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Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html 256 YOUTUBE: NOVAS PRÁTICAS DOS USUÁRIOS EM UMA NOVA CULTURA DIGITAL Tânia Ferrarin Olivatti 1 RESUMO Este ensaio busca refletir qual é a cultura digital que circunda o site YouTube, bem como o atual papel requerido pelo usuário da Internet neste contexto. Para tanto, tem como instrumental as novas aquisições da semiótica francesa, em autores como Fontanille, além de confrontar estudos de Wolton, Lévy, Vilches, Castells, entre outros, para fundamentação teórica. Compreende que, se por um lado o YouTube configura um espaço democrático, uma espécie de televisão sem censura em que o cidadão comum tem liberdade de expressão, por outro anuncia o fortalecimento de uma mídia sem filtros, em que a informação é apresentada não mais por crivos jornalísticos. Constituinte dos processos sociais contemporâneas, a Internet, seus novos formatos e as relações que inaugura com seus usuários (cultura digital) necessitam de observação crítica, o que pode desacelerar saudações exageradas ou repúdios precipitados a seus novos formatos. Palavras-chave: YouTube. Usuário/produtor. Cultura digital Introdução O YouTube é o maior site de compartilhamento de vídeos do mundo. Em especial a partir de 2006, a página passou a se tornar uma espécie de mania, representando não só um excelente empreendimento comercial, mas também uma revolução no meio. A democratização da informação parece ter começado com a Internet, mas o YouTube deu-lhe uma dimensão jamais vista na história da humanidade. Segundo Alberto Dines (2007), graças ao YouTube criou-se a noção do cidadão-jornalista e cidadão-comunicador. Ao mesmo tempo, criou-se a “fofocagem de massas” representada pelo vídeo protagonizado pela modelo Daniela Cicarelli. Para Dines, “ao tentar proibi-lo, a modelo apenas reforçou uma certeza: o YouTube é incontrolável, para desgosto das tiranias e regimes despóticos em todos os quadrantes” (DINES, 2007). Muito além das fofocas on-line, o site tem hospedado vídeos produzidos por traficantes e extremistas islâmicos, e substituído a mídia convencional em campanhas eleitorais dos Estados Unidos (no Brasil, as últimas eleições presidenciais também apontaram este caminho). Qualquer um 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – Universidade Estadual Paulista. E-mail: [email protected]

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YOUTUBE: NOVAS PRÁTICAS DOS UTILIZADORES NUMA NOVA CULTURA DIGITAL

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YOUTUBE: NOVAS PRÁTICAS DOS USUÁRIOS EM UMA NOVA CULTURA DIGITAL

Tânia Ferrarin Olivatti1 RESUMO Este ensaio busca refletir qual é a cultura digital que circunda o site YouTube, bem como o atual papel requerido pelo usuário da Internet neste contexto. Para tanto, tem como instrumental as novas aquisições da semiótica francesa, em autores como Fontanille, além de confrontar estudos de Wolton, Lévy, Vilches, Castells, entre outros, para fundamentação teórica. Compreende que, se por um lado o YouTube configura um espaço democrático, uma espécie de televisão sem censura em que o cidadão comum tem liberdade de expressão, por outro anuncia o fortalecimento de uma mídia sem filtros, em que a informação é apresentada não mais por crivos jornalísticos. Constituinte dos processos sociais contemporâneas, a Internet, seus novos formatos e as relações que inaugura com seus usuários (cultura digital) necessitam de observação crítica, o que pode desacelerar saudações exageradas ou repúdios precipitados a seus novos formatos. Palavras-chave: YouTube. Usuário/produtor. Cultura digital

Introdução

O YouTube é o maior site de compartilhamento de vídeos do mundo. Em especial a partir

de 2006, a página passou a se tornar uma espécie de mania, representando não só um excelente

empreendimento comercial, mas também uma revolução no meio. A democratização da informação

parece ter começado com a Internet, mas o YouTube deu-lhe uma dimensão jamais vista na história

da humanidade.

Segundo Alberto Dines (2007), graças ao YouTube criou-se a noção do cidadão-jornalista

e cidadão-comunicador. Ao mesmo tempo, criou-se a “fofocagem de massas” representada pelo

vídeo protagonizado pela modelo Daniela Cicarelli. Para Dines, “ao tentar proibi-lo, a modelo

apenas reforçou uma certeza: o YouTube é incontrolável, para desgosto das tiranias e regimes

despóticos em todos os quadrantes” (DINES, 2007).

