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    AS FRONTEIRAS MAL DEMARCADAS DO PBLICO E DO PRIVADO NO

    BRASIL: a prtica do nepotismo na administrao pblica brasileira.

    Paulo Roberto Rios Ribeiro (UEMA)

    Prof. Assistente do Departamento de Histria e Geografia do Centro de Educao,Cincias Exatas e Naturais CECEN. Doutorando em Polticas Pblicas UFMA.

    RESUMO: Anlise sobre a problemtica que envolve as relaes entre as esferas pblica e

    privada tanto no campo terico, quanto nos seus desdobramentos para a evoluo histrica doBrasil. Analisa-se, mais especificamente, a prtica do nepotismo contratao de parentessem concurso na administrao pblica, como um trao constitutivo da permanncia doclientelismo e do patrimonialismo na conduo do Estado brasileiro. Apesar de algunsavanos legais, o nepotismo apresenta suas conseqncias, em termos estruturais, numa certaprivatizao do aparelho estatal. O nepotismo se perpetua e se amplia em todas as dimenses,apesar das tentativas da sociedade civil em barrar tal prtica. Conclui-se na perspectiva desuperao do nepotismo na administrao pblica; na definio clara dos limites e funes dasesferas pblica e privada no contexto nacional e na direo da republicanizao do Estado, nosentido da constituio de uma esfera pblica democrtica e transparente no Brasil.

    Palavras-Chaves: Administrao Pblica; Nepotismo; Pblico e Privado; Clientelismo; Estado

    SUMMARY: An analysis about problems in relations between public and private spheres inthe field of theory and discoveries regarding the historic evolution of Brazil. Apart fromgeneral aspects, the practice of nepotism - hiring family members for public jobs without any

    eliminatory testing - is specifically looked at as a permanent trait of traditions that are bothpatrimonialist and clientelist and part of the running of the Brazilian State. Even consideringcertain strong advances in legislation, these things continue to make their mark on Braziliansociety, in structural terms in the privatization of state structures. Nepotism is perpetrated andit is growing in all of its dimensions despite the great efforts of civil society to try to stop it.The work concludes from the perspective of the overcoming of the practice of nepotism in theconduct of public servants in the three spheres of administration, in a clear definition of thelimits and functions of the public and private spheres in the national context and in thedirection of a needed and pressing republicanisation of the state in the sense of a constitutionof a transparent and democratic public sphere in Brazil.

    Key Words: Public Administration, nepotism, Public and private, Clientelism, State

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    Luis Incio falou, Luis Incio avisouSo trezentos picaretas com anel de doutor

    Eles ficaram ofendidos com a afirmaoQue reflete na verdade o sentimento da nao lobby, conchavo, propina e jetomVariaes do mesmo tema sem sair do tomBraslia uma ilha, eu falo porque eu seiUma cidade que fabrica a sua prpria leiAonde se vive mais ou menos como naDisneylndiaSe essa palhaada fosse na CinelndiaIa juntar muita gente pra pegar na sadaPra fazer justia uma vez na vida

    Eu me vali deste discurso panfletrioMas a minha burrice faz aniversrioAo permitir que num pas como o BrasilAinda se obrigue a votar, por qualquer trocadoPor um par de sapatos, por um saco de farinhaA nossa imensa massa de iletradosParabns coronis, vocs venceram outra vezO congresso continua a servio de vocsPapai quando eu crescer, eu quero ser anoPra roubar, renunciar, voltar na prxima eleioE se eu fosse dizer nomes a cano era pequenaJoo Alves, Genebaldo, Humberto LucenaDe exemplo em exemplo aprendemos a lioLadro que ajuda ladro ainda recebe concessoDe rdio FM e de televiso.

    Herbert Vianna (Paralamas do Sucesso)1. INTRODUO

    No instante em que pipocam incessantemente os flashes das modernas cmeras

    fotogrficas, em que se acendem as luzes dos cmeraman, no palco onde se entrecruzam os

    personagens do pblico e do privado, embalados pelo som dos Paralamas, assistimos mais umescndalo que mobiliza a opinio do populacho: o todo poderoso senador republicano,

    Antonio Carlos Magalhes foi pego em flagrante delito bisbilhotando a vida alheia, ao

    grampear telefones de polticos, de sua ex-namorada, do atual marido dela e de mais algumas

    pessoas que estavam a lhe importunar ou ameaar o seu poderio poltico e econmico nos

    rinces da capitania baiana.

    Esta atitude, que poderia ocasionar a perda do mandato do ilustre poltico nordestino,

    foi devidamente arquivada pela Mesa Diretora da Cmara Alta, em mais uma demonstraoevidente do mtodo tupiniquim de resolver as questes que envolvem os setores dominantes

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    da cena poltica nacional, ressalvadas as excees de praxe, as quais vm apenas para

    confirmar a regra.

    Ironicamente, o exemplo mencionado reflete muito bem os termos da discusso

    conceitual e historiogrfica a respeito do que o pblico e do que o privado nestas terras de

    Vera Cruz. Sabemos que a palavra pblico representa uma clara oposio a palavra

    privado, uma vez que, na vertente lexical do grande mestre Aurlio Buarque de Holanda,

    significa relativo ou destinado ao povo, coletividade, ou ao governo dum pas. Na direo

    oposta, nosso dicionarista maior diz que privado no pblico.

    Essa espcie de dilema histrico no de hoje. Caio Prado Jnior, paulista de boa

    estirpe, mas com alma revolucionria, escrevendo h cerca de 70 anos atrs, j o assinalava.

