extrapolam os paradigmas da concepção de realidade de

nossa sociedade que estão, porém, plenamente de acordo com o terreno do

Xamanismo e com as descrições tradicionais feitas sobre ele. Não podemos

esquecer que a atuação do xamã se dá dentro de um espaço mágico – é nele

que o xamã navega e atua. Esse espaço mágico pode ter seus símbolos, e

esses símbolos são diferentes nas diversas culturas. Mas isto não quer dizer

que o espaço do Xamanismo seja um ―espaço simbólico‖. É desse reino que

provém à sabedoria do xamã ou do pajé, é nele que estão seus ―espíritos

guias‖, seus aliados como se chamam nessa tradição ou mamaés como se diz

entre os Kamayurá. Segundo o Pajé Sapaim, ver a energia e ter mamaé são

características dos Pajés do Sol, pajés que aprenderam diretamente do

espírito. Existem também os Pajés da Lua; esses não têm um mamaé e não

vêem a energia ou os espíritos aprenderam de outro homem e têm uma

capacidade de atuação e cura mais restrita.63

Como Harner, Castañeda caiu num bojo de livros esotéricos, de uma literatura das

bordas (FERREIRA, 2011), que não entram no universo acadêmico por carecerem de uma

metodologia científica. Porém, dentro de um horizonte hermenêutico, pode-se observar que

suas implicações históricas, posturas comportamentais, são aceitas e praticadas por centenas,

talvez milhares de grupos por todo o Brasil, talvez seja impossível determinar com precisão

quantos há pelo mundo. No seguimento, se direcionará para um novo ponto, sendo este dentro

do campo da Mimesis, as intersecções desses discursos no campo do Neoxamanismo urbano e

as implicações críticas sobre a apropriação cultural.

63

http://www.bialabate.net/news/o-xamanismo-de-carlos-castaneda-apropriacao-ruptura-ou-continuidade.

Visitado em Outubro de 2014.

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4 CAPÍTULO 4: MYTHOS NEOXAMÂNICOS E MIMESIS – INTERSECÇÕES

CRÍTICAS DO XAMANISMO INDÍGENA E O DISCURSO NO NEOXAMANISMO

URBANO.

4.1 Discurso e campo semântico do Neoxamanismo urbano

O Neoxamanismo urbano é uma prática contemporânea, que entendemos como uma

experiência religiosa pluralista autônoma, mas fruto de hibridismo e intersecção de discursos.

Sua principal influência é o Xamanismo stricto sensu, ou melhor, as técnicas dos povos

originários, principalmente das Américas, se tratando do foco de atenção desta tese.

Quer-se designar o discurso como objeto da ciência hermenêutica, que visa uma

interpretação, neste caso, metafórica, que rompe o discurso ordinário e estabelece processos

de conexão e distanciamento na análise do discurso a ser lido e interpretado. Dentro do campo

semântico, de horizontes de sentido do Neoxamanismo urbano, encontra-se grande

diversidade de discursos, congruentes e aporéticos. Objetivando entender esse processo,

demonstra-se a transposição de narrativas entre mundos díspares representando um discurso

inovador, ou seja, que busca uma compreensão hermenêutica política e terapêutica, no sentido

que constitui o si mesmo, a partir das relações de alteridade comunitárias.

A estrutura de formação híbrida do Neoxamanismo urbano é uma prática, não

ortodoxa, e que carece de um dogma específico, ficando, muitas vezes a mercê de um

discurso ideológico formado pela sociedade atual e conservador. Observa-se que este modelo

de discurso não coincide com o modelo do pensamento nativo, e percebe-se que antes de tudo

deve existir um processo de memória crítica. Também se localiza nesse processo de

hibridismo pluri-pertença, o que caracteriza prática de frequentar diversos grupos religiosos

simultaneamente: Budismo, Catolicismo, Umbanda, Candomblé, Espiritismo etc.

Nota-se que dentro dos grupos de Neoxamanismo urbano existe uma amálgama de

práticas, como é o caso de incorporação de espíritos, próprio do Espiritismo ou Umbanda,

mas que é tratado tranquilamente pelo grupo, e às vezes dando mais veracidade à experiência

mística do grupo que à experiência xamânica tradicional, que sabemos, pressupõe que o xamã

faça uma viagem pela árvore do mundo64

e visite o mundo dos espíritos, mas não que estes

venham para este mundo através do seu corpo. Essa inversão é tratada como um processo de

64

Axis Mundi. (Mircea Eliade, 2002).

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verossimelhança da vivência e pode doar ao condutor do grupo maior fama e características

de poder.

Acredita-se que essas práticas de hibridismo religioso têm base na experiência da

cultura popular brasileira e que esses grupos não estão isentos de sincretismo, mesmo que seja

por escolha deliberada ou por necessidade de um dirigente ser aceito pelo grupo e ser mais

valorizado, assim, importando técnicas de outras religiões para dar veracidade ao processo de

transe xamânico, tanto a incorporação de espíritos como a prática de conversar com

divindades típicas de diversas religiões.

Por outro lado, é possível também observar que grupos indígenas sofrem a influência

da cultura do não índio e acabam por traduzir o já traduzido de outras culturas nativas e

introduzindo em sua prática (será visto posteriormente um exemplo desse fenômeno entre os

Guarani), ou seja, a experiência de tradução de culturas nativas feita pelos grupos de

Neoxamanismo urbano, são relidas pelos nativos e reintroduzida na prática indígena.

Nessa assertiva, pode-se falar de um conceito de religião como religar ou reler, no

senso comum, religião é remetido ao termo latino religare, ―atar firmemente‖, enquanto que

outro termo aceito no meio acadêmico é a origem relegere, ou seja, releitura, revisitar,

retomar o que está largado. Dessa forma, pode-se claramente aproximar do conceito de

tradução do latim traducere, ―converter, mudar‖, originalmente ―transferir, guiar‖, de trans-

mais ducere, ―guiar, conduzir‖, o que também tem uma relação direta com a metáfora, que é a

transposição de um termo em outro, Metaphorein de Meta ―entre‖ e Phero ―carregar‖

―transferência, transporte para outro lugar‖. O Xamanismo é a arte da releitura, o xamã é o

mediador de horizontes de sentido, de conversação e elo entre mundos diversos e a partir

destas narrativas e metáforas que estabelecemos nossa hermenêutica.

Observar-se, como foi dito anteriormente, que esta prática híbrida, em muitos casos, se

afasta das técnicas do Xamanismo tradicional, mas não quer dizer que não pratique o que

chamaremos aqui de medicina rústica (ARAÚJO, 1979).65

Esse processo de hibridismo é

acompanhado do processo de sincretismo que o povo brasileiro sofre desde a colonização. E

tais práticas, estão mais próximas da cultura popular, que do Xamanismo stricto sensu por sua

conhecida capacidade de mutação e Mimesis. Aliado, portanto, a uma leitura da literatura

neoxamânica e à medicina rústica, haverá tardiamente a presença dos indígenas de diversas

etnias que passam a figurar como mediadores desses grupos nas metrópoles. Esses nativos

65

―A medicina rústica é resultado de uma série de aculturações de medicina popular de Portugal, indígena e

negra.‖ (Araújo, 1979, p. 43)

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passam a adotar o discurso do Neoxamanismo urbano para poder dialogar com o público que

frequenta tais espaços, por vezes fazendo a distinção entre o horizonte de sentido nativo e do

ser urbano. Esses mundos se chocam e entram em diálogo promovendo ainda mais o

hibridismo nesses grupos.

Leo Artese, que citamos no estudo anterior, afirma praticar um Xamanismo cristão:

Através do estudo das plantas de poder, cheguei ao Centro Eclético Fluente

Luz Universal – Santo Daime, onde então descobri o maior de todos os

Xamãs que já pisaram neste mundo – Jesus Cristo. E, através dessa

descoberta, a transformação de toda a minha vida em todos os níveis, no

jeito de amar, de sentir, de compreender a mim mesmo e o mundo a minha

volta. E, através desse encontro com Jesus, pratico o que chamo de

Xamanismo Cristão (ARTESE, 2000, p. 21).

Percebe-se aqui a confluência de discursos, sendo que a tarefa prioritária ao longo

deste trabalho é buscar uma ratio que possa determinar onde esses grupos se encontram e

onde se afastam, e se há uma unidade nas práticas. Acredita-se que a produção de narrativas

de poder seja um elo importante que determina uma conexão e ligação desse fenômeno dentro

do Neoxamanismo urbano.

Outro aspecto possível de perceber do processo desta teia metafórica são as

intersecções que criam uma identificação como Neoxamanismo urbano, em tese o que opera

esta metáfora continuada de diversas tradições e narrativas, permite criar um elo entre esses

grupos num discurso metafórico, como é apresentado por Paul Ricouer (RICOEUR, 2005).

4.1.1 Discurso alternativo

Uma das características marcantes desse movimento de ressurgimento de práticas

ancestrais é a possibilidade de um discurso alternativo, que serve como base para sair das

religiões tradicionais altamente dogmáticas, e também como resultado de um discurso de

contra cultura presente nas décadas posteriores à segunda guerra, movimento hippie, Nova

Era etc. São vistos em muitos textos de convites para cerimônias e folders a indicação às

vivências neoxamânicas como mecanismo de revigorar e romper com o cotidiano do trabalho,

e para buscar mudanças na vida social, afetiva e em casos de doenças. Tal discurso é uma

alternativa à vida diária, como uma válvula de escape do cotidiano massacrante da sociedade

contemporânea, principalmente o público alvo que são as pessoas que vivem nas cidades e

grandes metrópoles.

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O uso das redes sociais favorece em muito a pesquisa; há mais de três anos o grupo

―Xamanismo urbano, Neoxamanismo e práticas independentes‖ é mantido no Facebook, onde

permanece uma grande parcela de lideranças. Sempre sendo atualizada, a rede chega a mil e

quatrocentos membros, que divulgam os mais diversos chamamentos de workshops, cursos,

vivências, rituais etc.

Algumas informações: 49.6 % Mulheres (azul escuro), 49.3 % Homens (azul claro).

Membros por país: Brasil 1.355, Camboja 11, Portugal 7, Estados Unidos 6, México 6,

Alemanha 4, Austrália 3, Peru 3, Espanha 2, Angola 2. Uma faixa de 13 a 65 anos de idade,

com uma concentração entre 25 e 44 anos.

66

No campo de estudo tão movediço que é a religiosidade, e ainda mais a

contemporaneidade da mesma, não é possível fugir desse universo de propagação de

informação e a pluralidade de envolvimento, como é possível ver nesse grupo, uma

equanimidade entre mulheres e homens na fase adulta. Entre os jovens de 18 a 24 anos as

mulheres chegam a superar com 8,9% contra 6,9% dos rapazes. Em contrapartida, a partir dos

45 anos os homens tomam a dianteira, mas sempre muito próximo no envolvimento do grupo.

São dados parciais, mas que ajudam a entender um pouco esse fenômeno de participação via

web e rede social em apenas um canal de participação. Abaixo, segue tabela com membros

idade-gênero.

Faixa etária Mulheres % de mulheres Homens % de homens

13-17 2 0,10% 2 0,10%

18-24 122 8,60% 93 6,60%

25-34 216 15,30% 224 15,80%

35-44 212 15,00% 183 12,90%

45-54 92 6,50% 112 7,90%

55-64 43 3,00% 52 3,70%

65+ 20 1,40% 23 1,60%

66

Dados do facebook sobre o grupo xamanismo urbano, neoxamanismo e práticas independentes.

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153

O uso das mecidinas indígenas é bem difundido, as chamadas medicinas da floresta

são um universo de práticas que compreendem o universo integrativo do Xamanismo. Para

exemplificar, uma pena é uma medicina, se for uma pena de urubu pode significar limpeza, de

águia ou gavião, pode significar visão, ampliação de sentido; o cachimbo é uma medicina,

usado para limpeza, para espantar maus espíritos, para fazer os ―rezos‖ etc; o sonho é uma

medicina, ajuda nos processos de profecias, de busca de missão, de encontro com espíritos

etc; as plantas de poder, que são conhecidas por ―expandir‖ a consciência do xamã e do

praticante, são usadas como mecanismos de conhecimento. Uma pessoa que é boa em falar

em público, um orador, tem a medicina da palavra etc.

Todo elemento que é colocado na mão do xamã, que seja intencionado como objeto de

promoção da saúde e bem estar ganha o status de medicina, este é o efeito da metáfora

continuada e orientam para um novo modo de ver a vida e contidiano. Essas características

orientam para uma alternativa à vida diária, vida do trabalho e das relações familiares, que em

muitos casos estão difíceis de lidar. A vivência xamânica passa a ser um discurso alternativo,

que orienta para uma causa e uma busca interior, mas também para uma relação social mais

integrada, entre ―ser humano‖ e ―natureza‖:

RODA DE CURA XAMÃNICA EM SÃO BERNARDO DO CAMPO

A Roda Xamãnica utiliza a sabedoria ancestral dos xamãs para equilibrar

suas energias, buscando assim um despertar interior verdadeiro. A terapia

xamãnica e o círculo de sabedoria realizado a cada encontro alinham nossos

corpos sutis promovendo o bem-estar e melhorando nossa harmonia,

aumentando nossa consciência e qualidade de vida.

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Nota-se nesse exemplo um discurso permeado por: busca por equilíbrio, buscas

interiores, qualidade de vida etc. Também aparecem nos discursos termos próprios do

esoterismo, ―corpo sutil‖, ―alinhar‖, ―equilíbrio energético‖, ―despertar interior‖ etc., que

estão distantes de termos utilizados pelos indígenas, mas que são comuns dentro de vivências

do Neoxamanismo urbano a partir de um processo de releitura.

67

Publicação em grupo do Facebook: https://www.facebook.com/groups/439257639573441/ visualizado em 28

de Agosto de 2015.

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154

Essa busca pela alteridade, pelo novo para o qual se engaja e alimenta outro universo

dos possíveis, esse horizonte de sentido busca construir novas perspectivas e orienta para

novas formas de ser no mundo. O encontro propriamente dito da cultura indígena com a

cultura popular e a cidade cria um modelo de experiência que inova no sentido de arranjos

novos que podem ser elaborados pelos jogos de identidade.

Observa-se a imagem:

FIGURA 6: Avaliação Energética Xamânica

Fonte: https://m.facebook.com/XamadasMontanhas?photos/a

Trata-se de um típico cartaz de grupos de Neoxamanismo urbano. Verifica-se que há a

imagem de um indígena, cuja intenção é representar um xamã ou a cultura nativa. Também se

verifica novamente o discurso sobre a ―energia‖, como dito anteriormente. No caso, esta

energia esta ligada à roda de medicina ancestral, que é uma típica organização cosmológica

atribuída aos nativos norte-americanos. Uma curiosidade é que esta consulta pode ser feita à

distância. Em grupos de redes sociais vimos também um grupo que se reunia para fazer

práticas de uso de psicoativos à distância (neste caso o rapé) em horário combinado, como o

caso das cyber churches, já mencionadas, e depois compartilhavam as narrativas, com vistas a

encontrar pontos em comum68

.

68

Observação pessoal.

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155

FIGURA7: Jornada de Cura Nativa VIII

Fonte: https://m.facebook.com/graphsearch/str/spa+maria+bonita/photos-keywords?media-

combined=first&tsid=0

A imagem acima é outro exemplo típico, o indígena no cartaz, o que representa uma

total autoridade, principalmente se tratando de um ancião/anciã da comunidade. O termo

jornada também muito utilizado aparece como no conceito de Jornada do Herói, onde passa

por círculos de provação para alcançar sua missão, isto tudo dentro de um spa.

O domínio dos possíveis é facilitado pela possibilidade da atuação da memória. Esses

discursos, e tantos outros que serão ainda vistos, estão repletos de informações que são

entretecidas, numa relação entre memória coletiva e narração, um processo que ocorre em

uma teia de contato desde a aldeia, pela leitura de livros, na prática das vivências e na relação

com outras religiões e práticas espiritualistas, como a yoga, por exemplo. Esse processo só é

possível, pois, a memória que é perpetuada através da narrativa encontra lugar na cultura que

a recebe e é reinterpretada.

O encadeamento de apropriação de uma memória coletiva é atualizado nas narrativas

individuais. Também é possível afirmar que nesse processo de hibridismo os grupos

selecionam o que consideram pertinente divulgar ou perpetuar de uma tradição específica,

com isso escolhendo entre o que narrar ou não, dessa forma, cria uma memória do grupo, com

base na memória partilhada. Esse seguimento de narrar a tradição promovendo uma

configuração, que é operada pela metáfora, favorece o resgate de uma mentalidade indígena,

fruto de uma hermenêutica complexa no processo de apropriação e exclusão, e isso favorece

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156

que cada grupo mantenha uma prática diversa do outro, não criando em si um corpo

dogmático.

4.2 Narratividade e memória

O debate apresentado nesta tese, acerca dos discursos do Neoxamanismo urbano, se

insere numa discussão acerca da memória. Os grupos de Neoxamanismo urbano trabalham

efetivamente sobre e com narrativas e as modulam de acordo com as demandas do público,

assim como criam vínculos e antecedentes com ramos do Xamanismo, uns se identificam com

o Xamanismo andino, outros com o Xamanismo norte-americano, outros com comunidades

brasileiras (Huni Kuin, Kariri-Xoxó, Yawanawa, Katukina etc.). Também utilizam as

medicinas indígenas de cada cultura, ou de forma amalgamada fazem usos concomitantes

dessas etc.

Os grupos criam, assim, sua tradição, fazendo uma bricolagem com as diversas

narrativas. O debate sobre as dimensões coletivas dessas narrativas, assim como a leitura

individual da mesma, se converte em saber coletivo, mas restrito aos grupos de

Neoxamanismo urbano. Essa coleta de narrativas, sua apropriação, comunicação e posterior

constituição de novas narrativas, e o processo da tríplice mímesis, já foram demonstradas em

outros estudos (FIGUEIREDO, 2013).

Podem-se analisar as questões sobre a memória coletiva e individual apontadas por

Paul Ricoeur, na sua obra A Memória, A História, O Esquecimento, e aplicar, a partir das

propostas observadas, os conceitos em casos específicos dos grupos xamânicos citados e

outros exemplos que possam ser pertinentes. Esse fenômeno ocorre em diversos lugares pelo

mundo, em especial na América Latina, como é o caso dos curandeiros peruanos,

colombianos etc.

O caminho analítico passa por uma compreensão do universo teórico em que se

inserem os conceitos apresentados pelo autor, assim como suas propostas e antecedentes.

Busca analisar a ideia de memória a partir de uma fenomenologia, que avalia sobre os

diversos aspectos do conhecimento, a ciência, a filosofia, a oralidade, e entende que nesse

feixe de sentidos está uma fenomenologia prática, aplicável aos exemplos posteriores. Alguns

elementos são importantes ressaltar, como a relação entre a memória individual e a coletiva, o

que gera um espaço para novas reflexões, nesse percurso, evita uma síntese, e busca trabalhar

com aporias lado a lado. Outro ponto importante são os traços ou rastros do exercício da

memória e que darão base para observar estudos de caso.

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157

Um dos elementos a serem destacados é a preocupação de Ricoeur em distinguir o ato

de imaginar do ato de lembrar, apesar de que, ao passo que aprofunda o estudo, acaba por

compreender que ambas estão de mãos dadas:

É na contracorrente dessa tradição de desvalorização da memória, nas

margens de uma crítica da imaginação, que se deve proceder a uma

dissociação da imaginação e da memória, levando essa operação tão longe

quanto possível. Sua ideia diretriz é a diferença, que podemos chamar de

eidética, entre dois objetivos, duas intencionalidades: uma, a da imaginação,

voltada para o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico; a outra, a

da memória, voltada para a realidade, a anterioridade que constitui a marca

temporal por excelência da ―coisa lembrada‖, do ―lembrado‖ como tal

(RICOEUR, 2007, pp. 25-26).

Por outro lado, é importante salientar que Ricoeur busca uma filosofia da ação com

esse trabalho, levando a cabo um objetivo maior de sua obra que é a filosofia da vontade

humana e, para tanto, precisa definir claramente que é o sujeito que atua sobre a memória, ou

melhor, como esse sujeito faz usos da memória, assim como o esquecimento é um norte, pois

é dele que fugimos, e ao tratar de uma fenomenologia da memória, esse sujeito é questionado

sobre o que se escolhe para lembrar e o que deixa para trás:

Não é somente o caráter penoso do esforço de memória que dá à relação sua

coloração inquieta, mas o temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de

esquecer amanhã de cumprir esta ou aquela tarefa; porque amanhã será

preciso não esquecer... de se lembrar. Aquilo que, no próximo estudo,

chamaremos de dever de memória consiste essencialmente em dever de não

esquecer. Assim boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de não

esquecer. (...) Um enigma, porque não sabemos, de saber fenomenológico, se

o esquecimento é apenas impedimento para evocar e para encontrar o

―tempo perdido‖, ou se resulta do inelutável desgaste, ―pelo‖ tempo, dos

rastros que em nós deixaram, sob forma de afecções originárias, os

acontecimentos supervenientes. Para resolver o enigma, seria necessário não

só desimpedir e liberar o fundo de esquecimento absoluto sobre o qual se

destacam as lembranças ―preservadas do esquecimento‖, mas também

articular aquele não-saber relativo ao fundo de esquecimento absoluto ao

saber exterior – articularmente o das neurociências e das ciências cognitivas

– concernentes aos rastros mnésicos. Não deixaremos de evocar, no devido

momento, essa difícil correlação entre saber fenomenológico e saber

científico (RICOEUR, 2007, p. 48 e 49).

Essa memória se dá nos usos e abusos, na intersecção das disciplinas científicas e

filosóficas e é através de um estudo dos conceitos desde o início da filosofia que Ricoeur vai

encontrar e mostrar que a memória avança de uma ideia veritativa para uma pragmática

ligada ao exercício da memória, dentro de um horizonte de uma ética menor, de uma filosofia

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do possível, pois ao passo que a memória é exercida, dentro de um aspecto social, o sujeito

tem a tarefa de optar por este ou aquele aspecto da narrativa, da lembrança, e nesse, estabelece

rastros da memória, como será demonstrado mais adiante. O que de fato importa neste

momento é mostrar que há uma preocupação com a verdade da lembrança:

No final de nossa investigação, e a despeito das ciladas que o imaginário

arma para a memória, pode-se afirmar que uma busca específica de verdade

está implicada na visão da ‗coisa‘ passada, do que anteriormente visto,

ouvido, experimentado, aprendido. Essa busca de verdade especifica a

memória como grandeza cognitiva. Mais precisamente, é nesse momento do

reconhecimento, em que culmina o esforço da recordação, que essa busca de

verdade se declara enquanto tal. Então, sentimos e sabemos que alguma

coisa se passou, que alguma coisa teve lugar, a qual nos implicou como

agentes, como pacientes, como testemunhas. Chamemos de fidelidade essa

busca de verdade. Falaremos, doravante, da verdade-fidelidade da lembrança

para essa busca, essa reivindicação, esse claim, que constitui a dimensão

epistêmico-veritativa do orthos logos da memória (RICOEUR, 2007 p. 70).

Tal memória é possível dentro e a partir de uma narrativa, no movimento de constituir-

se como memória, a ação passa pela elaboração da narrativa para que ajude no processo de

fundamentação da identidade. É essa linguagem e esse pensamento que permite, a cada um

dos indivíduos, ter uma ideia do mundo (da própria esfera de ação) na perspectiva política (no

significado de uma inserção pessoal no mundo, pólis). O pensamento é sem dúvida mais vasto

que a linguagem, mas é a linguagem que permite a uma parte importante desse pensamento

expor-se no exterior e oferecer-se como objeto de reflexão à própria mente que o formula.

Nesse sentido, a narrativa tem a finalidade de expor-se como espelho para esta reflexão sobre

o tempo passado no presente e dos seus contornos:

No plano mais profundo, o das mediações simbólicas da ação, a memória é

incorporada à constituição da identidade por meio da função narrativa. A

ideologização da memória torna-se possível pelos recursos de variação

oferecidos pelo trabalho de configuração da narrativa. E como os

personagens da narrativa são postos na trama simultaneamente à história

narrada, a configuração narrativa contribui para modelar a identidade dos

protagonistas da ação ao mesmo tempo em que os contornos da própria ação

(RICOEUR, 2007, p. 98).

A configuração da narrativa é o momento em que o autor mostra, em Tempo e

Narrativa I, II e III, que o mundo da vida (conceito fenomenológico de Lebenswelt) está

repleto de conteúdo que será então configurado, ou seja, elaborado e trabalhado pelo sujeito,

(podemos usar a metáfora do poeta, que usa da realidade como matéria prima de sua obra) que

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em seguida comunica esta ação para ―os próximos‖ que tratam de refigurar as narrativas que

passam ao manancial do mundo. O que aprofunda esta discussão é o fato de que esse sujeito é

ligado à memória pela ação, pelo ato de lembrar, o que vai levar Ricoeur a afirmar a

individualidade da lembrança, que está presente apenas no universo do sujeito que é imputado

sobre a ação de lembrar-se de algo. Ricoeur avança num primeiro momento para a

demonstração da particularidade da memória e da singularidade do sujeito que lembra:

Três traços costumam ser ressaltados em favor do caráter essencialmente

privado da memória. Primeiro, a memória parece de fato ser radicalmente

singular: minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir as

lembranças de um para a memória do outro. Enquanto minha, a memória é

um modelo de minhidade, de possessão privada, para todas as experiências

vivenciadas pelo sujeito. Em seguida o vínculo original da consciência com

o passado parece residir na memória. [...] É principalmente na narrativa que

se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a

diferenciação e a continuidade. Assim retrocedo rumo à minha infância, com

o sentimento de que as coisas se passaram numa outra época. [...] Em

terceiro lugar, é à memória que está vinculado o sentido da orientação na

passagem do tempo; orientação em mão dupla, do passado para o futuro, de

trás pra frente, por assim dizer, segundo a flecha do tempo da mudança, mas

também do futuro para o passado, segundo o movimento inverso de trânsito

da expectativa à lembrança, através do presente vivo (RICOEUR, 2007, p.

107 e 108).

O estudo da interioridade da memória se apresenta como um antagonismo à ideia de

memória coletiva, mas Ricoeur avança suas argumentações no sentido de mostrar mais à

frente esta aporia. O estudo da noção de memória continua com a apresentação do contínuo

histórico da filosofia em tratar do sujeito e da consciência, a história da subjetividade encontra

vários defensores, e Ricoeur se preocupa de analisar no sentido genealógico os antecedentes

das suas teorias da memória, partindo de três grandes escolas, Agostinho, Locke e Husserl. O

autor se identifica com a abertura que Locke inaugura no estudo do entendimento humana;

também avalia de forma consistente a leitura da fenomenologia husserliana, e aponta suas

limitações, no campo do idealismo, assim como Agostinho se apresenta como iniciador.

Como comenta Ricoeur:

Santo Agostinho é ao mesmo tempo sua expressão e seu iniciador. Pode-se

dizer que ele inventou a interioridade sobre o fundo da experiência cristã da

conversão. A novidade dessa descoberta-criação é realçada pelo contraste

com a problemática grega, e depois latina, do indivíduo e da polis, que

primeiro ocupou o lugar que será progressivamente partilhado entre a

filosofia, a política e a dialética da memória desdobrada, considerada aqui.

Contudo, se Santo Agostinho conhece o homem interior, ele não conhece a

equação entre identidade, o si e a memória. Esta é uma intervenção de John

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Locke no início do século XVIII (RICOEUR, 2007, p. 108).

Como aponta Ricoeur, Locke por sua vez avança não como continuador do conceito

de Cogito de Descartes, mas como um elemento novo, que pode ser propiciado pelo campo

linguístico da língua inglesa, abrindo e ampliando o léxico que o autor vai adotar para tratar

do conceito de memória, como lugar de imputação dos atos de um sujeito, pois ―a invenção da

consciência por Locke tornar-se-á a referência confessa ou não das teorias da consciência, na

filosofia ocidental, de Leibniz e Condillac, passando por Kant e Hegel, até Bergson e Husserl.

Pois se trata mesmo de uma invenção quanto aos termos consciousness e self, invenção que

recai sobre a noção de identidade que lhes serve de quadro‖ (RICOEUR, 2007, p. 113).

O passo seguinte é dado quando Ricoeur compartilha com Maurice Halbwachs a ideia

de que ―cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que esse

ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupo e que, por sua vez, esse lugar muda

segundo as relações que mantenho com outros meios‖ (RICOEUR, 2007 p. 133-134) as

memórias são compartilhadas e essa noção de memória coletiva apresentada pelo sociólogo

ajuda a compreender muitos aspectos que a escola idealista deixa de olhar:

[...] as mais notáveis dentre essas lembranças são aquelas de lugares

visitados em comum. Elas oferecem a oportunidade privilegiada de se

recolocar em pensamento em tal ou tal grupo. Do papel do testemunho dos

outros na recordação da lembrança passa-se assim gradativamente aos papéis

das lembranças que temos enquanto membros de um grupo; elas exigem de

nós um deslocamento de ponto de vista do qual somos eminentemente

capazes. Temos, assim, acesso a acontecimentos reconstruídos para nós por

outros que não nós (RICOEUR, 2007, p.131).

Ricoeur admite que Halbwachs tenha limitações teóricas que não permitem sua plena

convicção sobre o tema da memória coletiva, ―o que finalmente enfraquece a posição de

Maurice Halbwachs, é seu recurso a uma teoria sensualista da intuição sensível. Esse recurso

se tornará mais difícil depois da virada linguística, da virada pragmática efetuada pela

epistemologia da história‖ (RICOEUR, 2007, p. 134). Partindo da aporia existente entre os

estudos da sociologia e da filosofia modernas, Ricoeur propõe uma filosofia da ação,

ampliando a relação entre a sociologia e o idealismo fenomenológico, em que a memória é ao

mesmo tempo um espaço de efetivação da consciência do sujeito, assim como espaço da

pertença desse sujeito no meio social:

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Uma fenomenologia da memória, menos sujeita ao que arrisco chamar de

preconceito idealista, pode extrair da concorrência que lhe faz a sociologia

da memória uma incitação a se desdobrar na direção de uma fenomenologia

direta aplicada a realidade social, no cerne da qual se inscreve a participação

de sujeitos capazes de designar a si mesmos como sendo, em diferentes

graus de consciência refletida, os autores de seus atos (RICOEUR, 2007, p.

138).

Em seguida, Ricoeur examina como se dá essa dinâmica aplicada:

Esses desenvolvimentos são encorajados pela existência de traços do

exercício da memória portadores da marca do outro. Em sua fase declarativa,

a memória entra na região da linguagem: a lembrança dita, pronunciada, já é

uma espécie de discurso que o sujeito trava consigo mesmo. Ora, o

pronunciado desse discurso costuma ocorrer na língua comum, na língua

materna, da qual é preciso dizer que é a língua dos outros. Ora, essa elevação

da lembrança à palavra não se dá sem dificuldades (RICOEUR, 2007, p.

138).

Os traços ou rastros da memória são elementos que compõem a capacidade da

lembrança, esta por sua vez ocorre sempre no presente, pelo pleno exercício do pensamento,

e, por isso, não esta divorciada da imaginação, que atua lado a lado com a memória. Os traços

são elementos constituintes da lembrança e podem ser de três tipos: traços corticais, do que se

trata das ciências neurais; traços psíquicos, que vêm das afecções dos sentidos; e traços

documentais, que são arquivos, documentos particulares, objetos etc. 69

Nesse campo deve-se

assumir um lugar de onde falamos, e Ricoeur opta pela lembrança, pela persistência da

impressão originária, pois se busca nesse processo de imputação de um sujeito do ato um

reconhecimento:

A experiência-chave, como acabamos de dizer, é a do reconhecimento. Falo

dele como de um pequeno milagre. De fato, é no momento do

reconhecimento que se considera a imagem presente como fiel à afecção

primeira, ao choque do acontecimento. Onde as neurociências falam

simplesmente de reativação dos rastros, o fenomenólogo, deixando-se

instruir pela experiência viva, falará de uma persistência da impressão

originária (RICOEUR, 2007, p. 426).

Ricoeur avança, no sentido de orientar a análise para um espaço não dicotômico entre

memória individual ou coletiva, ele vai além e propõe uma ―tríplice atribuição da memória: a

69

Aqui Ricoeur aponta para a importância que será dada aos rastros psíquicos, ―impressão, no sentido de

afecção‖ mesmo entendo que os rastros escritos tenham sua importância. O traço cortical tem a mesma

finalidade material que o documental, pois pode ser destruído, e daí a necessidade de arquivos. O que orienta é

para a discussão entre os rastros psíquicos e corticais, onde mora a problemática do esquecimento (RICOEUR,

2007, p. 425).

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si, aos próximos, aos outros‖ e partindo de uma leitura de Alfred Schutz, aproxima o eu dos

próximos nas ―relações de contemporaneidade‖ (RICOEUR, 2007, p. 142):

Não existe entre dois polos da memória individual e da memória coletiva,

um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as

trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das

comunidades às quais pertencemos? Esse plano é o da relação com os

próximos, a quem temos o direito de atribuir uma memória de um tipo

distinto. Os próximos, essas pessoas que contam para nós e para as quais

contamos, estão situados numa faixa de variação das distâncias na relação

entre o si e os outros. Variação de distância, mas também variação nas

modalidades ativas e passivas dos jogos de distanciamento e de aproximação

que fazem da proximidade uma relação dinâmica constantemente em

movimento: tornar-se próximo, sentir-se próximo. Assim, a proximidade

seria a réplica da amizade, dessa philia, celebrada pelos Antigos, a meio

caminho entre o indivíduo solitário e o cidadão definido pela sua

contribuição à politeia, à vida e à ação da polis (RICOEUR, 2007, 141).

Então, partimos de um entendimento do universo particular do individuo, onde a

memória se faz presente temporalmente, mas existindo uma aporia dessa memória como

espaço dos outros, na presença da língua materna, da memória coletiva etc., nesse campo de

conflito de interpretações, Ricoeur opta por não sintetizar estas problemáticas entre individual

ou coletivo e avança no estudo de uma ontologia quebrada, de uma aporia do possível.

Apresentando, dessa forma, rastros do exercício da memória assim como um campo de

atuação da mesma, como um espaço político, onde munido de uma terminologia jurídica,

pode imputar de forma incisiva o sujeito como ator da lembrança. Nesse sentido podemos

falar de uma ética pragmática do uso a da memória.

Esse uso da memória aparece como memória de si, dos outros e dos próximos, como

pessoas de atuação ética, com quem compartilho a memória lembrada, na tensão entre o

esquecimento, voluntário ou involuntário (materialidade cortical), da impressão mnemônica

psíquica e neurológica. Este aspecto pressupõe a polissemia da identidade do sujeito que é

solitário e cidadão simultaneamente no ato de lembrar.

4.2.1 As políticas de memória

No contexto geral do que foi apresentado até aqui, a memória em seus usos e abusos

está inscrita no sujeito, mas esse sujeito é quem se imputa o ato de lembrar e nesse sentido,

atribui valor a essa lembrança, definindo o que decide esquecer. Será analisada a seguir a

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possibilidade de aplicação do conceito de ato de lembrança, através da ideia de políticas de

memória. Ricoeur trata o tema argumentado:

[...] que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode chamar original,

com a guerra. O que celebramos com o nome de acontecimentos fundadores,

são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um Estado

de direito precário, legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por

sua vetustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória para

uns e humilhação para outros. À celebração, de um lado, corresponde à

execração, do outro. É assim que se armazenam, nos arquivos da memória

coletiva, feridas reais e simbólicas (RICOEUR, 2007, p. 95).

Deduz-se, de forma geral, que a memória, materialmente falando, seja através do ato

de lembrar ou através da documentação, escolhe o que valoriza. E nessa acepção, observa-se

como esse conceito de rastro do exercício da memória atua em alguns casos.

Segue-se o canto da etnia Kariri-Xocó:

Lá no pé do cruzeiro, ô Jurema,

Eu danço com o maracá na mão,

Pedindo a Jesus Cristo,

Com Cristo em meu coração.

