2. CONHECER, CLASSIFICAR E ORDENAR
2.2. Conhecer: Desenhando o Mundo
O mundo ocidental anterior aos descobrimentos marítimos era, em todos os
sentidos, extremamente diferente, a começar pelo entendimento de sua própria
forma física. Era um mundo que desconhecia as Américas ou que só conhecia três
quartos do planeta, que achava que a Terra era o centro do universo e, sobretudo,
que pensava, agia e sentia de forma distinta.
A “revolução cosmográfica” provocada pelas viagens marítimas durante o
século XVI veio alterar não só a visão de mundo, como o mundo estruturalmente
organizado. As viagens e suas descobertas modificaram a dimensão do mundo,
demonstrando que ele era maior, muito maior. No entanto, a estratégica partilha
das novas terras entre Portugal e Espanha, divididas por uma linha imaginária
chamada Tordesilhas, interferia nessa outra configuração. A assimilação dessas
mudanças não foi imediata.
Concomitantemente, outras mudanças ocorriam na Europa, tais como as
Reformas religiosas, a formação dos Estados Nacionais e as revoluções científicas
de Copérnico e Galileu. Todos esses aspectos geraram um complexo processo de
ruptura com determinados conceitos que formavam a base daquela visão de
mundo. Elementos que, até o momento, constituíam essa antiga visão,
misturavam-se com as novas informações, configurando um quadro rico em
contradições como ocorre em todo período de transição.
Logo, o processamento da idéia da existência de um mundo paralelo, que
havia estado por tanto tempo oculto, foi realizado em meio ao susto da própria
ignorância e paralelo às mudanças em curso na Europa. Como foi o conhecimento
desse admirável mundo novo? O que se quis conhecer desse mundo? O que
pautou e o que interferiu nesse complexo processo de conhecimento? Como as
antigas informações foram cruzadas com as novas? E, ainda, que imagens foram
geradas nesse processo?
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A descoberta das novas terras estimulou o imaginário europeu na produção
de mitos, imagens e especulações. Entre as muitas imagens, tratou-se logo de
identificar o Novo Mundo com o Paraíso Terreal. Projetava-se, assim, uma idéia
já existente, que circulava desde a Idade Média.1 Anteriormente situado no
Oriente, o paraíso terrestre ganhava nova localização com Cristóvão Colombo,
que em sua terceira viagem afirmava estar convencido de o ter encontrado. A
exuberância da natureza e o clima nem frio, nem quente contribuíram para essa
identificação, como podemos observar na seguinte passagem do Diário de
Colombo:
“(...) maravillas de la lindeza de la tierra y de los arbores (...) la más hermosa cosa del mundo y salem por ella muchas riberas de aguas que descendiam d’estas montañas (...) y certifico a Vuestras Altezas que debaxo del sol no me parece que las pueda haver mejores en fertilidad, en temperancia de frio y calor, en abundancia de aguas buenas y sanas (...) era toda la gente más hermosa y de mejor condición que ninguna otra.” 2
Em 1502, na carta a Lorenzo dei Medici, Américo Vespúcio descrevia as
novas terras recorrendo também à mesma comparação: “Algumas vezes me
maravilhei tanto com os suaves odores das ervas e das flores e com os sabores
dessas frutas e raízes, tanto que pensava comigo estar perto do paraíso terrestre”.
E ainda podemos encontrar semelhante referência em outra famosa carta, atribuída
à Vespúcio, que consagrou a expressão Mundus Novus: “Certamente, se o paraíso
estiver em alguma parte da terra, creio não estar longe daquelas regiões”. A
América substituía o Oriente como o novo depósito de mitos.
Ao contrário dessa visão idílica, produziu-se uma outra imagem que
ressaltava os horrores da vida dos trópicos. O estranhamento com os costumes da
vida nativa dos trópicos produziu um juízo oposto ao encantamento com a terra.
Rituais indígenas foram descritos como “cerimônias diabólicas” por Yves
1 - Sérgio B. de Holanda demonstrou que a crença na existência de um paraíso na Terra não era apenas uma sugestão metafórica ou fantasiosa, era uma espécie de idéia fixa. Buarque de Holanda analisou o lento processo de deslocamento do mito do paraíso terrestre situado originalmente nos confins da Ásia e da África até o universo atlântico. Cf. Visão do Paraíso. SP. Brasiliense, 1996. Claude-Gilbert Dubois afirma que, no século XVI, “o paraíso terrestre (...) não era considerado uma alegoria, e sim uma realidade histórica e geográfica”. As pessoas esforçavam-se, portanto, em localizá-lo e descrevê-lo. Cf. O Imaginário da Renascença. Brasília, UNB, 1995, p.160. A literatura sobre o tema é bastante extensa; destacam-se os trabalhos de Jean Delumeau e, no Brasil, de Laura Mello e Souza. 2 - COLÓN, C. “Diário del primeira viaje”. In: Cristóbal Colón textos y documentos completos. Madri, Alianza Ed, 1984.
25
D’Evreux3, entre outros, e o próprio modus vivendi dos índios foi comparado ao
inferno, como fez Pe. Fernão Cardim: “Moravam os índios, antes de sua
conversão, em aldeias, em umas ocas ou casas mui compridas (...) Parece a casa
um inferno ou um labirinto; uns cantam outros choram, outros comem, outros
fazem farinhas e vinhos, etc. e toda a casa arde em fogos”. Com o tempo, outros
aspectos foram acrescidos a essa visão negativa, como, por exemplo, a observação
de que as cidades eram sujas e mal ordenadas, as gentes eram preguiçosas, os
costumes degenerados; “terra de todos os vícios de todos os crimes”. Imbuídos da
missão catequética e impregnados de um catolicismo feroz amparado pela
inquisição, missionários e eclesiásticos não tardaram em associar os costumes
indígenas às mais completas heresias4. O inferno foi localizado na terra, o diabo
habitava por essas bandas e o pecado morava ao lado. Enfim, reinava a barbárie e
a incivilidade era total.
Não se pode esquecer que a literatura medieval e a cultura popular na
Europa haviam fornecido as bases para esse tipo de visão, representando os sítios
naturais como lugares fantásticos, povoados não apenas por fadas e duendes, mas
também por seres terríveis. J. Huizinga, em O Declínio da Idade Média,
demonstrou como o imaginário medieval produziu imagens de um outro mundo
distante e assustador. Georges Balandier, a partir de um corpus homogêneo de
narrativas medievais, constatou que: “a floresta não é vista somente como um
espaço ainda desgarrado da atividade ordenadora e do controle dos homens, ela é
ela mesma outro mundo, não tem ordem própria na qual nada se reconhece
enquanto ordem humana, e por esta diferença absoluta, a floresta ameaça o
homem”. Assim, todo um imaginário já construído parecia encontrar eco na
descoberta de um outro mundo. Esse outro mundo, ainda desconhecido, tinha
espaço para abrigar, além de infernos e paraísos, o que mais a imaginação pudesse
conceber. Imaginava-se mais do que se observava.
Nos relatos dos viajantes medievais, os autores acentuavam um toque de
fantasia, despertando a atenção e curiosidade de seus leitores. Eram comuns
histórias como a do monge irlandês São Brandão, que teria viajado durante sete
3 - “De quelques autres cérimónies diaboliques pratiquées par les sorciers du Brésil”. In: Voyage au Nord du Bresil. Fait en 1613 et 1614. Paris, Payot, 1985. 4 - Sobre esse aspecto ver: VAINFAS, Ronaldo: A Heresia dos Índios; SOUZA, Laura Mello e: Inferno Atlântico e Diabo na Terra de Santa Cruz.
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anos até alcançar o paraíso terrestre, enfrentando toda sorte de percalços e
deparando-se com os mais estranhos seres. No século XIV, ao regressar da China,
o navegador veneziano Marco Polo contou suas peripécias na rota da seda e do
reino de Kublai Khan no Livro das Maravilhas5. Posteriormente, o relato das
Viagens de John Mandeville tornou-se dentre as narrativas do gênero, a mais
célebre da Idade Média.6 As Viagens de Mandeville, um misto de relato e ficção,
dividiam-se entre a história de sua peregrinação pelo Oriente Médio, África e Ásia
e a descrição das maravilhas encontradas ao longo de seu itinerário. Nesse
percurso, não faltou a menção ao paraíso terrestre e ao famoso reino do Preste
João, figura mítica de uma lenda que circulou durante toda a Idade Média7. Ainda
no mesmo período, produziu-se uma série de relatos sobre lugares e povos
distantes, dentre os quais se destaca o Imago Mundi do cardeal Pierre d’Ailly.8
Muito se tem escrito sobre o imaginário europeu em relação ao Novo
Mundo. Não há dúvidas de que os relatos de viagens medievais influenciaram, de
alguma forma, as viagens modernas. Em sua viagem, Cristóvão Colombo levava
um exemplar do Imago Mundi do cardeal d’Ailly repleto de anotações, bem como
o Livro das Maravilhas de Marco Polo. E também não restam dúvidas quanto à
mudança de visão entre as viagens medievais e as modernas. Se, nos relatos de
viagens medievais, eram inexistentes as fronteiras entre o fantasioso e o real ou,
pelo menos, o verossímil, nos relatos modernos já não se aceitava essa mistura tão
marcante. O campo da ficção estava em fase de delimitação e começava-se a
cobrar um mínimo de verossimilhança em relação a esse tipo de narrativa. Ou
5 - Há controvérsias sobre a autoria do Livro das Maravilhas, se teria sido escrito pelo próprio Marco Polo ou se esse teria ditado suas lembranças ao seu companheiro de cela Rustichello, quando esteve preso por ocasião da guerra de Curzola com a República de Gênova. 6 - A Viagem de Mandeville tornou-se popular na Europa, circulando em forma manuscrita, em inglês alemão, holandês, francês, italiano, latim, dinamarquês, tcheco e irlandês. Cf. GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas. O Deslumbramento do Novo Mundo. São Paulo, Edusp, 1996. p. 51. 7 - A primeira referência ao lendário soberano católico apareceu em torno de 1145, localizando seu reino na Índia. Contava-se que seu reino tinha de tudo: as relíquias de S. Tomé, a fonte da juventude, as Amazonas. Era ainda um lugar riquíssimo, com rios transportando ouro, prata e jóias. Da Índia, o reino foi transportado para a China e depois para a África. Os portugueses procuraram durante muito tempo o reino do Preste João, esperando encontrar um aliado contra os muçulmanos. 8 - O Cardeal Pierre d’Ailly (1351-1420) foi um incansável escritor, ao qual se atribui a autoria de mais de uma centena de textos, entre livros, tratados, sermões e cartas. No entanto, foi o seu Imago Mundi que o tornou conhecido, em razão do papel que desempenhou na descoberta do Novo Mundo. Nessa obra d’Ailly tratou do problema da forma redonda da terra e do seu movimento de rotação em volta do próprio eixo, antecipando Copérnico.
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seja, as viagens modernas forçaram uma mudança no regime discursivo, impondo
uma gradativa diferenciação entre fato e ficção.
A história do navegador e explorador inglês Walter Raleigh exemplifica
essa questão. Raleigh participou de muitas expedições ao Novo Mundo, fundando
em 1585 uma colônia, na ilha de Roanoke, a que deu o nome de Virgínia. Em
busca do Eldorado, o pirata inglês viajou entre o Orenoco e a Guiana. Em suas
narrativas de viagens, referiu-se à abundância de ouro e prata na Guiana, motivo
pelo qual caiu em desgraça, uma vez que os fatos não se confirmaram. Raleigh
acabou sendo decapitado.
É preciso, portanto, considerar um fator em relação a essa mudança de tom
nas narrativas de viagens na passagem para os tempos modernos: o que movia os
viajantes? As viagens dos descobrimentos foram guiadas por interesses distintos
daqueles que moviam as anteriores. O caráter mercantil passou a se sobrepor ao
ideal místico ou religioso que guiava a maioria das viagens medievais,
incentivando a peregrinação ou a busca de lugares sagrados e que teria motivado,
inclusive, as cruzadas, uma peregrinação armada. No caso de Portugal, as viagens
foram tornando-se um projeto coletivo, da própria nação, acompanhado e
patrocinado pelos próprios reis.
O volume da produção cultural resultante das viagens modernas é
extremamente significativo, indo além das simples narrativas da própria viagem,
abrangendo roteiros, manuais náuticos, cartas dos comandantes aos monarcas,
poemas épicos, livros de bordo, etc. Diante das incertezas das viagens era preciso
cercar-se de estruturas mais complexas, ainda que estas hoje nos possam parecer
as mais precárias. As exigências por um conhecimento mais preciso tornou-se
quase uma norma, daí a crescente necessidade de diferenciação entre relatos
fictícios e verdadeiros.
Grande parte dos autores procuravam assegurar a veracidade de seus
relatos, ressaltando a sua presença testemunhal por meio do emprego freqüente de
expressões do tipo: “é pura verdade”; “não duvide o leitor”; “algumas pessoas
poderão achar que não se trate de verdade, mas sim que seja inteiramente falso
tudo o que dissemos a respeito”, etc. Na apresentação de Viagem ao Brasil, de
Hans Staden, seu revisor procurou afirmar a autenticidade do relato, fornecendo,
inclusive, referências sobre a biografia do autor, garantidas por cinqüenta anos de
amizade entre os dois.
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A preocupação em atestar a veracidade dos relatos dessa outra realidade,
um recurso freqüente, tornou-se quase uma obsessão. Jean de Léry, no prefácio de
sua Viagem, afirmou que só resolveu narrar as suas memórias, dezoito anos após a
sua estadia no Brasil, para desmentir e corrigir os erros do franciscano André de
Thevet9 nas seguintes obras: Singularidades da França Antártica e Cosmografia
Universal. De acordo com Léry, Thevet queria “mentir cosmograficamente”, isto
é, para todo mundo. Posteriormente, Thevet acusaria Léry por plágio. Au fur et à
mesure, os dois livros não diferem na maioria dos pontos; diferem, talvez, apenas
por uma questão de estilo. Enxuto, vivo e elegante é o de Léry, em oposição ao
sobrecarregado texto de Thevet, pontuado de referências e citações de fontes
antigas. O livro do franciscano, cosmógrafo do rei, havia alcançado um enorme
sucesso. Disputava-se o público e o agrado das cortes. Como apresentar uma
versão completamente diferente? E até que ponto as disputas religiosas
influenciaram essa discussão?
