1
Pontifícia Universidade Católica
PUC-SP
Faculdade de Teologia
Túlio Felipe de Paiva
A Parresía Paulina e suas perspectivas:
Uma análise bíblico-teológica a partir de Ef 6,18-20
Mestrado em Teologia
São Paulo
2018
2
Pontifícia Universidade Católica
PUC-SP
Faculdade de Teologia
Túlio Felipe de Paiva
A Parresía Paulina e suas perspectivas:
Uma análise bíblico-teológica a partir de Ef 6,18-20
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção de título de Mestre
em Teologia Sistemática com concentração na área
Bíblica, sob a orientação do Prof. Dr. Boris Agustín
Nef Ulloa.
Mestrado em Teologia
São Paulo
2018
3
Banca Examinadora
____________________________
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4
Só em Deus e só a partir Dele é que o homem conhece
verdadeiramente o homem. Um conhecer-se que confina o
homem ao que é empírico e inteligível não encontra de
modo algum a profundidade própria do homem. O homem
só se conhece a si mesmo se aprende a compreender-se a
partir de Deus e só conhece o outro se vir nele o mistério
de Deus.
Bento XVI
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus que, na sua bondade imensa, me concedeu o dom da
vida e me fez participante da sua Igreja por meio do batismo.
Agradeço também a Deus por fazer parte do Caminho Neocatecumenal e através deste,
poder redescobrir as belezas do batismo, assim como minha vocação ao presbiterato. Sempre
serei agradecido a Deus por meus catequistas e pelas minhas comunidades de Assis e de São
Paulo.
Meus agradecimentos também se voltam ao Pe. Kico Vitta, Reitor do Seminário
Redemptoris Mater de São Paulo, que na sua missão não somente me indicou o tema a ser
pesquisado nesta dissertação, como também foi um modelo de uma pessoa que possui a
parresía e que faz desta um instrumento para seu trabalho missionário.
Sou grato ao Prof. Dr. Boris Agustín Nef Ulloa, que através de sua paciência e
generosa sabedoria, tanto me auxiliou na elaboração deste trabalho. Igualmente ofereço meus
agradecimentos ao Prof. Dr. Gilvan Leite de Araújo e ao Prof. Dr. Jean Richard Lopes, que
muito contribuíram compondo a banca.
À Arquidiocese de São Paulo, na pessoa de D. Odilo Pedro Scherer, ofereço os meus
sinceros agradecimentos por me oferecer a bolsa, através da Fundação São Paulo, para a
conclusão do curso de mestrado.
Agradeço também aos meus amigos seminaristas do Seminário Redemptoris Mater de
São Paulo, que me auxiliaram nas correções desta dissertação.
Meus agradecimentos também aos fiéis e ao Pároco Pe. José Antonio Tejada, da
Paróquia Santa Bernadette, onde atualmente exerço meu ministério, que com suas orações me
encorajaram no seguimento desta pesquisa.
Por fim, rendo um agradecimento especial aos meus familiares, de modo especial
aos meus pais, que me permitiram o dom da vida e me transmitiram o dom mais precioso
que podiam me entregar, a fé.
6
RESUMO
DE PAIVA, Túlio Felipe. A Parresía Paulina e suas pespectivas: uma análise bíblico-
teológica a partir de Ef 6,18-20.
O presente trabalho visa apresentar a análise feita sobre a parresía, ou
linguagem franca a partir de Ef 6,18-20. A pesquisa aborda num primeiro plano
as primeiras ocorrências do termo, no mundo greco-romano, e qual era a
compreensão acerca do tema e quais as finalidades que possuía. Uma vez que
Paulo estava inserido neste mesmo período histórico, se analisa, num breve
esboço, a presença da parresía na vida do Apóstolo.
Por conseguinte, apresenta-se uma análise exegética da perícope escolhida (Ef
6,18-20), e a partir desta discorre-se a respeito da presença da parresía em
Paulo.
Por fim, com base nos resultados dos tópicos anteriores, analisa-se as relações
da parresía com o Espírito, com o discipulado cristão e com a Igreja, enquanto
Corpo de Cristo.
Palavras-chave: Parresía; linguagem franca; Paulo; Efésios.
7
ABSTRACT
DE PAIVA, Túlio Felipe. The Pauline Parrhesia and your perspectives: a
biblical-teological analyses from Eph 6:18-20.
The following work presents the analyses made about the parrhesia, or free
speech, from Eph 6:18-20. The research speaks in a first plan the very first
events of this term, that occurred in the roman-greek world, which was the
understanding about the subject and what were your purposes. Once Paul was
inserted in this same historical period, it analyses, in a brief outline, the presence
of parrhesia in the Apostle´s life.
Therefore, it is presented an exergetic analysis of the pericope chosen (Eph 6:18-
20), and from this discourse about the presence of the parrhesia in Paul.
Lastly, based on the previous topics, it analyzes the relationships of the
parrhesia with the Spirit, the christian discipleship and the Church, as the Body
of Christ.
Key-words: Parrhesia; free speech; Paul; Ephesians
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9
CAPÍTULO PRIMEIRO - A PARRESÍA NO MUNDO GRECO-ROMANO ...............................12
1. Questões introdutórias………………………………………………………………… 12
1.1 Os primeiros usos do termo Parresía…………………………………………………..13
1.2 O ethos parresiástico……………………………………………………………….......22
1.3 Paulo: O Apóstolo Parresiástico…………...…………………………………………..25
1.3.1 Paulo de Tarso?..................................................................................................26
1.3.2 Paulo: um fariseu………………………………………………………………29
1.3.3 A conversão: de perseguidor a seguidor…………………………………….…31
1.3.4 Um verdadeiro parresiastes………………………………………………...…33
CAPÍTULO SEGUNDO - ANÁLISE EXEGÉTICA DE Ef 6,18-20..........................................40
2. Autenticidade da Carta………………………………………………………………....40
2.1 Delimitação da perícope………………………………………………………………..42
2.1.1 Segmentação…………………………………………………………………...44
2.1.2 Tradução……………………………………………………………………….44
2.2 Análise morfossintática………………………………………………………………...45
2.3 Análise semântico-pragmática……..…………………………………………………..48
2.3.1 Proseuko,mai (Orar) e A,grupne,w (Vigiar)…...…………………..…………….50
2.3.2 Lo,goõ (Palavra)……………………………………………………………….53
2.3.3 Parrhsi,a (Parresía)…………………………………………………………..56
2.3.4 Gnwpi,zw (Anúncio) e Musth,rion tou Euaggeli,ou (Mistério do Evangelho).58
2.3.5 Dei/ (Necessário)……………………………………………………………….60
2.3.6 Presbeu,w (Embaixador)……………………………………………………….62
2.3.7 Pneu/ma (Espírito)……………………………………………………………...64
CAPÍTULO TERCEIRO - HERMENÊUTICA TEOLÓGICA DA PARRESÍA SEGUNDO
PAULO....................................................................................................................68
3. Questões introdutórias………………………………………………………………….68
3.1 Parresía e Pneu/ma (Espírito)……………..…………………………………………….69
3.2 Parresía e o discipulado... ……………………………………………………………..73
3.3 Parresía e Sw,ma tou/ Kristou/ (Corpo de Cristo)…….………………………………..80
CONCLUSÃO....................................................................................................................84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................86
9
INTRODUÇÃO
O termo grego parresía ocupou um papel relevante nos escritos clássicos do
período histórico greco-romano, o qual era considerado um instrumento retórico válido
para os discursos e escritos que foram elaborados naquele período. Falar ou escrever
com franqueza, permitia aos remetentes atingir o seu objetivo. Assim, a parresía,
primeiramente como um instrumento retórico, concedia aos que dela se utilizavam,
alcançar o sucesso com o seu discurso.
Deste modo, partindo desta premissa, o primeiro capítulo da presente dissertação
aborda num primeiro plano as ocorrências do termo parresía em alguns escritos do
mundo greco-romano, assim como as implicações e significados deste termo. Vários
foram os oradores e escritores que não só se utilizaram da parresía como também
descreveram acerca dela. Por este fato, serão citados apenas alguns autores que
escreveram sobre a linguagem franca.
No entanto, a parresía, já no mundo greco-romano, não era considerada apenas
um instrumento da arte retórica, senão que ela possuía um vínculo especial com o
caráter daquele que dela se utilizava. Dito de outro modo, não bastava apenas se utilizar
da parresía num discurso ou num texto, mas era necessário ter um caráter coerente com
a mesma. Essa coerência condiz justamente com o ethos de uma pessoa. Para que ela
exercesse de fato o seu papel, o orador ou escritor necessitava ser um parresiastes.
Destarte, seguindo ainda a linha do contexto histórico do mundo greco-romano, no
primeiro capítulo se verá as consequências da parresía no agir de um escritor ou orador.
Dentro desse mesmo período, viveu o Apóstolo Paulo, que com sua vida e obra,
não somente ajudou a dar forma ao kerygma cristológico, que apenas nascia, mas
contribuiu decisivamente para difundi-lo e testemunhá-lo muito além dos limites do
judaísmo sinagogal. Os meios que o Apóstolo se utilizava, para alimentar e pastorear
suas comunidades enraizadas na novidade de Cristo morto e ressuscitado, eram
justamente sua pregação e suas cartas. Assim, na vida e na obra de Paulo é possível
notar uma presença marcante da parresía. Assim sendo, pode-se conferir que na vida
deste personagem, a parresía também ocupou um lugar significativo. Para contemplar
essas características na vida do Apóstolo dos gentios, se verá algumas características de
sua vida que lhe proporcionaram possuir a parresía. Num primeiro aspecto a origem do
Apóstolo, isto é, a cidade de Tarso, que na época era um centro de cultura e de política.
10
Posteriormente o fato de que Paulo, sendo um judeu, provavelmente tenha estudado em
Jerusalém, centro religioso do Judaísmo. E por fim, outro fato abordado nesse primeiro
tópico e, por sinal, o mais importante na vida do Apóstolo, é justamente o encontro com
o Ressuscitado. Este acontecimento, que redimensionou a vida de Paulo, se torna o
fundamento de toda a sua missão evangelizadora.
Como fruto da obra missionária de Paulo, surgem as comunidades por onde o
Apóstolo passou anunciando a boa nova do Cristo. Após suas viagens, a relação dele
com ditas comunidades se deu principalmente por meio de cartas. Algumas dessas
chegaram até os nossos dias. Estas cartas compõem grande parte do cânon do Novo
Testamento. Por meio delas é possível não somente conhecer como era o cristianismo
na Igreja primitiva, as bases e os fundamentos da fé cristã, mas também descobrir a vida
e a missão do Apóstolo.
Por conseguinte, para constatar a presença da parresía nos textos de Paulo,
analisa-se a perícope de Ef 6,18-20, onde o autor da carta possui o desejo de alcançar a
parresía para levar a cabo sua missão evangelizadora. Em relação à carta aos Efésios,
na atualidade, existem controvérsias acerca da sua autenticidade. Com base nessa
característica, no decorrer do segundo capítulo destaca-se como a presença da parresía
era assaz evidente na vida de Paulo, ao ponto que seus discípulos e a escola paulina
fazem questão de sublinhar pela boca do Apóstolo o desejo ardente de possuir a
parresía. Ainda mais, nesta perícope, analisa-se alguns termos que se relacionam e
corroboram as características da linguagem franca.
O último capítulo é dedicado a uma aplicação hermenêutica da parresía em
relação com o Espírito Santo, com o discipulado e com a Igreja, enquanto Corpo de
Cristo. No primeiro capítulo nota-se que a linguagem franca é um instrumento retórico e
que serve de auxílio num discurso ou numa carta. No entanto, relacionando a parresía
com a importância da pneumatologia, se observa que muito mais do que um
instrumento ela é uma graça concedida pelo Espírito Santo, para aqueles que são
chamados a exercer o ministério da pregação na Igreja. O Espírito Santo é a força e a
verdadeira coragem que um apóstolo necessita, para proclamar com ousadia o mistério
do Evangelho.
Esta união da parresía com o Espírito forma também os discípulos de Jesus, que
tendo escutado, por meio da pregação, o anúncio do Evangelho, passam a seguir o
Cristo, como verdadeiro e único mestre. Assim, a linguagem franca se torna um
11
instrumento para suscitar na Igreja de Cristo, novos discípulos, que por sua vez, também
transmitem a mesma boa-notícia que um dia os alcançou.
Assomada, portanto, a ação do Espírito Santo com o discipulado, se dá a
edificação da Igreja. Esta analogia eclesiológica manifesta a beleza dos que foram
chamados à fé. “Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas
todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo. Assim
também acontece com Cristo. Pois fomos todos batizados num só Espírito para ser um
só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só Espírito” (1Cor
12,12-13). A diversidade na unidade manifesta claramente a riqueza dos discípulos do
ressuscitado. E a citação anterior ilustra de forma clara que a Igreja é única, porém
formada de muitos membros.
No entanto, a Igreja é edificada e sustentada por meio da pregação. É o anúncio
do Evangelho de Cristo que fundamenta a Igreja. Destarte, é imprescindível que a
pregação esteja impregnada de parresía, para que se dê de modo mais perfeito a
edificação desse corpo. O anúncio do Evangelho proclamado e testemunhado feito com
ousadia, sem nenhum impedimento, torna mais eficaz o seu efeito na vida daqueles que
o escutam.
12
CAPÍTULO PRIMEIRO
A PARRESÍA NO MUNDO GRECO-ROMANO
1. Questões introdutórias
A parresía, objeto de estudos do presente texto, foi e apesar de, continua sendo,
um instrumento muito utilizado no campo da retórica que, a priori, possui o escopo de
auxiliar e apoiar quem dela se utiliza no seu discurso ou escrita. Por sua vez, além de
possuir uma característica de simples auxílio, ela ainda possibilita ao orador a
oportunidade de poder atingir com maior sucesso o objetivo de seu discurso.
Para uma melhor compreensão do termo, se buscará conferir a importância desse
mesmo termo dentro do campo linguístico, de modo especial, dentro da arte retórica,
uma vez que esse mesmo foi e ainda é, em partes, um recurso de linguagem. Dentro
desse contexto, portanto, se procurará apresentar o papel e a importância deste artifício
no período em que ele surge, isto é, no período greco-romano.
Por conseguinte, uma vez que a intenção primeira do presente trabalho é
apresentar uma análise da parresía dentro dos Escritos Paulinos, é mister, neste
primeiro tópico, fazer uma apresentação do contexto histórico do apóstolo Paulo e de
seus discípulos, e como esse tema era compreendido por aqueles do seu tempo. Ainda
que o significado do termo seja praticamente o mesmo até os nossos dias, vale analisar
como era compreendido no então chamado “mundo greco-romano”, período esse que
abarca o nascimento do cristianismo e o desenvolver das primeiras comunidades
seguidoras de Jesus Cristo.
No período em questão, particularmente na arte da retórica, a parresía possuía
um papel de grande importância, pois ela era um instrumento mais que necessário para
fazer chegar aos destinatários, sejam eles os das epístolas ou os ouvintes de um
discurso, a autenticidade do que de fato se pretendia dizer.
Se verá mais à frente outro aspecto da linguagem franca, mas por ora vale
lembrar que a parresía não possui um fim em si mesma, isto é, ela não pretende ser o
objetivo final do discurso, mas um artifício retórico, ou seja, um instrumento da oratória
para se chegar ao intuito desejado.
Por conseguinte, vale aqui apresentar o significado etimológico da palavra grega
Παρρησία (parresía 1). Essa palavra, muito utilizada no mundo greco-romano, tem por
1 Adotou-se para o presente trabalho esta forma de transcrever o termo grego Παρρησία, uma vez que não
possuímos em português a tradução exata deste vocábulo. Porém, no decorrer do texto também se referirá
13
significado mais claro a linguagem franca, a ousadia no falar e uma clareza de
linguagem. Ela, em diversos textos da época precedente, como também contemporâneos
dos textos neotestamentários, podia adquirir outros significados, inclusive até nos textos
canônicos.
O termo, com frequência, pode indicar também coragem, confiança ou destemor.
Mas, o sentido em que se pretende abordar a sua relação no presente texto, inclusive nos
Escritos Paulinos, de modo particular em Ef 6,18-20, é justamente o da linguagem
franca, como também a referência que o autor faz a algo dito com clareza e franqueza,
contrastando, assim, com declarações feitas de modo secreto ou velado.
1.1 Primeiros usos do termo Parresía
Antes de adentrar nos primeiros relatos que se tem acesso do termo parresía, é
necessário apresentar, aqui, o que se entende por mundo ou era greco-romana. Foi um
período em que surgiram grandes oradores, filósofos e escritores, como também,
momento em que ocorreu o evento que é o núcleo fundante da fé cristã, isto é, a
encarnação do Verbo de Deus e o início da sua missão neste mundo.
Desse evento, como bem se sabe, surgiram a Igreja e os apóstolos de Cristo,
entre os quais se encontra Paulo de Tarso 2. Assim, seria uma abstração apresentar e
pesquisar sobre uma pessoa e sobre sua obra sem, ao menos descrever, ainda que sejam
em pequenas “pinceladas”, sobre o período em que esse personagem viveu. O referido
período em questão, também conhecido como era helenística ou helenista,
Vai desde a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C., até o final do
século I a.C., mais exatamente 31 a.C., ano em que se dá a batalha de
Áccio, vitória célebre de Octaviano, acontecimento que marca o final
da república em Roma. O mundo helenístico abarcava um imenso
espaço físico. O seu território estendia-se desde a Macedônia, no norte
da Grécia, passando por Atenas e pelo Mar Egeu, até ao longínquo
oriente junto às margens do Ganges. Foi este vasto império
transcontinental que Alexandre deixou como herança aos seus
companheiros de guerra macedônios 3.
a ela com sinônimos em português que se aproximam do significado original, como por exemplo:
linguagem franca, franqueza e ousadia. possuímos em português a tradução exata deste vocábulo. Porém,
no decorrer do texto também se referirá a ela com sinônimos em português que se aproximam do
significado original, como por exemplo: linguagem franca, franqueza e ousadia. 2 Sobre Paulo, sua figura e sua obra, se verá mais aprofundadamente no decorrer do texto.
3 SILVA, Manuel Fialho. A Parresía em Filodemo. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2009, p. 9.
Disponível em: < http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/348/1/21448_ulfl071264_tm.pdf>.
14
Na citação acima, pôde-se observar que, após a batalha de Áccio, instaura-se,
então, no mesmo território em que predominava a cultura helenista, o mundo romano.
Desse modo, há uma junção entre os dois mundos e suas culturas, e o “palco” dessa
junção é justamente o território dominado por eles. Dentro desse limite territorial,
encontra-se a região da Palestina, a assim chamada alhures Ásia Menor (que
compreende hoje o território da Turquia), juntamente com Grécia e Roma (territórios da
missão do apóstolo Paulo). Sampley, apresentando a importância de se conhecer o
mundo greco-romano, uma vez que se decide conhecer por sua vez a pessoa de Paulo,
atesta que
Sempre conhecemos e estudamos Paulo judeu, mas foi apenas nas
últimas décadas que houve um renovado interesse em situar as cartas
de Paulo no ambiente greco-romano, e esse esforço obteve uma clara
prioridade entre os modernos estudiosos de Paulo. Agora, os usos e
costumes sociais, econômicos, políticos, as convenções e os valores
sociais são um dado comum dos estudos paulinos. Também os
modelos greco-romanos de retórica têm sobressaído como uma área
importante de pesquisa 4.
Além disso, como já se observou, o mundo de Paulo foi primeiramente
influenciado pela cultura helênica e posteriormente, com a presença do Império
Romano, pela cultura deste último, embora os imperadores romanos fossem
admiradores da civilização helênica e tenham conservado muitos traços dessa cultura.
Isso gerou dentro do território em questão um centro de cultura, política, comércio e
outras características da vida pública. Não obstante a isso, a posição geográfica desse
território sempre foi de grande importância pela sua localização estratégica, seja no
campo político, como também pelo comércio. Assim sendo, o local se tornou um
receptáculo de diversas culturas e costumes. Por isso, quando se fala de mundo greco-
romano, é necessário compreender que trata-se de um mundo (território) permeado de
uma cultura ímpar, pelos diversos motivos acima elencados. Deste modo,
O mundo greco-romano era o mundo de Paulo. Por isso, não podemos
dizer que Paulo „tomou emprestado‟ esta ou aquela tradição,
convenção ou prática romana. Tampouco podemos usar expressões
que sugiram que Paulo esteja „adotando‟ as maneiras de um romano;
[...]. Paulo era um judeu romano, as duas coisas juntas 5.
4 SAMPLEY, J. Paul. Paulo e a linguagem franca.In: SAMPLEY, J.Paul (org). Paulo no mundo greco-
romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008, p. XIII. 5 Idem, p. XVII.
15
Além disso, outro aspecto importante nesse âmbito cultural e social do apóstolo
Paulo, era a sua formação. Se adentrará mais adiante nos aspectos biográficos deste
personagem, mas por ora salientamos apenas o que Murphy-O‟Connor afirma a respeito
da formação de Paulo sobre a arte da retórica e da oratória:
As habilidades oratórias eram [no tempo de Paulo – mais
especificamente em Tarso, provável local de seu nascimento] a chave
para o progresso em uma cultura essencialmente verbal. A aquisição
dessas habilidades dividia-se em três partes. Técnicas, regras,
fórmulas etc. eram discutidas ad infinitum. À proporção que as
divisões e subdivisões se multiplicavam, a complexidade da teoria
fazia as discussões ficarem cada vez mais irrelevantes. A segunda
etapa era um pouco mais prática na medida em que envolvia o estudo
dos discursos dos grandes mestres de retórica. [...] A última etapa era
a prática da redação de discursos, na maior parte dedicados a temas
mais fantásticos que úteis 6.
Deste modo, após um análise breve sobre o cenário histórico, cultural e social
em que Paulo exerceu seu apostolado, pode-se adentrar agora mais especificamente no
significado e origem do termo grego parresía e quais foram os primeiros usos desse
termo, dos quais tem-se acesso. A respeito disso, há divergências entre alguns
pesquisadores sobre em qual autor aparece pela primeira vez o termo parresía. Foucalt
afirma que esse termo aparece pela primeira vez nos escritos de Eurípedes 7 (487-407
a.C.) 8. Por outro lado, Scarpat, que possui uma obra somente sobre o termo parresía,
afirma que o testemunho mais antigo do vocábulo se encontra nos escritos de
Demócrito9:
La testimonianza più antica del termine potrebbe essere il fr. 226 D.-
K. di Democrito: oich,íon eleuϑepi,hς parrhsi,hn, ci,ndunoς de, h tou/ cairou/ diagnwsiς, „elemento costitutivo della liberta è la parresía,
pericolo ne è la conoscenza del kairós‟ (diagnwsiς è la discretio, tanto
che verrebe la voglia di tradurre: difficile è farne uso discreto,
scegliendo il momento opportuno 10
.
6 MURPHY-O‟CONNOR, Jerome. Paulo, Biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2004, p. 64.
7 Eurípedes, poeta trágico grego, foi um dos grandes expoentes de seu tempo ao escrever várias obras de
tragédia grega. Nasceu em Salamina e morreu no início do século V a.C. na Macedônia. 8 FOUCALT, Michel. O significado da palavra parrhesia. In.: Revista Prometeus, Ano 6, Nº 13, p.3.
Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/view/1550>. ISSN: 2176-5960. 9 Demócrito, nascido em Mileto, foi um filósofo grego e contemporâneo de Sócrates. Escreveu diversas
obras filosóficas tratando sobre a ética, que inclusive foram comentadas por Aristóteles. Morreu no século
IV a.C. 10
SCARPAT, Giuseppe. Parrhesia greca, parrhesia cristiana. Brescia: Paideia, 2001, p. 36.
16
Porém, tratando-se de textos e termos da antiguidade, é sempre difícil precisar
quando esse foi pela primeira vez utilizado e qual era propriamente o seu original
significado. No entanto, visto que Scarpat dedicou todo um livro para apresentar e
comentar a parresía, seja no mundo grego seja no mundo cristão, se adotará a sua tese a
respeito da problemática acerca da primeira vez em que ocorre na literatura o termo
parresía.
Deste modo, não se adentrará mais aprofundadamente no mérito da questão,
senão salientar apenas que o termo surge no mundo greco-romano, mais
especificamente, no período clássico grego e que, de certa forma, era um termo
comumente utilizado neste período. Além do mais, pode-se conferir que, na sua origem,
o termo parresía possuía valor político e matiz polêmica e que
La parresía è la libertà del privato cittadino di dire quanto crede,
come crede, contro chi crede; essa rappresenta una conquista e un
privilegio della democrazia ateniese, essa è un imprescrittibile diritto
del cittadino ed è all‟inizio sinonimo di „cittadinanza piena‟ 11
.
No entanto, há citações acerca deste termo desde o século V a.C., como também
em textos posteriores, indo até o período patrístico, no fim do século IV d.C. Sampley,
quando comenta em um de seus trabalhos acerca das primeiras vezes de que se tem
escritos sobre a parresía, apresenta o que Demétrio 12
afirmava sobre a linguagem
franca:
Demétrio, que era „provavelmente dos últimos tempos do Helenismo
ou do começo da época romana‟, conclui que um orador – e, podemos
igualmente supor, um escritor de cartas – tinha apenas três
alternativas: a adulação, a linguagem figurada (também chamada de
alusão velada ou discurso oblíquo), e a crítica contrária, que podemos
tomar como uma imbricação funcional com parresía, o discurso direto
ou a linguagem franca 13
.
Destarte, analisando as primeiras ocorrências desse termo, Sampley faz uma
consideração sobre as três alternativas da oratória acima citada. Ao comentar Plutarco14
,
11
SCARPAT. Parrhesia greca, parrhesia cristiana, p.35. 12
Demétrio, antigo orador grego, também conhecido como Demétrio de Faleros, viveu provavelmente no
IV século a.C. Entre as inúmeras obras atribuídas a ele, também acredita-se que foi um dos fundadores da
famosa biblioteca de Alexandria. 13
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 255. 14
Plutarco nasceu por volta do ano 47 d. C., na cidade grega de Queroneia, na Beócia. Depois de estudar
filosofia, matemática, medicina e retórica, viajou pela Ásia e pelo Egito, e esteve várias vezes em Roma.
Em 95, de volta à Grécia, faz parte do colégio sacerdotal de Delfos e, já no final da vida, ocupa altos
17
afirma que a adulação é “notoriamente inútil, e mesmo contraproducente em qualquer
circunstância”.
O discurso oblíquo ou indireto – no qual o orador trata de uma questão
ou de um problema delicado, transferindo a discussão para um assunto
análogo a respeito do qual as paixões ainda não se inflamaram e as
posições ainda não se firmaram – era muito comumente e amplamente
[usado] no tempo de Paulo, quando não por outra razão, porque
garantia isenção de retribuição no cenário público e porque era
[considerado] pelos retóricos como poderosamente eficaz, porque
dependia dos ouvintes fazer a auto-aplicação 15
.