Quando os jesuítas chegaram à tribo, observaram que os indígenas praticavam a

adoração à árvore da Jurema (MOTA, 1996). Além disso, a tribo tradicionalmente praticava o

Ouricuri, um conjunto de rituais secretos para os filhos da Jurema, conhecedores do segredo

(MOTA in LANGDON, 1996). Imediatamente colocaram um cruzeiro de jurema e catequizaram

os índios na cultura cristã, o índio que já cantava na sua tradição com o seu maracá introduziu

Jesus Cristo nas práticas rituais de um procedimento formal, onde o conteúdo primeiro foi

subtraído, mas a ritualidade continua a mesma. Em outro canto percebe-se mais um exemplo

do exercício da memória:

O cocal é minha casa

A maracá meu coração

A xanduca um instrumento

Um instrumento de união70

Os índios viajam para fora da aldeia e o cocal é o seu abrigo, é a representação da sua

cultura e, por isso, tem o status de casa, de abrigo. O maracá é um instrumento musical,

responsável pela perpetuação da musicalidade e, por essa razão, se diz que bate com

70

Observação pessoal. Em contato com os indígenas, aprendi diversos cantos que são utilizados em sessões de

Neoxamanismo urbano.

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o seu coração, ele acende o cachimbo (xanduca), que atrai índios de sua tribo e de outras

tribos para uma união, pois ao ver um indígena com o cachimbo acesso é comum acontecer a

reunião de um grupo para partilhar. Culturalmente o cachimbo é utilizado para mediação de

conflitos, para conversar com as divindades e para efetuar tratamento de doenças.

O antropólogo australiano Michael Taussig (1940) encontrou muitos elementos como

esses que citados acima, e de forma mais ampla apresenta alguns dados, a serem estudados

nesta pesquisa, como o seu trabalho com os indígenas da região de Putumayo, sudoeste da

Colômbia:

Minha experiência com os xamãs do Putumayo sugere que é assim que eles

agem, e que o poder mágico de uma imagem como a dos Huitoto está no fato

de que ela questiona e solapa insistentemente a busca da ordem. Na medida

em que a imagem Huitoto, na cantiga do xamã das montanhas, pode

incorporar uma narrativa da redenção, a partir do terror colonial, ela

funciona como uma alegoria que enreda a desordem do infortúnio em sua

própria desordem, evocando as técnicas implicadas nas ―imagens dialéticas‖

de Benjamin, bem como o que existe de artístico nesses rituais xamânicos,

que se fazem acompanhar de montagem e das risadas. [...] A questão pode

ser brevemente resumida se compreendermos a imagem dos Huitoto, no

cântico do xamã, enquanto imagem de uma selvageria domável, que sugere

o paradoxo, a contradição e a magnitude do esforço desconstrutivo, na

história da civilização do Putumayo, e os termos segundo os quais a

companhia exploradora da borracha (com sua terrível violência) e depois a

igreja (com o extraordinário emprego da magia) representaram a história e a

selvageria civilizadoras [...]. A questão é que para a criação do poder

mágico, nos ritos de cura, o importante é que a imagem dos Huitotos torna

virtualmente impossível ignorar a dependência do significado da política –

neste caso uma política colonial, racista, de opressão de classes. O

surgimento da imagem dialética dos Huitotos no cântico do xamã das

montanhas tem como alvo, por meio de uma precisão surreal, a presunção da

moderna história mundial no sentido de domar a selvageria. É uma imagem

que detém o fluxo do pensamento não por meio da ordem, mas com uma

interrogação: ordem de quem, selvageria de quem? Ao contrair um pacto

com os Huitotos, bem como um com um cão de guarda, o xamã doma a

selvageira, não para eliminá-la, mas para adquirí-la (TAUSSIG, 1993, p.

366-367).

A passagem mostra muito bem como a magia do xamã cita a história, não para apontar

continuidades, mas para exemplificar ―o entrelaçamento das memórias dos vencedores com as

dos vencidos‖ (TAUSSIG, 1993 P. 353). Isso significa, por um lado, que são os próprios

―colonialistas brancos e não os índios que inculcariam em suas tradições àquilo que eles

consideravam magia e religião indígenas‖ (TAUSSIG, 1993 P.363); mas, por outro, que os

índios incorporariam elementos do imaginário colonizador e da própria história, já que a

―história do boom da borracha, que incluía o terror e a diáspora, prontos para serem moldados

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no espaço da morte – a morte do pecador, o Juízo Final, o céu e o inferno‖ (TAUSSIG, 1993,

p. 363).

Nessa lógica, o tema inicial de sua abordagem, o espaço da morte no qual o paciente

procura o xamã (ou curador), é elaborado como um espaço dos rastros da memória e cita o

espaço da morte do início do século, porém com uma diferença brutal e mesmo redentora. O

colonizador, em nome da religião, tinha o poder de dominar e anular o nativo, como visto no

caso da Jurema, a memória do sujeito é domada, alterada, mesmo que de forma ritualística se

mantenha a pratica corporal, o conteúdo sofre transformações. O xamã, um nativo,

apropriando-se da religião do dominador, tem o poder de, na hora da morte, trazer alívio aos

pacientes, brancos católicos. E não é incomum vigários clamarem pela ajuda dos xamãs em

momentos de doença, como será indicado adiante. Ricoeur comenta que:

Nossa hipótese, que transfere à intersubjetividade todo o peso da

constituição das entidades coletivas, importa jamais esquecer que é por

analogia apenas, e em relação à consciência individual e à memória, que se

considera a memória coletiva como uma coletânea dos rastros deixados

pelos acontecimentos que afetam o curso da história dos grupos envolvidos,

e que se lhe reconhece o poder de encenar essas lembranças comuns por

ocasião de festas, ritos celebrações públicas. Uma vez reconhecida a

transferência analógica, nada impede que essas comunidades intersubjetivas

superiores sejam consideradas como o sujeito de inerência de suas

lembranças, que se fale de sua temporalidade ou de sua historicidade, em

suma, que se estenda analogicamente a minhadade das lembranças a ideias

de uma possessão por nós de nossas lembranças coletivas (RICOEUR, 2007

p. 129).

O sujeito, através da intersubjetividade, é capaz de utilizar sua autonomia como ator

das lembranças e configurar a memória coletiva. O padre pode ter tentado implantar a ordem

no mundo nativo, reestruturando toda sua visão de mundo, mas ainda existe uma relação de

poder e a memória está no intercruzamento das memórias dos grupos nativos e colonizadores,

a partir da criatividade moral do sujeito num ato de lembrança, o que se equipara à ideia de

Taussig, que o xamanismo responde como uma linguagem capaz de orientar a comunicação

social e introduzir respostas à situação político-social do grupo:

No que se refere a essa história e a essas práticas, isto é, os índios que são

convocados para propiciar um poder mágico que neutralize os males da

desigualdade no restante da sociedade, existe uma dúvida relativa à

realidade. A incerteza quanto àquilo que poderíamos denominar a fonte do

sistema de cura mágica possui efeitos surpreendentes curativos para nós,

pois nos previne contra a busca do poder mágico em um ser unitário tal qual

o xamã índio. Em vez disso ela nos aconselha quanto ao local em que esse

poder se cria, isto é, na relação entre xamã e o paciente, entre a figura que

vê, mas não falará daquilo que vê, e afigura que fala, muitas vezes com

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grande beleza, mas não consegue ver. É isto que precisa ser trabalhado, se

alguém deve tornar-se um curador (TAUSSIG, 1993 p.417).

Para os mais pobres, a base de seus infortúnios, doenças, fracassos e frustrações,

sofrem com os efeitos purgativos do Yagé, (ou como mais conhecida no Brasil como

ayahuasca, é uma planta de poder utilizada pelos xamãs dessa região) através do ato de

vomitar e evacuar representa a eliminação do mal. Essa transformação, causada pela

experiência com a planta de poder, simboliza um processo de morte e renascimento. A cura é

um poder não somente do Catolicismo, apesar de estarem presentes nas sessões do yagé. Esse

processo metafórico, que opera dentro do universo do Cristianismo popular, através da

tradução de referências do universo nativo, ajudam a ―contemporanezar‖ as relações de

opressão, realizadas pelo opressor no passado. Ademais, a cura tem o poder de neutralizar os

males da desigualdade criados dentro de uma cultura capitalista. No caso de enfermos, é

comum aos religiosos recorrer aos curandeiros:

Chamaram um padre, que se apressou em ir à casa dele. O padre contatou

um curandeiro da vizinhança, que lhe disse para aguardar sua chegada

preparando fumo e aguardiente. Aquela noite o curador, um branco, chegou

e diagnosticou a doença. Ela havia sido causada pela Velha do Pântano,

também conhecida como Turu Mama, uma horrenda megera com seios

compridos e caídos, jogados por cima dos ombros. Sim! Foi ela quem lançou

aqueles gritos horríveis que não cessavam de ecoar na memória de Don Luis,

e ele os repetia, providos de uma intensidade que fazia o sangue congelar, à

luz vacilante de nosso ambiente mortalmente parado: ‗Ai, aaaiii...‘. [...]

Quanto a Turu Mama, quando o relato sobre ela chegou ao fim, Santiago

mostrou-se incrédulo e sacudia de tanto rir. ‗Vale a pena comê-la (fodê-la)?‘,

perguntou a Don Luis, que empalideceu de desgosto e de tristeza. [...] Aos

poucos os risos e murmúrios foram morrendo, no frio da noite que tudo

cobria. De repente um grito se fez ouvir na escuridão. ‗Cuidado com a Turu

Mama!‘ Gargalhadas rivalizaram com o vento. Ambos ninavam a casa, para

que ela adormecesse (TAUSSIG, 1993, p. 336).

Outro caso é o apresentado pelo antropólogo e historiador francês Nathan Wachtel. Em

retorno à aldeia Chipaya (local onde realizou suas pesquisas na Bolívia), dezesseis anos

depois, NathanWachtel observa a mudança do culto aos santos populares. Em uma passagem

ele cita:

Todo domingo, percorro escrupulosamente os lugares de culto. É bem

verdade que, com exceção das festas celebradas outrora em honra deste ou

daquele santo, eu jamais havia visto tamanha afluência à igreja: todas as

vezes veem-se nela umas oitenta pessoas, mesmo na ausência do vigário

(quando ele vai para outras aldeias). Continua sendo a mesma construção de

adobe, modesta, bem cuidada, repintada regularmente com cal, e agora

coberta por um telhado de zinco ondulado; mas o interior está

irreconhecível: nenhuma imagem, nem a de Santiago, nem a da Virgem de

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Guadalupe, nem mesmo a de Santa Ana, padroeira de Chipaya; todas

desapareceram! Somente um crucifixo, muito simples, se destaca na parede

do fundo, acima do altar: agora, a igreja não se diferencia em nada de um

templo protestante (WACHTEL, 1996, p. 131).

A presença dos cultos protestantes no meio das práticas populares modificou discurso

visual, e a patir disso, podemos falar de uma política de memória, que vem sendo adotada

pelas igrejas, como veículo de chamariz para a população local. A mudança no discurso visual

apresenta a qualidade das instituições de admitirem a ocorrência de mudanças na memória

coletiva do grupo, criando uma nova demanda. Os próximos, como diz Ricoeur, é que podem

afetar diretamente a prática da igreja, através dos usos da memória e, aqui, fala-se também do

esquecimento forçado. Em entrevista, Wachtel comenta um caso onde observa a prática ritual

de uma comunidade no Brasil, que utilizam de práticas judaicas num universo tipicamente de

Catolicismo popular:

A síntese de todas essas memórias individuais produz, assim, uma memória

coletiva. Nas entrevistas que fiz no Brasil, em São Paulo, no Rio, em Recife,

em Natal ou no sertão havia muitos temas recorrentes como esses. O mais

recorrente deles era o fato de os entrevistados pertencerem a famílias cristãs,

mas famílias com algo particular, com costumes particulares. Que costumes

são esses? Proibições de alimentação, de comer porco, ou costumes

funerários particulares, como o de enterrar os mortos em terra limpa com a

mortalha (algo bem difundido até os anos 1980, em todo o sertão do

Nordeste). E muitos cumprem o mesmo itinerário, por várias razões (de

estudo, de trabalho, de saúde): migram para a cidade e se dão conta de que

esses costumes familiares, que pensavam ser totalmente cristãos, não são

recomendados pela Igreja. Então, tomam consciência de uma diferença e, em

outro meio, começam a se perguntar, a investigar, a tratar de dar uma

resposta a isso. E a resposta mais verossímil é que há algo de ―judaico‖

nesses costumes. Em suma, um dia tomam consciência, de uma maneira por

vezes repentina, de que há uma origem judaica de suas práticas. Essa

revelação daquilo que já era sabido (―tomei consciência de algo que já

sabia‖), essa memória semiconsciente, é algo recorrente nessas histórias. E,

depois, a maneira de reagir a essa tomada de consciência pode desencadear

muitas escolhas, seja regressar ao judaísmo, seja continuar com os costumes

familiares como eram ou, em muitos casos, até mesmo converter-se ao

evangelismo. Em todo caso, esses itinerários são recorrências de uma

memória coletiva (WACHTEL, 2014, p. 271).

Wachtel aponta para uma síntese das individualidades, o que, como visto, não é

metodologicamente aplicado por Ricoeur, que acredita que esse processo anda de forma

imbricada e sobreposta, mas nunca chegando a uma síntese unificadora, privilegiando a

aporia. Mas, o relato é muito interessante e podemos pensar nessas possibilidades de interação

dos grupos, por intermédio dos indivíduos, num processo híbrido em constante movimento.

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Na introdução da obra ―Le retour des ancêtres‖ Wachtel coloca algumas questões importantes

sobre a pesquisa e sobre a postura do autor em campo:

Le présent ouvrage propose une double approche, à la fois ethnographique et

historique. – L‘examen de la société actuelle a tout d‘abord pour but de

mieux cerner l‘objet étudié. L‘enquête de terrain permet em effet d‘observer

des pratiques ou des représentations qui en raison de La nature des

documents, échappent à l‘écrit, telles que l‘emploi de certaines techniques,

les échanges par troc, le fonctionnement du système des charges religieuses,

les rites plus ou moins clandestins, etc. Il ne convient pas seulement de

rassembler une collection de données juxtaposées les unes aux autres :

celles-ci s‘inscrivent dans le contexte de la société vivante, dont il importe

de mettre au jour les cohérences internes, les contradictions et les logiques

sous-jacentes. – Inversement l‘enquête historique s‘efforce de découvrir ce

que la tradition orale n‘enregistre pas ou ne transmet pas: outre les données

historiques générales (contextes d‘étendues variables, conjonctures

démographiques et économiques, etc.), les processus d‘oubli,

d‘acculturation, voire de dénégation. La restitution du devenir consiste alors

à mettre en évidence les décalages entre les rythmes temporels, les

continuités, les ruptures, les gestations en oeuvre ou avortés, les écarts entre

le mort et vif (WACHTEL, 1990, p 18 e 19).71

Wachtel tem intuições interessantes sobre a aplicação da pesquisa de campo que são

relevantes a esta pesquisa, pois visa mostrar o conflito que existe na memória documental, e

ajuda a compreender o movimento das narrativas, como são colocadas de lado pela história

por não ser entendido que estas criam um universo particular de interação com a memória

coletiva.

Os dados recolhidos pelo pesquisador têm que levar em conta tal universo híbrido

onde a memória está sendo construída e destruída constantemente, pela força das políticas

segregadoras, seja pela ação do tempo social, seja pelos efeitos da degradação do cérebro dos

indivíduos mais velhos (detentores da oralidade). O esquecimento se torna um empecilho para

a totalidade da memória, mas há também um instrumento de controle e de alívio para o

sofrimento.

71

Este livro de Nathan WACHTEL, Le retour des ancêtres. Les indiens Urus de Bolivie, XXe-XXVIe siècle.

Essai d‟histoire régressive (1990), oferece uma abordagem dupla, tanto etnográfica quanto histórica. – A análise

da sociedade atual em princípio para melhor identificar o objeto estudado. A pesquisa de campo permite em

efeito observar práticas e representações devido à natureza dos documentos, além da palavra escrita, tal como o

uso de certas técnicas, o comércio por permuta, o funcionamento do sistema de trocas religiosas, ritos mais ou

menos clandestinos etc. Não devemos somente recolher uma coleção de dados justapostos uns aos outros: eles

estão dentro do âmbito da sociedade vivente, que é importante para revelar as consistências internas,

contradições e lógica subjacente. Inversamente a questão histórica esforça-se por descobrir que a tradição oral

não registra ou não se transmite: além de dados históricos gerais (contextos de entendimento variáveis ,

condições demográficas e econômicas, etc), o processo de esquecimento, de aculturação até mesmo de negação.

A restituição do destino consiste então, em evidenciar as mudanças entre os ritmos temporais, continuidades,

rupturas, gestações em curso ou abortadas, as diferenças entre mortos e vivos.

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4.3 Mundo urbano e mundo xamânico – intersecções de Sentido

Através de uma análise dos conceitos de memória individual e coletiva em Paul

Ricoeur observou-se que existe uma aplicabilidade de uma fenomenologia pragmática, e que a

memória a partir de uma aporia abrange a polissemia das identidades e das narrativas

formadoras dos grupos e indivíduos, numa circularidade que anda lado a lado com a atuação

do sujeito, como ator da lembrança, criando assim um espaço para se pensar politicamente o

uso da memória. A imputação do ato de lembrar ao sujeito é um espaço para elaborar uma

filosofia da vontade, uma ontologia quebrada, não teleológica, da criatividade moral e da

poética e pragmática da possibilidade humana. Nesse caminho pode-se avançar em exemplo

mais próximos desta realidade.

A questão é que esse aparato que se conseguiu demonstrar com Ricoeur sobre os usos

e abusos da memória, e as relações entretecidas entre indivíduo e coletividade, não pode

deixar de lado a questão do Sentido numa acepção ampla. O Sentido é um norteador para a

formação de uma teia metefórica entre essas culturas, sem o Sentido um conceito ou objeto de

outra cultura não ganha uma lógica interna no novo endereço. E se tratando de comunidades

nativas, a materialidade é fundamental, pois a concepção de realidade é menos abstração e

mais elementos possíveis de mesurar.

O Sentido é um tema recorrentemente discutido na filosofia desde sua origem clássica.

O Sentido é um tema amplo que abarca o Significado das coisas, mas expande tal significado

em medida que constitui um universo a partir do discurso metafórico que permite rearranjar

ideias e conceitos, mas ambos vêm sendo associados de forma comparativa. Avança-se na

demonstração desse conceito em um exemplo dentro das práticas do Neoxamanismo urbano, a

Temazcal Guarani, na aldeia Mbiguaçu de Águas Claras em Santa Catarina. A Temazcal é um

conhecido ritual de purificação praticado na América Central e do Norte, e que graças ao

fenômeno do revivalismo do Xamanismo em grupos contemporâneos urbanos (WALSH,

1993, MAGNANI, 1999 e 2000), esse processo chegou à aldeia e foi adotado como prática na

comunidade.

4.3.1 Sentido e a tarefa da interpretação metafórica

Destáca-se que neste trabalho se optou por adotar o conceito de Sentido de modo

amplo, pois ao contrário do Significado, o Sentido, é uma reflexão, um Sentido Interno, e,

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além disso, pressupõe os órgãos receptores. Seria possível também destacar a famosa

metáfora que diz respeito à orientação, quando se busca um sentido, está também se buscando

uma direção, seja norte, sul, leste ou oeste, ou quando perguntamos para o motorista do

ônibus ―este ônibus vai sentido centro?...‖ etc. Portanto, entende-se que Sentido abarca os

significados, que são fixos, associados aos signos da linguagem, e amplia os seus contextos,

na medida em que o Sentido compõe realidades linguísticas inovadoras e que podem

estabelecer novos significados em velhas acepções.

Trabalhando sobre a filosofia de Paul Ricoeur, chega-se à teoria geral das

intersecções das esferas do discurso. Esta dialoga diretamente com a discussão do Sentido e

suas interrelações com a metáfora, narrativa e de sua multiplicidade regulada, pois não é um

processo desordenado, é mais que isso, é um processo da cultura que amplia os significados e

os conceitos pré-concebidos, é uma encruzilhada das esferas de discurso entretecidas.

O estudo busca um entendimento adequado do discurso especulativo, pois onde se

encontra uma polissemia de sentidos e uma pluralidade de significados, busca-se uma teoria

que compreenda essa multiplicidade que não age de forma desordenada (RICOEUR, 2000).

A partir dessas premissas, inclina-se a inferir que o sistema que adota o discurso

especulativo como motor do intelectivo, redutor da metáfora, em medida que submete ao

logos as formações da linguagem; porém, esse processo se fundamenta desta maneira, devido

a não pureza do pensamento e da linguagem, e que, portanto, só na interferência entre ambos

é que podemos estabelecer uma análise coerente e possível no campo teórico.

É no campo da interpretação que podemos introduzir uma interferência, como ―licença

poética‖ e promover uma conversação, onde estes dois campos, o especulativo e o metafórico,

constituem um lugar de desafio para a produção do Sentido:

[...] a destruição do metafórico pelo conceitual nas interpretações

racionalizantes não é a única saída da interação entre diferentes modalidades

de discurso. Pode-se conceber um estilo hermenêutico no qual a

interpretação corresponde ao mesmo tempo à noção de conceito e à de

intenção constituinte da experiência que procura dizer-se em um modo

metafórico. A interpretação é então uma modalidade de discurso que opera a

intersecção de duas esferas, a do metafórico e a do especulativo. É, portanto,

um discurso misto que, como tal, não pode não sofrer a atração de duas

exigências rivais. De um lado, ela quer a claridade do conceito, de outro

procura preservar o dinamismo da significação que o conceito detém e fixa

(RICOEUR, 2000, p. 464).

O que podemos definir como campo de ação do Sentido é essa intersecção, este um no

outro. A intencionalidade de um no outro é um espaço de ampla significação, no contexto da

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concepção especulativa do Sentido amplo do fenômeno. Portanto, insere-se no horizonte da

produção de sentidos e em condição de constituir novos olhares sobre as coisas que pensamos

e sentimos pelos órgãos receptores. Ricoeur traduz bem esse contexto da metáfora como um

lugar ―a mais‖ no pensar:

O que é dito aqui esclarece nossa própria noção de metáfora viva. A

metáfora não é viva apenas por vivificar uma linguagem constituída. Ela o é

por inscrever o impulso da imaginação em um ―pensar a mais‖ no nível do

conceito. Essa luta para ―pensar a mais‖, sob a condução do ―principio

vivificante‖, é a ―alma‖ da interpretação (RICOEUR, 2000, p. 465).

Portanto, podemos falar de uma interpretação metafórica como um veículo de análise

de fenômenos, em que neste caso é o processo da encruzilhada cultural que se encontra no

contato da cultura Guarani e os ritos da América Central e do Norte traduzidos pelos grupos

de Neoxamanismo urbano. Amplia-se, assim, a análise do Sentido e agora entendendo seu

alcance, a sua materialidade nas metáforas que se encontram no objeto de análise desta tese.

Já foi relatado que uma das definições de Sentido é a de órgãos receptores, os cinco sentidos

humanos. Pode-se dizer que existe um campo de interação entre as capacidades cognitivas e

as relações com a realidade constituinte do mundo e tem-se uma metáfora que realiza a

materialidade do Sentido. Quando os olhos, ouvidos, tato etc. encontram o objetos, este

encontra o indivíduo e constitui um Sentido. Afirma-se, mais uma vez, que não existe uma

pureza entre essas etapas do contato com o mundo da vida. Mas, sabe-se também que todo

contato é mediado pela linguagem, e que nesse contexto os dois se tocam e se intercruzam,

compenetrando a materialidade da experiência sensória e a linguagem metafórica.

Algumas dessas teorias são adotadas pelas ciências e filosofias cognitivistas, mas com

um devido cuidado nota-se que muitos desses pesquisadores e pensadores estão muito mais

dentro de um recorte explicativo, o que não dialoga com a teoria das intersecções, pois busca

apenas um lado da moeda. Todavia, pode-se citar este campo de pesquisa, em medida que

defendem que há uma relação material, num sentido extremo, onde o pensamento se

caracteriza como um conjunto de sinapses neurológicas e suas relações com a consciência

(SEARLE, 2010).

Pode-se chegar ao grau de materialidade radical, mas aqui interessa a exceção, o que é

possível introduzir dentro do Sentido, como metáfora. Essa materialidade do sentido é mais

ampla e se insere no mundo da imaginação, pois constitui universos de sentido ao passo que,

intencionalmente, toma-se contato com o mundo circundante e a variedade de suas coisas.

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Principalmente quando se fala em ritos e mitos de povos originários, em que se torna preciso

ter visões menos empiristas e mais alinhadas com o Sentido:

Quando Ricoeur propõe a leitura metafórica do mito ele não o faz por

recusar as alternativas linguísticas e históricas. Entretanto ele quer sublinhar

fortemente que essas leituras não podem substituir a leitura hermenêutica

que parte do texto e sua relação com o leitor e entra no processo genético da

produção metafórica de sentido. Essa é uma leitura da nova retórica que

toma o texto com sua autonomia estruturadora de sentido. A leitura

metafórica nos obriga a uma nova genealogia do sentido ou prestar atenção à

gênese do sentido guiado por uma matriz metafórica. As leituras históricas,

semióticas e estruturais são provisoriamente desconectadas (uma epoché). O

processo metafórico engancha o movimento genético do sentido que

acompanha a metaforização do mundo (JOSGRILBERG, 2014, p. 87).

Portanto, para promover este estudo sobre a materialidade do sentido, posiciona-se na

interpretação metafórica, como um campo que irá ampliar a materialidade que se encontra nos

exemplos estudados aqui e garantir que não se caia numa análise puramente estrutural, sem

levar em consideração que, como um processo de constituição do mundo, o Sentido, numa

designação de ―pensar a mais‖, na encruzilhada dos órgãos receptores e o sentido das coisas,

desde a consciência, a reflexão e a produção especulativa desse processo polissêmico, em que

se encontra a metáfora vivificante, e os fenômenos de revivalismo das metáforas e filosofias

originárias. Além disso, nota-se como, no cerne destas culturas autóctones, existe uma

abertura hermenêutica e uma conversação metafórica.

4.3.2 A Temazcal Guarani e a metáfora material e linguística: um caso de Neoxamanismo

urbano e indígena

Com base nos contexto teórico apresentado até aqui, realiza-se uma leitura

aprofundada da Temazcal Guarani, e sua denominação social dentro da perspectiva do

fenômeno do Neoxamanismo urbano e do Neoxamanismo Indígena.

Trataremos da construção da Temazcal, a partir da cultura material dos povos aqui

citados. A história cultural e material destes grupos é muito rica, e dá origem a uma linha de

pesquisa chamada de antropologia material. O estudo introdutório da Suma Etnológica

Brasileira, editada por Darcy Ribeiro, é um compêndio de estudos de expoentes da

antropologia e etnologia nas Américas. Nesse estudo introdutório a profª. Dª Dolores Newton,

emérita da University of New York at Stony Brook, relata alguns casos de formação das

residências entre os Tupi, Xavante, Karajá, Yawalapití etc:

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Os fenômenos culturais se apresentam segundo três modalidades distintas: a

das ideias, a do comportamento e a dos objetos físicos. Esta última

modalidade é a que nos interessa aqui, constituindo um campo de estudo

adjetivado com um nome novo, antropologia material. [...] A cultura

material foi caracterizada por Bohannan (1973:364) como único fenômeno

cultural codificado duas vezes: uma vez na mente do artesão e a outra na

forma física do objeto. Essa dupla codificação permite comparar os três

fenômenos culturais, ou seja, o artefato, bem como seus aspectos cognitivos

e comportamentais (RIBEIRO, 1986, p. 15).

Foi levantado um conjunto de características do Sentido, entre elas a materialidade.

Aqui, pode-se notar como é viável o estudo desse campo, pois na construção visualiza-se mais

propriamente a ideia que em certo momento chega aos sentidos pela observação do mundo da

vida, em seguida é traduzida em seleção e manejo dos materiais na natureza do entorno, e

novamente é devolvida para o espaço de forma manufaturada.

Essa manufatura dos materiais é uma relação de materialidade do sentido e é

composta de forma estética e ao mesmo tempo repleta das metáforas encontradas no ambiente

mítico e ritualístico de cada comunidade. No estudo citado, a Profa. Da. Dolores Newton dá

continuidade ao conceito, pois ―como não podia deixar de ser, a casa e a aldeia procuram

atender às necessidades básicas de vida comunitária e à observância de características locais:

topografia, clima e materiais de construção disponíveis‖ (RIBEIRO, 1986, p. 91).

A Temazcal (na língua Lakota chama-se INIPI), conhecida aqui no Brasil

como ―Tenda do Suor‖, tradicionalmente é praticada como ritual de purificação entre os

povos da América Central (Maia e Tolteca) e do Norte (principalmente Lakota, Oglala), entre

outros nomes: de sweat lodge, sauna sagrada etc. O ritual se estrutura da seguinte maneira: ao

entrar na tenda, cada pessoa passa pelo mestre, que faz evocações e purificações com objetos

de oração e poder. Entra-se ajoelhados e pronuncía-se a palavra: Mitakuye Oyasin (―Por

Todas As Nossas Relações‖, ―Sou aparentado com tudo que existe‖ etc.), e ocupa um lugar

dentro da tenda, dirigindo-se no sentido horário.

Quando todos estão dentro da tenda, o ―Guardião do Fogo‖ vai, a pedido do mestre,

trazendo pedras quentes (abuelitas). Após as pedras serem colocadas no centro da tenda, a

porta é fechada, e começam as invocações, jogando água e ervas nas pedras. São invocados os

poderes das quatro direções, animais de poder, canções, preces, etc. Mitakuye Oyasin também

é invocado por ocasião do ritual da pipa, cachimbo sagrado, sendo bem comum dentro das

práticas autóctones, e que se tornou um jargão dentro do Neoxamanismo urbano.

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Tanto a INIPI como o rito da pipa sagrada fazem parte de um conjunto de sete

cerimônias trazidas pela Mulher Búfalo-Branco, uma mitologia muito difundida entre os

Oglala, Lakota, Sioux etc. Divulgadas por Black Elk, liderança e pajé do povo Sioux, em seu

livro The Sacre Pipe: Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux (BRAGA, 2010).

A construção da Temazcal obedece a um conjunto de procedimentos cosmológicos,

por exemplo, a sua entrada tem que estar virada para o leste onde fica a fogueira sagrada que

aquece as pedras. Além das varas de bambu internas que correspondem a uma complexa

disposição imitando as constelações estelares. O formato é de iglu, e sua cobertura é de couro

de animais, atualmente os grupos de Neoxamanismo urbano usam cobertores e plásticos para

isolar e manter a temperatura necessária para a ritualidade.

Nesse caso, tem-se uma cultura material muito rica, que como visto, traduz muito dos

hábitos, ideias e manejo de uma produção social e estética, é um conjunto de elementos que

compõe a memória coletiva do grupo. Também está repleto de Sentido, pois entrar na

Temazcal é uma metáfora para o útero materno. Dentro das práticas do Neoxamanismo

urbano é uma volta à primeira infância e contato com ―pachamama‖ (Mãe Terra).

O caso Guarani é muito rico, a partir da interferência dos modos de ser da aldeia com a

doutrina do Santo Daime, e do Fogo da Verdade, ambas as religiões contemporâneas de

revivalismo presentes no Neoxamanismo urbano. A introdução da Temazcal na aldeia

Guarani de Águas Claras iniciou com a troca ritualista do uso da ayahuasca como contato

intercultural, em seguida foi adotado a Temazcal e o Vision Quest, outra cerimônia indicada

dentro dos sete ritos sagrados que pressupõe um retiro ritual com jejum durante um tempo

determinado de dias para adquirir visões proféticas, como comenta Rose e Langdon:

A aldeia de Águas Claras faz parte do território Guarani tradicional, mas foi

reocupada por uma família extensa indígena no início da década de 1980 e

hoje constitui um ponto central na rede das aldeias Guarani do litoral sul-

catarinense. Atualmente, os moradores desta comunidade encontram-se

engajados em um amplo processo de ―revitalização da tradição‖. O Santo

Daime é um movimento religioso que teve início nos anos 1930, no Acre. A

partir do final da década de 1970 começou a expandir-se por todo o país e,

posteriormente, nos anos 1990, para o exterior. Seu simbolismo combina

elementos provenientes do Catolicismo popular, do Espiritismo kardecista,

dos cultos afro-brasileiros, de grupos indígenas e do universo New Age, entre

outros. O grupo espiritual que chamamos aqui de Fogo da Verdade foi

oficializado no início dos anos 1980, nos Estados Unidos, e começou suas

atividades no Brasil, no final da década de 1990, realizando rituais que

combinam elementos que teriam origem em diferentes tradições do

continente americano e sendo influenciados principalmente pelas práticas

dos grupos indígenas das planícies norte-americanas (ROSE, LANGDON,

2010, p. 84).

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Percebe-se a encruzilhada cultural que se instaura nessas relações, além de se

encontrar a troca de sentido entre os três grupos diferentes; também a ritualidade e a cultura

material estão em intercâmbio e promovem a interferência nos discursos, sendo assim, são

encontrados diversos arranjos que permitem a configuração do mundo da vida, e promovem

entre os interlocutores processos de aprendizagem e funda elementos instituidores de

linguagens, neologismos como fenômeno de atribuição de novos sentidos a significados pré-

existentes.

FIGURA 8: Cerimônia Indígena Guarani

72

O movimento, autodenominado ―Aliança das Medicinas‖, iniciou a prática da

Temazcal como uma das ritualidades dentro da aldeia. Iniciado com a presença do uso da

ayahuasca na Opy (casa de reza), que é o centro da aldeia Guarani.

Atualmente, nem todas as aldeias mantêm a Opy, mas é bem difundida a presença das

Opys nas aldeias indígenas (BAPTISTA, 2007). As Opys fazem parte da cultura material dos

Mbya Guarani e a aldeia só é completa com a existência desse espaço de comunhão

(OLIVEIRA SANTOS, 2012), onde ocorrem as reuniões coletivas, o convívio diário, que é

conduzido por danças e cantos que iniciam ao cair do dia e seguem por toda a noite. Também,

o lugar tradicional onde ocorrem as cerimônias de cura, que podem ocorrer a qualquer

72 Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=895519987193985&set=pb.100002079758784.-

2207520000.1516415994.&type=3&theater

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momento, estando dentro da Opy, é o lugar onde ocorrem os batismos das crianças e da

sagrada ka‘á (erva mate).

Como um processo de apropriação a Temazcal sofre transformações de um novo

campo de sentido. Para poder se referenciar à Temazcal os Guaranis tiveram de estabelecer

uma releitura da tradição e introduzir novas nomenclaturas para a comunicação, entretecendo

novos processos de tradução.

Sabe-se que, das muitas etnias presentes no Brasil, os Guarani são das poucas que

matêm a língua de forma constante e cotidiana, assim adotando e criando neologismos para

algumas das palavras da cultura ocidental. Além da língua, a espacialidade da aldeia é

importante campo de trocas e traduções. Essa intencionalidade do espaço é importante, pois a

pessoa está no espaço, assim como o espaço está na pessoa e não há uma divisão clara da

percepção e da intelecção do espaço:

Pode, sem dúvida, ser objetivado que a ideia de intencionalidade é apenas

válida na reconstrução da teoria do conhecimento. Opondo-se à ambiguidade

do cogito do enfoque cartesiano, e também reclamando a supressão da

dualidade entre cogito e percipio, Husserl enxerga nessas duas categorias

operações integradas e inseparáveis, cuja unidade deveria servir para recusar,

ao mesmo tempo, os simplismos do idealismo e do realismo. [...] Mas a

noção de intencionalidade não é apenas válida para rever a produção do

conhecimento. Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do processo

de produção e de produção das coisas, considerados como um resultado da

relação entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu entorno

(SANTOS, 2008, p. 90).

Neste ponto, recorre-se a Milton Santos, pois concebe a inovação no estudo do homem

e do espaço, e essa ―natureza‖ do espaço está repleta de Sentido e Metáforas. O contexto

fenomenológico, e neste caso hermenêutico dos Guarani, está associado à ideia de

apropriação de um novo espaço, ou seja, a Temazcal que passará a se chamar Opydjere. Ou

seja, casa de reza circular. Como completam Rose e Langdon:

Paralelamente, junto com as cerimônias com ayahuasca, o temazcal ou sweat

lodge foi introduzido na aldeia Guarani, e uma construção de barro na forma

de um iglu foi construída ao lado da casa de reza, tendo sido batizada como

opydjere, literalmente ―casa de rezas redonda‖. Alguns moradores de Águas

Claras, incluindo as principais lideranças da comunidade, começaram a

participar dos ritos de busca da visão e dança do sol, realizados anualmente

na sede do Fogo da Verdade, localizada nas serras catarinenses, e também

em atividades conduzidas na comunidade daimista de Florianópolis (ROSE e

LANGDON, 2010, p. 97).