As controvérsias entre católicos e protestantes ajudaram a renovar o
interesse pelas doutrinas céticas na Europa dos séculos XVI e XVII. Em recente
estudo, Peter Burke10 lembra que o ceticismo acabou por se estender para além
das questões religiosas, gerando uma certa desconfiança quanto às informações
veiculadas e sujeitando os próprios relatos de viagem ao exame crítico. As
contradições e discrepâncias entre relatos distintos observados pelos críticos
ampliavam o número de leitores céticos. Desse modo, talvez todas essas questões
tenham ajudado a uniformizar os relatos, mantendo-os no mesmo tom e presos às
mesmas questões.
Se os relatos medievais haviam atiçado a cobiça humana para as riquezas
do além mar, incentivando novas viagens com outros objetivos, é certo que a sua
influência ainda se fazia sentir, apesar da existência de um certo controle do
9 - André de Thevet (1502-1592) foi um monge franciscano que percorreu o Oriente e, posteriormente, acompanhou o almirante Nicolas Durant de Villegaignon ao Brasil para fundar a colônia francesa nos trópicos, a França Antártica, em 1555, onde permaneceu por três meses. Thevet chegou a ser simpatizante da Igreja Reformada sem, contudo, concluir sua conversão. Tornou-se capelão de Catarina de Médicis e, ainda, cosmógrafo do rei Francisco II. Cf. LESTRINGANT, Frank. L’Atelier du Cosmographe des Derniers Valois. Paris, Albin Michel, 1991. 10 - Cf. “A confiança e a desconfiança no conhecimento”. In: Uma História Social do Conhecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
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imaginário11. Nesse sentido, é natural que mais do que rasgos de fantasia tenham
perdurado, o que tornava a maioria dos relatos nem verdadeiros nem falsos. Como
bem notou Berenice Cavalcante, “os relatos (modernos) tornavam manifesto o
descompasso entre o desejado e o vivido”.12
Mas há várias possibilidades para o entendimento da literatura de viagens
nesse período de transição. Em Possessões Maravilhosas, Stephen Greenblatt
explora a experiência do maravilhamento ante o desconhecido, presente tanto em
viajantes da Idade Média tardia quanto em viajantes renascentistas. A maravilha
ou, mais tarde, o maravilhoso era o que parecia impossível, o imponderado. Podia
referir-se a um acontecimento, a um objeto, a um ser ou a um lugar. A vivência do
maravilhoso produziria uma sensação ambígua, que se dividia entre a repulsa e a
atração, o prazer e a dor, o deslumbramento e o terror. Não será por acaso que
teremos normalmente visões polares sobre um mesmo tema e, muitas vezes,
gritantes distorções da realidade.
Greenblatt verificou uma mudança de tom entre os relatos dos dois
períodos. Se o maravilhamento medieval continha um indício de despossessão,
isto é, as viagens eram narradas sem a cobiça pelos tesouros e opulência dos
lugares visitados, o tom renascentista passava a se apresentar como um agente de
apropriação, mais interessado nas riquezas que poderiam encontrar e possuir. Mas
não houve apenas uma mudança de tom nas narrativas. Com o descobrimento de
uma quarta parte da terra, até então ignorada pela Europa, multiplicaram-se as
possibilidades e os motivos para se maravilhar. Portanto, a viagem de Colombo
teria dado início a um século de intenso maravilhamento. O “maravilhoso” seria a
figura central da resposta inicial dos europeus ao Novo Mundo, a decisiva
experiência emocional e intelectual em presença da diferença radical13. Assim,
grande parte do processo de conhecimento do Novo Mundo seria realizado através
das lentes da maravilha. As narrativas de viagem deveriam conter, portanto,
elementos do maravilhoso.
Sérgio Buarque de Holanda entendeu que o gosto pela maravilha e pelo
mistério, quase inseparável da literatura de viagens na era dos descobrimentos,
11 - Para essa questão do controle do imaginário, Cf. COSTA LIMA. “O transtorno da viagem” e “A ficção oblíqua e The Tempest”. In: Pensando nos Trópicos. Rio de Janeiro, Rocco, 1991. 12 - Cf. “Antigos e Modernos. Histórias de uma Tradição” In: Modernas Tradições. Percursos da Cultura Ocidental. Rio de Janeiro, Access, 2002. p. 26.
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ocupou espaço singularmente reduzido nos escritos quinhentistas portugueses
Para Buarque de Holanda, a longa prática das navegações do Mar Oceano e o
assíduo trato das terras e gentes estranhas já tinham “amortecido neles (nos
portugueses) a sensibilidade para o exótico”14, ou porque o fascínio do Oriente
ainda os absorvesse em demasia, sem deixar margem a maiores surpresas. Essa
característica portuguesa traduziria ainda um certo conservantismo, resguardando
aspectos do fim da Idade Média, tais como uma atenção ao pormenor, ao
episódico e uma aversão a “induções audazes em contraste com o idealismo, com
a fantasia, e ainda com o senso de unidade próprio dos renascentistas”.15
Mas existiria uma distância entre os portugueses e os outros europeus
manifestada em seus relatos neste período? Seriam os textos portugueses
destituídos da maravilha? Ou ainda, é possível falar em uma característica
portuguesa? Essa questão pode ser vista, contudo, de um outro ângulo que não
aquele circunscrito ao terreno do imaginário. Comecemos pelos conceitos.
Renascimento e descobrimentos - duas categorias distintas que ocorreram lado a
lado praticamente no mesmo espaço de tempo. Como se cruzam?
O Renascimento, usualmente situado entre os séculos XIV e XVI, teve sua
origem nas cidades-estado italianas, propagando-se gradativamente por toda a
Europa. A consciência de se estar rompendo com o tempo que os antecedia foi
desenvolvida por Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio, que apontaram a
necessidade de uma renovação que pusesse fim às trevas medievais, revelando a
beleza perdida da Antigüidade greco-romana. Ao longo do século XV, circulou
essa idéia do começo de um novo período, dividindo, portanto, o tempo em três
etapas: um passado longínquo, da Antigüidade greco-romana; um passado
próximo, associado às trevas (medieval); e o presente, que inaugurava um novo
período, um tempo de renovação.
Quanto ao termo descobrimento, podemos dizer que é uma categoria
histórica empregada para designar o movimento de expansão planetária da Europa
entre os séculos XV e XVI, que engloba mais do que uma sucessão de descobertas
e conquistas. Afinal, os descobrimentos representaram para o europeu, também,
um momento de ruptura de um tempo, de uma visão incompleta de mundo,
13- Idem. p. 31. 14 - CF. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit., p. 1. 15 - Idem, ibidem, p.315.
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transformando ainda suas estruturas econômicas e políticas. Mais que um tempo
novo, criava-se uma realidade nova.
Hoje, há uma certa reticência quanto ao primeiro termo entre os
historiadores16 que, pelo menos, concordam com o fato de não ser mais possível
trabalhar com a conceituação criada pelos próprios humanistas italianos e
retomada por Vasari17: o renascimento das letras e das artes graças à retomada de
textos da Antigüidade clássica. Já no século XIX, as fronteiras desse conceito
foram ampliadas pela conhecida obra de Jacob Burckhardt, A Cultura do
Renascimento na Itália, a qual se tornou referência obrigatória para quem quisesse
falar sobre o tema. A partir de então, uma vasta discussão historiográfica tem
desenvolvido o assunto por meio de diferentes ângulos. A idéia de um
“redespertar” da Antigüidade foi matizada, uma vez que a mesma não havia sido
esquecida ao longo da Idade Média. A questão da existência de um modelo que
guiava o movimento, por si, também não explicaria a explosão das novas técnicas
(imprensa, relógio mecânico), e nem os outros novos aspectos que passaram a
fazer parte do cotidiano naquele momento. Atualmente, a historiografia tem
preferido trabalhar com a idéia de uma lenta transição entre uma Idade Média e os
Tempos Modernos.
No entanto, gostaríamos de lembrar em especial um aspecto, entre as
tantas questões levantadas pela obra de Burckhardt, que aparece em destaque
como marca fundamental daquele período: “a descoberta do homem e do
mundo”.18 O renascimento teria, portanto, essas duas faces, que poderiam ser
16 - Jean Delumeau, em A Civilização do Renascimento, diz que a nossa compreensão do período ficaria facilitada se fossem suprimidos dos livros de História dois termos inexatos: “Idade Média” e “Renascimento” Com isso, abandonar-se-ia todo um conjunto de preconceitos. Ficar-se-ia livre da idéia de ter havido um corte brusco, separando uma época de luz de um período de trevas. Mas Delumeau questiona que outro termo abrangeria as mudanças ocorridas naquele espaço de tempo. Na falta de um outro, conserva o termo já consagrado pelo uso. Para citar mais um exemplo, podemos recorrer à historiografia da arte. Giulio Carlo Argan, em Clássico e Anticlássico., refere-se aos séculos XV e XVI como “o período que continuamos chamando de Renascimento, mais por hábito do que por convicção”. Argan reconhece as reviravoltas operadas na historiografia e retoma alguns temas desse período apresentando uma nova leitura. 17 - O termo Renascita aparece em 1568 na segunda edição de Vite de Giorgio Vasari para exprimir um fenômeno do século precedente: a renovação da arte sob a influência da Antigüidade redescoberta. 18 - Eugene Garin alertou para um equívoco cometido por Burckhardt ao retratar o “homem” do Renascimento, misturando dois temas diferentes. O primeiro tema seria a atenção que se centrava no homem, com uma intensidade sem igual para descrever, exaltar e colocá-lo no centro do universo. Esse primeiro tema poderia ser traduzido como uma filosofia do homem, que implicaria em uma teoria de sua formação, de sua educação. Outra coisa, porém, seria a manifestação de
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representadas pela figura do humanista e pelo conquistador, ambos descobridores
de suas capacidades.
Esse novo homem se descobre não tão dependente da providência divina
ao perceber que pode ser senhor de seus movimentos, interferir no seu destino e
no próprio mundo. Ou seja, verifica-se a emergência do sujeito individual como
peça essencial no processo de conhecimento. A sua relação com Deus e com o
mundo (homem/sociedade; homem/natureza) transforma-se, bem como as suas
ações e pensamentos. Qual era o papel do homem no mundo e o que definia a
humanidade eram as questões em pauta, características desse momento. O
movimento de descoberta do homem inaugura um processo de individuação e,
também, de secularização. O que não quer dizer que a religião tenha sido posta de
lado, muito pelo contrário, continuou sendo, também, objeto de reavaliação,
resultando em um novo cristianismo. Portanto, esse movimento de exaltação da
dignitas hominis, conhecido sob o nome de humanismo19, atravessou os domínios
da filosofia, estética e religião, repercutindo na produção cultural desse período.
Quanto ao conceito de descobrimento, é possível afirmar que permite uma
discussão no mesmo nível ou até mesmo maior do que aquela suscitada pelo
conceito de Renascimento. Talvez uma das melhores definições tenha sido
fornecida por Gerd Bornheim, que o entendeu como uma “totalidade aberta,
rigorosamente indefinida”. Para Bornheim, qualquer discurso sobre os
descobrimentos nem sequer conseguiria instaurar um ponto de partida.20
A aventura marítima - portuguesa e espanhola - estaria, portanto, inserida
neste quadro de mudança, sugerindo que o homem podia ter, então, maior
domínio sobre a natureza e confiança na sua capacidade. Ao longo dos anos, a
experiência das viagens permitiu redefinir, literalmente, a maneira de ver o
mundo. Cabe ressaltar que, antes das terras ou da “quarta parte do mundo”,
descobriram-se novos mares, novas correntes, novos ventos, novos céus e novas
novos tipos relacionados com novas formas e específicas atividades que tendem a surgir em um momento de crise e transformação. Assim, Burckhardt “tende a unificar (...) a elaboração de uma filosofia do homem (a descoberta do homem) com o interesse pela história dos homens em sociedade”. Cf. O homem do Renascimento. p.11. 19 - Não custa lembrar que o humanismo, apesar de engendrado pelas correntes do pensamento medieval, afirmou-se de forma radicalmente diferente no século XV na Itália, irradiando-se pela Europa no XVI. 20 - BORNHEIM, Gerd. “A Descoberta do Homem e do Mundo”. In: NOVAES, Adauto. A Descoberta do Homem e do Mundo. São Paulo, Minc - Funarte / Cia. das Letras, 1998.
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estrelas. Mas não foram só esses novos elementos que alteraram a visão espacial.
Até então, os mapas europeus tinham em Jerusalém o centro do mundo. Os
cálculos desenvolvidos pelos astrônomos permitiram a reconfiguração do mapa-
múndi, baseada nas coordenadas de latitudes, onde qualquer ponto poderia ser
localizado por um número. Essa nova forma de compreender e mapear o globo
terrestre, imaginada pelos portugueses, inaugurou uma visão mais precisa do
planeta, tal como hoje o conhecemos. Se o homem começava a ter a consciência
de si mesmo e de seu tempo, com os descobrimentos, passava a ter a consciência
do mundo, de sua extensão de seu espaço. Então, de certa forma, pode-se dizer
que esse período descobre também o tempo e o espaço.
A historiografia portuguesa recente tem procurado recuperar o ambiente
intelectual e cultural ou, dito de outra forma, “os conteúdos ou os caminhos do
saber” em Portugal na época dos descobrimentos.21 Nesse momento, a lógica
cultural definia-se como um jogo de cruzamento de elementos antigos e novos,
caracterizando um período de transição entre a medievalidade e a modernidade. A
cultura portuguesa dos descobrimentos teria sua especificidade, podendo ser
entendida como parte integrante da ótica renascentista, principalmente quanto ao
seu caráter discursivo.
A cultura discursiva em Portugal, nesse período, estaria assentada em três
quadros fundamentais: escolástico, humanista e racionalista pragmático-
experimental, este último especialmente ligado aos descobrimentos marítimos.22
Cada um desses quadros guardaria sua especificidade e valor próprio, preservando
uma certa independência. Luís Felipe Barreto considerou a hegemonia dos
primeiros quadros - escolástico e humanista -, enquanto que o terceiro teria
alterado sua posição marginal, alcançando um crescimento significativo ao longo
do século XVI. A ampliação e a atuação desse último quadro em Portugal
conformariam a cultura dos descobrimentos.
Grosso modo, três áreas destacaram-se no campo da cultura dos
descobrimentos: um saber prático ligado à arte de navegar e ao território da
21 - Cf. DIAS, J.S. da Silva: Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI. Lisboa, Presença, 1982; BARRETO, L.F.: Caminhos do Saber no Renascimento Português. Porto, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1986; e Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma Análise Sociocultural. Lisboa, Gradiva, 1989. 22 - Aqui seguimos a orientação de Luís Felipe Barreto em Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural. Lisboa, Gradiva, 1989. p.26-27.