Por sua vez, comentando ainda sobre os primeiros usos do termo parresía,
Sampley afirma que, no período do apóstolo Paulo, este instrumento, também chamado
de discurso direto ou franco, “era menos frequentemente empregado na deliberação
pública, mas era certamente parte essencial do modo como as dinâmicas sociais
percorriam todo o seu caminho”, pois “onde havia amizade, a linguagem franca era
crucial para ela se manter” 16
.
Dito isso, vale apresentar aqui a estreita relação que possui a parresía com a
amizade. Sem dúvida alguma, como o termo não possui tradução exata nas línguas neo-
latinas, é sempre um desafio acertar e precisar sua tradução, uma vez que esse pode ser
empregado de diversas formas. Porém, com base em textos do período greco-romano,
não restam dúvidas de que o termo possuía, no tempo de Paulo, uma estreita relação
com a amizade 17
.
Por conseguinte, muitos escritores, por meio de analogias, se referiam à parresía
dando assim um entendimento sobre o seu significado. Filodemo 18
a chamava de “a
mais gentil das picadas” e atesta que parresía é “exercer o ofício de um amigo” 19
e
Plutarco por sua vez a definia “a linguagem da amizade” 20
. “A franqueza [parresía] é o
caráter e a linguagem próprios da amizade, e que, ao contrário, a falta de franqueza
anuncia uma alma baixa ou indiferente” 21
.
cargos municipais em sua cidade natal, onde morre em cerca de 120 d.C. In.: PLUTARCO. Como
distinguir o bajulador do amigo. São Paulo: Scrinium, 1997, p. 9. 15
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 255. 16
Idem, p. 255-256. 17
Cf. Idem, p. 256. 18
Filodemo foi um filósofo e poeta epicurista. Nasceu por volta do ano 110 a.C. Escreveu diversas obras
sobre ética, retórica e poesia. Morreu aproximadamente em 40 a.C. 19
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 256. 20
Ibidem. 21
PLUTARCO. Como distinguir o bajulador do amigo; 1997, p. 18.
18
Um amigo que elogia com facilidade ou mesmo com diligência o bem
do qual é testemunha, pode censurar o mal com a mesma liberdade.
Seguros de sua benevolência, recebemos pacientemente suas
reprimendas; e sua facilidade em elogiar é uma prova de que ele só
censura por necessidade 22
.
Deste modo, unindo os laços entre a parresía e a amizade, podemos averiguar
que a linguagem franca é o que permite a distinção entre um amigo e um adulador, uma
vez que a adulação é completamente contrária à parresía. “Anche la vera amicizia ha
come requisito indispensabile la parresía e il termine dalla sfera politica passa alla sfera
privata” 23
.
Além disso, “os que fazem obra de amizade, ou seja, os que dirigem a outros
uma linguagem franca são muitas vezes apresentados como pessoas que admoestam,
instruem ou fazem apelos a eles” 24
. Sampley também afirma que:
A linguagem franca sempre põe em risco a amizade da qual ela
depende. O que fala francamente deve avaliar bastante o bem desejado
para o amigo a quem se dirige para correr o risco da possível rejeição.
Filodemo reconhece que algumas pessoas aceitam a linguagem franca
com maior disposição que outras. E pergunta: „Por que, em igualdade
de condições, os que são ilustres em recursos e reputação suportam
menos [a linguagem franca]?” 25
.
Neste ponto, além da relação parresía-amizade, é necessário apresentar uma
outra relação da parresía. Trata-se do vínculo que esta possui com a verdade. Portanto,
faze-se aqui uma separação, para uma melhor compreensão etimológica, entre as
relações parresía-amizade e parresía-verdade, porém é mister ressaltar que os três
termos parresía-amizade-verdade estão intrinsecamente interligados.
Uma das interpretações que podem ser utilizadas do termo grego é o de “dizer a
verdade”. Segundo Foucalt, o parresiastes 26
não diz somente o que ele pensa ser a
verdade, senão que ele “diz o que é verdadeiro porque ele sabe o que é verdadeiro; e ele
sabe que isso é verdadeiro porque realmente é verdadeiro. O parresiastes não é apenas
sincero e diz qual é a sua opinião, mas sua opinião é também a verdade” 27
.
22
PLUTARCO. Como distinguir o bajulador do amigo; 1997, p. 15. 23
SCARPAT. Parrhesia greca, parrhesia cristiana, p. 67. 24
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 261. 25
Idem, p. 261. 26
Como Foucalt nesta citação, assumiremos assim este termo para designar uma pessoa que se utiliza da
parresía, uma vez que não possuímos nenhuma tradução correspondente para o nosso idioma. 27
FOUCALT, Michel. O significado da palavra parrhesia. p. 5.
19
Esse ponto é importante, pois é muito fácil confundir parresía com sinceridade28
ou com falar tudo o que se pensa. Absolutamente a parresía se reduz ao simples fato de
falar sem obstrução, já que o que diferencia a parresía de uma simples fala com
sinceridade é a sua estreita ligação com a verdade. O parresiastes fala abertamente,
porém fala a verdade e essa verdade faz parte de sua vida e do seu ethos 29
, como
veremos no próximo tópico.
La verità ha bisogno della parresía e della parresía l‟oratore si serve
per non nascondere cose che i mestatori vorrebbero taciute.[...].
Parlare com parresía non è, quindi, „dire la veritá‟, quanto „dire
francamente‟ la verità, senza paure, senza sottintesi, senza riguardi 30
.
Utilizar-se deste termo, portanto, não é somente um conhecer algo que se pensa
ser verdadeiro e tem-se a liberdade de falar, mas sim ter a certeza intrínseca de que a
verdade precisa ser dita sem impedimentos e sem reservas. “Mas então, você
perguntará, quando é que devemos tomar o tom da franqueza e falar com força? Quando
se trata de reter um amigo que a volúpia, a cólera, a injustiça, a avarice ou qualquer
outra paixão estão prestes a arrastar” 31
.
Por conseguinte, no que diz respeito às relações da parresía com a amizade e
também com a verdade, vemos que o objetivo desse instrumento é o de auxiliar a pessoa
numa autocorreção, numa emenda de comportamento. “[A parresía] é um auxílio
inestimável para conservar alguém no caminho certo e para manter a perspectiva não
apenas sobre ele mesmo, mas também sobre as questões e fatos ao seu redor” 32
. E
Scarpat, ao citar Aristóteles, afirma que “nasconde qualcosa solo chi ha paura, ma il
magnanimo nulla ha a temere e non ha motivo per nascondere il suo pensiero; egli è
sincero e dice tutto ciò che pensa. Egli si contrappone quindi apertamente
all‟adulatore”33
.
28
Significado de sinceridade: “O termo sinceridade/sincero, vem do radical latim “sin (sem) cerus (cera),
fazendo alusão ao teatro antigo, onde os atores para encenar seus personagens usavam máscaras feitas de
cera. Destarte, o termo literalmente quer dizer “sem máscaras”, sem falsidade. 29
“Ethos é um termo abrangente que designa a postura total do indivíduo ou seu caráter: sua marca
distintiva ou identidade essencial, aquelas qualidades morais que são fortemente desenvolvidas e
notavelmente mostradas com uma permanente consistência. Todas as ações e palavras de uma pessoa
contribuem para seu ethos”. Cf. SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 260. 30
SCARPAT. Parrhesia greca, parrhesia Cristiana; 2001, p. 67. 31
PLUTARCO. Como distinguir o bajulador do amigo; 1997, p. 70. 32
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 257. 33
SCARPAT. Parrhesia greca, parrhesia cristiana; 2001, p. 68.
20
Torna-se ainda necessário apresentar uma analogia a respeito da parresía.
Consiste justamente na comparação dessa com a medicina. Esta busca sempre um bom
fim, malgrado seja necessário passar antes, ao ser aplicada e dirigida a uma pessoa, num
momento de dor e de dificuldade.
A linguagem franca é aplicada a problemas, desvios, questões que se
não sofrerem mudança podem levar a uma condição ainda pior de
„saúde‟. Quem fala com franqueza, como um cirurgião, precisa ter
uma visão de desejada mudança e, embora reconheça a dor
intermédia, prevê um tempo posterior à dor, quando o bem-estar é
restaurado e a gratidão se faz presente 34
.
Ainda mais: “la parresía è una medicina, la sua applicazione esige sempre
condizioni precise e interventi tempestivi” 35
. Assim como esta analogia entre a parresía
e a medicina, vista apenas e tão somente pelo lado comparativo, muitas outras
comparações poderiam ser retiradas desse termo, uma vez que a linguagem franca não é
em si mesma, como já citado, um fim, mas busca um objetivo e uma meta final. A
respeito disso, Plutarco afirma:
A franqueza exige muito mais arte por ser, nas mãos da amizade, o
remédio mais eficaz, quando empregado apropriadamente e temperado
sabiamente pela doçura; a cura que ela proporciona, como já disse, é
frequentemente dolorosa. Imitemos, portanto, os cirurgiões, que, após
amputar um membro, não abandonam os doentes aos seus
sofrimentos, mas adoçam a ferida com fomentações. Do mesmo
modo, aqueles que repreendem com habilidade, quando introduzem no
coração o lado mordaz da censura, sabem temperá-la com propostas
doces e consoladoras 36
.
Como percebe-se, no decorrer do texto, mediante as afirmações de oradores e
escritores contemporâneos ou precedentes ao apóstolo Paulo, a parresía sem dúvida
alguma é um instrumento, um meio para se chegar a um fim. Comentando esta
característica e, principalmente, sobre a diversidade de analogias que se poderia fazer
acerca da parresía, Sampley afirma:
A linguagem franca não é em si mesma o objetivo, mas a mudança
desejada sim. Do mesmo modo, são muitas as analogias educacionais
na literatura a respeito da linguagem franca, e com razão, porque a
franqueza pode ser uma ocasião para o indivíduo se beneficiar e
progredir 37
.
34
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 258. 35
SCARPAT. Parrhesia greca, parrhesia Cristiana; 2001, p. 37. 36
PLUTARCO. Como distinguir o bajulador do amigo; 1997, p. 84. 37
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 258.
21
No entanto, para alguns escritores, a parresía se opõe à retórica, pois para esses,
essa basicamente se centralizava no discurso longo e contínuo, enquanto aquela tinha
por características próprias o diálogo através de questões e respostas. Dito de outro
modo, dentro de um longo discurso, de uma obra retórica, em que o orador se preparava
assiduamente, preparando a sua fala por meio de instrumentos retóricos, não era
concebível que esse se utilizasse de parresía, uma vez que seu intuito primeiro era
justamente o de se utilizar de artes linguísticas.
Por contraposto, a parresía não se limitava apenas ao uso de artefatos
linguísticos, mas mediante o discurso ou diálogo, buscava-se apresentar a verdade ao
seu interlocutor. “Essa oposição entre parresía e retórica, que é tão nítida no século IV
a.C. através dos escritos de Platão, irá durar por séculos na tradição filosófica” 38
.
Contudo, pode-se averiguar, ao analisarmos esta possível oposição entre
parresía e retórica, algo de extrema importância. Trata-se da importante dimensão da
mensagem parresiástica, isto é, para que o conteúdo seja autenticamente transmitido é
importante que a mensagem seja, de fato, a parte principal da comunicação, tornando
tanto o remetente como o destinatário uma parte secundária. Todo o esforço em se
utilizar da parresía, seja para transmitir ou para receber, em suma, é feito em vista da
mensagem que é comunicada.
O centro da questão, como pôde-se observar acima, ao se fazer referência à
relação da parresía com a verdade, é a importância da mensagem. Se uma mensagem
não tem tanta importância, não há que se preocupar com o uso da parresía, uma vez que
existem outras formas, até mesmo mais simples, para fazer com que esta chegue até o
destinatário. No entanto, se há uma comunicação a ser feita, e esta necessita de um
extremo cuidado pela sua importância, então, sim, a linguagem franca assume, por sua
vez, um papel de grande relevância na comunicação.
Deste modo, contrapondo-se ou não à retórica, o que podemos concluir é que a
parresía possuía um papel de grande importância no campo linguístico, e que o uso
dessa arte possibilitava ao orador ou escritor atingir seu objetivo. No entanto, é
imprescindível não confundir este uso com algo alternativo, como se somente quando
necessário, então se utilizava desse instrumento. Ela é antes de tudo uma questão mais
profunda e séria, unida ao caráter e ao ethos do orador ou escritor, não consistindo
38
FOUCALT, Michel. O significado da palavra parrhesia. p.10.
22
apenas numa ajuda, mas numa atitude frente ao destinatário. A respeito desta unidade
com o caráter, se discorrerá no tópico subsequente.
1.2 O ethos parresiástico
Além da característica instrumental, técnica, que foi analisada, somada às
ocorrências do termo no mundo greco-romano, no tópico anterior, a parresía possui
ainda outro atributo que é a reação, ou efeito, que essa produz na vida daquele que dela
se utiliza. Melhor compreendendo, o uso retórico da linguagem franca imprime ou, às
vezes, requer previamente um agir coerente com o termo. Uma atitude que corresponda
ao sentido retórico da mesma. Não se trata somente de um mero artefato linguístico,
mas de uma ação primordial do escritor ou orador. É uma questão de caráter ou de
ethos. Trata-se de um agir parresiástico, de um atuar coerente com a parresía.
Como se analisou, etimologicamente, o verbo Parrhsi,asestai (parresiazesthai)
significa dizer tudo – no grego pan (tudo) e rhema (o que é dito), - de modo que aquele
que usa a parresía é alguém que diz tudo e que fala tudo aquilo que tem pensado. Não é
inerente ao parresiastes esconder ou velar algo, mas, ao contrário, é sua característica
própria revelar tudo o que pensa ou sabe por meio de sua fala.
Na parresía, presume-se que o falante dê um relato completo e exato do
que tem em mente, de modo que a audiência seja capaz de compreender
exatamente o que aquele que fala pensa. A palavra parresía então se
refere a um tipo de relação entre o falante e o que ele diz. [...]. E ele faz
isso evitando qualquer tipo de forma retórica que pudesse velar o que
ele pensa. Ao invés disso, o parresiastes usa as palavras e formas de
expressão mais diretas que ele puder encontrar 39
.
No que diz respeito à diferença proposta entre parresía e retórica, vale
apresentar que com a parresía, o orador se utiliza das palavras e das formas de
expressão mais diretas possíveis, enquanto que na retórica o orador é provido de:
Dispositivos técnicos para ajudá-lo a prevalecer sobre as mentes de
sua audiência (independentemente da própria opinião do retórico
concernente ao que ele diz), na parresía, o parresiastes age sobre a
mente das outras pessoas mostrando a elas, tão diretamente quanto
possível, o que ele realmente acredita 40
.
Além disso, há que citar que no âmbito da parresía existe uma concordância
39
FOUCALT, Michel. O significado da palavra parrhesia. p. 4. 40
Ibidem.
23
entre o orador e a fala, ou seja, entre o enunciador e o enunciado. Essa característica é
sublinhada por Searle como “ato de fala” (speech act) e por Austin como “proferimento
performativo” (performative utterance) 41
.
Essa concordância diz respeito ao caráter pragmático da linguagem. “La scienza
che si occupa delle azioni prodotte mediante il linguaggio si chiama pragmatica” 42
.
Deste modo, portanto, a pragmática se encarrega da análise, não somente do termo em
si, como pode ser feita no âmbito da semântica, senão que ela analisa e examina as
consequências que um termo específico, ou de maneira geral, a linguagem, produz não
somente nos ouvintes e receptores, mas também no emissário, além de, analisar qual o
contexto que o enunciado foi proferido e quais as implicações que este mesmo contexto
exerce na compreensão da linguagem utilizada.
Il significato è sempre un significato in una determinata situazione. Il
contesto in cui viene utilizzato quel determinato enunciato è parte del
suo significato. In altre parole, è difficile distinguere, in un
determinato messaggio, ciò che appartiene al senso e ciò che
appartiene invece alle implicazioni soggettive dei comunicanti. Non è
pensabile, cioè, che, in un determinato contesto comunicativo, si
capisca prima ciò che viene detto, e dopo, sulla base di un‟altra serie
di informazioni, ciò che con esso si suggerisce: il senso di un
enunciato è composto da ciò che viene detto e da ciò che viene
suggerito con quanto detto 43
.
Ottaviani, num artigo seu sobre Comblin, o apresentado como um teólogo
contemporâneo e parresiasta, ao citar Foucalt, afirma a importância da pragmática na
interpretação e compreensão da parresía: “a arte da parresía política, seja na
democracia (pela palavra veraz dirigida a muitos), seja na monarquia (pela palavra
veraz dirigida ao príncipe), bem como a necessidade que o pensador tem de colocar em
práticas (tà pragmata) o que se lhe apresentou justo pela reflexão” 44
Destarte, a pragmática enquanto análise do termo e do contexto do mesmo,
proporciona uma melhor compreensão a respeito da parresía. O agir parresiasticamente
ou falar com parresía não somente implica numa ação de interlocução, senão que
ocasiona uma interpretação inclusive do contexto. Esta característica poderá ser vista
41
Cf. FOUCALT, Michel. O significado da palavra parrhesia. p. 4. 42
GRILLI, Massimo; GUIDI, Maurizio; OBARA, Elzbieta M. Comunicazione e pragmatica
nell’esegesi bíblica. GBPress: Roma; San Paolo: Milano, 2016, p. 5. 43
GRILLI, M; GUIDI, M; OBARA, E. Comunicazione e pragmatica nell’esegesi bíblica; 2016, p. 25. 44
OTTAVIANI, Edélcio. José Comblin: um teólogo contemporâneo e parresiasta. In.: Revista
Estudos de Religião, v. 29, jan-jun 2015, p. 194. Disponível em:
<https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/ER/article/viewFile/5273/4842>. ISSN: 2176-
1078.
24
com maior clareza nos tópicos subsequentes, quando serão tratados os aspectos da vida
de Paulo, que proporcionaram a existência da parresía na vida do apóstolo.
Em síntese, com base na citação acima, pode-se averiguar que a relação existente
entre o enunciado e o enunciador é parte integrante do sentido da palavra. Não é
possível fazer uma distinção de significados. No caso, separar a parresía da vida do
orador ou escritor e do contexto em que este vive ou viveu, é limitar, e até mesmo
reduzir, o significado e sentido da ação.
Por outro lado, no mundo greco-romano, como se observou no tópico anterior, a
parresía estava vinculada com o ambiente político. Não obstante esse vínculo, ela não
deixava de exercer uma consequência a nível moral sobre quem dela se utilizasse. Esta
característica moral exerce um papel de grande importância na compreensão do termo.
Assim,
La democrazia aveva garantito a tutti i diritto di parlare in pubblico
nelle assemblee deliberative e la possibilità di dire in privato anche le
cose sgradevoli, ma tale parresía, che aveva bisogno dell‟assoluta
libertà per esecitare i suoi diritti, assurgeva alla dignità di grande virtù
morale solo a patto che si mettesse a servizio della verità. Così il
termine passa ben presto a significare „dire con franchezza, con
coraggio, apertamente, pubblicamente‟ 45
.
Quanto a essa característica da relação entre parresía-ethos, Plutraco afirma que
“a franqueza de linguagem deve ter seriedade e caráter [spoudh.n.....kai h-qoς,
spouden...kai ethos]”46
. Deste modo, observa-se que parresía e o agir com parresía
estão intrinsecamente unidos, pois não é possível usar da parresía sem antes possuir um
agir coerente com o termo. Sob essa luz,
A linguagem franca de todo homem precisa ser respaldada pelo
caráter, mas isto é especificamente verdadeiro no caso dos que
admoestam os outros e tentam levá-los de volta à razão. Um ethos
fraco ou minguado permite pouca ou nenhuma franqueza: Mas o
discurso de um homem frívolo e de caráter (ethos) medíocre, quando
resolve intervir com franqueza, o resultado é apenas que se evoca a
réplica: „queres curar os outros, e tu mesmo estás cheio de feridas!‟ 47
.
Por conseguinte, outra característica que se pode analisar é que não somente o
remetente precisa ter um caráter coerente com a parresía para dela se utilizar, mas
também o destinatário necessita ter um respaldo para receber o que lhe foi dito com
parresía. Diante dessa premissa,
45
SCARPAT. Parrhesia greca, parrhesia Cristiana; 2001, p. 67. 46
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 260. 47
Ibidem.
25
A adulação lida com a emoção, a linguagem franca, com „as
dificuldades de pensar e raciocinar‟. A linguagem franca requer
raciocínio moral; exige do destinatário que empreenda uma
reflexão, deliberação, auto-avaliação reflexiva para decidir entre
continuar na atual direção e mudar. A linguagem franca fornece
o contexto para a auto-avaliação e sugere a auto-correção. A
parresía não força a mudar. Solicita mudança, mas o
destinatário permanece o agente moral e deve sopesar a questão
para decidir qual resposta é apropriada48
.
Destarte, vê-se que embora a parresía, seja por parte do remetente, seja por parte
do destinatário, necessite de um caráter coerente consigo mesma, ela é tão somente um
instrumento, ainda que faça parte intrinsecamente do caráter do parresiastes, pois sem a
disposição de ambas as partes para falar e acolher com parresía a verdade que é dita, ela
pode não obter sua função. Não obstante a isso, nunca o parresiastes pode se abster de
utilizar da parresía por medo ou receio de ser aceito ou não.
A linguagem franca será contraproducente se seu autor parece
interessado na sua reputação ou se ele aparenta servir a fins egoístas.
[...]. Assim, é dever do amigo aceitar o ódio que provém da
admoestação dada quando assuntos de importância e de grande
interesse estão em jogo 49
.
Todas essas características concernentes à parresía citadas nos tópicos
anteriores, podem estar presentes com clareza num personagem do começo da era cristã:
Paulo de Tarso. Portanto, se buscará, no ponto seguinte, apresentar uma breve biografia
deste apóstolo de Cristo, e analisar posteriormente alguns de seus escritos, os quais
possibilitam visualizar o caráter parresiástico que possuía este grande apóstolo dos
gentios.
1.3 Paulo: O Apóstolo Parresiástico
Uma das figuras que, no decorrer dos tempos, foi e continua sendo ainda nos dias de
hoje um objeto de constante pesquisa, sem dúvida alguma é o apóstolo Paulo. Muitos
pesquisadores estudaram e dissertaram a respeito de suas cartas e de sua vida. O acervo
que esse apóstolo deixou através de suas epístolas destinadas às primeiras comunidades
cristãs, permitiu aos estudiosos, no decorrer dos séculos, conhecer e descobrir muitas
características acerca do cristianismo nascente. Sem contar as propriedades de sua vida
e de seus atos que proporcionaram uma melhor compreensão sobre a atitude
48
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 261. 49
Ibidem.
26
evangelizadora dos primeiros apóstolos. Em suma, todos os atributos do Apóstolo dos
gentios, ao menos os que chegaram até os nossos dias, são fontes de grande
conhecimento para a história do cristianismo.
Deste modo, embora seja ampla a gama de trabalhos que foram realizados sobre
esse personagem, se adentrará, no tópico subsequente, numa “viagem biográfica” acerca
da pessoa de Paulo, vendo em seus escritos, em sua obra evangelizadora e nos
comentários que se seguiram a partir de seu trabalho missionário, quais foram os
aspectos mais importantes de seu ofício e quais as características de sua missão. E, no
que se refere ao tema desta pesquisa, se abordará quais as características de sua pessoa
em que é possível vislumbrar um caráter parresiástico, o que permitirá confirmar, em se
tratando de uma pessoa historicamente reconhecida, as características que foram
tratadas a respeito da parresía.
Ademais, torna-se necessário reforçar que o presente tópico não tem a pretensão
de esgotar todo o argumento sobre a biografia de Paulo, algo que, certamente seria
impossível. Porém, se buscará, em alguns poucos pontos, apresentar os principais
argumentos da vida de Paulo e de sua obra.
1.3.1 Paulo de Tarso?
Duas são as principais fontes para os estudos sobre Paulo. Uma é o livro dos Atos
dos Apóstolos e a outra são as cartas a ele atribuídas. Deve-se sublinhar ainda que,
desde os primórdios do cristianismo, muito se escreveu sobre Paulo, sendo ele, até os
tempos hodiernos, muito estudado e pesquisado por vários autores. Embora seja vasta a
bibliografia a respeito desse personagem, sempre é um desafio precisar a sua biografia,
uma vez que as fontes primárias que possuímos são duas e, em muitos aspectos,
divergem entre si. Pode-se afirmar que existe o Paulo “lucano”, descrito no livro dos
Atos dos Apóstolos, e o Paulo, autodescrito nas suas cartas:
Porém, entre os personagens da Antiguidade, Paulo não é daqueles
que tornam mais ingrato o trabalho do biógrafo; possuímos uma série
de seus escritos indubitavelmente autênticos; possuímos uma obra, os
Atos dos Apóstolos, que fala constantemente dele; através dos escritos,
defrontamo-nos com toda a documentação de uma época da história
antiga bastante conhecida: o Mediterrâneo durante o séc. I d. C. 50
.
50
BOSCH, Jordi Sánchez. Nascido a tempo: Vida de Paulo, o apóstolo. São Paulo: Ave Maria, 1997,
p.5.
27
Contudo, é sempre difícil, exegeticamente, precisar certos eventos,
principalmente no que se refere às datações e aos locais em que ocorreram. Assim, para
discorrer o presente tópico, não apenas se faz referências aos dois conjuntos de livros
bíblicos citados, mas, serão utilizados autores que produziram grandes biografias a
respeito do apóstolo.
O primeiro problema que surge, ao estudarmos um personagem, é conhecer a
datação de seu nascimento e de sua morte. E isso, já de antemão, é uma problemática,
pois em se tratando da figura de Paulo não é possível afirmá-las com exatidão. Apenas é
possível, com base e aproximações a acontecimentos de sua vida e de suas obras, supor
algumas datas: “Se [...] a carta a Filêmon foi escrita em 53 d.C., Paulo teria, então uns
60 anos, o que poria sua data de nascimento nos últimos anos da era pré-cristã. Em
outras palavras, ele teria nascido mais ou menos na mesma época que Cristo” 51
. No
entanto, entre os estudiosos de Paulo, há muitas divergências a respeito disso. Outra
questão debatida, entre seus biógrafos, é o seu local de nascimento, como afirma
Murphy-O‟Connor:
Paulo não nos diz onde nasceu, mas alguns textos contêm uma
indicação importante: „Pois eu mesmo sou israelita, da descendência
de Abraão, da tribo de Benjamin‟ (Rm 11,1); „circunciso no oitavo
dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu, filho de hebreus‟
(Fl 3,5). Essa preocupação de afirmar sua credenciais judaicas revela o
expatriado, isto é, um judeu que vivia na diáspora. [...]. Em que parte
da diáspora? As cartas dão apenas uma pequena pista. Depois da
primeira visita a Jerusalém como cristão, Paulo vai „para as regiões da
Síria e da Cilícia‟ (Gl 1,21). [...] Tais considerações tendem a
confirmar a informação de Lucas de que Paulo veio de Tarso (At
9,11.30; 11,25; 21,29; 22,3), que era a capital da Cilícia. Além disso,
Lucas não teria interesse em inventar para Paulo uma origem na
diáspora 52
.
