2.º CICLO DE ESTUDOS
MESTRADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS - POLÍTICAS
A PROTEÇÃO DA RESERVA DA VIDA PRIVADA DE MENORES
ENQUANTO DEVER PARENTAL, EM ESPECIAL NA ERA DIGITAL
Amanda de Cássia Pereira Coutinho
Dissertação sob orientação da Prof.ª Doutora Luísa Neto
2019
FACULDADE DE DIREITO
2
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS 3
RESUMO 4
ABSTRACT 5
LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS 6
INTRODUÇÃO 7
PARTE I - O PODER DEVER NAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS 11
1. A perspetiva histórica da criança na família 11
2. A Lei nº. 61/2008, de 31 de Outubro e o seu reflexo nas responsabilidades parentais
15
PARTE II – EM ESPECIAL, O DIREITO À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA
PRIVADA DA CRIANÇA NO SEIO DA FAMÍLIA 24
1. O princípio do superior interesse da criança na era digital 30
2. A indisponibilidade do direito à imagem 37
3. A suscetibilidade de oposição à exposição por outrem 40
4. A recente atenção da jurisprudência 46
CONCLUSÃO 53
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 56
ÍNDICE DE JURISPRUDÊNCIA 61
3
AGRADECIMENTOS
Ao meu avô, que tanto me motivou para chegar até aqui, mas que não houve tempo
suficiente em vida para ver a concretização deste trabalho.
Aos meus pais pelo amor incondicional, incentivo e apoio por todas as vezes que pensei
em desistir.
À minha Orientadora, a Doutora Luísa Neto, pela sua atenção, seu profissionalismo e
seus preciosos ensinamentos fundamentais para a elaboração deste trabalho.
4
RESUMO
Com o desenvolvimento do Mundo Digital, a tecnologia tem mudado as relações sociais
e juntamente o modo de se exercer as responsabilidades parentais. A vida conectada à Internet
pode trazer muitos benefícios e oportunidades às crianças mas também pode colocá-las em
perigo. Dedicar-se-á análise ao recente e hodierno fenômeno do sharenting à luz da concepção
jurídica atual das responsabilidades parentais e das suas implicações nos direitos de
personalidade, em especial quanto ao direito da reserva da intimidade da vida privada e ao
direito à imagem dos menores. Questiona-se se será legitimidade dos pais, enquanto detentores
das responsabilidades parentais, sobre a partilha de imagens dos seus filhos menores em redes
sociais, ainda que por um grupo limitado de pessoas que eles próprios decidiram partilhar, sem
observar, todavia, o previsto no artigo 1.878.º do Código Civil, id est, não considerando a
opinião do menor de acordo com a sua maturidade? Discute-se ainda a importância dos limites
do Estado, no que toca à sua intervenção neste fenómeno, uma vez que, ao analisar decisões de
tribunais, são notórias as implicações que tais podem ter na vida do menor, quer no presente,
quer no futuro, quando estiver na idade adulta. Assim, focamos a nossa questão no
entendimento dos direitos de personalidade, essencialmente na defesa dos interesses das
crianças em prol de certas práticas serem abusivas. Analisando decisões de tribunais é possível
verificar as implicações que serão trazidas no momento presente à vida do menor ou ainda
futuramente ao alcançar a idade adulta, tendo em vista que a exposição de menores nas redes
sociais podem estar a violar os direitos de personalidade quando não atenderem ao princípio
norteador do superior interesse da criança, o que nos dá fundamentos suficientes para perceber
como abusiva certas práticas. Conclui-se, ad ultimum pela urgência de se adotarem mecanismos
de proteção da privacidade on-line centralizada na criança, para que ao adentrar na vida adulta,
possa conduzir sua vida sem a influência dos rastros digitais que seus pais possam ter deixado
enquanto ainda eram juridicamente incapazes.
5
ABSTRACT
With the spread of the Internet, smartphones and wireless networks, technology has
changed social relationships and the way parental responsibilities are exercised in the digital
age. Internet connected life can bring many benefits and opportunities for children, but it can
also endanger them. An analysis will be devoted to the recent and current phenomenon of
sharenting in light of the current legal conception of parental responsibilities and their
implications for personality rights, in particular as regards the right to privacy and the right to
image of minors. The question arises whether is it legitimate for parents, as holders of parental
responsibilities, to share an image of their children on social networks, even by a limited group
of people who have themselves decided, without respecting the provisions of article 1.878 of
the Civil Code, id est, not considering opinion according to his maturity? It is also the
importance of discussing the limits of the State's legitimacy to intervene in this phenomenon,
analysing court decisions verifying the implications that will be brought in the present to the
life of the minor or even in the futures as an adult, considering that exposure of children on
social networks may be violating personality rights when they do not meet the guiding principle
of the best interests of the child, which gives us sufficient grounds to perceive as abusive certain
practices. Finally, ad ultimum that children-centered online privacy protection mechanisms are
urgently need so when they become adults, they can lead their lives without the influence of
the digital traces their parents may have left while still legally incapable.
6
LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS
CC - Código Civil
CDC - Convenção sobre os Direitos da Criança
CEDH - Convenção Europeia dos Direitos do Homem
CPC - Código de Processo Civil
CPP - Código de Processo Penal
CRP - Constituição da República Portuguesa
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
OTM - Organização Tutelar de Menores
RGPD - Regime Geral de Proteção de Dados
RGPTC - Regime Geral do Processo Tutelar Cível
7
INTRODUÇÃO
1. A presente dissertação de mestrado pretende, sobretudo, destacar os impactos das
novas tecnologias nas relações familiares, apontando problemas jurídicos numa série de
questões relevantes, como os reflexos provocados pela violação da intimidade da vida privada
da criança na Internet por intermédio daqueles que seriam os responsáveis pela sua protecção.
O debate torna-se pertinente numa era em que a partilha de vários momentos da vida
quotidiana, ou até mesmo íntimos, dos filhos menores é feita por apenas um clique na rede
social, em que as manifestações de reações e comentários são exclusivamente para gáudio dos
progenitores que aguardam uma validação externa daqueles que acompanham as suas redes
sociais,1 tornou-se comum.
Dado os factos, constituiu-se assim, o nascimento de um novo fenómeno chamado
sharing, com origem na língua inglesa, que decorre da junção da palavra share - partilhar e
parenting – parentalidade, que surgiu devido à preocupação com a superexposição em que,
máxime os pais, estão a partilhar da vida privada dos seus filhos menores nas redes sociais.
Com o desenvolvimento da Internet, o diálogo e a comunicação tornam-se mais
acessíveis, não fazendo assim a típica frase dos pais “não fales com estranhos” sentido, pois,
são vários os estranhos que podem ter contacto com seus filhos por meio da partilha de uma
simples fotografia, facilitando com que as informações possam facilmente recair nas mãos de
criminosos, a colocar em risco a segurança de todos os membros da família.
2. Assim, o que se traz, de facto, à colação neste trabalho, é avaliar a partir de que
momento o direito à intimidade da vida privada e à imagem da criança possam estar a ser
violados por aqueles a quem incumbe o exercício das responsabilidades parentais, neste caso
específico, na era digital.
3. As configurações quanto ao direito à privacidade não podem continuar a ser restritas
ao tradicional right to be let alone, associando-o, hoje, ao direito à autodeterminação
informativa, ou seja, à possibilidade do indivíduo de controlar as informações que lhe dizem
respeito.
Repara-se que, com o avanço do sharenting, as crianças acabam por crescer com uma
conceção diferente do que seria privacidade, podendo parecer normal para elas que tudo esteja
1 CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes sociais e o superior interesse da
criança – In: Direito e Informação na Sociedade em rede: Atas do IV Colóquio Luso-Brasileiro Direito e
Informação, 2016, p. 291.
8
sob domínio público, o que faz com que a ideia de privacidade possa vir a desaparecer
rapidamente.2
4. Tratando-se dos contornos da responsabilidade parental, o principal conteúdo deve
corresponder aos interesses que os pais possam ter naquilo que for mais benéfico ao interesse
dos seus filhos, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.878.º do Código Civil (CC).
O que nos interessa nesse estudo é a específica situação em que os interesses dos pais
não coincidem com a vontade e o superior interesse do filho quanto à partilha de imagens e
informações nas redes sociais.
Apesar de se reconhecer a importância de se debater quanto aos riscos oriundos das
próprias partilhas que as crianças fazem de si nas redes sociais, debruçar-nos-emos, neste
trabalho, exclusivamente, à análise dos riscos que os pais impõem aos filhos com as suas
publicações.
Nesta senda, a relevante questão a que esta dissertação procurará responder é a seguinte:
ser-lhes-á lícito dispor do direito de personalidade da criança, não obstante a opinião do menor
deva ser considerada de acordo com a sua maturidade, conforme previsto no n.º 2 do artigo
1.878.º do CC? Poderá o Estado admitir/proibir os pais, ou representantes legais, de publicar
fotografias, vídeos ou qualquer outro meio capaz de identificar os menores na Internet?