    Ao proferir o seu grave juzo sobre o papel das elites dominantes na nossa formaoeconmica e social, Caio Prado s acusa de terem mantido intactas as grandes e

    fundamentais questes que se propem no Brasil desde longas datas. Para este grande

    brasileiro, do equacionamento destas questes depende a integrao da nao brasileira nos

    nveis da civilizao deste sculo em que vivemos. Da essncia do pensamento de Caio

    Prado, a surpreendente vitria de um retirante nordestino, pode representar a abertura de um

    novo ciclo histrico na cena nacional, em que a construo da nao brasileira seja a garantia

    do atendimento dos direitos e das necessidades centenrias de seu povo.Humanista e democrtico, Caio Prado, na sua condio de homem de letras, mas

    tambm de ao poltica militante, exigia uma Nao para os brasileiros, uma construo

    cvica, apoiada, no dizer do historiador Raimundo Santos, no trip formado pela fora do

    trabalhador livre, da opinio pblica e dos partidos. O campo de luta em torno dos desgnios

    da Repblica era percebido por Prado, que queria a sua republicanizao, ou seja, a

    verdadeira constituio de uma esfera pblica democrtica e transparente em nosso pas. Para

    superar a persistncia das mazelas estruturantes da vida nacional, Caio Prado queriadesencadear um processo civilizador, republicano e integrador do povo brasileiro.

    Buscando em ARENDT (2001, p. 61) a inspirao necessria para dar consecuo ao

    debate que se trava, observamos a autora distinguir e ressaltar a suprema importncia do

    espao pblico para a sociedade, quando afirma que uma vez que a nossa percepo da

    realidade depende totalmente da aparncia, e portanto da existncia de uma esfera pblica na

    qual as coisas possam emergir da treva da existncia resguardada, at mesmo a meia-luz que

    ilumina nossa vida privada e ntima deriva, em ltima anlise, da luz mais intensa da esfera

    pblica.

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    Para ampliar ainda mais este debate terico, o conceito de pblico pode remeter

    tambm idia de platia, um conjunto de pessoas que se torna espectadora de uma pea,

    de uma novela, de um comcio, momentos em que tem controle apenas sobre a sua capacidade

    de elogiar, atravs de palmas ou de criticar de maneira veemente, com o uso intensivo de vais,

    apupos, gritos ou outras formas de manifestao de desagrado e insatisfao conhecidas.

    Esta idia do pblico como representao, leva a uma certa passividade no fazer

    poltico, levando os seus atores e protagonistas a praticarem toda sorte de manipulaes e

    simulacros, tpicos da Era daMass Media. Um olhar arguto sobre esta viso est contido em

    RIBEIRO (1994, p. 34), para quem

    quanto mais se teatralizar a poltica quanto mais os cidados forem reduzidos a pblico, aespectadores das decises polticas -, menor ser o carter pblico das polticas adotadas, menor seucompromisso com o bem comum, com a res publica que deu nome ao regime republicano. Em suma,quanto mais o governante fizer cena para sua popularidade, menos ser republicano, e maior riscocorreremos de que, esquecendo pblico pelo publicitrio, ele se aproprie da coisa comum para finsprivados.

    As concepes de RIBEIRO esto coladas aos acontecimentos vividos pela nao

    brasileira numa importante quadra da nossa histria republicana, quando um jovem presidente

    levou ao paroxismo e ao drama rocambolesco a sua passagem pelo poder republicano. Collor

    de Mello indeterminou, de maneira esplndida, o que estamos denominando aqui de fronteiras

    entre o pblico e o privado, inclusive no que diz respeito ao nepotismo, ao nomear sua esposa,

    Rosane Collor, presidente da Legio Brasileira de Assistncia.

    Mesmo sem ter passado pela experincia cnica profissional, transmudou-se e viveu

    de criar personagens atleta, super-homem, bom marido, bom filho, bom irmo -, a fim de

    dar cabo do seu grande drama moderno. O final da pea ns sabemos qual foi: uma verdadeira

    tragdia grega, com pitadas de corrupo passiva, ativa, peculatos e improbidades de toda

    sorte que a msica do Paralamas do Sucesso, situada no contexto imediato ao da queda dopresidente, representou uma espcie de desabafo da cidadania brasileira, cansada da Era

    Collor e indignada com aquela que seria chamada de Era dos Anes do Oramento.

    luz de fatos histricos dessa natureza, faz-se necessrio retomar a discusso a

    respeito dos limites que devem ser estabelecidos entre as esferas pblica e privada, trazendo o

    debate para a compreenso da prtica do nepotismo na administrao pblica, to antiga

    quanto revelao da permanncia de uma conduta predatria daqueles que dirigem o Estado

    brasileiro, ao longo de sculos.

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    Na longa durao do tempo histrico, esta configurao de prevalecimento de um tipo

    de atitude poltica das elites dominantes que viam o Estado brasileiro apenas como

    sustentculo de seus interesses materiais, deve ser contraposta a viso geral sobre tais prticas,

    anunciada por HOLANDA (1998, p.145), que diz no era fcil aos detentores das posies

    pblicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distino

    fundamental entre os domnios do privado e do pblico. Assim, eles se caracterizam

    justamente pelo que separa o funcionrio patrimonial do puro burocrata conforme a

    definio de Max Weber.

    Compreender melhor a distino clara entre o pbico e o privado requer, como

    demonstrado acima, utilizar o referencial terico de Hannah Arendt, em cuja concepo o

    espao pblico corresponde ao local de desempenho e de exibio das qualidades do cidado.Trata-se de um espao competitivo e herico, em que os indivduos buscam reconhecimento e

    aplausos. Esta viabilizao do espao pblico s seria possvel nas condies de

    homogeneidade poltica e moral das sociedades grega e romana, com revelaes inequvocas

    de valores individuais.

    evidente que a sociedade moderna no se fez homognea, sob nenhum aspecto. a

    modernidade, inclusive, a responsvel pela derrocada da noo de pblico tal como aquela

    que foi construda pelos clssicos. Esta percepo bem evidenciada por SENNET (2001, p.15) ao afirmar que hoje, a vida pblica se tornou uma questo de obrigao formal. A

    maioria dos cidados aborda suas negociaes com o Estado com um esprito de aquiescncia

    resignada, mas essa debilitao pblica tem um alcance muito mais amplo do que as

    transaes polticas. (...) A diferena entre o passado romano e o presente moderno reside na

    alternativa, no significado da privacidade.

