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XXIII ENCONTRO NACIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPB O título do projeto de pesquisa que desenvolvi este ano é “Sociologia dos encontros desiguais: sobre alteridade e violência nos bairros Manaíra e São José”. Trata-se de mais uma etapa de uma pesquisa desenvolvida a partir de 2010, consistindo em um estudo de antropologia urbana que visa analisar as relações estabelecidas entre os moradores dos bairros Manaíra e São José, aqui em João Pessoa. Na primeira edição deste estudo, as pesquisadoras que o desenvolveram tinham o objetivo de descrever as representações de si mesmo e do outro, presentes no discurso dos moradores de ambos os bairros. O caso destes dois bairros é paradigmático porque representa, em menor escala, a relação entre possuidores e despossuídos, que caracteriza a sociedade capitalista. As ciências sociais, tendo surgido após a revolucionária interpretação que Hegel deu aos processos históricos, devem a ele a compreensão da dialética que os caracteriza, de modo que, entendendo o desenrolar do todo como um processo que arrasta, no seu curso, todas as partes que o compõem, – na medida em que o todo deve à concatenação das partes o próprio fluxo em que consiste – é possível “isolar” um caso particular cuja estrutura, inevitavelmente, espelhará a estrutura do todo. Entenda-se corretamente este isolamento, não como o isolamento a que submetem o seu objeto as ciências da natureza, como se este pudesse ser analisado a parte e em detrimento do todo, mas como um isolamento que considera cada caso particular como adquirindo sentido apenas a partir do todo. Uma ciência que tenha como objeto a sociedade, caso isolasse do todo as partes que o compõem para fins de análise, não passaria de mero tateio, agindo como se buscasse, em um cadáver, estudar os processos que compõem a vida de um organismo animado. Afim de aprofundar os resultados obtidos na primeira edição da pesquisa, continuamos empregando o método de análise pelo qual ela se guiou, considerando espaços particulares nos quais se poderia observar as relações entre os moradores dos dois bairros. Entre 2013 e 2014 observei as relações entre os moradores dos dois bairros nas praças de Manaíra e, entre 2014 e 2015, nos templos religiosos do Bairro São José. É exatamente por termos escolhido espaços bem definidos (praças e templos religiosos) que se faz necessário este esclarecimento preliminar, que não deve, portanto, ser 1

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apresentação verbal para o XXIII encontro nacional de iniciação científica em que se apresentam os resultados da pesquisa realizada.

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XXIII ENCONTRO NACIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPB

O título do projeto de pesquisa que desenvolvi este ano é “Sociologia dos encontros desiguais: sobre alteridade e violência nos bairros Manaíra e São José”. Trata-se de mais uma etapa de uma pesquisa desenvolvida a partir de 2010, consistindo em um estudo de antropologia urbana que visa analisar as relações estabelecidas entre os moradores dos bairros Manaíra e São José, aqui em João Pessoa. Na primeira edição deste estudo, as pesquisadoras que o desenvolveram tinham o objetivo de descrever as representações de si mesmo e do outro, presentes no discurso dos moradores de ambos os bairros. O caso destes dois bairros é paradigmático porque representa, em menor escala, a relação entre possuidores e despossuídos, que caracteriza a sociedade capitalista. As ciências sociais, tendo surgido após a revolucionária interpretação que Hegel deu aos processos históricos, devem a ele a compreensão da dialética que os caracteriza, de modo que, entendendo o desenrolar do todo como um processo que arrasta, no seu curso, todas as partes que o compõem, – na medida em que o todo deve à concatenação das partes o próprio fluxo em que consiste – é possível “isolar” um caso particular cuja estrutura, inevitavelmente, espelhará a estrutura do todo. Entenda-se corretamente este isolamento, não como o isolamento a que submetem o seu objeto as ciências da natureza, como se este pudesse ser analisado a parte e em detrimento do todo, mas como um isolamento que considera cada caso particular como adquirindo sentido apenas a partir do todo. Uma ciência que tenha como objeto a sociedade, caso isolasse do todo as partes que o compõem para fins de análise, não passaria de mero tateio, agindo como se buscasse, em um cadáver, estudar os processos que compõem a vida de um organismo animado. Afim de aprofundar os resultados obtidos na primeira edição da pesquisa, continuamos empregando o método de análise pelo qual ela se guiou, considerando espaços particulares nos quais se poderia observar as relações entre os moradores dos dois bairros. Entre 2013 e 2014 observei as relações entre os moradores dos dois bairros nas praças de Manaíra e, entre 2014 e 2015, nos templos religiosos do Bairro São José. É exatamente por termos escolhido espaços bem definidos (praças e templos religiosos) que se faz necessário este esclarecimento preliminar, que não deve, portanto, ser entendido como mera digressão teórica. É sempre necessário ao pesquisador em antropologia a atenção aos processos dialéticos dos quais os contextos definidos em que se desenvolve a pesquisa fazem parte. Nossa preferência metodológica pelo materialismo dialético nos levou assim, a eleger um autor que, em um recorte microssociológico, recusa-se a esquecer as condições materiais de existência que lhe dão forma, ao mesmo tempo em que considera a atividade social dos indivíduos como se relacionando dialeticamente com tais condições: Norbert Elias.