Destarte, uma característica essencial deste tópico é a importância da cidade de
Tarso53
, que era uma cidade helênica, portuária e de grande estima na região do
Mediterrâneo. Estava localizada na então chamada Cilícia, uma região da Ásia Menor,
hoje situada dentro do território da Turquia 54
. Além do mais, essa cidade não era
51
MURPHY-O‟CONNOR, Jerome. Paulo, Biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20. 52
Idem, p. 47. 53
“A cidade era capital administrativa da região e em 51 a.C. teve como Procônsul nada menos que
Marco Túlio Cícero, enquanto dez anos mais tarde, em 41, Tarso fora o lugar do primeiro encontro entre
Marco Antônio e Cleópatra”: BENTO XVI, Catequeses Paulinas. Campinas: Ecclesiae, 2012, p. 18. 54
“[Tarso] fece parte della provincia romana di Siria fino a quando, sotto Adriano, la Cilicia fu costituita
in provincia a sé stante com capitale Tarso. È in quest‟epoca che la città ebbe il suo massimo splendore.
La sua prosperità era dovuta sia alla fertilità della pianura circostante e all‟industria della filatura del lino,
nonché della tessitura della tela per le tende, sia al fatto di trovarsi al centro di uma meravigliosa rete
stradale, che la collegava con le capitali delle sei provincie vicine”. PADOVESE, Luigi; GRANELLA,
28
significativa apenas pela localização geográfica, ou por sua importância comercial,
senão que pela considerável presença do helenismo. Havia ali uma grande possibilidade
de estudos da cultura grega, principalmente na arte da retórica e da oratória 55
, como
observa Bosch:
Parece que Paulo nasceu em Tarso da Cilícia, por mais que ele evite
dizê-lo nas cartas. Sabemos por meio de Lucas (At 21,29; 22,3) e não
nos lembramos de que autor algum o tenha negado. A cidade
helenística de Tarso era um dos portos mais importantes do
Mediterrâneo, com liberdade, imunidade e direito de cidadania
concedidos por Marco Antônio e confirmados por Augusto. Era um
lugar muito aberto para as civilizações grega e romana, muito
cosmopolita, conhecido como centro de cultura, filosofia e ensino.
Assim como nas escolas de Atenas e de Alexandria, a maioria dos
estudantes era estrangeira, em Tarso, a maior parte era da mesma
província da Cilícia. Isso dá a ideia do nível cultural da população 56
.
Como se verificou, na citação acima, a cidade de Tarso proporcionava aos seus
habitantes a possibilidade de um enorme enriquecimento cultural, não apenas no âmbito
acadêmico, mas também no âmbito sócio-político, uma vez que muitos de seus cidadãos
podiam adquirir a cidadania romana, fato que outorgava grandes vantagens para seus
proprietários. Esse fato se pode averiguar em Paulo, quando o mesmo recorre ao
privilégio de sua cidadania, para não ser julgado por qualquer um, todavia pelo
imperador romano (cf. At 25,10-12).
Além disso, conquanto Paulo tenha vivido em Tarso, há ainda outra
característica de sua vida que lhe concede particular estima. Embora possua uma vasta
gama cultural e social, seja judeu da diáspora, praticante da Lei mosaica e com direito à
cidadania romana, destaca-se o fato da presença de Paulo em Jerusalém. Alguns
historiadores defendem o fato de Paulo também ter estudado em Jerusalém (cf. At 22,3).
Esse dado da vida de Paulo, como vários outros, apresenta algumas críticas, com
certezas e dúvidas:
Oriano. Guida alla Turchia, i luoghi di San Paolo e delle origini cristiane. Milano: Paoline, 2008, p.
545. 55
“Al tempo del Nuovo Testamento Tarso era pure nota come um intenso centro culturale, ove fiorivano
soprattutto le scuole di filosofia e di retorica, tra i suoi cittadini famosi poteva annoverare i filosofi stoici
Atenodoro e Nestore. La città, però, dal punto di vista della cultura era ancora profondamente orientale
nelle sue forme di vita, nei suoi culti e nei costumi, sebbene sul piano dell‟organizzazione civile apparisse
come una città ellenistica. Aveva infatti una popolazione estremamente cosmopolitica, in cui gli elementi
propriamente anatolici convivevano con altri di origine graça, romana, orientale in genere giudaica”.
PADOVESE; GRANELLA. Guida alla Turchia, i luoghi di San Paolo e delle origini Cristiane; 2008,
p. 546. 56
BOSCH, Jordi Sánchez. Escritos Paulinos. Col. Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 7. São Paulo: Ave
Maria, 2002, p.21-22.
29
A exegese crítica tem a tendência de dar valor extremo a Gl 1,22: “Eu
era ainda pessoalmente desconhecido das comunidades cristãs da
Judeia...”. Há quem diga, baseando-se nesse texto, que Paulo não teve
qualquer contato com Jerusalém, nem antes, nem depois de sua
conversão. Segundo At 22,3s, a biografia de Paulo ficaria muito
simplificada, mas por outro extremo: Paulo teria feito os estudos
primários e superiores [...] em Jerusalém, “aos pés” do mais célebre
rabino da época, Gamaliel 57
.
A esse respeito, Murphy-O‟Connor é bastante explícito. O autor afirma com
clareza que Paulo, como todo judeu da diáspora naquela época, tinha ao menos o desejo
de não somente conhecer, mas também estudar em Jerusalém, uma vez que essa cidade
era o centro de toda a religião judaica e, por conseguinte, era também o local onde se
reuniam os grandes rabinos que, em torno dos estudos da Torá, agrupavam grande
número de discípulos que buscavam aprofundar seu conhecimento a respeito da religião.
Sob esse aspecto, destaca-se que
Como judeu, [em Tarso] Paulo tinha possibilidades limitadas de
progresso. A alternativa era mergulhar no estudo de sua tradição
judaica [...]. É fácil imaginar o jovem entusiasmado com uma
educação grega, vindo de uma família romanizada, desejoso de
descobrir por si mesmo o berço de sua religião. Como o estudo de
retórica não costumava durar mais de quatro anos, a linha de
raciocínio acima sugere que Paulo partiu para Jerusalém mais ou
menos aos 20 anos, isto é, por volta de 15 d. C.. Como sua conversão
deve ser datada de 33 d.C., isso significa que ele morou em Jerusalém
mais de quinze anos antes de se tornar cristão 58
.
Sendo assim, neste texto, adota-se a hipótese de que Paulo, judeu da diáspora,
habitante de Tarso, cidadão romano, estudou e se formou dentro da cultura grega
presente em sua cidade natal e que, posteriormente, continuou seus estudos em
Jerusalém, a fim de se aprofundar nas tradições de sua religião. Por conseguinte, com os
dados acima citados, pode-se já, de antemão, averiguar que, no que diz respeito à
formação humana e intelectual, Paulo teve relevantes oportunidades, o lhe permitiu
obter o êxito seja no campo cognitivo, seja no âmbito da relação com as pessoas. Essas
características e atributos podem ser conferidos nas suas cartas.
1.3.2 Paulo: um fariseu
Como se pôde observar, Paulo, no auge de sua juventude, teria partido para
Jerusalém, centro da religião judaica, para estudar e se aprofundar ainda mais nas
tradições de seus antepassados. Ele mesmo, ao se apresentar em suas cartas, se descreve
57
BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p. 23. 58
MURPHY-O‟CONNOR. Paulo, Biografia crítica; 2000, p. 67.
30
como um fariseu 59
: “Circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de
Benjamim, hebreu filho de hebreus; quanto à Lei, fariseu;” (Fl 3,5). A esse respeito,
constata-se que:
Se Paulo se juntou a um grupo farisaico, e não há razão para duvidar
de sua palavra (Fl 3,5), essa deve ter sido uma decisão pessoal depois
de sua chegada a Jerusalém. Além disso, se Paulo chegou a Jerusalém
por volta de 15 d.C., sua estada na cidade coincidiu com a de Gamaliel
I, e é extremamente improvável que Paulo ou qualquer outro fariseu
escapasse de sua influência 60
.
Essa participação e formação dentro das tradições farisaicas, imprimiu uma série
de características em Paulo e, talvez, a principal delas seja o conhecimento sem igual da
Torá e das tradições e costumes judaicos. A partir de suas cartas, observa-se que Paulo
possuía uma enorme compreensão da tradição mosaica e conhecia muito bem os
costumes da religião dos judeus. Por conseguinte, a devoção aos estudos era um
elemento fundamental dos costumes dos fariseus 61
. Paulo afirma na carta aos Gálatas:
“[Eu] progredia no judaísmo mais do que muitos compatriotas da minha idade,
distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas” (1,14). “O tom combativo e o espírito
competidor são igualmente característicos de grupos de elite. Paulo se orgulhava de
pertencer a essa minoria” 62
.
Assim, analisa-se a importância dessa característica em sua vida. Após o
encontro com o Ressuscitado, como já se sabe, o Apóstolo dos gentios, não hesita em
ressaltar a sua formação. Isso denota que para ele e para a missão que posteriormente
adquire, ser judeu e, mais ainda, fariseu, isto é, ter um amplo conhecimento da Lei e dos
costumes dos judeus, era de suma importância 63
. Isso se dá, pois na sua ação
evangelizadora, Paulo, em diversos momentos terá que se confrontar com alguns
radicalismos judaizantes que impedem aos gentios de viver mais perfeitamente a nova
59
Fariseus era o nome dado aos que pertenciam a um grupo de judeus religiosos que buscavam a vivência
e a observância estrita da Lei mosaica, dos costumes judeus, das tradições orais e escritas. Estima-se que
esse grupo tenha surgido no séc. II a.C.. cf. JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. In.: Seleções de
Flávio Josefo. São Paulo: Edameris, 1974, p.202. 60
MURPHY-O‟CONNOR. Paulo, Biografia crítica; 2000, p. 73. 61
Cf. Idem, p.74. 62
Idem, p. 75. 63
Após a conversão, Paulo “continua, no entanto, a pensar e a raciocinar como um judeu. O seu
pensamento permanece claramente impregnado de ideias judaicas. Nos seus escritos não se encontram
somente, como vimos acima, contínuas referências ao Antigo Testamento, mas também muitos traços de
tradições judaicas. Além disso, Paulo utiliza frequentemente técnicas rabínicas de exegese de
argumentação”. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na
Bíblia Cristã. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 221.
31
vida proporcionada pelo encontro com Jesus Cristo. “Tendo de enfrentar uma oposição
obstinada da parte de muitos dos seus „parentes segundo a carne‟, Paulo em algumas
ocasiões havia expressado vigorosas reações de defesa” 64
.
1.3.3 A conversão: de perseguidor a seguidor
Três são os relatos sobre o chamado de Paulo em Atos (At 9,1-9; 22,3-21; 26,13-
18). Ele próprio, por sua vez, relata algumas poucas vezes (cf. Gl 1,11-24; 1Cor 9,1;
15,8 ), e essas de maneira bastante discretas, o acontecimento central de sua vida 65
.
Trata-se do encontro que Paulo teve com o Ressuscitado, por meio de uma luz, a
caminho de Damasco, quando se dirigia a essa cidade com a autorização para prender os
seguidores de Cristo.
Bento XVI, em uma de suas catequeses sobre Paulo, pronunciada no decorrer do
ano Paulino (2008), afirma que à primeira vista, é possível ater-se a alguns fatos desta
narrativa. No entanto, por detrás dos elementos redacionais, encontra-se o núcleo deste
acontecimento na vida do apóstolo:
O leitor [...] é talvez tentado a deter-se demasiado nalguns
pormenores, como a luz do céu, a queda por terra, a voz que chama, a
nova condição de cegueira, a cura e a perda da vista e o jejum. Mas
todos estes pormenores se referem ao centro do acontecimento: Cristo
ressuscitado mostra-se como uma luz maravilhosa e fala a Saulo,
transforma o seu pensamento e a sua própria vida. O esplendor do
Ressuscitado torna-o cego: assim vê-se também exteriormente o que
era a sua realidade interior, a sua cegueira em relação à verdade, à luz
que é Cristo. E depois o seu “sim” definitivo a Cristo no batismo volta
a abrir os seus olhos, faz com que ele realmente veja 66
.
A perseguição que ele exercia contra os cristãos fundamentava-se, como ele
mesmo atesta, devido ao zelo “pelas tradições dos pais”, fruto de seus estudos em
Jerusalém, “dentro de uma conduta „no judaísmo‟, isto é, levada pela preocupação de
manter a identidade judaica. Essa preocupação tinha de ser levada necessariamente a
insistir naqueles detalhes da lei mais difíceis de serem cumpridos em ambiente pagão”
67.
64
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã;
2002, p. 224. 65
A importância deste evento se dá na quantidade de vezes que tanto Lucas, nos Atos dos Apóstolos,
como o próprio Paulo, narram o mesmo acontecimento. Cf. BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p. 21. 66
BENTO XVI. Catequeses paulinas; 2012, p. 26. 67
BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p. 20.
32
Ninguém chega ao extremo de afirmar que Paulo teve uma conversão
“normal”, em virtude da qual ficou colocado no lugar que lhe
correspondia pela data (quando tantos haviam conhecido Jesus) e no
lugar (Damasco) de sua conversão. Patenteia-se o fato que, em virtude
do acontecimento de Damasco, Paulo irá sentir-se investido de uma
autoridade que o colocará à altura dos grandes apóstolos (cf. 1Cor
15,8-10; Gl 1,18; 2,11.14), com o máximo poder sobre os seus fiéis
(cf. 1Cor 4,15.19.21; 2Cor 10,4-6.8; 13,10). De um modo ou de outro,
os autores reconhecerão que Paulo chegou a ser apóstolo “por via
carismática” 68
.
Deste modo, com o acontecimento da conversão, em que Paulo passa de
perseguidor da Igreja de Cristo e dos cristãos, a um corajoso discípulo de Jesus, pode-se
conferir que suas propriedades humanas, culturais e sociais adquirem um novo
significado. Este, superior às outras características de seu caráter, proporcionará a Paulo
uma enorme capacidade frente à missão que lhe foi confiada.
Antes da sua conversão, Paulo era um perseguidor obstinado (cf. At
8,3; Gl 1,13); mais tarde, ele passa de perseguidor a perseguido: já em
Damasco “os judeus confabularam para matá-lo” (At 9,23); e o
mesmo ocorrerá em Jerusalém (cf. At 9,29). Mesmo assim Paulo
continua a anunciar o Cristo “nas sinagogas dos judeus” (At 13,5;
14,1), levando à fé “um grande número de judeus e gregos” (At 14,1),
mas esse sucesso provoca as reações hostis dos “judeus que se
negaram a acreditar” (At 14,2). O mesmo fenômeno repete-se
frequentemente, com muitas variantes, até a prisão de Paulo em
Jerusalém provocada pelos “judeus da província da Ásia” (At 21,27).
Apesar disso, Paulo proclama com orgulho: “Eu sou judeu” (At 22,3).
Sofre a hostilidade da parte dos judeus, sem todavia ser hostil com
eles 69
.
Ademais, o evento da conversão permeará toda e qualquer função que doravante
Paulo empreenda. “O que é certo é que ali [em Damasco] aconteceu uma mudança,
aliás, uma inversão de perspectiva. Então ele, inesperadamente, começou a considerar
„perda‟ e „esterco‟ tudo o que antes constituía para ele o máximo ideal, quase a razão da
sua existência” 70
. E essa inversão de valores não se deu por meio de uma mudança de
pensamento, de raciocínio ou de uma reflexão, mas se deu por meio de um encontro. É
o encontro de Paulo com o Ressuscitado que faz com que sua vida e sua missão
adquiram novo rumo e novo sentido.
Portanto, é mister avaliar que esse fato adquiriu tamanha importância na vida do
apóstolo, que se tornou como um “facho de luz” e que deu sentido a toda sua obra.
Pode-se dizer, sem hesitação, que há um Paulo antes e outro após a conversão. Isso não
68
BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p.21. 69
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã;
2002, p. 205-206. 70
BENTO XVI. Catequeses Paulinas; 2012, p. 25.
33
significa, entretanto, que o “novo Paulo” tenha desconsiderado totalmente as
capacidades adquiridas anteriormente, mas este se utilizará, a partir do ocorrido, de suas
aptidões antes apreendidas. Porém agora numa nova dinâmica, isto é, na dinâmica do
Evangelho de Jesus Cristo. Ainda que tenha que sofrer por conta de sua nova vida,
Paulo não titubeará frente a sua missão e que, malgrado as adversidades, conservará
uma posição firme, conforme verifica-se:
Depois de sua conversão e durante todas as suas viagens missionárias,
será ele – como vimos- a sofrer a perseguição da parte daqueles que são
de sua própria estirpe, provocada pelo êxito de sua pregação universalista.
Isso fica particularmente evidente logo depois de sua prisão em
Jerusalém. Quando ele toma a palavra “em língua hebraica”, “a multidão
do povo” (At 21,36) primeiro o escuta com calma (cf. At 22,2), mas
quando ele evoca o seu envio “às nações”, agita-se terrivelmente contra
ele e pede a sua morte (cf. At 22,21-22) 71
.
1.3.4 Um verdadeiro parresiastes
Como se viu nos tópicos anteriores, tanto nos concernentes à pessoa de Paulo,
como nos que fazem referências às características da parresía, se pôde conferir que essa
era um instrumento da retórica e, por sua vez, muito utilizado na elaboração de um
discurso. Após sua conversão, como se sabe, Paulo será um grande fundador de diversas
comunidades cristãs, mas também acompanhará algumas que não foram por ele
fundadas, sendo considerado o apóstolo que evangelizou muitos cristãos, fazendo-os
conhecer o Evangelho de Cristo.
Desta sua obra missionária, surgiram as cartas que, após sua presença nas
cidades por onde passou, tornaram-se uma forma que o apóstolo se utilizou para
continuar sua missão, anunciando o Evangelho de Cristo. Deste modo, essas missivas,
que são a priori a principal fonte para estudar e conhecer Paulo e sua missão, se
tornaram um dos principais meios de evangelização do apóstolo. Sob essa luz,
Descobre-se nelas, [nas cartas], uma personalidade muito definida,
não tirada de nenhum livro, alguns destinatários e alguns
acontecimentos que não têm nada de comum (não procurados devido
ao prestígio de que gozem ou devido à sua celebridade) e uma vontade
de dizer àqueles destinatários exatamente aquilo que diz a carta 72
.
71
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã;
2002, p., 212. 72
BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p. 14.
34
Nessas epístolas, ao se reportar às suas comunidades, como também nos Atos
dos Apóstolos, que narram alguns eventos da vida de Paulo, se pode conhecer não
somente a obra missionária de Paulo, mas dentro das características biográficas que
nessas obras se encontram, é possível também perceber um caráter muito original, uma
pessoa valente que, diante de muitos problemas e adversidades, soube se posicionar
com muita coragem. Não obstante, Paulo conheça bem o judaísmo, no qual nasceu e se
educou, e também o cristianismo que, após sua conversão, passa a conhecer cada vez
mais, ele agirá sem receios, defendendo sua nova vida, sempre haurindo forças daquele
encontro que ocasionou sua mudança. Assim pode-se afirmar que:
Há uma confiança geral na sinceridade de Paulo. A coincidência entre
os estudiosos vai mais além: (bem como entre os fiéis e entre os
indiferentes) Paulo não suscita somente entusiasmo, mas também
antipatia. Isso predispõe a encontrar-lhe defeitos (talvez mais do que os
que tinha). Mas dá maior valor ao fato de que usualmente o apóstolo
não é acusado de mentiroso, nem sequer pelos mais críticos 73
.
Nessa valentia frente às adversidades e confrontos que teve que assumir com os
da sua raça, e também defronte às dificuldades que teve que embater com os cristãos por
ele evangelizados, se verifica, em Paulo, a presença de um caráter parresiástico. O
apóstolo, diante de todas essas situações, se portava sempre com parresía, seja para
enfrentar sem medo os problemas que lhe eram externos, ou ainda para confrontar,
exortar e animar as comunidades seguidoras de Cristo.
Portanto, neste tópico, busca-se analisar essa característica parresiástica do
apóstolo Paulo. Citando alguns fatos biográficos de suas cartas e de Atos dos Apóstolos,
observa-se como ele, se apropriando e bem utilizando de tudo aquilo que tinha recebido,
soube usar com muita sensatez esse atributo, não só outrora recebido nas aulas de
retórica assistidas em Tarso, mas também uma propriedade inerente ao seu caráter,
levado a uma nova direção, após o encontro com o Ressuscitado.
O substantivo parresía aparece 31 vezes no Novo Testamento 74
, das quais 5
vezes ocorrem nos Atos dos Apóstolos e 8 nas cartas de Paulo, ou a ele atribuídas. As
73
BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p.14. 74
“En textos judíos parrhsi,a (12 vezes en la LXX; el verbo parrhsia,zomai 5 veces) adquiere un
significado nuevo y singular (cf. especialmente van Unnik): Así como Dios saca de la servidumbre a los
libertados, que salen <<con libertad y con la cabeza alta>> (h]gagon u]maς / meta. parrhsi,aς, Lev 26,13), así
también la persona justa y aceptada por Dios tiene <<libertad, confianza y gozosa seguridad>> (cf. Job
22,26: parrhsiasqe,sh e]nanti kuri,ou anable,yaς eiς to.n ourano,n ilarw/ς; en sentido escatológico em
Sab 5,1), pero no así el ímpio (Job 27,10; Prov 13,5). Dios mismo se manifiesta abiertamente en la
palabra y en el juicio [...], y hace justicia al despreciado, de tal modo que éste puede invocarle con
confianza, y al mismo tiempo Dios refrena al malvado. Por tanto, la parrhsi,a del piadoso tiene su origen
en la parrhsi,a de Dios [...], y se muestra como la verdadera audacia y valentía del sabio y de los amigos
35
outras 18 ocorrências encontram-se nos evangelhos (tanto sinóticos como joanino), na
primeira carta de João e na carta aos Hebreus. Já o verbo, que no Novo Testamento
consta 9 vezes, 7 estão presentes nos Atos dos Apóstolos e 2 nas cartas aos
Tessalonicenses e aos Efésios (1Ts 2,2; Ef 6,20). Confere-se, portanto, uma presença
significante deste termo nos escritos do Novo Testamento e, mais ainda, no que se
refere ao apóstolo Paulo.
No livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo aparece pela primeira vez no relato da
morte de Estevão (cf. 7,58). O autor do livro, antes de começar a construção do
personagem Paulo, apresenta algumas carcterísticas da vida do Apóstolo antes do seu
encontro com o Ressuscitado. Nesta breve introdução, presente no capítulo 8, o autor
mostra como Paulo “devastava a Igreja: entrando pelas casas, [arrancando] homens e
mulheres e [metendo-os] na prisão” (8,3).
Em At 9,19-22 Paulo, logo após seu chamado-conversão, anuncia nas sinagogas
de Damasco, proclamando que Jesus é o Filho de Deus. Logo em seguida, Barnabé leva
Paulo consigo a Jerusalém e manifesta aos apóstolos a conversão de Paulo e como ele
havia anunciado em Damasco: “...contou-lhes como, no caminho, Saulo vira o Senhor,
o qual lhe dirigiu a palavra; e com que intrepidez (parresía), em Damasco, falara no
nome de Jesus. Daí por diante, ia e vinha entre eles, em Jerusalém, falando com
intrepidez (parresía) no nome do Senhor” (At 9,27-28).
Na citação anterior, é possível observar como o autor pretendeu colocar logo
após a conversão de Paulo esse acontecimento da pregação em Damasco. Isso mostra
como o encontro com o Ressuscitado provocou em Paulo uma atitude incondicional e
imediata frente ao anúncio do Evangelho. Tal observação torna nítida a intenção do
autor do livro dos Atos dos Apóstolos em propor que o discipulado de Cristo, como se
observa no caso de Paulo, é urgente, ou seja, impele aquele que se encontrou com Cristo
a não permanecer no simples conforto de sua vida, mas passar subitamente ao
primordial da vida cristã, isto é, o amor ao próximo, realizado primeiramente pelo do
anúncio do Evangelho.
Na sinagoga de Antioquia da Pisídia, Paulo prega diante dos judeus. Naquela
pregação, apresenta-lhes a história da salvação que Deus realizou com o povo de Israel.
Narra como essa história se cumpriu em Jesus, pois “conforme a promessa, Deus fez
surgir a Israel um Salvador, que é Jesus” (At 13,23). Os judeus sentem inveja de Paulo e
de Dios”. BALZ, Horst. Παρρησία. In: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. Vol. II.
Salamanca: Síguime, 2012, p. 804.
36
Barnabé, porém estes, a partir desse momento, tomam uma decisão, com parresía, que
mudará o destino de sua missão: “Com toda a intrepidez (parresía), porém, Paulo e
Barnabé disseram: „Era preciso que a vós primeiro fosse dirigida a palavra de Deus.
Uma vez, porém, que a rejeitais e julgais a vós mesmos indignos da vida eterna, nós nos
voltamos para os gentios” (At 13,46).
Vê-se, portanto, que neste confronto com os judeus, Paulo não hesita
primeiramente em anunciar que todas as promessas e profecias do Antigo Testamento se
cumpriram em Jesus e, ademais, frente à algumas oposições, anuncia-lhes com
franqueza que rejeitaram a palavra de Deus e recusaram a vida eterna. Essa atitude
acarreta-lhes uma consequência, que como se pôde ver nos tópicos anteriores, é uma das
consequências ao se utilizar da parresía: a rejeição. “Mas os judeus instigaram as
mulheres religiosas de mais prestígios, bem como os principais da cidade, e moveram
perseguição contra Paulo e Barnabé, expulsando-os de seu território” (At 13,50). Diante
desta primeira rejeição e perseguição, em que o apóstolo se utiliza da parresía, nota-se
uma consequência que é fruto de seu encontro com Jesus Cristo: “Quanto aos
discípulos, achavam-se repletos de alegria e do Espírito Santo” (At 13,52).
Não obstante tenham sido rejeitados e perseguidos, se encontram com alegria e
repletos do Espírito, pois o conteúdo da mensagem que anunciaram não era
fundamentado na sua própria pessoa, mas na pessoa de Jesus Cristo. Assim sendo, a
franqueza, a parresía que encontram nesse anúncio brota da força do Evangelho de
Cristo. “El Espíritu del Exaltado mismo es el que confiere autoridad a sua douloi [...]
para que hagan una proclamación franca e intrépida del evangelio” 75
. A respeito desta
relação entre parresía e Espírito, se verá com mais detalhes no terceiro capítulo.
Na cidade de Icônio, segundo At 14,1-7, os apóstolos Paulo e Barnabé, ao
anunciar aos gregos, vivem uma experiência semelhante de rejeição e perseguição com
aquela sofrida em Antioquia da Pisídia. Nessa cidade, forma-se uma conjuração de
judeus e gentios para ultrajar e apedrejar Paulo e Barnabé, no entanto, eles se
encontravam “cheios de intrepidez no Senhor, que dava testemunho à palavra da sua
graça e concedia que se realizassem sinais e prodígios por meio de suas mãos” (At
14,3).