    A partir desta necessidade de tornar bem distintos esses espaos duais na formao da

    sociedade e do Estado Moderno, com fulcro na literatura especializada que versa sobre asorigens da repblica em nosso pas, tentaremos estabelecer os liames do tempo histrico

    naquilo que pode significar como rupturas de determinadas ordens existentes, bem como,

    permanncias especficas e contextualizadas de alguns processos relativos esta formao

    social e a prevalncia de situaes estruturais que denotam o atraso na to sonhada

    republicanizaode nossa ptria, to sonhada pelos brasileiros.

    Um fragmento desta perspectiva mais abrangente pode ser visto em Luiz Werneck

    Vianna, quando este renomado autor afirma que a emancipao dos interesses da poltica dos

    do Estado no o tem feito virtuoso, assim como a desqualificao da idia de Repblica em

    favor da de mercado no tem produzido indivduos dotados de direitos e gozando de iguais

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    oportunidades na vida. Muito pelo contrrio, enquanto alguns poucos apaninguados

    continuam a ter privilgios infinitos, a imensa maioria da populao padece na misria e na

    excluso social.

    Para sair deste tipo de permanncia histrica, no resta nenhuma dvida no ar, temos

    que proclamar a repblica mais uma vez, colocando a Poltica como essncia, isto ,

    diferenciando claramente o que pblico e o que privado e redefinindo o papel do Estado,

    nos termos, por exemplo do que diz CHAU (2001, p. 3) o Estado no nem pode ser uma

    grande famlia nem uma grande empresa: se for, no h poltica possvel. Em outras palavras,

    a moralidade poltica se define pelas aes e pelo curso das aes numa lgica nova que no

    a da autoridade (como na famlia) nem a da fora (como no mercado), mas a do poder.

    2. O NEPOTISMO COMO PRTICA HISTRICA: o pblico a servio do privado

    Desbravada a Terra de Santa-Cruz, mais tarde denominada de Brasil, os portugueses

    comeam a deixar suas marcas indelveis sobre a grande nao que se constituiria como

    herana de sua colonizao. Na Carta que envia a El-Rei, o escrivo-mor da frota cabralina,

    Pero Vaz de Caminha, ao seu final, pede a Sua Alteza um favorzinho pessoal nos seguintestermos: E pois que, Senhor, certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer

    coisa que de vosso servio for, Vossa Alteza h de ser de mim muito bem servida, a Ela peo

    que, por me fazer singular merc, mande vir da ilha de So Tom a Jorge de Osrio, meu

    genro o que d'Ela receberei em muita merc. Beijo as mos de Vossa Alteza.

    Ao buscar favorecer o seu estimado genro, Caminha inaugura uma prtica que ficar

    profundamente arraigada na conduo da gesto do Estado portugus colonizador e se

    perpetuar quando da feitura e desenvolvimento do Estado Nacional brasileiro, quer sob oImprio ou sob a bandeira da republicana instalada a partir da quartelada de Deodoro da

    Fonseca e dos positivistas brasileiros.

    Nestes tempos de Caminha, mantida a herana da prpria formao social portuguesa,

    ser projetada sobre a colnia em explorao grandes linhas de ao transformando o Estado

    no patrimnio das elites de ento, caracterstica esta muito bem definida por FAORO (1991,

    p. 171) quando diz que o cargo, como no sistema patrimonial, no mais um negcio a

    explorar, um pequeno reino a ordenhar, uma mina a aproveitar. O senhor de tudo, das

    atribuies e das incumbncias, o rei o funcionrio ser apenas a sombra real. Mas a

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    sombra, se o sol est longe, excede a figura. Sero esses cargos avidamente disputados por

    parentes e aderentes ao longo de toda esta nossa histria.

    No caso particular do nepotismo, do ponto de vista da sua morfologia, a palavra

    hbrida (latim e grego) nepotismo formada pelo radical e tambm raiz: nepote (do latim

    npos/nipote/neptes , que significa sobrinho/neto/descendente) e pelo sufixo nominal "ismo"

    que significa "prtica de".

    A origem da palavra nepotismo remonta Itlia, e expressa a demasiada autoridade

    que os sobrinhos e demais parentes dos Papas exerceram na administrao da Cria Romana.

    Era uma determinada acusao dirigida contra os Papas do Renascimento que nomeavam seus

    sobrinhos (nipoti) e vrios outros parentes para cargos clericais e administrativos de

    importncia.Como desdobramento a esse sentido dado pelos italianos, com origem no baixo latim

    eclesistico, a palavra nepotismo, ganha um novo paradigma, qual seja, nepote, ou sobrinho

    do Papa. Assim, segundo as fontes clssicas, nepotismo significa a prtica adotada pelos

    Papas do incio da Idade Moderna em favorecer, sistematicamente, suas famlias com ttulos e

    cargos, bem como doaes.

    No tempo moderno tendo como base o sentido adotado acima, nepotismo significa a

    prtica de favorecimento de pessoas preferidas por aqueles que detm o poder. Nessediapaso, os atos oriundos da autoridade no intuito de outorgar favores a algum, nepotismo.

    O Minidicionrio Sacconi da Lngua Portuguesa, refora estas concepes ao conceituar

    nepotismo como sendo proteo escandalosa ou favoritismo deslavado, geralmente a

    parentes e amigos ntimos.

    No perodo colonial, via de regra, dadas as enormes dificuldades vividas por Portugal

    para colonizar o vasto territrio da Terra Brasilis, a Coroa resolveu presentear vrios de seus

    amigos e potentados da Corte, cedendo-lhes imensas pores de terra, transformadas emcapitanias hereditrias. No tempo dos governos gerais, ao chegar ao Brasil, nomeava

    praticamente toda a famlia para ocupar importantes cargos.

    Ao ser obrigado por Napoleo Bonaparte a fugir de Lisboa e se instalar no Rio de

    Janeiro em 1808, D. Joo VI foi um ardoroso defensor e praticante do nepotismo, nomeando

    seus parentes e at mesmo alguns dos amantes mais famosos da rainha do Brasil, D. Carlota

    Joaquina. Seu filho e primeiro imperador da nossa terra independente, D. Pedro I, aprendeu

    bem a lio, mantendo a prtica poltica do pai de nomear parentes e apadrinhados para

    ocuparem cargos no governo.