Tudo pois, os reflexos da Internet não geram impactos apenas nas relações humanas,
mas também no âmbito do Direito, além de que o controlo das informações na era digital
também é efetivado no aspeto temporal. Para Lívia Leal, isto acontece porque a Internet além
de permitir um novo significado de espaço (aproximando quem está distante), ocorre uma
continuidade temporal que transborda a memória humana, de tal modo que uma informação
veiculada há anos atrás possa aparecer acessível a todos permanentemente, podendo ser
resgatada a qualquer momento.3
5. Em termos metodológicos, o presente estudo será desenvolvido numa revisão
bibliográfica, tendo por base referências nacionais e internacionais das temáticas em causa:
responsabilidades parentais, sharenting, direitos de personalidade, máxima, direito à imagem e
o direito à reserva da vida privada. Posteriormente, levantar-se-ão, para discussão, casos reais
2 BROSCH, Anna - When the Child is Born into the Internet: Sharenting as a Growing Trend among Parents on
Facebook, In: The New Educational Review, 2016, p. 233. Disponível em:
<http://www.educationalrev.us.edu.pl/dok/volumes/43/a19.pdf >. Consultado em: 10-10-2019. 3 LEAL, Lívia Teixeira - O Cuidado na era digital: as novas facetas da afetividade no mundo tecnológico e seus
impactos jurídicos – In: Cuidado e Afetividade: projeto Brasil/Portugal – 2016-2017, São Paulo, Atlas, 2017, p.
271.
9
com o intuito de identificar a legitimidade, ou não, dos pais para a sua exposição. E se esta,
sendo positiva, avaliar se há limites para esta exposição além de verificar se o Estado tem
legitimidade para intervir em caso de sharenting, como também quais seriam os limites para
esta intervenção.
É com o propósito de centrar a nossa investigação, tornando-a tão clara e coerente
quanto possível, que a dividimos em duas partes.
Na primeira parte desta dissertação, serão enquadrados os diversos conceitos e
definições relevantes para análise, à luz do direito português quanto às responsabilidades
parentais e à cabal caracterização da natureza deste poder dever, procurando analisar a
perspetiva histórica da criança na família e a respetiva regulamentação que conduziu essa
transformação. Para tal, incidir-se-á por abordar a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro que fez
importantes alterações em matéria de responsabilidades parentais, cumprindo com um anseio
antigo pela substituição da expressão poder paternal por responsabilidades parentais e o
superior interesse da criança.4
Num momento seguinte, já no âmbito da Parte II, levar-se-á a cabo um estudo acerca do
direito à reserva da vida privada da criança no seio da família, começando por analisar as
consequências em que o fenómeno de sharing pode intervir na eficácia do princípio do superior
interesse da criança. Seguir-se-á, uma análise ainda tanto quanto sucinta da indisponibilidade
do direito à imagem além da suscetibilidade de oposição à exposição por outrem.
Por último, ainda na Parte II, discorrerá quanto à exposição dos menores nas redes
sociais por parte dos progenitores e, para isto, apresentar-se-ão dados estatísticos de relatórios
com a finalidade de demonstrar o atual cenário ocupado pela Internet na sociedade, assim como
na família, para que, finalmente, possa ser abordado de forma específica, o estudo desta
dissertação, com a análise casuística e posicionamento da doutrina.
Importa esclarecer que trataremos de analisar casos em que são os próprios progenitores
a partilharem momentos íntimos das suas crianças e não ao contrário, isto é, casos em que é a
criança que se expõe por livre iniciativa, assim que atinge uma certa “maturidade”.
4 “Ocorre que com a reforma de 2008, não foi apenas o divórcio que mudou [...] Aliás, como decorre do próprio
projeto de lei, que, na exposição dos motivos, declara que a motivação normogenética é conformar a lei com o
casamento na era moderna, assente na liberdade de escolha e igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges,
afectividade no centro da relação, plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos”.
Cfr. LANÇA, Hugo Cunha - Cartografia do Direito das Famílias, Crianças e Adolescentes, Lisboa, Edições
Sílabo, 2018, p. 117.
10
6. Pretende-se, portanto, com a presente dissertação de mestrado, apoiar o avanço na
área em estudo, alertando para possíveis situações de violabilidade dos direitos da criança que
urgem mudanças face ao comportamento da sociedade quanto à exposição da vida privada nas
redes sociais.
Ex positis, trata-se de um campo cuja problemática tende a crescer em razão de estarmos
num mundo cada vez mais conectado.
11
PARTE I - O PODER DEVER NAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
1. A perspetiva histórica da criança na família
Considerando que a vida privada e familiar tem mais influência na história do que as
batalhas e os castelos normalmente narrados e destacados pelos historiadores5, torna-se
pertinente analisar a modificação da conceção de criança no núcleo familiar, perante as
inúmeras transformações sociais que a humanidade já atravessou. Ultrapassamos a cabal
soberania do pater para então chegarmos à presente noção de igualdade dos progenitores quanto
aos deveres de proteção, educação e assistência aos filhos.
Na verdade, pode dizer-se que “sempre que uma criança contesta o sistema familiar em
que vive, altera as relações com os pais ou desafia o processo de socialização, está a mudar o
mundo”.6 O que vemos ainda é que apesar das crianças constituírem cerca de metade da
sociedade humana, viveram, ao longo da história e até há pouco tempo, numa condição de
silêncio e de esquecimento, dado que “o padrão violento dos adultos na relação com as crianças
não foi registado pelos historiadores haja vista que a história foi, durante muito tempo,
considerada como o registo dos factos públicos e não da vida privada”.7
Inicia-se a compulsão de elementos por volta do ano de 450 a.C., quando vigorava a Lei
das XII Tábuas, fonte de direito romano. Dela derivava o patria potestas, que equivalia ao
poder do pai sobre os filhos, onde a sua derivação mais extrema era o jus vitae necisque, que
se materializava no direito de vida e no direito de morte dos pais sobre os seus filhos.8 Os filhos
podiam, por exemplo, ser objeto de um negócio jurídico como a compra e venda, ou a locação,
podendo também o pater-familias dispor de forma livre sobre os bens dos filhos.9 Tratava-se
de uma verdadeira soberania familiar, de cunho absoluto e perpétuo, à qual não punham termo
nem a maioridade do filho, nem o seu casamento.10
Durante os séculos XII e XIII, foram concebidos por teólogos e canonistas, modelos da
sociedade perfeita, onde era atribuído ao pai um direito absoluto sobre a família no chamado
5 SOTTOMAYOR - Maria Clara, Temas de Direito das Crianças. Coimbra, Almedina, 2016. pp. 17-18.
6 Idem, ob. cit., p. 18.
7 Ibidem, p. 17.
8 MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança: Era uma vez..., Coimbra, Almedina, 2010. p. 17.
9 RODRIGUES, Hugo Manuel Leite - Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades
Parentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2011. p. 17. 10
MOREIRA, Sónia - A Autonomia do menor no exercício dos seus direitos. In Revista: Scientia Ivurídica. Tomo
L, n.º 291, Setembro-Dezembro, 2001, pp. 159 - 194, p. 162.
12
patria potesta. Neste contexto, a família assume-se como instituição divina11: a religião não
formava a família, mas ditava as suas regras e estabelecia o direito. Juridicamente, a sociedade
familiar era uma associação religiosa e não uma associação natural.12 Por um lado, serviria de
instrumento à Igreja, por outro estaria também ao serviço do Estado, como instrumento de
controlo da sociedade em geral. Já a educação dos filhos, consubstanciava um dos fins do
casamento.13
Neste contexto, a criança estava ao arbítrio paterno, pessoa que por exemplo, poderia
aplicar sanções, privação de recursos, ou mesmo aplicação de castigos corporais ou morais. 14
Simili modo, a prática do infanticídio era comum e atingia sobretudo crianças que eram tidas
como ilegítimas, as do sexo feminino e aquelas se sofressem de alguma deformação física.15
Somente na Idade Média,16 o infanticídio passou a ser mal visto e alvo de censura pelos
seguidores do Cristianismo,17 sendo aqui pela primeira vez indicada a preocupação com a
criança e consequentemente abordado pela primeira vez o direito da criança à vida.18
Já no período entre os séculos XIV a XVI, com o surgimento do humanismo
renascentista desenvolvido na Europa, inicia-se o processo de reconhecimento da consideração
da criança como um ser com especificidades em relação aos adultos, evidenciando-se uma
perceção humanista da infância.19 Nota-se esta especificidade, através do surgimento de
vestuário específico só para as crianças, no facto de estas começarem a serem retratadas nas
pinturas e na preocupação pela educação e escolaridade.
Surgem também neste período, os jogos e os brinquedos, tendo em conta que a linha
filosófica utilizada na época focava atenção na infância, como corolário da perceção da criança
enquanto ser dotado de especificidades em relação ao adulto.