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No processo de trocas e metáforas, observa-se que houve uma interferência de

discurso entre as culturas nativas de diferentes regiões das Américas a partir da materialidade

das práticas rituais. E, nesse caminho, encontra-se uma interferência nos discursos produzidos

pelas ritualidades e suas interrelações míticas na cerimônia da Temazcal. Pode-se salientar

que o fato da Opy ser um espaço de ritualidade, e a Temazcal também servir para tal

finalidade, houve uma associação entre esses espaços, assim como apontado por Milton

Santos, no processo de produção de Sentido. Assim, a intencionalidade se intercruza e

promove novidades nos discursos.

Importante notar que a materialidade da construção dialoga com o padrão tradicional

Guarani, pois enquanto que o espaço da Temazcal é, como se diz, coberto com peles de

animais, no caso Guarani é feita de taipa, um tipo de construção vernacular produzida de

barro batido sobre armação de bambu, idêntica à produção da Opy tradicional.

Constata-se que, a partir do conceito de Sentido, destaca-se a materialidade dos

sentidos presentes na metáfora ritual e mítica das culturas dos povos tradicionais das

Américas. No caso especial da apropriação do rito da Temazcal, possibilitou-se perceber

como os Guarani formaram uma rede de discurso que abarca a ritualidade nortenha e para

tanto adotaram uma nova designação para a Temazcal, que passou a se chamar Opydjere, que

literalmente seria ―casa de reza redonda, ou circular.‖

FIGURA 9: Opydjere (―casa de reza redonda, ou circular‖)

73

73

Fonte:

https://www.facebook.com/383593725098602/photos/a.383594345098540.1073741825.383593725098602/3835

94365098538/?type=3&theater

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Muito poderia ser dito sobre a fenomenologia do circular, do redondo (Bachelard,

1993), mas aqui perceber-se, juntamente com Milton Santos, que a produção das coisas parte

desta capacidade humana de intencionar o mundo circundante e imprimir Sentidos às suas

experiências espaciais. Verifica-se que a Opydjere é uma associação da casa de reza

tradicional, porém, por sua peculiaridade, passa a ser chamada de casa de reza redonda, ou

seja, por causa de seu formato circular. Nesse ponto, infere-se como o Sentido de rezar num

espaço específico é associado ao formato material do iglu, criando assim uma nova acepção

linguística e social do sentido material de estar num espaço para rezar, cuja forma é redonda e

circular.

Assim, o Sentido é revestido de sua materialidade, e como um no outro, não se pode

diferenciar o que é sentido, o que é reflexão, intencionalidade, espaço e produção material,

pois não há dualidade nesse processo de interferência dos discursos. Poderia ser ampliado este

sentido, se além de ―casa de reza circular‖ fosse inserido o adjetivo quente: ―casa de reza

circular quente‖, ―Opydjere Aku‖, seria uma acepção que traria bem a ideia da materialidade

do sentido. Mas é nítido como a natureza do espaço produz novos aspectos, que só são

possíveis observando a formação das metáforas, entendendo o processo da interpretação

metafórica, que compreende o discurso interpretativo e hermenêutico.

4.4 Teia metafórica: traduções discursivas e leituras urbanas do Mythos

―Qual é o sentido da vida?‖ Uma pergunta que os seres humanos têm

ponderado por séculos. E, no entanto, a resposta é surpreendentemente

simples. É somente a explicação e entendimento do que uma resposta

simples que pode ser complicada! Então ... é finalidade? Sim, ter uma razão

para a sua vida dá-lhe significado. Em nosso caminho Lakota, buscamos esse

efeito através de um chamado específico, o Hanbleciyapi – o lamento de

uma visão, ou busca de visão, em que subimos na montanha, sozinhos por

vários dias e noites para pedir ao Espírito para nos dar uma visão para a

nossa vida74

(John Two Hawks – nativo Lakota).

Buscou-se, até então, demonstrar como o discurso está repleto de história e memória

de grupos que estão sempre em mutação, porém, quando se fala de uma interpretação

metafórica percebe-se que os discursos têm uma intersecção que podem criar novos modelos

de práticas, como é o caso dos Guarani de Aguas Claras, ou dos grupos de Neoxamanismo

urbano. Partindo de culturas que não são puras, as principais influências dos grupos de

Neoxamanismo urbano, pode-se dizer que são bem variadas, e que como no caso dos nativos

74

Fonte: http://www.johntwohawks.com/blog/the-meaning-of-life-the-simple-answer visto em Ago 2015.

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norte-americanos, são um povo que pratica trocas culturais entre si, nas diversas

comunidades, os famoso Pow Wow, festivais tradicionais onde as diversas etnias se reúnem

para trocarem sementes, trançados de seus bordados, medicinas, passos de dança, artesanato

etc.

Quando se trata da relação entre duas culturas complexas, como é o caso das culturas

indígenas e a cultura ocidental, tem-se um resultado nada previsto, é uma incógnita quando

esses encontros acontecem. Mas aqui se tem que é possível haver uma correlação entre as

culturas, que permita a troca cultural. Esse processo, em tese, ocorre através da configuração

de práticas nativas no universo do mundo urbano. E esta tradução não existe sem que haja

perdas, em ambas as culturas. Afirma-se, pois, que o trabalho de tradução é um processo de

luto, em que algo se perde, e como foi possível perceber, pode ou não ser fruto de uma

política de memória, pode ser uma falha ontológica do esquecimento.

Mas, é bem provável que exista interesse em poder, em relações de dominação,

principalmente por parte dos mediadores dos grupos de Neoxamanismo urbano. Há interesses

em discursos que propiciem a formação de um grupo, mesmo que não exista um dogma

operador dos grupos, cada grupo dispõe de uma ideologia mais ou menos fixa. Portanto, esse

processo de constituição da teia metafórica é acompanhado por uma política de memória.

Uma narrativa caminha entretecida em vários grupos, e tal processo é operado pela metáfora,

como principal ferramenta que possibilita o processo de contato com o sentido da experiência

primeira e os usos da memória em ordem prática no receptor final.

Um exemplo disso é a prática de indicação dos ―animais aliados‖, ou ―animais

guardiões‖, ou ―totem animal‖, ―espirito animal‖ etc. Essa prática é comum entre os nativos

norte-americanos e aparece de diversas formas em várias culturas. Mircea Eliade comenta que

―esses espíritos auxiliares de forma animal desempenham papel importante no preâmbulo da

sessão xamânica, ou seja, na preparação da viagem extática aos céus ou aos infernos‖

(ELIADE, 2002, p 111).

É recorrente entre os grupos de Neoxamanismo urbano a conhecida Jornada em Busca

do Animal de Poder. Uma prática comum que praticamente todos os grupos utilizam como

mecanismo de apropriação do Xamanismo. Eliade descreve com mais profundidade essa

experiência:

Geralmente sua presença é evidenciada pela imitação feita pelo xamã das

vozes dos animais ou de seu comportamento. O xamã tungue, que têm uma

serpente como espírito auxiliar, esforça-se por imitar através de mímicas os

movimentos do réptil durante a sessão; [...] Aparentemente essa imitação

xamânica dos gestos e das vozes dos animais pode passar por ―possessão‖,

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mas talvez fosse amis exato dizer que o xamã toma posse de seus espíritos

auxiliares: é ele que se transforma em animal, do mesmo modo como obtém

resultado semelhante usando uma máscara de animal; ou então poderia falar

de nova identidade do xamã, que se torna animal-espírito e ―fala‖, canta ou

voa como os animais e pássaros. A ―linguagem dos animais‖ não passa de

uma variante da ―linguagem dos espíritos‖, linguagem xamânica secreta [...]

Gostaríamos de chamar a atenção para o seguinte aspecto: a presença de um

espírito auxiliar na forma animal, o diálogo com este numa língua secreta ou

a encarnação desse espírito-animal pelo xamã (máscaras, gestos, danças etc.)

são também meios de mostrar que o xamã é capaz de abandonar sua

condição humana, que é capaz, em suma, de ―morrer‖ (ELIADE, 2002, p

112-113).

Tal linguagem secreta representa uma linguagem metafórica, que o xamã toma contato

ao se relacionar com o mundo espiritual, é uma linguagem universal, no sentido que convoca

imagens materiais que podem ser observáveis pela audiência de observadores do transe

xamânico. ―Aprender a linguagem dos animais, sobretudo a dos pássaros, equivale, em

qualquer parte do mundo, a conhecer os segredos da natureza e, portanto, a ser capaz de

profetizar‖ (ELIADE, 2002, p 117). Esse domínio sobre a natureza – e como diz Eliade, a

principal característica de que o xamã pode viajar pela árvore do mundo, entre mundo

subterrâneo, intermediário e superior – representa para muitos uma capacidade extra-humana,

que tem um chamariz muito forte dentro dos grupos de Neoxamanismo urbano, e que não

pode deixar de se figurar como uma das características marcantes da ideologia de um grupo.

Os animais aliados também são conhecidos como animais de poder, por trazerem força

para o praticante de xamanismo. Também podem ser associados às quatro sagradas direções,

ou em relação aos mundos visitados pelo xamanista durante o trabalho espiritual. Ademais, os

animais são usados como veículo de adivinhação, como oráculos, curandeiros peruanos do

norte usam o porquinho da índia para adivinhar onde está a doença, adivinhação pelo

movimento dos pássaros, pelas formigas, por restos de vísceras de animais, horóscopo chinês

etc.

Os animais também são adorados como divindades, como vistos em muitos casos de

religiões orientais. Portanto, podemos dizer que os animais aliados são muito importantes

dentro da prática xamânica. Encontrar o animal aliado não é uma tarefa fácil ou instantânea,

depende da conexão do praticante e depende de uma relação contínua com o aliado, desde que

esse se apresente ao praticante. Depende também de uma postura, por parte do praticante

xamanista, e a possibilidade de um animal permanecer por muitos anos ao lado do praticante,

como também pode aparecer durante um trabalho e depois ir embora, ou ficar atuando por um

período de meses etc. Como tudo que se relaciona com o xamanismo, esta busca não é uma

ciência exata, depende de muitas circunstâncias.

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Entre os grupos de Neoxamanismo urbano essa experiência é muito vasta, desde

consultas on line, horóscopo do animal de poder, tarô dos animais sagrados etc.

Segue exemplo:

A cura xamânica é indicada para todas as pessoas que buscam orientação

espiritual e alívio para suas dores e perturbações, que normalmente se

manifestam no corpo físico na forma de doenças crônicas, problemas

emocionais e distúrbios mentais. A sessão é dividida em duas partes;

primeiramente é realizado um ritual sagrado de cura e extração de energias

nocivas à saúde utilizando os poderes oferecidos pela natureza, tais como

plantas medicinais, de poder e técnicas de sucção. Após um breve intervalo,

é iniciada uma jornada xamânica com toques de tambor, onde é realizado o

resgate da alma e do poder pessoal, mediante a identificação e o

acoplamento do Animal de Poder ou Espírito Guardião no 4º chakra, o

cardíaco (Anahata).75

O exemplo acima do grupo Neo Xamanismo, podemos ver que o animal de poder

aparece como resultado de um tratamento e objetiva representar obtenção de poder pessoal,

com o direcionamento do animal que será acoplado ao chacra cardíaco. Além de ser uma

prática bem diferenciada das culturais tradicionais, inova ao introduzir o conceito de chacra,

próprio da cultura hindu, na medicina ayurvédica

FIGURA 10: Encontro do Animal de Poder

Fonte: https://m.facebook.com/XamadasMontanhas?photos/a.

FIGURA 11: Cartas Xamânicas

Fonte:76

75

Fonte: http://www.neoxamanismo.com.br/pages_atendimentos_curaxamanica.htm 76

http://avozdocorvonegro.blogspot.com.br/2014/11/orientacao-2015-cartas-xamanicas.html

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Como comentado, também existem alguns facilitadores que prometem a obtenção do

animal de poder via meio digital, ou seja, on line; a orientação pelo tarô xamânico, como se

pode ver na imagem acima, uma carta com a imagem da baleia, dentro de uma mesa típica de

leitura de ifá (oráculo tradicional africano) na matriz africana, Candomblé e em alguns grupos

de Umbanda.

Outro exemplo:

Uma das ferramentas mais poderosas para o crescimento pessoal do Xamã é

o trabalho com os espíritos animais. Para os mais experientes neste caminho,

os animais podem aparecer frequentemente, principalmente quando se

necessitam do auxílio deles. Mas encontrar um Animal de Poder às vezes

pode ser uma tarefa difícil. A primeira coisa que eu faço quando ajudo

alguém a descobrir os animais de poder deles, é realizar uma série de

perguntas das experiências daquela pessoa com animais. Você alguma vez

teve um encontro com um animal em sua mente? Quando você visita um

jardim zoológico, que animal você normalmente quer ver primeiro? Você

alguma vez teve sonhos poderosos envolvendo um certo tipo de animal? Sua

casa sempre teve algum animal em particular? Você alguma vez foi atacado

por um animal selvagem? (Alguns Xamãs acreditam que se você sobrevive a

um ataque de um animal selvagem, aquele se torna seu Animal de Poder).

De tempos em tempos realizo perguntas como estas, identificando assim

frequentemente um ou mais animais. Isto necessariamente não significa que

estes animais são seus aliados, entretanto eles normalmente são.77

Normalmente se indica uma Jornada ao som do tambor, onde a pessoa é orientada por

uma meditação que corresponde ao caminho interior em busca do animal guardião. Um

exemplo disso é proposto por Leo Artese:

Começaremos usando exercícios de visualização, para abrir as portas para o

Reino Animal. Deixe de lado as preocupações e idéias pré-concebidas.

Volte-se para aquela parte dentro de você, que sente mais do que pensa. Vá

para um local onde não possa ser perturbado. Antes de iniciar a conexão faça

a cerimônia de limpeza. Esta cerimônia é feita através da queima de ervas de

limpeza tais como sálvia, alecrim, alfazema, cedro, Artemísia, tabaco, e

outras. Eu gosto muito de utilizar a sálvia. Colocar a sálvia numa concha de

abalone, ou outra concha, simbolizando o Elemento Água. A própria erva

representa o Elemento Terra. O Elemento Fogo é representado por ele

próprio no momento da queima. A defumação é abanada por uma pena

representando o Elemento Ar. Evoque o Espírito da Erva, solicitando seus

poderes de limpeza. [...] Você pode também, apenas reverenciar os Três

Mundos: o Superior, o Intermediário, o Subterrâneo, o Céu e a Terra.

Depois, passe a fumaça em si próprio, começando dos pés até acima da

cabeça por quatro vezes. Poderá também colocar suas mãos acima da fumaça

e passar em seu rosto, e baixar a fumaça com as palmas da mão para baixo

em direção ao seu corpo até os pés. Coloque uma fita com som de um

tambor batendo (120 a 150 batimentos por minuto). Você poderá pedir a

alguém para fazer isso por você também. O ritmo do tambor é o pulso da

77

Fonte: http://www.xamanismo.com/xamanismo/animais-do-poder/ Acesso em agosto/ 2015.

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vida, é a batida do coração da Mãe-Terra. Deite e relaxe, respirando

profundamente. Comece a inspirar de forma rítmica. Irá inspirar, reter o ar

com os pulmões cheios, expirar e reter os pulmões sem ar, voltando a

inspirar novamente, na mesma contagem de tempo para cada etapa. Costumo

fazer com 7.[...] Imagine-se nesse local. Esse local nós chamaremos de seu

Espaço Sagrado da Mente. Visualize seu corpo repousando, e aos poucos vá

imaginando o seu corpo espiritual se desprendendo desse seu corpo mental.

Seu corpo espiritual começa a passear pelo seu Espaço Sagrado até encontrar

uma abertura subterrânea. [...] Caminhe até chegar em frente à porta, e

evoque em pensamento: Eu peço que meu animal guardião venha se

encontrar com sua parte humana. Eu ordeno que se abra a porta entre os Dois

Mundos para me encontrar com meu Animal Guardião. Atravessando a porta

você irá observar o animal que chega a sua frente. Não force isso. Não use o

racional. [...] Fique frente a frente com seu animal e faça suas perguntas e

espere pacientemente a resposta que poderá se apresentar de maneira

simbólica. Observe atentamente. Ao final despeça-se de seu animal,

agradecendo os ensinamentos. Volte para o túnel de onde você saiu e vá ao

seu local de repouso. Visualize-se retornando para seu corpo. Repouse por

alguns instantes. Volte ao seu local de prática agradecendo ao Universo. [...]

A natureza tem um caminho para se comunicar e nós simplesmente

escutamos. Animais são representantes de nossas mentes inconscientes.

Observe se um pássaro vai constantemente cantar na sua janela, escuta. Ou

quando algum animal chama sua atenção. Eles poderão estar se

comunicando com você, porém só com consciência sutil é que você poderá

compreender (ARTESE, 2001, p 115 - 120).

O interesse, aqui, com esse conjunto de exemplos, é entender como a prática de um

aspecto do Neoxamanismo urbano, o espírito animal, pode ter tantas abordagens diversas.

Não se trata nem de um por cento dos grupos, todavia, pode-se ver a variedades de

abordagens. O espírito animal é em si uma metáfora muito forte. Pode significar um guia para

as viagens xamânicas, pode ser um guardião da aldeia, mas entre os grupos de Neoxamanismo

urbano é uma ferramenta popular e todos devem ter um, o que, em muitos casos, gera um mal

estar em novatos e uma busca desesperadora por encontrar tal animal que vá inserir o sujeito

no grupo, com pena de sofrer bulllying por parte do integrante, como por exemplo, ser

indicado como uma pessoa não está se conectando com o sagrado, está desconcentrada etc.

O que se torna pertinente é que, nesse sentido, o espírito animal, convertido em animal

de poder, tem características psicológicas e em geral, nos discursos, vemos esse animal de

poder relacional com a qualidade de vida, de bem estar, metáforas como desempenho no

emprego, ter olhos de águia, ser forte como um leão, ter memória de elefante etc.

O intrigante é que esse discurso dá uma resposta ao mundo do trabalho, pois quando se

identifica o Neoxamanismo urbano com uma alternativa à vida conturbada, o identifica como

um oposto, que nesse caso pode ocorrer uma devolutiva, pois o sujeito, munido de seu animal

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de poder, poderá agora voltar ao cotidiano com novas características que irão auxiliar no

desempenho do dia a dia.

Assim, as metáforas ajudam a compor a leituras dos conceitos de espírito animal,

encontrado nas planícies e nos gelo da Sibéria, no ambiente urbano, com uma nova roupagem

e com finalidades diversas. Enquanto que entre os Tungues o animal tem a função espiritual

de fornecer elementos linguísticos proféticos, aqui na cidade ele tem a função de equilibrar as

emoções, e fornecer motivação pessoal para o mundo do trabalho. Se a águia tem o poder de

produzir um voo xamânico para o oglala, para o médico, advogado, mestre de obras, etc; terá

a finalidade de produzir uma visão empreendedora, determinada, de olhar por todos os

ângulos etc. É a metáfora operando através das narrativas, criando uma teia metafórica, em

que os sentidos vão se assentando conforme a necessidade cultural de usos da memória e das

políticas, que é empregada nos discursos. Visto isso, torna-se necessário entende com

acuidade a possibilidade de ampliar o sentido e estabelecer metáforas vivas.

4. 4.1 Mente indígena e concurso xamânico

Como se ocupar com a questão da memória com o problema encontrado acerca das

aporias entre memória coletiva, das comunidades nativas, e a memória individual? E ainda:

Como traduzir o horizonte de mundo nativo e o nosso horizonte ocidental? E a questão da

apropriação cultural?

São questões que podem aparecer esparsamente no texto até aqui, porém, percebe-se

que esta relação é uma problemática tensa. É possível dizer que não há uma relação direta

entre esses dois mundos, assim, e a metáfora seria a maior ferramenta de transposição de

mundos. No campo das intersecções do discurso pode-se ver claramente operando a

tarnsposição de horizonte de sentido de cada modo de ser. Mas, no final, ainda ocorrem

muitas perdas. Primeiro pelo fato de ambas as culturas prioritariamente caminharem em

sentido oposto. Por um lado, a historiografia, o modo de ser ocidental é teleológico. O fim é

mais importante, e tudo tende para a tarefa final. Nas culturas nativas, o mundo é cíclico, se

renova anualmente através dos rituais e o presente é fundamentalmente prioritário que o

futuro. Por outro lado, tem-se a questão do individualismo das sociedades ocidentais, a vida

urbana e seus castelos de arame farpado. A cultura nativa pouco se fala do Eu, o Nós é inicial,

e as relações comunitárias são prioritárias. E mais uma questão importante é a relação do

nativo com a terra, enquanto no modelo capitalista ocidental ―você é o que você pode

comprar‖, na cultura nativa você é a terra.

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O filósofo de Potosí, Fausto Reinaga, grande líder intelectual do movimento indígena

boliviano, em uma frase célebre comenta que ―el pensamiento índio nace de la Ciência, el

pensamiento de Europa nace de la Mitologia‖ (REINAGA, 2009, p. 8), esse trocadilho é uma

forma de problematizar o modelo filosófico ocidental, baseada em teorias e abstrações.

Já o pensamento nativo é empírico, material, os modos das medicinas indígenas são

práticos, tentativa e erro, de usos das relações naturais, e sem grande abstração, sem modelos

e conjecturas. Partem de experimentações ao longo das gerações, e por esse motivo o

conhecimento nativo é ligado aos ancestrais.

Nesse sentido, o que cria a identidade do nativo é sua relação com a terra, e não com

uma teoria. Como explica Reinaga, ―el hombre es tierra que piensa, su pensamiento es verdad

y vida‖ (REINAGA, 2009, p. 8), a relação do mundo nativo e da terra é de continuidade, de

permeabilidade, um no outro. Para o ocidental, a terra é para domesticação e domínio.

Há claramente uma barreira entre esses dois horizontes de mundo que, a princípio,

parece intransponível. Mas, intenta-se promover um debate sem que haja a necessidade de

vencer esta aporia, entre o xamã e o filósofo. Entre o nativo e o homem urbano. É preciso

aclarar este discurso nativo, e compreender onde pode entretecer as relações cabíveis a uma

interpretação metafórica.

4.4.2 Pensamento índio e memória crítica

O pensamento índio se difere das ciências humanas por vários aspectos. Assim como

se acredita que possa haver algumas metáforas propiciadas pela experiência xamânica que

possibilita, através da metáfora do voo xamânico, aproximar tais horizontes de sentido.

Jürgen W. Kremer78

, num conjunto de textos publicados entre 1993 e 1996,

compilados sobre o título de ―Mensagem Xamânica como Recuperação da Mente Indígena:

rumo a uma sociedade igualitária de intercâmbio de conhecimentos‖, publicado originalmente

em 1999, analisa a colonização, genocídio, evangelização, e racismo em populações

indígenas. Ele busca nesse encontro com as comunidades nativas, restabelecer bases

78

Jürgen W.Kremer, doutor pela University of Hamburg; é um editor executivo da ReVision, revista fundada em

1978, e autor de Towards a Person-Centered Resolution of Intercultural Conflicts . Ele é presidente do

Departamento de Psicologia da Santa Rosa Junior College, ex-reitor da Faculdade e Vice-Presidente de Assuntos

Acadêmicos do Instituto Saybrook; Academic Dean, Integral Studies Program, East-West Psychology Program,

California Institute of Integral Studies, CIIS; e Co- Diretor do Ph.D. program for Traditional Knowledge, CIIS.

Editou na ReVision special issues on Peace and Identity; Paradigmatic Challenges; Culture and Ways of

Knowing; Indigenous Science; Trance and Healing; and Transformative Learning.

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respeitosas para o contato entre o europeu, vivendo nos Estados Unidos da América e o

conhecimento nativo. Como estabelecer relações saudáveis entre as ciências nativas e as

ocidentais? Kremer indica algunas sugestões:

La aflicción de la que trato de recuperarme es de naturaleza disociativa; he

creado en mi interior una distancia tremenda entre mi y lo más antiguo y

profundo de mi herencia cultural. Fui educado en una cultura que

practicaba y reforzaba muhas formas diferentes de disociación: mi familia se

desconectó (entre otras cosas) de la historia del Tercer Reich durante los

años en que se convirtieron en adultos; elGymnasium alemán me entrenó

para ignorar cualquier interés que no estuviera inmediata y obviamente

conectado con la excelencia, el logro y el intelecto; el sistema universitario

alemán me inició en nociones académicas que son esencialmente

masculinas y disociativas. Aunque estas declaraciones son claramente

ciertas para mí, reflejan tan solo ciertos aspectos de la verdad completa

(también hubo, por ejemplo, aspectos positivos). La verdad es siempre multi-

dimensional, a menudo ambigua o ambivalente y siempre evolucionando. Mi

recuperación de esta historia de disociaciones es una búsqueda de verdades.

Es una búsqueda de una voz corporealizada, conectada con la comunidad y

anclada en la ascendencia, mi voz. Aunque es una lucha profundamente

personal, creo que las partes más profundas de ciertas verdades se

manifiestan únicamente en tales busquedas personales; mi propio recuerdo

sin merced podría abrir las puertas a través de las cuales otros – a su propia

manera – pudieran conectar también con verdades que son más grandes que

sus personas. La impecabilidad de tal recuerdo reside en el uso concentrado

de mis palabras con el fin de evocar su recuperación; escribiendo

personalmente tengo que superar los miedos de ser acusado de narcisismo.

La voz del académico, filósofo y el científico no descubrirá las verdades que

estoy buscando. La voz que estoy buscando sana. Los antiguos conocian el

poder de las palabras correctas, palabras que crean mundos en los que la

curación pude ocurrir. No presumo saber lo que los antiguos hombres y

mujeres conocian sobre el arte de crear totalidades. Pero lucho por evocar

dentro de mí una antigua posibilidad que la modernidad ha dejado

aparte. Tras el velo de vergüenza, la voz de mi mente tribal teutónica se

oculta. La recuperación reside en la expresión de esa mente indígena

(KREMER, [?], p. 4).

Existe uma divergência entre o pensamento ocidental e o nativo, Kremer entende que

como europeu pode encontrar nesta tarefa de restituição da memória o passo para recuperar a

mente indígena. Assim como as ciências devem se ocupar de ―pensar‖ sobre o ―pensamento‖

em exercício, também deve descolonizar o pensamento de forma permanente79

. Como

salienta o antropologo Eduardo Viveiros de Castro:

Essa expressão ―descolonização do pensamento‖ não chega a ser uma

invenção minha. Eu a devo ter lido em algum lugar, embora não lembre se li,

nem onde. Ela surgiu para mim em um contexto dialógico, no debate que

79

O pensamento está investido das metodologias que aplica durante a abordagem do objeto, e para nós o

trabalho sobre a memória crítica é uma forma de rever estes métodos, olhando a partir da orientação do

pensamento dos povos estudados.

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travei com meu amigo Philippe Descola em janeiro de 2009, mediado por

Bruno Latour. Não lembro por que exatamente, as horas tantas retorqui:

―não, temos que fazer a descolonização: a antropologia é a descolonização

permanente do pensamento‖. A palavra ―permanente‖ remete é claro ao

topos trotskista da revolução permanente. A alusão à revolução permanente

era provocativa; o que eu queria dizer era: ―nós não estamos aqui para fazer

taxonomia, nem para organizar cognitivamente o mundo; nós estamos aqui

para fazer uma revolução permanente‖. Uma revolução ―em pensamento‖,

―no pensamento‖. Uma descolonização permanente do pensamento

(BARCELLOS ; LAMBERT, 2012, p 254).

Descolonizar o pensamento é um tarefa do pensamento, e de forma permanente deve

estabelecer diretrizes libertárias, nos moldes em que o filósofo de Mendoza Enrique Dussel

apresenta a pedagógica da libertação. Como uma reforma do pensamento nas Américas

(DUSSEL, 1980).

Neste diálogo portanto, interessa tratar do pensamento índio de forma política,

provocando um retorno ético. Apresetando de forma dialógica a presença de autores como

Fausto Reinaga, como uma referência politica revolucionária nas Américas. Por outro lado, do

ponto de vista epistemológico, Jurger Kremer dialóga diretamente com a proposta, lançada

neste trabalho, de discutir o imbricamento nas práticas do Neoxamanismo urbano. Kremer

têm se dedicado a estudar e atuar junto a esses grupos e buscar este entendimento ético que

está sendo tratando aqui.

Retomando Fausto Reinaga, por sua vez, este tornou-se a principal liderança política

do movimento indígena na Bolívia, o que dá bases até os dias atuais ao governo de Evo

Morales, assim como é lembrado em cerimônias nativas, como grande liderança

revolucionária, mas Reinaga não está tão ocupado com o diálogo, em uma passagem da Tese

Indígena fala sobre a questão da criação do partido indígena boliviano (PIB), ―El indio se

corrompe apenas se aproxima al cholo mestizo. El indio debe huir como de la peste de la

sociedad blanca. El indio debe encerrarse dentro de sí mismo. El PIB frente a la política

mestiza, debe ser acaso, antes que nada una mística organización de carácter esotérico…‖

(REINAGA, 2009, p. 7).

Reinaga faz um discurso diante dos séculos de abusos das culturas tradicionais. Esse

processo têm dois lados, por um lado o interesse ocidental sobre as medicinas e saberes

indígenas e, por outro lado, os nativos, que não estão muito contentes com os usos e abusos da

memória nativa. No primeiro caso, do interesse ocidental sobre a cultura nativa tem duas

perspectivas: a de usos e dos saberes como mecanismos de apropriação saudáveis, e a que está

apenas usurpando os povos nativos em busca de patentiar as medicinias tradicionais e

transforma-las em produto, a biopirataria, os abusos da memória.

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Kremer, por outro lado, está interessado em construir um discurso de intersecção entre

os dois mundos, mas de forma respeitosa, e procurando compreender o horizonte de sentido

dos nativos americanos do norte, e como traduzir estes saberes para a prática das ciências

humanas ocidentais. O que Kremer está preocupado é como restabelecer suas próprias raizes,

em relação ao que ocorreu com o nazismo na Alemanha, com o Cristianismo como base da

cultura de colonização, e como encarar o pensamento europeu e mesmo assim se estruturar

internamente para se qualificar nesse diálogo. Esse processo pode empedir o avanço da atual

condição mundial colocada em cheque pelo desenvolvimentismo atual, que degrada o meio

ambiente, causa as guerras, o êxodos etc. :

La probabilidad de catástrofes aumenta mientras permanezcamos

desconectados del conocimiento ecológico tradicional; mientras

permanecemos – en las culturas occidentales – desconectados de lo

femenino, del cuerpo y de la naturaleza. Mi tormento emerge del darme

cuenta de que la única forma de recuperación para mí implica ahondar en

mis sentimientos de vergüenza y caminar a través de Auschwitz, de Hitler,

de los Neonazis, de Wotan, de Heidegger, de Jung, de la Cristianización

hacia lo que sea que me espere más allá. Para los antiguos pueblos Nórdicos

lo sagrado se experimentaba en la certeza de su destino; noción que ha sido

desde entonces completamente pervertida por los Nazis. Parte del desafío de

mi destino ha sido el construir un puente interno (si no externo) desde la

Alemania del norte hacia los Estados Unidos, especialmente California, y

hacia sus culturas nativas (KREMER, [?], p. 5).

Buscar no dialogismo uma postura de integração e revisitar a nossa posição como

colonizadores das culturas nativas é fundamental, como uma tarefa de divida histórica com

tais comunidades. Essa vergonha esta ligada a uma recuperação da memória, a lembraça,

como citada antes, é uma tarefa que necessita de um processo de compensação. Paul Ricoeur,

em um texto sobre o perdão, comenta:

Falar de cura é falar de doença. Ora, poderá falar de doença alguém que não

seja médico, nem psiquiatra, nem psicanalista? Creio piamente que sim. As

noções de trauma ou de traumatismo, de ferida e de vulnerabilidade

pertencem à consciência comum e ao discurso ordinário. É exatamente a este

fundo tenebroso que o perdão propõe a cura. Mas de que maneira? Gostaria

de situar o perdão na enérgica ação de um trabalho que tem início na região

da memória e que continua na região do esquecimento. É pois das ―doenças‖

da memória que gostaria de partir. O que me incitou a colocar o ponto de

partida no coração da memória é um fenômeno inquietante, que se pode

observar à escala da consciência comum, da memória partilhada (se se quiser

evitar a noção bastante discutível de ―memória colectiva‖). Este fenômeno é

particularmente característico do período pós-guerra fria, em que tantos

povos foram submetidos à difícil prova de integração de recordações

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traumáticas, vindas do passado anterior à época totalitária (RICOEUR, 2009,

p 1).

Observa-se a similaridades entre as propostas dos dois autores. A cura de uma doença

histórica, que é a alienação com relação aos povos nativos, deve ser enfrentada colocando a

questão da memória como tarefa. Primeiramente, como comenta Fausto Reinaga, existe a

necessidade de uma revolução indígena, onde os povos possam retomar sua soberania

cultural. Sua história sempre foi de conflito, o processo de expropriação colonizador e o

projeto missionário europeu e americano conseguiram retirar dos indígenas suas verdadeiras

raizes. Percebe-se claramente que esse processo ainda continua em andamento, com as

dificuldades que enfretam os povos indíginas no Brasil, falta de saúde, de educação, não

existe interesse em demarcação de terras, entre outros percalços.

A importância da memória está ligada ao processo de lembrança, dos traços que

caracterizam essas comunidades. Como praticar e entender tal vergonha, essa dívida histórica

e poder praticar o esquecimento. Ricoeur explica que não é um esquecimento comum, é um

perdão:

Ora bem, é nesta noção de trabalho de lembrança que eu proponho que

paremos. Para começar pela compulsão de repetição gostaria de dizer que

esta noção esclarece o nosso paradoxo inicial. É com a mesma obsessão do

passado que se comprazem os povos, as culturas, as comunidades acerca das

quais se pode dizer que sofrem de um excesso de memória. Mas é a mesma

compulsão que conduz outros a fugir do seu passado, com o temor de se

perderem na angústia da compulsão. Daí a questão: o que é que, nesta

circunstância histórica, corresponderia àquilo que Freud denominou trabalho

de lembrança? Não hesito em responder: um uso crítico da memória.

(RICOEUR, 2009, p. 3 e 4).

É sobre o uso crítico da memória que Kremer procura estabelecer as estruturas do

próprio pensamento, a partir desse trabalho de memória com os índios norte-americanos. Esse

processo passa por uma autorreflexão, ou seja, precisa encontrar caminhos pela memória

individual, para então se tornar uma tarefa de repercussão social, para toda a comunidade

acadêmica, por exemplo.

A tradução que ocorre dentro do aspecto de produção e recepção do discurso nativo

ajuda no entendimento que se quer trazer, pois entendendo que o pensamento nativo é diverso

do ocidental e que se busca introduzí-lo dentro do nosso horizonte de sentido, deve-se passar

pela tarefa, política, de pensar a questão dos direitos dos povos indígenas, assim como de

salvaguarda de suas tradições. A tarefa da tradução está enserida no processo de lembrança, e

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pretação de contas através do luto. É um caminho de ida e de volta, mas sabendo que pode-se

não ser aceitos. O trabalho de prestar contas consigo mesmo e com a sociedade nem sempre

significa que será resolvido o problema. O perdão pode ou não ser aceito:

Não quero, porém, dizer que o perdão se resume à adição do trabalho de

lembrança com o trabalho de luto. Ele casa-se com um e com outro. E,

juntando-se a ambos, traz aquilo que em si não é trabalho, mas precisamente

dom, O que o perdão acrescenta ao trabalho de lembrança e ao trabalho de

luto é a sua generosidade. Mas se o perdão é mais do que o trabalho, é acima

de tudo porque a primeira relação que com ele temos consiste não em

exercê-lo, ou dá-lo, como se diz, mas em pedi-lo. O perdão é primeiro o que

se pede a outrem, e antes de mais à vítima. Ora, quem se mete pelo caminho

do pedido de perdão deve estar pronto a escutar uma palavra de recusa.