O estrutural-funcionalismo, que dominava a produção sociológica do pós-guerra era, como todo esforço de teorização, fruto das condições materiais de existência em que se desenvolveu. Primeiramente, é preciso considerar que é na América do Norte, logo após a experiência traumática com o totalitarismo fascista, e na experiência do conservadorismo liberal

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que paralisa a ação das classes trabalhadoras, que surge este modelo de interpretação sociológica. É premente a urgência de manter a ordem social, ao mesmo tempo em que se esboçam como irracionais e, portanto, pertencendo a um outro mundo, as experiências da guerra. O estrutural-funcionalismo é uma tentativa de reorganizar o mundo a partir da linguagem, uma tentativa de superar o recalque da linguagem que serve de expressão ao trauma. Será um judeu alemão que perceberá o quão parcial é o modelo estrutural-funcionalista, desvendando o que representa o isolamento de um grupo social para fins de estudo. Em sua obra “Os estabelecidos e os outsiders: Sociologia de poder a partir de uma pequena comunidade”, Norbert Elias mostra como só na integração com o todo social é que os pequenos grupos podem se tornar objeto de consideração de uma ciência da sociedade. A relação dialética cuja presença é, desse modo, percebida em todas as instâncias da sociedade, faz com que desapareça o medo do elemento irracional. Irracional é, na verdade, tudo o que o sujeito deseja afastar de si, tudo o que, no seu íntimo, se sente capaz de fazer, mas que lhe causa repulsa, tão logo seja tornado presente pelo pensamento. Obviamente que explicando, desse modo, a metodologia que Elias contrapõe ao estrutural-funcionalismo, já saímos dele, a fim de demonstrar o modo como a sua produção sociológica deriva das condições materiais de existência de um período em que o pensamento racional, fraturado e delirante, precisa tomar consciência de si e se recompor, perdidos que estavam todos os elementos que o ser raciocinante, ao longo da marcha da história, elegera como fundamento. É exatamente a dialética aplicada aos estudos de comunidade que nos interessa na obra de Elias.

Manaíra é um bairro dito nobre, da cidade de João Pessoa. Recentemente ocupado, o bairro Manaíra adquiriu este status ao longo da década de 1980, durante os quais inverteu-se o padrão centro-periferia a partir do qual se organizavam os grandes centros urbanos do país, passando a distância do centro a designar status, ao invés de estigma. Na obra “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo” (2011), Teresa Caldeira analisa detidamente a inversão do padrão centro-periferia, notando que quando alguns bairros periféricos de grandes cidades começam a ser povoados por membros da classe dominante, surge, concomitantemente a isso, um novo padrão de segregação social: se antes os pobres eram habitantes da periferia, enquanto os ricos moravam no centro da cidade, agora as residências da classe dominante constituem o que a autora denomina “enclaves fortificados”, verdadeiras fortalezas impenetráveis, que dão ao dominador a sensação de conforto por serem espaços que oferecem a satisfação de diversas necessidades sem que seja precisa sair muito deles. É exatamente conforme este padrão que se organiza o Bairro Manaíra. Seus edifícios são verdadeiras fortalezas, cujos anúncios publicitários anunciam como espaços de pleno conforto, já que a burguesia amedrontada, que povoa e “enobrece” bairros periféricos, não dissocia conforto de confinamento pela falta de necessidade de sair ao sol. Estes espaços, obviamente, possuem defesas mais fortes que muralhas físicas. São resguardados também por uma barreia emocional que impõe um código de conduta a ser respeitado tanto

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pelo membro da classe dominante quanto pelo membro da classe dominada, este último sendo submetido, à medida em que se socializa, a um processo em que deve ser levado a interiorizar a ideia de que é inferior, por ser pobre, e de que é no padrão de consumo estabelecido pela classe dominante que encontra a justificação para a dominação, a partir de ideologia de que o liberalismo dá a todos a possibilidade da ascensão social. Assim, em nosso estudo de comunidade, observamos um padrão que caracteriza o ocidente capitalista: o poder da ideologia que segrega apesar da proximidade. Assim se constituiu esta comunidade: os membros da classe dominante, com o poder da ideologia, espremeram os moradores do São José do outro lado do Rio Jaguaribe, que serve não apenas como barreira física, mas como materialização da barreira emocional, já que foi transformado em esgoto a céu aberto. Estes, espremidos em estreitas vielas e vítimas da poluição do Rio Jaguaribe e da violência das forças policiais, têm seu horizonte marcado pela demonstração fálica do poder dos dominadores, materializada nos altos edifícios de Manaíra que contrastam com as casas do São José, que, para a massa despolitizada e oprimida, tem como efeito a resignação, que muitas vezes se traduz também como violência, reprimida com mais violência ainda pelos resquícios que foram conservados da ditadura: a polícia militar e o sistema prisional.