11
CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito da Família, 3.ª ed., rev., Coimbra, Almedina, 2016, p. 84. 12
AMIN, Andréia Rodrigues [et al] - Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos,
10.ª ed., São Paulo, Saraiva, 2017, p. 48. 13
CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito [...], ob. cit., p. 84. 14
MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança [...], ob. cit., p. 13. 15
MONTEIRO, A. Reis, idem, ob. cit., p. 15-16. 16
Entre os séculos V d.C. à XV d.C. 17
CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito da Família e das Sucessões, 2.ª ed., rev., Coimbra, Almedina,
2001, p. 27. 18
Nesta época que se reduziu o infanticídio de filhos legítimos, mantendo-se, contudo, até ao século XIX a prática
de infanticídio quanto a filhos ilegítimos. Cfr. DE MAUSE, Lloyd - La evolución de la infancia. In DE MAUSE,
Lloyd - Historia de la infancia. Tradução espanhola de MARTÍNEZ, María Dolores López. 1.ª ed. Nova Iorque:
The Psychohistory Press, 1974, pp. 15 - 92, p. 47. A saber mais, foi por meio de diversos concílios, que a Igreja
foi outorgando certa proteção aos menores prevendo e aplicando penas corporais e espirituais para os pais que
abandonavam ou expunham seus filhos. 19
MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança ..., ob. cit., p. 20.
13
Foi na idade Moderna que a infância recebeu atenção do filósofo John Locke20, que
entendia o poder paternal como algo substituível, no sentido em que se trata de uma autoridade
limitada face à igualde de todos os seres humanos e liberdade que lhes assiste.21 Este autor foi
o primeiro a lançar pedras para a construção do conceito de menoridade e a encontrar no
interesse do filho a justificação para os poderes-deveres dos pais, fundando os seus direitos na
sua qualidade humana.22
Para Locke, a relação entre pais e filhos é abordada através da noção de poder de
domínio dos pais e a submissão dos filhos, sendo recusado às crianças o “estado de igualdade
perfeita” de que beneficiam todos os seres humanos, pois “os seus pais possuem uma espécie
de poder e de jurisdição sobre elas 23, negando às crianças a capacidade de exercer uma vontade
própria, a ser dever dos pais ditar-lhes o que fazer e regular as suas ações durante a
menoridade.24
Diferentemente, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, consagrou a necessidade de se
deixar amadurecer a infância nas crianças, ao que lhe subjazia a ideia de distinção da infância
sendo esta uma fase para a humanização, considerando a criança como uma pessoa distinta dos
adultos, portadora de características especiais e, portanto, necessitada de uma maior proteção.25
Somente com a Revolução Francesa, surgiram os ideais que clamavam pela liberdade e
pela valorização do indivíduo. Dá-se a abolição do patria potestas, que, porém, acaba por
regressar no Código Civil de Napoleão, embora com uma formulação mais ténue.26 Apesar
deste contexto de libertação e afirmação dos direitos individuais, continuar-se-á a verificar, no
que à família concerne, uma “imunidade de facto” aquando da violação de direitos dos seus
membros.27
20
Filósofo inglês, 1632-170. 21
MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança: Era uma vez... [...], ob. cit., p. 24. 22
MARTINS, Rosa - Responsabilidades parentais no séc. XXI: a tensão entre o direito de participação da criança
e a função educativa dos pais. Lex Familiae – In: Revista Portuguesa de Direito da Família. Ano 5. Julho-
Dezembro 2008, n.º 10, pp. 25 - 40, p. 28-29. 23
LOCKE, John - Segundo Tratado do Governo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 79. 24
LOCKE, John, idem, ob. cit., p. 81. 25
MARTINS, Rosa - Responsabilidades parentais no séc. XXI: a tensão entre o direito de participação da criança
e a função educativa dos pais. Lex Familiae – In: Revista Portuguesa de Direito da Família. Ano 5 -
julho/dezembro 2008, n.º 10, pp. 25 - 40, pp. 28-29. 26
MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança [...], ob. cit., p. 26. 27
PINHEIRO, Jorge Duarte - A tutela da personalidade da criança na relação com os pais”. In: Scientia Iuridica
– In: Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, Tomo LXIV, n.º 338 – Maio-Agosto, 2015, p. 250.
14
Embora a família continuasse a ser dominada pelo chefe de família, o século XIX
representa um período de transição.28 Inicia-se, nesta época, a progressiva intervenção dos
Estados na ótica de proteção da infância, quer através da ingerência nas questões de poder
paternal, quer no domínio da regulamentação do trabalho infantil, fenómeno que se agrava com
a industrialização.29
Com a Revolução Industrial, tornou-se recorrente a exploração de trabalho infantil nas
fábricas, no desempenho de funções repetitivas e exaustivas,30 onde a criança passa a ser
privada de uma infância e do convívio familiar, para ser vista como instrumento de
produtividade industrial, exercendo atividade como um pequeno adulto.
Na mesma época, nascia o primeiro Código Civil Português de 1867, em que a
maioridade se atingia aos 21 anos31. O trabalho infantil era legalizado para menores de 10 anos
em fábricas, desde que tivessem instrução primária e compleição robusta conforme previsão do
Regulamento de 16 de março de 1893. Ou seja, a autonomia dos jovens para administrarem sua
pessoa e os seus bens era cerceada, mas em contrapartida, podiam ser usados desde a infância
como instrumentos de lucro das fábricas e de sustento das famílias.32
Foi diante deste contexto que, apenas no século passado, se começa a verificar uma
preocupação pela salvaguarda da infância, com o surgimento de sociedades protetoras da
infância, a organização de fóruns, simpósios, debates e congressos com vista à consagração da
criança como sujeito de direitos. Dessa forma, o século XX é visto como o Século da Criança,
após a adoção da Declaração dos Direitos da Criança, em 1959.
No entanto, somente com a Convenção dos Direitos da Criança (CDC) adotada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de novembro de 1989, e ratificada por Portugal a 21
de setembro de 1990, é que se reconhece como criança todo ser humano com menos de 18 anos
, exceto nos casos em que a lei nacional confere a maioridade mais cedo, com previsão no
Código Civil no artigo 122.º. Além disso, a CDC traz o dever conferido aos Estados Partes em
favorecer a elaboração de princípios orientadores adequados à proteção da criança contra a
informação e documentos prejudicais ao seu bem-estar, conforme previsto na alínea e) do artigo
17.º.
28
CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito [...], ob. cit., p. 86. 29
MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança [...], ob. cit., p. 27. 30
MARTINS, Rosa - Responsabilidades parentais no séc. XXI [...], ob. cit., p. 29. 31
Artigo 311.º: “A epocha da maioriade é assignada, sem distinção de sexo aos vinte e um annos completos. O
maior fica habilitado para dispor livremente de sua pessoa e bens”. 32
SOTTOMAYOR, Maria Clara, Temas de Direito [...], ob. cit., p. 25.
15
2. A Lei nº. 61/2008, de 31 de Outubro e o seu reflexo nas responsabilidades
parentais
No que a Portugal diz respeito, em 1867, após ter sido aprovado e votado pelas Cortes,
entrou em vigor o primeiro Código Civil, também denominado de Código de Seabra.33 Norteou-
se por uma desigualdade entre pai e mãe, de modo que o marido era o chefe da família e a mãe
somente era ouvida nos casos em que pesavam o interesse dos filhos.
O Código Civil de 1867, partindo da incapacidade relativa da mulher casada, atribuía
apenas ao pai a titularidade pelo exercício do poder paternal, reservando à mãe o papel de mera
colaboradora do marido. As mães, como dizia a lei, participavam do poder paternal e deviam
ser ouvidas em tudo que tivesse a ver com os interesses dos filhos.34
O Código de Seabra também diferenciava os filhos legítimos dos ilegítimos, fruto da
mentalidade da época e, ainda que o artigo 166.º do referido diploma estabelecesse que os filhos
ilegítimos estavam sujeitos ao poder paternal da mesma forma que os legítimos.35
Com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, nada se modificou, : continuávamos
ainda com o ideal de pater familias, mantendo assim o homem uma posição de supremacia face
a mulher. A mulher cuidava dos filhos, era ouvida em assuntos respeitantes ao filho, mas a
vontade imperante era do chefe de família, sendo à mulher atribuídas funções do marido apenas
quando este se encontrasse impossibilitado.36
Segundo Joana Gomes Salazar, apesar do Código Civil, no essencial, ter acolhido as
regras que presidiam à regulamentação do instituto do poder paternal do Código anterior, não
deixou, porém, de reorientar o entendimento do instituto através de um novo tratamento
sistemático.37
O poder paternal passa, com o Código Civil de 1966, a ser perspetivado pela lei civil
como um dos efeitos da relação jurídico-familiar de filiação, pertencendo portanto, ao conjunto
33
Em 1845 foi constituída uma comissão com intuito de elaborar e redigir os códigos Civil e Penal. Apesar de ter
elaborado com sucesso o Código Penal de 1852, a comissão “não cumpriu o seu mandato quanto ao Civil”, motivo
pelo qual, em 08 de agosto de 1850, é chamado a redigir um projecto de Código de Civil o desembargador da
Relação do Porto, António Luis de Seabra”, que o apresentou em 1858. A partir deste momento é então nomeada
uma subcomissão, de que faziam parte o próprio Seabra, Vicente Ferrer, Alexandre Herculando e José Júlio de
Oliveira Pinto, com a incumbência de dar ao projecto a sua redação definitiva. 34
AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família e das Sucessões, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p.