Entrar na atmosfera do perdão é aceitar medir-se com a possibilidade sempre

aberta do imperdoável. Perdão pedido não é perdão a que se tem direito

[devido]. É com o preço destas reservas que a grandeza do perdão se

manifesta. Nele descobre-se toda a extensão do que se pode chamar a

―economia do dom‖, se caracterizarmos este pela lógica da superabundância

que distingue o amor da lógica, da reciprocidade, da justiça. [...] Mas não

queria terminar este assunto de tal modo que possa fazer crer que o perdão

não tem lugar senão na dimensão teológica da existência, da qual o religioso

constitui o acúmen. Pelo contrário em virtude da sua própria generosidade,

esta poética da existência emprega os seus efeitos na região do político. A

este propósito, Hannah Arendt não errava ao ver no perdão também uma

grandeza política. Aí reencontramos o esquecimento e a sua necessidade

terapêutica. Reconhecemos, por outro lado, a grandeza de certos homens

políticos, como o chanceler Brandt ou o presidente Havel, ou mesmo o Rei

de Espanha e o Presidente de Portugal, quanto a esta capacidade de pedir

perdão às vítimas das exacções cometidas pelos seus predecessores.

Também na dimensão do político, o importante é destruir a dívida, mas não

o esquecimento. É então que o perdão, em virtude da sua própria

generosidade, se revela ser o cimento entre o trabalho de memória e o

trabalho de luto (RICOEUR, 2009, p. 7 e 8).

Ou seja, este assunto se encerra no campo da política, e das políticas de memória, pois

é um dever dos que virão se redimir com as vítimas. Kremer quer explicitar esse processo

terapêutico, como afirma Ricoeur, quando se debruça sobre sua história e de seus ancestrais, e

dos usos feito pelo nazismo da mitologia e do folclore alemão. Como ferramentas de

dominação e guerra. E entender tal processo significa enfrentar dívidas históricas:

Alemania y el patrimonio Nórdico perdió su honor durante el Tercer Reich.

La comprensión del destino fue pervertida. El honor de Alemania puede

únicamente ser restablecido mediante la profunda conexión con el tejido

sagrado de su ecología. Este no es un acto grandioso; es un enfrentamiento

humilde con las cenizas de gente quemada. Tengo la obligación de honrar mi

destino personal a fin de restablecer mi conexión personal con lo sagrado.

Haciendo esto, me enfrento también con una obligación tribal, "el honor de

Alemania." Este es un pensamiento tan repugnante como inevitable. El

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honor ha sido masculinizado, los hombres se preocupan por su honor. Esto

es ajeno a la mayoría de las mujeres, quienes ven la vida desde una

perspectiva fundamentalmente relacional. El honor de los antiguos podría

haber sido simplemente algo como lo siguiente: Honro la tierra porque

comprendo mi relación con ella; Honro mi comunidad porque veo que soy

parte de su tejido e historia; Honro a mis amigos porque afirmo sus destinos;

Honro a mi destino, y así afirmo mi relación con lo sagrado. Quizás el honor

nunca fue esto; pero quizás en un tiempo fue afirmativo, relacional y

conectado con el amor y el amor hacia uno mismo. Willy Brandt estuvo con

su mujer cuando cayó de rodillas en Auschwitz; él afirmó la relación. El lado

femenino del honor significaría que es honorable apreciar lo femenino y la

naturaleza. Mi honor es mi conexión. No tengo honor alguno sin integridad.

El honor reside en el caminar a través de Dachau y Neuengamme. El

deshonor camina alrededor de estos lugares de dolor, duelo y vergüenza. Los

antiguos pueden hablar de nuevo sólo si les escuchamos. El honor está en

encarar la tortura del espíritu Judio, gay y gitano (KREMER, [?], p. 6).

A tarefa da lembrança é necessária como ferramenta de entendimento e formação da

história. A tarefa da metáfora é constituir atalhos para que os horizontes possam ser

transpostos e que se possa introduzir uma intersecção de sentido, entretecimento de ações e

paradigmas.

4.4.3 Horizontes de sentido indígena

A tarefa da memória crítica é uma etapa para a abertura do diálogo, defende-se nesta

tese que para ir ao diálogo é necessário estar com a prestação de contas em dia. E também que

se sabe de onde se fala, e assim, estabelece-se claramente as relações, pontos de contato e as

aporias que existem inevitavelmente entre o pensamento nativo e o pensamento ocidental.

Pergunta-se se é possível fazer esta observação, sem ter a perda de muitos fatores essenciais

para o modo de ser indígena. No entendimento, que alcançou com esta pesquisa, sobre os

indígenas passa pelo advento do fenômeno do Neoxamanismo urbano nas últimas décadas, e

como esse fenômeno religioso vem se propagando com grande rapidez. Identificou-se que as

intersecções entre o discurso indígena e a medicina rústica são atrativos para o ser humano

que vive desintegrado no meio da metrópole contemporânea.

Então, o ponto de partida, aqui, precisa levar em consideração que o que leva as

pessoas a estes grupos é o interesse em práticas curativas de ―origem‖ indígena, ou seja, não

ocidentais. E como é possível se analisar meio de conhecimento tradicional? Quais

ferramentas teóricas e métodos permitem pensar sobre esse fenômeno? Kremer enfrenta a

mesma dúvida, ―es la manera Euro-americana de conocer las prácticas curativas indigenas

compatible con la comprensión y uso nativos de estas prácticas? E continua:

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[…] realizo esta pregunta con el fin de promover la auto-reflexión de los

Euro-americanos desde una perspectiva indígena. Permiti me explicar un

poco lo que quiero decir con esto. Mis investigaciones y experiencias

trabajando con pueblos nativos – en ambos continentes América y Eurasia –

me han persuadido de que la única manera de apreciar y comprender

adecuadamente la vida, sociedad, mitología, cosmología, filosofía y ciencia

indígena es desde una perspectiva indígena. Dado que nací en Alemania,

nunca podría convertirme en un nativo-americano. Sin embargo, mis raíces

ancestrales se extienden hasta las tradiciones nativas Germánicas y pre-

Indoeuropeas de Europa, y mediante el compromiso y dedicación a ciertos

trabajos y prácticas puedo reconectar con esas prácticas antiguas curativas.

(Esto es lo que muchos ancianos nativo-americanos dicen cuando discuten

este tema.) Estas son mis raíces nativas. Desde esta perspectiva, como un

―Teuton nativo,‖ por así decirlo, puedo acercarme a otros pueblos nativos,

como los Diné Nativo-americanos (Navajos). De esta manera, la

conversación y la investigación pueden darse plausiblemente en un contexto

de intercambio, mutualidad e igualdad, en lugar de uno de apropiación. Sin

embargo, esto sólo puede ser posible si simultaneamente confrontamos los

obscuros hechos de colonización. (Además, gente de ascendencia alemana

necesita paliar las perversiones y abusos, pasados y presentes, de las

tradiciones nativas por ideologías fascistas.) A menos que los occidentales se

acerquen a las culturas nativas desde la perspectiva de la recuperación de sus

propias mentes ancestrales, la esencia de todas las tradiciones nativas

permanecerá siempre como el Otro – esto es, fundamentalmente ajena,

diferente, partida, separada, más allá del alcance de la identidad del

investigador (KREMER, [?], p. 7).

Quais são, portanto, os fundamentos deste processo de entendimento? Para entrar no

diálogo sem apropriação tem-se que ser, parafraseando Kremer ―teutons brasileiros‖, ou

nativos brasileiros. Muito rica e heurística essa questão, pois ao passo que se é brasileiro, não

se é nativo brasileiro, pois a formação é eurocêntrica.

Partir para o dialogo com os indígenas do Brasil é como um europeu falando com um

nativo, pois nesse horizonte de sentido, o sistema língua-pensamento é eurocêntrico. Ainda

defronta-se com os indígenas brasileiros como o ―outro‖, e acreditamos que esse exotismo

também esteja na raiz do interesse ressurgente nessas práticas.

O interessante da proposta de Kremer é o diálogo entre pares, mas para realizar essa

tarefa é preciso ter clareza de onde existe um ponto de encontro entre as duas culturas. Essa

tarefa da metafóra, como único processo viável de criação de intercâmbios possíveis, de

constituição de mundos congêneres, dentro desse universo, que a primeira vista é de conflito e

de negação. A ciência indígena estabelece seus padrões através da ordem natural, com isso,

quer-se dizer que seguem os ciclos naturais. Para os Dineh (Navajo), espiritualidade é a

ciência da luz-amor-vida-natureza em um conceito integrado. A vontade de amor, paz, beleza

e alegria dentro do sistema de pensamento é chamada hozho. Citando a escritora nativo-

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americana Pam Colorado, Kremer procura estabelecer quais são as principais características

da ciência indígena:

1. El científico indíegan es una parte integral del proceso de investigación y

existe un proceso definido para asegurar esta integridad.

2. Toda la naturaleza se considera inteligente y viva, siendo así una

compañera activa de la investigación.

3. El propósito de ciencia indígena es mantener el equilibrio.

4. En contraste con las nociones occidentales de tiempo/espacio, la ciencia

indigena colapsa el tiempo y el espacio con el resultado que nuestros campos

de investigación y participación se extienden y sobreponen con el pasado y

el presente.

5. La ciencia indígena se preocupa de las relaciones, tratamos de comprender

y completar nuestras relaciones con todos los seres vivientes.

6. La ciencia indígena es holística, se basa en todos los sentidos incluyendo

los psíquicos y espirituales.

7. El punto final de un proceso científico indígena es un lugar reconocido y

conocido. Este punto de equilibrio, al cual mi tribu se refiere como la Gran

Paz, es ambas cosas pacífico y electrificantemente vivo. En el regocijo del

equilibrio exacto, la creatividad ocurre, por lo cual podemos referirnos a

nuestra manera de conocer como una ciencia de la vida.

8. Cuando alcanzamos el momento/ lugar de equilibrio no creemos que

hemos trascendido nada – decimos que estamos en nuestro estado normal!

Siempre permanecemos corporealizados en el mundo natural.

9. El humor es un ingrediente crítico de toda búsqueda de la verdad, incluso

en los rituales más poderosos. Esto es así porque el humor equilibra la

gravedad.

Las motivaciones de las investigaciones indígenas y occidentales difieren

significativamente: Los curanderos nativos investigan con el fín de aumentar

la integridad y totalidad de la fábrica comunal, y para beneficiar a los

individuos que son la parte de la misma. En contraste, las investigaciones

occidentales de prácticas indígenas curativas rara vez benefician a los

pueblos investigados. (Sin embargo, provéen una manera de conocer las

limitaciones del paradigma de curación occidental, así como también

sucesos que los científicos occidentales normalmente consideran anómalos,

inexplicables o no existentes) (KREMER, [?], p. 9-10).

Ponto pacífico é a busca pela integralidade, diverso do pensamento ocidental, onde

existe a especialidade. Pode-se, portanto, retomar alguns exemplos; observa-se que os

discursos dos grupos de Neoxamanismo urbano não levam em conta a questão do estado

natural, como apontado nessa passagem, pelo contrário, o discurso é sempre salvífico. Pam

Colorado fala de um estado normal, não um estado de libertação, de iluminação etc., esta

fissura é devido o pensamento ocidental, da medicina e das práticas de tratamentos, que visam

o resultado infalível. A ciência moderna é iluminista, visa o esclarecimento, o pleno

desenvolvimento do individuo, é masculina, solar. As ciências indígenas são integrativas, o

indivíduo se realiza no coletivo, são práticas que tendem mais ao turvo, sombrio, noturno, é

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feminina, por ser relacional e lunar. Mas podemos identificar indivíduos de ambas culturas

transitarem entre horizontes de sentido diversos de sua matriz:

Las culturas nativas o indígenas son normalmente definidas de forma

comparativa con las culturas occidentales contemporáneas. Rara vez su

carácter contempráneo es resaltado; son o bien una cosa del pasado o un

residuo histórico de maneras de ser anticuadas y desfasadas. Las ciencias

occidentales iluminan lo que sus métodos las permiten ver. Raramente se les

da a los nativos voz directa o se entienden las racionalidades indígenas en

sus propios términos, desde adentro. (Uso los términos nativo e indígena

intercambiablemente y desde la perspectiva de la conciencia, no en un

sentido únicamente político o racial o de lugar origen – aunque todo es

importante). La conciencia occidental es una conciencia centrada en la

personalidad bien delimitada de su medio ambiente y de otra gente

(disociada de ellos), la conciencia oriental se define sí mismo entre los polos

de conciencia egoica y de su transcendencia en el estado de iluminación. La

conciencia nativa se define a sí misma en la experiencia de personalidad, ego

como agente, separada y simultáneamente conectada y permeable a otros

egos, la tierra, los ciclos estacionales, los espíritus y el mundo de lo

transcendente, los sueños, y los antepasados. Como tal, la conciencia

indígena es potencialmente accesible a todo el que esté dispuesto a poner el

trabajo y vivir de esta manera. Se puede ser nativo y vivir fuera de la mente

indígena y se puede ser europeo y estar en la mente nativa (KREMER, [?],

p. 18-19).

O intercâmbio de ideias é positivo, mas a de se tomar a devida precaução sobre a

imposição de horizontes de sentido, pois é tentador impor o modelo de pensamento ocidental,

a medicina alopática como parâmetro para as medicinas e pensamento nativos. Esta pode ser a

grande maldição do pensamento filosófico, quando se coloca diante da metodologia

acadêmica, e se é direcionado ao corte sistemático. Ao entender que a ciência indígena é

sistêmica, integrativa e comunitária, é inviável realizar o corte. Como realizar tal tarefa?

Las definiciones son un asunto engañoso en el contexto de un intercambio

cross-cultural que implica suposiciones qualitativamente diferentes sobre

casi toso (no simplemente diferencias en escala). Palabras como ―cultura,‖

―conocimiento,‖ ―ciencia,‖ ―nativo,‖ ‖indígena,‖ etc. parecen actuar

frecuentemente más como imanes de proyecciones, y a veces nuestra

comprensión parece decir más sobre nuestras propias ideologías y

presuposiciones, que del significado y contexto que una declaración intenta

evocar. [...] Hay alguna manera en la que podemos liberarnos de la

necesidad de definición verbales – del deseo de sujetar la cuestión con el

sofocante puño del rigor académico – de modo que podamos vislumbrar,

quizás en nuestra imaginación, la práctica viva de la ciencia indígena?

Entonces, quizás, en lugar de pedir a las mentes nativas que se acomoden a

la linealidad y monocausalidad de las definiciones satisfactorias en el

paradigma occidental, quizás es el momento para mentes entrenadas en las

formas de conocer eurocéntricas de expandirse hacia la naturaleza narrativa

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del ser-conocer. La colonización puede actuar sutilmente mediante la

invasión de las maneras más íntimas de se reconocer; definir algo en

términos del discurso dominante puede ser tal invasión. Desde una

perspectiva indígena, la mejor definición de ciencia indígena se encontraría

en la práctica ceremonial del conocimiento científico de una cultura o en el

intercambio tradicional de ese conocimiento descrito anteriormente

(KREMER, [?], p. 20).

Tais questões entram diretamente em conflito com o modelo acadêmico de produção

de conhecimento, e pressupõe a estrutura colonialista do pensamento eurocêntrico presente

em nossa cultura. De um lugar de privilégio do saber, onde não podemos deixar de lado as

―verdades‖ conceituais e dos modelos de pesquisa, quantitativo, qualitativo e tantos outros,

que são mais abstrações que fatos concretos. E a pergunta ―Qué tenemos que hacer para que

la ayuda ofrecida por los pueblos indígenas nos alcance en su totalidad?‖ (KREMER, [?], p.

20), permanece sem respostas claras.

Outro questionamento seria a mudança de forma de pensar, de comportamento; outra

seria uma metodologia capaz de integrar ambos os universos de sentido sem que haja grande

perda no processo. A fidelidade de um e outro no processo de tradução, pode vir de um

entendimento mútuo, onde cada par se coloca diante do outro como inteiro, sem demagogias,

a ratio xamânica pode ser o elo de comunicação, a metáfora que falta para essa conexão entre

mundos.

A metáfora do xamã é forte, quando se trata de viajar entre os mundos; talvez seja a

metáfora que servirá de linha mestra pra caminhar nestes dois horizontes de sentido. A tarefa

do xamã essencialmente é metafórica, é transposição de sentidos. Narrar e traduzir as

mensagens além-mundo para a comunidade ou para si mesmo. Essas mensagens vêm de

diversas esferas existenciais, dos mundos diversos e paralelos. Ele faz a interpretação,

utilizando metáforas, como ferramentas, desenhos, teatralidade etc., ele tem um arsenal

metafórico para tentar realizar a tarefa da lembrança. Sempre ciente que algo ficou pra trás,

que nunca é perfeita a mensagem, mas procura com todas as suas forças traduzir, o mais fiel

possível o que precisa se comunicado à comunidade.

Um ponto importante desse processo é que as ciências indígenas não precisam passar

pelo processo de validação da ciência eurocêntrica, ela é neutra nesse processo, e protegida

pela salvaguarda do patrimônio imaterial; não é da conta da ciência médica, apesar de hoje ser

um tema bem controverso, principalmente no que se relaciona com o uso de plantas e

fitoterapias, reguladas pela ANVISA no Brasil. Nesse contexto podemos andar com mais

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196

abertura conceitual, visto que não temos a pretensão de validar prática de medicina rústica,

ciência indígena ou culturas tradicionais.

As medicinas indígenas são cerimônias de renovação do mundo. As culturas não

ocidentais, não historiográficas tendem a manter ciclos anuais de restituição do tempo

primordial; as medicinas não são diferentes disso, elas tendem para a busca de integração

renovada. Esse processo cíclico do tempo permite acompanhar os ritmos naturais, de

plantação, de pesca, nascimentos, morte, batismos etc.

O indígena pode se relacionar com o modo de ser natural, ou seja, caso esse nativo

venha a perder-se do ritmo natural, ficar confuso e desorientado (pra muitas comunidades da

região do Acre se chama ―panima‖), as medicinas tendem a reorganizar o universo de sentido

do sujeito para a normalidade. Mas, se tratando de um sujeito que vive no meio urbano, que

está totalmente alijado desse universo de sentido, é uma reversão, pois para ele é uma

recuperação de uma origem perdida, que há muito está dentro de si, mas que ainda não tinha

se revelado. É a busca pela ancestralidade, por uma brasilidade, poderia se dizer. O sujeito

revertido tende a compreender o mundo como algo totalmente novo, mas como se sempre

tivesse sido dessa forma. Comumente ocorre mudança de hábitos, de vestimenta, alimentares,

de comportamento social etc.

Esse fenômeno é comum em muitas religiões, mas o que se quer trazer é a diferença

do termo reversão do uso comum em outras práticas religiosas que é o termo conversão. Neste

caso a pessoa não deixa uma vida para assumir outra, ela encontra a si mesma, algo que estava

adormecido dentro de si mesma e que não vai interferir na sua vida mundana, em verdade

pode até qualificar sua vida cotidiana, suas relações no trabalho, familiares etc. Uma das

tonantes do Neoxamanismo urbano é não se identificar como movimento religioso,

entendendo o Xamanismo como uma prática universal, sem contra indicações.

4.4.4 Concurso xamânico

Pode-se, portanto, determinar, que a metáfora opera uma esfera de concretude, onde

universos de sentido se encontram numa materialidade cultural. Percebe-se que a figura do

xamã é fundamental no trabalho de transposição, e esse processo ocorre na prática tradicional,

quando se propõe a traduzir esse universo de sentido, dos muitos mundos, para a comunidade.

Também é o veículo, por onde a ciência indígena se insere no universo urbano.

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É a capacidade de produção de experiências visionárias que caracteriza o

Neoxamanismo urbano, como elemento de constituição de narrativas. A prática do

Xamanismo se insere no contexto urbano, pela sua capacidade de tradução de um universo de

alteridade, onde o sujeito ―paranóico‖ encontra refúgio e sossego, dentro de uma prática não

ortodoxa e que promete a busca e o encontro de si mesmo, como um sujeito integral,

propriciando um espaço de convívio e troca de saberes, além de fundamentar uma identidade

de reversão religiosa.

O Neoxamanismo urbano é uma ferramenta de interação entre dois horizontes de

sentido, e com isso podemos dizer que reverte a esfera do discurso, que dentro das ciências

humanas busca fundar processos de validação. O Xamanismo propõe um concurso, na medida

em que trabalha para uma possível atuação comunitária, e não busca um discuso especulativo,

mas metafórico, elemento de retomada de uma memória perdida. Como aponta Kremer:

La agrupación en un círculo chamánica es el prototipo idealizado al que el

término concurso chámanico alude. Ésta sería un círculo donde la creación

comunitaria de la realidad se revisaría mediante conversación, así como

también mediante corporealización ritualizada; este círculo incluiría el

silencio, las historias, el humor, el teatro, el baile y otras artes. El nombre

concurso chamánico parece apropiado como un reconocimiento del hecho

de que los chamanes parecen ser el modelo primario de profesionales

activamente comprometidos en la creación y mantenimiento de mundos; son

personas que parecen ser conscientes (aunque no en el sentido Occidental)

de la relación entre conocer y crear y que se comprometen constantemente

en tratar cuestiones de alineación; ellos son, frecuentemente, conscientes de

otros mundos culturales, los respetan y encuentran maneras de envolverse

con ellos sin abandonar el mundo que ellos intentan mantener. Para ellos

conocer es la práctica de vivir. Vivir es la práctica de conocer. Ellos parecen

tener herramientas que pueden ayudannos a ser más conscientes del proceso

de conocer. Bean y Vane indican que ―los chamanes, teniendo control de

'estados alterados de conciencia,' eran especialistas religiosos encargados de

la relación entre [seres humanos] y lo sobrenatural..., filósofos en efecto‖

(1978, 662). Ellos pueden servir como modelos sobre como participar en los

fenómenos y permanecer consciente (en una manera nueva) de esa

participación. La chamanes a los que me refiero aquí no representar a

ninguna tradición en particular - son una abstracción, una imagen intertribal

de lo que considero la esencia de la forma chamánica de ser en el mundo

(ver Kremer, 1987b, para adicional discusión). Los chamanes en su

participación original han sido órganos de auto-conocimiento de su

naturaleza local y, frecuentemente, de sus ecosistemas enteros; los

académicos de la ‗participación futura‘ pueden recobrar esa sabiduría de

una manera nueva (KREMER, [?], p. 30).

Uma maneira nova de produzir conhecimento, o concurso xamânico pressupõe uma

linguagem nova, onde a reversão significa retomar o mundo com outro horizonte de sentido.

O campo da linguagem é onde podemos identificar este fenômeno de renomeação do mundo e

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dos mundos, a criação de e a capacidade de intersecção de discursos visando o processo

integrativo, o concurso como se andar junto, de promover uma tradução, onde podemos

encontrar dois horizontes de sentido atuando concomitantemente sem conflito, ou ainda, numa

trama de conflito que atua como elo. O Xamanismo é em seu caráter objetivo ocidentalmente

falando um sistema de linguagem:

Nesse aspecto o Xamanismo funciona de forma simbólica, pois a cultura que

o envolve é uma teia de significados, um sistema simbólico coletivo, público

e expressivo, portando é fundamental para organizar o universo e definir seu

lugar frente ao mundo. Assim, essa concepção está guiada por um conceito

dinâmico de cultura, que utiliza a simbologia dos ritos como forma de

prepará-los para enfrentar emoções e sentimentos presentes, de forma

individual ou coletiva. Normalmente após o rito há uma ―mudança de vida‖,

―mudança de pensamento‖, atuando frente ao mundo com uma nova visão.

Isso é parte fundamental do aspecto cultural, pois cultura se aprende, se

transforma. Assim sendo, um dos papéis principais que carrega o xamã é o

de curar. Isso ocorre através dos ritos que são expressões mágicas e/ou

religiosas que têm eficácia tanto instrumental, mudar o mundo, quanto

experimental, mudar a mente. Portanto, o Xamanismo pode ser considerado

um sistema cultural, pois trabalha o aspecto simbólico, porém também um

sistema social, pois destaca papéis onde o xamã é autor principal, mas não o

único no grupo e nas atividades sociais. Esse sistema complexo de

importante expressão cultural se preocupa com o bem-estar individual e

social, com a unificação e a harmonia do todo (SOUZA, 2014 p. 63).

Este sistema-linguagem mundo é um horizonte de sentido que insere no meio urbano

um meio de constituir novos sentidos, criar novas práticas e instituir modelos inovadores nas

práticas religiosas tradicionais. A condução das cerimônias, atendimentos terapêuticos, rituais

etc, está repleta de elementos simbólicos. A pena, o cachimbo, as folhas, os colares, as roupas,

os perfumes etc., são um universo material onde a pessoa pode se referenciar e ser

transportada para outro mundo; o modo de ser xamanista é o da reversão, narrativa que

promove um ambiente de metaforização dos gestos, palavras e conteúdo.

Esses mundos são nossa problemática, pois, por se tratar de um processo de narração

de elementos da memória coletiva de diversas comunidades indígenas, o Neoxamanismo

urbano, através de uma política de memória, inicia um processo de hibridismo, criando outra

linguagem diversa das duas anteriores. Este será o trabalho aqui almejado, delinear estes

horizontes de sentido, da cultura ocidental, da ciência indígena, e chegar ao Neoxamanismo

urbano, como lugar de recriação, de relegere, de reverção, de entretecimento de mundos.

O xamã é um modelador, ele usa a linguagem para possibilitar a tarefa existencial do

sujeito. O xamanismo atua como colaborador para a constituição do homem capaz, que realiza

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sua existência como um projeto em exercício. Sua ferramenta é a linguagem metafórica, a

narrativa visionária, o concurso xamânico, que possibilita uma poética como expressão da

vontade. Este é o ponto central do estudo final, onde o discurso encontra reflexo na prática

viva da identidade narrativa, nos processos de cura, da subjetividade e da constituição como

sujeito histórico.

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200

5 CAPÍTULO 5: A NARRATIVA COMO CATHARSIS, ETHOS E PHRONESIS NO

NEOXAMANISMO URBANO

―Je suis ce que je me raconte‖. (Paul Ricoeur)

O processo de reversão no Neoxamanismo urbano obedece a um caminho objetivo, de

uma objetividade ritual, de uma realização clara, que é a saúde, o bem estar, o que se nomeia

como saúde integrativa. A saúde também é meio pelo qual ocorre processo da tarefa da

memória crítica. Assim, com o ser humano é uma tarefa possível. A tarefa passa pela

produção das narrativas, como eixo central da prática neoxamânica urbana.

Neste momento do texto, são retomadas as teorias apresentadas no primeiro capítulo, e

que fundamentam todas as exemplaridades que apresentadas nos estudos anteriores através de

um método descritivo e hermenêutico. Ao longo desta jornada, foi possível apresentar muitos

exemplos de como se apresentam essas configurações que fundamentam as subjetividades e

identidades que nascem das narrativas visionárias. Essas narrativas podem ser apreciadas a

partir de um olhar mais apurado, devido à possibilidade que se teve de estabelecer as

tipologias e descrições variadas sobre o Neoxamanismo Urbano. Portanto, serão aplicar as

teorias levantadas ao longo deste trabalho.

A Mímises opera um processo de configuração e transfiguração, onde uma bricolagem

pode reverter um pensamento e uma postura pessoal global. A capacidade de reviver a história

narrada, onde toda boa história merece ser contata, mas também vivida, toma corpo e designa

um novo modo de ser, um possível entre tantos. A narrativa tem força transformadora e a

capacidade de liberação, de mudança e reversão. Como explica Kearney:

[...] as histórias possuem um poder catártico específico. Refiro-me, primeiro,

à ideia de que as histórias nos alteram, ao nos transportar para outros tempos

e lugares, onde podemos experimentar as coisas de outro modo. Este é o

poder de sentir o que sentem os miseráveis, nas palavras de Rei Lear. O

poder de saber como é estar no lugar, na cabeça, na pele de outra pessoa. O

poder, em síntese, da imaginação vicária (KEARNEY, 2012, p. 417).

A memória crítica advoga nesta direção, ―devemos fazer às vezes do outro‖, a

experiência vicária talvez seja a mais importante ferramenta de libertação. E também, quando

se fala que, dentro do Neoxamanismo urbano, ―cada um tem um xamã dentro de si‖, pode-se

afirmar que a reversão de pensamento, de viver a experiência do Xamanismo na pele, é um

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processo inovador e, eticamente em seus desdobramentos, do interesse desta tese. Estar na

pele do outro, mas também poder viver e experimentar ―eu mesmo‖ as narrativas repetidas

pelas histórias dos xamãs. Percebe-se na teia metafórica um ambiente propício para que todos

os participantes possam interagir diante de um sistema de sentido metafórico, onde todos

possam trocar experiência e narrativas. Onde um se cura, podem curar os outros, tal processo

se apresenta em diversas cerimônias, quando ao encerrarem os trabalhos todos fazem uma

roda de narrativa, onde devem ouvir atentamente o que o outro companheiro tem a dizer, as

felicidades e sofrimentos que o levaram até ali e como ele está superando e vencendo seus

males, um processo terapêutico de empatia. Como comenta Kearney:

Ao mesmo tempo em que é preciso distância, é preciso também que

estejamos suficientemente envolvidos na ação para que ela tenha

importância para nós. A catarse, como foi notado, nos purga pela piedade

assim como pelo medo. Por piedade (eleos) os gregos entendiam a

habilidade de sofrer com os outros (sym-pathein). A ação narrada de um

drama, por exemplo, nos solicita um tipo de simpatia mais extensivo e

ressonante do que aquele que experimentamos na vida cotidiana. E o faz não

somente porque goza da licença poética de suspender nossos reflexos

normais de proteção (que nos guardam da dor), mas também porque

amplifica o leque daqueles por quem poderíamos sentir empatia – para além

da família, dos amigos e familiares, abrangendo estrangeiros de todo tipo

(KEARNEY, 2012, p.418).

A empatia pelo outro é um processo que atinge seu auge no sistema de sentido

metafórico como ambiente simbólico e poético. Em que o sistema simbólico realiza um

conjunto de operações da linguagem, de intersecções de discurso, e aqui, mais uma vez o

xamã aparece como aquele que promove a conversação, o diálogo, e com isso sanador de

enfermidades:

Todos esses caracteres se encontram na cura xamanística. Aí também se trata

de suscitar uma experiência, e, na medida em que esta experiência se

organiza, mecanismos situados fora do controle do sujeito se ajustam

espontâneamenie, para chegar a um funcionamento ordenado. O xamã tem o

mesmo duplo papel que o psicanalista: um primeiro papel — de auditor para

o psicanalísta, e de orador para o xamã — estabelece uma relação imediata

com a consciência (e mediata com o inconsciente) do doente. É o papel da

encantação própriamente dita. Mas o xamã não profere somente a

encantação: ele é seu herói, visto que é ele quem penetra nos órgãos

ameaçados à frente do batalhão sobrenatural dos espíritos, e quem liberta a

alma cativa (LEVI-STAUSS, 1975, p. 229).

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Como na epígrafe deste capítulo80

, somos aquilo que podemos contar e recontar sobre

nós mesmos. O processo de catarse é extremamente rico, pois a narrativa é operadora de

transformações profundas no ser humano. E a narrativa operando a catarse tem a finalidade de

purificar nossas dores da alma, e a possiblidade de ouvir a narrativa do outro, seja o xamã,

seja o participante do grupo, pois nas cerimônias de Neoxamanismo urbano as personagens

xamã e participante se misturam, em uma única teia de metáforas, onde todos são ouvintes e

produtores de narrativas de poder.

A empatia é chave importante desse processo, ―esse poder de empatia com seres vivos

que não nós mesmos – quanto mais estranhos, melhor – é um teste supremo não só de nossa

imaginação poética, mas também de nossa sensibilidade ética‖ (KEARNEY, 2012, p. 418),

que para entendimento, proporciona a possibilidade de uma reversão do pensamento e da

memória ultrajada, para uma leitura crítica da história em torno de um ethôs xamânico, pois

todos os ―genocídios e as atrocidades pressupõem um fracasso radical da imaginação

narrativa‖, e ―[...] essa função narrativa de tornar presentes coisas ausentes pode servir a um

propósito terapêutico‖ (KEARNEY, 2012 p. 419-421).

Sobre essa questão, aprecia-se a oportunidade de trazer um relato de Kearney, que se

acredita fundamental para entender a função de liberação da catarse narrativa:

Um exemplo final de testemunho catártico que eu gostaria de citar aqui é o

de um sobrevivente do massacre armênio. Em uma noite no verão de 1915,

uma jovem mãe armênia escondeu seu bebê em um arbusto de amoras no

vilarejo de Kharpert, nas montanhas da Turquia oriental. A criança, que

sobreviveu à subsequente chacina da população do vilarejo pelas tropas

turcas, era Michael Hagopian, que oitenta anos mais tarde completou um

filme documentário chamado Voices from the Lake [Vozes do Lago]. A

matança de um milhão e meio de armênios é chamada de o genocídio

silencioso, já que foi sempre negada pelo governo turco. Hagopian passou

anos fazendo pesquisas para o filme, viajando muitas vezes para colher

testemunhos em primeira-mão e costurando os eventos que ocorreram

naquele ano fatídico. Uma das mais importantes evidências foi uma série de

fotografias tiradas por um diplomata americano que servia na Turquia

naquela época, e que ele enterrou ao partir do país, com medo de que elas lhe

fossem confiscadas. Muitos anos mais tarde, ele retornou e recuperou as

fotos, que estavam desbotadas e puídas, mas ainda eram provas das

alegações de que mais de 10 mil corpos haviam sido depositados num lago a

oeste de Khapert. Esta recuperação de imitações de uma ação enterradas

serviu como confirmação do relato de genocídio de Hagopian, comprovando

o ditado de que ―você pode matar um povo, mas não pode silenciar suas

80

FINS, Adélaïde Gregorio. Repenser l‘éthique à travers l‘imagination narrative et littéraire dans la pensée de

Paul Ricœur et de Martha Nussbaum. Bulletin d'Analyse Phénoménologique. Bulletin d‘analyse

phénoménologique XIII 2, 2017 (Actes 10, p. 478-493). p.486.

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vozes‖ (Montreal... 22 abr. 2000, p. 10). Ao permitir que essas vozes

suprimidas falassem afinal, após mais de 80 anos de silêncio, Hagopian

permite um certo retrabalhar da memória, ainda que de modo algum uma

cura. E isto é crucial para a obra da catarse: trata-se de reconhecer verdades

dolorosas – através da lacuna da imitação narrativa – mais do que uma poção

mágica que miraculosamente as resolva. A catarse é uma questão de

reconhecimento, não de remediação (KEARNEY, 2012, p. 420).

A observância do processo de retratação é uma iniciativa historial de cada pessoa, é

condição de possibilidade para existência, mas também de toda uma comunidade, não há

quem não esteja inserido historicamente. A história pessoal e coletiva como vimos no terceiro

capítulo é sine qua non para a realização de uma vida. Estão embricadas, e participam do

conceito de si mesmo em Ricoeur. Com esta perspectiva observa-se como se fundamenta esse

sistema de sentido metafórico e como ele pode ser espaço para uma poética da vontade, das

relações terapêuticas, onde se propõe uma criatividade ética, e a criação de modelos

contemporâneos éticos que deêm conta do processo de reversão que ocorrem nas rodas de

Neoxamanismo urbano.

5.1 A poética xamânica

O Xamanismo, em suas diversas acepções, está constituído dentro do campo da

metáfora, e da teia metafórica e de intersecção de discursos. Esta característica evidencía o

jogo de sentido e a possibilidade de metáforas vivas.

Como afirma Ricoeur, ―o objetivo de toda poesia é antes, parece, o de estabelecer uma

nova pertinência por meio de uma mutação da língua‖ (RICOEUR, 2000, p. 239), dar forma e

desviar a linguagem para campos mais frutíferos, além de produzir o sentido. Apreendem-se,

a partir desse campo de sentidos, as coisas mesmas, o mundo e as estruturas que atravessam o

discurso, pois o ―discurso está sujeito às coisas‖, e se ―refere ao mundo‖. (RICOEUR, 2000,

p. 332).