Muito além das fofocas on-line, o site tem hospedado vídeos produzidos por traficantes e

extremistas islâmicos, e substituído a mídia convencional em campanhas eleitorais dos Estados

Unidos (no Brasil, as últimas eleições presidenciais também apontaram este caminho). Qualquer um

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – Universidade Estadual Paulista. E-mail: [email protected]

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pode enviar ou assistir aos vídeos, inaugurando a “era da notícia em estado bruto”, de acordo com

Castilho (2007).

Indo além das análises maniqueístas sobre o meio, observa-se aí a formação de um espaço

praticamente inédito àqueles que sempre formavam o chamado “público” dos meios de

comunicação. Nem nas inúmeras tentativas de interatividade, em geral tímidas e frustradas, que os

veículos de televisão exerceram e exercem ainda hoje (programas como “Você Decide” e “Big

Brother” da rede Globo ou, mais recentemente, o “Jornal do SBT”, com sua pesquisa de opinião

diária2), o público teve tanta chance de interagir e principalmente produzir como a Internet vem

permitindo. Essa relação “íntima” entre TV e Internet possibilitou o inusitado: nunca antes

receptores tiveram a oportunidade se transformarem em produtores de imagens que pudessem ser

transmitidas em tal escala e velocidade, como ocorre no site YouTube.

Vasculhando o site em questão, pode-se notar que, entre milhares de vídeos sobre

“qualquer coisa”, esses novos produtores estão usando o YouTube (portanto, uma mídia), para falar

da chamada mídia tradicional, como no caso do vídeo “Midiatrix”. Isso deve ser analisado

considerando que a Internet possibilita ler, ouvir, assistir e relacionar de forma mais abrangente que

os meios tradicionais, já que seu conteúdo é muito vasto. Sem esquecer dos aspectos negativos que

podem envolver o meio3, a rede é amplamente explorável e capaz de potencializar um

2 Esse telejornal realiza todos os dias, por telefone, uma “pesquisa” sobre determinado tema, ouvindo opiniões de dez telespectadores por programa, que se manifestam a favor ou contra. 3 Muitos críticos da Internet apresentam a exclusão digital como fator negativo do meio. Da mesma forma, cita-se a dependência, as relações sem presença física, e os problemas referentes a conteúdo, como sites de pedofilia. Em relação à exclusão, é evidente que a Internet não é um meio acessível a todos. No entanto, trata-se de um processo gradual, e que deve ser comparado com o surgimento de outros meios, como a televisão, que demorou décadas para chegar às camadas mais pobres. Por isso, longe de desconsiderar que a exclusão digital é fato, prefere-se relativizar a questão, e prosseguir no estudo do meio. Quanto à dependência, vários estudos psicológicos foram realizados e comprovam esta situação, mas numa parcela restrita de usuários, visto que muitas pessoas ainda utilizam a Internet como complemento das relações físicas (LÉVY, 1999, p. 128). No que se refere ao conteúdo, realmente, como espaço democrático, informações das mais variadas são veiculadas na rede. Os provedores, quando encontram sites que incitem preconceito, pedofilia etc. costumam retirá-los do ar, mas admitem sua fragilidade de controle. Vale lembrar que qualquer meio pode ser usado na difusão de assuntos considerados negativos pela “moral” vigente, não esquecendo que Hitler utilizou o rádio para fazer propaganda Nazista. Por isso esta pesquisa pretende levantar tais questões, mas elas não serão fator de desqualificação do objeto escolhido.

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desenvolvimento produtivo da formação intelectual através do que difunde, caracterizando um

possível papel democrático4.

Ao observar vídeos sobre mídia no site YouTube, pode-se entender que o “ex-público”

está tomando corpo de produtor, e ao atacar a mídia, pretende chamar a atenção para uma situação

vertical de comunicação com a qual não concorda. Depois de conquistar os processos de troca de

textos, chats, comunidades e outras formas de comunicação “todos para todos” oferecidos pela

Internet, o lançamento do site YouTube, com seu crescimento exponencial, abriu as portas também

para a democracia da imagem. Assim, pode-se pensar também que os usuários estão tentando fazer

parte do processo de produção de imagens, sendo que uma parcela deles é consciente de que está

inserida nesse processo em que a comunicação parece ser um pouco mais democrática do que na

televisão5.