No livro dos Atos dos Apóstolos são esses alguns fatos que manifestam a
parresía como uma característica paulina, porém, muitos outros podem ser citados, que
75
BALZ, Horst. Παρρησία. In: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento; 2012, p. 807.
37
manifestam a força e a coragem com que o apóstolo anunciava o Evangelho de Cristo.
No areópago de Atenas (cf. At 17,22-24) Paulo é zombado por falar da ressurreição dos
mortos; em Corinto, é entregue à justiça (cf. At 18,12-17); e é nessa cidade que o
Senhor lhe aparece numa visão noturna e o encoraja: “Não temas. Continua a falar e não
te cales. Eu estou contigo” (cf. At 18,9-10). Em Éfeso, diante do motim que se cria com
os ourives da cidade, Paulo se porta com coragem frente a este tumulto (cf. At 20,1).
Tudo isso sem mencionar as vicissitudes externas que Paulo enfrenta na sua
missão, como naufrágios, picadas de serpentes, prisões, açoites e apedrejamentos.
Nesses acontecimentos, observa-se um caráter corajoso de Paulo, que não se deixa levar
pelos obstáculos que lhe aparecem na evangelização, mas continua a exercer seu
apostolado com toda ousadia. O livro dos Atos dos Apóstolos conclui-se com a menção
da estadia de Paulo em Roma, cidade na qual, segundo a tradição, foi martirizado. Nesta
narrativa destaca-se que ele continuava a anunciar o Reino de Deus com toda a
parresía: “Paulo ficou dois anos inteiros na moradia que havia alugado. Recebia todos
aqueles que vinham visitá-lo, proclamando o Reino de Deus e ensinando o que se refere
ao Senhor Jesus Cristo com toda a intrepidez (parresía) e sem impedimento” (At
28,31).
Por outro lado, é muito claro, ao se ler as cartas de Paulo, como ele, se utiliza da
força e da coragem de anunciar o Evangelho, busca exortar as suas comunidades,
sempre à luz da boa nova de Cristo, a viverem de acordo com a Palavra que lhes fora
anunciada. Para tanto, Paulo sempre os encoraja e os estimula a uma mudança de
comportamento ou de atitudes morais (cf. Rm 2,12-14; 17-29; 1Cor 5, 9-13; 6,12-14),
como às vezes também os censura por práticas ilícitas ou não coerentes com o anúncio
que lhes fora feito. A esse respeito, destaca-se que:
Los testimonios paulinos y deuteropaulinos muestran una
compreensión propia y singular. Pablo usa siempre pαρρησία com paς o poluς: según Flp 1,20, El espera no ser avergonzado en ningún
aspecto, sino que ahora, como siempre, Cristo sea glorificado en su
soma (el cuerpo de un preso). [...]. La esperanza de Pablo es que, por
medio de su propio cuerpo, ya sea en su actividad misionera o bien
sufriendo la muerte por Cristo, la glorificación de Cristo se fomente,
una glorificación abierta en todos los aspectos, no limitada por nada y
que, por tanto, se realiza con toda notoriedad 76
.
Assim sendo, observa-se que na missão de Paulo, tendo agora por base suas
cartas, a parresía outorga ao apóstolo uma força para defender sempre o Evangelho.
76
BALZ, Horst. Παρρησία. In: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento; 2012, p. 808.
38
Muitos são os problemas que surgem em sua ação evangelizadora e, muitas de suas
cartas também advieram com intenção de resolvê-los. Não obstante, Paulo segue sua
missão, haurindo sempre forças daquele encontro com Cristo. Assim,
A linguagem franca de Paulo sempre ocorre em conexão com um
grupo, seus seguidores. Algumas vezes sua linguagem franca refere-se
a indivíduos (como em Fl as duas mulheres, em 2Cor 2 o “ofensor”,
ou em Filêmon), mas sempre envolve a comunidade toda junto com os
indivíduos. Em outras ocasiões, a linguagem franca de Paulo
certamente envolve a comunidade mas tem relação com forasteiros
que proclamam seu devotamento em competição com Paulo. Em tais
casos, a linguagem franca de Paulo não apenas exorta seus seguidores
a uma mudança, mas com frequência, às vezes indiretamente, inclui
uma crítica aos forasteiros ou uma comparação com eles 77
.
Em suas cartas, de um modo particular Gl, Paulo se utiliza da parresía para
tratar de problemas concretos que aquelas comunidades estavam passando. A carta,
direcionada às igrejas da Galácia, foi escrita após Paulo ter observado que as
comunidades estavam empreendendo outro rumo, seguindo outro evangelho, diferente
daquele que ele próprio havia anunciado. Isso se deu porque “forasteiros vieram à
província romana da Galácia e interferiram nas igrejas paulinas, insistindo em que os
homens deviam circuncidar-se e que todos deviam comprometer-se com aquilo que os
intrusos consideravam a fidelidade adequada à Lei” 78
.
Paulo não hesita em exortar essas igrejas que rapidamente abandonaram o
Evangelho de Cristo. Ele até se diz admirado dessa atitude que tiveram e não só faz
questão de reforçar no decorrer da carta a sua missão de apóstolo recebida do próprio
Cristo, como, também, ratifica que a Boa Notícia que ele anuncia não pertence a
nenhum homem: “Eu vos faço saber, irmãos, que o Evangelho por mim anunciado não é
segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de algum homem, mas por
revelação de Jesus Cristo” (Gl 1,11-12).
A linguagem franca recorre a um reservatório de boa vontade
construído pelo amigo que fala francamente; do amigo se requer
coerência de comportamento e preocupação genuína. De numerosos
modos Paulo recorda aos gálatas o seu ethos, fazendo referência ao
seu desempenho passado e à sua preocupação presente. O refrão de Gl
1-2 é o refinamento e o aperfeiçoamento do ethos de Paulo e sua
oferta de si mesmo como modelo a ser emulado na presente crise [...].
Assim, desde o início, Paulo estabelece que Deus, e nenhum ser
humano, tem orientado sua vida 79
.
77
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 277. 78
Idem, p. 262. 79
Idem, p. 263.
39
Por conseguinte, embora Paulo tenha que se utilizar da parresía para corrigir os
irmãos das igrejas gálatas, ele não deixa de animá-los e elogiá-los, pois sabe que esses
cristãos receberam e acolheram o anúncio da pregação, por meio do Espírito e, sabe
também que essa mesma palavra estava produzindo frutos na vida deles. Porém, sendo
um apóstolo e pastor, Paulo não pode deixar que estrangeiros roubem a glória da Boa-
Nova de Cristo e sendo necessário, escreve com parresía.
O apóstolo anseia que esses irmãos possam viver a beleza do Evangelho em
plenitude, e toma todas as atitudes necessárias que isso possa ocorrer: “meus filhos, por
quem sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós. Quisera estar
no meio de vós agora e mudar o tom da voz, pois não sei que atitude tomar a vosso
respeito” (Gl 4, 19-20). No tocante a esse aspecto, Sampley acrescenta que:
Embora a amizade (matriz social da parresía) no tempo de Paulo
aconteça mais tipicamente entre pessoas de status e posição social
diferentes, o uso do conceito em Paulo é tão cuidadosamente
transformado no seu próprio mundo de ideias que é assimilado à
família de Deus. As relações de Paulo com suas comunidades são
fundamentalmente ambivalentes e essa ambivalência aparece no
estudo do uso paulino da linguagem franca. Por um lado, Paulo e seus
seguidores são iguais em Cristo; são igualmente dependentes da graça
divina; todos eles foram do mesmo modo libertados do poder do
pecado; [...]. Sob todos esses aspectos, Paulo e seus sequazes não são
diferentes. Porém, quando se trata do desenvolvimento moral e
espiritual deles [...] Paulo é em última análise responsável por eles.
[...]. Ele é ao mesmo tempo amigo e apóstolo deles 80
.
Em conclusão, tomando como exemplo alguns pontos do livro dos Atos dos
Apóstolos e da carta aos Gálatas, pode-se analisar brevemente como a parresía estava
presente na vida e na missão do apóstolo Paulo. Ademais, pôde-se ainda notar como
Paulo era um homem do seu tempo, que viveu num lugar concreto e absorveu da cultura
de sua época muitas possibilidades e características. E ainda mais, foi possível conferir
como o fato culminante da sua vida, isto é, o encontro com Jesus Cristo no caminho de
Damasco, redimensionou todas essas possibilidades e características que ele possuía até
então. Deste modo, o apóstolo passa a se oferecer totalmente ao anúncio do Evangelho
de Cristo, exortando com franqueza seus discípulos. No capítulo seguinte, se analisará a
parresía na carta aos Efésios, fazendo inicialmente uma análise exegética da perícope
escolhida.
80
SAMPLEY. Paulo e a linguagem franca; 2008, p. 278.
40
CAPÍTULO SEGUNDO
ANÁLISE EXEGÉTICA DE EFÉSIOS 6,18-20
2. Autenticidade da Carta
A chamada carta aos Efésios faz parte de um conjunto de cartas, que na
atualidade, é conhecido por deutero-paulinas. Este é assim denominado, pois as recentes
pesquisas têm concluído que com grande probabilidade são epístolas que não foram
escritas pelo próprio Paulo, mas sim por discípulos do Apóstolo. Portanto, de escola
paulina.
A carta aos Efésios até o final do século XVIII era reconhecida como um escrito
propriamente paulino. “L‟antichità cristiana ha universalmente riconosciuto Efesini
come lettera paolina autentica, anche se questa qualifica non aveva certo la stessa
portata attribuitale dal più recente metodo storico-critico” 81
. Muitos padres e doutores
da Igreja, já nos primeiros séculos da história do cristianismo, atribuindo este escrito ao
Apóstolo dos gentios, fizeram referência a esta carta, apresentando em vários de seus
tratados a importância deste texto para a educação e formação da vida cristã 82
.
No entanto, é a partir da Idade Moderna que começaram a surgir dúvidas quanto à
sua autenticidade. Primeiramente, colocou-se em questão duas características mais
importantes, o endereço do escrito, isto é, se de fato ele estava direcionado à
comunidade de Éfeso e não à outras comunidades da Ásia Menor, como também o
estilo literário que acentuadamente se diferenciava das demais cartas paulinas. Assim, a
referida carta tornou-se objeto de pesquisa de diversos exegetas e comentadores dos
textos paulinos 83
.
81
PENNA, Romano. Lettera agli Efesini. Bologna: Edizioni Dehoniane Bologna, 2010, p. 14. 82
Cf. Ibdem. Fabris também comenta a importância desta carta nos escritos dos padres da Igreja dos
primeiros séculos, como também de outros teólogos que ao longo da história aludiram a este escrito:
“Posto à sombra das grandes cartas de Paulo, esse breve escrito foi comentado pelos Padres da Igreja,
como Efrém, o Sírio (séc. IV), João Crisóstomo (séc. V), Jerônimo (séc. V) e, depois, pelos mestres e
teólogos da Idade Média (Tomás de Aquino, séc XIII)”; FABRIS, Rinaldo. As cartas de Paulo. São
Paulo: Loyola, 1992, p. 131. 83
Cf. KOBELSKI, Paul J. Carta aos Efésios. In: BROWN, R.; FITZMYER, J.; MURPHY, R. Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo, Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. Campinas: Academia
Cristã; São Paulo: Paulus, 2011, p. 618: “De modo geral desde o séc. II até o séc. XVIII, a atribuição de
Ef ao apóstolo Paulo não foi questionada. No final do séc. XVIII, a autoria paulina começou a ser
contestada. Entre os estudiosos modernos que defendem a autoria de Paulo estão Barth, Benoit, Bruce,
Caird, Dahl [...], Foulkes, Percy, Rendtorff, Schlier e Zerwick. Alguns defensores da autenticidade
modificam sua posição sustentando que um núcleo paulino da carta foi expandido ou alterado por um
discípulo, um escriba ou um interpolador [...]. Entre os que sustentam a pseudonimidade estão Allan,
Bare, Conzelmann, Dahl, Dibelius, Gnilka, Goodspeed, Käsemann, Kirby, Mitton e Schnackenburg [...].
O questionamento da autoria se baseia no conteúdo, no vocabulário e estilo, nas diferenças teológicas em
41
Nell‟età moderna si fanno strada i primi interrogativi circa
l‟originalità letteraria e teologica di Efesini, che condurrano all‟attuale
posizione di diffuso scetticismo sull‟autenticità della lettera. Il primo
dubbio è testimoniato da Erasmo da Rotterdam (nel 1519) ed è
causato dallo stile di Efesini, che secondo il dotto umanista non
sembrava corrispondere esattamente a quello di s. Paolo. Sul finire del
secolo XVI, Teodoro di Beza, successore di Calvino e attento cultore
di testi biblici, riteneva che la lettera non poteva essere indirizzata solo
agli efesini ma anche ad altre comunità dell‟Asia Minore, a motivo del
suo indirizzo testualmente problematico e del suo tono generale 84
.
Foi precisamente em 1792 que Evanson duvidou pela primeira vez da
autenticidade paulina da carta. Vale lembrar que outros estudiosos anteriormente tinham
colocado em dúvida a questão da autenticidade da carta. No entanto, os mesmos não
tinham afirmado categoricamente este problema.
Desde então, a carta que proclama a mensagem da unidade e o
„evangelho da paz‟ não teve mais paz, porque foi submetida às
análises e contra-análises dos autores, seja por parte dos que
defendiam ferozmente sua autenticidade paulina, seja por parte dos
que obstinadamente a negavam 85
.
A dúvida acerca da autenticidade da carta se dá por diversos fatores, como já
descrito. Os manuscritos mais antigos, como o Papiro 46 e os códices Vaticano e
Sinaítico, não trazem em suas versões as palavras “em Éfeso” presente na saudação da
carta 86
. Esta a ausência de destinatários ou referências aos cristãos de Éfeso, uma vez
que o apóstolo tenha estado nesta cidade por três anos (cf. At 20,31), torna-se um fator
que incute na inautenticidade da carta.
A partir do final do séc. II, a tradição cristã identificou esta carta
sendo “Aos Efésios” (Cânone Muratoriano, Irineu, Clemente de
Alexandria). Embora o sobrescrito “Aos Efésios” esteja presente em
todos os manuscritos do NT, a expressão “em Éfeso” está ausente de
1,1 no P46
(o mais antigo texto de Efésios), dos originais dos
importantes códices Vaticano e Sinaítico do séc. IV 87
.
As novidades linguísticas e a originalidade teológica de Ef – que estão
na origem do debate sobre a autenticidade paulina do escrito – são
justamente os fatores que mais chamam a atenção do leitor. É original
e fecunda de desenvolvimentos a apresentação da salvação cristã em
termos de unificação e paz dos homens entre si e com Deus, através
relação às cartas paulinas incontestes, na dependência literária do corpus paulino e na dependência
literária em relação a Cl”. 84
PENNA. Lettera agli Efesini; 2010, p. 16. 85
FABRIS. As cartas de Paulo; 1992, p. 131. 86
BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p.357. 87
KOBELSKI. Carta aos Efésios; 2011, p. 617.
42
das imagens do organismo vivo (“corpo”) e da construção espiritual
(“templo”) 88
.
Em outras palavras, no critério de autenticidade da carta, os fatores que outorgam
maior peso nessa problemática são o estilo e o léxico utilizados. Diferente em vários
aspectos das sete cartas consideradas autênticas do Apóstolo, a carta aos Efésios possui
uma linguagem distinta, por mais que a carta “em uma palavra, [...] tem todos os
defeitos de Paulo (falta de ordem e de sinais de pontuação) 89
.
De fato, a pequena composição abre-se com um endereço e saudação e
encerra-se com uma saudação ou bênção, que fazem lembrar o clichê
das outras cartas neotestamentárias. Mas se tirarmos esses dois
elementos da moldura, o escrito, como um todo, pareceria uma
composição literária no estilo do discurso ou homilia dirigida a
hipotéticos ouvintes. [...]. Mas, além desses elementos que dão uma
certa unidade e coerência formal ao escrito, percebem-se articulações
literárias e temáticas mais precisas 90
.
Contudo, não é intenção do presente capítulo esgotar a discussão acerca da
autenticidade da carta aos Efésios. A breve alusão oferece apenas um simples aceno
sobre esta problemática, uma vez que o termo de estudo nesta dissertação, assim como a
perícope analisada compõe este escrito canônico.
2.1 Delimitação da perícope
Todo texto, e mais ainda os textos bíblicos, ao serem analisados, precisam antes
de tudo serem delimitados para que o foco de estudo seja direcionado. Vários são os
critérios utilizados na delimitação de um texto. Silva, na sua obra sobre as metodologias
de exegese bíblica, atesta que os elementos que indicam um novo início são
basicamente a mudança de assunto ou um novo argumento: “delimitar um texto,
portanto, significa estabelecer os limites para cima e para baixo, ou seja, onde ele
começa e onde ele termina” 91
.
A perícope analisada nesta dissertação (6,18-2092
), segundo Bosch, encontra-se
numa divisão maior da carta, isto é, dentro da conclusão (6, 10-24). Este mesmo autor
88
FRABIS. As cartas de Paulo; 1992, p. 132. 89
BOSCH. Escritos Paulinos; 2002, p. 360. 90
FABRIS. As cartas de Paulo; 1992, p. 132. 91
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 68. 92
Quanto a Ef 6, 18-20, antes de tudo, é necessário afirmar que a perícope não apresenta grandes
problemas de crítica textual. A análise do aparato crítico nos oferece a identificação de um único
problema: No v. 19 encontra-se: kai. upe.r evmou/( i[na moi doqh/| lo,goj evn avnoi,xei tou/ sto,mato,j mou( evn parrhsi,a| gnwri,sai to. musth,rion tou/ euvaggeli,ou. A questão está no final deste versículo, onde emerge o
43
apresenta a seguinte divisão da carta: uma introdução (1,1-23); uma explanação sobre as
bases do cristianismo (2,1-22); diversas exortações quanto ao ministério apostólico (3,1-
21) e à família cristã (5, 21-6,9); uma exortação ampla e geral de encorajamento à vida
de oração (6, 10-20)93
; e as recomendações e saudações finais (6,21-24). Deste modo, a
perícope em questão se relaciona com o argumento sobre a oração cristã.
Como já visto a perícope encontra-se dentro de uma delimitação mais abrangente
(isto é, Ef 6,1-20). No entanto, como pode-se conferir, nos dois últimos versículos, o
autor da carta se posiciona de um modo diferente. Até o versículo 17, são apresentadas
as formas de oração da vida cristã, comparando esta mesma oração a um combate. Já
nos versículos 18 a 20, o autor dirige aos destinatários um apelo. Pede-lhes que com os
ensinamentos recebidos acerca da oração, rezem por todos os santos e também por ele.
Aparecem, deste modo, elementos que poderiam indicar uma nova perícope, como a
presença de novos personagens (nesse caso os santos e o próprio autor) e uma
introdução a um discurso 94
, dentro do mesmo tema, porém, com outra perspectiva. Já
não mais como uma instrução, senão como um pedido direcionado.
Nesta apresentação da vida de oração de um fiel como um combate, o autor
“analogiza” os combates da fé com situações concretas de um combate físico 95
. No fim
desta exortação, antes das saudações finais, encontra-se este pedido do autor à
comunidade, pedindo que estes rezem por todos os santos e também por ele. Dentro
deste requisição, o autor pede que os fiéis orem no Espírito, para que lhe seja dado
anunciar o mistério do Evangelho com parresía, com franqueza, sem impedimentos.
pedido paulino para que a comunidade, ao orar por ele, suplique para que lhe seja dada a palavra, para
anunciar com franqueza (parresía) o mistério do Evangelho (tou/ euvaggeli,ou(). A Lição 1 apresenta
muitos manuscritos que concordam em apresentar este anúncio com o mistério do Evangelho. São eles:
Sinaítico א (séc. IV) , Alexandrino A (séc. V), Bezae Cantabrigiense D (séc. V), Código Freerianus I (sec.
V), Moskensis K (séc. IX), Código Porphryanus P (sec. IX), Athous Lavrensis ψ (séc. IX/X), e nos
manuscritos 33 (séc. X), 81 (sec. VI), 88 (sec. V-VI), 104 (sec. VI), 181 (sec. IV-V), 326 (sec. XII), 330,
436 (sec. XI), 451, 614 (sec. XIII), 629 (sec. XIV), 630 (sec. XIV), 1241 (sec. XII), 1739 (sec. X), 1877,
1881 (sec. XIV), 1962 (sec. XI), 1984, 1985, 2127 (sec. XII), 2492, 2495 (sec. XIV-XV), Byz Lect,
Família Itala itar,c,d,dem,e,f,x,z
, Vulgata vg (sec. IV-V), Síriaca Peshita e Harclense syrp,h
(séc. VI), Copta
Saídica, Boaírica, Famiúca copsa,bo,fay ms
(sec. IV), Saídica, Biaírica, Famiúca cop (sec. IV-V), goth,
Armenia arm (sec. V), Crysostom, Jerome, Euthalius, Theodoret, John-Damascus //. Na Lição 2, os que
omitem “do Evangelho” são: Códices Vaticano B (séc. IV), G (sec. IX), Família Itala itg,mon
, Copta
Famiúca copfay ms
(sec. IV), Tertullian (ms. sec. IX), Ambrosiaster (sec. IV), Victprius-Rome, Ephraem.
Deste modo, vendo a grande quantidade de testemunhos que possui a Lição 1, entre eles o Código
Sinaítico (séc. IV) e o Código Alexandrino (séc. V), que, por sua vez, são os mais antigos, pode-se,
segundo a crítica externa, pelo critério de antiguidade, ver que esta seja a mais provável. 93
Cf. BOSCH. Escritos Paulinos; 2008, p. 362. 94
SILVA. Metodologia de Exegese Bíblica; 2009, p. 70-71. 95
Cf. MONTANO, Giuseppe. Rivestitivi dell’armatura di Dio (Ef 6,10-20): La nostra bataglia non
contro sangue e carne ma contro le potenze. Assisi: Cittadella Editrice, 2010, p. 13.
44
2.1.1 Segmentação
A perícope está composta de três versículos:
18 a Dia. pa,shj proseuch/j kai. deh,sewj proseuco,menoi evn panti. kairw/ evn pneu,mati(
b kai. eivj auvto. avgrupnou/ntej evn pa,sh| proskarterh,sei kai. deh,sei
c peri. pa,ntwn tw/n a`gi,wn
19 a kai. u`pe.r evmou/(
b i[na moi doqh/| lo,goj
c evn avnoi,xei tou/ sto,mato,j mou(
d evn parrhsi,a| gnwri,sai to. musth,rion tou/ euvaggeli,ou(
20 a u`pe.r ou- presbeu,w evn alu,sei(
b i[na evn auvtw/| parrhsia,swmai(
c w`j dei/ me lalh/saiÅ
VERBOS SUBSTANTIVOS CONJUNÇÕES PREPOSIÇÕES ARTIGOS ADJETIVOS PRONOMES
2.1.2 Tradução
18 a Com toda oração e súplica orai em todo tempo no Espírito,
b e dentro deste mesmo vigiai com toda perseverança e súplicas
c por todos os santos
19 a e sobretudo por mim,
b para que me seja dada a palavra,
c na abertura da minha boca,
d com franqueza revelar o mistério do Evangelho
20 a pelo qual sou embaixador em cadeia
b para que nele eu fale francamente
c como é necessário que eu fale.
VERBOS SUBSTANTIVOS CONJUNÇÕES PREPOSIÇÕES ARTIGOS ADJETIVOS PRONOMES
45
2.2 Análise morfossintática
A segmentação manifesta bem a cadência crescente e amplificadora da pragmática
do texto. A perícope está composta por 10 orações, sendo que a primeira delas é a
oração principal: 8 são subordinadas e 1 oração, que é a final, é coordenada. No texto
grego, existem 56 vocábulos, sendo que 9 são verbos.
Os verbos aparecem utilizados: proseuco,menoi e avgrupnou/ntej são formas nominais
do verbo, no particípio, atribuindo ao sujeito de ambas as ações (“orar” e “vigiar”) uma
qualificação, uma adjetivação de executores de tais ações. Não se trata de um convite ou
ordem, pois a forma está no presente, o que atribui uma ação contínua e inacabada: vós
sois orantes e vigilantes. O verbo proseuco,menoi é depoente. Mas ambos têm sentido
ativo quanto à voz. Ambas as formas nominais estão declinadas no nominativo plural,
apontando para o mesmo sujeito: os interlocutores, a comunidade.
Por sua vez, doqh/ está no modo subjuntivo, pois se trata de um desejo subjetivo,
uma esperança. O fato do verbo estar no aoristo atribui à ação, quando for concretizada,
uma perenidade e atemporalidade típicas. A voz é passiva, pois o agente “palavra” é que
haverá de “ser dado”, 3ª pessoa do singular.
Já gnwri,sai é outra forma nominal do verbo: um infinitivo, usado para produzir um
“substantivo verbal”, uma ação titular, objetiva: “o revelar”. O aspecto aoristo impinge
à ação um sentido paradigmático e definitivo.
Presbeu,w está no modo indicativo, portanto, é uma informação objetiva e certeira,
ainda mais considerando-se o aspecto continuado do presente e da voz ativa dessa
primeira pessoa do singular. O sujeito afirma-se atual e direto na ação de ancião,
venerável, representante, e daí a ideia de “embaixador”.
O verbo Parrhsia,swmai é utilizado no modo subjuntivo, pois se trata de outro
desejo subjetivo, outra esperança. Também aqui, o verbo está no aoristo: quando o que
se espera for alcançado (falar, agir com franqueza) será uma ação que transcende o
tempo. A voz ativa reforça que o sujeito é o que espera e o que se lança à concretização
eventual.
Por conseguinte, dei/ é uma forma no presente do indicativo (voz ativa na 3ª pessoa
do singular) usada para expressar uma ideia modalizante do verbo: é necessário, é
preciso que... E por último, lalh/sai é também uma forma nominal do verbo: um
infinitivo, usado para produzir um “substantivo verbal”, uma ação titular, objetiva: “o
46
falar”. O aspecto aoristo compele à ação um sentido paradigmático e definitivo dessa
necessidade apontada pelo modalizante que a antecede.
A perícope começa com a oração (18a). Tal oração é construída com o verbo
proseuco,mai, que está no particípio médio no caso nominativo masculino plural. Os
sujeitos desse verbo são os santos e fiéis (cf. Ef 1,1) aos quais a carta é dirigida. Neste
caso o sujeito se encontro oculto. O verbo é qualificado por um adjunto adverbial
instrumental. Este adjunto inicia com a preposição Dia, que está regendo genitivo,
seguida de um adjetivo pa,shj, e dois substantivos proseuch/j e deh,sewj unidos por um
conectivo kai,. Essa construção genitiva aplica aos termos uma relação de referência
mútua, de ponto de partida: a oração e a súplica (ambos os termos no genitivo) são os
pontos de partida dessa função adjunta e que modifica o sentido do verbo. Seguido do
verbo há um advérbio temporal formado por uma preposição regendo dativo evn, um
adjetivo pa,nti e um substantivo kairw/ , ambos no caso dativo singular masculino.