O ―Xamanismo‖ como conceito geral, se caracteriza como campo de referência onde

podemos conotar diversos sentidos, desde o horizonte de sentido indígena ao Neoxamanismo

urbano. Como metodologia de contato com o ―sagrado‖, o Xamanismo se apresenta como

―obra‖, ou seja, como campo de referência de onde se busca o sentido e uma totalidade, que

por sua vez gera um mundo. A rede de traduções metafóricas, que obedecem à aproximação

ou distanciamento do campo do Xamanismo indígena, leva a crer que exista um campo de

sentido, que possibilita a conexão com as diversas categorias de Xamanismo, como um

discurso totalizante, e como campo de referência. Um exemplo é o uso do fogo, que embora,

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sirva a diversas finalidades, no campo de referência do Xamanismo ganha sentido diverso do

uso corrente, a saber, uso mágico.

A metáfora do fogo, por exemplo: no cachimbo, quando o fornillho é aceso representa

a transformação, é uma aparição metafórica, no sentido que o fogo é posto em outro contexto,

e no mesmo campo de referência, mas com uma função específica. Poderia se dizer que é uma

função denotativa, afinal o fogo queima, e o fornilho queima, mas ele queima os espíritos

malígnos, e assim, age a metáfora, não como uma figura de linguagem ligada apenas ao fogo,

ou seja, fogo que queima a madeira e queima também o mal, mas algo mais profundo, cheio

de sentido, e a metáfora é antes um ―poema em miniatura‖, ―que intercepta a referência e, no

limite, anula a realidade‖ (RICOEUR, 2000, p. 339).

Anular a realidade, não é aqui entendido como um processo de ilusão, mas uma

inovação semântica no contexto do discurso. Há abertura para uma nova experiência tratada

sobre esse ângulo, onde a realidade se apropria de novos parâmetros. Por outro lado, não

devemos limitar a poética ao poema, pois quando falamos de referência não estamos apenas

lidando com o campo denotativo, ex. fogo queima, mas também com uma dupla acepção,

poética, ex. fogo liberta, rompendo os limites de uma ―explicação‖ empírica para um campo

poético metafórico. O sentido metafórico tende a romper a interpretação literal, cunhando um

jogo de linguagem maior e mais complexo, pois a metáfora é um ver como (RICOEUR, 2000,

p. 352).

O que é ―metaforicamente verdadeiro‖ e o que é ―literalmente verdadeiro‖ participam

do mesmo mundo, e são aspectos importantes da realidade, o que não anula a constituição

poética de ambos os casos, na medida em que o que é ―literalmente verdadeiro‖ já contém em

si o metafórico, para poder si dizer literal. A metáfora estabelece um modo no plano do

discurso. Não é somente a imagem do fogo que ganha um campo de semelhança, podemos

dizer que o fogo queima, e no cachimbo, queima os espíritos malignos, mas também que uma

família de sentido se conecta com o termo de forma poética, queimar um papel é desapegar de

coisas ruins, sentar ao lado da fogueira é livrar-se de todo mal.

O fogo deixa de ser literal em sua totalidade, ganha poeticamente um campo

metafórico, uma rede de leituras, até chegar à vela acessa na sala do neoxamã, que além de

carregar esta visão metafórica do fogo, ainda está repleta de referências, que vêm dos usos

religiosos da vela, no campo esotérico, cristão etc. Quando o Guarani vai para o fundo da opy

(casa cerimônial) com o petynguá (cachimbo) em mãos, ele vai conversar com Nhanderu

(TESTA, 2008).

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Todo o sentido literal de acender um cachimbo e andar dentro de uma casa perde a

importância, tudo é poético. O caminhar é poético em medida que constitui novos mundos, e

quando inicia o trabalho xamânico, nada é literal. Diante disso, remete-se a um ―esquema‖ da

linguagem no modo xamânico. A palavra dita no trabalho xamânico já não é mais denotativa,

nada pode ser literal, agora o reino do símbolo é que determina a teia metafórica. Quando

evocada, a palavra xamânica cria um novo campo de referência, tudo passa a ter novo sentido,

e tudo o que acontece tem um novo campo de constituição, um ―magnetismo‖ para que a

―realidade‖ empírica seja antropofagicamente refeita.

A palavra xamânica cria um modelo, como Ricoeur quer designar, uma metáfora

continuada, rede de metáforas, e não um enunciado estático, mas um campo sistêmico

simbólico. Uma tensão vivificada, onde a relação entre as diversas operações da linguagem

configuram a metáfora como modelo para o discurso por fundição, aproximação e

combinação de termos (RICOEUR, 2000, p. 381). As conexões da rede metafórica caminham

num campo próprio ao xamânico, e toda palavra, todo gesto remete ao ato ―mágico‖ que

constitui a realidade em ato. Essa poética é uma poética do possível, da constituição de

possibilidades diversas, a partir de olhares intencionais. E a existência do ser humano já é um

êxtase temporalizante intencional, em medida que:

Reconhecer a essência da consciência criadora como ―êxtase

temporalizante‖, é reconhecer que o homem é uma transcendência finita

comprometida num jogo temporal de presença-ausência. É apenas quando a

existência humana é compreendida como êxtase ou transcendência temporal

que o homem pode ser compreendido na sua verdade. O homem é a

existência intencional que cria simultaneamente o seu mundo e a si mesmo

superando aquilo que está presente – no tempo e no espaço – para se dirigir

para aquilo que está ausente (KEARNEY, 1997, p. 43).

A experiência intencional é inerente à condição humana, em todos os momentos da

vida; aqui queremos observar esta dinâmica de modo a compreender dentro do modelo da teia

metafórica esta possibilidade extática, onde o sujeito se coloca na posição consciente recepção

de novos sentidos, nesta dialética entre presente e ausente, onde o participante do encontro

xamânico abre mão da materialidade da realidade, em busca de uma consciência ausente, um

por vir.

Esta dialética, entre presente e ausente, é intensificada na rede metafórica e simbólica,

que cria um campo de referência para a compreensão, a partir do modo xamânico, para a

―realidade‖ constituída, durante a vivência. Esse processo de criação incessante do ser

humano, ganha no campo de referência xamânica um sentido nomeador, e durante a vivência

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206

toda a concepção de mundo e toda experiência de conhecimento criativo é mediado pela

temática xamânica e sua rede metafórica. Justamente porque o ser humano é criação

incessante, segundo Kearney:

Mais precisamente, descobrir que o homem é uma transcendência extática, é

descobrir que ele existe criativamente ausentando-se de tudo aquilo que está

presente, para tornar presente aquilo que está ausente (ou ainda não

presente). O mundo e o si não são presenças dadas. O homem cria o seu

mundo, quer dizer, o sentido fundamental das pessoas, coisas ou obras que o

rodeiam, criando-se a ele mesmo (enquanto transcendência que desoculta o

sentido do mundo). O homem é criação que se cria (KEARNEY, 1997, p.

43).

Caracteriza a relação de criação como a possibilidade dessa dialética, onde o sujeito

cria intencionalmente a presença-ausente. A síntese desse processo é um devir continuado,

que acreditamos estar na base da possibilidade da criação de sentidos e modos de ser.

Esse recurso intencional é motivado por um campo de referência, no caso, a rede

metafórica xamânica é o ausente, que se torna presente no momento da vivência. Pois o

sujeito imerso nesse devir na realidade ordinária do discurso literal da evidência vida

cotidiana, busca nesse universo de sentido um possível, dentre muitos possíveis, que tem

como principal campo de criação o universo simbólico xamânico. A experiência extática

intencional ensina que existe uma busca incessante de transposição espaço temporal. Ou seja,

um modelo metafórico, que constitui a condição humana. Tais êxtases intencionais podem ou

não incorrer em metáforas vivas, pois estas relações de constituição da consciência

intencional têm um universo infinito de ausentes para se presentificar; e muito desta base

referencial é da metafísica clássica, mas que ainda figura o imaginário humano.

A perspectiva, que se alia a este trabalho, pressupõe a possibilidade que, durante uma

experiência controlada em que o sujeito está imerso numa rede metafórica específica, no caso

a xamânica, ele a terá como base principal, e o que ele busca, enquanto êxtase intencional

temporalizante será a presentificação de um campo ausente repleto de símbolos xamânicos,

diferente da mesma condição em momentos diferenciados, onde o campo de referência é

outro. Obviamente, que, em contato com a rede metafórica o sujeito ainda está imerso no seu

próprio campo de referência e mesmidade, como sujeito no mundo, mas, o que se quer

salientar é a possibilidade, de experiências, controladas e coordenadas dentro de modelos

metafóricos específicos, apresentarem a possibilidade de modos metafóricos temáticos, a

partir de horizontes de sentido e possibilidade. Essa relação é sempre de apropriação de um

não familiar, para um familiar e vice-versa, num círculo virtuoso.

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Assim, segue-se para o cerne da questão, que é se, nessa experiência controlada,

dentro de uma teia metafórica podemos constituir uma poética do si. Relação esta que se está

estabelecendo com a possibilidade de uma interpretação que vise uma abertura de mundo, que

justifique uma poética contemporânea, que vença a ideologia vigente e possibilite narrativas

criadoras de novos modelos sociais, através do processo de redescrição, como apresentado no

primeiro capítulo. E neste momento retoma-se o estudo inicial, das narrativas visionárioas,

mas com outra perspectiva, a de um desdobramento ético e da imaginação social.

5.2 Narrativas curativas existenciais

As narrativas no contexto da catharsis abre um horizonte novo de estudos, visto que

nesse âmbito a narrativa pode operar manifestações de cunho subjetivo profundo e ainda

causar uma mudança comportamental, por assim dizer, existencial, que permite que a

metáfora tenha um campo de atuação transformador. As histórias têm a capacidade de

produzir transformações qualitativas e quantativas na vida de uma pessoa. O sujeito é uma

singularidade existêncial, que sofre diretamente a narrativas, e encorpora a sua história de

vida, em sua realidade psíquica.

Podemos descrever tal experiência como um exercício que o ser é capaz de realizar

através da memória, para atuar sobre si mesmo. Em um estudo orientado em Uberlândia por

Tommy Akira Goto81

, realizado pelo pesquisador Thaíke Augusto Narciso Ribeiro, é possível

constatar alguns exemplos, segundo os pesquisadores:

Neste panorama argumentativo, observamos que para Luz (1997), pode-se

atribuir às práticas neoxamânicas esta classe de prática ou medicina

―alternativa‖ ou ―complementar‖. Sobre essa questão destaca-se também o

pesquisador Stanley Krippner (2007), professor de psicologia na Saybrook

Graduate School e responsável por estudos da consciência. Ele tem afirmado

que o estudo psicológico do Xamanismo tem algo importante para oferecer à

neurociência cognitiva, à psicologia social, à psicoterapia e à psicologia

ecológica. Além disso, o autor explana que a respeito das práticas de cura,

xamãs, psicólogos e psiquiatras demonstram mais similaridades do que

diferenças. Nas palavras do próprio autor (2007), ―há métodos xamânicos

que se assemelham muito às contemporâneas terapias comportamentais,

hipnoterapias, terapias familiar e comunitária, farmacoterapia, psicodrama e

interpretação dos sonhos‖ (GOTO; RIBEIRO, 2007, p.8).

81

Tommy Akira Goto é professor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia

(UFU), Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas (2007), Mestre em Filosofia e Ciências da Religião pela

Universidade Metodista de São Paulo (2002).

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208

A eficácia do Neoxamanismo urbano atrai grande parte dos seguidores por

experiências que resultam transformativas. A possibilidade de produzir suas próprias

narrativas ao modo dos xamãs tradicionais indígenas fascina e contribui para os processos

curativos de diversas patologias. Intenta-se verificar, na sequência, alguns relatos analisados

na pesquisa supracitada:

Para o colaborador Condutor 2 (C2), ser neo-xamanista é compreender a

unicidade entre nós, a natureza e entre todas as coisas. É ser feliz de forma

prática e plena, o que se expressa por sentir liberdade e paz incondicional e

desenvolver a capacidade de relacionar-se e amar a tudo com naturalidade. É

também ser humilde, ter fé, e ter coragem, força, vontade e firmeza para

aceitar quem se é e mudar aquilo que se quer, seja interior ou exteriormente,

por nós mesmos, pelos outros e/ou pela humanidade. Neste sentido, é

transformar-se e estar consciente de tais transformações; gera-se, assim,

autoestima e autonomia. É, ainda, unir as vivências exteriores e as interiores,

visando a integrar tudo que somos e vivemos alterando todos os aspectos da

vida, a fim de esclarecer a realidade oculta. É aprender vivenciando,

seguindo o caminho único da natureza e perceber e viver sua profunda

beleza e apoderar-se daquilo que nos é dado pela natureza, pelo Criador, da

própria vida e da responsabilidade de curar a si mesmo. É também curar-se

de uma angústia existencial que não se resolve exteriormente. É, por fim,

cultivar dons e sentimentos mais nobres, como a alegria e o autoamor

(GOTO; RIBEIRO, 2007, p. 14).

Curar a angústia existêncial é um processo interior, de produção de sentidos. As

metáforas são responsáveis por transpor significados antigos pelos novos, e atuando sobre a

produção de representações na realidade psíquica do praticante. Embuído do discurso

neoxamã ele elabora toda a realidade circundante e interna. Em outro relato observa-se como

o Xamanismo se apresenta como prática devocional:

[...] o Xamanismo é um caminho devocional. Nossa devoção é uma devoção

por esse fluxo, e como ele se manifesta, nossa devoção é uma devoção às

pedras, às plantas, mas não no ser pedra [...], na planta que ta ali, é uma

devoção à consciência divina que mora ali por trás, né? E que mora em tudo

aquilo que é vivo, né? [...] o Xamanismo não é só a mente, [...] pra ser

praticado é necessário desenvolvê os aspectos devocionais [...] (SIC, C2, p.

11) (GOTO; RIBEIRO, 2007, p. 16).

A devoção pelo fluxo é um tema contemporâneo e também próprio do modo

xamânico, que aparece constantemente no Neoxamanismo urbano como forma de expressar a

experiência continuada que a metáfora desse discurso pode operar, criando redes infinitas de

transposições de narrativas e orientando novas narrativas que se dobram ao fluxo da

linguagem metafórica. Pode-se ver como a metáfora existencial leva a uma prática. Do

discurso à ação. Imputando o sujeito num campo ético, como a metáfora xamânica, o Mythos

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é retomado como estilo de vida. A metáfora existencial é uma ação que foi gerada por uma

narrativa dentro do modo Catharsis narrativo, que opera a transformação em ato de

recepcionar a mesma.

Essas narrativas se são modos endógenos à memória, que passa por um processo

crítico; rastros de memória que são reelaborados com vistas à metáfora continuada, ora, se a

metáfora opera em diversos campos de constituição de discursos, desde a visão de mundo,

realidade psíquica, ela também atua nos processos de apropriação de traumas e memória

ferida, transpondo a metáfora sobre a memória danosa e propondo reconciliações interiores.

Outro exemplo a se considerar:

São experiências de integração. União. Em que você consegue amar até

mesmo aquela pessoa que você tanto desdenha, não gosta. Que você

consegue ver as luzes dessa pessoa, a importância dela, e ao mesmo tempo

você vê as suas próprias sombras. Então você passa a se conhecer melhor e

conhecer ao outro. E você perdoa o outro e se perdoa. E é muito mais fácil

amar. Porque aí faz sentido. É mais fácil amar quando você conhece

verdadeiramente (SIC, P2, p. 4) (GOTO; RIBEIRO, 2007, p. 17).

O discurso vai desde a prática ritual, até a reelaboração da memória, criando um

procresso de perdão, formando outro sujeito, que mora na metáfora e abriga suas teias de

configuração do mundo. A concordância neste processo de empoderamento, assim como a

teia das metáforas, aparece em diversas narrativas apresentadas na pesquisa:

O colaborador C2 traz um rol de variantes em sintonia com este primeiro

invariante, sobre a conexão consigo mesmo. Conta que ser neoxamanista é

também ter coragem, força e vontade para aceitar-se e para transformar-se de

forma prática e consciente, interior e exteriormente. Aqui, temos a

concordância de P2. Para o colaborador C2, ser neoxamanista é empoderar-

se; desenvolver autoestima, autonomia, assumindo-se a responsabilidade da

própria vida e da própria saúde. Não para menos, narra, em sintonia com o

colaborador C1, que se curou de profunda angústia existencial (GOTO;

RIBEIRO, 2007, p. 19).

A aquisição da narrativa como uma experiência de cura existencial, profunda, onde as

discordancias aparecem como espaço de aprendizado e estima de si, de domínio de si, e todas

estas narrativas, operam uma direção da narrativa propriamente dita, para a ação efetiva.

Vemos claramente o movimento, que a teia metafórica oferece, de num primeiro

momento elaborar e se apresentar como conteúdo estético, campo de referencia do discurso.

Num segundo momento se configura como modo existencial, operando processos narrativos

de transformação pessoal, e orientando para uma leitura da metáfora como ação, modo

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necessário para efetivar as experiências vivenciadas durante os ritos do xamanismo urbano.

Vejamos mais este relato:

Eu sei que... tem me feito muito bem, eu tenho tido muita saúde desde então.

[...] Eu sempre fui a pessoa que me enfermava muito... Curei... praticamente

tudo. Minhas alergias, minhas asmas, bronquites... A partir do momento que

eu reconheci quem eu era e comecei a me respeitar, meus tempos internos.

(...) A partir do momento que você começa a se curar, naturalmente você vai

curando seu entorno (SIC, C1, p. 4) (GOTO; RIBEIRO, 2007, p. 23).

O processo de Catharsis oferece uma oportunidade de atuar no mundo, na realidade,

mudando também o seu entorno. Agindo, portanto, eticamente e tal processo de adoção de

novas perspectivas existenciais é fruto da capacidade humana de modalização da identidade

narrativa. Tal aspecto será visto com maior profundidade, a identidade narrativa oferece

diversos aspectos que precisam ser apurados antes de outros passos serem dados no campo da

ética, pois é movimento natural, da ipseidade, identidades que vai desembocar no ethos.

Nesse sentido, a ipseidade como horizonte terapêutico visa restituir esta capacidade de

empoderamento da constituição narrativa, como foco central. Sendo assim, introduz-se para a

próxima etapa da tarefa menciada. A tarefa de ser alguém, a relação fundamental da filosofia

ocidental, o Ser, o centro da quirela do pensamento. Ao tratar dessa temática somos pegos

pela aporia de entrelaçar o pensamento filosófico vigente e a sabedoria dos povos ameríndios.

Segue-se, portanto, discorrendo sobre a aporia entre materialidade e consciência.

5.3 Ser-alguém e mero-estar: considerações acerca do ethos.

Existe uma encarnação do cogito, ele não é pura abstração, há seguramente raízes

corporais que fundamentam a experiência vivida. O ser é em sua definição um realizador da

vida, mas não é só um sentido a se realizar, é também uma vida a si fluir. Como comenta

Ricoeur, ―reconhecemos aqui o movimento do pensamento de Gabriel Marcel que une a

redescoberta da encarnação a um reflexo do pensamento no objeto, a uma conversão da

‗objectividade‘ na ‗existência‘ ou, como ele dirá mais tarde, a uma conversão do ‗problema‘

em ‗mistério‘‖ (RICOEUR, 1967, p. 18). Esta postura pede a saída do posicionamento

solipsista, e envereda pelo aspecto involuntário.

O involuntário existe como uma força hostil. Não é domável, pelo contrário é

observável somente diante da decisão, diante do inesperado. Só é possível, portanto, conhecer

a vontade pelo fato de que se é tomado endogenamente por elementos incontroláveis. Nesse

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mesmo processo de reciprocidade, é que se determina o que é o involuntário, pela a

capacidade de vontade. Assim como as emoções, hábitos,

[...] adquirem um significado completo apenas em relação a uma vontade

que eles solicitam, inclinam e, em geral, afetam e que, em troca, corrigem

seu significado, isto é, determina-os pela sua escolha, move-os pelo seu

esforço e os adota pelo seu consentimento. Não há inteligibilidade adequada

do involuntário, apenas a relação do voluntário e o involuntário é inteligível.

É, por comparação, que a descrição é a compreensão (RICOEUR, 1967, p.

8).

Esta estrutura é conflitiva, mas não dualista, é uma reflexividade do vivido, a

possibilidade de interação das qualidades finitas, corporais e a totalidade de um cogito puro.

Não há um ponto lógico onde começa um e termina o outro, mas dessa experiência vívida se

pode deter a possibilidade de constituição do sujeito ético. Observa-se, então, um testemunho

bastante útil para esta pesquisa e demonstra esta capacidade humana da falha, do mal, e da

possibilidade de reversão pelo modo xamânico. Este relato é parte de um estudo sobre o uso

ritual da ayahuasca por um aluno82

de psicologia da PUC-SP, que relata, de forma nítida tal

processo de conflitivo com a sombra, o involuntário interior:

Querendo vomitar, fui andando curvado para o lado de fora da oca e me

sentei no chão. Fitando o espaço a minha frente, onde mais adiante se

encontravam árvores e ainda mais a frente, um lago, fechei os meus olhos e

comecei a ver uma série de rostos destorcidos e de aparência maligna. De

repente, notei que estava rodeado pela presença de formas e seres malignos,

que se mostravam com um aspecto malicioso, como espíritos ruins que de

algum modo queriam me fazer mal. Lembrando-me de experiências passadas

similares, mantive-me firme e olhei bem para eles. Assumi que eles não me

dominariam, que eu trabalhava para a Luz e que não seria tomado ou

submetido por eles. Comecei então a iniciar uma reflexão, onde em até que

ponto eu não era como eles. Ali fui me dando conta de que também sou

sombra, de que, de alguma forma, há um ser escuro, estranho, malicioso e

perdido em mim, que está aí para ser trabalhado, encontrado e iluminado.

Deparei-me de súbito assim com o mal em mim, com a minha sombra. Eu

estava de frente para aquilo que é denominado por todos nós de ―O Mal‖, e

eu o via como constituinte também daquilo que sou. Convidei a mim

mesmo, aquela matéria escura, a se apresentar diante da Luz. Eu estava

convidando a mim mesmo a me colocar diante da Luz, a ser trazido à

claridade daquilo que resolve se dispor a ser conhecido. Desafiei-me. Ela, a

sombra – eu – tão zombeteira, tão caótica, tão maliciosa: se era mesmo assim

tão esperta, que se apresentasse, que se revelasse a Luz! Fui tomado então

por uma claridade súbita, porém sutil. Foi como se as formas que antes me

acompanhavam se dissolvessem no espaço. Tomei consciência, de modo

82

Tarik Ganizev Jimenez frequenta a centro xamânico Porta do Sol, e decidiu fazer o trabalho de conclusão de

curso em Psicologia estudando seus relatos pessoais de visões extáticas a partir de uma leitura fenomenológica

com base no pensamento Heideggeriano.

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parcial, de outras formas que ali me rondavam. Eu só as sentia e as via como

vultos de forma humana levemente contornados. Senti que deveria levantar-

me, mas resisti. Um deles chegou bem perto de mim e disse para eu me

levantar. Levantei-me. Percebi ali, em pé, naquele momento, que ser um

iniciado significa: ser colocado diante do Mal, de nossa sombra, e a

conhecer, a trazer à luz. Ser um iniciado significa trilhar este desconhecido

caminho onde nós e tudo o mais passa a nos ser revelado. Assim, considerei

que era o momento de ir até o altar no centro do salão e me apresentar diante

da Luz, me apresentar como disposto a trabalhar com ela. Sentei-me na

frente do altar, uni as palmas das mãos em oração e fechei novamente os

olhos. Todos dançavam em volta de mim, dançavam a própria Força: era a

vida, era a morte, era o tempo que dançavam; era o desconhecido, a

consciência, o prazer, o medo; era o bem e o mal: meus companheiros

dançavam os mistérios da existência, e ali todos nós juntos os louvávamos e

aprendíamos: éramos os eternos iniciados, pois ali, todo o tempo, toda a

eternidade se fazia presente (JIMENEZ, 2017 p. 55-56).

No relato acima, percebe-se claramente a presença de forças involuntárias, aqui

representadas pelo mal. À busca do autor aqui foi procurar uma reflexividade com as sombras

que aparecem, a partir do posicionamento de estar na ―luz‖, e por ter aprendido com

experiências anteriores, a lidar com o adverso a si mesmo, mas também como forma que

nasce de si mesmo, como mal que eu posso fazer, mal de mim mesmo. Como conhecer a si

mesmo, é um caminho voluntário diante do que se apresenta como incomensurável. Ver-se

sombra, é um tema figurativo no Mythos xamânico, quando tratamos, por exemplo, do xamã

como esqueleto, e também pelas desfigurações, desmembramentos etc., após enfrentar o mal

insuperável, a luz se apresenta como reversão a partir de uma postura ética, de um modo de

ser da tradição, qual seja, trabalhar para a ―luz‖: ―Assim, considerei que era o momento de ir

até o altar no centro do salão e me apresentar diante da Luz, me apresentar como disposto a

trabalhar com ela‖ (JIMENEZ, 2017 p. 56).

O autor, no relato, se identifica como iniciado, o que garante a ele autonomia diante

do involuntário, o que caracteriza a narrativa como metáfora continuada, dentro do horizonte

de sentido do culto. Ele realiza uma autoanálise no texto, e chega a conclusões muito ricas de

sentido e demonstra como a experiência anterior, de já ter vivenciado tais visões em outras

ocasiões, foram fundamentais para a assimilação dessa vivência, o que mostra a importância

da ipseidade como modalizador das narrativas visionárias, com a estruturação dos traços de

memória. Segue o relato:

Sobre estas experiências passadas, vale antes de mais nada, uma nota: houve

um ritual em que eu me deparei com formas e rostos muito similares. Porém,

naquele ritual, mesmo os reconhecendo como ―malignos‖, eu sorri para eles

e os permiti ―passarem‖, não ofereci qualquer resistência ou mesmo me

coloquei em qualquer via de reflexão durante acontecimento. Mais adiante,

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me percebi sendo maltratado por aqueles ―seres‖ durante horas após o ritual.

Desta experiência, aprendi, entre outras coisas, que é preciso tomar cuidado

com os contatos que eventualmente travamos no estado-de-transe. Tendo em

vista esta experiência passada, agi diferentemente nesta oportunidade. Vale

notar que minha atitude durante o acontecimento não foi a de os mandar

embora, ou mesmo, de simplesmente tentar mudar de ―visão‖: resolvi olhar

firme para aqueles rostos, e assumir a minha posição perante eles. Este novo

modo de responder ao fenômeno tem em seu fundamento minhas

experiências passadas, portanto, vale dizer que se apresenta como resultado

de um processo de aprendizado. Mas, também, tem em seu fundamento um

sentido que pré-reflexivamente sempre carreguei comigo, desde o início de

minhas experiências nos rituais: a noção de que absolutamente tudo com o

que me deparo, tudo que me é apresentado durante o ritual, tem a ver

propriamente comigo e com a minha existência. Nada é por acaso, afinal,

tudo se apresenta já a partir de um sentido. Sendo assim, por alguma razão

eu me deparava com aqueles rostos e formas. Eles possuíam algo ali para me

contar, logo, eu deveria mergulhar naquele acontecimento a fim de descobrir

o aprendizado que eu haveria de colher. Tendo isso em vista, eu não poderia

simplesmente os mandar embora (JIMENEZ, 2017, p. 60-61).

Nesse relato o autor mostra plenamente a possibilidade, e esperança de imputabilidade

da qual foi dedicada boa parte deste estudo. A imputabilidade sobre as próprias experiências

mediadas pelo aprendizado, ou seja, pela permanência de si ao longo do tempo, retendo as

lembranças e aplicando a partir da relembrança no fenômeno visionário. A estima de si neste

caso é fundamental, pois em outros modos de vivência religiosa o autor teria problemas, seja

do ponto de vista psicopatológico, seja do ponto de vista moral (poderia estar conversando

com demônios, o diabo, etc.). O fato de estar dentro de um campo simbólico que favorece a

ipseidade fortifica o vivido e a experiência de protensão é estruturada de forma relevante.

Obviamente nem sempre se tem relatos tão ricos, e com a possibilidade de autoanálise como

viisto nesse caso; estudos como esse enriquecem muito a área de pesquisa. Inclusive, esse

relato possibilita dar continuidade ao argumento sobre a possibilidade de uma tarefa ética.

O ser humano é capaz de optar, de escolher se vai ou não enfrentar o mal, porém é

assombrado pela falha humana. E nisso é preciso avançar numa ética, na complexa relação

entre voluntário e involuntário, mesmidade e ipseidade. A linha de divisão entre pensamento

ameríndio e as ideologias ocidentais imbricados nos grupos de Neoxamanismo urbano são,

sem dúvidas, local para averiguar a teoria que se elabora neste trabalho.

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5.3.1 A falha ontológica e memória crítica

Na medida em que há ações voluntárias, que ajudam a compreender elementos

endógenos, também há más vontades, ou seja, o homem é falível, pode cometer o mal por

vontade e não somente pelo erro. Nesse campo aponta-se para o caráter ético das políticas de

memória, citados nos estudos anteriores, a retratação histórica e a personificação do

pensamento ameríndio no meio urbano. O esquecimento é um movimento que agride a

memória, é uma desproporção entre o finito humano e a infinidade do conhecer e da

perpetuação da cultura. É do interesse desta pesquisa em especial a incapacidade da memória,

pois como se pode notar, ela determina a reflexividade de uma identidade narrativa saudável,

da mesma forma, uma ipseidade comunitária não pode perder de vista a história, a memória

crítica e a lembrança como aprendizado.

À possibilidade do esquecimento acrescenta-se o mal em si como elemento fundante

da condição falível, é um horizonte involuntário, porém o mal pode ser praticado como ato da

vontade, o que caracteriza como uma falha ontológica. Nesse contexto Ricoeur utiliza o

conceito de falibilidade, que é útil no que tange a posição do homem como exposto a falha:

Al pretender que la falibilidad sea um concepto, presupongo de entrada que

la reflexión pura, es decir, uma forma de comprender y de comprenderse que

no procede por imagen, símbolo o mito, puede alcanzar cierto umbral de

inteligibilidad em donde la posibilidad del mal parece inscribirse em la

constitución más íntima de la realidad humana. La idea de que el hombre es

frágil por constitución, de que puede fallar, es, según nuestra hipótesis de

trabajo, totalmente accesible a la reflexión pura; designa uma característica

del ser del hombre. Como dice Descartes al comienzo de la IV Meditación,

este ser es tal que ―me hallo expuesto a uma infinidad de fallos, de modo que

no debe extrañarme si me equivoco‖. Esto es lo que quiere hacernos

comprender el concepto de falibilidad: la forma em que el hombre se ―halla

expuesto‖ a fallar (RICOEUR, 2011, p. 21).

Para esta questão da exposição do homem à falha ontológica, ao esquecimento, Paul

Ricoeur elabora uma hermenêutica que nos impulsiona na direção de uma fenomenologia

capaz de compreender essa ação do ser. Busca-se aqui por o homem capaz de manter a

memória, de constituir história e ler-se nesse processo como sujeito narrativo, sendo a

memória uma alavanca que eleva o sujeito à condição de executor da história, enquanto o

esquecimento é uma perda dessa capacidade:

É enquanto possibilidade de perda do passado que o esquecimento se revela

como inquietante ameaça para toda tentativa de fenomenologia da memória

e de epistemologia da história. Ele emerge então, no contexto destas nossas

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análises, como o emblema da vulnerabilidade de toda a condição histórica.

Atendo-nos ao âmbito da memória, pode-se dizer, de acordo com Ricoeur,

que a incidência do esquecimento sobre os processos mnemônicos de

representação do passado se manifesta como um atentado à falibilidade, ou

seja, o esquecimento revela o caráter problemático da pretensão de

fidelidade ao passado levantada pela proposição ―eu posso fazer memória

[...]‖ (CUNHA, 2013, p. 34).

A condição de sujeito capaz de história é vinculada ao ato de ―memorar‖, de estar no

movimento onde eu narro o que aconteceu no passado, me insiro na narrativa ao narrar, e

serei narrado num futuro próximo pelos multiplicadores, ouvintes da narração, todo o

processo da ipseidade e da intersubjetividade.

Tudo está em movimento, não há ponto de partida, apenas um entendimento do

narrador como aquele que se insere no movimento da história de seu povo. Narrando algo, o

sujeito imprime uma nova entonação ao texto, este novo desenho da história, onde algum

ponto de exclamação é colocado, muda-se a trama sem destituir o texto narrado. ―O ser

humano, está envolvido na tarefa interpretativa continuamente. E o faz com pressuposições.

Não há ponto de partida puro. Para se compreender, precisa interpretar a si mesmo também

nos sedimentos da história‖ (JOSGRILBERG, 2013, p. 32).

Ou seja, ele precisa dessa capacidade de interpretar para que o discurso ganhe vida,

este movimento da transposição de uma ideia ao narrado pode ser interpretado de diversas

maneiras, e nesse processo criativo o ser humano pode narrar e compreender suas origens, os

modos de ser de uma narrativa sobre si e sobre sua presença no coletivo, a história parte desta

complexidade de rastros de todo tipo:

Ele se reconhece interpretando-se em suas obras; seu trabalho produz uma

documentação historiante de si mesmo, essencial para nossa compreensão.

São discursos, textos, narrativas, relatos, livros, obras de arte, monumentos,

edifícios, documentos, descobertas arqueológicas, mitos, memórias, saberes,

instituições, costumes, tradições etc. Em que o espírito humano imprime sua

marca. Essas obras que permanecem são signos temporais que precisam ser

interpretados. Sem esses signos, em que o espírito se objetiva em

significados, o ser humano não chega a si, não trabalha o

autorreconhecimento (JOSGRILBERG, 2013, p. 32).

O sujeito precisa constituir memória para se formar, para se modular como sujeito

inteiro. O ato de lembrar constitui mundos que se originam nas experiências vividas, no

mundo da vida e a ―passagem, pelas obras do espírito (cultura) é essencial. É por aí que o ser

humano se traduz e se interpreta. De algum modo o ser humano investe muito na preservação

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dos testemunhos de si mesmo através dos tempos, por que intui a importância de preservar

suas preciosidades culturais‖ (JOSGRILBERG, 2013, p. 32).

As práticas em que nativos, de dezenas de comunidades tradicionais, vêm a público

trazer são metodologias de apropriação dessas técnicas, que visam expandir o si mesmo, e

deve-se olhá-las exatamente como o que são, como técnicas que visam aprimorar essa

capacidade de ato, de proximidade entre intenção e ação. São técnicas que lutam contra, o mal

ontológico, a falibilidade humana:

Ricoeur, através do conceito de falibilidade, deseja mostrar que a

possibilidade do mal parece estar inscrita na constituição mais íntima da

realidade humana, ou seja, ele defende a ideia de que o homem é, por

constituição, frágil e capaz de falhar. Esta característica ontológica se

inscreve numa não-coincidência do homem consigo mesmo; é nesta

constituição ontológica instável, nesta desproporção do homem para consigo

mesmo que se situa a ratio da falibilidade (CUNHA, 2013, p. 36).

A Falibilidade, como conceito, ajuda a compreender a condição humana e também

implica pensar sobre relações éticas, que possam superar a condição ontológica; a exposição

humana ao erro pode ser vista como uma oportunidade criativa, na medida em que o ato de

constituir memória garante ao ser humano a capacidade de remontar e criar uma proporção

entre o infinito e o finito, pois se a memória fosse fixa, não seria possível a originalidade do

ser humano, a capacidade de mudar com a história, como os membros do grupo, no meio

social, num percurso que passa pelo reconhecimento do sujeito.

Há um aspecto da memória que é individual, mas ao passo que este testemunho

existencial é comunicado, passa a compor a memória coletiva. Esse plano societal pode ser

visto nos testemunhos dos participantes das cerimônias neoxamânicas, em que a identidade é

representada pela presença dos membros na audição da narrativa.

Pode-se dizer que ao passo que a falibilidade, ou o mal do esquecimento, assombra o

homem, a possibilidade de criação, ou de mudança, assume um papel de protagonismo no

processo do reconhecimento de si mesmo. Assim, a capacidade geradora de significado é a

capacidade de constituir mundos através do ato de lembrar e narrar. A metáfora por ser um

mecanismo de intermezzo, de movimento e transposição, amplia a memória e ultrapassa o

esquecimento. Essa capacidade de conectar os extremos (o corpo despedaçado) é decisiva

para adotar a metáfora como ferramenta de transmissão de conhecimento. O canto que se fixa

na memória, pela sua repetição constante, a ladainha se repete por noites inteiras, onde a

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comunidade aprende por meio do canto, da dança, enfim, através do mito/rito, que é uma

forma eficaz de fixação do saberes.