Neste sentido, o fenômeno do YouTube provoca ainda dois tipos de reflexão: uma sobre o

papel do jornalista nesta nova era em que perde espaço e se torna cada vez mais impotente para

moldar a apresentação dos fatos levados ao conhecimento do público (visto que o site é oferecido

para qualquer usuário, sem necessitar da figura do mediador na veiculação de vídeos); outra sobre a

forma como as pessoas vão lidar com esta informação em estado bruto, capaz de induzir a

equívocos e destruir aspectos positivos que envolvem o meio.

Este breve texto faz parte de uma pesquisa de pós-gradução (mestrado em Comunicação

Midiática) que analisa cinco vídeos do YouTube, ainda em desenvolvimento, portanto a seguir será

apresentada uma sucinta pesquisa bibliográfica e algumas inferências que não foram devidamente

comprovadas por enquanto. Ao término desta, espera-se que o conteúdo tratado neste texto seja

ratificado e, principalmente, ampliado.

Objetivos

4 O termo democrático não se refere à democracia de acesso, mas no sentido de espaço livre, a priori (e com ressalvas!), para quaisquer conteúdos, respeitando opiniões das minorias e suas diferenças, princípio democrático. 5 Apesar da televisão ter mais alcance (dando a impressão de democracia de acesso), não possibilita grandes interações do público, característica diferente da observada no YouTube, chamado aqui de “possível meio democrático” por possibilitar a produção de conteúdo por qualquer indivíduo que disponha dos recursos necessários.

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Objetiva-se refletir sobre o vídeo Midiatrix, veiculado no YouTube, que apresenta como

tema a mídia, a fim de verificar qual a produção de sentido operada e o atual papel requerido pelo

usuário da Internet, a fim de compreender essa forma de manifestação da cultura digital.

Metodologia

A pesquisa que gerou este ensaio busca na semiótica francesa (em autores como Greimas,

Zilberberg, Fontanille, Diniz, entre outros) a metodologia de análise de vídeos. No entanto, como

afirmado acima, trata-se de uma pesquisa ainda em construção. Portanto, no presente texto serão

adotados aportes teóricos relacionados à abrangência dos aspectos comunicacionais, nos estudos de

autores como Lévy, Perruzzo, Vilches, Wolton, Casttels e Lemos.

Desenvolvimento

No âmbito da cultura digital, Vilches traz à tona um conceito fundamental para compreender

o contexto em que YouTube está inserido: a dimensão que a “imagem” alcançou na sociedade atual

e sua relação com o novo meio de comunicação que a Internet instaurou.

Fala-se, portanto, de uma verdadeira revolução no campo da imagem, no sentido em que, mudando de maneira radical nossa relação com o visível, modificam-se a forma e o conteúdo dos objetos que produzimos ou recebemos. Conseqüentemente, as novas imagens modificam tanto o objeto representado quanto os modos de produzi-lo. Não há dúvida de que a informática alterou os conceitos tradicionais de representação visual. Por essa razão, é imprescindível refletir sobre o novo status dos objetos compostos de elementos estritamente icônicos (VILCHES, 2003, p.252).

Além disso, é importante lembra que “na forma da expressão – recursos visuais – reside o

conteúdo ideológico subjacente, servindo como grande manipulador, pois o que está em jogo é a

transformação da competência modal do enunciatário-sujeito” (DINIZ, 2002). Assim, fica evidente

que não se pode ignorar as transformações pelas quais a vida em sociedade está passando,

vinculadas à sua forte relação com a imagem. A análise desses novos componentes sociais exige

uma forma de compreensão e interpretação, desafio instigante e irrecusável quem pretende

mergulhar no saber comunicacional e entender suas interfaces, considerando que “as diversões

eletrônicas, digitais e virtuais, além de gerar conhecimento, são manifestações de uma cultura de

um outro tempo” (PEREIRA, 2003, p.3), de tempos contemporâneos! A Internet é cada vez mais

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integrante desta contemporaneidade e pode modificar o modo como as pessoas se relacionam entre

si e com o mundo natural. Por isso, é imprescindível conhecer a abrangência dos novos meios,

refletir sobre seu peso e alcance e ampliar o tipo de conhecimento disponibilizado.

Mantendo uma visão crítica sobre os processos comunicacionais atuais e sua relação com

a sociedade, Wolton concorda com a necessidade emergente de ponderação.