Logo, finaliza-se com um adjunto adverbial de lugar formado por uma preposição
também regendo dativo evn mais um substantivo pneu,mati.
A seguinte oração (18b) (subordinada objetiva direta aditiva) tem por verbo
principal avgrupne,w (avgrupnou/ntej), que se encontra no particípio ativo (presente) no
caso nominativo plural. O “sujeito”, oculto, segue em concordância com o verbo da
primeira oração (proseuco,menoi) conforme citado no parágrafo anterior. Precede a
oração um conectivo kai,, introduzindo assim a oração subordinada. Referindo-se à
oração anterior ele retomará o adjunto adverbial de lugar evn pneu,mati96 por meio de uma
preposição regendo acusativo eivj mais o pronome demonstrativo auvto, repetindo
também um adjunto adverbial de lugar. Procede a este verbo, um adjunto adverbial de
modo, formado por uma preposição regendo dativo evn, dois substantivos no caso dativo
unidos por um conectivo proskarterh,sei kai. deh,sei.
Consequentemente, as duas próximas orações (18c e 19a), também são
subordinadas. Como elas estão unidas à primeira oração, apresentam o verbo elíptico
(proseuco,menoi). A primeira (18c) é uma oração substantiva objetiva indireta simples. O
substantivo a`gi,wn, acompanhado do artigo definido tw/n é precedido de um adjetivo
pa,ntwn. Ainda mais, esta oração é indireta, pois vem anteposta pela preposição peri,
96
O pronome demonstrativo auvto refere-se ao substantivo pneu,mati, presente na primeira oração. No
entanto, a preposição eivj, relacionada com evn, tem aqui o sentido de “dentro”, conferindo ao substantivo o
significado de lugar (dentro deste espírito). Por este motivo, evn auvto torna-se um adjunto adverbial de
lugar.
47
regendo genitivo, regência esta, que também se observa nos verbetes anteriores pa,ntwn
tw/n agi,wn.
Já 19a, é iniciada pelo conectivo kai,, seguida por uma preposição regendo genitivo
u`pe.r. Esta preposição tem por significado “em cima de”, “por sobre”, “sobretudo”,
“além”, enfatizando assim que a ação verbal da oração principal, da qual esta depende,
deve-se sobrepor, em nível de intensidade, em comparação com a oração anterior (18c).
Esta comparação se dá pela presença do conectivo kai,. Seguido da preposição u`pe.r, há
um pronome pessoal de 1ª pessoa do singular evmou, que refere-se ao autor do texto.
A oração 19b, subordinada, por sua vez, à oração anterior (19a), é adverbial final e
tem por verbo doqh/|. Conforme visto acima, este verbo se encontra no modo subjuntivo,
aoristo e na voz passiva. A passagem da oração precedente para esta subordinada a ela é
feita pela conjunção i[na, regendo dativo. Esta conjunção no dativo aplica a toda a
sentença a conotação de finalidade: “para que”, “a fim de que”. Logo após, segue um
pronome pessoal no caso dativo de 1ª pessoa do singular (moi). O sujeito desta oração
lo,goj, que se encontra no caso nominativo singular masculino, determina diretamente o
objeto “a ser dado” (doqh).
Destarte, a oração 19c, subordinada, consequentemente, à que lhe antecede (19b) é
uma oração adverbial temporal, uma vez que é iniciada pelo advérbio evn. Este advérbio,
regendo dativo singular neutro implica ao verbo uma conotação de tempo: “no
momento em que”, “quando”. Logo após, encontra-se o verbo avnoi,xei. (da raiz verbal
avnoi,gw – abrir). Este verbo tem por objeto um artigo tou/, um substantivo sto,mato,j e um
pronome possessivo de 1ª pessoa (mou), todos, no caso genitivo singular neutro.
Similarmente à oração supracitada (19c), a oração (19d) está subordinada também à
oração (19b). Esta, no entanto, tem por verbo gnwri,sai, que se encontra no infinitivo
aoristo. Esta sentença é introduzida por uma preposição e um substantivo (evn parrhsi,a).
Portanto, ocupa uma função adverbial com a qual qualifica-se diretamente o verbo (isto
é, “revelar”, “manifestar” com “franqueza”). Subsequente ao verbo segue um objeto
direto, composto de um artigo e um substantivo (to. musth,rion), ambos no caso
acusativo singular neutro. Qualifica este objeto um adjunto adnominal (tou/ euvaggeli,ou),
no caso genitivo singular.
Seguindo a análise, a próxima oração (20a) é de 3º grau. Isto significa que ela está
subordinada à oração que a anteverte. Ela também é uma oração adverbial, porém, pela
presença da preposição u`pe.r, que neste caso implica à sentença um motivo, uma
48
consequência (“em nome de”, “em favor de”), ela se caracteriza como uma oração
adverbial causal. Ainda mais, este advérbio, unido à conjunção subordinada ou=, impele
à sentença um sentido ainda maior de causa. O verbo presbeu,w, como já visto, está no
modo indicativo ativo. Unido ao advérbio u`pe.r, este verbo adquire seu sentido enquanto
está relacionado com objeto da oração anterior (to. musth,rion tou/ euvaggeli,ou). Quem
exerce a função objetiva de presbeu,w (embaixador), a faz em função de algo, neste caso
do “to. musth,rion tou/ euvaggeli,ou”. Esta oração finaliza com um adjunto adverbial de
lugar evn a`lu,sei (em cadeia).
A oração que segue é a 20b. Ela está vinculada à primeira oração da perícope.
Deste modo, por mais que esta oração possua um verbo próprio (parrhsia,swmai), pelo
fato de estar unida à 18a, ela é regida pelo verbo proseuco,menoi, e introduzida por uma
conjunção final i[na. Segue esta conjunção um adjunto adverbial de lugar, formado pela
preposição regendo dativo (evn) mais um pronome demonstrativo (auvtw/|). Este sintagma
faz menção ao adjunto adverbial de lugar presente na oração 18a (evn pneu,mati).
Destarte, i[na evn auvtw/|, significa “para que neste mesmo „espírito‟”. Finalizando esta
sentença consta-se parrhsia,swmai, que se encontra no modo subjuntivo aoristo. A voz
ativa deste verbo, como já visto, manifesta que o seu sujeito (neste caso o autor do
texto), almeja a realização de tal aplicabilidade.
Concluindo, a sentença final da perícope (20c) é uma oração coordenada
sindética comparativa. Esta oração, que está coordenada à 20b inicia-se com a
conjunção w`j e é composta de dois verbos dei/ e lalh/sai. A conjunção w`j implica à
oração uma denotação de qualidade. Já o verbo dei/ rege uma completiva de infinitivo
formada pelo verbo lalh/sai (“é necessário „eu falar‟”) que tem por sujeito um pronome
acusativo singular (me).
2.3 Análise semântico-pragmática
Em geral, toda pesquisa, para se chegar a uma conclusão e interpretação ao menos
parcial do significado seja do texto como um todo, seja de uma palavra específica,
requer que anteriormente seja feita uma análise semântica, e também pragmática, sobre
o seu significado. Esta análise permite ao pesquisador uma via de interpretação mais
segura, para se aproximar do seu sentido mais original.
Por meio de qualquer tipo de análise, dificilmente se chagará a uma conclusão
completamente objetiva e definitiva sobre o significado total da palavra. Ainda mais
49
quando está em jogo um texto da Sagrada Escritura. Vale lembrar ainda que esta não é a
intenção primária de tal dissertação. Com outras palavras, no que tange a um texto
antigo, não é possível, por mais análises que se possam empreender, chegar a uma
definição total do significado. Pois, é quase impossível conhecer de fato o que autor do
texto pretendia afirmar ao utilizar determinado enunciado, ou determinado termo. No
entanto, é sempre provável uma maior aproximação, mediante os métodos de análise
semântica e pragmática.
Para que esta aproximação ocorra, não se pode prescindir, antes de mais nada, do
contexto em que o texto foi formulado. É necessário que as duas análises sejam
realizadas simultaneamente. Seja o sentido da palavra mesma, seja o contexto em que
ela foi proferida.
Il significato è sempre un significato in una determinata situazione. Il
contesto in cui viene utilizzato quel determinato enunciato è parte del
suo significato. In altre parole, è difficile distinguere, in un
determinato messaggio, ciò che appartiene al senso e ciò che
appartiene invece alle implicazioni soggetive dei comunicanti. Non è
pensabile, cioè, che, in un determinato contesto comunicativo, si
capisca prima ciò che viene detto, e dopo, sulla base di un‟altra serie
di informazioni, ciò che con esso si sugerisce: il senso di un enunciato
è composto da ciò che viene detto e da ciò che viene suggerito con
quanto detto 97
.
Deste modo, é notório salientar que toda interpretação é válida enquanto se serve do
contexto em que o objeto pesquisado surge. Pois a comunicação necessita de vários
aspectos, isto é, a disponibilidade do interlocutor, o intercâmbio de significado e
interpretação de ambas as partes, seja do locutor, seja do receptor.
La comunicazione suppone la disponibilità degli interlocutori, da una
parte a farsi comprendere e a trovare quei canali che rendono possibile
lo scambio, dall‟altra ad accogliere i messaggi inviati, tentando di
riconoscere l‟unità di superfície e quella profonda, ad esplicitarne le
implicature, colmare le lacune 98
.
Portanto, com base no acima dito, a análise semântico-pragmática proporcionará
uma abertura de um horizonte mais amplo, no que se refere ao contexto geral de cada
enunciado, dentro do corpo das Sagradas Escrituras. Isto se dá, pois cada verbete, sendo
analisado de forma isolada, possui relação com a identidade bíblica que precede e
97
GRILLI, M; GUIDI, M; OBARA, E. Comunicazione e pragmatica nell’esegesi bíblica; 2016, p. 25. 98
Idem, p. 29.
50
sucede tal termo, fundamentando assim toda interpretação teológica e eclesiológica do
mesmo.
Além disso, a avaliação isolada de cada um dos termos que se seguem, permite
ainda uma vasta gama de relação entre o contexto escrito, a mais autêntica identidade da
comunidade para qual a carta é dirigida e o grau de fidelidade entre o AT e o anúncio da
Boa-Nova do Evangelho 99
.
Assim sendo, toda análise que será feita nos tópicos subsequentes, tem por base o
acima referido. Os termos que serão avaliados da perícope estudada no capítulo II,
buscará se aproximar o máximo possível de seu sentido próprio, dentro do contexto que
em foi elaborada.
2.3.1 Proseuco,mai (Orar) e A,grupne,w (Vigiar)
Como primeiro termo, pode-se analisar um conceito muito presente nos escritos
paulinos, e que de certo modo, constitui o centro da perícope. Trata-se do verbo
proseuco,mai, isto é, orar, pedir, suplicar. Todo o ministério paulino baseava-se na
oração e se desenvolvia a partir dela, pois “para Paulo, a experiência cristã era
essencialmente (e incessantemente) um ato de oração” 100
.
Note-se que, há vários verbos gregos, no NT, para expressar o ato de orar, pedir
e/ou súplica. Das 85 vezes que a raíz (proseuco,mai) aparece no NT, a única vez que se
faz presente na carta aos Efésios é justamente na perícope em análise. Cabe lembrar que
proseuco,mai, no NT, significa exclusivamente orar, pronunciar orações para pedir algo
o pedir por alguém 101
. De fato, a oração consiste em pedir e receber. Porém, com base
em outros textos do próprio Apóstolo, pode-se afirmar que o significado da oração
consiste em muito mais do que isso. Assim como Jesus, o Apóstolo dos gentios nos
deixou grande exemplo de orações práticas, como é possível perceber no cotexto da
99
A respeito desta estreita relação entre Antigo e Novo Testamento, o documento da Comissão Bíblica
sobre o Povo Judeu e as suas Sagradas Escrituras afirma: “Ao chamar de „Antigo Testamento‟ as
Escrituras do povo judeu, a Igreja não quis, de forma nenhuma, sugerir que elas estejam superadas e que
por isso podem ser dispensadas. Pelo contrário, a Igreja, sempre afirmou que Antigo e Novo Testamento
são inseparáveis. A sua primeira relação está precisamente nessa inseparabilidade. [...]. É à luz do Antigo
Testamento que o Novo compreende a vida, a morte e a glorificação de Jesus (cf. 1Cor 15,3-4). Mas a
relação é recíproca: de um lado, o Novo Testamento exige ser lido à luz do Antigo, mas, de outro,
convida a „reler‟ o Antigo à luz de Cristo Jesus (cf. Lc 24,45)”; PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O
povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã; 2002, p. 52. Também, no tocante a este
argumento, Jerônimo atesta: “Ignorar as Escrituras, é ignorar Cristo”; Cf. DV, 25. 100
HUNTER, W.B. Oração. in: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID, Daniel G.
Dicionário de Paulo e sua cartas. São Paulo: Paulus; Vida Nova; Loyola, 2008, p. 890. 101
BALZ, Horst. Proseu,komai. in: BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard. Diccionario Exegético del
Nuevo Testamento. vol II. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2012, p. 1172.
51
perícope, onde o autor apresenta, de um modo prático, a oração como uma batalha, e
assim incentiva os fiéis a viverem sua vida em Cristo (cf. Ef 6,10-17).
Proseuco,mai y proseukh, designan de manera global la oración de
Jesús y la oración de los creyentes e de la comunidad; al hacerlo así,
incluyen diversos aspectos e formas de la oración (adoración, petición,
intercesión, una oración especial concreta, la oración constante, la
oración “litúrgica” o efectuada en el culto divino), de tal manera que
los significados específicos deben deducirse por el contexto 102
.
Ademais, o verbo proseuco,mai sempre vai dirigido a Deus, pois a oração pode
ser caracterizada por preposições como intercessão em favor de outras pessoas 103
. No
entanto, em algumas ocorrências na Sagrada Escritura, esta raíz aparece relacionada
com alguma outra circunstância. Neste caso, o verbo está em relação com o Espírito (en
panti. kairw/ pneu,mati, em todo tempo no Espírito). Um adendo a este respeito, é que a
importância do Espírito na perícope analisada e a sua relação com o objeto de pesquisa
deste trabalho (a parresía), não será abordada neste capítulo, senão que, no capítulo
subsequente, no qual todo um tópico lhe será dedicado.
No entanto, esta relação da oração com o Espírito é de suma importância dentro
da teologia paulina. Para o Apóstolo, a verdadeira oração é obra do Espírito (cf. Rm
8,15.26; Gl 4,6). É o Espírito quem socorre a fraqueza humana, inspirando os crentes a
saber pedir o que de fato convém àqueles que foram chamados à filiação adotiva. Ainda
mais, a oração é um dom, uma dádiva celestial, derramada na vida daqueles que aderem
a Cristo pela fé. Ela não depende, nem se origina de um poder humano, uma vez que ela
nunca pode ser concebida como um mérito, mas tão somente como graça.
Assim como a própria fé, da qual a oração vai brotando, e com a qual
esta é praticamente idêntica, é uma dádiva celestial (cf. Ef 6,18,
orando no Espírito). Para Paulo, a oração é, em última análise, o
Espírito que habita em nós e nos dá energia, que conversa com o
próprio Deus [...]. Logo, a oração, para ser eficaz, não depende da
eloquência humana nem de qualquer estado de espírito específico. O
apóstolo ressalta, pelo contrário, que a oração operada no Espírito é
tanto evidência da certeza da salvação, quanto aumento da mesma 104
.
Além disso, outra propriedade da oração para o apóstolo Paulo, e por
conseguinte, para os seus discípulos, como é possível notar nos escritos deutero-
102
BALZ. Proseu,komai. In: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento; vol. II, 2012, p. 1175. 103
Cf. Idem, p. 1174. 104
SCHÖNWEISS, H.; BROWN, C. Oração. in: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 1455.
52
paulinos, é que esta ação (de orar) pode ser elevada a uma atitude de vigilância e de
sinal de piedade. Ocorre aqui uma importante associação entre oração e vigilância. O
verbo grego avgru/pne,w, presente no versículo 18b, significa justamente “que não pode
dormir, vigilante”.
L‟associazione tra vigilanza e preghiera è ricorrente nel NT, è radicata
nella tradizione sinottica, fra i cui testi va menzionato Mc 14,38, ossia
il monito di Gesù ai discepoli addormentati nel Getsemani. L‟autore
riprende quindi un tema ben conosciuto anche al di fuori della Lettera
ai Colossesi. La quadruplice ripetizione dell‟aggetivo pas («ogni,
tutto») serve a denotare tutte le dimensioni della preghiera,
indicandone il genere («ogni sorta di preghiera»), il tempo («ogni
occasione»), la modalità («ogni perseveranza», ossia um‟assiduità
totale) e i destinatari («tutti i santi»), e allo stesso tempo evoca nel
lettore il senso dell‟urgenza e dell‟inderogabilità della preghiera 105
.
Sobre esta característica de vigilância da oração, pode-se acrescentar, segundo
Romanello, outra peculiaridade, isto é, a oração como um ato constante. Em vários
textos paulinos sublinha-se esta peculiaridade (cf. 1Ts 5,17; Rm 1,10; 12,12; Fl 1,3-4;
4,6; Cl 1,3; 4,2; 2Ts 1,11; 1Tm 2,8; 5,5)
Las cartas post-paulinas muestran que la oración se va conviertiendo
cada vez más en una manifestación vital amplia y determinante de las
comunidades cristianas primitivas, en signo de piedad en medio de un
mundo hostil a la salvación y de confianza en la cercanía auxiliadora
de Dios. La parénesis de la oración se encamina sobre todo a las
condiciones previas para orar como es debido: “permanecer
vigilantes” 106
.
Outro aspecto importante da oração é a perspectiva de intercessão. Esta oração
de intercessão emerge como uma característica essencial no pensamento paulino. O
Apóstolo tem por grande valia este aspecto, pois aquele que ora, está inserido como
mediador e intercessor perante Deus, ao suplicar pelas necessidades de alguém.
La oración alcanza su objetivo cuando los dones del Espíritu se
orientan hacia Dios y hacia la comunidad, y no se estancan em el
arrobamiento del entusiasmo. De ahí que, para Pablo, la oración sea
ante todo intercesión, intercesión que él hace em favor de las
comunidades [...], y que él espera a su vez de ellas (Rom 15,30; 1Tes
5,25; Fm 22), por que la intercesión de ellas no es outra cosa
compartir la lucha que se ha impuesto al apóstol 107
.
105
ROMANELLO, Stefano. Lettera agli Efesini. Milano: Paoline, 2003, p. 229-230. 106
BALZ. Proseu,komai. In: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento; vol. II, 2012, p. 1182. 107
Ibidem.
53
Deste modo, é justamente nesta perspectiva que se encaixa o pedido que realiza
o autor na perícope estudada. Ele pede aos irmãos que orem, no Espírito, por todos os
santos e também por ele. Não se trata de um pedido genérico por ele. Mas de pedir e
orar para que lhe seja dado algo, para que ele possa receber isso das mãos de Deus, em
função da missão que ele exerce em favor das comunidades. E neste caso, o pedido
consiste em que lhe seja dada a capacidade de anunciar o mistério do Evangelho com
toda parresía, com toda franqueza, sem nenhum empecilho.
Este pedido de oração está vinculado à obtenção de alguma coisa. Portanto, a
oração, enquanto graça, é um meio para atingir uma outra graça, neste caso a parresía.
Isto denota que o recebimento da parresía era para o autor de suma importância. Por
isso, ele não deseja somente alcançá-la, senão que pede à comunidade a qual a carta é
dirigida que orem por ele para obtê-la. Já que, como visto, a oração possui também a
característica de intercessão, esta seria um meio para lograr aquilo que deseja.
Assim sendo, a participação dos fiéis na vida missionária do Apóstolo, não é
uma ação passiva, mas ativa. Eles (os fiéis), mediante a sua prática de oração e
intercessão junto a Deus, colaboram e sustentam o missionário no seu trabalho
evangelizador e, por sua vez, são os beneficiados da graça concedida por Deus ao
apóstolo.
2.3.2 Lo,goς (Palavra)
O substantivo lo,goς ocorre 330 vezes no Novo Testamento, a sua grande
maioria nos Evangelhos (129). No entanto, nas cartas paulinas autênticas, este termo
aparece 48 vezes e nas deutero-paulina outras 48 vezes. Contudo, em Efésios, o
vocábulo ocorre apenas 4 vezes, sendo que uma delas na perícope em questão.
O termo possui uma gama de significados e atribuições: palavra, discurso,
linguagem, relato, enunciado, sentença, pregação, ensinamento e muitos outros. Na
LXX, o termo é a tradução do substantivo דבר (dabar) do hebraico. Por conseguinte,
para uma melhor compreensão do termo, dentro da carta aos Éfesios, é mister analisar
alguns significados mais importantes de lo,goς.
O primeiro aspecto a ser salientado é que o lo,goς, no prólogo do IV Evangelho,
é a Palavra criadora de Deus, o Filho que se encarna: Jesus Cristo. A própria pessoa de
Cristo é o lo,goς de Deus. “El prólogo del Evangelio de Juan (Jn 1,1-18), estructurado
54
rítmicamente, es un himno (del cristianismo primitivo) que identifica a Cristo mismo –
en el uso absoluto de palabra – con el lo,goς personal” 108
.
Por conseguinte, nos sinóticos não há uma configuração personalizada de Cristo
como palavra. Nesses evangelhos, a palavra constitui o centro da pregação de Jesus. “El
comienzo del reino salvífico de Dios no sólo está vinculado con la predicación de Jesús
como palabra hablada, sino también – y en igual modo – con su persona y con su obra”
109 (cf. Mc 2,2; Lc 7,7; Mt 7,28).
Vale lembrar que esta compreensão do lo,goς se expande na ação salvífica de
Cristo. Primeiramente ele opera milagres e prodígios com o poder de sua palavra (cf.
Mc 1,27; Lc 4,36; Mt 8,8.16). A palavra proferida não é apenas um som, mas uma ação,
um ato em si, que se cumpre e se realiza ao ser pronunciada. Esta característica também
se encontra na teologia paulina:
Para Pablo la creadora «palabrade Dios» (o. lo,goõ tou/ Qeou/), que
originalmente estuvo dirigida a Israel, «no há fallado» (Rom 9,6); tal
cosa no sería posible en absoluto, porque Dios mismo es la fuente de
esa palabra (1Cor 14,36; 2Cor 4,2), del evangelio, que debe
diferenciarse claramente de la «palabra humana» (lo,goõ anqrw,pon;
1Tes 2,13; 1,5; 2,5). Pablo dice refiriéndose a su propia predicación
«No somos como muchos, que comercian con la palabra de Dios.
Nosotros la proclamamos con sinceridad y em Cristo, de parte de Dios
y en presencia de Dios” 110
.
Ainda mais, as primeiras comunidades cristãs sublinharam este vínculo
intrínseco entre a Palavra e a ação. “El lenguaje misionero del cristiano primitivo
expresó constantemente la unidad entre la palabra y la acción en la actividad salvífica de
Jesus” 111
. Há uma força sobrenatural presente na Palavra, quando esta é pronunciada
por Cristo e em nome de Cristo. Segundo Atos, como conseqüência do derramamento
do Espírito, os apóstolos compreenderam este sentido. De fato, após o recebimento do
Espírito no dia de Pentecostes, Pedro cura um paralítico unicamente pelo poder da
palavra (cf. At 3,6).
No entanto, para que essa palavra exerça tal poder de relação (palavra-ato), é
necessário que exista um vínculo também entre o pregador e a Palavra. Esta coerência
possibilita que o lo,goς, pronunciado em nome de Cristo, realize sua função.
108
RITT, H. Lo,goõ. In: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento; vol. II, 2012, p. 77. 109
Idem, p. 72. 110
Idem, p. 74. 111
Ibidem.
55
Pablo expressa la unidad que existe entre la credibilidad del
proclamador y el contenido de la predicación que procede de Dios.
[Él] rechaza así la acusación de falsificar la palabra de Dios (2Cor
4,2). Niega también que él trate de apoyar la palabra de Dios «con
uma palabra de sabiduría» (1Cor 2,1): «Mi palabra y mi proclamación
(o. lo,goõ mou kai. to. kh,rugma, mou) no consistían en palabras
persuasivas de sabiduría, sino en demostración del Espíritu y de poder,
para que vuestra fe no descanse en la sabiduría de los hombres, sino
en el poder de Dios» (1Cor 2,4-5) 112
.
Deste modo, vê-se não somente a necessidade do discípulo estar unido à palavra
para que se realize a ação, mas toda a vida daquele que foi resgatado por meio de Cristo,
lo,goς de Deus, deve estar permeada pela presença desta palavra. O lo,goς é o centro da
vida de cada cristão, pois ele é a pessoa mesma de Jesus. E o centro desta palavra é o
evento pascal de Cristo. Para Paulo, a palavra da cruz é o conteúdo principal do
kerigma.
De esta predicación de la cruz, proclamada públicamente, debe estar
plasmada la comunidad (Gl 4,19). El Xristo.õ estaurwme,noõ [...] es el
criterio de la proclamación paulina: la decisión de Dios en favor del
mundo y la separación de los hombres para salvación o para perdición
tuvieron lugar en el acontecimiento de la cruz. [...]. El ministerio
apostólico consiste en la transmissión de la «palabra de la verdad»
(2Cor 6,7: en lo.goõ alhqei.aõ). La exigencia fundamental que se hace
a la comunidad en este mundo es que permanezca aferrada a la
«palabra de la vida» (Flp 2,16: lo.gon zwh/õ epe,konteõ), que es como
se designa al evangelio 113
.
Com base na citação acima, é notório que assim como a Palavra é o próprio
Cristo, ela também é o evangelho anunciado por Cristo, uma vez que o evangelho está
em função não do anúncio de um conjunto de palavras, mas de uma pessoa, uma forma,
um modo novo de viver que agrada ao Pai. Deste modo, quando Paulo fala da Palavra
refere-se ao próprio evangelho.
Na perícope em análise, como já foi assinalado, o autor pede oração para que
quando ele abrir os lábios lhe seja dada a palavra (lo,goς) para anunciar com parresía o
mistério do evangelho. A palavra, neste texto, é a Palavra divina. Portanto, o lo,goς nada
mais é do que o conteúdo do anúncio deste mistério do qual Deus o constituiu
embaixador, ou seja, a pessoa de Cristo que se manifesta na vida do apóstolo por meio
da Palavra vivida e anunciada.
112
RITT, H. Lo,goõ. in: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento; vol. II, 2012, p. 74. 113
Idem, p. 75.
56
2.3.3 Parrhsi,a (Parresía)
O objeto de estudo do presente trabalho, como já foi descrito no capítulo
precedente, está presente de maneira singular na perícope . A parresía assume um papel
importante para o escritor da carta, motivo pelo qual deseja despertar na comunidade
igual sensibilidade. Este aspecto configura-se no pedido feito aos destinatários para que
o sustentem na pespectiva parresíastica da vida apostólica e missionária.