233. 35
RODRIGUES, Hugo Manuel Leite - Questões de Particular Importância [...], ob. cit., p. 18. 36
RODRIGUES, Hugo Manuel, idem, ob. cit., p. 19. 37
SALAZAR, Joana Gomes - O superior interesse da criança e as novas formas de guarda, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 201, p. 56
16
mais extenso dos efeitos da relação entre pais e filhos.38 Foi a partir de então que a titularidade
do exercício do poder paternal passou a pertencer a ambos os progenitores, apesar de haver
funções específicas para cada um.39
Com a substituição da antiga Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1933 para
a então entrada em vigor da CRP de 1976, houve significativas modificações ao Código Civil
em 1977, tendo em conta que então algumas regras passaram a estar em desconformidade com
a Lei Maior 40. Apenas com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro,
foi pela primeira introduzido no ordenamento jurídico português, o princípio da igualdade entre
cônjuges de forma geral como também nas relações familiares, diga-se em relação também aos
filhos.
Para Eduardo Sá, as transformações oriundas da nova Constituição da República de
1976 e, consequentemente, a Reforma do Código Civil de 1977, trouxeram uma conceção de
família diferente: “o modelo da pequena família”, formada de aspeto igualitário e democrático,
pautada na afetividade, solidariedade, respeito e auxílio mútuos, geradores de direitos e
obrigações de ambas as partes.41
Um relevante avanço trazido em conjunto, foi a introdução do princípio da participação
no qual prevê que os filhos devem obediência aos pais. Porém, de acordo com a maturidade dos
filhos, os pais devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e
reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida, conforme previsto no n.º 2 do artigo
1878.º, do CC em vigor.
Com a Constituição de 1976 e a consequente reforma do Código Civil de 1977, o poder
paternal passa a ser definido como um feixe de poderes funcionais atribuído pela ordem jurídica
aos pais para que eles possam desempenhar a sua função de cuidar dos filhos, protegendo-os e
promovendo a sua autonomia e independência.42
Finalmente, consagra-se a partir de então, em conformidade com o disposto nos n.os 3,5
e 6 do artigo 36.º, a igualdade entre os cônjuges, o que pressupõe que o poder dever quanto à
educação e manutenção dos filhos passe a ser exercido por qualquer um dos progenitores,
garantindo também a inseparabilidade dos filhos, exceto quando não cumpram os seus deveres
38
SALAZAR, Joana Gomes, idem, ob. cit., p. 56. 39
AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família [...], ob. cit., p. 234. 40
O Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro introduz alterações no Código Civil Português, em especial o
Livro IV – Direito da Família. 41
SÁ, Eduardo - O Poder Paternal, Volume Comemorativo dos 10 anos do curso de pós-graduação de menores
– prof. Doutor F. M. Pereira Coelho, org. Guilherme de Oliveira, Coimbra, Editora Coimbra, 2008, p. 65. 42
SALAZAR, Joana Gomes, O Superior interesse [...], ob. cit., pp. 185-192.
17
fundamentais para com eles. Para além deste, temos o artigo 67.º, enquanto princípio geral e
norteador quanto à proteção da família como elemento fundamental da sociedade.
Para Jacinto Bastos, o poder paternal é a autoridade pessoal e patrimonial que a ordem
jurídica atribui aos pais relativamente ao filho menor, no exclusivo interesse deste, na medida
necessária a prover à guarda e educação do menor e ainda à direção dos seus interesses
económicos.43 Para o referido autor, o poder paternal não se apresenta como estando em
oposição à ideia da reciprocidade igualitária da família moderna, porque a sua necessidade
surge exatamente da existência de uma desigualdade, objetiva e substancial, gerada pela
imaturidade do menor, para tratar adequadamente dos seus interesses pessoais e económicos, a
qual é suprida pelos poderes de representação e de administração atribuídos pelos pais.44
A Recomendação n.º R (84) 4, adotada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa
a 28 de fevereiro de 1984, optara pela utilização da expressão responsabilidades parentais e
define-a como conjunto de poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e
material do filho, designadamente tomando conta da pessoa do filho, mantendo relações
pessoais com ele, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e
administração dos seus bens.
De modo similar, a CDC, adota também o princípio de que ambos os pais têm
responsabilidade comum na vida e no desenvolvimento da criança, e que constitui
responsabilidade prioritária a educação e o bem-estar global da criança conforme o n.º 1 do
artigo 18.º e n.º 2 do artigo 27.º.
De forma idêntica também a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da
Criança, celebrada pelo Conselho da Europa a 25 de janeiro de 2016, utilizou a expressão
responsabilidades parentais a propósito da titularidade exercício dos poderes-deveres que
integram o poder paternal, de acordo com o n.º 3 do artigo 3.º, alínea b) do artigo 2.º, n.º 1 do
artigo 4.º e alínea a) do artigo 6.º da Convenção.45
Assim, quando o legislador português acolheu a designação de responsabilidades
parentais, aparentemente, aderiu a esta denominação internacionalmente adotada e que
representa, simbolicamente, um deslocamento do eixo do conceito da vertente das faculdades
43
BASTOS, Jacinto Fernandes Rodrigues - Notas ao Código Civil, vol. VII, Lisboa, Almedina, 2002, p. 104. 44
BASTOS, Jacinto Fernandes Rodrigues, idem, ob. cit., p. 104. 45
FIALHO, António José - Guia Prático do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, 2.ª edição, CEJ,
Lisboa, 2013, p. 67. Disponível em:
<http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/guia_pratico_divorcio_responsabilidades_parentais.pdf>.
Consultado em: 10-10-2019.
18
para a vertente das obrigações.46 Trata-se, portanto, de um poder irrenunciável, conforme artigo
1882.º do CC, e intransmissível, inter vivos e mortis causa.
A Lei nº. 61/2008 de 31 de Outubro, n.os 1 e 2 do artigo 3.º, introduziram um anseio
antigo de que as epígrafes da Secção II e da sua Subsecção IV do capítulo II do Título III do
Livro IV do Código Civil fossem alteradas respetivamente para “responsabilidades parentais”
e “exercício das responsabilidades parentais”. Foi este diploma legal que veio introduzir
alterações ao regime jurídico do divórcio e as suas consequências para os filhos, como também
substituir a anterior expressão “poder paternal” pela expressão “responsabilidade parental”,
mudança de designação motivada, segundo o legislador, pela desadequação de um modelo
implícito que apontava para o sentido de posse, num tempo em que se reconhece, cada vez
mais, a criança como um sujeito de direitos.47
Para Jorge Duarte Pinheiro, a substituição da expressão não é, no entanto, isenta de
crítica, resultando em equívoco e duplicação de termos. Equívoco, pois a palavra parental, no
português jurídico, é o que diz respeito a parentes, a pessoas unidas por um vínculo decorrente
de uma delas descender da outra ou de ambas procederem de um progenitor em comum, visto
que as responsabilidades parentais são, originariamente, exercidas apenas por certos parentes,
neste caso, os pais, parentes da linha reta ascendente. 48
Para Rosa Martins, esta expressão ajuda a transmitir melhor o modelo democrático de
família atualmente em vigor, em que a relação entre pais e filhos é baseada no afeto, respeito
mútuo e particular atenção à necessidade de autonomia própria do filho enquanto ser em
desenvolvimento, sem descurar a atividade de direcção e supervisão da educação e formação
do filho no contexto de uma relação interativa e dialética. 49
Antes da alteração da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, o artigo 1878.º tinha como
título “conteúdo do poder paternal”. O poder paternal, tal como agora as responsabilidades
parentais, sempre foi entendido segundo uma conceção filiocêntrica, o fulcro das finalidades
visadas situa-se na pessoa do filho. 50
Ocorre, todavia, que a alteração de epígrafes e designação dispôs sobre alteração da
secção II e da subsecção IV, do capítulo II do título III do livro IV do Código Civil, não sendo
46
LEAL, Teresa Ana [et al] - Poder paternal e responsabilidades parentais, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2010, p.