Estas situações de interatividade, apresentadas como um “progresso” da sociedade da informação, nos obrigam a reexaminar a questão do receptor... Porque, de fato, há duas figuras contraditórias: aquela do cidadão hiperativo, que passa sua vida na frente desses terminais interativos, realizando trabalhos antes feitos por muitas pessoas; e aquela complementar, do cidadão-consumidor (WONTON, 2006, p. 34).

Neste sentido, ainda que apenas 21% da população brasileira tenha acesso à Internet6, não

se pode fechar os olhos para a revolução que o ciberespaço tem provocado nos conceitos até então

conhecidos sobre os fenômenos comunicacionais, “transformando nossa ‘cultura material’ pelos

mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da

informação” (CASTELLS, 1999, p. 67). Investigar a construção do sentido de novos formatos,

como em vídeos do YouTube, possibilita identificar processos, efeitos de sentido, valores e

universos socioculturais ali contidos, ou em outra palavras, demonstra os traços de uma das formas

assumidas pela cultura digital.

A dimensão destes fenômenos é claramente demonstrada por Vilches:

Meio século depois da criação da televisão, primeira tentativa de fazer a imagem do mundo ascender aos céus, veio a Internet, o primeiro projeto humano em forma de rede que trata de reunir todas as expressões humanas, numa única arquitetura comunicativa. A globalização do mercado e da sociedade da informação, a concentração econômica e a conseqüente indistinção dos meios, por um lado, e, por outro, o sincretismo de programas, gêneros e formatos fazem da televisão e de sua associação com a Internet uma nova Babel (VILCHES, 2003, p. 96).

Um dos motivos para a formação desta “nova Babel” está no fato da rede possibilitar a

circulação de mensagens “independente de territórios geográficos, de tempo, das diferenças

culturais e de interesses, sejam eles econômicos, culturais ou políticos, globais, nacionais ou locais”

6 Dados levantados pelo IBGE em parceria com o Comitê Gestor da Internet (CGI). Disponível em: www.nic.br/imprensa/clipping/2007/midia54html. Acesso em: junho de 2007.

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(PERUZZO, 2005, p. 268). Para Lemos, essa possibilidade ocorre pela nova dinâmica técnico-

social da Cibercultura, que instaura uma estrutura midiática ímpar na história da humanidade, visto

que pela primeira vez qualquer indivíduo pode, a princípio, emitir e receber informações (sejam elas

escritas, imagéticas ou sonoras) em tempo real, para qualquer lugar do planeta (LEMOS, 2003,

p.14).

Além disso, são características fundamentais do ciberespaço a abolição da fronteira entre

autor e leitor (ou espectador, usuário etc.), bem como o descentramento das escrituras lingüística ou

audiovisual (VILCHES, 2003, p.152). Assim, torna-se possível alterar o sistema convencional dos

processos de informação, até então concentrados nos profissionais das empresas de comunicação.

Como afirma Peruzzo, a Internet viabiliza a “produção de conteúdos endógenos e sua transmissão,

sem fronteiras, pelos próprios agentes sociais” (PERUZZO, 2005, p. 268). Para ela, uma das

principais diferenças da convergência da mídia é a desestruturação das emissões por um só pólo,

que agora passam a ser feitas por muitos emissores. Essa tese é reforçada por Castells:

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso. Conseqüentemente, a difusão da tecnologia amplia seu poder de forma infinita, à medida que os usuários apropriam-se dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos (1999, p.69).

A descentralização das emissões pode ser notada na Internet pelos mais diversos

conteúdos. Além de veículos “oficiais” encontrados na rede (“os grandes meios de massa – jornais

ou televisões – criam seus portais para cultivar uma clientela de usuários de serviços ampliados”

(VILCHES, 2003, p.185)), pode-se localizar também comunidades virtuais, blogs, sites pessoais,

banco de dados infindáveis disponíveis a qualquer um, etc.

Lançado em fevereiro de 2005, o YouTube é outro exemplo de espaço on-line onde não há

controle das emissões. O site se tornou em pouco tempo o maior serviço de compartilhamento de

vídeos na rede. Verificando o sucesso da página, o Google tentou superar o fenômeno, e lançou em

janeiro de 2006 um serviço similar. Sem conseguir vencer o rival, comprou o YouTube em outubro

do mesmo ano por US$ 1,65 bilhão. A transação comercial demonstra não somente que o YouTube

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foi um bom negócio para seus criadores, mas também o impacto que a imagem causa na sociedade

atual.