Note-se que na perícope está presente tanto o substantivo parresía quanto sua
forma verbal grega parresiazomai. Neste tópico, não será analisado o significado
etimológico do termo, uma vez que isto já foi abordado no primeiro capítulo. Aqui,
portanto, serão apenas consideradas as características paulinas da parresía. Schlier faz
algumas considerações acerca deste tema:
Il dono della parola di Dio – quando è Dio che ci apre la bocca –
comporta una tale “franchezza”. E poichè bisogna assumerla,
l‟Apostolo la invoca. A sostegno di questa interpretazione di parrhsi,a sta la propozione relativa del v. 20a: l‟accenno alla prigionia attuale
chiarisce qual è la situazione nella qualle è necessaria la pαρρησία
intesa nel senso di “coraggio appertamente dimostrato”.
Probabilmente il complemento en parrhsi,a è più strettamente
congiunto con to. musth,rion tou/ euaggeli,ou e indica quindi che esso
è aperto e disvelato 114
.
Assim sendo, vemos que Shchlier apresenta a parresía como uma característica
de grande importância na vida do apóstolo. Mais ainda, ele, como também outros
pesquisadores, vincula a parresía com o anúncio do Evangelho. Não é que o escritor da
carta pede aos seus destinatários que roguem a Deus por ele para que receba a parresía
somente como um adendo em sua vida, senão que o recebimento desta graça e virtude
está em união intrínseca com o Evangelho.
[L‟autore] pregherebbe dunque che Dio gli apra la bocca per
concedergli la parola al fine di annunciare apertamente e con pronta
franchezza il mistero dell‟evangelo. [E anche] questa franchezza
dell‟annuncio si realizza in quanto l‟annunciatore si espone
francamente alla parola e alla situazione 115
.
Observa-se que a missão de anunciar o Evangelho não é uma ação fundamentada
apenas em habilidades humanas. Ou seja, o anúncio é exercido apenas por meio de
propriedades humanas, senão que necessita previamente de uma intervenção divina,
para que assim possa ser realizado de modo mais coerente com sua natureza.
114
SCHLIER, Heinrich. La lettera agli Efesini. Col. Comentario Teologico del Nuovo Testamento.
Brescia: Paideia Editrice, 1973, p. 485. 115
Idem, p. 485.
57
Ma in particolare l‟autore, che impersona Paolo, la chiede per sé e con
uno scopo ben preciso: per la franchezza dell‟annuncio. Con ciò
l‟agiografo non intende soltanto dire che scrive in nome dell‟apostolo
ma vuole soprattutto presentare un modello di autentica esistenza
cristiana nel mondo 116
.
Apresenta-se assim, uma denotação de relevância da parresía. É que na grande
maioria de suas ocorrências nos Atos dos Apóstolos e nas cartas paulinas, o termo,
como já citado, está estritamente vinculado com o anúncio do Evangelho e da Palavra
de Deus. Portanto, para Paulo e também para seus discípulos, o anúncio da boa nova de
Cristo era assaz importante que não devia ser acompanhado de um simples discurso ou
explanação do mistério de Cristo, senão que este mesmo anúncio deveria estar
estritamente unido com uma atitude parresiástica.
Deste modo, a parresía apresenta uma dimensão do ser cristão de um modo
geral, uma vez que ela permite ao fiel se encontrar mais profundamente com o mistério
de Cristo, e de um modo mais particular enquanto missão apostólica, pois ela possibilita
ao pregador exercer de modo mais fecundo seu ministério. Neste segundo caso, ela se
manifesta de maneira específica na pregação do evangelho.
Assim sendo, tomando por base os dois aspectos já referidos, a parresía torna-se
uma franqueza perante Deus (encontro com a boa notícia) e uma franqueza perante os
homens (atitude na pregação). Destarte, “per l‟apostolo la parrhsi,a verso Dio [...]
[comporta] poi la parrhsi,a verso gli uomini[...]. Una tale franchezza della vita
apostolica è però radicata nel dono dell‟evangelo, servizio che è diakoni,a tou/
pneu,matoõ e th/õ dikaiosu,nhõ” 117
.
Quanto à parresía em relação aos homens, mediante a pregação do evangelho,
vale salientar que esta se une e se aproxima a um outro termo grego, a ἐxousi,a
(autoridade). Para o exercício da parresía em função do anúncio da boa notícia, não se
pode pretender apenas de uma capacidade humana. É necessário possuir uma autoridade
(ἐxousi,a) que vem de Deus, já que a obra da pregação é permeada pela ação divina.
Assim sendo, unindo parresía e autoridade, a pregação atinge seu objetivo com maior
precisão. Não se trata aqui de uma autoridade enquanto poder, capacidade de governar,
significados que o termo também pode possuir na língua grega. Porém, neste caso,
refere-se à força adquirida por meio do poder da palavra salvífica, como também da
116
PENNA. Lettera agli Efesini; 2010, p. 257. 117
SCHLIER, H. Parrhsi,a. In: KITTEL, Gerhard; FRIEDRICH, Gerhard. Grande Lessico del Nuovo
Testamento. Vol. IX. Brescia: Paideia, 1974, p. 920.
58
autoridade frente aos homens, já que essa autoridade se manifesta na coerência do viver,
no pregar o que se vive. E é justamente essa força que confere ao pregador a
competência de superar toda e qualquer dificuldade que se lhe apresente no caminho da
ação missionária. Apresenta-se aqui uma gama de citações, tanto do livro dos Atos dos
Apóstolos, quanto das cartas proto e deutero-paulinas que manifestam os diversos
obstáculos que Paulo superou na sua missão: cf. At 9,19b-22; 14,1-7; 16,6-8.16-28;
17,1-5. 10-13. 18,12-17. 20,7-12. 21,30. 24,14-16; 27,9-44; Rm 8,36; 2Cor 2,12-13;
2Cor 4,7-17; 2Cor 12,7-10; Gl 3,1-5; Fl 1,12-26; Cl 1,24-29; 1Ts 2,2-12; 2Ts 3,7-9.
Deste modo, podemos compreender o motivo pelo qual o hagiógrafo, ao se
colocar no lugar do Apóstolo, pede à comunidade que ore ao Senhor pedindo que lhe
seja dado anunciar com parresía o mistério do Evangelho. E, no final deste pedido,
ainda acrescenta a necessidade de anunciar sempre com franqueza a boa nova do Cristo.
É imprescindível o anúncio do Evangelho, atesta o autor, não se importando com as
possíveis consequências. Afinal, o que importa é que se dê o anúncio.
2.3.4 Gnwri,zw (Anúncio) e Musth,rion tou Euaggeli,ou (Mistério do Evangelho)
Dois termos que na perícope são relevantes para sua compreensão é justamente a
relação que emerge entre a parresía e o anúncio, e entre a parresía e o mistério do
Evangelho. Portanto, neste tópico, será explorado qual sentido destes termos dentro da
perícope e dentro da teologia paulina, e qual a sua importância em correspondência com
a parresía.
O verbo grego gnwri,zw tem por significado dar a conhecer, revelar, anunciar.
Nos escritos paulinos e deutero-paulinos, este verbo adquire o caráter de revelação que
possui a mensagem cristã da boa nova de Cristo.
En el NT el término se emplea frecuentíssimamente en el sentido
fundamental dar a conocer algo, manifestarlo pública o
expressamente, y, en parte también, de comunicar solemnemente (Lc
2,15.17; Jn 15,15; 17,26; Rom 9,22-23; 16,26; 2Pe 1,16). En todos
estos pasajes se escucha al mismo tiempo el sentido de: revelar de
parte de Dios la salvación que fue obrada y es obrada por Jesucristo.
Esta denotación y orientación religiosa de gnwri,zw en el sentido de:
«proclamar el plan de Dios para la salvación, el acontecimiento de la
salvación en Cristo», determina el empleo del verbo, principalmente
en Juan, Colosenses y Efesios 118
.
118
KNOCH, O. Gnwri,zw. In: Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento, vol.I, 2012, p. 772.
59
Destarte, pode-se averiguar que o verbo, de modo particular na Carta aos
Efésios, é utilizado para expressar a proclamação, a revelação do plano de Deus. Este
verbo possui ainda mais este sentido quando está unido com musth,rion tou euaggeli,ou,
como é o caso. Anunciar, revelar ou manifestar publicamente o mistério do Evangelho.
Por conseguinte, analisa-se o sentido do termo musth,rion tou euaggeli,ou. O
verbo acima visto está em relação direta com este “mistério do Evangelho”. O Apóstolo
anseia a parresía para anunciar, para revelar o referido mistério. Note-se que o termo
(musth,rion), aparece 28 vezes no NT, sendo apenas 1 vez nos Evangelhos (Mc 4,11), e
todas as outras ocorrências nas cartas e no livro do Apocalipse.
Nos escritos paulinos e deutero-paulinos o mistério faz sempre referência à
pessoa de Jesus Cristo e à sua obra salvadora, ou melhor, “el musth,rion se refiere
primordialmente a la acción salvífica de Dios en Cristo” 119
. Esta ação consiste
justamente na morte de Cristo na cruz para a salvação da humanidade. De fato, quando
Paulo faz uso do termo, apresenta como centralidade deste mistério o Cristo crucificado
(cf. 1Cor 2,1; 1,23; 2,6-8). Pois este era o projeto de Deus antes dos séculos e que foi
manifestado, revelado (gnwri,zw) na pessoa de Jesus: “Ensinamos a sabedoria de Deus,
misteriosa (em musthri,w) e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou
para a nossa glória. A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. (1Cor 2,7.10).
Esta associação entre “oculto-manifesto”, atribuída ao mistério, adquire
importância na compreensão do termo, unido a tou euaggeli,ou, para entender a relação
com a parresía. Anunciar o mistério do Evangelho, nada mais é do que tornar
conhecido, manifesto algo que estava oculto, velado desde todos os séculos. Trata-se de
um plano “secreto” (se assim pode-se dizer) de Deus que veio “à luz” no Evento Cristo.
O mistério do Cristo ressuscitado, a partir de sua páscoa e ascensão aos céus, deve ser
divulgado a todas as nações.
La base del uso de musth,rion en el NT reside en el significado
fundamental del término griego inexpresable, es decir, lo que no es
accesible al pensamiento natural (pero sí es accesible a la fe). Esto
impide que el concepto tenga un contorno preciso. El sentido de cada
enunciado se deduce en cada caso del correspondiente contexto. Aquí
el papel más importante lo desempeña la tradición de las concepciones
apocalípticas judías (el misterio oculto y luego revelado) 120
.
119
KRÄMER, H. Musth,rion. In: Diccionário Exegético del Nuevo Testamento; vol. II , 2012, p. 346. 120
Idem, p. 351.
60
No entanto, esta revelação do mistério de Cristo a todos os povos, uma vez que
esteve escondido e agora foi manifestado, deve ser expandido e difundido por meio da
parresía: “En [Ef] 6,19 el «musth,rion del evangelio» se refiere también en forma
sucinta pero global a la proclamación del misterio de Cristo (como indica también el
término parrhsi,a)” 121
. Deste modo, a parresía não permite apenas manifestar algo que
estava escondido, senão que é imprescindível para que esta revelação possa alcançar a
todos. A autoridade para anunciar o mistério do Evangelho é consequência da força
parresíastica requisitada pelo hagiógrafo.
2.3.5 Dei/ (Necessário)
O vocábulo grego dei/ tem por tradução mais próxima “é necessário”. Este termo
não possui nenhuma equivalência semítica122
. Por este motivo, o significado dele no
Novo Testamento, comumente se difere do sentido que possui na LXX. No entanto, “il
NT si accorda com i LXX quando si serve di dei/ per esprimere l‟obbligazione etico-
religiosa (per es. Lc 13,14; 22,7)” 123
. Ele designa uma necessidade plena, e por vezes
imprescindível de ser descumprida. O vocábulo ocorre 102 vezes no NT, sendo que 41
são na obra lucana. Na língua grega este termo é um verbo, que traduzido para o
português, para manter seu sentido original, deve ser acompanhado do verbo ser: “é
necessário”.
Los enunciados que se forman con este verbo tienen por naturaleza
carácter absoluto, muy difícilmente cuestionable y, a menudo,
anónimo y determinístico. La conexión con el concepto bíblico de un
Dios personal no se efectuó sin problemas. En el NT, los enunciados
con dei/ se entieden más o menos directamente como decretos divinos.
Y, así, la voluntad y la esencia de Dios dictan las normas para la ética
y la piedad. [...].Dei/ en el NT es casi siempre expresión de las normas
dadas por Dios y, muy especialmente, del plan divino 124
.
Deste modo, analisando o dei/ enquanto expressão de uma vontade divina
preestabelicda, vale salientar que as primeiras comunidades cristãs descobriram, a partir
do encontro com o Cristo Ressuscitado e consequência da pregação apostólica, a
“necessidade” de viver de acordo com o plano divino (cf. 1Ts 4,1). Esta necessidade, ou
121
KRÄMER, H. Musth,rion. In: Diccionário Exegético del Nuevo Testamento; vol. II , 2012, p. 349. 122
POPKES, W. Dei/. In: Diccionário Exegético del Nuevo Testamento; vol. I, 2012, p. 840. 123
GRUNDMANN, W. Dei. In: Grande Lessico del Nuovo Testamento; vol. II, 1966, p. 794. 124
POPKES, W. Dei/. In: Diccionário Exegético del Nuevo Testamento; vol. I, 2012, p. 841.
61
este algo necessário, não é uma característica extrínseca ao crente, recebida por meio de
uma intervenção externa pura e simplesmente.
No entanto, os efeitos que esta verdade imprime na vida do cristão não são
aspectos exteriores, mas constituintes de sua natureza. “La necessità così espressa incide
sull‟individuo tutto intero – pensiero, volontà e azione – così che in lui il dei/ è sempre
presente, riconoscibile anche quando indica semplicemente la necessità che governa la
vita d‟ogni giorno” 125
.
Assim sendo, este aspecto denota que a ação de Deus na vida do homem, e no
caso da perícope em questão, na vida do apóstolo, não é alheia ou externa à sua vida.
Toda ação de Deus, assim como toda intervenção dele na história, é sempre algo
necessário e intrínseco à vida humana. O plano salvífico de Deus, manifestado na obra
redentora do seu Filho, é o maior e mais claro exemplo desta “necessidade” da vontade
de Deus. Cristo, sendo o Verbo eterno do Pai, entra na história humana por meio da
encarnação. Deus não é passível à vida do homem, mas substancialmente ativo. “Dei/
diviene espressione universale della volontà di Dio e la sentenza che da esso dipende
viene facilmente ad esprimere una norma di vita” 126
.
Na perícope, o autor, ao utilizar a partícula dei/, expressa a necessidade que ele
possui e precisa para anunciar o Evangelho, para falar sobre o mistério de Cristo, como
um desejo de se adequar a vontade divina. Além do mais, o vocábulo possui um valor
escatológico. Trata-se de realizar a necessidade do plano salvífico de Deus, em função
de um cumprimento que chegará com a plenitude. Não é uma necessidade por
necessidade, mas tem em vista o cumprimento de uma promessa permanentemente
renovada, a promessa da salvação e da participação na vida divina.
Nel NT il termine assume valore escatologico, indicando
l‟ineluttabilità degli eventi supremi. Dobbiamo dire che esso è bem
idoneo a recevere questo arrichimento, poichè tali eventi sono
nascosto all‟uomo, il quale li può aprendere solo attraverso una
speciale rivelazione che gli manifesta una necessità misteriosa e
fondata unicamente nella volontà sovrana di Dio. La tensione che
nasce dalla fusione di dei/ con la nozione bíblica di Dio si avverte
anche quando il verbo viene usato in riferimento al dramma
escatologico per caraterizzare il Dio arcano che realizza i suoi piani
misteriosi riguardo il mondo. Questo dei è configurato non secondo
una cieca fede nel destino, ma secondo la fede negli eterni decreti di
Dio, che con essi si è vincolato. In tal modo esso esprime una
125
GRUNDMANN, W. Dei. In: Grande Lessico del Nuovo Testamento; vol. II, 1966, p. 795. 126
Idem, p. 798.
62
necessità che si ancora nella natura stessa di Dio e che porta a
compimento i suoi disegni negli eventi escatologici 127
.
2.3.6 Presbeu,w (Embaixador)
Outro termo que aparece na perícope analisada e que apresenta uma deferência
no corpo do texto é embaixador. Este termo na língua grega, como visto na análise
sintática, em comparação com a gramática portuguesa, não é um substantivo, mas um
verbo. O substantivo deste verbo, por sua vez, é presbei,a, e tem por significado uma
embaixada, o qual designa o grupo de pessoas que entregam uma determinada
mensagem ou que realizam uma tarefa.
Por conseguinte, o verbo grego presbeu,w designa um embaixador, isto é, alguém
enviado ou que atua como tal, como emissário em nome de outra pessoa, ou ao menos
alguém que exerce essa função. Este enviado tem por incumbência levar uma
mensagem, ou efetuar alguma tarefa no lugar de outro. O verbo e o substantivo
aparecem 4 vezes no Novo Testamento, sendo na forma verbal uma vez em 2Cor 5,20 e
outra em Ef 6,20, e as outras duas no Evangelho segundo Lucas (14,32; 19,14).
A ocorrência deste verbo apenas em Paulo e em Lucas não pode ser vista como
uma mera coincidência. A relação entre Paulo e Lucas é relatada tanto nos Atos dos
Apóstolos (cf. 16,10-17; 20,5-15; 27,1-28; 28,16) quanto carta protopaulina a Filêmon
(cf. v. 24) e na deuteropaulina aos Colossenses (cf. 4,14). Ademais, alguns
pesquisadores, antigos e modernos, afirmaram, com base nos escritos bíblicos, que
Lucas foi companheiro de Paulo, embora haja controvérsias quanto a essa questão.
Ireneo (Adv. haer., 3.14,1) apela a estas secciones del libro de los
Hechos de los Apóstoles para enunciar su tesis de que Lucas había
sido compañero «inseparable» de Pablo. Naturalmente, al establecer
este postulado, Ireneo hizo decir al texto más de lo que realmente
afirma. Es indudable que el autor del libro de los Hechos de los
Apóstoles relata la actividad misionera desplegada por Pablo después
de la «asamblea» de Jerusalén, que tuvo lugar hacia el año 49. Por otra
parte, las secciones narrativas en primera persona del plural, que no
empiezan hasta después de dicha asamblea, suponen que el narrador
acompañó a Pablo desde Tróade a Filipos en el segundo viaje
misionero (entre los años 49-52), y que se quedó en esa ciudad hasta
que Pablo volvió a pasar por allí hacia el final de su tercer viaje (entre
los años 54-57) 128
.
Tendo presente, portanto, que em alguns momentos das viagens de Paulo, Lucas
tenha acompanhado o Apóstolo, como se confere na citação e nas seções narrativas
127
GRUNDMANN, W. Dei. In: Grande Lessico del Nuovo Testamento; vol. II, 1966, p. 798-799. 128
FITZMYER, Joseph A. El evangelio según Lucas I: introducción general. Madrid: Ediciones
Cristiandad, 1986, p. 92.
63
“nós” dos Atos dos Apóstolos, pode-se vislumbrar que estes foram companheiros de
viagem. O que contradiz a inseparabilidade, defendida por Irineu de Lyon. A este
respeito, Fitzmyer apresenta também uma interpretação:
Lucas no acompañó a Pablo durante la mayor parte de la actividad
misionera del Apostól o precisamente durante el período en que Pablo
escribió sus cartas más importantes. Esto significaría, además, que
Lucas no estaba presente cuando Pablo tuvo que enfrentarse con los
momentos más duros de su evangelización del Mediterráneo oriental;
por ejemplo, sus problemas con los judaizantes, su lucha contra las
divisiones comunitarias en Corinto o las dificultades que surgieron en
Tesalónica. Lucas no habría estado en compañía de Pablo cuando éste
se esforzaba por formular la esencia de su concepción teológica o por
captar el verdadero significado del evangelio. Así se explicaría la
enorme diferencia entre el Pablo descrito en el libro de los Hechos de
los Apóstoles y el Pablo que revelan sus propias cartas 129
.
Assim sendo, uma outra questão é se Lucas teria tido acesso a alguma carta
paulina. Há controvérsias a este respeito. Talvez, no período da prisão domiciliar de
Paulo em Roma, onde lhe são atribuídas algumas cartas, Lucas teria lido algum de seus
escritos. No entanto, segundo Fitzmyer, não há nenhuma justificativa plausível que
corrobore com esta asserção.
Contudo, o que se pode supor, é que breve ou não, Paulo e Lucas estiveram por
algum tempo juntos. Esta companhia, por mais curta tenha sido, não poderia ser
considerada como irrelevante na vida de ambos. Assim, é possível supor que a
utilização do verbo presbeu,w apenas em Lucas e Paulo, fundamentaria uma possível
relação que teriam tido em suas atividades missionárias.
Sem embargo, voltando ao significado semântico do verbo, analisa-se que
En Ef 6,20 presbeu,w se halla en uma petición de oraciones por el
proclamador del evangelio, un proclamador que se halla ahora en
cadenas (de manera parecida, Col 4,2-4). En comparación con 2Cor
5,20, es notable que «Pablo» aquí no hable ya em nombre del Cristo
exaltado, como hacía en el outro lugar, sino que dé testimonio del
evangelio, es decir, u,pe.r ou= presbeu,w no debe traducirse ya «en
nombre de quien...», sino «en favor de quien yo realizo el servicio de
embajador». En ambos casos el verbo expressa el caráter oficial del
mensaje paulino 130
.
Com base na citação supracitada, pode-se conferir que a função de embaixador,
da qual se apropria o hagiógrafo, está em vista do serviço prestado. Este serviço consiste
justamente no anúncio da palavra, e este visa ser realizado com toda parresía. O autor
129
FITZMYER, Joseph A. El evangelio según Lucas I: introducción general; 1986, p. 93. 130
ROHDE, J. Presbeu,w. In: Diccionário Exegético del Nuevo Testamento; vol. II, 2012, p. 1117.
64
se posiciona numa condição de enviado, destinado a realizar uma tarefa, não importando
a situação na qual se encontra, neste caso preso (presbeu,w em alu,sei – embaixador em
cadeia).
Ciò che [l‟autore] dice nel v. 20º, cioè che egli, inviato per il mistero
dell‟evangelo, si trova in prigione, dimostra in ogni caso che prima
egli non pensava ad uma preghiera rivolta ad ottenere la possibilita di
annunciare l‟evangelo, giacché il verbo presbeu,w già pressuppone
l‟annuncio. Esso infati significa «agire, operare come inviato». Upe,r ou= significa «a favore dell‟evangelo» [...]. ~En alu,sei propriamente
«in catene» [...], indica la situazione in cui si trova l‟apostolo. Egli è
prigionero 131
.
Deve-se notar, ainda que, tanto embaixador quanto presbítero possuem a mesma
raiz verbal grega. Isto denota que aquele que exerce a função de embaixador é alguém
venerável, ancião, representante (presbute,roς). Por conseguinte, o autor da carta,
quando afirma ser um embaixador do mistério do Evangelho, está se colocando não
somente como um emissário, mas também como alguém com experiência e perícia na
missão evangelizadora.
2.3.7 Pneu/ma (Espírito)
Assim como na linguagem bíblica, em todas as línguas clássicas a palavra
“espírito” destaca-se pela sua pluralidade semântica. Ora tomado como princípio de
vida, ora como essência transcendente do homem. Em um ou em outro caso, destaca-se,
no que tange o tema espírito, um aspecto de transcendência, que, sendo intrínseco à
natureza humana, torna patente uma tensão essencial no homem expressa no binômio:
imortalidade-liberdade.
O ser humano é ao mesmo tempo indeterminado, pois, sendo livre, vem quase
que constringido a moldar-se à medida em que atua no mundo; e, ao mesmo tempo,
indestrutível pois na imaterialidade do seu espírito aspira à uma vida sem fim como
vocação inexorável.
O Antigo Testamento traz uma variedade muito grande de sentidos para o termo
que comumente costumamos designar pela palavra “espírito”. Guillet 132
baliza em
quatro aspectos essenciais: vento, respiração, alma vivente e força interior. Em relação
com o tema aqui proposto, destaca-se o último aspecto, pois é princípio e fonte única de
131
SCHLIER. La lettera agli Efesini; 1973, p. 485-487. 132
GUILLET, Jacques. Espírito. In: LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de teologia bíblica.
Petrópolis: Vozes, 2008. p. 294.
65
todas as transformações profundas do ser humana. Podendo ser espírito de maldade,
pecado e injustiça, é também força de bondade e justiça, capaz de impelir o homem à
realização de suas aspirações mais profundas e ao cumprimento da plenitude à qual
tende.
No Novo Testamento a polissemia do termo é abordada e ampliada. Mantém-se
a ideia da constituição humana na complexidade entre corpo e espírito (cf. Lc 8,55;
23,46). Há uma ligação bastante mais direta entre o aspecto espiritual do homem e sua
relação com Deus (cf. Jo 4,24), inclusive opondo, em certo sentido, à vida na carne e à
vida no espírito (cf. Mt 26,41) ou o homem carnal e o homem espiritual (cf. Gl 5,17).
São Paulo atribui ao homem uma tripartição na sua unidade essencial: espírito,
alma e corpo (cf. 1Ts 5,23). Ao mesmo tempo tem situado no aspecto espiritual humano
o lugar privilegiado da relação com Deus por meio da inabitação do Espírito Santo (cf.
2Co 3,18; Rm, 8,2.10-11). E nesta internalidade teândrica 133
de relação, tem papel de
protagonismo para São Paulo o tema do testemunho. É Deus mesmo que testemunha
por meio do Espírito (cf. Rm 8,16), e neste fato radica a possibilidade humana do
martírio, a condito sine qua non, onde o homem pode dar, com sua vida, um testemunho
de amor (cf. 1Ts 1,5; 1Co 1,4-7).
Dentro dos escritos paulinos autênticos, assim como nas cartas deutero-paulinas,
a relação do cristão com o Espírito é de suma importância. Não somente enquanto
característica da formação antropológica do homem, como visto acima, mas
principalmente no que se refere à terceira pessoa da Trindade, ao Espírito mesmo de
Deus, que atua e age na vida de todo àquele que adere ao Cristo ressuscitado.
Um fato óbvio, é Paulo dar como certo que o Espírito Santo é Deus. A
saber, o Espírito Santo não é apenas um de um exercício de
intermediários, mas, de acordo com o AT e a literatura judaica
intertestamentária, supõe-se que o Espírito seja singular, único em
poder e em relação a Deus. [...]. Paulo sempre fala do Espírito que é
dado aos cristãos no singular: o Espírito Santo ou Espírito de Deus (cf.
Rm 8,9; 1Cor 3,16; 12, 4-6; 2Cor 5,5; Gl 3,5) 134
.