A comunicação dessas narrativas ocorre de forma a garantir a perpetuação da tradição,

mas ao mesmo tempo é preciso que haja um movimento de adaptação desta para os novos

desafios da história, em constante mudança, ou seja, na medida em que há um esquecimento

ontológico, existe a capacidade de criação e transmissão das narrativas, como as técnicas

específicas dos memorialistas, dos contadores de histórias, dos curandeiros xamânicos. E esse

processo é predominantemente metafórico.

A produção da linguagem nessa acepção é estritamente poética, pois parte de uma

elaboração da realidade a partir de metáforas. É um texto poético, uma tessitura construída

dentro da tradição e da comunidade, através dos mitos e da ritualidade. Pelo olhar do discurso

e da reestruturação da realidade, é possível desestabilizar o conceito solidificado de mundo, e

restabelecer novos limites, mais extensos, para a construção de sentido.

O conceito de metáfora não é uma definição encerrada. A princípio o conceito só

existirá na condição de ser, na sua essência, como uma adaptação contínua e

consequentemente uma exposição sobre o que ultrapassa o plano da palavra, da espécie, do

gênero, etc. Assim, conceituações sobre a metáfora, observadas em momentos diferentes,

podem corresponder a interpretações diversas. Nesse sentido, Ricoeur propõe um passo à

frente, pois o discurso constitui obra na medida em que o discurso é metáfora, pois se

estabelece nos campos de referência, nos mundos onde se institui e recria realidades.

Nesse campo, a interpretação, como discurso que melhor opera no universo da

metáfora, é quem pode, a partir de suas estruturas de análise, propiciar um entendimento do

modo de ser da narrativa, assim como dos modos de sua transmissão na comunidade.

5.3.2 Percurso da memória e do homem capaz

Portanto, podemos dizer que neste caminho entre ouvir, interpretar e escrever há um

processo hermenêutico, que possibilita o entendimento metafórico. No campo da narrativa,

contar uma história é buscar por si mesmo, e no ato de narrar, constituir-se como ser de

historicidade e um processo terapêutico que possibilita o resgate do sujeito como pleno da

capacidade da memória:

Compreender um texto, portanto, é postar-se perante o mundo da obra para

entendê-lo e, por extensão, entender a si mesmo. A leitura é assim, para

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Ricoeur, pharmacon, ―remédio‘‘, por meio do qual o leitor busca a

significação ao tentar superar o estranhamento do texto em uma nova

proximidade; proximidade esta que elimina, mas ao mesmo tempo

resguarda, a ―distância cultural‘‘ e tenta incorporar a alteridade textual na

ipseidade ontológica do leitor. Esse ponto de encontro entre o mundo do

texto e o do leitor pode se iniciar por meio da metáfora, criadora de uma

nova referencialidade (TARRICONE, 2011. p. 2).

Processos concomitantes ocorrem no encontro entre as estruturas da linguagem e o

processo de pharmacon possibilitado pela suspensão e recolocação do sentido criado pela

metáfora. O processo educacional entre os nativos passa pela oralidade, e esta por sua vez está

submetida aos processos da linguagem. A metáfora é um caminho de transformação, capaz de

inaugurar as novas interconexões da narrativa e a compreensão no mecanismo de recepção do

ouvinte. Como um processo de multiplicidade de sentidos, a metáfora conduz do discurso

especulativo ao poético e vice-versa. Assim é possível observar que na análise de um

testemunho encontra-se um caminho conceitual. Claramente nota-se que a análise

especulativa de um testemunho passa pela compreensividade, e que se está opondo-se a uma

explicação, porém a condição de trocas de sentido, do especulativo e metafórico, é sempre um

corte na modalidade do discurso, como apontado por Ricoeur:

Pode-se mostrar, de uma parte, que o discurso especulativo tem sua

possibilidade no dinamismo semântico da enunciação metafórica e, de outra,

que ele tem sua necessidade em si mesmo, na efetuação dos recursos de

articulação conceitual que, sem dúvida, se ligam ao próprio espírito, que são

o espírito se refletindo. Dito de outro modo, o especulativo apenas realiza as

demandas verbais do metafórico instituindo um corte que marca a diferença

irredutível entre os dois modos de discurso. Qualquer que seja a relação

posterior do especulativo ao poético, o primeiro só prolonga o objetivo

semântico do segundo ao preço de uma transmutação resultante de sua

transferência para outro espaço de sentido (RICOEUR, 2000, p. 454).

Mesmo o discurso, especulativo, filosófico, é repleto de poéticas, e não há como

separar os dois, ou antes, o discurso especulativo é ampliador do sentido resultante das

transferências de referência do discurso poético, ao preço da alteração do modo. O espírito é o

espaço onde ocorre a linguagem, lugar de privilégio do saber e da constituição de mundos.

Como comenta Ricoeur em Percurso do Reconhecimento, este percurso do entendimento é

um processo de troca mútua (RICOEUR, 2006).

A metáfora como um processo de transmutação é também um Potlatch, processo de

trocas e intercâmbios de sentidos. Quando um membro da comunidade narra uma história, ou

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mito etc., o grupo devolve essa informação como outra narração e daí em diante, numa

circularidade que, dentro de uma possibilidade de inovação, mantém a tradição viva, a

metáfora viva. Além disso, esse processo de mutualidade é amplamente rico e importante para

a comunidade, pois representa a possibilidade de constituição de estratégias de convívio,

como afirma Ricoeur:

O recurso ao conceito de reconhecimento mútuo equivale, neste estágio da

discussão, a uma argumentação em favor da mutualidade das relações entre

os atores da troca, em contraste com o conceito de reciprocidade situado pela

teoria acima dos agentes sociais e de suas transações. Por convenção de

linguagem, reservo o termo ―mutualidade‖ para as trocas entre indivíduos e

o termo reciprocidade para as relações sistemáticas em que os vínculos de

mutualidade não constituiriam senão uma das figuras elementares da

reciprocidade. Esse contraste entre reciprocidade e mutualidade é agora em

diante considerado um pressuposto fundamental da tese centrada na ideia de

reconhecimento mútuo simbólico (RICOEUR, 2006, p. 246).

Em última análise, o jogo de sentidos, de compreensão das identidades, e o conjunto

de fatores que constituem o ser humano, necessitam de uma ética, de uma sabedoria prática,

que consiga ampliar as relações de direitos sociais e de pertença. A estima social pode ser este

espaço de união, de ágape, onde os sujeitos possam atuar dentro de um aspecto de justeza,

fora de um ambiente de luta, mas de paz:

Isso nos deixa a questão sobre a maneira pela qual essas experiências

pacíficas de reconhecimento mútuo se baseiam em mediações simbólicas.

Surge um problema se tentamos pensar no mútuo reconhecimento como um

presente que nos damos uns aos outros. O problema aqui é se toda dádiva

resulta numa lógica de reciprocidade, numa espera de troca de presentes, o

que possibilita novos conflitos. Ricoeur diz que, ao contrário, devemos

pensar na dádiva como mútuo reconhecimento como uma surpresa, como

amor que não pede coisa alguma em troca, um amor que não calcula e se

caracteriza mesmo pela despreocupação, que vai além das demandas de

justiça. Além do mais, há geralmente um toque cerimonioso no ato de

presentear (PELLAUER, 2007 p. 177).

Encontra-se, todavia, a narrativa como um momento importante da memória, numa

linguagem metafórica capaz de constituir mundos. No âmbito da linguagem encontram-se os

mecanismos de uma ética, de uma sabedoria prática, de uma pragmática hermenêutica. A

troca, ou a dádiva que mutuamente não gera dívida ao outro, como presente, é a possibilidade

de narrar e ser narrado, se recompondo. O horizonte de sentido da ética do homem capaz está

inserido nesta condição de possibilidade de poéticas possíveis.

Esse espaço onde se possibilita encontrar as histórias, cantos, ritos, espírito da cultura,

está repleto de elementos simbólicos, que numa dialética entre o discurso especulativo e o

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poético, constitui a narrativa do grupo, e uma recomposição de poderes e saberes. Nossa

defesa é que o homem capaz, no poder narrar e narrar-se, se insere no caminho do

reconhecimento por imputar este sujeito falante como aquele que age. A narrativa parte do

sujeito, mas este é atravessado por ela, e por outras que vieram antes. A vida e a morte

constituem abertura e fechamento da narrativa (Ricoeur, 2006, p. 117).

Nesse universo de ação, o ato de falar determina um universo prático, de participação

na história, que por sua vez implica uma ética. A narrativa é transfiguração, ―pois é sempre

possível, como dissemos anteriormente, narrar de um modo diferente‖ (Ricoeur, 2006, p.

118). Portanto, no campo das ideologias é possível pensar em políticas de memória, pois as

narrativas perpetuam o comportamento. No âmbito da história precisaríamos examinar mais

detidamente o fato, em medida que essas narrativas inserem também a condição de

possibilidade da utopia num complexo e elaborado campo da imaginação social. O exercício

narrativo das comunidades tradicionais é um ato criativo, um discurso poético, que predomina

a linguagem metafórica. O ato de narrar é uma arte de alguns mestres tradicionais dessas

comunidades e uma ferramenta de enfrentamento ao mal do esquecimento. A função de

contador de história é um ato ético:

Vou concluir com algumas reflexões sobre o papel ético de contar histórias.

A questão mais básica a recuperar aqui é, creio, a de que as histórias tornam

possível a partilha ética de um mundo comum com os outros, na medida em

que elas são invariavelmente uma forma de discurso. Todo ato de contar

histórias envolve alguém (um narrador) contando algo (uma história) a

alguém (um ouvinte) sobre algo (um mundo real ou imaginário)

(KEARNEY, 2012, p. 426).

Essa especialidade de alguns membros das culturas nativas mostra que a sociedade

moderna perdeu a capacidade de elaborar suas narrativas de forma pacífica, e pode-se

aprender muito com o ensinamento nativo, na medida em que se permite utilizar metodologias

hermenêuticas, capazes de expandir o espaço conceitual, ou mesmo recriando a metodologia

com elementos narrativos, e até mesmo poéticos que mutuamente constituem mundos. A

justiça e a capacidade criativa da poética que perpassa a vontade humana, talvez dando uma

chave interpretativa que ajude a superar, ou compreender de forma saudável as limitações que

são impostas pela fragilidade da existência humana, são caminhos viáveis para um ethos

contemporâneo.

Todos os processos evidenciados nos relatos e testemunhos mostram a capacidade de

redescrição da vida presente no modo xamânico, e este modelo de atuação na realidade só é

possível pela adoção, ou a tentativa de inserção do modo de pensamento ameríndio nos rituais

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dos grupos de Neoxamanismo urbano. Tais trocas de sentido também representam recriações

semânticas e epistêmicas, em que o hibridismo cultural não é só do ponto de vista dos bens

materiais, mas também da visão de mundo, e da reversão dos sentidos a novos horizontes de

possibilidade.

5.3.3 Reversão: o pensamento ameríndio

Foi falado posteriormente sobre a apropriação do pensamento ameríndio nos grupos de

Neoxamanismo urbano é a existência uma reversão, ao contrário do que é pregado nas

religiões de matriz cristã, a exemplo, o fiel que adota uma nova vida, ao aceitar Jesus como

salvador. Aqui ocorre processo diverso, o sujeito é levado a encarar suas origens, e retomar a

estados já latentes em si mesmo, um regresso ao um ponto de partida. Seria uma restituição de

valores originários, no campo do pensamento ameríndio, onde a realização não é para o

futuro, e sim no agora. Umas das principais características desse pensamento é que vivemos

integrados com os ciclos naturais, e com suas especificidades, ao contrário do pensamento

Europeu, o indígena vive as relações de sentido com a terra.

Um Ethos Xamânico possibilita entender como esse entrelaçamento acontece, seja no

campo epistemológico, seja na vida prática, a visão de mundo é diversa e para tanto é preciso

ajustes (FIGUEIREDO, 2017). Os grupos se estruturam em torno de uma liderança, de

instituições, que mesmo não sendo pessoas jurídicas, atuam como agregador social. Tais

instituições são espaços éticos por natureza. Segundo Ricoeur:

Por instituição entenderemos aqui a estrutura do viver junto de uma

comunidade histórica — povo, nação, religião, etc. —, estrutura irredutível

às relações interpessoais e, no entanto, religada a elas num sentido notável,

que a noção de distribuição permitirá daqui a pouco esclarecer. E por

costumes comuns e não por regras constrangedoras que a ideia de instituição

se caracteriza fundamentalmente. Somos por esse meio levados ao ethos de

onde a ética tira seu nome (RICOEUR, 1991, p. 227).

Uma ipseidade comunitária é entendida nestes termos, como uma noção

compartilhada de identidade, uma nação ou um grupo étnico tem uma identidade narrativa

comunitária, e se tratando dos povos ameríndios, tal pensamento é muito importante, e

decisivo.

O Ethos indígena é sua forma de ver o mundo, e por este motivo temos que tratar de

aproximarmos de suas epistemologias:

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Com o conceito ethos xamânico, compreendermos que ao falar de práticas

tais, estamos tratando de um modo de ser que quer ser comunitário, onde o

discurso não abre para o individualismo, mas para a prática comunitária.

Ethos do grego ἦθος, representa um modo de ser do sujeito, das coisas,

como a música, a pintura, as tékhnai, tem seu próprio ethos. O indígena tem

sua própria técnica, seu modo de ser, e com isso, sua maneira de constituir

mundo (FIGUEIREDO, 2017 p. 181-182).

Os modos de ser são fundamentos que orientam na leitura de mundo de cada

grupalidade, seja ela qual for. Pode-se, por exemplo, citar o caso dos Guarani, que estão

vivendo nas periferias de grandes metrópoles da região sul e sudeste. Sua vida depende de um

conjunto complexo de relações com o mundo por eles concebido. Porém, sofrem por não

poderem estar plenos em seu habitat:

Os Guarani ainda têm sua aldeia, terras e a oportunidade de falar a língua

tradicional, muitos não falam o português, enquanto que muitos indígenas

que vivem em situação urbana têm que enfrentar, como dizemos, uma dupla

violência, social e religiosa. Pois em situação urbana não podem praticar sua

religiosidade, que em grande parte depende da relação entre sujeito e

natureza. A comemoração dos ciclos, e o movimento natural das relações

entre homem e animal; árvores e rios, montanhas, enfim, com o espírito do

ethos nativo (FIGUEIREDO, 2017, p.184).

Sendo um povo que vive muito próximo do modo de vida ocidental, permite prever as

agruras para manter-se íntegro a suas tradições comunitárias. Amplia-se o modo de ver em

medida que se aproxima do pensamento indígena, e pode-se adotar a ética prática, proposta

por Ricoeur, e aqui se propõe ampliar sua noção de alteridade:

Portanto o que entendemos como um bom caminho, a Sabedoria Prática

proposta por Ricoeur compreende uma vida boa com e pelos outros em

instituições justas está de acordo com o modo nativo de ver o mundo, ou

seja, o ethos xamânico, e sua técnica. O que devemos salientar é que este

outro para o indígena compreende toda a natureza, todo meio ambiente, pois

tudo têm espírito. [...] O ethos xamânico clama por uma ampliação da visão

da natureza, como uma parceira e não como fonte de extração de bens

materiais. A visão de mundo nativa orienta para uma ética que compreenda a

natureza como outridade, assim como meus amigos e a mim mesmo, na

medida em que sou por que a natureza é e meus irmãos são etc. A visão

nativa abre novos horizontes e possibilidades de reverter o conceito de

evolução e sua herança positivista (FIGUEIREDO, 2017, p. 206-207-208).

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Essa alteridade ampliada, é que fundamenta um Ethos xamânico. Este modo de ser

nativo encontra suas relações em cosmologias diversas da ocidental, como a suspensão de

tempo e espaço. Tal característica, comum ao trabalho xamânico, é estruturante para o

encontro de si mesmo. Segundo o filósofo argentino Rodolfo Kusch, o encontro divino com si

mesmo se dá desta forma, quando observa na cultura quechua:

La manera positiva para conseguir el ―si mismo‖ o la revelacion, era la fuga

del espacio y del tiempo, o sea la fuga del mundo y de sus objetos naturales,

evitando los cerros, los demonios y la muerte. Para ella era necessário el

ayuno, porque asi se evitaba la ―gravidez‖ del mundo, que pesaba sobre el

hombre. Solo así cabia encontrar la fusión con lo divino, aunque esta fuera

uma empresa anti-humana, como la de las huancaquill - los ascetas, que se

perdian en los cerros para encontrar al dios a traves del sufrimiento

(KUSCH, 1962, p. 107).

Essa noção de tempo e espaço como temos adotado na cultura ocidental é

transfigurado, em novas epistemologias de pensamento; o estar observador, como a ideia de

aseidade do sujeito, que está em si num topos indissolúvel, que possui em si mesmo a causa

ou o princípio de sua própria existência, também são especificidades dessas culturas. Este

mero-estar do pensamento quéchua, se distingue do ser-alguém, pois estar é algo que

acontece na alteridade do Ethos xamânico. ―EI sujeto, que se encuentra a si mismo en el

mandala, es un sujeto afectado por las cuatro zonas del mundo y, por lo tanto, remedia esa

afectación mediante la contemplación‖ (KUSCH, 1962, p. 111 e 112).

Este sujeito ameríndio é um ser afetado pelo mundo, está imerso nesse dilúvio

involuntário que é o sensível hilético, estar diante das quatro direções sagradas dos povos

originárias, e que definem sua cosmologia e cultura, são elementos que atravessam o sujeito, o

mundo material atravessa o nativo, em toda sua realidade intransponível. Esses são pontos

cruciais deste pensamento, pois estar é estruturante dentro dessa visão de mundo, estar como

modo contemplativo. O estar de Kusch é similar a Tathata budista, ou seja, a aseidade. Na

língua inglesa Tathata é traduzida como suchness; atualmente o neologismo em língua

portuguesa é Talidade. Essa expressão budista significa que as coisas ―são o que são‖, e que a

consciência é mero partícipe da experiência da totalidade das coisas que são aí.

A sabedoria fundamental é a base. É uma visão sem distinção e não é

discriminatória, é o conhecimento sem dualidade sujeito/objeto (ou seja, não

surge do sentido instintivo de "eu e meu"). Esta é a sabedoria que está além

das palavras e dos conceitos; é pura contemplação que conhece a Verdadeira

Talidade (tathata) é a base da realidade (ZIM, 1995, p. 5).

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A Talidade é a representação conceitual do fato que seres humanos estão encarnados

no mundo e que devem contemplar a duplicidade humana, de ter consciência e ao mesmo

tempo é um ser hilético, material e sensível, do involuntário. É uma sabedoria dos povos

ancestrais, que só contemporaneamente vêm sendo discutido pela filosofia.

O eixo central do pensamento europeu durante toda a modernidade é a ideia de um

cogito puro. Tal noção integrativa de consciência e corpo duplamente concebido como meu

corpo e corpo de outrem já mencionado na obra de Merleau-Ponty, mostra que existe certa

recolocação da noção de substância sobre a consciência na filosofia contemporânea. Assim

como o involuntário metodologicamente introduzido por Ricoeur, que mostra a conflitividade

do ser humano. Da mesma forma a Talidade tem uma acepção de substancialidade da

consciência:

Quanto as três não-naturezas são elas a não-natureza das características que

diz respeito aos dharmas falsamente discriminados pela ―natureza falsamente

concebida‖, não-natureza da substância, que se refere a negação da

substância em função da ―natureza dependentemente originada‖ e a terceira

que é chamada de sentido supremo de todos os dharmas e também de

Tathata. Nesta o autor percebe uma contradição, a saber, no que diz respeito

à concepção do Tathata como natureza permanente da consciência. Há nesse

ponto a introdução de um monismo substancialista. Aqui nosso autor

observa que temos no capítulo segundo do Tratado uma visão alternativa

para se pensar o Tathata, que consiste em pensá-lo como ausência de

falsidade sem a noção de permanência ao mesmo vinculada (ALVES, 2016,

p. 599).

A Talidade seria uma forma de pensar a ipseidade pelo Ethos ampliado pela visão

sistêmica xamânica, de um ponto de vista de dentro do sujeito que observa a passagem da

mesmidade, sem perder a permanência no tempo, e reagindo pela vontade ao involuntário

contemplativamente. Observar a si mesmo e ao mundo nas interconexões. No universo dos

povos ameríndios tudo está conectado e não há pensamento que não afete a realidade sensível.

E essa conexão está em toda parte e interligada ás direções sagradas do mundo. Esse vínculo

de conexão ultrapassa e amplia a noção de consciência e o termo Ser filosoficamente situado,

tenta ser superado pelo estar, como um modo fluente e não teleológico; não têm um fim em si,

mas está aí, é um ponto de chegada e não de partida. Segundo Kusch:

Ademas quiero hacer notar que el concepto de estar lo tomo exc1usivamente

para romper continuidad con el ser, en cierta manera como cuando Duns

Scoto se refiere a la hecceidad en tanto realidad formal distinta de la entidad

especifica, o como si se rompiera la vinculción entre el "ser ahi" y el ―ser

así" de Hartmann. Mejor, quizá, sería vincular el estar al concepto budista de

Asidad o sea el asi-llegado (KUSCH, 1962, p. 110).

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Ser assim, estar assim, como ponto de chegada, ajuda a intercruzar o ser em tarefa de

Ricoeur e o mero-estar de Kusch, diante da realidade complexa que se tem entre pensamento

ameríndio e ocidental, simultaneamente presentes no Neoxamanismo urbano. Esse mundo

―mandálico‖ de Kusch, em que as direções sagradas se identificam com a identidade

narrativa, este que é diante do mundo cosmológico. A outridade da natureza, e a assimilação

da finitude como campo simbólico de infinitude.

A mândala, como modelo de um sujeito que aparece em estudos contemporâneos, do

ponto de vista da psicologia, é o centro do self, do si mesmo; para Kush se assemelha às

teorias junguianas, em que é possível observar as mândalas como modelo do sujeito. O que é

muito interessantemente, e foram observadas por C.G. Jung, as mândalas ocidentais não têm

um centro. E isso diz muito da cultura ocidental; como comenta Kusch:

Desde un punto de vista psicológico esta última estrutura surge de aquella.

Un arte mandalico mantiene un centro germinativo en dónde está el ego, o el

Selbst de Jung sitiado por las zonas de dispersión. La temática en este caso

apunta a reforzar ese centro, para lograr una mayor solidez del yo a fin de

evitar la desintegración. La placa Echenique que figura en este tomo es un

caso tipico de estructura mandalica. Indudablemente, pone en evidencia a un

sujeto cultural sometido al mundo em el cual coexisten los opuestos

(KUSCH, 1962, p. 113).

A coexistência dos opostos é então um ponto que merece a atenção. Na cultura de

muitos povos esta diferença é e sempre foi de fácil acepção, o que não ocorreu com o homem

Europeu, que estranhou muito o modo de vida dos povos originários. O tema da conciliação

dos opostos sempre foi bem aceito pelos místicos, mas sem aceitação do homem médio

eurocentrado. Historicamente este processo de confronto entre mentalidades gerou todo tipo

de violência, assim como muitas mudanças em ambos os partícipes que sofrem mudanças tal

encontro. Esse processo exige troca entre os envolvidos no processo de aculturação durante a

colonização, os povos de diversas partes se tocaram mutuamente, e essa relação de algum

modo afetou também o europeu que vivia aqui nas Américas, motivando o sincretismo na

cultura da América Latina.

Este processo de mutação (BASTIDE, 2003), (ou fagocitação segundo Kusch) ocorre

nos dois lados, e é possível acompanhar essa transformação no Neoxamanismo urbano. De

todo modo, essa ordem de troca não ocorre sem tensão, pode-se ―afirmar que houve um grande

processo de mutação em ambas as culturas (indígenas e europeus), mesmo compreendendo que os povos

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originários dessas terras perderam muito mais que ganharam. Além disso, este processo de trocas sempre

vem acompanhado de violência, principalmente do discurso dominante, que busca impor-se sobre os

demais.‖ (FIGUEIREDO, 2017, p. 180).

Sendo a questão ética o centro da problematização, e a identidade narrativa sua fundamentação,

sempre termina, portanto, numa postura ética e a crítica se faz como necessariamente objeto de constituição

da ipseidade histórica. Seja como empoderamento ou fragilidade, mas com a devida reflexividade entre o

que e o quem do ser humano. Superar epistemologicamente o que, para propor um quem que se

movimenta e criativamente é recriação de si, essas tentativas de reverter a metafísica presente na filosofia

ocidental são executadas com propósito de constituir uma ontologia quebrada, desse self que se executa

como tarefa entre involuntários e vontade, entre finitude e liberdade, de um cogito ferido. Segundo

Kearney:

A melhor resposta a essa crise do eu não é, creio, reviver alguma noção

fundamentalista da pessoa como substância, cogito ou ego. Não é prudente

negar a legitimidade de muitas das críticas pós-modernas ao sujeito

essencialista. Seria mais apropriado, sugiro, buscar um modelo filosófico de

narrativa que apoie um modelo alternativo de autoidentidade. Ou seja, a

identidade narrativa de uma pessoa, pressuposta pela designação de um

nome próprio, e sustentada pela convicção de que é o mesmo sujeito que

perdura através de suas diferentes ações e palavras, entre o nascimento e a

morte. A história contada por um eu sobre si próprio relata a ação do quem

em questão: e a identidade desse quem é narrativa. É isto o que Ricoeur

chama de um ipse-self de processo e promessa, em contraste com um idem-

self, que responde apenas à questão o quê? Em suma, eu apostaria que não

importa o quanto nosso mundo se torne ciber, digital ou galáctico, sempre

haverá eus humanos a recitar e receber histórias. E estes eus narrativos serão

sempre capazes de ação eticamente responsável (KEARNEY, 2012, p. 427).

Ponto central da reflexão do eu, a ipseidade supera a estagnação do que; o pensamento

ocidental se ocupa por demais do que do ser humano e não do quem. Porém, com o conceito

de Ethos xamânico, em um modo narrativo ético ampliado pela alteridade ameríndia, a

Talidade, o mero-estar, ensina que se deve integrar o que e o quem rompendo a tensão da

identidade na filosofia ocidental de forma contemplativa.

Assim, interessa entretecer as relações do pensamento ameríndio com a vida ocidental,

e a partir desta assemblage encontrar uma forma viável para prática ética, que tenha como

fundamento uma sabedoria ameríndia e o Ethos xamânico. Quando se fundamenta

ontologicamente o si mesmo como finitude e liberdade, se está justamente fazendo jus a esta

possibilidade de constituição de mundos; realizado num processo poético entre mesmidade e

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ipseidade. Essa mesmidade sendo endo-cosmo-genética e articulada pela mobilidade da

identidade narrativa.

A poética da vontade, em Ricoeur, é um esforço sustentado para compreender a

possibilidade de moldar o próprio significado dentro da história e da linguagem pelo qual o

sentido pode ser modalizado. É um esforço em usar a categoria de formação poética do

sentido para pensar além das dualidades usuais do ego e do mundo, cogito e extensio, legados

da modernidade e ainda muito vivos hoje. Alinhado com o pensamento ameríndio reestrutura

propositadamente uma epistemologia da narratividade.

5.3.4 Mixotrofia e Fagocitação

O termo Fagocitação é utilizado por Kusch, fagocitar ou devorar, para designar a

forma como a cultura Ameríndia se relaciona com o meio em que vive, o termo Mixotrofia é

empregado nesta pesquisa para designar a prática do Neoxamanismo urbano. Mixotrofismo ou

Mixotrofia, em biologia, é o nome dado à qualidade do ser vivo com características autótrofas

e heterótrofas, estes ―microrganismos têm capacidade de crescer em sistemas autotróficos, em

que utilizam a luz e assimilam o CO2; em sistemas heterotróficos, em que não necessitam da

luz e utilizam os compostos orgânicos para o seu desenvolvimento; e em Mixotrofia, onde os

dois sistemas anteriores atuam em simultâneo‖ (NUNES, 20014, p. 6). A Mixotrofia pode

ocorrer mais ou menos em graus diferentes.

A Fagocitação é uma absorção do pensamento ocidental, assim como a inserção

desses valores em novos modelos, dentro do horizonte de sentido ameríndio. Da mesma

forma, o ocidental aparece como um alimento para a cultura. Na Fagocitose o organismo

engole e assimila o corpo externo e invasor, ―encontramos, no conceito de Kusch (1999) da

Fagocitose, como processo pelo qual um organismo engloba e engole o corpo estranho,

digerindo-o e gerando energia para continuar a vida. De um lado há um receio, de outro e ao

mesmo tempo, acredita-se que novas compreensões possam emergir nessa aproximação de

pensamentos‖ (VIÇOSA, 2015, p. 185).

Para pensar o Neoxamanismo urbano a Mixotrofia é mais apropriada, pela relação de

hibridismos dos discursos nas intersecções em diversos níveis e ao mesmo tempo a

capacidade de gerar seu próprio conteúdo através das narrativas de poder, mas também das

escolas livres que vêm formando os neoxamãs. Por outro lado, a Fagocitose pode ajudar em

muito o indígena, pode-se ―falar de uma Fagocitação, no qual o indígena e o não indígena

modificam-se e produzem algo novo, que respeita as particularidades de cada cultura. Kusch

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(1999) refere que para o indígena, a Fagocitose é natural, e tem nesse entendimento uma

vantagem de entender que tudo é passageiro. Os indígenas trazem o conhecimento de que o

ser alguém é transitório e de nenhum modo é imutável e eterno‖ (VIÇOSA, 2015, p. 185),

sendo viável pensar nesse horizonte de sentido, de usos e abusos da memória indígena, que

apesar de aceitar como transitório o processo, hoje vive sobre grande ameaça, principalmente

no Brasil, em que a população indígena é muito inferior ao resto da América Latina, e a

relação com o índio é totalmente diferente. Porém, Kusch parece otimista com relação a esta

mutação. Segundo Kusch:

Pero esta misma oposición, en vez de parecer trágica, tiene una salida y es la

que posibilita una interacción dramática, como una especie de dialéctica, que

llamaremos más adelante fagocitación. Se trata de la absorción de las pulcras

cosas de Occidente por las cosas de América, como a modo de equilibrio y

reintegración de lo humano en estas tierras. La fagocitación se da por el

hecho mismo de haber calificado como hedientas a las cosas de América. Y

eso se debe a una especie de verdad universal que expresa, que, todo lo que

se dá en estado puro, es falso y debe ser contaminado por su opuesto. Es la

razon por la cual la vida termina en muerte, lo blanco en lo negro y el dia em

la noche. Y eso ya es sabiduria y más aun, sabiduria de América (KUSCH,

1962, p. 18).

A interação da fogocitação, apresentada por Kusch, da recepção do pensamento

eurocêntrico e de uma superação natural, como se um processo histórico consequentemente

leva a uma cultura futura integrada, porém, no campo da política e dos direitos neste processo,

ainda está muito longe de acontecer. Por outro lado, como bem apontado pelo autor, no

campo da produção simbólica do ser isso se torna mais presente, pois:

Ademas, en el plano estricto de la cultura, y no de la civilización, solo cabe

hablar en América de un probable predominio del estar sobre el ser, porque

el estar, como visión del mundo, se da tambien en la misma Europa, como se

verá más adelante. Por todo ello, no cabe hablar de una elevación sino más

bien – en tanto se trata de um planteo nuevo para el occidental – de una

distensión o, mejor, fagocitación del ser por el estar, ante todo como un ser

alguien, fagocitado por un estar aqui (KUSCH, 1962, p. 1956).

O efeito de incorporação do modo de estar indígena por fagocitação temperou o modo

de ser do sujeito que vive na América Latina. Por outro lado, a questão da Mixotrofia presente

no Neoxamanismo urbano apresenta outra aproximação, que é a da relação com o que se

produz e o que se apropria na fundamentação de um projeto de ação. Tanto do indivíduo

como a comunidade, entendendo que neste caso a formação de lideranças – com uma

multiplicidade de confissões e visões de mundo – vem de diversas designações religiosas, ou

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ateus, e podem criar uma política de memória de forma arbitrária, o que não se relacionaria

com um processo de fagocitação histórico, mas num nível pessoal há possibilidades de

aproximação.

O que se pode afirmar é que com a capacidade de interação e inovação do

Neoxamanismo urbano há sempre a possibilidade de criação de outros modelos de

socialização e dos usos e abusos da memória. Uma das conhecidas neoxamãs, a psicóloga

Marise Dantas, conhecida como xamã Yatamalo, de João Pessoa, Paraíba, fundadora do

espaço holístico Taba da águia – coordena estudos e práticas xamânicas em Brasília e João

Pessoa desde 1995; ela comenta como foi legitimada ao conhecer o pajé Sapaim:

[...] depois veio o pajé Sapaim, que é o grande pajé brasileiro da nação

Kamayurá do alto Xingu, que me reconheceu como Yatamalo e aí vem, o

que nós chamamos, assim dizemos, que é importante no Xamanismo, que

você não se diz um xamã, você é reconhecido um xamã por outro xamã, por

um xamã que é reconhecido. É quase como a hierarquia na tradição.... e aí o

pajé Sapaim me reconheceu como Yatamalo. Que significa esta palavra

Yatamalo? Uma mulher de cura da nação Kamayurá, uma antiga curandeira

que viveu há tempos... Ele despertou a medicina que havia dentro de mim e,

não me tornou uma médica tradicional, nem a psicóloga que sou,... Coisa

que a psiquiatra, que eu queria ser desde criança, não alcançava, mesmo

sendo uma curandeira como eu [...] (CARDOSO et. Al., 2012 p. 12).

A relação entre Fagocitação e Mixotrofia pode ser percebida. Primeiro a Mixotrofia:

quando Yatamalo se inicia no Neoxamanismo urbano, participando das formações de

Carminha Levy. Como observado neste estudo, à formação da neoxamã é bem variada, em

workshops e vivências em escolas livres, a sua formação acadêmica é em psicologia, e recebe

um título, de curandeira por um pajé indígena. A Fagocitação ocorre quando Marise se torna

Yatamalo, há de fato uma mudança de personalidade, uma nova identidade. Marise se

apropria da nomeação indígena, ou o pajé que ao nomear Yatamalo se insere no mundo não

índio, usando a psicóloga como porta voz desta sabedoria? O estar ameríndio atravessa a

cidade, o não índio traz novas sedimentações para o indígena.

Marise é endossada pelo Xamanismo indígena, para atuar através de suas práticas

neoxamãs, uma inserção pela cultura nativa, mostra como o modo de ser indígena vem

introduzindo seu modo de ser do não índio no Neoxamanismo urbano. Tais comunidades

endossadas pelos grupos e pelas escolas que formam novas lideranças têm crescido e são o

legado desse movimento; segundo Michel Harner (20012):

Bem, se eu morresse amanhã, eu sentiria que fiz mais do que esperava. Eu

me sinto muito sortudo dessa maneira. Eu nunca imaginei esse caminho, e

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nunca imaginei tantos estudantes que desejassem buscá-lo. Estou satisfeito

com o que já foi realizado, porque agora há tantas pessoas que estão bem

treinadas e preparadas para trabalhar e aprender com os espíritos

xamanicamente, de modo que eu não sou mais essencial. O movimento tem

seu próprio impulso. Então, agora estou muito relaxado. Qual é o meu

legado? Bem, meus alunos tanto quanto qualquer coisa, porque eles

continuarão, e alguns irão mais longe do que eu já fui (HARNER, 2012, p.

90).

A Mixotrofia, como metáfora discursiva é apropriada para mostrar este movimento de

produção de sentido dentro da própria manifestação, mas ao mesmo tempo a alimentação

externa, a necessidade de aquisição de poderes xamânicos, via narrativas visionárias, onde o

neoxamã e os participantes tomam contato com o mundo interno pessoal, seu Self, e também

com o mundo dos espíritos. Além disso, a importação de símbolos, deidades, entidades e

modos de ser de diversas confissões é bem vinda, seja um Neoxamanismo urbano cristão,

umbandista, hinduísta, taoísta, enfim, uma Mixotrofia que produz uma prática religiosa,

híbrida, polimórfica, polissêmica que visa o empoderamento simbólico do sujeito não índio.