A migração digital supõe também um desenvolvimento das tecnologias do conhecimento. Entre essas, as tecnologias da imagem desempenham uma função essencial para a formação da percepção e da compreensão da realidade. O desenvolvimento das tecnologias digitais da imagem permitirá uma percepção diferente das relações com os objetos, o tempo e o espaço. As tecnologias não lineares e os hipertextos permitirão o desenvolvimento da narrativa digital, facilitando uma maior progressão da atividade cognitiva enquanto se acompanham os argumentos da ficção e das histórias. Mesmo assim, a interatividade nos formatos narrativos digitais poderia permitir um aumento da criatividade na construção de histórias e na capacidade para desconstruir textos fechados de ficções tradicionais. Para isso será necessário acesso às bases de imagens (VILCHES, 2003, p. 172).

Publicado em 2003, “Migração digital”, de Lorenzo Vilches, já anunciava a formação do

que ocorreria pouco tempo depois com a criação do YouTube. Além da produção exponencial de

vídeos para o site, os usuários já podem acessar imagens alheias (o que rendeu inclusive algumas

batalhas na justiça por direitos autorais), divulgando-as em seu estado original ou mesclando-as

para formar conteúdos próprios, como é o caso de um dos vídeos que fazem parte da dissertação

que origina este ensaio. Em “Midiatrix”, seu autor utilizou cenas do filme “Matrix”, modificou

diálogos e inseriu imagens do símbolo da rede Globo. Isso tudo para criticar uma suposta

manipulação da mídia em geral sobre a população brasileira, citando também a revista Veja. Neste

caso, é possível observar claramente a interação entre a imagem e a escrita para a produção de

sentido do vídeo, mostrando como a imagem é capaz de ancorar o discurso. Indo além, a imagem

busca concretizar valores da oralidade e escrita – provenientes do produtor – no espírito do receptor

(DINIZ, 2002).

No entanto, esse novo produtor do ciberespaço, que até pouco tempo recebia informação

audiovisual principalmente pela televisão, passa agora disponibilizar imagens e recebê-las sem o

crivo de uma empresa de comunicação. É evidente que os veículos de mídia podem emitir

informações ou imagens duvidosas. Contudo, sua assinatura os responsabiliza por tudo o que for

divulgado, minimizando pelo menos um pouco a veiculação de fatos mentirosos ou fora dos

padrões éticos concebidos. Com a expansão de emissores, ganha-se na pluralidade de vozes, e

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perde-se na conferência de credibilidade. Na tragédia ocorrida em 2006 com um avião da empresa

aérea Gol, na qual mais de 190 pessoas morreram, foram disseminadas por via online fotos de

corpos mutilados. Entretanto, as imagens eram de outros acidentes, mas muitos acreditaram que tais

fotografias eram referentes ao acidente.

É nesta perspectiva que Vilches alerta:

A velocidade de processamento da informação impulsionada pela Internet e pelas tecnologias da imagem oferece um sistema muito avançado de acesso de saber, para indivíduos que consigam usá-lo de modo inteligente e monitorado. Por essa razão, a grande quantidade de informação que impulsionará a demanda tornará mais necessárias do que são hoje as figuras do mediador, do jornalista, do jornalismo especializado, do professor orientador, do tutor personalizado (VILVHES, 2003, p. 173).

Apesar das dificuldades, Castilho também discute a necessidade de se fortalecer o papel

do jornalista neste processo. Ele relembra a ocasião da divulgação no YouTube do enforcamento de

Saddam Hussein, o que chama de “notícia transmitida em estado bruto, sem nenhuma edição,

contextualização ou avaliação por parte de jornalistas” (CASTILHO, 2007).

O papel intermediador do jornalismo na divulgação de notícias tem diminuído

constantemente e de forma paralela à multiplicação de ferramentas para captação e distribuição de

imagens. Assim, para Castilho:

Ao perder o papel de intermediário entre o fato e o público, o jornalista começa a ter que rever o seu papel no processo da informação (...). O público pode agora ir direto aos fatos, sem a intermediação dos jornalistas, mas perde os referenciais de credibilidade. O acesso à notícia em estado bruto facilita o voyeurismo e a morbidez (...). A multiplicação de notícias em estado bruto veiculadas através da internet vai gerar uma grande confusão no público consumidor de informações (2007).