133
Congar afirma a respeito dessa relação teândrica proporcionada pelo Espírito: “A verdade teândrica de
Cristo quer que ele seja conhecido em sua humanidade, em seu condicionamento sociocultural e histórico.
O cristão, portanto, usará os meios técnicos que correspondam a tudo isso. Mas, como fiel, ele irá mais a
fundo, de acordo com são Paulo: „Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que
vem de Deus, a fim de conhecermos os dons da graça de Deus. E não falamos deles na linguagem que é
ensinada pela sabedoria humana, mas na que é ensinada pelo Espírito, exprimindo o que é espiritual em
termos espirituais. O homem entregue unicamente à sua natureza não aceita o que vem do Espírito de
Deus‟ (1Cor 2,12-14)”. CONGAR, Yves. Creio no Espírito Santo 2: Ele é o Senhor e dá a vida. São
Paulo: Paulinas, 2005, p.143. 134
PAIGE, T. Espírito Santo. In: Dicionário de Paulo e sua cartas; 2008, p. 485.
66
Por conseguinte, o Espírito na teologia paulina é o propulsor da vida cristã. Ele
(o Espírito) não somente testemunha na vida do cristão a existência de Deus, mas guia e
conduz a vida daqueles que aderem a Cristo. Paulo, em suas cartas, apresenta os cristãos
como pessoas que são conduzidas pelo Espírito (cf. Rm 8,4.14; Gl 3,3; 5,16.25). Deste
modo, a vida no Espírito adquire uma centralidade na teologia do apóstolo. Aquele que
recebeu o anúncio do Evangelho e por meio da conversão recebeu o Espírito Santo,
obtém uma vida e uma conduta diferente de antes. “Paulo contava o início da vida cristã
dos seus convertidos a partir do seu recebimento pessoal do Espírito” 135
.
Mais que qualquer outro autor neotestamentário, Paulo liga o conceito
do Espírito dado para habitar nos fiéis com levar uma vida cristã. O
Espírito não é só poder de Deus que convence os fiéis da verdade do
evangelho, não só promovendo sua pregação, mas o Espírito é o poder
da nova criação para os que vieram à fé em Cristo. Os cristãos que
antes estavam afastados de Deus não apenas entraram no registro
celeste dos redimidos; o Espírito habita neles e os fortalece para
levarem uma vida agradável a Deus 136
.
Esta característica é tida em consideração por Paulo, uma vez que o mesmo
aconteceu em sua vida. Pois o encontro com o ressuscitado atribuiu ao apóstolo uma
nova vida. Não apenas uma vida diferente da que antes possuía, mas uma vida, a partir
de então, permeada e conduzida pela ação do Espírito. É a exemplo seu que Paulo
exorta os cristãos a viverem.
A mais notável das recomendações éticas de Paulo é, sem dúvida, o
apelo para “andar segundo o Espírito”. No grande capítulo sobre o
Espírito (Rm 8) a primeira descrição dos cristãos é de pessoas “que
não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito” (8,4). Antes ele
havia falado em termos equivalentes da obrigação dos crentes de
“andar numa vida nova” (6,4). [...]. E alguns versículos adiante, em
Gálatas, Paulo mostra quão claramente correlacionava o começo com
o Espírito e a contínua obrigação ética dos crentes urgindo: “Se
vivemos pelo Espírito, sigamos também o Espírito” (Gl 5,25) 137
.
Esta novidade de vida, segundo o Espírito, se dá pelo fato de que é o mesmo
Espírito, aquele que gerou Jesus no seio virginal de Maria, que gera na vida de cada
cristão a “humanidade nova”. Ele é o senhor que dá a vida, como expressa o símbolo
apostólico Niceno-Constantinopolitano. Congar, na sua obra sobre o Espírito, comenta a
esse respeito:
135
DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 472. 136
PAIGE, T. Espírito Santo. In: Dicionário de Paulo e sua cartas; 2008, p. 490. 137
DUNN. A teologia do apóstolo Paulo; 2003, p. 723.
67
É o mesmo Espírito que fez Maria fecunda de Cristo e que faz a Igreja
fecunda. Os inícios desta nos Atos dos Apóstolos correspondem aos
primeiros capítulos do evangelho de são Lucas. Levando bem longe o
realismo verbal, os Padres, santo Tomás [...], identificam o “sêmen
Dei, sperma tou Theou, a semente” da qual nós nascemos de Deus
(1Jo 3,9), com o Espírito Santo. [...]. Do ponto de vista espiritual, é o
Espírito de Jesus que nos é dado como princípio de identidade cristã,
até a consumação escatológica 138
.
Ademais, para Paulo, o Espírito também é o distribuidor dos dons e carismas
espirituais. Ele, sendo Deus, não apenas suscita novos cristãos, que acreditam no
anúncio da obra redentora de Jesus Cristo e passam a levar uma nova vida neste mundo,
em função da vida vindoura, mas auxilia e acompanha os fiéis na sua peregrinação
terrestre. Esse auxílio se dá pela efusão de seus dons sobre os crentes. O amor de Deus e
sua potência criadora se dá no fato de que ele cria o homem e sustenta o que ele criou. E
essa sustentação de sua obra criadora se realiza na vida do homem pela ação do Espírito
de Deus.
Os dons são – distintos das virtudes, pois aperfeiçoam o exercício das
mesmas – essas disposições permanentes que tornam o cristão
„prompte mobilis ab inspiratione divina‟ ou „a Spiritu Sancto‟,
imediatamente pronto para seguir a moção da inspiração divina ou do
Espírito Santo 139
.
Assim sendo, é graças a essa atividade do Espírito que os cristãos podem
conhecer a sabedoria de Deus, viver dessa mesma sabedoria e transmitir aos outros que
ainda não conhecem Cristo a beleza do seu Evangelho. Pois a sabedoria de Deus é
precisamente o Salvador crucificado e, essa sabedoria, não pode ser compreendida,
muito menos entendida, sem a influência do Espírito 140
.
Muitos e diversos são os dons que são infundidos nos cristãos pelo Espírito. Não
cabe aqui elencá-los, uma vez que se correria o risco, pela diversidade desses mesmos
dons, omitir algum deles. No entanto, é mister apresentar que o Espírito socorre as
fraquezas do homem (cf. Rm 8, 26). Ele, sabendo da necessidade de cada um, esparge
os seus dons, de acordo com aquilo que necessitam.
Com base nas diversas características acerca da ação do Espírito acima
referendadas, passa-se agora a uma análise da relação que existe entre o Espírito Santo e
a parresía. Tendo por base que o Espírito é a força de Deus na vida do cristão e, deste
modo, na vida dos apóstolos, se verá como esta força inclusive permite com que o
missionário possa exercer seu discipulado com toda coragem e intrepidez.
138
CONGAR. Creio no Espírito Santo 2: Ele é o Senhor e dá a vida; 2005, p.138. 139
Idem, p. 186. 140
Cf. PAIGE, T. Espírito Santo. In: Dicionário de Paulo e sua cartas; 2008, p. 486.
68
CAPÍTULO TERCEIRO
HERMENÊUTICA TEOLÓGICA DA PARRESÍA SEGUNDO PAULO
3. Questões introdutórias
O presente capítulo visa abordar alguns aspectos decorrentes da análise feita
acerca da parresía, tanto no mundo greco-romano, como na figura do apóstolo Paulo.
Uma vez que foi visto como surgiu a parresía e qual era seu significado no mundo
helênico, e como este atributo adquiriu novo significado dentro dos escritos
neotestamentários, e mais especificamente nos escritos paulinos, pode-se, então,
averiguar qual é a contribuição deste argumento para a compreensão da missão da Igreja
e da sua edificação.
Primeiramente, urge apresentar qual é a relação da parresía com o Espírito
Santo, uma vez que é este mesmo Espírito que proporciona a dinamicidade da vida
eclesial. É o Espírito quem efunde na Igreja de Cristo os seus mais preciosos dons,
favorecendo assim o crescimento e a instrução daqueles que aderem ao mistério do
Evangelho de Jesus. Assim, entendendo a parresía como uma graça oferecida pelo
Espírito, se compreende como ele favorece, por meio de seus carismas, o
amadurecimento da fé em Cristo. E ainda, é graças à ação do Espírito Santo que cada
batizado leva adiante a missão que Cristo, por meio da sua encarnação, trouxe a esse
mundo.
Por conseguinte, esta ação do Espírito Santo na Igreja, distribuindo os seus dons
na vida dos crentes, é visível na atividade missionária daqueles que são chamados a
levar adiante o anúncio do Evangelho. O discipulado, isto é, a pertença a Cristo por
meio do batismo, é a expressão na Igreja da intervenção do Espírito. Cada fiel é
chamado a exercer, impulsionado pelo seu batismo, uma missão na vida Igreja,
proporcionando assim, que outras pessoas que ainda não conhecem a Boa-Nova de
Jesus, descubram a maravilha dessa novidade.
No entanto, uma vez que esse mesmo discipulado tem por finalidade levar outros
a crerem em Jesus, sua missão não pode ser fundada exclusivamente em qualidades e
características humanas, mas sim na graça de Deus. E é justamente nesse contexto que
se encaixa a relação do discípulo com a parresía. Sendo um anunciador do mais
sublime mistério de Deus, o discípulo não pode prescindir de uma linguagem franca
para exercer sua missão.
69
Portanto, uma vez que o Espírito distribui os seus dons aos discípulos de Cristo,
e esses, no que lhes concerne, exercem seus ministérios enraizados na potência do
Espírito, contribuem assim para a edificação do Corpo de Cristo. Cada ser humano que,
acreditando no Evangelho e aderindo à vida de Cristo por meio da pregação e do
batismo consequentemente, se torna membro do Corpo místico de Cristo. Essa analogia
com o corpo diz respeito à Igreja de Cristo, que da mesma forma, com os seus membros
e cabeça, formam o sōma toû Christoû.
Em vista disso, na relação com essas três características (o Espírito, o
discipulado e o Corpo de Cristo) torna-se presente o agir parresiástico, que não é
somente um objeto compreendido apenas como instrumento, mas um insigne atributo,
que proporciona a feliz realização de cada um dos temas acima referidos.
3.1 Parresía e Pneu/ma (Espírito)
No livro dos Atos dos Apóstolos, observa-se que logo após o evento Pascal de
Cristo (paixão, morte, ressurreição e ascensão), a comunidade dos discípulos,
obedecendo a uma ordem dado pelo próprio Jesus, permanece na cidade de Jerusalém,
aguardando o cumprimento da promessa feita a eles de que lhes enviaria o Espírito (cf.
Lc 24,49; At 1,8). É somente a partir do recebimento deste mesmo Espírito prometido
que os apóstolos empreendem a missão anunciadora do Evangelho. Vê-se deste modo
que a força e a coragem que estes homens recebem para poder anunciar que aquele
homem que estava morto agora vive, provém sobremaneira do Espírito que receberam.
Deste modo, é possível conferir que a obra evangelizadora dos apóstolos não é
fruto de uma decisão pessoal ou talvez até comum deles mesmos. A pregação do
Evangelho não é fundamentada nas capacidades e vontades do homem. Por mais reta
que seja a intenção, ou até mesmo a fidelidade do missionário com a boa-nova, o
serviço prestado ao anúncio desta notícia nunca haure forças em qualidades e aptidões
humanas.
O Evangelho é o anúncio da boa-nova da Páscoa de Cristo, Verbo de Deus
encarnado, que redime e salva todo o gênero humano por meio de sua cruz e
ressurreição. E ainda mais, sacrifício este que não se encerra no sepulcro, mas que
atinge seu ápice na ressurreição de Jesus. Desta forma, de modo algum este anúncio
pode ser espargido apenas com competências humanas. É mister uma intervenção
divina, uma ação do próprio Deus na vida do apóstolo, concedendo-lhe assim as forças
70
necessárias para empreender tal missão. Esta intervenção se dá pela obra do Espírito,
que impulsiona os crentes no cumprimento da ação evangelizadora.
Por conseguinte, é justamente no contexto dessa força que se insere a ação do
Espírito Santo na vida do homem. Ele é a força de Deus (cf. Ef 1,19). Ele é o dedo de
Deus (cf. Mt 12,28; Lc 11,20 141
) que age na vida e na história da humanidade. Ação
esta que se caracteriza não pela coerção dos atos, mas na frutificação das boas obras. O
Espírito Santo não coíbe nem condiciona ninguém, senão que, sendo o Senhor da Vida
142, ele concede ao homem atingir a sua essência mais profunda, que é justamente o
amor.
Ademais, o Espírito recebido não somente lhes outorga uma força sobrenatural
para evangelizar, senão que este mesmo concede aos discípulos uma intrepidez
(parresia 143
) no decorrer do anúncio. A partir de então, os apóstolos não somente
adquirem uma força para testemunhar a Jesus Cristo como Senhor e Ressuscitado, senão
que passam a suportar pelo Nome de Cristo muitas adversidades e perseguições.
Vê-se, portanto, neste caso específico, que a parresía, não é somente uma força
e um vigor na arte da oratória, onde quem a possui logra falar com toda franqueza,
senão que ela também atribui aos recebedores a força e coragem para suportar e
atravessar inclusive obstáculos físicos e culturais.
A compreensão do Espírito Santo como força vital na vida dos cristãos é
ressaltada várias vezes por Paulo nas suas cartas. Para o apóstolo dos gentios, o Espírito
Santo é o poder de Deus, que com sua presença efetiva, acompanha e garante a boa
realização da obra evangelizadora (cf. 1Ts 1,4-6; 1Cor 2,4-5; 1Cor 12,13; Rm 15,18-
19).
Deste modo, no presente tópico se buscará paragonar a relação que existe entre o
espírito e a parresía. Dentro dos escritos paulinos, o espírito adquire uma importância
sem igual. Paulo, como também seus seguidores, atribuem a realização e a capacidade
de exercer o ministério a eles confiado à ação do Espírito.
141
A Tradição da Igreja sempre atribuiu, com base no paralelo entre essas duas citações, o título de dedo
de Deus ao Espírito Santo. Num hino antigo da Igreja, o Veni Creator Spiritus, o Espírito é aclamado
como Digitus paternae dexterae. Além disso, Irineu de Lião, quando comenta, no seu Tratado contra as
Heresias, a respeito do Espírito, faz-lhe a mesma atribuição. Cf. IRINEU DE LIÃO. Contra as Heresias.
Col. Patrística. São Paulo: Paulus, 1995, p. 509. 142
Cf. Símbolo Niceno-Constantinopolitano. In: DENZINGER, Enrique. El magistério de la Iglesia.
Barcelona: Herder, 1997, p. 31. 143
No livro dos Atos dos Apóstolos o termo parresía é traduzido em todas as suas ocorrências por
intrepidez.
71
Explica-se a importância crescente do Espírito em Paulo com base na
experiência que as comunidades cristãs primitivas tinham do Espírito
em seu meio (inclusive a experiência de Paulo), na percepção da
imanência de Deus durante o culto, na realização de milagres e na
inspiração da profecia, na experiência de coragem e sabedoria para
anunciar o evangelho, mesmo em circunstâncias difíceis, e nos
sentimentos de alegria. Para os cristãos primitivos, essas experiências
eram prova de que o Espírito estava presente e atuante. E eles
entendiam sua experiência como a realização de esperanças proféticas
de que, na época do Messias, o Espírito se derramasse sobre Israel 144
.
Como pôde-se observar nos capítulos precedentes, a parresía adquire uma
importância na vida de um apóstolo ou do escritor de uma carta canônica. Este caráter
provém da necessidade de se obter a parresía para poder anunciar o mistério do
Evangelho. Assim sendo, este vínculo da franqueza com o anúncio do Evangelho
adquire dimensões ainda mais profundas.
Tendo em vista que nos escritos paulinos, um forte aspecto é a presença e a
importância do Espírito, toda a missão do apóstolo e, por conseguinte, de seus
seguidores, é permeada pela ação do mesmo Espírito. Sem os dons e as graças deste
Espírito, toda a missão evangelizadora se perderia e não haveria frutos.
Paulo, após seu chamado-conversão, descobrirá a importância deste Espírito,
para que possa realizar, em obediência ao Cristo, sua missão. Neste sentido, denota-se o
papel da parresía, relacionada aqui com a intervenção do Espírito, como atitude
primordial da atividade missionária. Já que ele (o Espírito) é aquele que possibilita e faz
que com o anúncio do Evangelho chegue a todos os que se convertem a Cristo, a
linguagem franca passa a ser um dom dado pelo Espírito ao apóstolo, afim de que esse
possa anunciar com coragem o mistério da boa nova.
El pneu-ma es lo característico del Nuevo Pacto [...]. Por eso, el
ministerio del apóstol es una diakoni,a tou- pneu,matoς (2Cor 3,8), que
comunica (por decirlo así) el Espíritu como nueva Torá; porque el
pneu-ma libera del endurecimiento del corazón y de la fijación en la
letra, a fin de poder conocer la meta o fin de la Torá 145
.
Na perícope analisada nesta dissertação, na oração principal, o autor da carta
pede aos destinatários que orem pelos santos e por ele no Espírito. É ele (o Espírito) que
não só eleva até Deus as orações dos fiéis (cf. Rm 8,26b), senão que também possibilita
144
PAIGE, T. Espírito Santo. In: Dicionário de Paulo e sua cartas; 2008, p. 485. 145
KREMER, J. Pneu/ma. In.: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. vol II, 2012, p. 1031.
72
aos cristãos a obtenção de suas preces, mediante a sua intervenção na vida dos fiéis (cf.
Rm 8,26c-27) 146
.
Também o papel do Espírito está inserido nessa perspectiva
dinâmica. Mediante o Espírito é que ocorre a revelação do
mistério (3,5). O Espírito Santo é a fonte dos dons de sabedoria
e de amor que fazem progredir e amadurecer, até a sua plena
realização, a experiência salvífica da qual o próprio Espírito é
garantia e penhor (1,14) 147
.
Destarte, pode-se conferir que o Espírito fortalece, estimula e acompanha a
missão dos evangelizadores. Ainda mais, Paulo, em 2Cor, se refere à tarefa apostólica
como o “ministério do Espírito” (cf. 2Cor 3,8). Pois, na sua missão, o Espírito o
acompanha, concedendo-lhe, em todos os momentos, a força e a intrepidez para levar a
cabo sua obra evangelizadora. É o Espírito, que diante das dificuldades e dos
obstáculos, lhe concedia a palavra justa e com discernimento, para continuar a anunciar
Jesus Cristo, embora estivesse em situações contrárias ao Evangelho.
O Espírito acompanhou sua [de Paulo] pregação missionária inicial
confirmando a verdade da mensagem no coração dos ouvintes,
fortalecendo Paulo para efetuar sinais e pordígios [...], satisfazendo os
novos fiéis de tal maneira que a presença do Espírito era
inconfundível. Em três de suas cartas, todas para comunidades
diferentes, ele lembra aos leitores a viva experiência inicial que
tiveram do Espírito no contexto de ouvir o evangelho e de conversão
(1Ts 1,4-6; Gl 3,1-3; 1Cor 2,4-5). Paulo pressupõe que esses
encontros iniciais com o Espírito servem para confirmar a realidade da
conversão dos leitores e a validade de seu evangelho como
verdadeiramente de Deus. Por sua vez, o Espírito dá aos leitores
coragem e sabedoria para testemunhar a respeito de Jesus 148
.
Como um bom discípulo, Paulo não se hesitava frente às adversidades, pois
contava sempre com o auxílio do Espírito (cf. Lc 12,11-12). E esse mesmo Espírito é
quem infundia em Paulo a parresía, para que sempre mais, o anúncio do amor de Deus,
manifestado na obra do seu Filho, chegasse a todo homem e não fosse impedido por
qualquer intervenção humana.
146
Cf. KREMER, J. Pneu/ma. In.: Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. vol II, 2012, p. 1030. 147
FABRIS. As cartas de Paulo; 1992, p. 142. 148
PAIGE, T. Espírito Santo. In: Dicionário de Paulo e sua cartas; 2008, p. 490.
73
3.2 Parresía e o discipulado
É inegável que a educação é um dos aspectos mais importantes da formação
humana. Baseada no caráter iminentemente relacional do homem, a aprendizagem
molda o caráter e a personalidade humana de forma a ir determinando paulatinamente
seu modo da haver-se com a realidade circundante. Grande parte daquilo que um
homem é não nasceu com ele, mas veio a ser na medida em que foi sendo formado e
educado. Nessa dialética de formação e determinação pessoal surgem dois papeis
importantíssimos: o mestre e o discípulo.
Il mondo antico conosce il rapporto maestro-discepolo in una duplice
forma: nella sfera della formazione filosofica e ideologica e in quella
dell‟attività cultuale-religiosa. Le due forme si intrecciano quando
nella persona del maestro vengono a contatto motivi filosofici e
religiosi, come accade anche nell‟ambito del cristianesimo nascente 149
.
No Antigo Testamento, o discípulo tal como foi compreendido posteriormente
no Novo Testamento, é tema bem tardio - para não dizer, quase que ausente - que pode
ser situado no contexto do povo pós-exílico. No entanto, ainda que de maneira
germinal, a ideia de discipulado não está, de maneira alguma, totalmente ausente neste
período específico da Revelação. Sábios e profetas (cf. Is 8,16) tem seus discípulos com
os quais se relacionam quase que paternalmente (cf. Pv 1,8; 2,1; 3,1). Vemos um
exemplo claro do que se tem dito na relação entre Elias e Eliseu (cf. 1Rs 19,19-21),
discipulado o qual há inclusive uma transmissão do espírito do mestre a seu discípulo
(cf. 2Rs 2,9-10), logo antes do seu arrebatamento ao céu, como também na relação entre
Eli e Samuel (cf. 1Sm 3,1-19).
A differenza della grecità classica e dell‟ellenismo, l‟A.T. non
conosce un rapporto maestro-discepolo che non sia quello puramente
formale di maestro e scolaro. Un fenômeno corrispondente a quello
registrato in Grecia non si riscontrerà né tra i profeti né tra gli scribi
nell‟A.T. 150
.
Desta primeira reflexão desdobram-se dois aspectos importantíssimos da
concepção veterotestamentária acerca do discípulo 151
. A primeira e mais sintomática
delas expressa-se no conceito de mediação. O mestre não é um mero transmissor de
informações adquiridas em sua vasta experiência de vida, mas é um mediador entre
149
RENGSTORF, K.H. Maqhth,õ. In.: Grande Lessico del Nuovo Testamento. vol. VI, 1970, p. 1133. 150
Idem, p.1153. 151
MOTTE, R. Discípulo. In.: Vocabulário de teologia bíblica; 2008, p. 241.
74
Deus, de quem recebeu a sabedoria, e seu discípulo. Neste sentido, tem um papel
importantíssimo a Lei, assim como seus autênticos intérpretes.
Quella israelitica è una religione di rivelazione. Perciò in essa il
discorso religioso dell‟uomo è soltanto il mezzo di cui Dio si serve per
far conoscere se stesso e la sua volontà. [...]. Essi non parlano mai per
se stessi e, anche se son costretti a difendere la loro causa, non lottano
affatto per la propria persona. La loro opera muove interamente
dall‟incarico ricevuto da Dio. Dio ha fatto conoscere loro la sua
volontà e ha posto loro in bocca la sua parola. Ciò li impegna a
trasmettere quello che han ricevuto, perché per il popolo è stato loro
dato, per il popolo di Dio; ma cio ne fa anche dei custodi, che
trasmettono tale e quale quanto hanno ricevuto, cioè come parola di
Dio 152
.
Em segundo lugar observa-se mais atentamente o modo de transmissão do
conhecimento. Superando a mera racionalidade ou inteligibilidade conceitual e mental,
a didaskalia bíblica é uma experiência concreta. O discípulo deve aprender do mestre à
medida em que vive com ele. Esse modo de discipulado atinge o discípulo de maneira
bastante mais ampla: vida, sentidos, moralidade dos atos, conhecimento intelectivo,
relação com Deus e etc.
Assim sendo, o aspecto supracitado é uma característica patente nos livros do
Antigo Testamento. A Tradição 153
exerce papel de grande importância na História da
Salvação, mais especificamente, na história do Povo de Israel. A fé vivenciada pelos
hebreus é experiência das intervenções divinas na própria história que são transmitidas
de geração em geração. O núcleo da fé judaica, se é possível assim dizer, consiste na
transmissão e vivência da mesma fé.
Deste modo, ao se transmitir os fatos da ação de Deus na história, faz com que
se crie uma relação significativa. Esta relação não é visível apenas entre pais e filhos,
relação primeira e fundamental na vida de qualquer pessoa, mas também no vínculo
extrafamiliar que ocasionalmente venha a acontecer por motivo da vida religiosa.
Ainda dentro do mundo hebraico, surge uma outra concepção de relação entre
mestre e discípulo. Trata-se da relação entre o rabino e o discípulo. Como ocorre dentro
dos textos veterotestamentários, a relação de aprendizagem no mundo judaico
extrabíblico não é simplesmente de um mestre que ensina as tradições da fé a seus
discípulos. Senão que adquire o mesmo caráter supracitado, o de mediador da Palavra e
152
RENGSTORF, K.H. Maqhth,õ. In.: Grande Lessico del Nuovo Testamento. vol. VI, 1970, p. 1160-
1161. 153
O vocábulo em latim tradere, do qual deriva o termo tradição, tem por significado próprio transmitir,
passar adiante.
75
da Tradição. O rabino não é simplesmente alguém que possui uma experiência de vida e
de conhecimento e que, por sua vez, transmite esses ensinamentos, mas é aquele que,
tendo uma ampla instrução acerca da Torá, torna-se um modelo para seus aprendizes.
Deste modo, no rabinato, o que vincula um mestre com o discípulo é tão somente o
entendimento da Torá.
Nelle scuole rabbiniche, per quanto possa essere rilevante la figura di
un maestro, il vero motivo dominante è la Torá. Il tutto è però
condizionato dalla rilevanza del principio di tradizione, per il quale
Mosè è considerato come il punto de partenza della tradizione e come
maestro per eccelenza. [...]. L‟autorità della Torá e della tradizione in
essa contenuta diventa visibile in quanto essa pone dei limiti
all‟autorità del singolo rabbi. Dato che la Torá è giunta ad Israele
avendo Mosè come intermediario che per primo l‟ha fatta conoscere
ad Israele, cio che conta per i rabbini è l‟essere d‟accordo com Mosè,
il più grande maestro della Torá, che ha segnato la via da seguire per
tutti i tempi 154
.
Por conseguinte, no Novo Testamento, a concepção de discipulado ganha novos
matizes. René Motte 155
sintetiza o discípulo neotestamentário em três características
principais: vocação, vínculo pessoal com Cristo e partilha com o mestre de sua
dignidade e de seu destino. Importa frisar que, no caso de Cristo, perde-se o aspecto de
mediação com Deus, pois Jesus Cristo é o próprio Deus (cf. Jo 8,58). Ele é a sabedoria
encarnada, o logos divino que veio ao mundo (cf. Jo 1,1-18).