Essa Mixotrofia em tese gera uma intriga entre o modo de agir indígena e o modo de agir do

não índio, e por esse motivo é preciso apontar uma reflexão sobre a questão do Ethos, mas

também da ação social.

5.4 A Phronesis e a fundamentação de uma epistimologia decolonial

Partimos do princípio que os grupos, igrejas, rodas etc., de Neoxamanismo urbano

formam comunidades, e por sua característica têm uma motivação social, a capacidade de

gerar vínculos e também de criar narrativas coletivas. Os atores que constituem as narrativas

desses grupos são tidos em alta estima, sendo assim, a recriação de narratividades é bem

democrática. Averígua-se que:

A ideia de capacidades sociais encontra sua justificação no acoplamento

entre representações coletivas e práticas sociais. Por um lado, a esfera das

representações detém o papel de mediador simbólico e conduz assim ao

primeiro plano a questão da identidade das entidades sociais em jogo. Por

outro, o campo das práticas sociais coloca no lugar de honra o agente de

mudança, o protagonista social, tanto no plano coletivo como no plano

individual. Pode-se falar aqui em capacidades de gerar história, isto é,

segundo a terminologia própria de Bernard Lepetit, a capacidade de instaurar

vínculos sociais sob a figura das identidades ligadas a eles. Poder-se-ia falar

também em competência representando a si mesma, reconhecendo-se, nas

identidades que ela gera no plano societal (RICOEUR, 2006, p. 150).

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A construção de contextos éticos é relativa a cada grupo, não há um órgão regulador,

ou uma instituição clara que determine o funcionamento dos ritos.83

As normativas se

constroem espontaneamente, a partir do campo de referência da liderança do grupo. São

autodeterminados e elaboram um código de convivência prático, de acordo com a vivência de

cada comunidade.

Diante dessa variedade de normas e condutas não se pode descrever um fator de

aglutinação a não ser a produção de narrativas visionárias, vem-se afirmando, é o motor do

movimento religioso. A capacidade de fornecer ferramentas de autoconhecimento são as

principais chaves para agregar pessoas em torno de um grupo. E o oferecimento sempre

continuado é ainda mais importante, pois os membros buscam certa regularidade na prática

ritual. Este protagonismo individual tem se tornado uma mola para o crescimento de grupos

oferecendo esses serviços, seja do ponto de vista religioso ou terapêutico. Nesse nexo, é

inviável falar de prática ética e política compartilhadas, pois podemos ver que entre os grupos

há pontos de vista muito divergentes. Tal criatividade moral, própria da modernidade tardia,

com a atual acepção de pós-verdade, encontramos um princípio plural que não permite uma

generalização. Como comenta Kearney:

[...] a narrativa promete àqueles de nós preocupados com a verdade histórica

é uma forma de entendimento nem absoluta nem relativa, mas sim

intermediária. É o que Aristóteles chamava de phronesis, em contraste com a

mera crônica dos fatos ou com a abstração pura da theoria científica. Ela é

mais próxima da arte do que da ciência; ou, se preferirem, das ciências

humanas do que das exatas. Como a régua do arquiteto, ela é aproximativa,

mas comprometida com a experiência vivida (KEARNEY, 2012, p. 425).

Este comprometimento com a experiência vivida da narrativa, do qual se pode dizer,

se aproxima da história, mas sem a ―letra da lei‖, permite aproximações sem definições

estruturantes. E essa característica de não se permitir generalizar é que determina a essência

da modalidade ética do Neoxamanismo urbano, que é a capacidade pragmática de aplicação

ética. Legados a sabedoria que surge da própria prática, fundamentam seus códigos morais, a

partir da criatividade ética, numa pragmática das narrativas. Esse modelo ético é uma aporia,

pois não permite uma generalização confiável, e ao mesmo tempo, é muito rico, como modelo

de criação moral. Um mesmo participante, pode estranhar ao mudar de grupo, pois as normas

podem mudar radicalmente e isso pode ser tanto estimulante como também decepcionante.

Para poder se adaptar a cada grupo leva um tempo.

83

Todavia as igrejas de Daime são bem estruturadas neste campo, e tem uma liturgia bem determinada, porém

não esse assunto não é o objeto desta pesquisa.

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Ao se referir ao Ethos xamânico, justamente se está retomando a máxima ricoeuriana

de viver bem, com e pelos outros (aqui a alteridade ampliada) em instituições justas. Ora, essa

máxima ética, permite uma variedade de empregos, de acordo com a norma de cada

comunidade. Para uns encontros quinzenais pode ser muito positivos, para outros semanais, e

ainda quem queira acompanhar os ciclos sazonais, de qualquer forma, o que rege a ética e

código de conduta de cada grupo é livre e espontâneo. Torna-se um trabalho ingrato propor

uma normativa que seja necessária como tarefa histórica e conceitual, ao espírito desses

grupos, mas deve-se propor uma leitura que seja relevante, no que tange a importante

definição de uma ipseidade crítica e comprometida com a história.

Além disso, deve-se propor uma epistemologia que ajuda a compreender futuros

conflitos entre a prática ritual dos grupos e a espiritualidade indígena, num dado momento

histórico, em que os povos originários estão sendo caçados e mortos. Não se deve fechar os

olhos à constante reprodução do modelo colonizador, fato que tem ocorrido ideologicamente,

desde o racismo, machismo, homofobia, mas também a ideia de ―índio‖ como figurativo. A

educação da nação brasileira não corresponde à tarefa da memória critica histórica, e não

mostra ao cidadão a narrativa de dominação e desapropriação dos povos originários, das

perdas de vida e cultura que sofreram e ainda sofrem dia a dia.

Se esse grupo vem se estruturando como comunidades, é preciso observar e mostrar

criticamente, que as narrativas têm uma função histórica, e que as pessoas não são seres

solipsistas, mas engendrados no mundo e no tempo delas. Torna-se necessário romper com o

pensamento do colonizador e propor uma descolonização desse pensamento. Propõe-se aqui

adotar uma epistemologia decolonial, para que seja possível dar um passo a diante.

Olhar para o outro, e expandir nosso olhar para a libertação dos povos oprimidos, é

tarefa da hermenêutica. A tarefa de imputabilidade de qualquer individuo em sã consciência e

plena reflexividade. Como salienta Ricoeur, a Europa também passou por um processo de

libertação, de ditaduras, e ―las filosofías latino-americanas de la liberación parten de una

situación precisa de presión económica y política que les confronta directamente con los

Estados Unidos de Norteamérica‖ (RICOEUR in DUSSEL, 1993, p. 167) e à tal ideia se

permite acrescentar que ainda não foi obtido um avanço histórico qualitativo.

A possibilidade de se dizer a história pelas narrativas pode ser imprecisa, mas ao

mesmo tempo, é uma fonte produtiva de criação e a aproximação da história. O

empoderamento dos povos por intermédio do poder de fala contribui para sua libertação,

sendo que as narrativas pessoais não são tratadas como ficção, e entende-se o

comprometimento ético delas. Como salienta Kearney:

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Em síntese, podemos prontamente aceitar que a narrativa seja um processo

fazedor do mundo assim como um processo revelador do mundo – cujos

resultados nunca alcançam a exatidão de um algoritmo ou silogismo – sem

ainda assim sucumbirmos ao relativismo linguístico. O fato de

reconhecermos a função narrativa do tal como se nos relatos ficcionais, e do

tal como nos relatos históricos, não significa que devêssemos abandonar

todas as pretensões referenciais à realidade. Considerando tudo isso, eu

sugeriria que as narrativas históricas fossem sujeitas tanto aos critérios

externos de evidência quanto aos critérios internos de adequação linguística

ou genérica (por exemplo, não se pode retratar Auschwitz em um comercial

turístico sobre a Polônia rural). Pois, se não for alcançado um equilíbrio, será

difícil evitar os extremos do positivismo ou do relativismo, sendo que ambos

ameaçam a legitimidade do testemunho narrativo. Mais do que isso, insisto

em que aos critérios epistemológicos para avaliarmos relatos históricos rivais

– relatos mais aproximados do que exatos – seja preciso acrescentar critérios

éticos, ou seja, que busquem a justiça, mais que a verdade. Precisamos

recorrer a tantos critérios sólidos quanto possível – linguísticos, científicos,

morais – se queremos ser capazes de dizer que um relato histórico é mais

real ou verdadeiro do que outro, que uma revisão particular da História seja

mais legítima do que outra. E deveríamos ser capazes de dizer isso

(KEARNEY, 2012, p. 423).

Todo o processo de solidez do discurso pode ser inviabilizado pela opressão, pela

retirada do direito de si dizer, amarradas que adoecem a ipseidade individual e comunitária

dos povos originários. Como Kearney, interessa-se, aqui, mais pela justiça que pela validação

dos discursos, e os mecanismos de validação dessas narrativas partem de uma posição

anticolonial, antiopressão. Das narrativas segue-se para a ação, assim com o texto, adota-se

uma postura crítica para, então, agir no mundo; a metáfora tem a função aqui de partir do

campo existêncial para o da ação efetiva no mundo. Esta posição tem inspiração no modelo de

inscrição no texto, a ação, como proposto por Ricoeur, o autor complementa:

El fenómeno más importante en este sentido no es tanto la inscripción ni la

escritura, dicho de otra manera, el devenir texto de la acción, sino la relación

critica de lectura que da la posibilidad de devenir acción del texto. Este

devenir del texto reconduce la hermenéutica a la ética, más precisamente a

una ética que asigna un lugar central al fenómeno de la alteridad. Me

permito señalar que este es un lugar para diversas filosofía de la alteridad:

asimétrica para Lévinas, reciproca para Hegel. Aquí hay también lugar para

diversas figuras de la alteridad: la corporeidad, el encuentro del Otro, la

búsqueda de la conciencia moral interiorizada. Aqui están también las

diversas figuras de los otros, otros en cuanto al encuentro cara-a-cara; otros

como el "cada uno" de las relaciones de justicia. Acepto de buena voluntad

que estas figuras de la alteridad y del Otro vengan a resumirse ya culminar

en el momento de alteridad en el cual el Otro es el pobre. Es aquí que se

encuentran y buscan la filosofía y la teología de la liberación (RICOEUR

apud DUSSEL, 1993, p. 175).

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A alteridade como horizonte de realização da libertação é um caminho justo, e como

missão do discurso tanto efetivando a vivência narrativa quanto a produção textual

especulativa, como uma totalidade do pensamento de um povo. Segundo Ricoeur:

Parece-me, antes de tudo, que a principal tarefa dos educadores é integrar o

uso técnico universal da personalidade cultural, como eu o defini acima, com

a singularidade histórica de cada grupo humano (RICOEUR apud DUSSEL,

1993, p. 139).

Dussel admite que esta perspectiva ricoeuriana contribuísse para a constituição de sua

filosofia da libertação. Em ambas a modalidades do discurso, se sedimenta a necessidade de

tomar corpo a postura ética e política, não como horizonte totalizante, mas como uma

Phronesis, que quer dar voz a cada envolvido, de forma poética e não enrijecida. Este

comprometimento é pedagógico e uma ética situacionista que ao mesmo tempo esta

comprometida com a experiência vivida executando por completo a tarefa da ipseidade, como

funcionalidade primordial de constituição de mundos. Pois toda tentativa totalitária de

redução da ipseidade individual ou comunitária é adoecimento.

5.4.1 O paradigma decolonial

Foi proposto, pois, a definição de paradigma decolonial, como método de aproximação

a uma constituição de ética em situação, neste horizonte de sentido vivido e geograficamente

constituído. Portando, estruturar a tarefa de agregar o pensamento ocidental e o pensamento

ameríndio é uma tarefa para trabalhos futuros, porém aqui, resta observar a especificidade do

pensamento ameríndio, pelo horizonte situacionista, e como apontado por Ricoeur, pela

singularidade histórica de cada grupo humano. Segundo Dussel:

Toda civilización tiene un sentido, aunque dicho sentido esté difuso,

inconsciente y sea difícil de ceñir. Todo ese sistema se organiza en torno a

um núcleo (noyau) ético-mítico que estructura los contenidos últimos

intencionales de un grupo que puede descubrirse por la hermenéutica de los

mitos fundamentales de la comunidade (DUSSEL, 1993, p. 140).

O pensamento decolonial tem esta especificidade, de operar rompendo à exterioridade

dos discursos alheios a realidade local, por isso, devemos fazer brevemente uma incursão pela

aplicabilidade do pensamento ameríndio. De acordo com Resende:

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Eduardo Restrepo e Axel Rojas explicam que, da mesma forma que é preciso

fazer uma distinção analítica entre colonialismo e colonialidade, não se deve

também confundir descolonização com decolonialidade. Por descolonização

entende-se o processo de superação do colonialismo, geralmente associado

às lutas anticoloniais no marco dos Estados que resultaram na independência

política das antigas colônias. A decolonialidade refere-se ao processo que

busca transcender historicamente a colonialidade e, de acordo com estes

autores, supõe um projeto com um projeto mais profundo e uma tarefa

urgente para o nosso presente de subversão do padrão de poder colonial

(2010, p. 16-17). Nesta tese, adota-se a expressão descolonização (em

itálico) no sentido de decolonialidade, pois é a expressão usada pelo

movimento indígena de alguns países da América Latina e que aparece na

Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia de 2009

(REZENDE, 2014, p.52-53).

A decolonialidade é resultado de pensadores, que a princípio partem das teorias dos

estudos culturais, e seguem constituindo um movimento de resgate do pensamento local e das

práticas tradicionais e nativas, como termos e conceitos próprios do povo que vivem esta

realidade de povos colonizados. Catherine Walsh, uma pensadora que contribui muito para

esta nova geração de teóricos decoloniais, principalmente com o resgate teórico da pedagogia

de Paulo Freire utiliza o termo decolianidade sem o ―s‖ para acentuar o compromisso de

superação histórica:

Suprimir la ―s‖ y nombrar ―decolonial‖ no es promover un anglicismo. Por el

contrario, es marcar una distinción con el significado en castellano del ―des‖.

No pretendemos simplemente desarmar, deshacer o revertir lo colonial; es

decir, pasar de un momento colonial a un no colonial, como que fuera posible

que sus patrones y huellas desistan de existir. La intención, más bien, es

señalar y provocar un posicionamiento – una postura y actitud contínua – de

transgredir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un

camino de lucha contínuo en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar

―lugares‖ de exterioridad y construcciones alternativas (WALSH, 2009, p.14-

15).

Portanto, a postura de visibilizar lugares e alternativas são fundamentais para

estruturar o diálogo com o outro, na alteridade dos povos. Justamente por ser preciso vencer o

campo de significação do pensamento colonizador que domina a língua e o pensamento,

desde a escola à cultura de massas, que se avance recuperando o pensamento e a ciência

indígena, a forma de constituir mundo dessas comunidades e etnias. E nesse sentido é preciso

ir além da hermenêutica tradicional, e propor uma teoria da interpretação que seja baseada no

modo ameríndio de ver o mundo. Para Dussel:

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Era justamente este "choque" entre los "mundos" europeo y ameríndio

(caribe, azteca, chibcha, inca, etc.) lo que me venía preocupando. Era el

enfrentamiento entre dos "mundos"; la dominación del uno sobre el otro; la

destrucción del mundo amerindiano por la conquista en nombre del

cristianismo. Todo esto pondría en crisis el modelo ricoeuriano, apto para la

hermenéutica de una cultura, pero no tanto para el enfrentamento asimétrico

entre varias culturas (una dominante y las otras dominadas) (DUSSEL, 1993,

p. 140).

Sendo objetivamente caracterizado como um pensamento que visa observar não uma

relação de trocas culturais, mas sim uma relação de dominação assimétrica, que configure o

pensamento decolonial não como uma filosofia subalterna ou panfletária, ou ainda marxista,

mas como um movimento de pensadores recriando a filosofia não a partir dos gregos, mas dos

povos originários e seu pensamento. Ainda numa tentativa de superação de um modelo

importante, que como apontado por Ricoeur, precisa de um olhar local, e a singularidade de

cada grupo, propõe-se uma hermenêutica que abarque ambos os pontos de vista. Persevera-se

para que haja essa nova hermenêutica, sendo essencial que seja adotado o pensamento crítico

da memória e da história, como comenta Kremer, que chega a mesma conclusão a partir de

perspectivas europeias:

Gostaria de ser o mais claro possível sobre o ponto de vista a partir do qual

escrevo: o quadro é a) decolonização e b) a cura da masculinização dos

fenômenos da realidade percebida. Qualquer consideração em relação às

raízes indígenas para as pessoas que são excluídas por diversas gerações

deve incluir dimensões como política, economia, direito, práticas culturais,

cerimônias, iniciação, ciência, psicologia. Cicatrizar o processo do

pensamento do eurocêntrico a partir da sua dissociação ou separação de uma

participação integrada, nutrida ou holística nos fenômenos não pode ser

apenas um processo individualista – deve ser um processo cultural, comunal

e social. Estou escrevendo como um homem de ascendência nórdico-

germânica lutando com as profundezas das cicatrizes das patologias

modernas à medida que se mostram em indivíduos fisicamente como

doenças, câncer, toxicomanias, síndrome de fadiga crônica e anomias sociais

(no sentido de Durkheim) crises ecológicas, o contínuo genocídio físico e

cultural dos povos indígenas, as crises de conhecimento, a persistência do

sexismo, a violência institucionalizada e o racismo, etc. Estou usando os

termos raízes indígenas, consciência indígenas e similares, sem qualquer

presunção de que isso é algo que eu consegui para mim, ou que cheguei ao

fechamento do meu processo pessoal de decolonização (não acredito que

seja possível fechamento individual sem a cura dos contextos culturais e

comunais) (KREMER, 2000, p. 2).

Não é possível um processo de desenvolvimento saudável sem que este esteja

vinculado ao comunitário, todas as perspectivas do pensamento decolonial compreendem a

necessidade de uma transformação social, para que seja possível falar de uma plenitude do

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sujeito. Tal pensamento está nas próprias línguas nativas, e através destes termos talvez

permita que se associe a esta modalidade de discurso. Será bordado o pensamento pelo bem

viver, o conceito Guarani de Teko Porã, e o quéchua Sumak Kawsay, para exemplificar como

estabelecer parâmetros para uma ética do bem viver, com e pelo outro em instituições justas.

5.4.2 Bem viver, Teko Porã e Sumak Kawsay

O Teko Porã é um termo da cultura Guarani, é ao mesmo tempo um modo de ser e um

lugar de ser, o Teko Porã só é possível na Teko-a (Aldeia). Tekoa é o lugar onde se pode

praticar o Teko, o modo ser Guarani, é o caminho para o Guarani-Eté ou Guarani pleno,

completo.

Teko Porã é o modo de viver belo (Porã), sendo a beleza a prática da cultura e do ser

conjuntamente. Não há Guarani sem Teko-a. O indígena é parte da terra, sua identidade é

integrada com a terra. A ipseidade nativa é integrativa, a qual não existe sem as relações com

o mundo vivente, com os espíritos, e com as entidades divinas. Cada Guarani é parte da esfera

celeste, seu nome representa uma área das ambas celestes. Na Teko-a existe um lugar para se

conectar com as ambas (regiões) celestes, é a o‟opy, casa cerimonial, onde cada amba é

representada. No nhemongarai cada Guarani receberá o nome, referentes a cada uma das

regiões celestes onde habitam as deidades.

O Nhê´é é a alma-palavra-nome de cada Guarani, e representa seu modo de acesso a

linguagem, ao mundo e ao poder de fala, ―A nhê‟é, é a própria pessoa, é o processo de viver e

falar, narrar-se e narrar a vida, e ser narrado. A identidade complexa, que compõe a relação

dos sujeitos com sua região celeste, assim como sua missão profética, está entrelaçada no

educar e no viver.‖ E a educação segue este mesmo entendimento, pois ― a linguagem é o

campo para o qual a criança é projetada da infans até a puer, num universo de ludicidade e

musicalidade (Montardo, 2002) onde começa o processo de comunicação estrito, de

aprendizagem sobre a paideuma, o Teko. E este processo é comemorado como todo rito de

passagem por cerimônias, e a cerimônia do batismo é esse momento‖ (FIGUEIREDO, 2017b,

p.339). O Teko Porã passa a designar no pensamento ameríndio a prática de bem viver, de

boa aventurança, de saber-se conscientizado de si mesmo e de desenvolvimento cultural e

econômico, segundo Sólon:

Después de leer e intercambiar criterios con varios dirigentes indígenas,

académicos y políticos quizás la forma mas apropiada de aproximarnos al

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Vivir Bien es asumirlo como un concepto/espacio en construcción y en

disputa entre diferentes actores que van desde los pueblos indígenas, los

movimientos sociales, los intelectuales, los políticos y los gobiernos. El

Vivir Bien (Bolivia) o Buen Vivir (Ecuador) es un término en español que

surge a fines del siglo pasado para referirse a prácticas/visiones de los

pueblos indígenas de la zona Andina de Sud América. Los Aymaras le dicen

Sumaq Qamaña, los Quechuas Sumak Kawsay, los indígenas de las

amazonía peruana Kametsa Asaiki, los Guaraníes Ñandereko. La traducción

al español de Sumaq Qamaña o Sumak Kawsay es motivo de varios escritos

y discusiones que comprenden traducciones como ―vida en plenitud‖, ―saber

vivir‖, ―buena vida‖, ―vida dulce‖, ―convivir bien‖, ―vida armoniosa‖, ―vida

sublime‖. En lo que si existe un acuerdo es que no se trata de ―vivir según el

bien‖ de los occidentales (SÓLON, 2014, p. 3).

O resultado de uma vida plena interligada com a terra, e com a vida comunitária, o

conceito de bem viver, do modo de ser belo, intrinsicamente relacionado com o modo de vida

indígena favorece uma reflexão em torno da sedimentação do sujeito no mundo. Esse sujeito

incarnado só encontra felicidade no meio social e na natureza. O paradigma do Teko Porã está

vinculado ao modo de vida que busca a integração dos opostos, mas também, dentro de uma

perspectiva decolonial é uma saída do modo capitalista, da esfera do consumo, e das relações

de opressão do colonizador. O Teko só é possível quando eticamente compreende tudo que é

externo a mim como vida e beleza. A vida comunitária dever ser uma prática de mutualidade

pela beleza do estar coletivo.

Tal estima social é fundamental para se alcançar a as capacidades plenas. Para que o

Guarani alcance sua maestria como pessoa, é preciso espaço comunitário onde aplicar suas

potencialidades o Nhanderecó, o modo de ser. Essas ipseidades comunitárias nos mostram

visões de mundo que fortalecem o estar capaz. A disponibilidade comunal inverte o modelo

ocidental solipsista. A identidade como Teko é uma ipseidade em construção, é engendrada na

materialidade da vida na dialética com a mesmidade, fora deste espaço/tempo o que resta é o

Teko Axy (existência imperfeita). O modelo ocidental de viver, de consumo, solipsista,

desintegrado da natureza é uma terra do modo de ser imperfeito, é yvy teko axy (SOUZA

PRADELLA, 2009, p. 108), que se opõe ao modo autêntico de ser o ñande reko katu.

Segundo Regazzoni:

Deve-se destacar que a arete dos Guarani era um tempo autêntico porque

recolhia e repartia os frutos do seu tempo cotidiano. Na festa, os frutos da

terra e do trabalho são oferecidos como dom e graça (aguyje). Por meio

dessa graça, a pessoa alcança o desejado bem-estar e tem a virtude do bem-

viver, que tem muitas manifestações: teko porã (ser bom), teko joja (ser

igual, ser justo); teko ñemboro‟y (ser sereno), teko marangatu (ser santo,

bom)... Esse bem-viver não era algo teórico. Traduzia-se em bondade e

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sabedoria prática. Vemos isso, por exemplo, na sua arte de cultivar a terra,

conhecendo e classificando perfeitamente todas as espécies vegetais e

animais, as características ecológicas dos diversos lugares. O grande

botânico suíço-paraguaio Moisés S. Bertoni dá testemunho disso em sua

obra de classificação das plantas (depois do grego, o guarani é o idioma que

mais contribuiu com terminologia para a nomenclatura botânica). Os bons

conhecimentos práticos dos Guarani tornavam-nos hábeis ―agrônomos‖. E,

em vez de explorar a natureza, preferiam emigrar: nunca deixaram desertos

atrás de si. O colono europeu acabou pedindo emprestado esses

conhecimentos aos Guarani (MELIÁ, 2004, p.20) (REGAZZONI, 2010,

p.16).

Mais que viver bem é viver de forma integrada com a terra e com a comunidade,

colhendo para todos e deixando a terra sempre saudável. Encontramos definições semelhantes

no termo Kawsay (vida) na cultura quéchua. O termo da cultura quéchua utilizado designa a

vida, mas não estática, é uma vida em movimento, é o estar sendo. É uma perspectiva de

observação da vida pela comunidade, pela postura ética. Este termo tem sido utilizado pelos

povos da América Latina para designar o movimento anti-imperialismo, em busca de prática

de resgate e salvaguarda dos povos autóctones. De acordo com Esperanza Martinez:

O Sumak Kawsay é conjugado no plural. Para os povos indígenas, a

plenitude é construída na comunidade, diferentemente do culto ao

individualismo próprio do capitalismo. A consciência da responsabilidade

individual é importante, mas não suficiente. Para que seja realmente

transcendente, requerem-se mudanças coletivas. Mudanças que recuperem os

saberes, superem as desigualdades, construam-se na diversidade e no

respeito. Que reconheçam, por exemplo, que, na regeneração e na

manutenção da vida, são as mulheres, as agricultoras e as índias que mantêm

esses ciclos em condições de absoluta desigualdade. Mas também é

necessário reconhecer que, mesmo quando o capitalismo está globalizado, os

povos indígenas não vivem dele, mas se mantiveram graças a suas práticas

comunitárias e a relações não capitalistas de produção e consumo. Como

diria Bolívar Echeverría, ―viver em e com o capitalismo não significa viver

para e pelo capitalismo‖ (SBARDELOTTO, 2010, p. 23).

Viver a favor da vida dos povos e da preservação de suas culturas e modos de vida. A

excelência da vida é a integridade dos modos materiais e espirituais; o avanço com relação à

ambiguidade, à dicotomia existencial. A reciprocidade e mutualidade são funções

fundamentais dos saberes comunitários, e sua relação com uma estrutura do Ethos xamânico.

O Sumak Kawsay é plenitude, e superação do modo colonial, ademais:

El Sumak, es la plenitud, lo sublime, excelente, magnífico, hermoso(a), superior. El

Kawsay, es la vida, es ser estando. Pero es dinámico, cambiante, no es una cuestión

pasiva. Por lo tanto, Sumak Kawsay sería la vida en plenitud. La vida en excelencia

material y espiritual. La magnificencia y lo sublime se expresa en la armonía, en el

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equilibrio interno y externo de una comunidad. Aquí la perspectiva estratégica de la

comunidad en armonía es alcanzar lo superior. El sistema comunitario se sustenta en

los principios del randi-randi: la concepción y práctica de la vida en reciprocidad, la

redistribución, principios que se manejan y están vigentes en nuestras comunidades.

Se basa en la visión colectiva de los medios de producción, no existe la apropiación

individual, la propiedad es comunitaria. [...] No es posible la convivencia del Sumak

Kawsay y el sistema actual, no puede ser un sistema de este Estado, hay que pensar

fundamentalmente en el cambio de estructuras de este Estado y construir uno nuevo,

pero hecho con nuestras manos, con las manos de todos y todas. Estamos presentando

una propuesta como opción de vida para todos, no es una propuesta indígena para los

pueblos indígenas sino para toda la sociedad. Debemos llegar a acuerdos, consensos

entre los diferentes sectores hacia la construcción de una sola agenda, una propuesta

de lucha y al entendimiento del Sumak Kawsay. El objetivo es recuperar y desarrollar

nuestros sistemas de vida, instituciones y derechos históricos, anteriores al Estado,

para descolonizar la historia y el pensamiento (MACAS, 2010, p. 14-16).

A leitura de mundo, suas visões, sistemas de vida próprios, que demandam uma

interpretação situacionista, que observa a materialidade das relações sociais, e da natureza,

assim como as demandas de sentido da consciência em ato demandam um modo de leitura

diferenciado. A complexidade destas aproximações, entre o individuo, a comunidade, a

natureza e as entidades sobrenaturais, todos agindo de forma integrada, e criando horizontes

de possibilidade amplos e transformadores entre as ipseidades individual e comunitária, são

avanços aos modelos hermenêuticos ocidentais. Propõe-se que estas visadas de mutualidade e

de visão plural exibiram a necessidade de uma hermenêutica que consiga atuar de forma

multitemática, de forma criativa, e tendo em vista características estereoscópicas; podemos

ver o fenômeno a partir de dois pontos de vistas simultâneos, multilateralmente e sobrepondo

os saberes.

5.4.3 Abya Yala e a hermenêutica pluritópica

Para finalizar este percurso, se objetivará em compor uma hermenêutica integrativa,

que busque a relação entre o pensamento europeu e o ameríndio, unindo Europa, América do

norte e Abya Yala.

Abya Yala é o nome dado ao continente Americano antes da colonização. É um termo

usado pelos Kuna no Panamá. Abya Yala significa ―terra em plena maturidade‖. Usar o termo

Abya Yala ao invés de continente Americano é parte desta agenda renovadora da

epistemologia a partir do pensamento ameríndio, para superar o termo América, ou Novo

Mundo. Do ponto de vista nativo não são terras do Américo (Américo Vespúcio), ou mesmo

nada de Novo, são as terras em pleno desenvolvimento que sempre existiram.

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Quando se está perdido busca-se um ―norte‖, a orientação é sempre a visão do

colonizador, quando se busca por Abya Yala olha-se para si mesmo, para a prórpia terra. Na

década de 1940 o pintor uruguaio Joaquín Torres-García fez uma pintura com o título

―América Invertida‖ com o lema ―nuestro norte es el sur‖ onde discute a reversão do

pensamento colonial, sua ilustração é muito significativa:

Desde que Joaquím Torres-García em 1935 inverteu a posição do mapa do

continente [...], situando a América do Sul ao norte, artistas modernos e

contemporâneos partem de mapas como formas de medir e representar o

mundo propondo novas maneiras de ver. São psicogeografias, rotas de

derivas, mapas afetivos e diversas representações do mundo que contradizem

as cartografias convencionais. O gesto simbólico de Torres García foi tantas

vezes retomado por outros artistas latino-americanos como Rubens

Gerchman e Nicolas Garcia Uriburu, apontando a necessidade de se pensar a

América Latina contemporânea. Os diálogos transnacionais que as novas

tecnologias proporcionam rompem os limites geofísicos e constroem

territórios antes inexistentes. As relações interculturais deslocam e ao

mesmo tempo resignificam os espaços locais (DE CARVALHO COSTA,

2012, p. 440).

FIGURA 12: América Invertida

Fonte: https://blogs.20minutos.es/codigo-abierto/2012/03/18/america-invertida-america-libre/

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A arte de Torres-García mostra a forma de olhar a epistemologia desde a prórpia casa.

O prórpio lar sincrético e híbrido de onde se pode retirar material simbólico, para produzir

pensamento e modos de vida concretos, tanto política como economicamente. O pensador

argentino Walter Mignolo desenvolveu uma metodologia hermenêutica que condiz com esse

pensamento. Segundo Mignolo:

En su horizonte no estaba plantear preguntas acerca del locus de enunciación

en situaciones coloniales. Desde la perspectiva del locus de enunciación,

entender el pasado no puede separarse de hablar el presente, así como el

sujeto disciplinario (o epistemológico) no puede separarse del no-

disciplinario (o hermenéutico). Esto implica, entonces, que la necesidad de

hablar el presente tiene su origen en un programa de investigación que

necesita desacreditar, reformar o celebrar hallazgos disciplinarios previos y,

a la vez, en la confrontación no disciplinar del sujeto (género, clase, raza,

nación) con las urgencias sociales. Ciertamente, no abogo por reemplazar lo

disciplinar por fundamentos políticos, sino que intento subrayar las

inevitables dimensiones ideológicas de cualquier discurso disciplinar,

particularmente en la esfera de las ciencias humanas (MIGNOLO, 2009,

p.177).

Certamente que o lugar de enunciação fundamenta a epistemologia, o discurso é

sempre direcionado para alguém, tem sempre um ouvinte, Ricoeur aprofunda a ideia ao

explanar que ―um aspecto importante do discurso é que ele é dirigido a alguém. Há outro

falante que é o endereçado do discurso. A presença do par, locutor e ouvinte, constitui a

linguagem como comunicação.‖ E esse processo tem no ouvinte a espera de um acordo, pois

―[...] asserir alguma coisa é esperar acordo, tal como dar uma ordem é esperar obediência‖

(RICOEUR, 2000, p.26).

O discurso espera um ouvinte e é produzido dentro de um campo de sentido próprio, e

por este motivo é preciso pensar a respeito de relações do sujeito com o meio que vive assim

como a língua etc. Dessa forma, uma metodologia que visa observar o horizonte de sentido de

Abya Yala, deve reconduzir o discurso para seus campos de referência, ―en contraposición a la

comprensión monotópica de la hermenéutica filosófica, la semiosis colonial presupone más de

una tradición y, por tanto, demanda una hermenéutica diatópica o pluritópica‖ (MAGNOLO,

2009, p. 182), conceito que Magnolo toma do teólogo e filósofo espanhol Raimon Panikkar.

Ainda segundo Magnolo, Kusch foi um dos pensadores Latino-americanos que mais se

aproximou de uma Hermenêutica Pluritópica:

Pero quizás el mejor ejemplo de un esfuerzo pionero para entender la

colonización en el Nuevo Mundo, y particularmente en los Andes, mediante

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la práctica de una hermenéutica pluritópica –sin darle ese nombre– es el del

filósofo argentino Rodolfo Kusch (1962, 1973). Por razones políticas, Kusch

estaba enseñando en una universidad de Salta, en el norte de Argentina,

durante la década de los sesenta. En el pasado, el norte argentino había sido

parte del imperio inca, y allí Kusch comprendió cuánto del legado inca

permanecía en el siglo XX en Perú, Bolivia y el norte de Argentina.

Comenzó a practicar una etnofilosofía comparativa, yendo desde el sistema

de pensamiento practicado por la elite inca en el siglo XVI (bajo el dominio

español) y por campesinos de origen indígena, hasta la tradición filosófica

occidental practicada en Europa y ensayada en la periferia colonial. El

análisis de Kusch, al moverse desde una tradición de pensamiento a otra, no

fue solo un ejercicio de hermenéutica pluritópica sino, me atrevo a decir, el

paso mínimo para constituir lugares de enunciación diferenciales y para

establecer una política de investigación intelectual que fuera más allá del

relativismo cultural (MAGNOLO, 2009 p. 185).

Kusch desenvolve esse levantamento de uma América Profunda, inserido no mundo

que estuda e ―una aproximación pluritópica no enfatiza la relatividad cultural ni el

multiculturalismo, sino los intereses sociales y humanos presentes en el acto de contar

historias o construir teorias‖ (MAGNOLO, 2009, p. 187), além de enfatizar a situação de ser

um teórico que vive a realidade mesma que escreve, vê tudo de pontos de vistas diferentes

num mesmo ato de narrar. A própria narrativa se torna híbrida, ao se tornar escrita

especulativa, mesmo que fenomenológica, pois busca a essência de ser híbrido ao produzir

discurso. Para Magnolo:

En un contexto más amplio, Kusch es – como los indígenas con quienes

conversa y a quienes refleja – un miembro y un participante de las Américas.

No es un antropólogo que, después de terminar sus dos o tres años de trabajo

de campo, pasará el resto de su vida en un entorno primermundista

escribiendo sobre sus amigos distantes, haciendo carrera fuera de su amplio

campo de trabajo. Por eso, el ejercicio de una hermenéutica pluritópica es

más que un ejercicio académico. Para Kusch es una reflexión sobre la

política de una investigación intelectual y una estrategia de intervención

cultural. «Escribir culturas» adquiere un significado totalmente nuevo

cuando la investigación intelectual es parte de la cultura compartida por el

mismo y por el otro, por el sujeto de estudio y por el sujeto que conoce

(MAGNOLO, 2009, p. 186).