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construção naval (livros da Marinha, tratados de construção naval, cartografia,
além de instrumentos como astrolábios, quadrante, balestilha, etc.); um saber
teórico que perpassava especialmente as áreas da astronomia, da matemática, da
geografia; e um território que hoje podemos chamar de antropológico ou
etnológico, que estaria associado a uma geografia colonial. A cultura dos
descobrimentos teria viabilizado a renovação e a ampliação da ordem do saber
não só lusitana como mundial. Barreto chamou a atenção para essa questão,
lembrando que, no início do século XV, o conhecimento do planeta reduzia-se a
um quarto do conhecimento que se tem hoje e esse limitado banco de dados estava
na posse da civilização islâmica. Com os descobrimentos, mudou-se a escala,
alargaram-se as noções e as dimensões e constituiu-se um planetário banco de
dados.23 Desenhava-se o mundo.
Já se disse que o Renascimento teria sido responsável pela descoberta do
homem. Realmente, a valorização do indivíduo como ser humano era um fato
novo. Anteriormente, o homem reconhecia-se como componente de um quadro
coletivo: família, povo, partido, corporação, etc. A história e a vida eram obras da
providência divina. O humanismo propôs-se a rever certos valores que
organizavam a vida dos homens. Em Portugal, o humanismo renascentista seguiu
a tendência de outros países da Europa, apresentando um caráter essencialmente
literário, dinamizado pela leitura de textos da Antigüidade clássica.
No entanto, a partir do Concílio de Trento24, os ideais da contra-reforma
tenderam a se sobrepor e controlar a cultura humanista, entendida pela Igreja
como possível fonte de heresias. O estabelecimento da Companhia de Jesus, em
Portugal, teria viabilizado o desenvolvimento de uma cultura escolástica. Os
jesuítas seriam, desta forma, os responsáveis por uma síntese do humanismo ao
buscarem renovar uma escolástica decadente. A relevância do pensamento da
segunda escolástica em Portugal é assunto para o outro capítulo.
23 - BARRETO, Luís Felipe: Op. Cit. p. 15. 24 - O Concílio de Trento foi convocado pelo Papa Paulo III em 1545, estendendo-se por dezoito anos. Nesse período, foi dissolvido duas vezes. O Concílio procurou esclarecer alguns pontos conflitantes da doutrina cristã. Grosso modo, podemos assim sintetizar suas decisões: reafirmou a presença real na eucaristia, conservou os sete sacramentos, desenvolveu um catecismo, determinou a obrigatoriedade da pregação pelos padres e a criação de seminários. O Concílio marcou ainda a ruptura definitiva com os protestantes, pela recusa de diálogo e pela sua inclusão na categoria de heréticos.
35
Mas, se humanismo, em seus moldes mais clássicos, teve na constituição
de um Portugal moderno um espaço bem delimitado e limitado, de uma outra
forma ele se fez presente, como tão bem avaliou Silva Dias: “o que nos esquemas
do humanismo aparecera apenas como interpretação ou concepção antropológica,
como filosofia hipotética da vida e da cultura, “emergia das realidades da
Expansão como um élan de vital da inteligência humana”.25
É importante destacar, a partir desse quadro da cultura portuguesa, uma
certa racionalização tanto da ação quanto do pensamento. As descobertas só foram
possíveis mediante uma correlação entre esses dois aspectos. De acordo com Silva
Dias, os navegantes portugueses não partiram do zero quando iniciaram as
viagens exploradoras. Um relativo conhecimento, anterior às primeiras
expedições, já circulava em Portugal. À medida que as navegações se
incrementavam, ultrapassando barreiras, uma série de conhecimentos
estabelecidos mostraram-se imprecisos e, logo, foram revistos. O depoimento de
Duarte Pacheco Pereira, emitido no fim do século XV, relaciona as imprecisões
que orientavam o saber científico e registra como a revisão de tais princípios foi
sentida:
“Nunca os nossos antigos antecessores (...) puderam crer que podia vir o tempo que o nosso Ocidente fora do Oriente conhecido e da Índia, pelo modo que agora é. Porque os escritores que daquelas partes falaram, escreveram delas tantas fábulas por onde a todos pareceu impossível que os indianos mares e terras do nosso Ocidente se pudessem navegar. Ptolomeu escreveu na pintura de suas tábuas da cosmografia o mar Índico ser assim como uma lagoa, apartado por muito espaço do nosso mar oceano ocidental que pela Etiópia meridional passa, e que entre esses dous mares ia uma ourela de terra, por impedimento da qual para dentro para aquele golfão Índico por nenhum modo nenhuma nau podia passar. Outros disseram que este caminho era de tamanha quantidade, que por sua lonjura se não podia navegar, e que nele havia muitas sereias e outros grandes peixes e animais nocivos, pelo qual esta navegação se não podia fazer. Pomponio Mela e Mestre João de Sacrobosto (...) disseram que as partes da equinocial eram inabitáveis pela muito grande quentura do sol, de onde parece que segundo sua atenção, aquela tórrida zona por esta causa se não podia navegar, pois que a fortaleza do sol impedia haver aí habitação de gente, o que tudo isso é falso. Certamente temos muita e muita razão de nos espantar de tão excelentes homens como estes foram, e assim, Plínio e outros autores que isto mesmo afirmaram, caírem em tamanho erro neste caso disseram, porque (...) claramente se mostra ser falso o que escreveram, pois debaixo da mesma equinocial há tanta habitação de gente, quanta temos sabida e praticada. E como quer que a experiência é madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade. Porque o nosso César Manoel mandou Vasco da Gama (...) a descobrir e saber aqueles mares e
25 - Op. Cit. p. 123.
36
terras com que nos antigos punham tão grande medo e espanto; e indo com muito trabalho, achou o contrário do que (a maior parte) dos antigos escritores disseram.”26
A avaliação do passado à luz da bem sucedida experiência emprestava
confiança na capacidade humana de romper seus próprios limites. A ação
conduzia ao conhecimento. Já senhores de uma certa consciência histórica,
confrontavam suas ações com a de outros homens, antigos antecessores. Os
portugueses, agora, podiam abordar a história por meio da experiência concreta da
vida (no caso, do mar) em que tiveram um papel decisivo na transformação de seu
curso. Não faltam textos portugueses dessa época em que predomine o entusiasmo
com as suas conquistas. Os mistérios foram se desmanchando e, como já
disseram, o desconhecido foi se tornando conhecido. Para além da revisão de
princípios e teorias que constituíam até então a ordem do saber, como uma revisão
do aristotelismo, os descobrimentos propiciaram uma expansão dos
conhecimentos relativos às realidades natural e humana, bem como uma profunda
alteração na economia européia.
Cabe ainda uma ressalva quanto ao perfil dos relatos portugueses. Não
teria sido apenas a filiação a um caráter mais técnico ligado a um saber náutico e
nem a necessidade de se apresentar relatos mais verdadeiros que teria levado os
portugueses a alterarem o tom de suas narrativas. É preciso não esquecer que a
aventura marítima comportou dois aspectos: o lado bem sucedido das viagens, que
proporcionou um enorme entusiasmo com os grandes feitos e a revisão de antigas
teorias, e o seu lado obscuro, com as viagens fracassadas e inglórias, que foram
igualmente relatadas, narrando a terrível experiência de naufrágios, as privações e
os sofrimentos passados em terras estranhas. Odisséias sem volta, muitas viagens
tornaram-se verdadeiras “desaventuras”, para utilizar um termo empregado em
uma dessas narrativas.27 Os tristes relatos que circulavam em Portugal alertavam
quanto aos perigos enfrentados em alto mar, que, nestes casos, insistia em se
apresentar realmente como um mar tenebroso28, não mais apenas por causa dos
seres e monstros que se supunha ali habitassem, mas pelas dificuldades
26 - Apud DIAS, J.S. da Silva. Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI. Lisboa, Presença, 1982. p. 58-9. 27 - “Partiu neste galeão Manuel de Souza, que Deus perdoe, para fazer esta desaventurada viagem de Cochim, a três de fevereiro do ano de cinqüenta e dois (1552)”. Cf. BRITO, Bernardo Gomes de: História Trágico-Máritima. Rio de Janeiro, Lacerda Editores/Contraponto, 1998. p. 6.
37
enfrentadas em sua navegação. Algumas das Relações de viagens ou de
naufrágios, que circulavam em sua forma manuscrita, foram reunidas e editadas,
posteriormente, na História Trágico-Marítima. Já na famosa carta de Américo
Vespúcio, responsável pela popularização da expressão mundus novus, as
experiências das viagens eram matéria para os relatos:
“Desde o dia que partimos (...), navegamos pelo espaço de dois meses e três dias sem que nenhuma terra aparecesse. O que sofremos naquela vastidão do mar - perigos de naufrágio, incômodos que sustentávamos no corpo, angústias que padecemos - deixo à estimativa daqueles que conheceram muito bem a experiência de muitas coisas, do que seja procurar o ainda incerto e ainda o que seja investigar o desconhecido. (...) dos 67 dias que navegamos, tivemos 44 (dias) contínuos com chuvas, trovões e relâmpagos, de tal modo escuros que nunca vimos o sol de dia nem o céu sereno à noite, pelo que nos sobreveio tanto temor que quase renunciamos a toda esperança de vida.”29
Muitos outros textos comentaram as adversidades e os medos passados em
suas viagens. Gandavo, Léry e Thevet destacaram essas experiências, que
formavam, certamente, um capítulo à parte dessas histórias. No prefácio de suas
Singularidades, Thevet, ciente dos riscos que corria, expôs com clareza os medos
que precediam cada viagem:
“(...) colocando-me mais uma vez sob a proteção e a guarda do grande Governador do Universo (esperando que fosse merecedor de Sua Graça), abandonei-me à sorte e à mercê de um dos mais inconstantes e impiedosos elementos, em pequenas, frágeis e inseguras embarcações de madeira (nas quais era de se esperar a morte que a vida), a fim de navegar em direção ao Pólo Antártico, nunca dantes alcançado e nem sequer conhecido pelos antigos.”30
As incertezas e os medos sempre fizeram parte da história humana, mas,
talvez, em nenhum outro momento, como naquelas aventuras pelos mares
desconhecidos, tenham estado tão presentes e tenham sido tão intensos. A
religiosidade impregnava aquelas vidas e pontuava os relatos com as
manifestações de temor e agradecimento a Deus. Era, ao mesmo tempo, o remédio
e a fonte do medo. O prazer da aventura, a confiança na renovação do saber e a
alegria das descobertas encontravam um contraponto no medo e na religiosidade.
Todas essas questões levantadas - a permanência de um imaginário ainda
medieval mesclado à busca por um conhecimento mais preciso, gerando textos
28 - Como era conhecido o Oceano Atlântico. 29 - VESPÚCIO, Américo: Novo Mundo. As Cartas que Batizaram a América. SP, Planeta, 2003. p. 37.
38
fronteiriços entre o real e o imaginário, entre a verdade e a mentira - acabavam
por situar esses relatos e crônicas entre dois mundos e dois tempos. Mesmo os
textos portugueses, mais pragmáticos, permaneciam nessa fronteira. E o novo
mundo desenhado com essas tintas parecia mais uma radiografia dos temores e
das idealizações da Europa, desfigurando certezas e produzindo novas incertezas.
2.2. Classificar: Desenhando o Brasil
Como vimos anteriormente, com o decorrer da expansão marítima, houve
o desenvolvimento de um pensamento prático entre os letrados portugueses. A
experiência das viagens havia demonstrado que era possível alterar até mesmo
“verdades” estabelecidas, como a série de noções que durante séculos se tinham
como científicas: a questão das antípodas, do “mar tenebroso”, das correntes fatais
dos trópicos, entre outras. Assim, as imagens do Brasil produzidas pelas narrativas
portuguesas foram bem menos fantasiosas e, de um certo modo, mais pragmáticas.
Não custa lembrar que estava em jogo uma conquista. Além do mais, relatar o
acontecido, por si, poderia também ser mais fantástico que a própria fantasia.
Os três conhecidos relatos sobre a descoberta do Brasil exemplificam bem
essa questão sobre o caráter pragmático português. A carta de Pero Vaz de
Caminha é a narrativa mais detalhada do acontecimento, mesmo tendo sido escrita
em forma de diário de bordo. A carta fornece informações sobre o percurso da
viagem desde a partida de Belém até as terras descobertas, descrevendo as suas
características locais, as atividades diárias da tripulação e o encontro com os seus
habitantes. A Relação do Piloto Anônimo, também escrita em forma de diário,
repete os tópicos mencionados por Caminha (a beleza da terra e seus bons ares, a
aparência física dos índios, etc.) sem entrar em maiores detalhes. O último relato,
a enxuta carta do Mestre João Faras, é um documento bastante técnico, que
comenta o uso de instrumentos de navegação (astrolábio, quadrante), fornece
observações astronômicas precisas que descrevem as estrelas do céu do Brasil e
30 - THEVET, A: As singularidades da França Antártica. B.H, Itatiaia /S.P.,USP, 1978. p.12.
39
apresenta o primeiro desenho da constelação do Cruzeiro do Sul. Mestre João31
relatou a descoberta, fornecendo a exata latitude das novas terras, baseado na
posição do sol:
“Ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos em terra, eu, o piloto do capitão-mor e o piloto Sancho Tovar; tomamos a altura do Sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional, pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17º, e ter por conseguinte a altura do pólo antártico em 17º, segundo é manifesto na esfera.”
A historiadora Patrícia Seed, em um belíssimo ensaio sobre a cerimônia de
posse da América portuguesa, destacou o ineditismo da contribuição do Mestre
João ao fornecer descrições astronômicas como parte dos registros oficiais de
descoberta. A identificação precisa do local por meio de coordenadas numéricas
seria a prova do achamento para garantir a posse legal da terra. A importância
atribuída ao conhecimento astronômico pelos reis portugueses não se comparava a
de nenhum líder europeu32. É interessante notar que este procedimento bastante
pragmático estava calcado em um aspecto bastante abstrato, determinado por um
conjunto de linhas imaginárias tratadas como reais, as quais só se justificavam
pelos cálculos matemáticos, validados pela experiência.
Esses três relatos, que não se destinavam a um grande público, tinham um
objetivo bem definido: pretendiam informar o rei D. Manoel sobre a descoberta da
viagem. Portanto, deviam conter informações práticas, que o rei poderia utilizar
em forma de resolução, anunciando a descoberta ou aproveitando em alguma
outra ação como, por exemplo, enviando uma nova expedição para um maior
reconhecimento. No entanto, fornecer a descrição das novas terras significava
também identificar e delimitar um espaço inexistente, dando-lhe forma e
conteúdo. Era preciso preencher esse vazio no mapa. As coordenadas do Mestre
João pontuavam esse vazio, criando um espaço novo, e as descrições de Caminha
e do Piloto Anônimo emprestavam algum significado a essa localização. Alterava-
se a configuração dos mapas com novas silhuetas.