Os moradores do Bairro São José frequentam diariamente Manaíra: as crianças e jovens, para ir à escola, já que no Bairro São José não há escolas públicas, os adultos para trabalhar nos inúmeros estabelecimentos comerciais, especialmente no Manaíra Shopping, que diariamente despeja no Rio Jaguaribe seu esgoto. Nos períodos do ano em que há chuva, as casas que ficam mais próximas das margens do rio são alagadas por suas poluidíssimas águas e o proprietário do Shopping Manaíra vai até lá distribuir colchões para substituir os colchões destruídos pelas águas que ele mesmo diariamente polui, e cestas básicas, como eventual complementação ao salário dos trabalhadores de seu establishment que, devido à exploração à qual ele mesmo os submete, mal dá pra sobreviver. Os moradores do São José, desse modo, quando vão a Manaíra, é para representar o papel subordinado em uma relação empregado-patrão. Dentre os moradores de Manaíra, por outro lado, dificilmente encontramos algum que já tenha ido ao São José. Durante todo o tempo da pesquisa, dentre todos os espaços do Bairro São José aos quais tivemos acesso, só nos templos religiosos é que encontramos a presença de moradores de Manaíra. E mesmo assim, é necessário fazer aqui algumas ressalvas: os frequentadores dos templos religiosos do São José que moram em Manaíra são, ou ex-moradores do São José, ou membros da classe média-baixa, habitantes das ruas de fronteira entre os dois bairros (a área considerada “menos-nobre” de Manaíra). Estes frequentadores têm também sua existência diária marcada pelo medo: medo da violência nas ruas de Manaíra, medo da violência que pode irromper a qualquer momento durante suas incursões no Bairro São José. Aos prosélitos neopentecostais à dificuldade em angariar adeptos soma-se a dificuldade em dispô-los a entrar no bairro (caso já não sejam moradores dele).

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Ocupei-me também da caracterização do perfil religioso no bairro. Considero que a religião se constitui como uma instituição social de caráter privilegiado para a pesquisa sociológica, porque é possível observar aí como se cristaliza a alienação: se nas relações sociais o sujeito encontra-se alienado por não ser capaz de se reconhecer mais na cultura que é produto de si mesmo, na religião a alienação atinge o ápice, porque o sujeito não só não se reconhece na cultura, como também atinge o ponto em que a produção cultural torna-se, relativamente a si, o totalmente outro. As tentativas de inserir, no cristianismo, a libertação, por meio das Comunidades Eclesiais de Base foi frustrada pela cultura de massas: o mercado gospel transformou ou sentimentalismo característico do movimento pentecostal em mercadoria. A classe trabalhadora interioriza então o desejo de consumir tal mercadoria e o resultado é, nos bairros de periferia, a superabundância de igrejas pentecostais e neopentecostais (estando estas últimas mais em voga por apresentarem, em linguagem religiosa, a falsa meritocracia pregada pelo liberalismo, denominando Teologia da Prosperidade) e a perda do lugar antes ocupado nas Comunidades Eclesiais de Base pelo discurso de caráter político da Teologia da Libertação, por grupos de oração da Renovação Carismática Católica, que impõe algumas adaptações à mercadoria gospel para que esta se torne objeto de desejo também do trabalhador de confissão católica.

Como conclusão deste breve esboço daquilo que eu obtive, ao longo deste ano, como resultado desta pesquisa, creio que cabe uma autorreflexão crítica, que deve se seguir a trabalhos deste gênero. A instituição universitária caracteriza-se também como um enclave fortificado. O que se encontra dentro dela não é o povo. Isto se deve ao conhecido fato de que possuímos um sistema educacional que, como tudo em nossa sociedade, não oferece a todos, indistintamente, as mesmas oportunidades. Aquilo que se produz aqui fica aqui, restrito a estes muros, também pelo fato de estarmos submetidos a uma estrutura academicista cuja função é tornar confortável a tarefa de pensar sem que a esta se siga, como momento essencial, a necessidade de agir a partir do pensado. Nossas vidas, enquanto acadêmicos, passam a se resumir a produzir ideias que representem itens adquiridos em um mercado de enriquecimento de currículos. A atividade acadêmica muitas vezes esgota-se aí, e estou consciente de que pesquisas como esta, à qual me dediquei, na grande maioria dos casos (se não em todos) servem apenas para ocupar páginas e tempo, dando-nos a falsa impressão de que somos produtivos. Esta situação de conforto precisa refletir-se, e tomar consciência de que a tarefa de pensar deve ser sucedida pela necessidade do agir. Enquanto a instituição universitária for um enclave fortificado, enquanto não o acadêmico não for povo comprometido com a transformação das estruturas de dominação, continuaremos tentando compreender o nosso simulacro de mundo ao invés de transformá-lo. Infelizmente, pelo fato de o acadêmico não ser povo, pelo fato de a universidade possuir muros tão altos, é que se aplicam a pesquisadores como eu, estudantes de graduação, as palavras que o escritos russo Máximo Gorki põe nos lábios de um personagem seu, trabalhador

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funcionário da burocracia estatal: “Os homens, exauridos pela fome, morrem antes do tempo, as crianças nascem enfraquecidas, morrem qual moscas no outono; nós sabemos disso tudo, sabemos o motivo das desgraças e, examinando-as, recebemos um salário. E isso é tudo, aliás...”.

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