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    No era apenas na pennsula ibrica que predominava a idia de que o cargo pblico

    era uma propriedade pessoal. Esta concepo estava bastante sedimentada na cultura do

    Ocidente, haja vista que no Velho Continente a poltica era levada atravs da disseminao

    dessa prtica de compra e venda de cargos, considerada como se fosse uma extenso do

    direito de propriedade, conceito este que ganhava fora e legitimidade na sociedade moderna.

    Richard Graham, em elogiado trabalho sobre a poltica clientelista no Imprio

    brasileiro, sob o reinado de D. Pedro II, mostra que essa prtica representava uma espcie de

    ideologia de Estado, estruturante da relao do Estado com a sociedade no Brasil da segunda

    metade do sculo XIX. Afirma o autor (2003, p. 1) que de 1840 a 1889, durante o reinado de

    Pedro II, a ascenso e queda de famlias, cls e partidos dependeu da distribuio habilidosa

    de cargos pblicos, proteo e favorecimento em troca de lealdade poltica e pessoal. O poderde obter cargos oficiais para seus partidrios ajudava a expandir o crculo do potentado.

    Nessa mesma direo, CARVALHO (2000, p. 26) narra a estratgia utilizada pelas

    pessoas que compunham essa rede clientelista ao afirmar que funcionrios e pretendentes ao

    emprego pblico estavam muito bem informados sobre vagas atuais ou futuras. Sabia-se

    quando algum pretendia aposentar-se ou ser transferido, abrindo vaga. Ou que algum estava

    doente e teria que ser substitudo. Alguns pedidos sugeriam operaes complicadas,

    combinando transferncias e demisses para que no fim se abrisse a vaga pretendida.Esse intricado e duradouro sistema de loteamento dos cargos para familiares,

    apadrinhados e afins, revela, na opinio de GRAHAM (2003, p. 2) que a famlia era uma

    fonte importante de capital poltico. A partir da famlia, parentes, agregados e outros

    dependentes, um senhor rural montava a sua clientela. Um patro tanto oferecia emprego

    como protegia seus dependentes da autoridade de outros.

    O Estado, como j observado, se constitua na base de sustentao dessas relaes de

    poder estabelecidas, levando autores como SCHWARTZMAN (1988, p. 16), a afirmar quedo ponto de vista poltico, no entanto, pode-se observar que a sociedade brasileira tende a

    ser, em geral, dependente do Estado para a obteno de benefcios, sinecuras, autorizaes,

    empregos, regulamentos, subvenes.

    O advento da Revoluo de 1930 representou, para muitos, a entrada do Brasil nos

    marcos da modernidade e da implementao de um Estado racional e burocrtico, segundo a

    razo weberiana. Ledo engano. Se Vargas por um lado criou o Departamento de

    Administrao do Servio Pblico em 1934, por outro, manteve as estruturas do atraso e da

    continuidade da cena poltica nacional, segundo LEVINE (2001, p. 72), para quem

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    a consolidao do poder pelo governo central custa dos interesses locais e estaduais tornou-se a pedrade toque de sua administrao. (...) A centralizao do governo tinha desferido um golpe quase mortalnas mquinas polticas dos estados, embora os cls dominantes continuassem poderosos em estadosisolados, uma vez que Vargas nada fez para neutralizar a inabalvel cultura poltica enraizada nopaternalismo e no favoritismo.

    Mesmo com o advento da Carta Magna de 1988, onde os setores modernos

    conseguiram avanar em muitas formulaes expressas no captulo sobre a administrao

    pblica, deve ser ressaltado que nem mesmo carter de Constituio Cidad dado nova

    Lei Maior pelo ex-presidente da Constituinte, Ulysses Guimares, fez com que as prticas

    polticas de apropriao do Estado para fins privados que vm se perpetuando ao longo de

    nossa histria pudessem ter sido barradas e, assim, o Brasil pudesse ter implementado a

    montagem de um aparelho estatal mais compatvel com as novas demandas da sociedade, que,diga-se de passagem, modernizou-se em muitos aspectos.

    Portanto, observamos a prevalncia de uma grave distoro na maneira como os

    cargos pblicos so ainda levados em conta, principalmente pelos nepotistas de planto que

    querem se eternizar na vida pblica brasileira: um vis essencialmente patrimonialista, de

    cunho personalista que considera o cargo propriedade sua, como se a ocupao do mesmo no

    devesse respeitar os ditames da lei, todos devidamente estabelecidos na Constituio Federal

    de 1988: impessoalidade, moralidade e transparncia administrativa. Na verdade, os polticose autoridades praticantes do nepotismo querem, contrariamente aos interesses da prpria

    cidadania, continuar a usufruir de privilgios e se utilizar dos cargos pblicos em seu

    exclusivo interesse pessoal e familiar.

    3. O PODER PBLICO E O NEPOTISMO:o Judicirio sob suspeita

    Na ltima dcada do sculo XX, o Poder Judicirio foi bastante questionado pela

    sociedade brasileira, em todas as suas dimenses: gesto administrativa, funo

    constitucional, seus problemas e deficincias. Pode-se afirmar que a cidadania no Brasil est

    mais madura e exigente na cobrana pelo respeito aos seus direitos, tornando-se, desta forma,

    mais apta a exigir mais tica e eficincia na prestao dos servios pblicos.

    Assim, neste novo contexto, sobressaem-se as mazelas do Poder Judicirio, como amorosidade processual, o nepotismo, que gera verdadeiras castas de privilegiados e uma

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    imoral concentrao de renda, em detrimento dos servidores efetivos. Infere-se desta poltica

    uma conseqncia direta: a m qualidade dos servios prestados populao, face

    desvalorizao do servidor de carreira.

    Estas irregularidades e contradies do Poder que deveria fazer cumprir a lei e dar o

    exemplo para a sociedade, expressam a dura realidade de uma mquina oficial viciada e

    corrompida, em muitos de seus organismos internos, os quais, deveriam servir a populao,

    mas acabam servindo apenas para legitimar a ordem vigente. Diferente do que alguns possam

    pensar, a Justia no est acima da luta de classes, mas est organizada de modo a manter o

    establishmentcom uma cobertura de legalidade e formalismo jurdico.