Se, por ocasião da descoberta física da terra, os relatos já se apresentavam
de forma objetiva, o que dizer do momento em que se efetiva realmente a
31 - Bacharel em artes e medicina, Mestre João Faras era médico e cirurgião do rei D. Manuel. Acredita-se que era judeu convertido ao cristianismo para poder permanecer em Portugal.
40
atividade colonizadora do Brasil? É possível afirmar que houve um outro
descobrimento por ocasião do estabelecimento do primeiro Governo-Geral, em
1549, um “descobrimento cultural”.33 Será a partir desta data que teremos uma
produção mais significativa sobre o Brasil, iniciada, principalmente, com as cartas
dos jesuítas. Até que ponto os anos de experiência em outros mares e terras teria
afetado a relação com o Brasil? É preciso lembrar que, nessas alturas, uma
mentalidade imperial lusitana já estava bem sedimentada e se iniciava um ligeiro
declínio do domínio português no Oriente.
Deste modo, mais que uma idéia de paraíso ou de um outro mundo
assustador, o Novo Mundo (para o português) apresentava-se como a
possibilidade de um recomeço, de uma renovação, em que as coisas dariam mais
certo. Uma conhecida passagem contida na correspondência do padre Manoel da
Nóbrega, datada de 1549, escrita por ocasião da chegada da primeiro grupo de
missionários jesuítas, revela essa expectativa: “Cá poucas letras bastam, porque é
tudo papel branco e não há mais que escrever à vontade.”34 Se o mundo tinha sido
redesenhado, poderia também ser reescrito.
A idéia do papel em branco utilizada por Nóbrega presta-se a múltiplas
interpretações. Mas, certamente, não era apenas uma metáfora subestimando a
população local ou simbolizando os anseios religiosos da Companhia de Jesus em
sua missão de catequese dos nativos. Essa idéia do papel em branco, de marco
zero, no qual começaria a ser inscrita toda a concepção religiosa, sintetizava uma
perspectiva maior em relação às terras recém descobertas. Os ideais da Reforma
católica estavam, certamente, bem vivos na cabeça de Nóbrega. Não custa lembrar
que o Concílio de Trento, iniciado em 1545, ainda estava em curso, e foi o
responsável pela reestruturação da Igreja e pela recusa de diálogo com os
protestantes, então, classificados oficialmente como hereges. Portanto, é muito
provável que a metáfora do papel em branco estivesse associada a pelo menos três
fatores: primeiro, a ausência de uma religião formal entre os índios, que facilitaria
o trabalho de conversão; segundo, a ausência também de outras religiões, como os
32 - SEED, Patricia: “Novo Céu e Novas Estrelas. As Ciências dos Árabes e Judeus, a Marinha Portuguesa e a Descoberta da América”. In: Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo (1492 - 1640). SP, Unesp, 1999. 33 - Aqui recorremos ao termo fornecido por Silva Dias. Cf. Op. Cit., p.76. 34- LEITE, Serafim. Cartas do Brasil e mais Escritos do Pe. Manoel da Nóbrega. Coimbra, 1955. p.54.
41
maometanos, judeus e protestantes; e, por último, a possibilidade de um
renascimento da Igreja, retomando os primeiros tempos do cristianismo. O Novo
Mundo seria, assim, o local das projeções e idealizações européias, não só
prospectivas como também retrospectivas, encruzilhada de sonhos, interesses e
tempos distintos.
Quase um século depois de Nóbrega, Antônio Vieira pensava o Novo
Mundo também sob uma perspectiva de recomeço, ao estabelecer a analogia da
descoberta das novas terras com uma segunda recriação do mundo.
“Pois esta é a nova terra e estes são os céus novos que Deus tinha prometido, que havia de criar, não porque não estivessem já criados desde o princípio do mundo, mas porque era este Mundo Novo, tão oculto e ignorado dentro do mesmo mundo, que quando de repente se descobriu e apareceu, foi como então começara a ser e Deus criara-o de novo”.35
Se, na primeira criação, Deus havia trabalhado sozinho, dividindo as águas
e criando a luz, porque tudo era trevas e estava debaixo d’água, na segunda, Deus
havia tomado os portugueses como instrumentos para revelarem o que estava
ainda encoberto pelas águas. A “ousadia e o zelo” dos portugueses desfizeram o
“encanto” e venceram o impossível. Vieira, ao longo do sermão, desenvolve o
argumento de que essa segunda criação seria iluminada pela luz do Evangelho, ou
seja, a importância das novas terras estava na missão evangelizadora.
Antônio Vieira alargava a importância dos projetos para o Novo Mundo:
as novas terras representavam uma oportunidade de expansão do catolicismo e a
possibilidade de um recomeço de um mundo melhor. Não era com o ouro e a prata
que os portugueses deveriam se preocupar, a exemplo das minas de Potosí, com as
quais a Espanha se debatia36, mas com os índios e a sua catequese. Para além de
suas concepções sobre o papel de Portugal no mundo e o aparecimento de um
“Quinto Império”, Vieira empenhou-se com afinco na constituição de uma “nova
igreja” a ser construída em sua missão no Maranhão.
A montagem de uma vasta empresa colonial podia representar riquezas
que melhorariam sua qualidade de vida, a criação de um mundo melhor, mas
significava também experiências nunca imaginadas, em que nem sempre as
35- VIEIRA, Antonio: Sermões. São Paulo, Ed. das Américas, 1957. Vol. VII, p.320-321. 36 - “(...) que utilidades se têm seguido à Espanha do seu famoso Potosí e das outras minas desta mesma América. A mesma Espanha confessa e chora que lhe não têm servido mais que despovoar e empobrecer”. Op. Cit. VII, p.202.
42
referências tradicionais e as certezas ajudavam. Para esse novo mundo, fascinante
e amedrontador, buscaram transportar todo o seu projeto cultural e econômico. A
execução desta empresa, que assumia enormes dimensões, tornava difícil o
controle e o equilíbrio econômico e social. A tentativa de impor uma ordem,
regida pela lógica mercantilista e norteada pela racionalidade cristã, esbarrava em
uma série de problemas pertinentes à própria montagem do empreendimento e à
organização da estrutura comercial da Europa.
Seja em forma de projeções ou de expectativas futuras, a relação do Velho
com o Novo Mundo iniciava-se mais pelo aspecto virtual do que real. Isto é,
apreendiam-se as novas terras como algo que já estivesse predeterminado e que
contivesse as condições essenciais anteriormente esperadas. Contudo, a partir do
momento em que as expectativas começaram a se frustrar, a tendência foi a de um
crescente processo de desqualificação da maior parte dos agentes sociais
envolvidos nesse processo. Como já foi dito, tornou-se manifesto o descompasso
entre o vivido e o desejado.
Aquele mundo, tanto tempo ignorado, precisava ser desenhado e descrito
para realmente passar a existir. Não bastava refazer os mapas inserindo o novo
espaço, delineado apenas por uma silhueta. O processo de conhecimento dessa
outra realidade implicava na obtenção de dados, para reorientação do saber e da
própria ação. Para desenhar as novas terras, mesmo o seu perfil, era preciso
corrigir alguns equívocos tidos como verdades, tal como a idéia de que a parte
equinocial, que constituía a zona tórrida, era inabitável em decorrência da
quentura do sol. A experiência empírica tinha ajudado a rever e atualizar os
conhecimentos, calcados no aristotelismo. Essa atualização perdurou mais de um
século, sendo freqüentemente citada. Ainda em 1627, Frei Vicente de Salvador ao
tratar “do clima e do temperamento do Brasil” chamava a atenção para o erro:
“Opinião foi de Aristóteles e de outros filósofos antigos que a zona tórrida era inabitada, porque, como o sol passa por ela cada duas vezes pelos trópicos, parecia-lhes que com tanto calor não poderia alguém viver. Porém a experiência tem já mostrado que a zona tórrida é habitável, e que em algumas partes dela vivem os homens com mais saúde que em toda a zona temperada, principalmente no Brasil, onde nunca há peste nem outras enfermidades comuns, senão bexigas de tempos em tempos, de que adoecem os negros e os naturais da terra, e isto só uma vez, sem secundar em os que as já tiveram e, se
43
alguns adoecem de enfermidades particulares, é mais por suas desordens que por malícia da terra.” 37
Frei Vicente, no livro primeiro de sua História, seguia os critérios da
época, fornecendo informações e dados sobre aspectos naturais, positivando a
terra e condenando os costumes, sendo, porém, até simpático aos índios. Em sua
dedicatória ao licenciado Manuel Serafim de Faria, Frei Vicente comenta o pedido
de um “tratado das cousas do Brasil’, ao que estaria respondendo com a
apresentação de dois livros. Após se filiar à cultura antiga, citando Aristóteles,
Homero e Plutarco, o Frei apresenta sua concepção de história: “os livros
históricos são luz da verdade, vida da memória e mestres da vida”. A história
deveria oferecer exemplos e ensinamentos válidos universalmente para todos os
tempos. É sabido que sua História do Brasil não chegou a ser publicada, talvez
em função do outro livro que se dedica à narrativa fatual, indo além do requisitado
com suas críticas à colonização portuguesa.
Grosso modo, a literatura de cronistas do século XVI, seja ela produzida
por missionários cristãos ou por leigos, utiliza o mesmo critério de seleção de
informação referente à nova terra. Normalmente, são ressaltados em primeiro
plano os aspectos climáticos e geográficos, seguidos das detalhadas descrições dos
seres vivos, animais, plantas e, aí incluídos, os índios e seus estranhos costumes.
Gabriel Soares e Fernão Cardim (no século seguinte) estruturam seus respectivos
“tratados” dessa forma.
De um modo geral, as narrativas tinham dois pesos: o positivo - referente à
terra em si - e o negativo - a descrição dos costumes nativos. Recém-chegado ao
Brasil, Nóbrega, em carta de 1549, conseguiu reunir em uma só frase estes dois
tópicos que percorreram os relatos e as crônicas sobre o Brasil quinhentista:
“Mas é de grande maravilha haver Deus entregue terra tão boa, tamanho tempo, a gente tão inculta que tão pouco conhece, porque nenhum Deus têm certo, e qualquer que lhes digam ser Deus acreditam, regendo-se todos por inclinações e apetites sensuais, que está sempre inclinado ao mal sem conselho nem prudência”.38
As descrições da terra em seus aspectos naturais deveriam responder aos
pressupostos cristãos, realçando as belezas da Criação. Deus, em sua infinita
37 - SALVADOR, Frei Vicente: História do Brasil. SP, Melhoramentos, 1931, p. 23-24. 38 - Cartas Jesuíticas 1/ Cartas do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1988. Col. Reconquista do Brasil, Vol. 147. p. 90.
44
bondade, ofereceu uma natureza rica e variada. Logo, essa natureza perfeita era a
prova sensível da vontade divina, ainda que, para louvar as belezas, por vezes, se
recorresse às mais prosaicas associações: “semelham os montes grandes jardins e
pomares, que não me lembro ter visto pano de raz tão belo.39 O encantamento pela
terra, inaugurado por Caminha (“muito chã e formosa”; “em tal maneira graciosa
que, querendo-a aproveitar, dar-se à nela tudo”), permaneceu uma constante entre
os inúmeros relatos, crônicas e tratados sobre o Brasil.
Em Tratado da Província do Brasil, Pero Magalhães Gandavo não se
cansou de enaltecer as riquezas naturais. Já no prólogo ao leitor, declarava que sua
intenção era a de “denunciar neste sumário em breves palavras a fertilidade e a
abundância da terra do Brasil”.40 Nem o ouro, nem as pedras preciosas haviam
sido ainda descobertos, porém Gandavo acreditava que era certo “ser em si a terra
mui rica e haver nela muitos metais”. Ao longo do tratado, as qualidades vão
sendo enumeradas: a terra é mui fértil e viçosa, toda coberta de altíssimos e
frondosos arvoredos permanece sempre a verdura nela inverno e verão. O clima
era uma dos motivos de contentamento: “é esta terra tão deleitosa e temperada que
nunca nela se sente frio nem quentura. Sobeja”. A fartura estava no mar - onde
havia abundância de marisco e de peixe por toda a costa - e na terra, com muita
caça e muitas frutas de diversas qualidades - tantas que (...) “algumas pessoas se
sustentarão com elas muitos dias sem outro mantimento algum”. No final do
texto, Gandavo desculpou-se por ter sido breve no trato das particularidades da
província do Brasil, posto que “os louvores da terra pedissem outro livro mais
copioso e de maior volume onde se compreendessem por extenso as excelências e
diversidades das cousas que há nela”. Toda essa riqueza estava disponível e era
fácil usufruí-la. Para quem quisesse viver no Brasil, mesmo que fosse uma pessoa
pobre, recomendava o autor, bastava “alcançar dois pares ou meia dúzia de
escravos” que o sustento estava garantido. Desse modo, concluía que os pobres do
Reino deveriam vir para essa abastada parte do mundo.
A qualificação da terra foi um processo crescente, inversamente
proporcional ao de desqualificação das gentes. Como vimos, para Gandavo, um
livro não era suficiente para contar a diversidade e as excelências da terra. Beleza
39 - Aqui Nóbrega refere-se às tapeçarias francesas fabricadas em Arrás. Idem, p. 89. 40 - GANDAVO, Pero Magalhães. Op. Cit. p.55.
45
e riqueza pareciam também insuficientes para louvar e apresentar a nova colônia.