Escrever culturas é sempre um desafio, o desígnio que coloca o indíduo nesse

trabalho, de encontrar qual melhor forma de relatar o Neoxamanismo urbano, e mostrar de

dentro do fenômeno suas principais definições e motivações, para tornar a escrever e produzir

um discurso teórico que busca as essências do fenômeno é em si um trabalho de hermenêutica

pluritópica; adotar o diálogo franco entre autores de várias áreas do saber, assim como de

horizontes epistêmicos diversos.

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Falar desde Abya Yala é um trabalho de duplo sentido: primeiro, mostrar as culturas

vivas e suas heranças e ancoragens pré-colombianas, segundo, buscar uma hermenêutica de si,

a partir de uma memória crítica, eticamente compromissada com a libertação e saúde da

psique. Um braço tem a função politica, de impor uma crítica ao que se produz teoricamente

e, o outro, a busca do cuidado de si, e da reversão para uma ipseidade capaz de produzir

histórias saudáveis. Ambas as abordagens são terapêuticas da história e de si mesmo. Segundo

Kremer:

Contar uma história em um estado de espírito participativo ao invés de uma

consciência dissociada pode parecer simples o suficiente. Mas, assim como

os curandeiros indo-europeus de idade precisavam ser capazes de estar com

espírito(s) de tal forma que o cosmos inteiro fosse afetado, também faz uma

narração diferente da história mudar o cosmos em que vivemos. A mudança

da história está impactando no cosmos (como o cosmos o afeta). Em vez de

evocar e manter a dissociação e a divisão de uma conversa indígena, tal

revelação evocaria o ser participativo. Isso não é pouca coisa: é a cerimônia

de cura do autocentrado, a reconstrução [P139] de quem somos. Esse esforço

encontra seu paralelo não em ―um bandaid em um corte, mas em cirurgia

cardíaca‖. Não se trata de uma mera mudança de identidade, mas uma

mudança fundamental e qualitativa no processo de construção de nossas

identidades. Isso significa que precisamos desconstruir-nos como seres que

somos, para que possa haver renovação da fonte criativa de nossas origens

[...] Colocar-nos na presença de tais poderes de criação só é possível através

da mediação catártica do estremecimento afligido sobre a história do

desequilíbrio ("bruxaria"), o confronto e a propriedade do material das

sombras. Como consequência, o que nossa história evoca pode tornar-se

diferente. Em vez da história de exceder os limites adequados, criamos a

possibilidade da celebração contemporânea de histórias de cura indígenas,

mesmo entre os povos que gostam de conter suas raízes indígenas a uma

distância segura, colocando-os em museus e vários outros lugares de

reificação e distanciamento (KREMER, 2000, p. 20-21).

A citação acima contribui para a compreensão da tarefa neste estudo. Vivem-se

momentos de grande transformação mundial, e a ferramenta de mudança são as narrativas de

poder, que podem resignificar a cada indivíduo, e as duas determinações históricas. Por si só a

narrativa é uma ferramenta de constituição de mundo, mas em seus modos de doação vão

operando em vários níveis de sentido, desde a apreensão estática do objeto à consciência, até

os eventos de sentido da linguagem e da história. E o medo do diferente pode espantar as

pessoas, fazê-las quererem manter certa distância dessa área ―movediça‖, mas a tarefa de

compreensão do outro pede uma postura de fé. Conforme afirma Ricoeur:

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[...] temos de enfrentar o problema do outro. A alteridade, como eu discuto

em O si-mesmo como outro, é conhecida, em primeiro lugar, como uma

ameaça para mim mesmo. É verdade que as pessoas se sentem ameaçadas

pelo simples fato de que existem outras pessoas vivendo de acordo com os

padrões de vida em conflito com os seus próprios padrões. Humilhações,

reais ou imaginárias, estão ligadas a essa ameaça, quando essa ameaça é

sentida como uma ferida que deixa cicatrizes. A tendência de rejeitar e

excluir é uma resposta a essa ameaça proveniente do outro. [...] É necessário

para a continuação da ação retentora dos traços dos eventos que nos

reconciliemos com o passado, e que nos alienemos da raiva e ódio. Mais

uma vez, a justiça é o horizonte de ambos os processos. Concluímos dizendo

que neste ponto da nossa história devemos lidar com o problema da evolução

de uma cultura de apenas memória (RICOEUR, 1999, p. 8-11).

Estar ameaçado pelo outro pode ser uma patologia contemporânea, onde todos tentam

manter seu modo de vida, de consumo, como único caminho viável, a ética do mérito

defendida pela ideologia burguesa, onde cada um pode ser o que quiser desde que acumule

capital. Modelos que veem nos indígenas uma afronta ao progresso, ao desenvolvimento da

indústria agrária etc. As reservas indígenas são vistas como grandes espaços de consumo e

abuso, e que estão sendo protegidos por um pensamento antiprogressista. Tem-se que adotar

uma postura crítica que seja possível aprofundar uma hermenêutica pluritópica, avançando em

empatia com as narrativas dessas comunidades. Como confirma Kearney:

Uma função fundamental da memória narrativa é a empatia. E a empatia

nem sempre é escapismo. É como Kant observou em seu relato de

―pensamento representativo‖, uma maneira de se identificar com tantos

companheiros humanos quanto possível - atores e sofredores - para

participar de um sentido moral comum (sensis communis). Desta forma, a

imaginação narrativa pode auxiliar certa universalização da lembrança,

onde nossas próprias memórias - pessoais e comunitárias - podem ser

compartilhadas e trocadas com os outros de momentos e lugares muito

diferentes, onde o familiar e o estrangeiro podem mudar de mão. Isto é o

que Ricoeur significa quando ele afirma que o ―horror se relaciona com

eventos que nunca devem ser esquecidos. Constitui a última motivação

ética para a história das vítimas. As vítimas de Auschwitz são, por

excelência, os representantes da história de todas as vítimas da história‖.

(Ricoeur 1988: 186) (KEARNEY, 1999, p. 30 e 31).

Ou seja, o índio é o representante de todas as culturas que foram desimanas em Abya

Yala desde o início da colonização. Para que se possa iniciar no Xamanismo é preciso que

haja uma decolonização do nosso pensar, e que se tenha uma postura de ipseidade aberta aos

modos ameríndios. Constituir uma epistemologia pluritópica, em que se é possível amalgamar

ao modo integrativo dos povos originários, “posto que o descolonial é uma maneira de

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pensar e de estar no mundo, e não um método para estudar. Pensar descolonialmente

significa desatrelar-se dos pressupostos da epistemologia moderna baseados na diferença

entre sujeito cognoscente e objeto a conhecer” (MIGNOLO, 2014)84

. Assim será possível um

avanço do ponto de vista histórico e terapêutico. Os grupos de Neoxamanismo urbano podem

ter uma tarefa histórica de grande importância ao devolver aos povos de Abya Yala o direito

de voz.

84

http://www.ihu.unisinos.br/533148-o-controle-dos-corpos-e-dos-saberes-entrevista-com-walter-mignolo

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percorreu-se uma jornada ao longo da escrita deste texto, e neste momento, busca-se

entretecer as diversas tarefas que foram levantandas no desenrolar da pesquisa. Como

observado, os horizontes de sentido são muito amplos, e toda tentativa de recorte, para que se

atenha ao campo da narrativa e metáfora é sempre assaltada por novos ramos de debate. O

Mythos xamânico ajuda nesta tarefa de desconstrução e futura reconstituição de modos de

discurso. Pode-se dizer que se foi levado através deste universo pluritópico a várias incursões

a mundos distantes, mas sempre retomando a missão de observar os modos narrativos e suas

intersecções com os modos de ser, de estar e suas hermenêuticas.

O contexto de grandes mudanças sociopolíticas deste continente demanda um olhar

sobre novos atores, a novos pensamentos, e analisar criticamente a colonialidade, como uma

estratégia de produção de conhecimento. Devemos aportar nosso pensamento sobre tais

fenômenos no contexto multicultural das Américas. O pulsar de novas teorias, que visam

romper com modelos enrijecidos e integrar os povos originários nos processos modernos,

pode ser uma rua de mão dupla, pois jogados no meio da pobreza, os indígenas não têm meios

de sobreviver a este sistema, visto que não há uma mudança social real. Nesse sentido, toda

atuação relacionada com os povos tradicionais precisa de mediação. A mudança, portanto,

iniciada pelo movimento cultural, que procura vencer a violência do agro negócio e avançar

através de formas de participação.

Políticas de estado por sua vez têm pouco apoiado esse movimento, sendo que esse

campo social, político e cultural tem pouca mudança. Alguns governos vêm avançando,

porém com a constante retomada dos modelos culturais hegemônicos, que vem imponto um

processo de retrocesso em Abya Yala; vista sempre como espaço do mundo para trabalho

barato e exploração, sem perpesctivas de horizontes de melhoras, não temos grandes

mudanças.

Intercambiar ideias entre o pensamento eurocêntrico e as teorias decoloniais pode ser

muito rico, e entende-se que neste ponto da pesquisa empenha-se ao máximo para dar conta

do fenômeno e traduzí-lo para o universo das ciências. Como salienta Mignolo o pensamento

decolonial é um modo de agir, e por isso não está preso a um modelo teórico, e o que se

observa ao longo do estudo é justamente a perspectiva pluritópica nos diversos exemplos, a

capacidade de fazer surgir o novo da interação do ocidental com as culturas originárias, em

suas escalas de possibilidade. E percebe-se que é possível o diálogo sul/norte para uma

interculturalidade do pensamento.

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Por isso afirma-se que a missão aqui incumbida não é ―civilizadora‖, de criar um

modelo para o que é (ontologicamente) o Neoxamanismo urbano, um canon; não é criar um

modelo de ética que deve ser aplicado aos grupos, é ao contrário, a tentativa de mapeamento e

descrição, de dar voz ao movimento, e deixar que o intercâmbio entre poética e texto

especulativo possa dialogar. Talvez não haja muito o quê dizer aos grupos estudados, eles têm

de alguma maneira sua forma de agir e seu desenvolvimento tem um lugar de saber. Interessa

aqui dizer algo às ciências, ao pensamento dominante, que este modelo hegemônico precisa

abrir mão da dominação, e que é possível propor novas aberturas de mundo.

O Neoxamanismo urbano precisa de um tratamento diferenciado, seu campo de

referência é muito rico, amplo, mesmo que esteja em constante transformação e hibridização,

como qualquer outra prática religiosa, sua estrutura permite uma fluidez muito ágil, que

acompanha rapidamente as tendências atuais, como foi comprovado com os temas das

palestras do congresso virtual Xamãsconet.

Por meio dos exemplos apresentados, foi observado como os grupos dialogam com a

atual demanda social por tecnologia, por sua vez oferecendo a interação com a Web, assim

como o diálogo com diversas religiões urbanas, e com as grandes correntes religiosas. A

constante produção e recepção de imagens contribuem com o ambiente universalista do

Neoxamanismo, ampliando a perspectiva de demanda e público que procura tais espaços

religiosos.

Outro dado importante é a retroalimentação, a autoformação, que em determinado

momento dependia de outros movimentos religiosos, como a Nova Era, e que hoje gera seu

próprio campo de referências e formação. A formação, por sua vez, é um ponto crucial, pois

na medida em que o movimento religioso gera suas próprias imagens, seu próprio discurso, e

lideranças iniciam formações continuadas, já se pode falar de uma tradição interna ao

Neoxamanismo urbano.

Uma primeira geração de xamãs urbanos estudou com iniciadores, vindos de diversas

tradições, visões do Xamanismo formaram outra geração de lideranças religiosas que hoje

formam uma terceira geração, totalmente formada dentro do Neoxamanismo urbano, em

―Kivas‖, onde o conteúdo já está formatado, e a partir destes espaços criam também suas

tradições, rompendo com estas escolas ou dando continuidade a elas como multiplicadores,

mas sempre trazendo novidades e experiências contextuais. O Neoxamanismo urbano como

campo autônomo é amplo em diversos sentidos, principalmente na possibilidade de estudo da

religiosidade contemporânea e suas diversas pluralidades.

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A produção de metáforas que navega entre o Xamanismo tradicional e o

Neoxamanismo urbano é muito vasta, em primeiro lugar, a produção de imagens, vindas das

experiências visionárias dos xamãs indígenas passam por um processo de comunicação

metafórica para que chegue até a comunidade local, este saber é codificado a partir de

diversos tabus e condutas do grupo em especial. O que não quer dizer que a experiência

extática não seja livre de amarras, mas o que ocorre é que estes xamãs precisam comunicar

sua experiência dentro de um sistema de linguagem comum, onde a comunidade possa se

apropriar dessas narrativas visionárias.

Por sua vez, além da narrativa visionária, essas imagens podem vir a fazer parte da

cultura material, através da produção de objetos como tecelagem, esculturas, pinturas etc. O

conjunto da cultura material é repleto de sentidos diversos, pois não é só a imagem visionária

que está presente, mas também a experiência subjetiva do receptor. Nesse caso, já há um

processo de trocas simbólicas entre a narrativa visionária do xamã e a subjetividade do

ouvinte, e por sua vez, num segundo momento a tentativa de materialização destas trocas em

objetos cerimoniais.

Outro aspecto importante desse ciclo é o entendimento de que a natureza é um sujeito

vivo, com identidade e desejo voluntário. Assim como o entendimento de que a natureza

engloba todos (não há uma diferença entre natureza e cultura bem definida), existem animais

que são mais sábios que o homem, e que têm grande poder.

Portanto se constitui uma rede de metáforas que precisam abarcar essas visões de

mundo. E o mais importante é que a produção de muitos desses objetos obedece a esta relação

simbiótica com a natureza. A produção de objetos de poder, por exemplo, segue esta teia

metafórica, e estabelece uma relação de intensidades e afetos, pois alguns objetos têm poderes

sobrenaturais, enquanto outros são apenas adornos. O caso da etnia Huni Kuin, na Amazônia,

é bem singular, pois a comunidade produz seu artesanato baseando-se nas visões coletivas da

Jibóia Branca (Boa Branca). Esse processo se dá dentro de um trabalho visionário, a partir da

rede de saberes da etnobotânica comunitária.

O Neoxamanismo urbano por sua vez tem um dilema, pois seu campo de referência é

muito maior, que vai desde a produção da literatura Neoxamânica (Castañeda, Harner,

Ingerman, Meadows, Sams, Walsh etc.) e também dispõe da cultura material indígena

(artesanato), psicoterapia, de diversas religiões, como o Hinduísmo, Taoísmo, Cristianismo,

Candomblé, Umbanda, Espiritismo, cultura popular etc.

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Tal processo de hibridismo é bastante rico, e determina a metáfora da heterotrofia85

do

Neoxamanismo urbano, isto não impede que o mesmo seja autótrofo em boa parte dos casos,

devido sua atual condição com diversas lideranças atuantes e formadores dos neoxamãs, ou

seja, é capaz de sobreviver a partir de si mesmo. Nesse campo de referência ainda adiciona-se

a produção de narrativas próprias, que não vêm de outras religiões ou espiritualidades, mas

que é gerada dentro do próprio movimento. A cultura etnobotânica e o uso ritual de

psicoativos auxiliam as experiências visionárias, e, portanto, a criação de visões narrativas

próprias aos membros das rodas de Neoxamanismo urbano.

Há, portanto, atualmente a produção de narrativas visionárias neoxamânicas, que

garantem uma autonomia das lideranças e praticantes. Inclusive com a possibilidade de que,

no Neoxamanismo urbano, além das lideranças espirituais, há o incentivo para que os

participantes gerem e tenha acesso a experiências extáticas visionárias, o que inclusive ajuda a

formação de novas lideranças que entre suas visões podem receber um chamado espiritual

para serem, eles mesmos, novos condutores de grupos.

O que não difere da formação do xamã tradicional, no que tange ao chamado dos

espíritos, mas a formação e o treinamento tradicional com os anciões partem de diversos

cursos, workshops e vivências, onde o neoxamã pode se preparar para conduzir seu próprio

grupo. Mesmo que seja por vontade própria, o participante pode adquirir, a partir de uma

formação híbrida, condições de formar seu próprio grupo.

O Neoxamanismo urbano pode ser autótrofo na medida em que produz seu próprio

campo de referência, mas também é heterótrofo, pois mantem uma constante inovação

imagética, que advêm de outras práticas religiosas, o que o caracteriza como mixotrófico86

.

85

Os autótrofos produzem seu próprio alimento ou nutrientes por meio da fotossíntese ou então da

quimiossíntese. Como exemplo de organismos autótrofos, podemos citar: as algas, plantas, cianobactérias e

alguns protistas (Euglena). Quando um organismo depende de materiais orgânicos pré-formados de outros seres

vivos para obtenção de energia e síntese das biomoléculas de que necessita, como todos os animais, é

denominado heterótrofo. Fonte de pesquisa: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/02/lesma-do-mar-

incorpora-genes-de-alga-para-conseguir-fazer-fotossintese.html 86

Existem seres na natureza que se utilizam da fotossíntese para gerar alimento, mesmo que sejam heterótrofos

de nascimento. O primeiro animal capaz de realizar fotossíntese é a lesma marinha conhecida pelo nome

cientifico Elysia chlorotica, a lesma rouba os cloroplastos da alga Vaucheria litorea. Quando se alimentam dessa

alga, as lesmas mantêm os cloroplastos intactos e os armazenam no interior das células de suas glândulas

digestivas. As lesmas que possuem cloroplastos não são capazes de passar os cloroplastos para seus

descendentes, que sempre nascem incapazes de realizar fotossíntese. Devido a este ―pequeno‖ detalhe, alguns

especialistas ficam com o pé atrás e preferem não classificar a Elysia chlorotica como um ser fotossintetizante,

mas o fato de que, ao longo de sua vida, a lesma se torna um ser mixotrófico (autótrofo e heterótrofo ao mesmo

tempo) é inegável. Fonte de pesquisa: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/02/lesma-do-mar-

incorpora-genes-de-alga-para-conseguir-fazer-fotossintese.html

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Além disso, a heterotrofia, partindo de diversas religiosidades e espiritualidades, não

perde o ponto forte que é a identidade com o Xamanismo stricto sensu, pois o que mantém a

identidade narrativa do movimento é a capacidade de produção de experiências narrativas

visionárias, através de métodos de expansão da consciência e êxtases corporais. A mística

capacidade de conversas com os espíritos dos xamãs é aqui requerida de diversas maneiras,

inclusive importando as metodologias do Espiritismo de mediunidade e incorporação. Mas

sempre dentro de um contexto de expansão da consciência, não somente do líder religioso,

mas também dos participantes, baseado na narrativa que cada um tem um xamã dentro de si,

encorajando a constituição de narrativas de poder.

Portanto, apesar de termos dentro do Neoxamanismo urbano um pluralismo religioso

em constante mutação, o vocativo do movimento é o Xamanismo indígena, e suas diversas

narrativas. O ponto de cruzamento, portanto, e que dá nome ao movimento, ao utilizar o termo

―Xamanismo‖, como uma identidade narrativa, é a experiência ritual e o evocativo ao

universo de sentido indígena87

. O que se obriga a observar esta relação entre xamanismo

tradicional índio e o Neoxamanismo urbano. Principalmente em relação a questões de visão

de mundo. Evocando uma origem, mesmo que discursiva no Xamanismo stricto senso, as

metáforas podem ter significados em ambos os casos, entendendo sempre que o

Neoxamanismo urbano é uma prática autônoma e híbrida, mixotrófica, e a comparação com a

visão de mundo indígena pode criar certo mal entendido.

Acrescenta-se o interesse, aqui, de compreender se em algum ponto é possível

constituir um ethos, que possa dar sentido à prática espiritual. E também a possibilidade de

propor um campo epistêmico onde se permite observar a formação das novas lideranças. O

Neoxamanismo urbano é uma porta de entrada para uma discussão sobre a possibilidade de

resgatar um ethos contemporâneo, a partir de um ethos xamânico, que visa romper com o

modelo ocidental de aceleracionismo econômico e capitalista, ou seja, o consumo e a

destruição do planeta e da vida, e a inserção de novas epistemologias. Obviamente que uma

prática espiritualista, ou mesmo religiosa não têm a pretensão de movimento social, e não é o

que se busca implicar sobre essa religiosidade, muito pelo contrário, pelo fato de ser um

fenômeno humano, em muitos casos, vai reproduzir a ideologia vigente.

Entretanto as metáforas que estão entretecidas à teia xamânica vêm desde o universo

indígena trazendo mensagens que traduzem o anseio nativo de sustentabilidade da natureza,

de vida comunitária, de bem viver (Teko Porã) com os outros e com a natureza, como sujeito

87

Há casos de grupos que se identificam com comunidades não indígenas, principalmente nos casos do

Neoxamanismo como base na cultura hindu.

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vivo e relacional. As principais metáforas xamânicas que sobrevivem na mixotrofia do

Neoxamanismo urbano são materiais de um estudo comparativo, e que a partir deste, pode-se

avaliar se é possível uma tentativa de discurso ético e epistêmico. No sentido de um campo de

referência de possibilidade da prática ―ecoxamânica‖ (FIGUEIREDO, 2017) e uma técnica

própria que constituam um corpo estruturado de conhecimento.

Esta leitura, que visa encontrar uma saída ética, entende que o movimento, mesmo não

tendo como tarefa a discussão politica, pode ser um espaço de formação de sujeitos capazes

de reavaliar o discurso da sociedade ocidental, se conseguirem abordar a prática xamânica a

partir de parâmetros vindos dos povos indígenas. A busca por um paradigma epistêmico

advindo do modo de ser e da visão de mundo indígena favorece um olhar novo sobre a

realidade, onde as narrativas se confrontam com a memória coletiva e com as políticas de

memória que escondem as narrativas dos povos originários. E nesse sentido se propõe uma

crítica histórica, onde as narrativas podem encontrar voz na memória criativa e numa ética

contemporânea.

Neste sentido pode-se falar em metáforas vivas, que buscam reverter o mundo, e

introduzir inovação. O que significa a possibilidade de mudança do paradigma

aceleracionista, e do modo de ser capitalista e neoliberal, por outro lado, de metáforas mortas,

que apenas mantêm o status quo na sociedade contemporânea. Assim, o processo de

narratividade, que ocorre de uma cultura para outra, pode ou não trazer elementos fundadores

e a visão de mundo daquela comunidade do discurso de origem. A metáfora, que deu origem a

uma imagem, pode sofrer inúmeras modificações, e neste caminho vir a significar outra coisa.

Posto isso, não se quer afirmar que o caminho do emissor ao receptor seja algo sem

ruído, direto, sem intermediários ou interferências. Mas no meio das intersecções, busca-se

identificar quais metáforas mantêm uma ligação direta, ou seja, se mantêm viva, com o

discurso dos povos indígenas, e do modelo epistêmico de conhecimento destes povos.

Assim, entre uma e outra característica do Neoxamanismo urbano encontram-se

metáforas que vêm do mundo indígena, e que tem em seu cerne a possibilidade de

fundamentação de um conjunto epistêmico e um ethos contemporâneo que seja uma

contrapartida para a realidade atual em suas contradições.

Estes apontamentos dão suporte para os novos estudos, onde se pode aprofundar a

questão da intersecção dos discursos, das metáforas, da poética neoxamânica e por fim as

diretrizes do ethos xamânico.

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Foi possível objetivamente colher os frutos da pesquisa avaliando se a hipótese

levantada central efetiva-se. E observou-se, ao longo da escrita, que o sujeito narrativo produz

suas sedimentações em processos e arranjos que, em contraponto ao contexto coletivo, se

destaca por sua característica singular. A singularidade como mostrado ao longo do texto

exemplifica como cada um apresenta sua narrativa, desde a primeira leitura autobiográfica,

seguindo para as visões narrativas dos mestres e as leituras metafóricas que aparecem nos

textos e imagens dos grupos e, por fim, as narrativas dos estudos acadêmicos apresentados no

último capítulo. Percebe-se como a visão extática, a narrativa visionária, estabelece uma

reversão de paradigmas pessoais, e como a ipseidade é ponto forte do processo de

individuação.

Cada pessoa age de acordo com suas estruturas internas, e as visões extáticas têm uma

maneira diferente de se fazer narrativas em cada um. O que pode ser averiguado é que esta

linguagem extática aparece como fenômeno limite, em que uma análise hermenêutica deve

levar em consideração a leitura fenomenológica de suspensão da temporalidade e de fusão de

sentidos, assim como amálgamas metafóricas constituindo estas interfaces entre o

extremamente fora, pré-reflexivo e não-intencional, e a linguagem compartilhada entre os

membros do grupo.

Constatou-se como o sujeito se apropria destas narrativas de poder e das narrativas

coletivas e a partir de diversos arranjos inaugura uma identidade autêntica. Ao passo que se

estruturam os modos de ser de cada sujeito, em uníssono se inauguram as práticas

comunitárias, em ida e vinda. Imagens que se orientam para a efetiva tomada de consciência,

e ao mesmo tempo em que podem criar velamentos, se não forem elaboradas dentro de um

sistema libertário. Portanto, a proposta de identificar as jornadas xamânicas como lugar de

fato onde nascem às estruturas do Neoxamanismo urbano se mostrou produtivo, ao se

perceber que a metáfora continuada enquanto campo de extensão do sentido no discurso como

totalidade é ponto crucial para compreensão do fenômeno, assim com a análise narrativa é,

como método hermenêutico, uma ferramenta de investigação, diagnóstico e perspectivas

teóricas.

Ao longo do texto, buscou-se analisar as diversas possibilidades de abordar o tema,

afunilando para se chegar ao ponto final, em que o sujeito se mostra como dotado de

capacidades e vontade criativa e que, ao longo da história, permitiu verificar o ato religioso

como um campo de criação e não somente como espaço de perpetuação conservador.

Constantemente se identificam nas diversas religiões inovações, de acordo com o tempo e

contexto social, mas também pode-de acrescentar que o sujeito, como entidade singular,

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promove inovações contínuas e ininterruptas na prática religiosa e, nesse sentido, tem-se um

campo para investigar, onde começa e onde inicia o sujeito e a religião. Averigou-se, por

intermédio deste estudo, que não há uma divisão clara, pois não haveria o Neoxamanismo

urbano se não fossem as narrativas dos sujeitos que alimentam o discurso comum, sacerdotes,

profetas e o praticante são todos artífices da espiritualidade e de seus desdobramentos. A

capacidade humana de produzir narrativas e ganhar o mundo, temporalizando experiências

limites, são uma possibilidade da poética da vontade.

Procurou-se mostrar ao longo deste estudo esse pensamento de uma filosofia da

vontade que se fundamenta pela hermenêutica, pela possibilidade de observar as essências das

manifestações, e seus modos de ser no discurso. A linguagem é o campo do ser, onde semeia

e colhe o mundo da vida, e a criação vence a falha humana, a finitude, e inscreve o ser na

abertura dos possíveis. A poética é a força que move e constitui o ser.

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265

Anexo: Lista de nomes dos participantes do Xamasconet 2015 -2017 e seus respectivos

temas

A

Adriana Ocelot. PLANTAS E TERAPIAS TRADICIONAIS INDÍGENAS

Adriano Camargo. RITUAIS COM ERVAS

Akaiê Sramana. XAMANISMO ANCESTRAL – O LEGADO DA ÍNDIA ANTIGA

Aldo Grau. TEMPO DEL SUR

Alexandre Cumino. CONEXÃO UMBANDA SAGRADA E XAMANISMO

Alexandre Meireles. XAMÃBANDA – XAMANISMO E UMBANDA

Alexandre Teixeira Ramos. XAMANISMO E HERANÇA AFRO

Anselmo Paes Jr. XAMANISMO E MEDICINA ORIENTAL

Armando Austregésilo. MASSAGEM XAMÂNICA – MASSAGEM DAS ESTAÇÕES

Athamis Bárbara RITO DE PASSAGEM – SABEDORIA DA RODA DE MEDICINA

OJIBWAY

Aurelio Diaz Tekpankalli. FOGO SAGRADO DE ITZACHILATLAN

Avelino Capelos. REIKI XAMÂNICO – ATIVANDO OS POTENCIAIS ESPIRITUAIS

Awarani Araising. CANTOS XAMÂNICOS - A DOCE MEDICINA NATIVA

B

Bo Montenegro. VORTICES DE ENERGIA – MISTICISMO HOPI E BUDISMO

TIBETANO

Bull Muitos Cavalos e Bill SABEDORIA NATIVA NA ALDEIA DO SOL

C

(Don) Carlos Jesús Castillejos. SABEDORIA MAYA TOLTECA

Carlos Sauer. CERIMÔNIA DA TENDA DO SUOR

Carminha Levy. PAZ GÉIA E JORNADA COM TAMBOR

Claudiney Prieto. AS BASES XAMANÍSTICAS DA WICCA

Claudio Capparelli. UMA NOVA VISÃO DO MASCULINO

Claudio Quintino Crow. ALMA CELTA

Clêudio Bueno. XAMANISMO CRÍSTICO

Cesar Cruz. SABEDORIA DOS VENTOS XAMÂNICOS

Cesar Scheurich CLÃ DOS CAVALOS PINTADOS

Cyda Godoy TAMBORES DA ALMA

Cyro Leãoo XAMANISMO – CAMINHO DO CORAÇÃO

D

Denis Rojas. CARTAS DO CAMINHO SAGRADO

Denise Mascarenhas. OS SETE PORTAIS – SABEDORIA ANCESTRAL DA RODA

NATIVA DE MEDICINA

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266

E

Elaine Vieira. PAJELANÇA URBANA

Elebuibon Ogunbiyi Omobobola. XAMANISMO AFRICANO

Ernani Fornari e Gabriela Carvalho. XAMANISMO E ALINHAMENTO ENERGÉTICO

Eveli Pitá Yuerá. CÍRCULO DA PEDRA AZUL

F

Fany Carolina. XAMANISMO FEMININO E MEDICINA DA MULHER ARANHA

Felicity Macdonald. DANÇAS E CERIMÔNIAS VISIONÁRIAS DE JOSEPH RAEL

Foster Perry. MEDICINA DO BEIJA-FLOR

G

Getúlio Gomes. AUTODEFESA ENERGÉTICA

Gui Vitali. RODA DE TAMBORES COLETIVA E RODA DE TAMBORES XAMÂNICA

Gustavo Elias Vivanco Ortiz. SABEDORIA DA TRADIÇÃO YATIR

H

Helder de Andrade. XAMANISMO E A CURA PELA ANCESTRALIDADE

I

Ilson Barros. BIODANZA E XAMANISMO

Inti Roman. SABEDORIA QUECHUA

Irineu Deliberalli. XAMÃ INTERIOR – O CAMINHO DA CONSCIÊNCIA CRÍSTICA

J

Jack Silver. XAMANISMO – ESCOLA DOS GUERREIROS

Jaya Vitali. O CANTO DA ALMA

Joel Zia. FILHOS DO VENTO

Juliaro. BÊNÇÃO DO ÚTERO E SAGRADO FEMININO

K

Ka Ribas. CIÊNCIA SAGRADA DOS INKAS

Karla de Araujo. HO`OPONOPONO E CORTE DE CORDÕES AKA

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267

Kaká Werá. COSMOLOGIA TUPY-GUARANI

Kayrrá Kariri-Xocó. SABEDORIA KARIRI-XOCÓ

L

Léo Artése. PLANTAS DE PODER E EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA

Leslie Ávila. CALENDÁRIO MAYA CHOLQ`IJ

Lino Py. TENDA DO SUOR

Lukas Budimir. MINHAS EXPERIÊNCIAS COM JOSEPH RAEL

Luiz Filipe Tsiipré. UMA JORNADA NO TEMPO

M

Mallku Aribalo. O DESPERTAR DO PUMA

Mama Andréa Herrera Atekokolli e Txana Ixã. SABEDORIA MULTICULTURAL

Marcelo Caiuã e Bianca Martins. WAKAN WOOD – ARTE E MAGIA XAMÂNICA

Marcello Cotrim. A FORÇA DOS XAMÃS

Marcos Reis. DRUIDISMO CELTA

Marcus Fraga. TAMBORES XAMÂNICO E RESGATE DE ALMA

Mauricio de Luna. TRADIÇÃO XAMÂNICA E IFÁ

Mauricio Eloy. OS XAMÃS DO NEOLÍTICO E OS ALIENS NO DESERTO

Mauro Inu Yube. MEDICINAS DOS POVOS DA FLORESTA

Menkaika. A VOZ DA SABEDORIA INTERNA

Mitã Uerê. AYAHUASKA – MISTÉRIOS, ALERTAS E RECOMENDAÇÕES

Mirella Faur. O SAGRADO FEMININO

Monica Jurado. VIBRAÇÕES E MEDITAÇÕES COM TAMBORES

Mônica Oliveira. FOGO SAGRADO – ALINHAMENTO ENERGÉTICO

N

Nelson Neraiel. XAMANISMO ENERGÉTICO – CARLOS CASTANEDA E AS

ENERGIAS

Ninon Cramer. TAMBORES PELA TERRA

O

Otan Patrick Ford. JORNADA XAMÂNICA

Otávio Leal. XAMANISMO TÂNTRICO

P

Pajé Sapaim. SABEDORIA KAMAYURÁ

Patricia Aguirre. XAMANISMO E CARLOS CASTANEDA

Patrícia Fox. AS DEUSAS INTERIORES E A JORNADA MÍTICA FEMININA

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268

Patricia Pinna. XAMANISMO MEXICANO E ARTETERAPIA

Paulo Brito. PSICOTERAPIA XAMÂNICA INTEGRATIVA

Paulo Sergio Oliveirah. CURA ANCESTRAL E INSPIRAÇÕES MUSICAIS

Paula Raquel Xavier. ACADEMIA DE CURANDEIRAS

R

Rex Thomas. XAMANISMO – A ARTE DE VIVER

Roanna Jackson e Bo Montenegro. SABEDORIA HOPI

Ricardo Mendes. VISÃO SISTEMICA E RESGATE DE ALMA

Rodrigo Ecosss. TAMBOR, ARTE E CONSCIÊNCIA – O SOM DO CORAÇÃO

Rogério Favilla. SIMBOLISMOS DA RODA DE MEDICINA

Rosa Desideri. RESGATE QUÂNTICO

S

Samuel Souza de Paula. TOTEM BIOXAMÂNICO – ANIMAIS DE PODER

Sandra Ingerman. CURA E TRANSFORMAÇÃO PESSOAL

Satya Kali. SHAMANIC TANTRA

Sergio Frug. YERÊ ARAPUÃ – PRINCÍPIOS DA RODA DE CURA XAMÂNICA

Shane e Melanie Seibel SUN DANCE, BEAR DANCE E SABEDORIA UTE

Silvana da Cunha. OS QUATRO COMPROMISSOS TOLTECAS

Sofia Frazoa. NEOXAMANISMO E EMPODERAMENTO FEMININO

Stella Maris Cleto. INSTRUMENTOS DE PODER NO XAMANISMO

Sthan Xanniã Tehuan Tepelt XAMANISMO – AOS FILHOS DA TERRA

Suindara Ribeiro RESGATE DAS HISTÓRIAS ANCESTRAIS

Sweet Medicine Nation SETE MANEIRAS DE ANDAR PELO CAMINHO VERMELHO

Sylvie Shining Woman DANÇA DA ÁGUIA

T

Taita Oscar Giovanny Queta Osso Kófan. YAGÉ, REZOS E ÍCAROS NA TRADIÇÃO

KÓFAN

Tânia Gori. BRUXARIA NATURAL

Tania Ramalho. XAMANISMO DE CORPO E ALMA

Theresa Thomas. A CURA PELOS ANCESTRAIS / ELEMENTOS NA TRIBO DAGARA

Timberê Aryanã XAMANISMO – A FORÇA ARYANÃ

Tony Paixão. CAMINHO NATIVO – SABEDORIA CHEYENNE

V

Veridiana Mataji. OS QUATRO PORTAIS NO XAMANISMO

Vernon Foster. SABEDORIA DAQUELE QUE ANDA COM O TROVÃO

W

Page 269: WILLIAM BEZERRA FIGUEIREDO - Universidade Metodista de São …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1767/2/William... · 2018-07-18 · Paulo - Escola de Comunicação, Educação

269

Wagner Frota. SABEDORIA ANDINA E RODA MEDICINAL SUL-AMERICANA

Will Valladão. BIG HORN E SUAS ENERGIAS

William Figueiredo. O XAMANISMO URBANO – PESQUISAS ACADÊMICAS

Wilson Gonzaga. XAMANISMO – OS 4 ELEMENTOS E O LÍDER MODERNO

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