    Vrias das questes de fundo que envolvem o debate sobre o Poder Judicirio, esto

    sendo travadas no mbito do processo de discusso e deliberao da chamada Reforma do

    Judicirio. Neste sentido, em vrios momentos, tem-se observado vrios impasses nas

    discusses, principalmente a respeito da proibio do nepotismo, da eleio direta para os

    dirigentes dos tribunais e da criao de um Conselho Nacional de Controle Externo.

    No caso do nepotismo, os setores beneficirios dessa conduta, assumem a nomeao

    de esposas, pais, filhos, genros, sobrinhos e mais toda uma rvore genealgica, justificando,

    ideologicamente, que os cargos so de confiana, e quem deve merecer esta confiana so os

    seus familiares.

    Para exemplificar citamos o exemplo do ex-senador Gilvan Borges (PMDB-AP), que,

    ao ser indagado sobre a nomeao de sua me e de sua esposa para cargos em comisso em

    seu gabinete, justificou afirmando que uma me pariu e a outra, dorme comigo. Ou o

    deputado federal Themstocles Sampaio (PMDB-PI), que declarou: quero dizer que

    empregarei meus parentes enquanto puder. Se puder amparar minha famlia toda, eu a

    ampararei.

    A tentativa de justificar e manter esses privilgios to grande, que o deputado federal

    Gerson Peres (PP-PA) apresentou emenda retirando da Reforma do Judicirioa proibio do

    nepotismo, remetendo a questo para uma simples lei ordinria, onde seria permitida

    contratao de parentes, atravs de um sistema de cotas para cada autoridade pblica. O que

    essa proposta traz em seu mago apenas a tentativa de garantir, mesmo com uma certa

    maquiagem, os privilgios dos polticos nepotistas, uma vez que a mdia no Congresso

    Nacional, a da nomeao de dois parentes por congressista.

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    Ao sancionar a Lei Federal n 9.421/96, que trata do Plano de Cargos e Salrios - PCS

    do Judicirio Federal, o ento presidente da repblica, Fernando Henrique Cardoso, manteve

    um dispositivo que buscava garantir a tica, moralidade, transparncia e democracia no

    servio pblico, ao determinar a proibio de nomeao, sem concurso pblico, dos parentes

    de juzes, at o 3o. grau civil, para os cargos em comisso, que se constituem no artifcio

    utilizado por um grande nmero de juzes para auferirem vantagens pessoais e familiares em

    vrios rgos judiciais do pas, muitas vezes sem nenhuma competncia ou conhecimento

    tcnico para ocuparem tais cargos, como inclusive tem denunciado exaustivamente a

    imprensa brasileira.

    Para que a proibio da prtica do nepotismo pudesse ser inserida na Lei 9.421/96, foi

    muito importante a atuao dos sindicatos de trabalhadores do Judicirio, em todo o pas,coordenados pela Federao Nacional da categoria, a FENAJUFE. Para as entidades dos

    servidores do Poder Judicirio, havia chegado a hora de impor o respeito ao concurso e a

    profissionalizao do servio pblico, a partir da valorizao dos trabalhadores que integram a

    carreira judiciria.

    Alm disso, os servidores do Judicirio propugnavam que a proibio deveria ser

    extensiva a todos os demais Poderes da Repblica, no apenas a nvel federal, mas tambm

    em todas as unidades federativas. Tambm foi assaz importante o apoio das entidadesassociativas da magistratura nacional, tais como a Associao dos Magistrados Brasileiros-

    AMB, Associao Nacional dos Magistrados Trabalhistas ANAMATRA e a Associao dos

    Juzes Federais AJUFE, na derrubada do nepotismo, bem como a prtica j existente em

    alguns tribunais superiores e no prprio STF.

    No Maranho, destacou-se, no incio da dcada de 1990, a luta ferrenha travada pelo

    Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judicirio Federal e Ministrio Pblico da Unio -

    SINTRAJUFE que teve a coragem de denunciar a nomeao de dezenas de parentes dosjuzes do TRT-MA e TRE-MA, num verdadeiro acinte a toda a populao que paga seus

    impostos e mantm o Estado no para ver os rgos pblicos transformados em capitanias

    hereditrias, mas sim em instituies que prestem de forma objetiva e com qualidade, os

    servios para os quais foram criadas e que deveriam ser a prpria razo de sua existncia.

    A campanha pela moralizao do TRT-MA foi vitoriosa em parte com o afastamento,

    ocorrido no ms de julho de 1995, de uma centena de funcionrios requisitados pelo tribunal,

    inclusive de muitos fantasmas de algumas prefeituras do interior. No entanto, mesmo aps a

    vigncia da Lei 9.421/96, alguns juzes do TRT-MA continuam a manter parentes sem

    concurso pblico no rgo.

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    Mas no era e no apenas no Maranho que a prtica do nepotismo reveladora da

    usurpao do pblico pelo privado. Na verdade, este quadro fisiolgico e empreguista est

    muito bem delineado no mbito, principalmente, da Justia do Trabalho, a nvel federal, e dos

    Tribunais de Justia, como por exemplo no Rio Grande do Sul, onde os desembargadores

    empregam cerca de 54 parentes, sem concurso, fato amplamente denunciado pela imprensa

    nacional. Poderamos citar ainda os casos do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande

    do Norte - TRT/RN, Tribunal Regional Federal de Pernambuco - TRF/PE e Tribunal Regional

    do Trabalho do Rio de Janeiro - TRT/RJ.

    Antes mesmo que explodisse o famoso escndalo que envolveu a construo do

    Frum Trabalhista em So Paulo, o ex-presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1Regio, juiz Nicolau dos Santos Neto, numa demonstrao da maneira como tratava o

    dinheiro pblico, intentou um acordo com o presidente do Sindicato dos Empregados em

    Escritrios de Empresas de Transportes Rodovirios no Estado de So Paulo, Brunet Dias de

    Frana, garantindo, assim, a nomeao da sua prpria filha - Maria Vrginia Bairo dos

    Santos como juza classista da 31Junta de Conciliao de Julgamento.