Logo, descobriram um outro conceito que mesurasse a nova conquista: a sua
grandeza. A exaltação da grandeza da terra foi um recurso empregado desde os
primeiros relatos e crônicas, muitas vezes não sem uma boa dose de exagero,
como podemos observar nessa passagem de uma carta de 1549 de Nóbrega: “A
região é tão grande que, dizem, de três partes em que se dividisse o mundo,
ocuparia duas”.41 O que essas dimensões deveriam significar para um reino nas
proporções de Portugal, que contava com uma pequena parcela de solo
aproveitável para cultivo42? Camões, em seu famoso poema, já havia dado a
devida medida do mundo português:
A vós, ó geração de Luso, digo, Que tão pequena parte sois no mundo43
Contemporâneo a Gandavo, Gabriel Soares de Sousa dividiu o seu
Tratado Descritivo do Brasil em 1587 em duas partes: “Roteiro Geral da Costa
Brasílica” e “Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia”. Em seu prefácio, o
autor declarou que sua pretensão era “manifestar a grandeza, a fertilidade e outras
grandes partes que tem a Bahia de Todos os Santos e demais Estados do Brasil”.44
Afirmava que era preciso mostrar ao rei as “qualidades e estranhezas” de seu
Estado, o qual tinha ficado tanto tempo descuidado. Disposto a não medir esforços
para realçar a grandeza e as qualidades da terra, o autor não se acanhou em
declarar que, com os devidos cuidados de Sua Majestade, poderia ser edificado
“um grande império, (...) que se fará tão soberano que seja um dos Estados do
mundo, porque terá de costa mais de mil léguas”.45 O autor tinha um apreço
singular pelas medidas, especialmente para precisar a ordem dessa grandeza, bem
ao modo das cosmografias de então. Ao longo do “Roteiro geral da costa
41 - NÓBREGA, Manoel da: Cartas do Brasil. p.89. 42 - No ano de 1504, Lunardo Cá Masser escrevia sobre Portugal: “Grande parte deste Reino está despovoado; são lugares áridos e estéreis, que não se pode obter deles nada que seja útil. Não têm pão que seja do Reino, trazendo-se por via de Flandres e das ilhas dos Açores... Também lhes faltam as carnes, porque não têm pastos para alimentar animais. Todas as montanhas são áridas. Vinhos, azeites e fruta há razoavelmente no Reino, mas ainda se trazem de fora em razoável quantidade”. Apud: MATTOSO, José (Dir). História de Portugal. Lisboa, Estampa, 1997. Vol. 3, p.225. 43 - Os Lusíadas, canto VII, estrofe 2. 44 - SOUSA, Gabriel Soares: Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1971. Col. Brasiliana, nº117. p.39. 45 - Idem, ibidem.
46
brasílica”, Soares de Souza procurou balizar as suas referências geográficas,
fornecendo regularmente suas distâncias em léguas.
Não é preciso maiores explicações quanto ao que Soares de Sousa atribuía
como qualidades e nem sobre o que considerava como estranho. O Tratado
Descritivo do Brasil, considerado uma das fontes mais detalhadas do Brasil
quinhentista46, seguiu o princípio geral das descrições sobre a colônia,
engrandecendo a terra e desqualificando as gentes. A primeira parte contém
informações geográficas do Amazonas ao rio da Prata, passando por cada
capitania. Neste percurso, estão caracterizadas algumas nações indigenas:
potiguar, caetés, aimorés, tupiniquins, goitacases, papanases, tamoios, guaianases,
carijós, entre outras. A segunda parte reúne um histórico da colonização da Bahia,
um inventário dos engenhos baianos, a descrição da topografia desse estado,
distintos relatos sobre aspectos da agricultura, da flora, da fauna e, ainda, uma
notícia etnográfica sobre os tupinambás e outras nações.
Em torno de 1618, Ambrósio Fernandes Brandão concluía os Diálogos das
Grandezas do Brasil. Brandão viveu cerca de 25 anos no Brasil, entre o final do
século XVI e início do XVII. O texto é composto por seis diálogos, de acordo
com o modelo platônico recuperado pelo Renascimento - forma bem difundida e
utilizada em Portugal47. Como o próprio título indica, os diálogos discutem as
qualidades e as possibilidades da terra, tratando de seu clima, da flora e da fauna,
da agricultura, entre outros aspectos ligados à natureza. Os temas debatidos nos
seis diálogos não diferem muito dos tratados anteriores de Gandavo, Soares de
Souza e Cardim. Grandeza, fertilidade, diversidade, riqueza e beleza são os
contrapontos utilizados por Brandônio, um antigo morador do Brasil, para
desfazer a péssima imagem que, por princípio, Alviano, um recém-chegado reinol,
tinha da terra: “a mais ruim do mundo”. Se Gabriel Soares de Souza havia
sugerido a possibilidade de se edificar um grande império no Brasil, Brandão irá
46 - Português nascido no Ribatejo, Gabriel Soares de Souza chegou na Bahia em 1569, quando se dirigia para a Índia. Decidiu-se pelo Brasil ao vislumbrar grandes possibilidades, o que de fato realizou: tornou-se um rico senhor de engenho. Morreu durante uma expedição em busca de ouro na nascente do rio São Francisco. Para o historiador Varnhagen, a obra de Soares de Sousa talvez fosse a mais admirável de “quantas em português produziu o século quinhentista”. José Honório Rodrigues considerou Soares de Souza o maior de todos os cronistas da época. 47 - No século XVI, os seguintes autores portugueses escreveram em forma de diálogo: Francisco de Morais, Garcia da Orta, Frei Heitor Pinto, Amador Arraiz. No século XVII, podemos citar ainda Luiz Mendes de Vasconcelos.
47
além, defendendo a idéia de sua superioridade econômica em relação às demais
colônias portuguesas.
A abertura do livro define o tom dos Diálogos das Grandezas. A discussão
sobre a utilização de uma simples lanugem serve de mote para realçar as mil
qualidades da terra ainda por se explorar e aproveitar. Alviano, o reinol recém-
chegado, indaga sobre os motivos de tanto interesse de seu colega pela lanugem.
Brandônio explica as várias maneiras de aproveitamento do material para espanto
de Alviano, que, incrédulo, afirma não acreditar que aquilo estivesse tanto tempo
escondido sem que os homens não tivessem experimentado. A resposta de
Brandônio a essa questão abre espaço para discorrer sobre as inúmeras
possibilidades existentes no Brasil: “porque muitas cousas há ainda, assim de
frutos como minerais, por descobrir, que os homens não alcançaram sua
propriedade e natureza”. Na resposta seguinte, ele reafirma sua convicção ante a
incredulidade do reinol: “ainda há muitas cousas por descobrir e segredos não
achados que pera diante se hão de manifestar”. As novas terras ofereciam esse
mistério: uma riqueza oculta. Não podendo mais do que especular sobre o que há
por descobrir, os diálogos prosseguem apresentando o visível. Essa questão
propicia outra discussão sobre o descaso com a terra e, logo, a comparação entre a
conquista espanhola e a portuguesa. Ainda neste primeiro diálogo, mantendo o
tom de abertura, percorrem-se as diversas capitanias do Amazonas a São Vicente,
apresentando a extensão da colônia.
O segundo diálogo trata do antigo tema da inabitabilidade da zona tórrida,
desmentido pela experiência das navegações. O terceiro afirma as seis fontes de
riqueza “deste novo mundo”: a lavoura do açúcar, a mercancia, a exploração do
pau-brasil, os algodões e as madeiras, a lavoura de mantimentos e, por último, a
criação de gado. O quarto diálogo trata das possibilidades de rendimentos com os
mantimentos, legumes, frutas da terra. O quinto enumera a diversidade da fauna.
O último diálogo consagra os costumes do gentio da terra. Se, nos cinco
primeiros, a intenção era forjar um debate de idéias, no último, prevaleceu uma
concordância quanto aos horrores dos referidos costumes.
Em suma, ao descreverem a terra, esses textos vislumbravam no Brasil
uma perspectiva melhor que a do Reino, onde seria possível usufruir dessa
grandeza, fertilidade e abundância. Ou onde, talvez, pudesse ser edificado um
grande império que suprisse todas as carências das terras portuguesas: pobreza,
48
falta de recursos. Mas o novo deveria ser a continuação do velho, maior e melhor.
Enfim, projetava-se, nas novas terras, um imenso Portugal, mais rico e abundante:
“Este Brasil é já outro Portugal, e não falando no clima que é muito mais temperado, e sadio, sem calmas grandes, nem frios, e donde os homens vivem muito com poucas doenças”.48
É certo que essa idéia de projetar nas novas terras uma continuidade não
foi exclusiva dos portugueses; ela é facilmente verificada até mesmo em função
dos nomes que os colonizadores emprestaram a vários lugares, batizados como
França Antártica, França Equinocial, Nova Espanha, Nova Galícia, Nova Granada
e, até mesmo a tentativa frustrada de uma Nova Lusitânia. O processo de
desqualificação não foi, portanto, uma prática exclusivamente lusitana, podendo
ser conferida em autores de outras nacionalidades que escreveram também sobre o
Brasil, como Jean de Léry, André de Thevet, Claude d’Abbeville, Yves d’Evreux,
Gaspar Barléu, entre outros.
2.2.1. Classificar: Desenhando a natureza
As três obras aqui utilizados - de Gandavo, Soares de Sousa e Brandão -
exemplificam um padrão comum aos demais escritos dessa época, que separa a
terra das gentes, determinando-lhes valores opostos. Os textos de Fernão Cardim
reunidos sob a forma de Tratados da Terra e Gente do Brasil seguem esse
princípio, bem como tantos outros. O mesmo padrão pode ser conferido nas cartas
dos jesuítas. Em relação à terra, portanto, além do espaço dedicado à sua
exaltação, é nítida a preocupação em sistematizar e ordenar os novos
conhecimentos do mundo natural. Dava-se continuidade a um processo de
sistematização do conhecimento, iniciado por outros escritores em suas viagens
pela África e Ásia, ampliando uma história natural, que até então ainda se guiava
por Plínio, o Velho. Na carta de Caminha, a preocupação com os aspectos naturais
aparece também em seu sentido inverso, registrando o que falta: “Não há aqui boi
nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem nenhuma alimária que
costumada ao viver dos homens”.
48 - CARDIM, Pe. Fernão. Tratados da Terra e da Gente do Brasil. SP, Cia. Ed. Nacional/MEC, 1978. Col. Brasiliana n.º 168, p.66.
49
Os registros da flora e da fauna espelham uma démarche peculiar do seu
processo de conhecimento. Ao mesmo tempo em que procuravam abranger as
novidades, relatando o exótico, buscavam as similitudes com o já conhecido.
Assim, a busca por semelhanças é uma constante nas descrições da terra: a
mangaba, “fruta que pode ser estimada entre as boas que há no mundo, (...)
semelha às sorvas de Portugal”; “as pitombas são semelhantes às ameixas”; “as
maçarandubas se parecem com as cerejas”.49 Por vezes, as descrições reúnem
vários animais para fornecer uma definição:
“Tamanduá é um animal do tamanho de raposa, que tem o rosto como furão; a cor é preta, rabo delgado na arreigada, e com o cabelo curto; e daí para a ponta é muito felpudo, e tem nela os cabelos grossos como cavalo, e tamanhos e tantos que se cobre todo com eles quando dorme; tem as mãos como cão com grandes unhas”.50
Essa descrição do tamanduá é um dos inúmeros exemplos em que
podemos perceber o esforço para fornecer uma descrição mais precisa de algumas
espécies consideradas estranhas ou de “natural admiração”, nas palavras do padre
Fernão Cardim. Outros animais mereceram, igualmente, o espanto de seus
narradores, como o tatu, aqui descrito por Soares de Sousa: “Tatuaçu é um animal
estranho, cujo corpo é como o bácoro; tem pernas curtas, cheias de escamas, o
focinho comprido cheio de conchas(...) a cabeça é cheia de conchinhas”.51 Para
Gandavo, o tatu era “tamanho como coelhos e tinha um casco a maneira da
lagosta, como cágado, mas repartido em muitas juntas como laminas”. Não
satisfeito com essas comparações, concluía a sua confusa descrição, dizendo que o
tatu era ainda parecido “totalmente como um cavalo armado”. Fernão Cardim
também achou o tatu tão admirável que o destacou como um “animal para (se)
ver”, repetindo a comparação com o cavalo armado.52 A mesma admiração pode
ser percebida na descrição de Ambrósio Fernandes Brandão: “O tatu é um bicho,
que se vê pintado nos mapas pela sua estranheza e feição, de que é composto;
porque anda armado de umas couraças, à maneira das que nós usamos”.53
Outra fonte de estranheza era ainda a preguiça: “Nestes matos se cria um
animal mui estranho, a que os índios chamam aí, e os portugueses chamam de
49 BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Op. Cit., p. 216-217. 50 - SOUSA, Gabriel Soares de. Op. Cit. p. 247. 51 - Idem, p.251. 52 - Op. Cit., p. 28.
50
preguiça, nome mui acomodado a esse animal”.54 Cardim descreveu as preguiças
como animais “muito feios, e o rosto parece de mulher mal toucada”; para André
de Thevet era o animal mais disforme que se poderia imaginar, concluindo que,
“quem nunca o viu certamente achará a sua descrição inacreditável”. A estranheza
imprimia-se como a imagem de um Brasil misterioso, descrito nos livros e
desenhados nos mapas - como vimos pela referência que Brandão faz do tatu, ao
lado de freqüentes canibais assando algum pedaço do corpo humano. As
descrições primavam pelo inusitado; a estranheza ultrapassava seus limites para
entrar no campo do encantamento:
“Também se criam outros bichos na Bahia mui estranhos, a que os índios chamam de buijeja, que são do tamanho de uma lagarta de couve, o qual é muito resplandecente, em tanto que estando de noite em qualquer casa, ou lugar fora dela, parece candeia acesa, e quando anda é ainda mais resplandecente. Tem esse bicho uma natureza tão estranha que parece encantamento, e tomando-o na mão parece um rubi, mui resplandecente, e se o fazem em pedaços, se torna logo a juntar e andar como dantes; e sobre o acinte se viu por vezes em diferentes partes cortar-se um destes bichos, com uma faca em muitos pedaços, e se tornarem logo a juntar; e depois o embrulharam num papel durante oito dias, e cada dia o espalhavam em migalhas, e tornava-se logo a juntar e reviver, até que enfadava, e o largavam.”55
O estranhamento, portanto, não se dava apenas em relação aos costumes
indígenas, verificava-se também na surpresa de uma natureza irregular, em
desalinho, composta por uma diversidade biológica inumerável face à natureza
ordenada e previsível encontrada na Europa. O monge franciscano André de
Thevet recorreu ao conceito de singularidade para dar conta da diversidade com a
qual se deparou, destacando o seu propósito já no título de sua obra: As
singularidades da França Antártica (1557). O singular podia simplesmente
destacar a unicidade de formas desconhecidas como, por exemplo, ele fez na
descrição minuciosa da bananeira ou da pacoveira, conforme expressão utilizada,
para realçar “as excelsas qualidades e a incrível singularidade deste vegetal que
não se tem similar na Europa, na Ásia ou na África”.56 Formas únicas, originais ou
raras despertavam um interesse especial.
53 - Op. Cit., p.252. 54 - SOUSA, Gabriel S.: Op. Cit. p.256. 55 - SOUZA, Gabriel Soares de. Op. Cit. p.267. (Grifo nosso) 56 - THEVET, André: Op. Cit., p.111.