13. 47
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2011, Processo: 626/09.7TMCBR.C1, Relator: REGINA
ROSA. Disponível em: <www.dgsi.pt>. Consultado em: 11-05-2019. 48
PINHEIRO, Jorge Duarte - Estudos de Direito da Família das Crianças. AAFDL, 2015, p. 331. 49
MARTINS, Rosa – Menoridade - (In)capacidade e Cuidado Parental. Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 227. 50
AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família [...], ob. cit., p. 231.
19
citadas substituições nominais em outros Livros do Código Civil, como no caso do Livro I
acerca da matéria relativa a incapacidades, como também em outros diplomas legais a citar, a
Organização Tutelar de menores (OTM), Decreto Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro.
Para Helena Gomes de Melo [et al], os conceitos de poder paternal e responsabilidades
parentais são internacionalmente usados como sinónimos, tratando-se de mera preferência
terminológica, podendo-se concluir que a norma deve ser interpretada latamente: todas as todas
as referências ao poder paternal devem passar a ler-se como referidas a responsabilidades
parentais.51
A responsabilidade parental enquadra-se num preceito de irrenunciabilidade conforme
o que se encontra previsto no artigo 1882.º do CC, isto é, os pais não podem renunciar as
responsabilidades parentais nem qualquer dos poderes-deveres que lhes são conferidos, no
sentido em que se trata de um poder e mesmo de uma proibição com sentido de interesse público
e ordem pública.
No caso de incumprimento, por parte de um dos progenitores, de alguma das
responsabilidades parentais, pode o outro requerer ao tribunal, as diligências necessárias para
o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa e em indemnização a favor da
criança, do querentes ou de ambos, com base no artigo 41.º do Regime Geral do Processo
Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015.52
Além da substituição da expressão “poder paternal” pela “responsabilidades parentais”,
foi introduzido também o exercício em comum de tais responsabilidades, quer nos casos em
que os progenitores nunca tenham vivido juntos, quer nos casos em que vivam em união de
facto, mas não tenham declarado que o exercício paternal devia ser exercido em comum. Foi
posto termo também na presunção que havia onde o poder paternal pertencia ao cônjuge com
quem estivesse a guarda do filho, presumindo-se sempre a mãe.53
Na constância do casamento, a titularidade do poder paternal pertence a ambos os pais,
é o que está em epígrafe no artigo 1901.º do Código Civil. Ocorre, entretanto, que mesmo
cabendo titularidade do poder a ambos, pode ser que apenas a um deles pertença o seu exercício.
Outra questão sanada com a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, é a
da distinção entre as questões de particular importância na vida do menor, que são exercidas
51
MELO, Helena Gomes de [et al.] - Poder paternal e responsabilidades paternais. 2.ª ed., Quid Juris, 2010, p. 13. 52
AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família [...], ob. cit., p. 233. 53
AMARAL, Jorge Augusto Pais de, idem, ob. cit., p. 234.
20
por ambos os progenitores, e as questões relativas aos atos correntes da vida do menor, que
cabem àquele progenitor com quem o filho reside habitualmente.
Antes da reforma, o exercício das responsabilidades parentais cabia a ambos os
progenitores quando: na constância do casamento (n.º1 do artigo 1901.º); se, tendo cessado a
vida em comum, tivessem os progenitores chegado a acordo homologado por sentença, sobre o
exercício conjunto do poder paternal (n.º 1 do artigo 1905.º, n.º2 do artigo 1906.º e artigo
1.909.º); e também nos casos em que os progenitores vivam em união de facto, se tivessem
declarado, perante o funcionário do registo civil, a sua vontade de que o poder paternal fosse
exercido por ambos (n.º 3 do artigo 1.911.º).
Com a nova lei, introduz-se a regra segundo a qual as responsabilidades parentais
relativas às questões de particular importância na vida do filho são exercidas simultaneamente
pelos progenitores conforme encontramos nos artigos 1.906.º, 1.911.º e 1.912.º.
No entanto, deparamo-nos com os casos de exceções em que as responsabilidades
parentais são exercidas apenas por um dos progenitores, nos casos, a saber: nas situações em
que se verifica impedimento de um dos pais (artigo 1.903.º); havendo morte de um dos
progenitores (artigo 1.904.º); e também, nos casos em que a filiação se encontra estabelecida
apenas enquanto a um dos progenitores, divórcio, separação judicial de pessoas e bens,
declaração de nulidade ou anulação do casamento, o tribunal pode decidir a quem caberá
exercer as responsabilidades parentais, em harmonia com o interesse do menor, promovendo e
aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto e de
partilha de responsabilidade entre eles (n.º 7 do artigo 1.906º).
Tratando-se de casos onde os progenitores coabitam, estes devem exercer
conjuntamente as responsabilidades parentais, id est, independente de serem casados ou
viverem em união de facto, estes deverão decidir, de comum acordo, todas as questões que
dizem respeito à vida do menor, quer seja situações de particular importância, quer seja
situações da vida corrente do filho. Porém, não havendo acordo quanto às questões de particular
importância, deve, o tribunal, decidir em conformidade com o que dispõem os artigos 34.º e
seguintes do RGPTC.
Importante destacar que o n.º 3 do artigo 1.901.º, já prevê, de forma sublime, que quando
não for possível alcançar a conciliação necessária, o tribunal ouvirá o filho antes de decidir,
salvo quando circunstâncias ponderosas o desaconselhem.54
54
Antes desta referida última alteração legislativa, o menor só seria ouvido quando tivesse atingido a idade mínima
de 14 anos. A partir de então, com a nova lei, não há qualquer referência mínima de idade para o menor ser ouvido.
21
Na prática do exercício das responsabilidades parentais por um dos pais, presume-se
que este agiu de acordo com o outro, salvo quando a lei expressamente exija o consentimento
de ambos os progenitores ou se trate de ato de particular importância, com a atenção de que a
falta de acordo não é oponível a terceiro de boa-fé (n.º 1 do artigo 1.092.º, e n.º 1 do artigo
1.911.º). Estes casos são compreensíveis dado que, os atos da vida do filho são numerosos e
sabe-se que, muitas vezes, pela situação da família moderna, torna-se inviável reunir
constantemente com o intuito de obter acordos, por isso entende-se que a lei presumiu a
existência de acordos.
Sabemos, porém, que a presunção da existência de acordos, não irá recair sobre todos
os atos que integram o exercício das responsabilidades parentais, ressalvando-se os casos em
que a lei exija expressamente o consentimento de ambos os progenitores. A exemplo, citamos
o n.º 2 do artigo 16.º do Código de Processo Civil (CPC), que prevê a necessidade do acordo
de ambos para a propositura de ações, e o artigo 18.º, também do mesmo diploma, quanto aos
casos em que se verifica desacordo dos pais na representação do menor acerca da conveniência
de intentar ação.
Partimos neste momento, no que diz respeito aos atos de particular importância da vida
do filho. Para Jorge Augusto Pais de Amaral, trata-se de um conceito indeterminado. No
entanto, para a qualificação de qualquer ato como sendo de particular importância deve optar-
se por um critério objetivo em vez de lhe dar importância subjetiva que lhe é atribuída por um
dos progenitores.55 Id est, trata-se de questões que pertencem ao núcleo essencial dos direitos
que são reconhecidos às crianças, conforme previsto na exposição de motivos dos trabalhos
preparatórios do projeto de Lei n.º 61/2008.
Tratando-se de progenitores divorciados, que deixaram de viver juntos ou que nunca
moraram juntos, o exercício das responsabilidade parentais relativas a atos da vida corrente do
filho, cabe ao progenitor com quem ele resida habitualmente, ou ao progenitor com quem ele
se encontra temporariamente; porém, este último, ao exercer as suas responsabilidades, não
deve contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pelo
progenitor com quem o filho reside habitualmente. (n.º 3 do artigo 1.906.º, n.º 2 do artigo
1.911.º e n.º1 do artigo 1.912.º.)
Salientamos ainda que, em caso de urgência manifesta, o legislador permite que
qualquer um dos progenitores possa agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo
55
AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família [...], ob. cit., p. 236.
22
que possível, como resulta da redação do n.º1 do artigo 1.906.º. Tratam-se de acontecimentos
inusuais, onde os dois progenitores estarão a cooperar à volta dos assuntos que têm um interesse
relevante para a vida do filho, dado que impor o exercício conjunto implicaria frequentes
comunicações dos progenitores, algum dramatismo na sua resolução, maiores conflitos, mais
incidentes de incumprimento, que em nada beneficiaria a criança, pelo contrário.56 Tudo
porque, parece subjazer que o exercício das responsabilidades, juntamente com os deveres,
condizem a uma atribuição igualitária do exercício de ambos os progenitores, ou seja, a sua
existência pauta-se no interesse do menor e não dos seus progenitores.