    Para que isso fosse possvel, Maria Vrginia trabalhou durante dois anos como

    funcionria do departamento de pessoal da Breda Turismo. Nesse perodo filiou-se ao

    sindicato de Brunet que a indicou. Pelo acordo, o Sindicato dos Empregados em Escritrios

    conquistou a regalia de ter mais trs juzes classistas, passando a contar ento com quatro

    juzes classistas para uma base de 9,5 mil associados, enquanto um sindicato como o dos

    Metalrgicos de So Paulo, por exemplo, na poca tinha uma base de 150 mil filiados e

    contava com apenas dois juzes classistas. (Jornal da Tarde, 19, 20 e 21.ago.1991).

    No Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, o juiz Jos Maria de Mello

    Porto, presidente do tribunal, mandou reabrir inqurito administrativo contra o servidor e

    lder sindical Moyss Szmer Pereira, aps a divulgao, atravs do Jornal do Brasil, de um

    dossi que relacionava as irregularidades administrativas cometidas pela direo daquele

    tribunal. O inqurito de nmero TRT-PA - 900/92 que j havia sido arquivado, teve incio em

    1992 quando Moyss distribua panfletos contra o projeto de isonomia proposto por

    Fernando Collor de Mello, primo do juiz Mello Porto. O fato gerou um desentendimento

    entre o sindicalista e juzes do TRT, que alegaram ter havido desacato e abriram o inqurito.

    Com a retomada do processo, Moyss Szmer Pereira teve sua aposentadoria cassada,

    tendo sido aposentado por improbidade administrativa, sem direito a vencimentos. Depois de

    uma difcil batalha judicial, o servidor conseguiu a sua aposentadoria de volta, a partir de

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    deciso tomada pelo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho TST, que julgou um mandado

    de segurana impetrado pelo servidor.

    Depois que os procedimentos irregulares e ilegais de inmeros magistrados pelo pas

    afora se tornam pblicos, os servidores e sindicalistas denunciantes comeam a sofrer

    perseguio com ameaas de morte e dentro dos tribunais com punies disciplinares e outros

    constrangimentos, fatos que demonstram o quo grave a situao do Poder Judicirio e o

    quanto necessrio um controle externo que no s coba esses atos ilegais, mas evite

    atitudes prepotentes daqueles que modificam a Justia, segundo os seus prprios interesses,

    estando sempre impunes e acobertados pelo corporativismo.

    Um exemplo, dentre inmeros outros, o que ocorreu com o ex-presidente do

    Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judicirio Federal de Pernambuco SINTRAJUF,Joaquim Arcoverde, o qual, desde que denunciou a contratao irregular de parentes nos

    tribunais do estado, sofreu vrias ameaas de morte, feitas anonimamente e por telefone. Esse

    fato levou o presidente da entidade, a pedir garantias de vida para todos os diretores. (Jornal

    do Commrcio, 12.jul.1993).

    No entanto, nem s em nepotismo ficaram as irregularidades cometidas pelos juzes

    dos Tribunais brasileiros. Outros mecanismos foram utilizados, sempre burlando a

    necessidade de concurso prevista na legislao. Em alguns casos, mais da metade das vagasforam preenchidas por pessoas que nunca pertenceram ao Quadro de Pessoal efetivo e que

    no passaram pela avaliao dos concursos.

    A Transparncia Brasil vem, ainda, registrando outros casos de nepotismo noticiados

    pela grande imprensa. Um dos casos apontados pela entidade a contratao cruzada de

    parentes, ou seja, quando se emprega um parente de um poltico para, em troca, ter um

    parente seu contratado.

    As promoes e a ocupao dos encargos com gratificaes tambm tm sidopossveis somente aos parentes dos juzes e outras vezes a pessoas indicadas por polticos.

    Essa situao conseqentemente deixa os servidores de carreira sem qualquer perspectiva de

    ascenso funcional.

    Um dos mecanismos utilizados pelos juzes para beneficiar parentes e indicados,

    nomeando-os para os mais altos e bem remunerados cargos dos Tribunais e Juntas de

    Conciliao e Julgamento, consiste na requisio de funcionrios a outros rgos. Ocorre

    que a suposta vinculao do servidor com o rgo de origem que pretensamente o cede

    Justia comumente no comprovada. Por isso os beneficirios dessas nomeaes muitas

    vezes so fantasmas nos rgos de origem e ocupantes de um cargo pblico irregularmente,

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    como ficou provado no caso do escndalo dos requisitados no Tribunal Regional do Trabalho

    do Maranho.

    Saindo um pouco do mbito do Poder Judicirio, principalmente o Trabalhista,

    observamos tambm que na esfera do Poder Legislativo, os exemplos de nepotismo so

    amplos e variados. No Senado Federal, segundo aRevista Veja, em 1998 informou que dentre

    os 81 senadores, dezessete haviam nomeado parentes para trabalharem em seus gabinetes.

    Na Cmara dos Deputados, permanentemente tem sido denunciado o uso de cargos de

    confiana em gabinetes parlamentares para fins de nepotismo: cerca de 180 parlamentares

    empregariam mes, filhos, genros e outros parentes em funes de confiana, numa

    demonstrao cabal, da razo poltica pela qual o Parlamento brasileiro at hoje no aprovou

    uma lei proibindo o nepotismo no Legislativo.Nas estruturas administrativas e rgos da Mesa Diretora e Lideranas Partidrias

    extrapolam cargos em comisso, que podem ser providos de forma bem mais flexvel do que

    em outros rgos.

    Cargos de confiana em comisses permanentes e rgos da mesa diretora, e mesmo

    nas lideranas partidrias, so criados de maneira totalmente descontrolada, gerando um

    inchamento nas estruturas que permite, de maneira quase acintosa, a utilizao neptica de

    tais cargos, cujas remuneraes os tornam especialmente atraentes para uso pela mquina dospartidos polticos - portanto, em desvio de finalidade - ou para acomodar polticos que no

    conseguem eleger-se ou reeleger-se, em situaes as mais diversas (SANTOS, Luis Alberto,

    2003, p. 3).