51
Era imprescindível relatar, registrar e inventariar todas as novas e
impensadas formas, mesmo que a própria imaginação se encarregasse de as criar e
exagerar. Em princípio, a estranheza das novas formas (animal, vegetal e mesmo
humana) figurou pela Europa como espetáculo. As inúmeras descrições das
belezas, das riquezas, da exuberância da fauna e flora, além de se prestarem ao
dogma cristão da infinita bondade de Deus, funcionando como apelo para o
projeto de colonização, acabavam por criar a noção do exótico. Talvez por isso
também os portugueses não precisassem mais de recorrer aos artifícios da
imaginação, criando monstros ou seres inexistentes.
É certo que restavam resquícios daquela mentalidade fantasiosa e suas
concepções antropológicas ainda perduravam, como os homens marinhos e
monstros do mar, que tanto Gabriel Soares de Sousa quanto Fernão Cardim se
referiram: “parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm olhos
muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelos compridos, e são
formosas”.57
No entanto, não era só o novo que despertava interesse. Importava
igualmente registrar o que havia de comum e o que havia sido trazido e adaptado:
animais, árvores, ervas, frutas e legumes.58 Soares de Sousa, ao descrever a
variedade das árvores da terra, reconheceu a familiaridade de alguns exemplos:
“Modurucu é nem mais nem menos que uma figueira das que se plantam nos
jardins de Portugal, que tem as folhas grossas, a que chamam figueiras-da-
índia”.59
Todo esse processo de coleta de informações visava à reconfiguração de
uma idéia de natureza absorvida de textos antigos, como a História Natural de
Plínio. De certo modo, havia uma consciência desse processo de conhecimento,
que aparece explicitada em alguns autores, especialmente nos franceses, que
apresentam textos mais analíticos. André de Thevet, em seu prefácio aos leitores,
discorrendo sobre sua viagem e o seu propósito de narrar suas observações das
diversas terra e nações, teceu elogios ao viajante que corre riscos em prol do bem
comum, comparando-o, entre outros, a Sócrates e Platão, “cujas peregrinações por
57 - CARDIM: Fernão. “Homens marinhos e monstros do mar”. In: Op. Cit. p.57. 58 - Cf. “Dos animais, árvores, ervas que vieram de Portugal e se dão no Brasil” In: Op. Cit. p.66. 59 - Op. Cit., p. 199.
52
terras estranhas tinham por objetivo a aquisição de um máximo de conhecimentos
filosóficos, a fim de poder comunicá-los ao público”.
Ao longo de seu livro, Thevet pontuou suas descrições, mesmo as mais
“estranhas”, com observações que situassem o objeto em questão dentro da ordem
natural: “entre as múltiplas variedades de aves que a natureza produz”. E ainda,
após ter descrito alguns animais selvagens, concluiu que: “estes exemplos
permitem constatar o engenho da Natureza, que soube colocar em cada animal,
terrestre ou aquático, as características próprias de sua espécie”. Em outra
passagem, forneceu o modelo que guiava o seu processo de conhecimento,
lembrando que precisava satisfazer a curiosidade de seu leitor:
“Aristóteles e outros que se lhe seguiram esforçaram-se o mais que puderam para desvendar a natureza dos animais, árvores, ervas, etc. Entretanto, pelo que se deduz de seus escritos não é de se acreditar que tenham tido conhecimento da França Antártica ou América, de vez que esta terra ainda não fora descoberta em sua época. Apesar disto, seus escritos trazem proveito e deleite. Se aqui descrevemos animais raros e desconhecidos, esperamos que tal coisa não seja mal interpretada, mas que, ao invés disso, sirva para satisfazer o leitor, por certo um apreciador de raridades e singularidades, e uma vez que a Natureza não distribui suas obras igualmente por toda as regiões”.60
Não é novidade o papel que a curiosidade desempenhou no Renascimento.
A curiosidade sempre foi um fator considerável para a produção de conhecimento,
especialmente científico. Pode ser entendida como a manifestação de um desejo
de ver ou de saber, de demonstrar interesse. Em relação ao novo mundo, a
curiosidade desempenhou um papel primordial, porém distinto daquele que pode
guiar uma experiência científica, ficando mais próximo à bisbilhotice, em uma
busca que ultrapassou os limites do raro e do singular para priorizar o grotesco.
2.2.2. Desclassificar: Desenhando o índio
Como já foi dito, se a terra tinha um valor altamente positivo, o mesmo
valor não se aplicava aos seus habitantes. O aspecto negativo, referente aos índios,
justificava, por princípio, a necessidade de missão evangelizadora e/ou da sua
escravização. Desde o início das viagens marítimas, os portugueses haviam
incorporado a idéia de uma missão, em que seriam os responsáveis pela dilatação
da fé cristã. De qualquer forma, uma ampla discussão será levantada em torno
53
dessa questão, como veremos mais adiante. No momento, importa delimitar a
imagem que começava a surgir dos relatos referentes ao Brasil. Normalmente, as
narrativas ultrapassavam o caráter meramente informativo e descritivo, dando
amplo destaque ao curioso e entrando em questões pelos seus aspectos moral e
teológico, como forma de dar conta do entendimento e apreensão daquela cultura
diferente. Era preciso transmitir a idéia do Novo Mundo realmente como algo
inédito.
Assim, os relatos das novas terras preocupavam-se em recolher novas
formas, apresentando listagens sistematizadas que agrupassem elementos até
então desconhecidos dos leitores europeus. Nesse sentido, as informações foram
organizadas de modo semelhante às cosmografias que circulavam naquela época,
divididas nos seguintes aspectos: geografia, etnologia, zoologia e botânica. As
informações eram permeadas por comentários mais curiosos que científicos, como
pudemos observar em algumas das descrições sobre a fauna brasileira. O estranho
e o singular eram colecionados na busca de um conhecimento, que poderia ser
ainda englobado na “descoberta do mundo”. Esse movimento fazia parte daquilo
que Michel de Certeau chamou de “curiosidade conquistadora e de direito”61, que
manifestava a preocupação em desvelar o que até então havia estado oculto. O
padre José de Anchieta comentou a demanda de informações curiosas:
“Pelas cartas, (...), ficamos sabendo Reverendo Pai em Cristo, que V. Reverendmª deseja, para satisfazer à devoção e curiosidade de muitos, que se escrevessem coisas que, entre nós, fossem dignas de admiração, ou desconhecidas deste mundo.” 62
É certo que as cartas jesuíticas seguiam a tradição epistolográfica revista
pela Companhia de Jesus e incorporada em suas Constituiciones. De acordo com
Alcir Pécora, a carta, para os jesuítas, cumpriria uma função, devendo incorporar
três aspectos: o da informação, o da reunião de todos em um e o da experiência
mística.63 Anchieta guiava-se pelas normas da narrativa epistolar, cumprindo a
missão de colocar o seu superior a par do estado das coisas no Brasil. No entanto,
ao procurar responder às curiosidades acerca das coisas desconhecidas deste outro
60 - THEVET, André. Op. Cit. p.169. 61 - Cf. CERTEAU, Michel de: A Escrita da História. Rio de Janeiro, Forense, 2000, p.231. 62 - ANCHIETA, José de: Cartas Jesuíticas nº3. p.32.
54
mundo, ia além da tradicional forma de “captação da benevolência”, jogando com
o interesse que o “desconhecido” podia despertar. Pode-se alegar - e várias vezes
os próprios missivistas o fazem - que serviria como forma de demonstrar as
dificuldades do trabalho de conversão, o que tornaria essa missão ainda mais
edificante.
Desse modo, é preciso considerar o papel da demanda por informações
desconhecidas, singulares e estranhas nos relatos das novas terras. As narrativas
não se cansavam de repetir histórias sobre os hábitos bárbaros, de forma quase
que sensacionalista. Se, em relação à natureza, Deus havia privilegiado as terras
brasileiras, oferecendo fartura e abundância, em relação à população, Deus a teria
criado na mesma ordem de grandeza; contudo, em sentido contrário: “Não se pode
compreender a multidão do bárbaro gentio que semeou por toda esta terra do
Brasil”.
Em Tratado Descritivo do Brasil, Gabriel Soares de Sousa procurou
sistematizar os múltiplos aspectos da vida indígena, descrevendo desde a
aparência física, a linguagem, até costumes como a alimentação, habitação,
enfeites, festas, cerimônias de casamentos, ritos fúnebres, etc. Há uma
preocupação em dar um tratamento diferenciado a algumas das nações indígenas.
Porém, a atenção maior é dedicada aos tupinambás, apresentados como as mais
bárbaras de quantas criaturas Deus criou. Já os aimorés são descritos como “tão
selvagens que, dos outros bárbaros são havidos por mais que bárbaros”. Como
vimos anteriormente, esse autor declarou que sua intenção era mostrar em seu
livro as qualidades e as estranhezas do Brasil. É óbvio que a maior parte dessas
estranhezas ficaria circunscrita ao universo indígena:
“Para os tupinambás se fazerem bizarros usam de muitas bestialidades mui estranhas, como é fazerem depois de homens três e quatro buracos nos beiços de baixo, onde metem pedras, com grandes pontas para fora”.64
O mesmo costume já havia sido descrito por Caminha, por Vespúcio e
permanecia um século depois ainda como fonte de admiração, pois foi relatado
por Ambrósio F. Brandão: “Costuma também este gentio, para efeito de mostrar
maior fereza e bizarria, furar o rosto pelo beiço de baixo (...) por onde metem
63 - Cf. Alcir Pécora em “A Arte das Cartas Jesuíticas no Brasil”, demonstra o modelo usual das cartas dos jesuítas, analisando as cartas de Nóbrega: salutatio, captatio benevolentiae, narratio, petitio e conclusio..In: Máquina de Gêneros. São Paulo, Edusp, 2001.
55
umas pedras verdes ou brancas”.65 A analogia entre os índios e animais ferozes ou
brutais foi estabelecida desde os primeiros relatos e repetida à exaustão. Gandavo,
em seu Tratado, não fez concessões sobre o modo de vida do gentio: “(...) vivem
como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, são muito desonestos e
dados à sensualidade e entregam-se a vícios como não houvera razão de
humanos”.66
Se alguns animais poderiam ser simplesmente recenseados na categoria
bichos estranhos, a mesma fórmula não seria aplicada aos índios. Uma análise
crítica e moral do seu modo de vida passava a decretar a falta de ordem desse
mundo. A difusão da imagem do selvagem, análogo aos animais, permitiu que a
imaginação lhe emprestasse várias formas. André de Thevet comentou a idéia que
os europeus faziam da aparência dos selvagens, alertando o seu leitor a não se
deixar levar pela “opinião geral”, nem acreditar na representação dos artistas:
“Muita gente compartilha da absurda idéia de que estes a quem chamamos de selvagens teriam, pelo fato de viverem pelos campos e florestas quase como animais, os corpos cobertos de pêlos, assim como ursos, cervos ou leões. Alguns artistas chegam a pintar belos quadros, dando-lhes tal aparência. Essas pessoas, ao descreverem os selvagens, revestem-nos de bastos pêlos dos pés à cabeça, presumindo que esta densa pilosidade lhes seja tão inseparável quanto a negrura o é do corvo.”.67
Nada, portanto, escapava aos narradores, que vasculhavam
minuciosamente os "selvagens" costumes, que poderiam ser fascinantes ou
ameaçadores. A selvageria foi se definindo em uma série de tópicos, que ia além
da tradicional definição ligada à vida nômade na selva, a qual permaneceu bom
tempo como uma constante: a antropofagia, a poligamia, o hábito das índias
“sensuais” e “lascivas” de se entregarem por quaisquer quinquilharias, a gula sem
fim, a indisciplina de horário das refeições, a embriaguez através das
"beberragens" de cauim. Todo o comportamento de uma forma geral era
apresentado como desregrado e excessivo. Ambrósio F. Brandão, se espantava
com os hábitos alimentares e seus resultados, pois o gentio da terra, apesar de
cometer “tão grande excesso no comer e beber desordenadamente, como de
ordinário fazem”, prevaleciam gozando perfeita saúde Sobre os mesmos hábitos,
64 - SOUSA, Gabriel Soares. Op. Cit. p.307. 65 - BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Op. Cit. p. 295. 66 - GANDAVO, Pero Magalhães. Op. Cit. p.57. 67 - THEVET, André de: Op. Cit. p.107.
56
André Thevet chegou a uma conclusão mais geral: “Pode-se facilmente deduzir
que a incivilidade dessa boa gente no que concerne aos seus hábitos alimentares é
a mesma que demonstram em relação a tudo o mais”.68
A falta ou a precariedade de tecnologia e o nomadismo das diversas tribos
eram fatores definitivos para se decretar uma incivilidade total. A vida nômade
dos aimorés, por exemplo, era um dos motivos da analogia com os animais: “nem
tem casas, nem povoações onde moram. Vivem os matos como brutos animais”.
A mobilidade física das tribos criava problemas para a colonização. A terra tinha
muito de suas grandeza e abundância subtraídas por culpa dos índios, como
podemos observar na seguinte avaliação empreendida por Gandavo:
“Muitas terras viçosas estão perdidas junto desta capitania, as quais são possuídas dos portugueses por causas destes índios. Não se pode os destruírem porque não têm morada certa, nem saem nunca de dentro do mato”.69
Não se tratava apenas da possibilidade de enquadrá-los ou não dentro dos
parâmetros gregos do civilizado, isto é, como cidadão habitante da polis. Mas é
certo que, desde a Grécia arcaica, com a legislação de Clistenes, que fundou a
polis, abolindo a antiga organização tribal e estabelecendo uma estrutura
administrativa, o mundo ocidental tinha esse modelo como um paradigma das
sociedades organizadas. Não se pode esquecer que, neste mesmo período arcaico,
o desenvolvimento do comércio proporcionou um movimento de colonização e
que a democracia ateniense excluía a maior parte da população. A idéia do
cidadão pleno tinha como contraponto a escravidão, indispensável aos trabalhos
considerados menores. O fato de relembrarmos a Grécia arcaica não significa o
estabelecimento de uma comparação entre os dois momentos, mesmo porque as
concepções que norteavam essas distintas sociedades eram bem diferentes, desde
o ideal político, a nova idéia de poder, até o tratamento dispensado aos escravos.
O que interessa é que o modelo grego sempre foi um referencial expressivo para o
pensamento europeu, sendo inevitável mencioná-lo face ao nomadismo das tribos
ameríndias.
O nomadismo tornava-se um fator incômodo que dificultava a conquista e
a posse das terras. Logo, essa mobilidade caracterizava uma desordem que, além
de se apresentar como um modo de vida diferente, atrapalhava a colonização.