É assim que as responsabilidades parentais devem portanto, ser entendidas num
contexto adequado, como poderes-deveres funcionais que devem ser exercidos altruisticamente
no interesse do filho, em harmonia com a função do Direito, consubstanciada no objetivo
primacial de proteção e salvaguarda do superior interesse da criança que nada mais é verdadeira
razão de ser, o critério e o limite daquelas responsabilidades. 57
O artigo 18.º da CDC, prevê que cabe aos pais a principal responsabilidade comum de
educar a criança, e o Estado deve ajudá-los a exercer esta responsabilidade, devendo o Estado
conceder uma ajuda apropriada aos pais na educação dos filhos.
Até ao momento tratamos de precauções apresentadas quanto ao exercício das
responsabilidades parentais no que diz respeito ao superior interesse da criança em relação a
ambos os progenitores. Entretanto, ensejamos uma breve análise se o Estado poderia/deveria
intervir no exercício das responsabilidades parentais, e se assim sendo, qual seria o limite dessa
intervenção.
Para Joyceane de Menezes, embora não haja no âmbito do Direito de Família um limite
estrito a definido entre o público e o privado, tal direito diz respeito à vida relacional entre os
que compõem a unidade familiar, dentre interesses e valores pelos membros da família
compartilhados, motivando decisões e projetos comuns, pertinentes à administração da família,
ao planeamento familiar, à educação dos filhos e à vida doméstica. A família corresponde a um
espaço de convivência, protegido contra as ingerências externas arbitrárias, onde não caberia
56
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2011, Processo n.º 626/097TMCBR.C1, Relator:
REGINA ROSA. Disponível em: <www.dgsi.pt>. Consultado em: 02-10-2019. 57
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-04-2012, Processo n.º 612/09.7TMFAR.E1, Relator: MARIA
ALEXANDRA M. SANTO. Disponível em www.dgsi.pt
23
ao Estado intervir, em razão aos muros que cercam o lar, na qual a ideia de privacidade está em
oposição à vida pública.58
A nosso ver, a intervenção do Estado perpassa por situações complexas que recaem no
princípio da dignidade da pessoa humana face à proteção da liberdade individual, autonomia
da vida privada e familiar além do princípio da intervenção mínima do Estado, muito importante
para que não haja ingerências do arbitrárias, a fim de manter a separação entre o público e o
privado, garantindo assim, o livre desenvolvimento da personalidade, que é o objetivo principal
das responsabilidades parentais.
Para Renata Multedo59, não cabe ao Estado interferências quanto à autodeterminação
da família, por se tratar de um espaço de livre desenvolvimento da personalidade, não podendo
ser alvo de nenhuma intervenção legislativa ou judicial que esvazie o seu sentido. Entretanto,
pondera a possibilidade de haver intervenção na vida privada familiar com intuito de assegurar,
no caso concreto, a primazia de um interesse maior, nesta circunstâncias, sendo possível para
proteger o superior interesse da criança.
E é este o travejamento que nos serve de parâmetro para a nossa análise hoc casu.
58
MENEZES, Joyceane Bezerra de - A família e o direito de personalidade: cláusula geral de tutela na promoção
da autonomia e da vida privada, in Revista Direito UNIFACS, 2013, p. 15. Disponível em:
<https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/5456>. Consultado em: 10-08-2019. 59
MULTEDO, Renata Vilela - Liberdade e Família – Limites para intervenção do Estado nas relações conjugais
e parentais, Rio de Janeiro, Editora Processo, 2017, p. 51.
24
PARTE II – EM ESPECIAL, O DIREITO À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA
PRIVADA DA CRIANÇA NO SEIO DA FAMÍLIA
Num mundo cada vez mais interligado com a sociedade da informação sem barreiras,
que além de disponibilizar notícias aos utilizadores também permite comunicação em tempo
real entre as pessoas, traz consigo dificuldades para distinguirmos o que seria objeto da
privacidade humana, com aquilo que, por vontade própria, as pessoas tornam público. Acontece
que, quando se trata de publicações relacionadas diretamente com a esfera da vida privada e
familiar, muitos pais acabam por ameaçar o direito de privacidade dos seus filhos menores,
dispondo nos media imagens e vídeos de momentos íntimos da criança sem refletir no que, a
longo prazo, tais exposições podem causar prejuízos a vida dos seus filhos.
A noção de vida privada surge no período do Estado Liberal, século XVII e correspondia
a um aspeto do status social da burguesia, onde a intimidade estava relacionada ao direito que
aqueles tinham à propriedade, ao contrato e em intromissões físicas na propriedade das pessoas.
No entanto, foi apenas no final do século XVIII e início do século XIX, com o
desenvolvimento industrial, que a reserva da vida privada passa a ser relacionada com a
dignidade da pessoa humana e não com o direito à propriedade. O aprimoramento das técnicas
e da ciência começam a pôr em risco a vida privada das pessoas, e a privacidade passa a ser
vista como algo inerente à condição humana, como uma necessidade intrínseca do indivíduo.
Dentro da esfera jurídica, a primeira alusão ao direito à privacidade, reporta-se à obra
do juiz Thomas Cooley, em 1880, quando sob o título A treatise on the law of torts utilizou a
expressão “right to be let alone” – o direito de ser deixado só. Contudo, Cooley não relacionou
a expressão com o sentido de privacy, tratando apenas sobre responsabilidade civil (torts)60.
Assim sendo, só em 1890, que surgiram os primeiros autores a defenderem a reserva da vida
privada como algo que carecia de uma proteção jurídica. Samuel D. Warren e Louis D.
Brandeis61, advogados norte-americanos, publicaram um artigo jurídico na revista Harvard
Law Review intitulado The Right to Privacy - O direito à privacidade, onde defenderam a
existência do direito a ser deixado só, ou seja, o direito de ser deixado em paz e não ter a
privacidade devassada por outros, independentes sejam esses de origem privada, institucional
ou estatal, no exercício das mais diversas atividades62. O estudo, aparentemente, importava-se,
60
Thomas Cooley utiliza pela primeira vez a expressão to be let alone ao afirmar que: “The right to one´s person
may be said to be a right of complete immunity: it to be let alone”. COOLEY, Thomas McIntyre - A treatise on
the law of torts, Chicago, Callaghan, 1880, p. 29. 61
WARREN, Samuel D., BRANDEIS, Louis D. - The right to privacy, Harvard Law Review, Vol. IV, 1890. 62
CORREIA, Victor, Sobre a privacidade, Sinapis Editores, 2016, p. 64.
25
com a necessidade de estabelecer um limite jurídico para intromissões da imprensa na vida
privada.63 Contudo, há várias indagações quanto às razões que os levaram a escrever a
respeito da privacy. Para alguns estudiosos, tratou-se de uma resposta ao sensacionalismo
utilizado pela mídia na época, enquanto que, para outros, especulou-se tratar de uma reação
direta contra os abusos cometidos pela imprensa face à família de Warren, que era considerada
uma das famílias mais influentes na sociedade de Boston no final do século XIX. Qualquer que
seja a real motivação, não se pode negar a grande importância do artigo no âmbito da commum
law.64
Na Europa, a ideia de privacidade, surge no final do século XIX, com o término na 2ª
Guerra Mundial e o avanço das telecomunicações, entretanto, sem acompanhar o entendimento
anglo-americana de privacy 65. Não se pretendia um direito de isolamento absoluto, mas sim,
uma proteção jurídica relacionada com a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de
Oliveira Ascensão, na sua matriz europeia torna-se diferente por ser um direito prevalentemente
defensivo, que coexiste com vários outros da mesma índole como os direitos à inviolabilidade
do domicílio, ao sigilo de correspondência, à imagem [...].66
Quanto a Portugal, o direito à privacidade está relacionado com a proteção de mais de
um prisma, não envolvendo apenas a relação do indivíduo com outras pessoas, mas também
associado à sua vida em sentido mais amplo, como a proteção da sua imagem, dos seus escritos,
das suas opiniões pessoais que a depender do seu próprio desejo, pode ser resguardado livre da
curiosidade alheia.
Na senda da lição de Heinrich Hubmann, também Oliveira Ascenção, entende existirem
três tipos de privacidade que precisam de ser respeitadas, e são denominadas de três esferas: a
individual, a privada e a secreta. 67De acordo com o autor, a esfera individual está relacionada
63
Warren e Brandeis consideram a proteção do privacy uma necessidade ao escreverem que: “The intensity and
complexity of life, attendant upon advancing civilization, have rendered necessary some retreat from the world,
and man, under the refining influence of culture, has become more sensitive to publicity, so that solitude and
privacy have become more essential to the individual; but modern enterprise and invention have, through
invasions upon his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater than could be inflicted by mere
bodily injury” WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. - The right to [...], ob. cit., p. 196. 64
WAGNER, Wienczyslaw J. - Le “droit a l’intimité” aux Etats-Unis. Revue Internationale de Droit Comparé,
v. 17, n. 2, p. 365- 376, abr./jun. 1965. p. 366). 65
Torna-se oportuno mencionar ainda, que o termo anglo americano “privacy”, não corresponde a palavra
“privacidade” em tradução literal para a língua portuguesa. Após a publicação do artigo de Warren e Brandeis, e
seguidamente com as primeiras decisões acerca do assunto, o privacy revela assumir uma vocação para diversos
direitos de personalidade, não apenas ao direito à privacidade. 66
ASCENSÃO, José de Oliveira - A reserva da intimidade da vida privada e familiar, In Revista da Faculdade
de Direito da universidade de Lisboa, Vol. XLIII – n.º 1, Coimbra Editora, 2002, p. 15. 67
ASCENSÃO, José de Oliveira - Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I (Introdução as Pessoas, os Bens) 2.ª ed.,
Coimbra Editora, 2000, pp. 123 e ss.