    O fato de que o nepotismo atinge no apenas o Poder Judicirio, mas tambm, de

    modo geral, a administrao pblica brasileira como um todo, ressaltado, por exemplo,

    pelo ex-presidente da Associao dos Magistrados do Brasil - AMB e integrante da

    magistratura fluminense, juiz Luiz Fernando Carvalho, ao afirmar que

    Mais uma vez, a mistura de hipocrisia com denncias vazias, como se j no estivssemos investigandotodos os casos de nepotismo que nos so apontados. Como j disse, me aponte um poder onde noexiste a prtica do nepotismo. Quanto intensidade com que isso praticado no Judicirio, devemoslembrar que desde que o ministro Seplveda Pertence foi presidente do STF, h quatro anos, os juzesfederais e ministros esto proibidos de contratar parentes. A reforma do Judicirio que est em debateinternamente e que logo vai comear a ser discutida com os demais segmentos da sociedade, comocentrais sindicais, entidades empresariais, etc, prope que essa proibio seja efetivamente estendida atodas as instncias do poder Judicirio. (A Notcia, 5.abr.1999).

    4. CONSIDERAES FINAIS

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    Como vimos ao longo do presente trabalho, a herana patrimonialista sobre a

    administrao pblica brasileira continua sendo uma espcie de calcanhar de Aquiles para a

    modernizao desse setor. Neste sentido, vale mencionar GRAHAM (2003, p. 4) que diz: o

    objetivo central de obter um cargo pblico e a dependncia do cliente da benevolncia de um

    chefe sobreviveram queda do Imprio em 1889. Novos grupos de proprietrios surgiram

    sem abandonar essa prtica. Isso contradiz os tericos que consideram que todas as

    sociedades progridem diretamente para um governo racional, impessoal e imparcial.

    A ausncia da definio exata dos limites das fronteiras que separam os cargos de

    natureza poltica e os de natureza tcnica, bem como a ausncia de uma poltica de recursos

    humanos mais eficaz e transparente, so fatores que impedem a estruturao de um perfilprofissional para os cargos em comisso no Brasil, deixando espaos imensos para a

    distribuio aleatria, arbitrria e clientelista desses cargos, favorecendo o arraigamento do

    nepotismo em nossa cultura poltica.

    A quantidade exagerada de cargos comissionados na Administrao Pblica no Brasil,

    alm de viabilizar a apropriao patrimonialista dos postos de trabalho, revelia do sistema

    do mrito, permite que ocorra um elevado grau de politizao da direo da administrao

    pblica, em todos os seus nveis, contrariamente ao que ocorre nos pases europeus queadotaram sistemas de carreira.

    Na verdade, esta uma questo j amplamente diagnosticada, e cuja soluo se

    encontra ao alcance do prprio legislador e dos dirigentes polticos, que devero, superar as

    suas prprias prticas e, no curto prazo, estabelecer regra que limite a discricionariedade dos

    governantes quanto ao provimento dos cargos comissionados. Nesta direo, os parlamentares

    tm que ouvir a voz das ruas, propondo, por conseguinte, que os cargos em comisso sejam

    providos exclusivamente por servidores ocupantes de cargos efetivos do quadro geral dorespectivo ente estatal os cargos em comisso e as funes de confiana de direo superior,

    limitando-se o livre provimento ao cargo de primeiro e segundo escalo.

    A guerrapor um servio pblico democratizado, transparente, a servio da sociedade

    e livre desses privilgios e favorecimentos indevidos, deve ser ampliada nesse momento com

    a discusso e aprovao pelos deputados estaduais, de uma emenda nossa Constituio,

    proibindo o nepotismo tambm em nvel dos Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio no

    Maranho, como o fez a deputada estadual Helena Heluy, do PT-MA, devendo inclusive ser

    divulgados para o conhecimento da opinio pblica, todos os casos de nepotismo at aqui

    existentes no estado.

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    Ressalte-se que, assim como a parlamentar petista, a prpria Associao dos

    Magistrados do Maranho AMMA, tambm encaminhou proposta de Projeto de Lei para

    que a Assemblia Legislativa aprove a proibio de nomeao de parentes sem concurso

    pblico, no mbito do Tribunal de Justia do Maranho. Esta posio da AMMA tem o

    respaldo poltico da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Maranho, segundo tm

    afirmado seus dirigentes, solidrios na luta pelo fim do nepotismo no Tribunal de Justia do

    Estado.

    Neste contexto histrico, a iniciativa louvvel da magistratura maranhense amplia a

    luta dos juzes brasileiros, atravs de suas entidades representativas, para que a prtica do

    nepotismo seja abolida definitivamente do seio do Judicirio, como afirma o juiz Rodrigo

    Collao, presidente da Associao dos Magistrados Catarinenses quando da realizao doEncontro Nacional dos Juzes, 03/12/2002:

    Ao combater o nepotismo, por exemplo, a AMB demonstrou que, embora seja entidade que agreguetodos os juzes, no pode compactuar com os poucos que afrontam a melhor tica do servio pblico,quando nomeiam parentes para cargos em comisso, arranhando um dos valores essenciais ao bomfuncionamento do Poder Judicirio: a credibilidade. Por ela, cada juiz deve zelar como se estivesse emrisco a prpria honra, porque, acaso num dia nefasto falte-nos credibilidade, sequer um Poder nosconstituiremos. O engajamento campanha da AMB contra o nepotismo, portanto, significa lutar pelatica e pelo respeito dos cidados, princpios indispensveis fora dos julgamentos e mesmo da

    prpria subsistncia do Judicirio (Dirio Catarinense, 4 dez. 2002).

    Um reflexo dessa nova postura da magistratura, nos seus setores mais democrticos e

    progressistas, a construo de um relativo consenso interno no que diz respeito o fim do

    nepotismo, inclusive com a possibilidade de aplicao de sanes, a exemplo da perda de

    cargo do juiz, depois de processo no Conselho Nacional de Justia (Jornal do Senado, 18 mar.

    2003, p.3).