O termo grego maqhth,ς corresponde em português ao vocábulo discípulo. Este
termo possui 262 ocorrências nos textos do NT, mais especificamente nos Evangelhos e
no livro dos Atos dos Apóstolos. Ele caracteriza, no caso dos Evangelhos, aqueles
homens e mulheres que Jesus tinha em seu entorno, que escutavam suas pregações,
acompanhavam seus milagres e que o tinham como mestre. Além desta conotação, o
termo nos Evangelhos também designa os discípulos de João Batista. Já no livro dos
Atos dos Apóstolos, o termo designa propriamente os discípulos de Jesus, aqueles que
pertenciam à comunidade cristã primitiva 156
.
Maqhth,ς attesta sempre la presenza di un legame personale che
informa tutta la vita di colui che è chiamato così, e ha caratteristiche
tali da non esservi dubbio sulla identità di colui dal quale si sviluppa
questa forza formativa. [...]. La caratterizzazione del maqhtai, ad opera
154
RENGSTORF, K.H. Maqhth,õ. In.: Grande Lessico del Nuovo Testamento. vol. VI, 1970, p. 1177. 155
MOTTE, R. Discípulo. In.: Vocabulário de teologia bíblica; 2008, p. 242. 156
Cf. RENGSTORF, K.H. Maqhth,õ. In.: Grande Lessico del Nuovo Testamento. vol. VI, 1970, p.
1187.
76
di colui che li ha raccolti intorno a sé nel N.T. si estende anche alla
vita intima. Lo si vede là dove si dice che il gruppo riunito intorno al
Battista aveva una sua preghiera insegnata da Giovanni, che univa fra
di loro i vari membri; anche i discepoli di Gesù gli chiesero una
preghiera in segno della loro comunione con lui e fra di loro. Nel N.T.
non avviene mai che maqhth,ς sia usato prescindendo da un legame che
giunge fino al più intimo della persona. L‟uso corrente nel Greco
extra-neotestamentario, che stabilisce una dipendenza puramente
formale, non esiste nel N.T. 157
.
Isto posto, pode-se conferir que no Novo Testamento surge uma concepção de
discipulado mais profunda que aquela presente no mundo grego clássico. A relação de
discípulo e mestre não é algo formal e funcional apenas enquanto método de
ensinamentos e aprendizagem. No NT esta relação, como se confere na citação acima,
abarca até mesmo a vida íntima do discípulo. O mestre é mais que um sábio transmissor
de conhecimentos. Ele é um modelo de vida, e a relação com o mestre, nesse caso Jesus,
implica numa mudança de vida de seus discípulos. Além disso, vale lembrar que a
escolha dos discípulos de Jesus foi fruto da sua oração. Esta atitude demonstra que a
eleição dos discípulos no NT, mas notadamente para Jesus, é algo que transcende as
capacidades humanas. É uma escolha divina, um desejo de Deus.
A vocação dos discípulos é um acontecimento da oração; eles são, por
assim dizer, gerados na oração, na intimidade com o Pai. Assim, a
vocação dos doze alcança um profundo sentido teológico que vai
muito além do que seja simplesmente funcional: a sua vocação vem
do diálogo do Filho com o Pai e está nele ancorada 158
.
A esse respeito, os textos do NT têm dois exemplos, entre tantos outros, que
demonstram claramente essa característica. O primeiro é a chamada de Mateus (cf. Mt
9,9). Nesse caso, o seguimento de Jesus, através do seu chamado, implica uma mudança
total de vida, uma vez que Mateus era um coletor de impostos e, no momento em que
Jesus o chama, se encontrava justamente operando seu ofício. A partir de então, para
seguir Jesus, Mateus abandona sua vida passada e, atendendo ao chamado do Mestre, é
conduzido numa nova vida.
O segundo exemplo é Paulo, como já foi visto amplamente no primeiro capítulo
dessa dissertação. Após seu encontro com o Ressuscitado, no caminho de Damasco,
Paulo passa de perseguidor a seguidor de Jesus. E não somente passa a segui-lo, mas
obtém, após esse encontro, uma mudança radical de vida. Vê-se, portanto, através
157
RENGSTORF, K.H. Maqhth,õ. In.: Grande Lessico del Nuovo Testamento. vol. VI, 1970, p. 1188-
1189. 158
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo:
Planeta, 2007, p. 154.
77
desses dois exemplos como o discipulado no Novo Testamento adquire uma
importância assaz profunda. Ser discípulo não é apenas ter alguém que transmita
ensinamentos válidos para uma formação intelectual, mas uma mudança essencial de
conduta e de vida.
Assim sendo, com a base dada a respeito do discipulado nos textos
neotestamentários, pode-se conferir que o discipulado é argumento primordial na
missão do cristão. Ser cristão é ser discípulo de Jesus. É transmitir ao outro tudo o que
foi possível receber na sua experiência de cristianismo. Portanto, o discipulado não é
um adereço da vida cristã, mas uma característica constituinte da mesma 159
. E esse
discipulado, como atesta o Documento de Aparecida, é imprescindivelmente
missionário. Não se pode conceber um discípulo sem a dimensão da missão. Ser
discípulo é ser missionário 160
.
O discípulo, fundamentado assim na rocha da Palavra de Deus, sente-
se impelido a anunciar a Boa Nova da salvação aos seus irmãos.
Discipulado e missão são como os dois lados de uma mesma medalha:
quando o discípulo está apaixonado por Cristo, não pode deixar de
anunciar ao mundo que somente Ele nos salva (cf. At 4, 12).
Efetivamente, o discípulo sabe que sem Cristo não há luz, não existe
esperança, não há amor e não existe futuro 161
.
Estar com Jesus e ser enviado parece, à primeira vista, que são coisas
excludentes, no entanto estão claramente interligados. Eles [os
discípulos] devem aprender a estar de tal modo com Ele que estão
com Ele mesmo quando vão para os confins do mundo. Estar com Ele
leva em si como tal a dinâmica da missão, porque todo o ser de Jesus é
já missão 162
.
Ademais, o discipulado no NT, diferentemente da concepção grega, não é uma
opção pessoal e individual. O discípulo não escolhe o mestre, ainda que num primeiro
plano isso possa ocorrer. Mas na essência do discipulado cristão está o mistério da
eleição. É Deus mesmo quem escolhe e elege seus discípulos. “Ninguém pode se fazer
discípulo; isso é um acontecimento da eleição, uma decisão da vontade do Senhor, que
de novo está ancorada na sua união de vontade com o Pai” 163
. Sendo Deus o agente
principal da vida do discípulo, sua missão adquire um valor transcendente. Não é apenas
159
Cf. DOCUMENTO DE APARECIDA. São Paulo: Paulus, 2011, n. 145. 160
Cf. DAp, n. 144. 161
BENTO XVI. Discurso Inaugural da V Conferência do CELAM; 2007, p. 6. Disponível em:
<https://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2007/may/documents/hf_ben-
xvi_spe_20070513_conference-aparecida.html >. 162
RATZINGER. Jesus de Nazaré: do Batismo no Jordão à Transfiguração; 2007, p. 156. 163
Idem, p. 154.
78
um serviço ou uma obra exercida em favor de algo ou de alguém, mas uma vocação, um
chamado a participar de uma realidade de caráter divino.
O chamado que Jesus Mestre faz, implica uma grande novidade. Na
antiguidade, os mestres convidavam seus discípulos a se vincular com
algo transcendente e os mestres da Lei propunham a adesão à Lei de
Moisés. Jesus convida a nos encontrar com ele e a que nos vinculemos
estreitamente a ele, porque é a fonte da vida (cf. Jo 15,1-5) e só ele
tem palavras de vida eterna (cf. Jo 6,68). Na convivência cotidiana
com Jesus e na confrontação com os seguidores de outros mestres, os
discípulos logo descobrem duas coisas bem originais no
relacionamento com Jesus. Por um lado, não foram eles que
escolheram seu mestre, foi Cristo quem os escolheu. E por outro lado,
eles não foram convocados para algo (purificar-se, aprender a Lei...),
mas para Alguém, escolhidos para se vincularem intimamente à
Pessoa dele (cf. Mc 1,17; 2,14). Jesus os escolheu para “que
estivessem com ele e para enviá-los a pregar” (Mc 3,14), para que o
seguissem com a finalidade de “ser dele” e fazer parte “dos seus” e
participar de sua missão. O discípulo experimenta que a vinculação
íntima com Jesus no grupo dos seus é participação da vida saída das
entranhas do Pai, é formar-se para assumir seu estilo de vida e suas
motivações (cf. Lc 6,40b), seguir sua mesma sorte e assumir sua
missão de fazer novas todas as coisas 164
.
Destarte, esse aspecto do discipulado se realiza mediante a intervenção direta do
Espírito Santo. Como visto no tópico anterior, é o Espírito quem permite que os
seguidores de Jesus assumam todas as implicações e diretrizes evangélicas. É graças à
ação do mesmo Espírito que alguém, ao receber a novidade da Boa-Nova, passa a
configurar a sua vida à vida do Ressuscitado e a pautar todas as suas atitudes no
mistério de Jesus Cristo. “O Espírito na Igreja forja missionários decididos e corajosos
como Pedro (cf. At 4,13) e Paulo (cf. At 13,9), indica os lugares que devem ser
evangelizados e escolhe aqueles que devem fazê-lo (cf. At 13,2)” 165
.
Por conseguinte, como se vê na citação acima, por meio da ação do Espírito e da
missão recebida pela adesão a Cristo, o discípulo é chamado a ser decidido e corajoso, a
exemplo dos apóstolos. Essa “decisão” e “coragem” são características encontradas na
parresía. Uma vez que o objeto do anúncio é de suma importância (o Evangelho), e a
missão não é uma qualidade humana, mas divina, o discípulo não pode prescindir da
parresía para levar a cabo seu trabalho missionário. A parresía é característica basilar
do discipulado de Cristo. Sem a parresía, o discípulo corre o risco de anunciar outros
“evangelhos” que não o único e autêntico Evangelho (cf. Gl 1,6-9). A coerência entre
vida e discipulado se dá mediante a presença da parresía na vida do discípulo. Ainda,
164
DAp, n. 131. 165
DAp, n. 150.
79
sem a parresía, o missionário periga abandonar a autenticidade da vida cristã e se tornar
um mero “profissional” do Evangelho. É a parresía que permite a fidelidade e a adesão
sincera ao Mistério de Cristo.
Consequentemente, esta valentia e intrepidez frente à missão e à tarefa de
anunciar o Evangelho se dá pela intimidade e estreita relação com o próprio Cristo. É
graças a esta união com ele que brota na vida do missionário a coragem. Ser discípulo é
também ser testemunha. Mas apenas se é testemunha de algo que se viu, conheceu e
presenciou. Ser testemunha de Cristo requer previamente o conhecimento dele, ver e
presenciar a sua ação como salvador. Estar com Cristo confere ao discípulo todo vigor e
força provenientes de sua divindade.
Eles [os discípulos] devem estar com Ele, para O conhecerem; para
alcançarem aquele conhecimento a que “a gente” não podia aceder,
que apenas de fora O via e O tinha por um profeta, por um grande da
história das religiões, mas que não podia captar a sua unicidade. Os
doze devem estar com Ele, para que conheçam Jesus na sua unidade
com o Pai e assim possam ser testemunha do seu mistério (cf. Mt
16,13ss). Eles devem – como S. Pedro dirá antes da eleição de Matias
– ter estado com Ele “desde quando Jesus esteve no meio de nós,
desde que chegou e partiu” (cf. At 1,8.21). Eles devem chegar da
mais exterior até a mais íntima comunhão com Jesus 166
.
Deste modo, vê-se que assim como os discípulos conviveram com Jesus,
compartilhando de sua missão, assim também eles, como testemunhas vivas de Cristo,
exercem a missão de levar adiante a experiência dessa relação. Por conseguinte, aqueles
que não puderam conhecer Jesus visivelmente, o podem conhecer mediante o
testemunho dos discípulos. E essa continuidade se dá mediante a escolha de futuros
discípulos de Jesus. Os apóstolos, a partir de Pentecostes, não somente expandem o
anúncio da Boa-Nova, mas elegem futuros discípulos, que por vez, ao vir a faltar os
primeiros discípulos, levarão adiante a mesma e única missão de anunciar. Essa escolha
e transmissão se dá mediante a imposição das mãos dos apóstolos. É pela imposição das
mãos que eles transmitem o Espírito recebido, concedendo aos seus sucessores o mesmo
Espírito (cf. At 6,6; 13,3; 1Tm 4,14; 5,22; Hb 6,2).
Destarte, por meio da imposição das mãos, os “novos” discípulos recebem o
Espírito e todas as capacidades necessárias para empreenderem a missão
evangelizadora. Entre essas capacidades necessárias está também a parresía. Ao
transmitirem o Espírito, vai junto a força e a coragem para anunciar com franqueza o
166
RATZINGER. Jesus de Nazaré: do Batismo no Jordão à Transfiguração; 2007, p. 155.
80
Evangelho. Isto é necessário pois o objetivo da missão não é unicamente transmitir um
conhecimento, mas conduzir novos cristãos ao Cristo.
Tal como Jesus, eles [os discípulos] anunciam o Reino de Deus e
reúnem os homens para a nova família de Deus. Mas a pregação do
Reino de Deus não é nunca simples palavra, nunca simples instrução.
Ela é acontecimento, tal como Jesus mesmo é acontecimento, palavra
de Deus em pessoa. Anunciando-O, conduzem-nos ao Seu encontro 167
.
3.3 Parresía e Sw,ma tou/ Kristou/ (Corpo de Cristo)
A fé cristã está baseada em um fato histórico: Jesus Cristo, o verbo de Deus
encarnado. Deus mesmo decidiu assumir a nossa humanidade por meio do seu Filho.
Jesus realiza a vontade do Pai, a redenção da humanidade, em seu corpo humano. A
salvação, o perdão dos pecados e a reconciliação, se deu no corpo humano de Jesus (cf.
Cl 1,22). O Mistério Pascal, o Sacramento da salvação, revelam a natureza divina de
Cristo que pode entregar a vida livremente (cf. Jo 10,18), amando até o fim (cf. Jo 13,1).
Jesus Cristo, sacramento do amor do Pai, perpetua sua presença em meio aos
homens pela sua presença real na Eucaristia e, de maneira diversa, pela unidade de seu
corpo místico (cf. 1Cor 10,16-17). Aqueles que, por meio do sacramento do batismo,
foram incorporados a Cristo são realmente membros do sōma toû Christoû (cf. 1Cor
12,13.27), do qual Jesus Cristo mesmo é a cabeça (cf. Cl 1,18). Dessa forma, o cristão
trona-se templo do Espírito Santo (cf. 1Cor 6,19) enquanto, em sua vida terrena, espera
a ressurreição da carne e a transfiguração de seu corpo (cf. Fl 3,20-21).
Na última citação do tópico antecedente, o Papa Bento XVI, na sua obra sobre
Jesus de Nazaré, ao comentar o objetivo da missão dos discípulos, afirma que estes
“anunciam o Reino de Deus e reúnem os homens para a nova família de Deus” 168
.
Assim sendo, a pregação tem por escopo reunir aqueles que aceitam o anúncio da Boa
Notícia de Cristo, para assim fazer parte do seu corpo. É a pregação que congrega os
escolhidos de Deus. Por meio do anúncio se dá a edificação do Corpo de Cristo.
Entre os documentos do Concilio Vaticano II, a Lumen Gentium, constituição
dogmática sobre o mistério da Igreja, apresenta as várias características e atribuições da
Igreja, assim como sua missão e obra no mundo. Entre as características, existe uma que
se sobressai, justamente por ter muitos fundamentos bíblicos. Trata-se justamente da
Igreja como “Corpo de Cristo” (cf. Rm 12,4-5; 1Cor 12, 12-27; Gl 3,28; Ef 1,22-23;
167
RATZINGER. Jesus de Nazaré: do Batismo no Jordão à Transfiguração; 2007, p. 156. 168
Ibidem.
81
2,16; 4,4-6.12.15-16; 5,23.30; Cl 1,18.24; 2,19; 3,15). É fato que muitas são as
atribuições da Igreja e que, todas elas, em concordância e completude, manifestam o
mistério total da Igreja (ex.: Povo de Deus, Templo do Espírito Santo, e outras). No
entanto, neste tópico somente será abordada a característica da Igreja como Corpo de
Cristo. Não por relevar os outros atributos, mas para que se perceba de modo mais claro
como a pregação, acompanhada da parresía, favorece a constituição da Igreja como
Corpo de Cristo.
O Filho de Deus, na natureza humana unida a si, vencendo a morte
por sua morte e ressurreição, remiu e transformou o homem numa
nova criatura (cf. Gl 6,5; 2Cor 5,17). Ao comunicar o Seu Espírito, fez
de Seus irmãos, chamados de todos os povos, misticamente os
componentes de Seu próprio Corpo. Nesse corpo difunde-se a vida de
Cristo nos crentes que, pelos sacramentos, de modo misterioso e real,
são unidos a Cristo morto e glorificado 169
.
Ademais, como também já visto, o discipulado implica numa união intrínseca
com a pessoa de Cristo. Essa união se dá pela participação no seu Corpo, que é a Igreja.
Os cristãos, ao acolher o Evangelho e a conversão por meio do batismo, unem-se ao
Corpo de Cristo, formando, assim, a comunidade dos fiéis, testemunhas da obra
salvadora de Jesus. “Os crentes que respondem à palavra de Deus e se tornam membros
do Corpo de Cristo ficam estreitamente unidos a Cristo” 170
. É nesta comunhão que a
Igreja haure forças para levar adiante a missão que o próprio Cristo veio realizar neste
mundo através da sua encarnação.
A comparação da Igreja com o corpo projeta uma luz sobre os laços
íntimos entre a Igreja e Cristo. Ela não é somente congregada em
torno dele; é unificada nele, em seu Corpo. Cabe destacar mais
especificamente três aspectos da Igreja-Corpo de Cristo: a unidade
de todos os membros entre si por sua união com Cristo; Cristo
Cabeça do Corpo; a Igreja, Esposa de Cristo 171
.
No entanto, é mister salientar que a atribuição à Igreja como Corpo de Cristo é
uma analogia, que possui o objetivo de exemplificar esse mistério tão grande e superior
a toda comparação que é a Igreja. Toda analogia corre o risco de diminuir ou limitar a
realidade verdadeira. Contudo, em se tratando de uma realidade divina e mistérica, a
analogia faz-se necessária. De Lubac, aborda esse tema na sua obra sobre o Mistério da
Igreja:
169
LG, 7. 170
CIC, 790. 171
CIC, 789.
82
Mesmo proveniente da Escritura e mesmo devidamente corrigida, uma
imagem, uma analogia é sempre insuficiente, pois põe em evidência
apenas um aspecto, mais ou menos importante, do mistério visado e
se, pelo seu uso, a correção evita o erro, ela não faz penetrar na
plenitude da verdade. Por isso não passa de uma via praticável que
consiste não apenas corrigir mas em completar uma imagem por outra
ou por outras. Nisto também a própria revelação nos serve de guia.
Para nos descrever a Igreja, multiplica as imagens e foi comentando
essas imagens que a tradição cristã refletiu sobre seu mistério 172
.
Além do mais, na fundamentação bíblica, o termo „Corpo de Cristo” tem origem
nas cartas paulinas. Paulo é o único nos textos neotestamentários que cunha esse título.
Porém isso não implica que em outros textos não seja possível encontrar semelhantes e
complementares a esse argumento (cf. a imagem da vinha em Jo 15; a casa espiritual em
1Pe 2 e Hb 13; como também a Esposa do Cordeiro no livro do Apocalipse) 173
.
Em vários momentos de sua carta, Paulo se refere à Igreja comparando-a com
um corpo, pois esta analogia fornece uma imagem excelente de uma diversidade na
unidade. O corpo humano é um exemplo bem claro desta realidade complexa e simples
ao mesmo tempo. Num mesmo e único organismo vivo se dá diferentes realidades e
atividades que favorecem na função de um único corpo.
O mesmo acontece com a Igreja de Cristo. Formada por vários membros, tão
diversos e complexos, que juntos, cada um exercendo sua função, favorece para o
crescimento e vida desse mesmo corpo, tendo sempre como cabeça o próprio Cristo. Ele
é quem rege, governa e conduz o seu corpo. No entanto, unido à cabeça, cada membro
contribui para a vida desse corpo. É com base nesse análogo que o Apóstolo compara
diversas vezes a Igreja de Cristo, a assembleia dos eleitos de Deus, com a imagem do
corpo.
Além do mais, a Igreja, que é o corpo vivo de Cristo, é a presença física de
Cristo no mundo. Ela tem a função de exercer no mundo a mesma missão de Cristo. E
sendo o seu corpo, unido à cabeça, é que ela realiza com êxito sua função. Deste modo,
embora Cristo tenha subido aos céus após sua morte e ressurreição, ainda continua a
operar na vida de cada homem, por meio do seu corpo aqui neste mundo.
Na carta aos Romanos, Paulo afirma que “a fé vem da pregação” (10,17). É fato
que todos aqueles que foram batizados em Cristo, receberam o dom da fé. Esse dom é
aquele que possibilita ao fiel participar integralmente do mistério da Igreja. A fé não
172
DE LUBAC, Henri. Paradoxo e Mistério da Igreja. São Paulo: Herder, 1969, p.39. 173
Cf. HOLBÖCK, F.; SARTORY, TH. El Mistério de la Iglesia. Barcelona: Editorial Herder, 1966, p.
248.
83
somente permite com que o fiel adira à vida em Cristo por meio do batismo, mas faz
também com que aqueles que a receberam, cooperem ativamente na construção desse
corpo. E tudo isso se dá, por meio da pregação, que antecede à iniciação à vida cristã,
acompanha a inserção do fiel na vida de Cristo e conduz os membros do corpo de Cristo
a uma maior perfeição. Nessa mesma carta, o apósotolo, para chegar a tal afirmação,
apresenta a importância da necessidade da pregação: “Mas como poderiam invocar
aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como
poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não forem enviados?” (10,14-
15). Destarte, tanto para o início quanto para o decorrer da vida cristã, a pregação exerce
uma singular função.
Portanto, analisando esse aspecto primordial da pregação, torna-se mais grave a
importância de sua união com a parresía. Uma vez que é a pregação que possibilita a
participação no Corpo de Cristo, essa não pode se realizar por meio de formas que não
favoreça sua total compreensão. O que permite à pregação atingir seu objetivo é o
vínculo com a franqueza. Pois o fruto e objetivo da pregação é a edificação do Corpo de
Cristo. Desta forma, tendo como meta um escopo tão importante, aquilo que
proporciona tal meta, deve ser encarado com igual propósito.
Essa característica da associação entre a pregação e a parresía se dá justamente
porque o conteúdo da pregação é a Boa-Nova de Jesus Cristo e não um simples discurso
retórico. E o anúncio do Evangelho de Cristo é sempre uma palavra que aciona, que se
realiza. “No vocabulário atual da teoria da linguagem se poderia dizer: o Evangelho não
é um discurso puramente informativo, mas „performativo‟; não simples comunicação,
mas ação, força eficaz que entra no mundo para curar e para transformar” 174
. Sendo
assim, para que a pregação possa cumprir essa missão de não só apresentar, mas fazer
com que a palavra se realize, é mister a participação da parresía.
174
RATZINGER. Jesus de Nazaré: do Batismo no Jordão à Transfiguração; 2007, p. 58.
84
CONCLUSÃO
No decorrer da dissertação pode-se conferir como o conceito de parresía não
somente exerceu grande influência no mundo greco-romano do período anterior e logo
seguido da nossa era, senão que este conceito permeou e influenciou de modo singular
os escritos neotestamentários, de maneira particular os escritos paulinos. Dentro destes
escritos, foi possível analisar panoramicamente como a função retórico-linguística da
ousadia no falar esteve presente na vida do apóstolo Paulo e de seus discípulos.
Todo estudo está condicionado tanto pela situação histórica e pensamento do
objeto ou personagem, assim como pelas circunstâncias, novas ferramentas de estudos e
pensamentos do sujeito que interroga às fontes. Isto possibilita não somente uma
atualização da linguagem e seus conteúdos, senão também um melhor conhecimento
especializado sobre os aspectos constitutivos da realidade estudada. Tais condições
modificam e enriquecem os estudos posteriores.
Desta forma, a linguagem franca não somente pode servir de base para uma
análise da realidade atual, senão que é e pode ser plenamente vivida e praticada nos
tempos hodiernos. Assim como se averiguou no texto, de modo especial na perícope de
Ef 6,18-20, a função da parresía no pensamento paulino estava vinculada à
evangelização e à relação do missionário com suas comunidades. Para o autor da carta
analisada brevemente, o anúncio do Evangelho deve ser acompanhado por uma atitude
parresiástica. Pode-se, portanto, nos dias atuais, tomar esta realidade não somente como
exemplo ou modelo, mas também como necessidade para a evangelização à qual cada
cristão de nossos dias é chamado a participar.
Nos tempos atuais, e mais especificamente no âmbito eclesial, buscam-se
diversas formas de linguagem para conseguir ou ao menos começar a atingir e alcançar
o homem dos nossos dias. São diversos os métodos e formas que se aprendem e que são
colocados em práticas, mas que não poucas vezes permanecem sem grandes resultados.
A parresía torna-se assim um grande artefato intrínseco à missão evangelizadora. Pois
não se anuncia, como se viu no final do terceiro capítulo, uma palavra qualquer, mas
sim a vida dos homens, anuncia-se o mistério da salvação de todo o gênero humano, e
este mistério não merece ser levado a conhecimento sem uma linguagem franca, sem
liberdade e coragem.
85
O primeiro capítulo permitiu observar quais eram as características da parresia
no período do Apóstolo Paulo e quais as implicações que esta exercia na vida daquele
que dela se utilizava. Conferindo algumas ocorrências do termo, pode-se averiguar
como a parresía permitia a eficácia do discurso. Portanto, assim como naquele período
a parresía era eficaz, do mesmo modo, é possível ainda nos dias de hoje, que ela exerça
a mesma função de outrora.
Por sua vez, não foi intenção do presente trabalho realizar uma reminiscência do
termo, mas apresentar quão importante era esta ferramenta pragmática para o Apóstolo
dos gentios, e sublinhar como ainda ela pode ser atualizada e praticada.
Destarte, pode-se conferir que o anúncio do evangelho deve ser revestido de
parresía. O pedido para a obtenção da ousadia ao anunciar que faz o autor da perícope
analisada, torna-se assim um modelo, um paradigma, pois para anunciar a “Palavra da
Verdade”, não pode abster-se da coragem. O anúncio da boa nova requer assim, uma
atitude de vigor, de coerência com o conteúdo anunciado. Pois neste anúncio está
contido o mistério da salvação dos homens, como vemos presente na própria carta aos
Efésios:
Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos
amou, quando estávamos mortos em nossos delitos, nos vivificou
juntamente com Cristo – pela graça fostes salvos! – e com ele nos
ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus, a fim de
mostrar nos tempo vindouros a extraordinária riqueza da sua graça,
pela bondade para conosco, em Cristo Jesus (Ef 2,4-7).
86
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