68 - Idem. p. 105.
57
Paradoxalmente, o nomadismo servia também para justificar a apropriação das
terras, pelo colonizador, devido à falta de apego por parte dos ameríndios. Os
índios, mesmo escravizados, permaneciam instáveis. Em uma outra passagem de
seu Tratado, Gandavo voltava à questão do aproveitamento da terra, afirmando
que um dos motivos por que o Brasil não florescia muito mais era decorrente da
fuga dos escravos: “E se estes índios não foram tão fugitivos e mutáveis não tivera
comparação a riqueza do Brasil.” O autor concluía que melhor eram os escravos
da Guiné, porque nunca fogem, nem tem para onde”.70
Desta forma, missionários, cronistas e viajantes, desde o século XVI,
destacaram com freqüência, por razões e contextos diversos, uma desordem
presente no cenário das novas terras, onde reinavam a barbárie e a incivilidade.
Hoje, pode-se compreender a mentalidade daqueles homens frente a todas as
mudanças em suas concepções de mundo, tempo e espaço. Tentando encontrar
alguma certeza em um mundo incerto e instável, procuravam assegurar suas
identidades, proclamando-se como diferentes e melhores que os “outros”.
A imagem da falta de ordem desenhada e propagada como um mal de
origem veio acompanhada de outros elementos que denunciavam o caráter
negativo, inicialmente conferido aos índios, e, posteriormente, estendido aos
"negros da Guiné", aos mestiços e até a alguns portugueses. A vida na Colônia
acabou por criar uma diferenciação de status político e social própria. Os
portugueses colonizados71 foram classificados como degradados, criminosos, que
viviam em busca da satisfação sexual. A exceção ficava por conta dos
colonizadores, apresentados como fidalgos oriundos de uma linhagem nobre, e os
colonos, donos de terras, que formavam a elite colonial. Essa classificação se
69 - Idem. p.99. (Grifo nosso). 70 - Idem. p.125. 71 - Aqui, procuramos seguir a distinção entre colonizador, colono e colonizado estabelecida por Ilmar R. de Mattos em O Tempo Saquarema. Para Mattos, o colonizado é aquele que está excluído de participar do monopólio, isto é; “a vasta gama constituída tanto pelos escravos - da Guiné ou nativos - quanto pelos agregados, quer pelos “homens que servem a outros por soldada”, quer pelos índios bravos”. O colonizador, detentor do monopólio, era quem ditava a política colonial, tendo em vista a transferência da renda para a Metrópole. Colonizadores eram todos aqueles ligados à esfera administrativa; se leigos, encarregados do fiscalismo; se eclesiásticos, empenhados na monopolização das almas. Eram também os comerciantes, especialmente os de grosso trato ou homens de negócio. Já o colono, proprietário colonial, seria o responsável pela atividade produtiva, o agente gerador de uma opulência. Cf. Tempo Saquarema. Rio de Janeiro, Access, 1994. p. 21-26.
58
guiava pelos valores morais da Igreja e pelos princípios hierárquicos que
estruturavam a sociedade, legitimando o poder real, como veremos mais adiante.
No entanto, é preciso remarcar as contradições de alguns autores quanto ao
caráter dos ameríndios. De acordo com as alianças formadas, os juízos eram
diferentes, o que podemos observar tanto nos relatos portugueses como nos
franceses. Gabriel Soares de Sousa, ao descrever os costumes dos carijós, torna
flagrante essa diferença: “Esse gentio é doméstico pouco belicoso, de boa razão;
segundo o seu costume não come carne humana, nem mata homens brancos que
com eles vão resgatar”. Com o tempo, como veremos, será feita uma distinção
entre índios aliados e inimigos.
As contradições eram muitas e não se tratava apenas de estabelecer uma
distinção entre as tribos mais bravas ou mansas, isto é, entre aquelas que podiam
se a adaptar aos interesses comerciais e/ou cristãos e aquelas que se recusavam a
alterar seu modo de vida. Algumas contradições são interessantes na medida em
que aparecem quase como uma rápida concessão ou como um descuido, voltando
em seguida ao tratamento usual de selvagem e bárbaro. É o caso, especialmente,
de Jean de Léry72, de Claude d'Abbeville e de alguns jesuítas. Apesar de
descreverem os índios como seres brutos e cruéis, associados a animais, não
deixaram de admirar a sua beleza. Mesmo tendo passado por toda a sorte de
aflições, Hans Staden assim os descreveu: “É uma gente bonita de corpo e de
feição, tanto homens como as mulheres, iguais a gente daqui.”
O capuchinho Claude d’Abbeville ficou espantado com a relação de
amizade observada nas famílias dos selvagens - apesar do paganismo dos mesmos
-, afirmando ser “uma bela lição para muitas famílias católicas que não vivem em
paz”. Um pouco mais adiante, ao procurar estabelecer relações entre clima e
comportamento, creditou ao clima temperado “o excelente gênio e viva
inteligência dos maranhenses”. Isto posto, d’Abbeville explicou que não pretendia
elevá-los acima dos espíritos cultos e civilizados, mas voltou ao elogio:
“Em verdade, eu imaginava que iria encontrar verdadeiros animais ferozes, homens selvagens e rudes; enganei-me, porém totalmente. No que diz respeito aos
72 - Léry narra de forma memorável a conversa com um índio sobre a acumulação de riquezas. Cf. LÉRY, Jean de: Viagem à Terra do Brasil. SP, Martins, 1960. p. 151-61.
59
sentidos naturais, tanto internos quanto externos, jamais achei ninguém, indivíduo ou nação que os superasse”.73
Para além da surpresa e das contradições do capuchinho, não importa
especialmente o que ele achou, mas a idéia anterior que esperava encontrar. A
idéia de uma selvageria sem fim já estava solidamente estabelecida. Enfim,
construiu-se uma representação estereotipada, feita praticamente com base na
repetição dos mesmos pontos de vista ao longo dos anos, quase como uma cópia.
Ronald Raminelli, ao investigar as imagens da colonização produzidas pelo olhar
europeu, entendeu que a difusão dos estereótipos do bárbaro e do demoníaco
constituía uma forma de absorver a diversidade cultural encontrada no Novo
Mundo. O índio seria integrado ao imaginário ocidental recebendo, portanto, uma
classificação e um valor. Contudo, a maneira de visualizar o índio vinculava-se
igualmente ao mundo colonial e às disputas em torno da conquista, da catequese e
do emprego dos íncolas como mão-de-obra. O bárbaro seria, então, um escravo ou
um cristão em potencial.74
A similaridade entre as narrações cristalizou de forma indelével a imagem
do selvagem, composta de todas as características acima mencionadas, em
oposição ao europeu, civilizado e polido. Mais do que a figura do índio veiculada
pelos relatos e crônicas, destacava-se a gritante assimetria da oposição, que
ensejou inspiração para alguns escritores daquela época como Shakespeare, entre
outros. Não é nenhuma novidade o papel dos relatos de viagem em relação a The
Tempest, ao contrário, são incontáveis as análises que dão conta da referida obra.
Portanto, não se trata de analisar essa peça já tão conhecida e discutida, interessa
apenas relembrar a composição contrastante dos personagens Caliban, que
congrega todos os elementos característicos de um selvagem, e Próspero, o
legítimo Duque de Milão.
A oposição entre sociedade iletrada versus sociedade letrada foi bastante
explorada, estabelecendo uma fronteira bem delimitada. Jean de Léry conta que,
ao chegar ao Brasil, começou a aprender a língua nativa, anotando algumas
sentenças que, quando lidas, deixavam os índios maravilhados. Por acreditarem se
tratar de alguma feitiçaria, os índios não mais mentiam com medo de serem
73 - D’ABBEVILLE, Claude: História da missão dos padres capuchinhos a ilha do Maranhão. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, USP, 1975. p. 223-243. 74- RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonização. Rio de Janeiro, Zahar, 1996. p. 66.
60
descobertos. Léry sugeriu: “Eis portanto um tema de dissertação suscetível de
mostrar que os habitantes da Europa, da Ásia e da África devem louvar a Deus
pela sua superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo”.
Apesar da mudança de tom, o maravilhoso persistiu do outro lado do
Atlântico, com traços bem medievais. Segundo Le Goff75, uma das funções do
maravilhoso seria a de servir como contraponto para a banalidade e a regularidade
cotidianas. Esse contraponto se ordenaria e funcionaria de acordo com as
sociedades e épocas; no Ocidente medieval, a tendência foi se organizar como
uma espécie de mundo ao inverso, sendo que os temas principais eram a
abundância alimentar, a liberdade sexual e a ociosidade.
A grandeza da terra, com suas infinitas e diversas formas, causava
admiração e espanto. Não se precisava mais de ciclopes, cinocéfalos, de homens
com olhos nos ombros e outros seres disformes e monstruosos. A construção do
selvagem, bom ou mau, puro ou pecador, bonito ou feio, parecia merecer todas as
atenções. Uma selvageria que, ao mesmo tempo, fascinava e aterrorizava.
Ninguém soube definir melhor essa ambigüidade como Jean de Léry, que falou
sobre o seu medo e o seu fascínio por uma cerimônia cantada e dançada pelos
tupinambás. Anos depois, Léry afirmaria sobre a cadência e o estribilho cantado
na cerimônia: “E ainda hoje quando recordo essa cena sinto palpitar o coração e
parece-me a estar ouvindo”.
2.3. Ordenar: identidades e medidas
Missionários e leigos, ao fornecer as informações sobre o Novo Mundo,
buscaram organizá-las por meio de uma classificação e de um valor, partindo de
uma ótica híbrida que mesclava a moral cristã com o interesse mercantil. O
contato com um mundo de formas distintas implicava na necessidade de um
método que pudesse organizar as novas informações de forma a agilizar o seu
conhecimento não apenas para satisfazer as curiosidades, mas para ser posta em
serviço da empresa colonizadora.
Vimos que, desde a carta de Anchieta, havia uma demanda por
informações do desconhecido, do curioso, que aparecia também em outros
autores: André de Thevet, Frei Vicente de Salvador, entre outros. Por esses casos,
61
seja em função das normas da Companhia de Jesus ou não, percebe-se a
necessidade de controle e de conhecimento das informações. Ao buscar organizar
os dados relativos aos costumes dos povos nativos, comentando seu aspecto moral
ou sua estranheza, iniciava-se um processo classificatório que deveria estar
enquadrado nas normas católicas e/ou civis. Tudo deveria estar ou ter uma ordem.
É Michel Foucault quem possibilita um melhor entendimento dessa
obsessão de ordem, ao explicitar seu objeto de análise - “a experiência nua da
ordem e seus modos de ser” -, em As Palavras e as Coisas:
“Trata-se de mostrar o que ela veio a se tornar, desde o século XVI, no meio de uma cultura como a nossa: de que maneira, refazendo, como que contra a corrente, o percurso da linguagem tal como foi falada, dos seres naturais, tais como foram percebidos e reunidos, das trocas, tais como foram praticadas, nossa cultura manifestou que havia ordem e que às modalidades dessa ordem deviam as permutas suas leis, os seres vivos sua regularidade, as palavras seu encadeamento e seu valor representativo; que as modalidades de ordem foram reconhecidas, colocadas vinculadas ao espaço e ao tempo para formar o suporte positivo de conhecimentos tais que vão dar na gramática e na filologia, na história natural e na biologia, nos estudos das riquezas e na economia política.” 76
Para Foucault, essa relação com a ordem é tão essencial para a Idade
Clássica quanto a interpretação foi para o Renascimento. Isto é, ocorre uma
mudança na episteme do Renascimento (a similitude como forma de saber) para a
Idade Clássica, quando a análise passa a ser feita em termos de identidade e
diferença, medida e ordem. Essa mudança na episteme não se dá de forma
abrupta, mas como uma transformação gradual. Os conhecimentos manifestam
uma história que "não é a de sua perfeição crescente, mas a de suas
possibilidades".77
Cabe perguntar até que ponto essa maneira de se estabelecer conhecimento
em termos de ordem e medida, diferença e identidade, esteve presente na
formulação do que foi pensado e escrito sobre o Brasil e no próprio entrosamento
colonial; ou seja, como esta forma de pensar foi experimentada nessa relação.
Uma relação fraturada, que esteve longe de ser fácil para ambas as partes.
75 - Cf. L’Imaginaire Médiéval. In. Un Autre Moyen Âge. Paris, Gallimard, 1999. 76- FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p.11. 77- Idem.
62
Foucault estabelece um paralelo entre sua investigação e uma suposta
história da loucura na Idade Clássica, que poderia ser feito também com a história
da colonização:
“A partir de qual a priori histórico foi possível definir o grande tabuleiro das identidades distintas que se estabelece sobre o fundo confuso, indefinido, sem fisionomia e como indiferente, das diferenças? A história da loucura seria a história do Outro - daquilo que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser portanto excluído (para conjurar-lhe o perigo anterior), encerrando-o porém (para reduzir-lhe a alteridade); a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo - daquilo que para uma cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser portanto, distinguido por marcas e recolhido por identidades”. 78
A questão do “outro” pode ter demonstrado a incapacidade humana em
lidar com a diversidade. Não bastava anotar as diferenças e classificá-las. A
desordem do “outro” não poderia ser excluída porque já se faz presente na sua
exclusão. E, mesmo porque, já disseram, o outro é o mesmo.
Como vimos em alguns casos, principalmente naqueles ligados às plantas
e aos animais, a busca por semelhanças para descrever determinado objeto de
interesse era um procedimento comum. No século XVI, o princípio analógico era
utilizado como base para um processo de conhecimento, atualizando um
procedimento desenvolvido pela escolástica, a partir de esquemas aristotélicos. A
analogia consistia em reunir dois fatos, duas palavras, duas coisas, pela sua
semelhança. Os discursos baseados em analogias tinham como referência uma
concepção especular e imitativa79. As analogias das palavras ou das coisas agiriam
como um espelho, refletindo o seu conteúdo. Mas, ao tentar reproduzir a nova
realidade por meio dessas aproximações, nem sempre descrições conseguiam ser
bem sucedidas, uma vez que resultavam em uma colagem dos mais disparatados
elementos. Além disso, para satisfazer a demanda pelo curioso, buscava-se o
singular, o único e o raro. Como descrever algo único, que não tinha similar na
Europa, Ásia e África, sem os termos de comparação habituais?
Antonello Gerbi, ao analisar a tese de Buffon sobre a debilidade ou a
imaturidade das Américas, comentou a insatisfação do autor com o uso indevido
de conceitos do Mundo Antigo aplicados ao Novo Mundo. Buffon trabalhava a
78- Idem p. 14. 79 - Sobre essa questão Cf. DUBOIS, Claude-Gilbert. “Logos: O Problema de Simbolização” In: O Imaginário da Renascença. Brasília, UnB, 1995.