    Por sobre os escombros das mazelas perpetuadas na administrao pblica brasileira

    consiste o desafio da construo de um Estado democrtico, racional e transparente, onde as

    fronteiras entre as esferas pblica e privada estejam claramente definidas, para que a

    manuteno de privilgios no continue sendo regra para os dirigentes estatais, mas pelo

    contrrio, que a cidadania possa vislumbrar um novo cenrio no quadro das instituies do

    Estado.

    Caminhando nesta direo, poderamos garantir o carter pblico na gesto estatal no

    Brasil, na viso de RIBEIRO (1994, p. 40) com esse roteiro talvez tenha comeado a mudar

    no apenas a apropriao privada da coisa pblica, mas tambm sua apropriao familiar.

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    O desafio de se construir um projeto de uma autntica nao republicana para o Brasil

    deve estar atento tambm ao diagnstico professado pelo grande revolucionrio intelectual e

    militante Florestan Fernandes (1994, p. 2). Para Florestan as sociedades capitalistas com

    extremas desigualdades econmicas, sociais, culturais, raciais, polticas e regionais enfrentam

    problemas e dilemas histricos de difcil soluo. Se as elites das classes dominantes forem

    muito egostas e praticarem, em associao com as naes capitalistas hegemnicas, formas

    de espoliao e explorao sistemtica dos sem classe, das classes trabalhadoras e das ralas

    classes mdias impotentes, a violncia e a contraviolncia instauram-se de modo aberto ou

    oculto no estilo normal de vida.

    Florestan Fernandes, ao compreender, com profundidade as mazelas da formao

    histrica brasileira considera a incapacidade das elites em realizar a sua prpria revoluoquando diz que no Brasil e na Amrica Latina, a revoluo burguesa foi interrompida em

    nveis precoces, favorecendo a coexistncia do arcaico, do moderno e do ultramoderno.

    Assim, a formao tardia do Estado-Nao em solo ptrio, no se completou, se fez de

    maneira completamente deformada, com um liberalismo s avessas, pela metade, pois a

    a ordem legal est em contradio com a ordem social. Esse o fator crucial. Se o equilbrio instvelentre ambas no proceder de cima, ele ter de impor-se de baixo para cima. Os privilegiados da terra

    no podero usufruir para sempre de certas vantagens pr e subcapitalistas e chegou o momento de umaescolha: ou eles toleram reformas e revolues inerentes ao capitalismo ou eles regrediro a umaposio neocolonial na era dos monoplios gigantes e de seu tipo de imperialismo conquistador.

    Para Florestan, a sada para esse descompasso est na organizao autnoma e

    consciente dos setores explorados. Na possibilidade de se constiturem em sujeitos da histria.

    Para ele, a alternativa proceder de uma rebelio popular incontrolvel. O povo deixou de ser

    o espectador surdo, mudo e manietado. Em 2002, o povo se libertou de algumas amarras e

    controles ideolgicos para declarar em alto e bom som a sua vontade de mudanas, mudanas

    que a seu juzo devem ser conduzidas por algum que veio de baixo, mesmo que muitos ainda

    achem que o povo no sabe votar. Isto, neste momento, soa a mais pura ironia da histria.

    Nesta complexa e contraditria conjuntura poltica do novo governo federal,

    destacamos a idia professada por Chico de Oliveira (2003, p. 3) de que a vitria do ex-

    metalrgico Lula um marco na refundao do Brasil. O que nos autoriza a pensar em

    refundao o fato de que, pela primeira vez, os dominados esto fazendo histria. O Brasil

    pode sair de um longo ciclo iniciado com a Revoluo de 30, de uma histria passiva,

    conduzida pelos blocos dominantes, para uma histria ativa, em que os dominados do uma

    marca muito forte na poltica do Estado.

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    No entanto, para Chico de Oliveira, considerando a constituio do governo e as suas

    primeiras medidas, o Brasil est numa certa encruzilhada, qual seja, que caminho devemos

    tomar: Avenida Paulista ou So Bernardo do Campo? Simbolicamente, ao colocar as

    possibilidades do governo Lula nestes termos, Chico de Oliveira quer nos mostrar que a

    refundao do Brasil, a constituio de uma res publicaser realizada com sucesso na medida

    em que, de fato, os setores dominados da sociedade puderem expressar as suas marcas no

    cotidiano do governo, na implementao de polticas pblicas de superao desse atraso

    centenrio que teima em perseguir aqueles que no tem nem como reagir, dada a precariedade

    de suas vidas, completamente abandonadas pelo Estado.

    Nessa direo, de que as massas dos excludos da histria oficial brasileira podero dar

    um rumo para o que ainda pode vir a ser o novo governo, temos que nos referenciar em umoutro importante intelectual brasileiro, Luiz Werneck Vianna (2003, p. 4) quando este afirma

    que o movimento novo que reanima a sociedade vem de um lugar insuspeitado: do atraso e

    da ral de quatro sculos, onde o interesse como se fosse virtual, uma expectativa e no um

    fato tangvel, fora do mercado e do mundo dos direitos constitudos, dos trabalhadores sem

    terra. Esse movimento , por natureza, republicano, na medida em que se dirige

    necessariamente ao Estado e arena pblica a fim de converter cidadania indivduos

    destitudos de direitos.Na verdade, segundo a vertente explicativa de Werneck Vianna, o Movimento dos

    Trabalhadores Rurais Sem Terra no est sozinho. exatamente esta a perspectiva e a

    esperana de milhes de brasileiros que aguardam ansiosos os resultados prometidos: da

    incluso de 53 milhes de brasileiros, sub-cidados que sobrevivem em condies de extrema

    precariedade, sem acesso aos bens e servios essenciais a uma vida minimamente digna; da

    preservao do direito ao trabalho e proteo social de milhes de assalariados, pequenos e

    mdios produtores rurais e urbanos, inativos de baixa remunerao e jovens que buscamingressar no mercado de trabalho, nos termos exatos do que dispem as diretrizes de

    governo do PT para o Brasil. Devemos incluir o direito a uma espcie de reproclamao da

    repblica, de uma repblica democrtica e livre, onde o espao pblico da poltica seja

    plenamente exercido por toda a cidadania, no apenas pelos endinheirados e seu poder

    econmico que maculam a vontade soberana do povo.

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