É por isso que Soares defende a figura do jornalista neste processo. Para o autor, sendo o

uso de novas tecnologias freqüente, elas não só participam do processo de aquisição de informação,

bem como modificam o ato educativo. “O jornalista aparece neste contexto não mais como único

produtor, mas sim como um ‘gestor de processos comunicativos’” (SOARES, 2001, p. 96). Nesta

perspectiva, os vídeos mostram-se como campo analítico da eliminação do “mediador profissional”,

e podem vir a mostrar a real necessidade deste mediador no processo de transmissão informacional,

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ou excluí-la de vez. As marcas contidas no objeto desta pesquisa deve manifestar se o novo formato

causará a “perda de referenciais” tratada acima por Castilho, bem como se o jornalista como “gestor

comunicacional”, segundo Soares, é mesmo imprescindível nos processos de significação.

E apesar dos entraves de acesso, da “informação em estado bruto”, e da dificuldade pela

qual passa o jornalismo na função de mediador, não se pode negar o papel potencialmente

democrático da Internet nos processos de comunicação. Peruzzo afirma:

As modificações introduzidas pela inclusão da Internet, principalmente os mecanismos de interatividade e as alterações nos processos de produção, difusão e consumo de informações, possibilitam a inclusão dos cidadãos como sujeitos e não como simples consumidores de mensagens (2005, p.279).

Neste sentido, Dines atribui ao YouTube a criação da noção do “cidadão-jornalista e

cidadão-comunicador” (2007). Para ele, é preciso agora que seus usuários associem o site ao

interesse público e às causas humanitárias. Compartilhando desta perspectiva, Peruzzo considera

que este processo já está formando um “novo jornalismo”, em que cidadãos e organizações

independentes “se dedicam a uma comunicação voltada para interesses específicos com finalidade

pública, a uma comunicação alternativa e crítica à mídia tradicional” (PERUZZO, 2005, p. 282),

como este estudo pretende verificar nos vídeos a serem analisados.

Considerações finais

O fenômeno do YouTube demonstra um pouco da necessidade de produção, de

“participação imagética” que se instaura no etos ou nas formas de vida (FONTANILLE 2008) do

atual usuário dos meios de comunicação, necessidade esta apenas suprida com a evolução da

Internet e criação do site em questão. Estas formas de vida são determinantes e determinadas pela

cultura dos grupos que aderem à página e aos seus recursos. Até pouco tempo excluído do processo

de produção midiática este usuário enunciador escolhe, dessa forma, uma mídia (Internet) para

critica à mídia como um todo.

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Ainda que não seja semioticista, Wolton (2003) discorre a respeito do que as novas

práticas semióticas on-line significam na instância das formas de vida. Para o autor as novas

tecnologias adquiriram uma dimensão social pois representam uma espécie de “nova chance” ao

antigo grande público. “As novas tecnologias são, como uma figura de emancipação individual,

‘uma nova fronteira’. Não é somente a abundância, a liberdade e a ausência de controle que

seduzem, como também essa idéia de uma autopromoção possível, de uma escola sem mestre, nem

controle” (WOLTON, 2003, p.85 e 86).

Transportando o pensamento de Wolton para a teoria semiótica, o objeto/suporte da

Internet passa a ser determinante nas cenas predicativas (práticas) dos novos usuários, promovendo

o que ele chamou de “emancipação individual”. Estas práticas, por sua vez, são determinadas pelo

comportamento do sujeito, a forma de vida imagética7 que agora acompanha sua vida.

A Internet tem progressivamente deixado de ser um meio elitista, e hoje faz parte do

cotidiano de uma parcela considerável da população. Da mesma forma, os recursos de captação de

imagens e som são cada vez mais acessíveis e simples de se operar. Este progresso técnico

provavelmente é fruto da também crescente necessidade do homem viver em comunhão com a

imagem, seja por impulsos narcisísticos, emancipatórios, ou mesmo integrativos.

Nesta perspectiva, será que as práticas tratadas aqui não representam um etos ávido pelos

elos perdidos? Se a rede criou “solidões interativas” (ou foram elas que criaram a Internet?), estaria

este etos em busca de um religare? A prática contemporânea marcada por enunciados áudio-visuais

criou a necessidade de seu objeto-suporte; da mesma forma, este objeto tem moldado as práticas

semióticas desta sociedade.

Sem intenção de divagar sobre a primogenitura entre o “ovo ou a galinha”, espera-se que

estes pontos sejam incorporados nas análises futuras sobre o novo usuário/produtor da Internet, que

sem dúvida podem buscar no instrumental da semiótica francesa outras perspectivas para problemas

semelhantes.

7 Este fato também pode ser verificado através do sucesso que os reality-shows alcançam no Brasil.

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