63
partir das diferenças entre Velho e Novo Mundo, sendo que “diferente”,
normalmente, significava inferior. A insatisfação de Buffon quanto à
aplicabilidade daqueles conceitos traduzia a saturação do emprego de analogias,
que parecia não mais cumprir a sua função. No entanto, Gerbi percebeu que esta
tendência vinha sendo construída há tempos:
“Dois longos séculos antes de Buffon, Oviedo tinha, possivelmente pela primeira vez, denunciado os erros onomásticos cometidos por analogia pelos cronistas e relatores precedentes (erros cuja raiz psicológica reside em que se percebem mais prontamente as semelhanças que as diferenças. Ainda no fim do século XVI o padre Acosta lamentara que “a muitas destas coisas das Índias os primeiros espanhóis puseram nomes da Espanha, tomados de outras coisas com as quais têm alguma semelhança, como pinhas, pepinos e cenouras, que são na verdade frutas diversíssimas, vencendo sem termos de comparação os aspectos em que diferem das que em Castela se chamam por tais nomes”.80
Em relação aos costumes da terra, o problema tornava-se mais complexo.
A humanidade era uma só desde a Bula Veritas ipsa, em 153781. No entanto, por
mais simpáticos que os nativos pudessem lhes parecer, não deixavam de causar
impressão, pois aos olhos europeus eram seres totalmente crus ou, nas palavras de
Nóbrega, papéis em branco, sem um pingo das tintas habituais. Não encontravam
semelhanças mínimas às que estavam habituados, não só em relação à sua própria
sociedade, como a outros lugares já visitados. Os critérios tradicionais comumente
utilizados nas comparações - religiosos, jurídico-políticos, hierárquicos - pareciam
não fazer sentido com aquelas pessoas, que fugiam dos parâmetros conhecidos.
Mesmo o Oriente, com sua diversa e distinta configuração, apresentava pontos de
contato para fins de aproximação e comparação, ainda que esta implicasse em
reduções ou em uma exotização daquelas sociedades. Tanto as Índias orientais
quanto a África contavam com a presença do poder local dos rajás, dos samorins,
dos califas e dos reis africanos, com os quais havia uma negociação.
Acostumados ao estabelecimento de comparações por critérios afins, pela
via da semelhança, é possível entender o espanto que a vida nativa pode ter
causado. A famosa frase tão repetida da falta de fé, de rei ou lei exemplifica bem
essa questão. Ao buscarem dados que estruturavam a sua sociedade - uma severa
concepção religiosa que não apenas guiava espiritualmente, mas interferia na
80 - GERBI, Antonello. O Novo Mundo. História de uma Polêmica. SP, Cia das Letras, 1996. p. 39. 81 - Reconheceu que os índios eram como os demais homens, descendentes de Adão.
64
própria vida das pessoas, a existência de rígida estrutura hierárquica balizada na
figura do rei e a presença de uma justiça capaz de vigiar e punir -, espantavam-se
com a sua inexistência, entendendo que uma configuração social sem esses dados
só poderia ser sinônimo de desordem.
A primeira referência à desordem aparece em um dos primeiros textos
sobre o Brasil. Pero Magalhães Gandavo, ao comentar a língua tupi, anotou, por
volta de 1567, esta passagem já tão conhecida:
“A língua deste gentio todo pela costa é uma: carece de três letras - não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente. Estes índios andam nus sem cobertura alguma assim machos como fêmeas não cobrem parte nenhuma de seu corpo e trazem descoberto quanto a natureza lhes deu”. 82
A fórmula de Gandavo provavelmente teve sucesso, posto que fez escola:
Manoel da Nóbrega, Gabriel Soares de Souza, em Tratado descritivo do Brasil, o
também jesuíta Cristóvão de Ganvia, em Sumário das Armadas83, ambos de 1587,
Ambrósio Fernandes Brandão em Diálogos das Grandezas do Brasil, Frei Vicente
de Salvador, em História do Brasil, concluída em 1627; e Simão de Vasconcelos,
nas Notícias Curiosas e Necessárias das Coisas do Brasil, obra de 1668, repetem
a mesma constatação sobre a ausência de vocábulos, anotando também que os
índios carecem de fé, de lei e de rei.84 André de Thevet85, capuchinho que
acompanhou Villegaignon por ocasião da invasão francesa no Rio de Janeiro,
82- GANDAVO, Pero M. Tratado da terra do Brasil. História da Província Santa Cruz. São Paulo, USP; Belo Horizonte, Itatiaia, 1980. p.52. 83 - De acordo com José Honório Rodrigues, a autoria do Sumário é incerta; as dúvidas dividem-se entre os padres Jerônimo Machado e Simão Travassos, ambos da Cia de Jesus. Rodrigues dá crédito ao último. Aqui citamos de acordo com o texto veiculado pelo Guia preliminar de fuentes documentales etnográficas para el estudio de los pueblos indígenas de Iberoamérica. Fundación Tavera, fornecido pelo arquivo da Torre do Tombo. O texto foi publicado também pela revista Municípios em Debate. 84- Para G. Giucci, a repetição desta fórmula indica a homogeneidade do julgamento negativo. Ao analisar uma série de textos desde a carta de Caminha, Giucci percebeu uma mudança de perspectiva em relação aos índios: de puros e ingênuos, passaram a traidores no momento em que se opuseram à apropriação das terras. Mas, a resistência dos índios não fica restrita a essa questão. Trata-se de uma resistência à mudança de concepção de vida, uma concepção de vida mercantil. Cf. Sem fé, sem lei ou rei. Rio de Janeiro, Rocco, 1993. 85 - THEVET, André de: Op. Cit. p. 98-99.
65
aumenta a lista dos divulgadores da língua tupi, que determina uma vida sem fé,
lei e rei, completando diretamente a sentença com "nem civilização alguma".86
A inexistência dos vocábulos assinalados permitia-lhes constatar a
ausência de instituições idênticas às suas, as quais deveriam, inclusive, manter
correspondência nominal com a língua portuguesa, e concluir que o mundo dos
índios era o mundo da desordem. Nesse sentido, a palavra ainda estava ligada à
realidade das coisas. De acordo com Foucault, a separação das palavras das coisas
inicia-se no século XVII, ou seja, estava em vias de acontecer.
Apesar de, nesse momento, a comparação ainda ser feita na base da
analogia, tão presente no pensamento escolástico, buscando semelhanças e
similitudes, a sensação do diferente já começa a ser percebida e a incomodar. O
francês Jean de Léry sintetizou essa perspectiva com extrema lucidez:
“(...) este país da América o qual, como deduzirei, tudo que se vê aí, seja na maneira de viver dos habitantes, forma dos animais e em geral naquilo que a terra produz sendo dissemelhante do que temos na Europa, Ásia e África, bem pode ser chamado Mundo Novo, do nosso ponto de vista.”
De seu “ponto de vista”, isto é, de um europeu, aquele mundo era novo e
dissemelhante ao que conhecia. “Mundo novo” ou “outro mundo” eram
expressões amplamente divulgadas, que já impunham uma longa distância, maior
do que a do próprio oceano. A impossibilidade do estabelecimento de analogias
determinava um método inverso: a comparação limitava-se a constatação da
ausência e da inexistência. Assim, uma identidade começava a ser construída pela
via da negativa. Relembremos aqui aquela passagem da carta de Caminha
anteriormente citada: “Não há aqui boi nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem
galinha, nem nenhuma alimária que costumada ao viver dos homens”. A listagem
das carências é ampla. Gabriel Soares de Sousa apresentou os aimorés da seguinte
forma: “Não vivem estes bárbaros em aldeias, nem casas” e ainda, “não costumam
estes alarves fazer roças, nem plantar alguns mantimentos”. O franciscano André
de Thevet constatou que não se menciona nos livros outros povos com costumes
semelhantes aos nativos do Brasil.
Uma observação muito comum, feita por Hans Staden, Gabriel Soares de
Sousa, Yves d’Evreux, entre outros, foi a de que os índios não tinham barbas. Jean
86 - Tal lista pode ser aumentada ainda com Gaspar Barléu - que repete a mesma ladainha em História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil - dando crédito a Maffeu -
66
de Léry iniciava sua descrição dos tupinambás também pelo o que não eram: “não
são maiores nem mais gordos que os europeus”; na definição de sua cor: “não são
negros”. O mesmo Léry, depois de descrever minuciosamente uma cerimônia a
que assistiu por cerca de duas horas, na qual “quinhentos ou seiscentos selvagens
não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso”, conclui que
“ninguém diria não conhecerem música”. Exemplos como esses não faltam. As
marcações das lacunas do Novo Mundo serviram de matéria para Montaigne, que,
com primorosa percepção, soube brincar e atualizar as informações divulgadas
sobre a nova realidade, descrevendo deste modo:
“Não há nenhuma espécie de tráfico; nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciência dos números, nenhum nome de magistrado ou de autoridade política; nenhum uso de serviços, de riqueza ou pobreza; nenhum contrato; nenhuma sucessão; nenhuma partilha; nenhuma ocupação não ociosa; nenhum respeito por parentesco se não o comum; nenhuma roupa; nenhuma agricultura; nenhum uso de vinho ou de trigo. As palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, detração, perdão são desconhecidas”.87
Conforme já havíamos comentado, a similaridade dos relatos, ou pelo
menos dos pontos levantados por eles, é uma questão pouco discutida. Não se
trata de concluir em favor da verdade ou não dos mesmos. Interessa pensar a
estreita margem estabelecida na descrição de uma realidade completamente nova.
A impossibilidade de pensar a diferença permeava até a produção dos textos?
Difícil acreditar, em se tratando de uma época que gerou Shakespeare e
Montaigne.
Na produção literária sobre o Novo Mundo, pudemos perceber a busca
pelas semelhanças e a incapacidade de as analogias refletirem as figuras
desejadas, daí o estranhamento com as novas formas que não encontravam a
similaridade e a inversão das imagens. A construção da diferença partiu, portanto,
de um jogo de inversão da própria identidade, o “mesmo”, ao avesso e subtraído
de suas qualidades, transformado no outro. Mantinha-se, desse modo, uma certa
simetria, procurando manter o princípio de ordem que regia aquela visão de
mundo.
O que definia a Ordem, naquele momento, era o conjunto de F, L e R, que
podia ser sintetizado na manutenção da religião e da doutrina, valores ordenadores
, entre outros.
67
e pragmáticos destinados a aproximar as semelhanças e, posteriormente, justificar
a diferença. Se por um lado havia algum encantamento, ou pelo menos surpresa,
diante dos estranhos costumes, por outro não havia relutância em considerá-los
atrasados e inferiores. Assim, a Ordem é entendida pelos códigos internos de uma
dada cultura, passando a existir a partir de um olhar e emergindo pela linguagem.
O mundo da desordem significava ainda um mundo sem medidas, sem
harmonia, um mundo de excessos: "...vivem bestialmente sem ter conta, nem
peso, nem medida." 88 Frei Vicente, em sua História do Brasil, observa da mesma
forma essa característica, que estaria ligada a um traço do próprio temperamento
dos indígenas:
“Nem jamais usam de pesos e medidas, nem têm números por onde contam mais que cinco e, se a conta houver de passar dai, a fazem pelos dedos das mãos e pés. O que lhes nasce da pouca cobiça”.89
A falta destes padrões estará intimamente associada à marca do excesso,
do exagero que não concebe limites. Porém, esta marca não é exclusiva dos
ameríndios. Ela ajuda-nos a definir os contornos de uma América portuguesa.
Como bem notou Janice Teodoro da Silva, “a obra colonial muitas vezes parece
regida pelo excesso. Excesso de violência, excesso de ouro, excesso de riqueza".90
A opulência e a grandeza foram os elementos de caráter positivo para
contrapor a negatividade dos hábitos e dos costumes, mas que também levavam a
marca do excesso. Essa idéia terá permanência, com alguma alteração, pelo menos
até o século XVIII, como demonstraram os livros aqui apresentados e o
consagrado Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Na objetiva
narração de Antonil sobre a produção do açúcar, do tabaco, a grandeza passava a
ser demonstrada em função de uma economia, tendo como pano de fundo uma
sociedade em movimento. Contudo, o interesse em divulgar tais riquezas já não
era o mesmo.91
Mas, cabe ressaltar, a grandeza e a opulência só se tornariam possíveis, de
acordo com Ilmar R. de Mattos, pela efetivação “do desdobramento da empresa
87 - Esse mesmo texto foi utilizado por Shakespeare em A Tempestade para descrever uma utopia. 88 - Gandavo, Pero M.: Op. Cit. p.57. 89 - Frei Vicente de Salvador: Op. Cit. p. 60-61. 90 - SILVA, Janice Teodoro.: América Barroca: Dissimulação do Contraste. São Paulo, Martins Fontes, 1982.
68
marítima e mercantil em empreendimento colonizador”. Mattos estabelece uma
ligação direta com a questão da “região colonial”. Essa deve ser entendida como
um espaço em movimento que expressa a sua vida na relação de dominação
“exercida pelo colonizador sobre um território, mas sobretudo uma dominação
sobre os demais agentes participantes da aventura colonizadora”.92
No primeiro momento, a desordem esteve referida ao mundo dos índios,
por não possuírem instituições semelhantes às do europeu, pela própria
impossibilidade do estabelecimento de analogias que aproximassem as duas
culturas. O pensamento europeu, plasmado na semelhança, aproxima o que é
semelhante e afasta o que não encontra correspondência. A tentativa de
aproximação faz-se pela via da homogeneização, da redução à unidade,
procurando a igualdade através de elementos que emprestem semelhança. As
dificuldades de incorporação desse elemento ao corpo estrutural do projeto, para
cumprir a sua função, vão imprimir a imagem da desordem. Tais dificuldades,
aliadas a uma nova forma de pensar, que se estrutura a partir da medida e da
ordem, da diferença e identidade, tenderão a classificar o índio como um elemento
problemático por custar a se encaixar na lógica formal da Ordem.
O Novo Mundo representava riquezas por descobrir e por explorar. Não
cabia a rejeição, o que interessava era a dominação e, como decorrência, a
repressão dessa cultura ou dessa não-cultura. A colonização, portanto, deveria ter
duas linhas: explorar a grandeza e a opulência, monopolizando sua produção, e
transformar os bárbaros em seres civis ou cristãos.
91 - O livro Cultura e Opulência teve sua circulação suspensa, pois fornecia informação demais sobre as minas. 92 - Cf. Op. Cit. p.24.