26
com todos os elementos capazes de identificar a pessoa. Ou seja, “qualquer informação, de
qualquer natureza e independentemente do respetivo suporte, incluindo som e imagem, relativa
a uma pessoa singular identificada ou identificável” 68, conforme definido no artigo 3.º, alínea
a) da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, Lei da Proteção de Dados Pessoais. A esfera privada,
corresponde a uma parcela da vida resguardada de todo o conhecimento àqueles que não
integrem a vida familiar, conforme proteção constitucional prevista no n.º1 do artigo 26.º. Por
fim, a esfera secreta é composta por aspetos mais pessoais, isolados, fechados à consciência.69
Dentro de um sistema tripartido, de modo similar a Oliveira Ascenção, temos a doutrina
alemã que utiliza um sistema baseado em três esferas de privacidade: a vida pública que nos
remete à existência da vida em coletividade; a vida privada que corresponde à partilha apenas
com um grupo restrito de pessoas, podendo ser família ou amigos, e a vida íntima que seria
tudo aquilo que deveria ser desconhecido a outras pessoas.70
Para o Tribunal Constitucional Alemão, o direito à reserva da vida privada equipara-se
a uma autodeterminação, pela qual se abrange o direito do ser humano em fazer escolhas
essenciais no que diz respeito à sua intimidade, comportando também o direito ao segredo,
tendo em conta que a divulgação intempestiva de factos próprios do sujeito seja de molde a
ameaçar o exercício efetivo de outras liberdades.71
Acontece, no entanto, que o entendimento não é pacífico. Para Pedro Pais de
Vasconcelos, os limites de privacidade de certa pessoa, não serão os mesmos em relação a outra,
e acrescenta que entre o íntimo e o público, haverá uma escala progressiva e gradual que não
pode ser resumida a três esferas, obedecendo a critérios totalmente subjetivos e relacionados ao
caso concreto.72
Em termos internacionais expressos, foi somente em 1948, com a Declaração Universal
dos Direitos do Homem que, pela primeira vez, se reconhece a defesa pelo direito à privacidade,
ao afirmar no artigo 12.º que: “[N]inguém sofrerá intromissão arbitrária na sua vida privada, na
sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação.
Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à proteção da lei”.
68
ASCENSÃO, José de Oliveira, idem, ob. cit., p. 123 ss. 69
ASCENSÃO, José de Oliveira, ibidem, ob. cit., p. 123 ss. 70
CABRAL, Rita Amaral - O direito à intimidade da vida privada, Estudos em Memória do Professor Doutor
Paulo Cunha, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1989, p. 398 e ss. 71
NETO, Luísa - Novos Direitos. Ou novo(s) objeto(s) para o Direito?, Porto: UPorto, 2010, p. 67. 72
VASCONCELOS, Pedro Pais de - Direito de Personalidade, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 80 e ss.
27
Posteriormente, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, em 1950, determina no seu n.º 1 do artigo 8.º que: “Toda pessoa tem
direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”.
Por fim, o Pacto Internacional relativo aos direitos civis e políticos, em 1966, declara
no seu artigo 17.º que: “Ninguém será objeto de intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida
privada, na sua família, no seu domicílio, ou na sua correspondência, nem de ataques ilegais à
sua honra e à sua reputação. Toda a pessoa tem direito à proteção da lei contra tais intromissões
ou tais atentados”.
A CDC também aborda a questão e dispõe no n.º 1 do artigo 16.º que: “Nenhuma criança
pode ser sujeita a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu
domicílio ou correspondência, nem a ofensas ilegais à sua honra e reputação”. No entanto o que
se verifica, na maioria das vezes, é a ampla e excessiva divulgação, por parte dos progenitores,
de imagens dos menores, não resultando de qualquer preocupação com o dever de proteção e
segurança dos seus filhos, que se encontram a seu cargo.
Sabe-se que é cada vez mais difícil resguardarmos o direito à privacidade, visto que a
vida privada é, como refere Luísa Neto, o conjunto de atividades, situações, atitudes ou
comportamentos individuais, que não têm relação com a vida pública, que estão desta
separados, e que estão estritamente ligados à vida individual e familiar da pessoa, são expostas
pelos próprios membros do núcleo familiar, a quem caberia serem os responsáveis do resguardo
da vida íntima.73
O direito à reserva da intimidade da vida privada, tem previsão constitucional no título
II, capítulo I sobre os direitos, liberdades e garantias pessoais, respetivamente no artigo 26.º,
n.º 1, que corresponde ao direito do ser humano, se assim o querendo, através de um critério
facultativo, conservar na esfera não pública e reservada todos os dados pessoais que pertençam
à sua vida privada e familiar, dispondo deste como titular do direito, impedir o acesso, emprego
e revelação de seus dados, em moldes que não tenham sido por si previamente autorizados e,
simultaneamente, beneficiando de um direito ao conhecimento, retificação, atualização e
eliminação dos respetivos dados pessoais informatizados.74
O Código Civil estabelece no n.º 1 do artigo 80.º, que é dever de todos guardar a reserva
quanto à intimidade da vida privada de outrem. Note-se que este artigo, preocupa-se com os
73
NETO, Luísa - Novos Direitos [...], ob. cit., pp. 66 e 67. 74
MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui - Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra editora,
2010, p. 620.
28
factos que são compartilhados com uma pessoa, mas que não dá o direito a esta em tornar
público à terceiros os pormenores íntimos da vida de quem assim querendo os compartilhou.
A título de exemplo, existem os casos do sigilo do padre quanto àquilo que lhe foi
confessado por um fiel ou ainda nos casos dos médicos que são regidos ao sigilo face à proteção
das informações de saúde de um determinado paciente. De modo semelhante, trazemos a
importância de que exista também o mesmo dever nas relações familiares entre os seus
membros, ou seja, deve haver discrição e sigilo para que os factos que componham a intimidade
não venham a ser expostos fora do núcleo familiar, tendo em conta que pais e filhos têm o dever
de se respeitarem mutuamente, conforme disposto no n.º 1 do artigo 1.874.º do CC.
Além do respeito mútuo, é dever dos pais zelar pela segurança dos filhos, como disposto
no n.º 1 do artigo 1.878.º e, deste modo, o que pode traduzir também, que lhes cabe não só
averiguar o modo de utilização da internet pelas crianças, mas como também zelar pela suas
próprias condutas para que não violem o direito que lhes caberia assegurar.
Quanto a isso, Maria de Moraes afirma que a proteção garantida nos dias atuais, é
insuficiente, posto que a tutela do direito à privacidade continua a passar por novos e grandes
desafios.75 Perante o desenvolvimento tecnológico, máxime o crescimento de possibilidades de
sua violação provenientes da difusão da Internet, não podendo ser vista apenas para
salvaguardar o sigilo íntimo da pessoa, mas deve-se expandir com intuito de proteger os dados
pessoais diante das diversas possibilidades de violação trazidas pela ciência e tecnologia
contemporânea.76
Interrogamo-nos também, quanto à proteção dos direitos de personalidade dos menores,
por parte dos pais, sobretudo, quanto ao direito à imagem do menor, face ao crescimento das
partilhas de imagens e vídeos nos espaços cibernéticos publicados pelos próprios progenitores
a quem caberia o resguardo da privacidade dos filhos. A partilha de momentos vividos numa
rede social, e a consequente espera de likes, ainda que por um grupo restrito de pessoas, satisfaz
apenas o desejo daquele que publica, neste caso, um desejo de aprovação dos pais que, muitas
vezes, se diverge do superior interesse da criança.
Nesse sentido, o que pretendemos averiguar centra-se nas possíveis medidas cabíveis
quando o detentor da obrigação de salvaguardar o superior interesse do menor, é aquele que
75
MORAES, Maria Celina Bodin de - Na medida da pessoa humana, Estudos de Direito Civil Constitucional,
ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2010, p.57 76
MORAES, Maria Celina Bodin de – idem, ob. cit., p.57.
29
divulga fotografias ou vídeos nas redes sociais, revelando momentos íntimos da vida da criança,
estando, dessa forma, a violar sobretudo, o direito à imagem e a reserva da vida privada desta.
Com isto, fortalecemos o entendimento que crianças e jovens devem ser vistas como
titulares de direitos e não serem tratadas como pertença dos pais, não sendo dignas de opinarem
sobre os seus próprios interesses e vontades, onde os adultos em jogo, detentores das
responsabilidades parentais, não conseguem prever o quanto isso a longo prazo possa ser
ameaçador e vir a custar muito caro na vida dos menores.
As políticas de segurança e privacidade nas redes sociais passam despercebidas na
grande maioria das vezes, por parte dos progenitores, que não se apercebem que podem estar a
favorecer o uso indevido dos dados e informações dos menores, afetando, dessa forma, o futuro
dessas crianças. Futuro esse, ainda incerto dado que ainda não sabemos, ou nunca saberemos
onde a tecnologia poderá ser capaz de chegar e destruir com o direito do ser humano de ser
deixado em paz.
Nesse contexto, para Stefano Rodotà cada vez mais se torna frágil uma definição para
“privacidade”, assim como o “direito a ser deixado só”, posto que “decaem em prol de
definições cujo centro da gravidade é representado pela possibilidade de cada um controlar o
uso das informações que lhe dizem respeito” 77. Ou seja, para o autor, na atual sociedade da
informação, a privacidade surge como a possibilidade de uma pessoa conhecer, controlar,
endereçar, interromper o fluxo das informações com ela relacionadas. Por outras palavras, o
direito de manter o controlo sobre as próprias informações, cabendo àquele que titulariza o
direito à privacidade, interromper o fluxo das informações com ele relacionadas, como também
exigir a circulação controlada de suas informações.78
Por fim, os pais possuem um papel muito significativo neste processo. Cabendo-lhes
resguardar as crianças e promoverem um ambiente capaz de favorecer um desenvolvimento
saudável para a personalidade destas, com respeito a dignidade da pessoa humana, tendo em
vista que o meio social onde se encontra, influenciará sua forma de ver o mundo, inclusive no
que diz respeito ao entendimento de privacidade.
77
RODOTÀ, Stefano - A vida na sociedade de vigilância – a privacidade hoje, Organização, seleção e
apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes, Tradução Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda, Rio de
Janeiro, 2008, p. 24. 78
RODOTÀ, Stefano - A vida na sociedade ..., ob. cit., pp.92-93.
30
1. O princípio do superior interesse da criança na era digital
Num cenário atual, onde somos bombardeados de informações a cada instante pelo
inimaginável e crescente desenvolvimento digital, torna-se possível receber, transmitir e
analisar de modo bastante célere e eficiente uma gama infinita de informações. Com base nos
relatórios da Global Digital em janeiro de 201979, sendo um dos estudos mais abrangentes e
atualizados do mundo digital, das organizações We are Social e Hootsuite, com base nas
informações sobre o uso das principais plataformas sociais do mundo em mais de 230 países e
território ao redor do mundo, demonstram o grande crescimento da utilização da internet pelos
mais diversos setores da sociedade, revelando que já são mais de 4,39 bilhões de utilizadores
da internet, o que corresponde a mais de metade da população mundial.
Grande parte desse crescimento deve-se ao impulso dos smartphones e planos de dados
acessíveis, o que permite às pessoas estarem ligadas de onde quer que estejam, comprovando
pelos dados colhidos que os telemóveis são a escolha preferida dos utilizadores para se
manterem conectadas.
Quanto ao número de utilizadores, também nos deparamos com o aumento do uso das
redes sociais através dos dispositivos móveis. Em janeiro 2019 mais de 3,26 bilhões de pessoas
já dispunham de algum perfil nas redes sociais, o que significa um crescimento de mais de 297
milhões de novos usuários, representando um aumento de 10% maior se comparado com o ano
anterior. Constatou-se ainda que os usuários da Internet estão crescendo no mundo todo a uma
taxa de mais de 11 novos usuários por segundo, o que resulta em um total impressionante de
um milhão de novos usuários por dia conectados na Internet.
Aliás, não só houve o aumento de pessoas com acesso à internet, como também houve
um aumento, nos últimos anos, quanto à quantidade de tempo que as pessoas gastam
navegando, sendo, em 2019, 06 horas e 42 minutos, em média, por dia online, o que
corresponde a cerca de um terço dos seus dias conectadas. As plataformas de media e redes
sociais, mais utilizadas no mundo, segundo o referido relatório, são Youtube (o segundo sítio
mais visitado do mundo), Facebook (ocupa o ranking do 3º sítio mais visitado do mundo.) e
79
WEARESOCIAL. Digital 2019: Global Internet Use Accelerates. Disponível em:
<https://wearesocial.com/blog/2019/01/digital-2019-global-internet-use-accelerates>. Consultado em: 03-10-
2019.
31
Instagram (ocupa o 10.º lugar no ranking com 895 milhões de usuários ativos em todo
mundo).80
Outro dado bastante interessante, divulgado pelos relatórios publicados em abril de
2019, ainda pela Global Digital 2019, Q2 Global Digital Statshot 81, que demonstram a
diminuição de mais de 3% do número de usuários do Instagram entre 13 e 17 anos entre outubro
de 2018 e janeiro de 2019, enquanto que todos os outros grupos etários apresentarem um
crescimento de mais de 4% durante o mesmo período. O que provoca uma certa especulação
relativamente à rede social que esta faixa etária estará a usar. Na nossa opinião, traz o alerta
para o aceleramento da inovação que o setor digital é capaz de promover num curto período.
Observamos que, enquanto os adultos criam os seus perfis em redes sociais, as crianças já estão
à frente a alçar novas experiências virtuais noutras plataformas inutilizadas pela maioria dos
adultos.
Cristiana Dias e Olivia do Couto definem redes sociais como ambientes virtuais onde
as pessoas se relacionam instituindo uma forma de sociabilidade que se encontra ligada à
própria formulação e circulação do conhecimento82. Ou seja, a partilha não é só de
conhecimentos, mas também um local onde as pessoas podem trocar experiências através de
publicações e comentários sobre os mais diversos assuntos variando de economia, política,
moda, religião, como também, partilha sobre a sua vida, rotina, família, hobbies, emprego, o
que fizeram e o que irão fazer.83
Muitas vezes torna-se até mesmo possível que a exposição do quotidiano, como dicas
sobre moda, maquiagem, viagens, culinária, etc. seja uma fonte de rendimento, como no caso
dos canais no Youtube, uma plataforma de compartilhamento de vídeos, que de acordo como
referido Relatório, ocupa o segundo lugar no ranking dos sítios mais visitados no mundo, onde
as visualizações e a conquistas de seguidores podem ser fonte de rendimento aos denominados
youtubers que, diante da exibição de anúncios nos seus vídeos, redirecionamento do público
para sítios de venda on-line, patrocínios para utilização de determinadas marcas e produtos,
conseguem, por vezes, ganhar valores bem atrativos. Em Portugal, o youtuber mais conhecido
80
WEARESOCIAL. Digital 2019: Global Internet Use Accelerates. Disponível em:
<https://wearesocial.com/blog/2019/01/digital-2019-global-internet-use-accelerates>. Consultado em: 03-10-
2019. 81
Idem 82
DIAS, Cristiane, COUTO, Olivia Ferreira do – As redes sociais na divulgação e formação do sujeito do
conhecimento: compartilhamento e produção através da circulação de ideais, in Linguagem em (Discurso),
Tubarão, SC, v. 11, n.º 3, pp. 631-648, set/dez 2011, p. 636. 83
DIAS, Cristiane, COUTO, Olivia Ferreira do, idem, ob. cit., p 636.
32
e com maior faturamento chama-se Paulo Borges de 23 anos, conhecido como Wuant, que
segundo a Socialblade, com base nas estimativas de visualizações no canal, consegue por mês
faturar entre 4,2 mil a 67,4 mil euros.84
Acontece que, não raras vezes, os youtubers não expõe somente e a si próprios, mas
também as suas famílias, designadamente, os filhos, partilhando rotinas da maternidade,
paternidade, da convivência e do dia-a-dia dos seus filhos, como os lugares que frequentam,
estudam, atividades desportivas que praticam, hábitos alimentares e de saúde.
Em se tratando de Instagram, atentamos as chamadas Insta Mums que são mulheres que
partilham sobre seu dia-a-dia e dos seus filhos, revelando suas suas experiências e aventuras
acerca da maternidade. Atualmente em Portugal as Insta Mums, segundo a revista portuguesa
Delas online, mais conhecidas são Carolina Patrocínio e Carolina Deslandes, com 734mil e
586mil seguidores respectivamente. Cfr. Joana Cabrita, “Insta Mums”: as mães portuguesas
que todos querem seguir.85 Segundo o sítio do jornal britânico Independent, em uma reportagem
de Olivia Petter, relata que as Insta Mums estão sendo criticadas por auto-promoção vergonhosa
de seus filhos o que para alguns críticos, as mães utilizam as contas tentando transformar a
maternidade em uma mercadoria.86
Para tanto, o fenómeno de partilha pelos pais de fotos dos seus filhos nas redes sociais
ganhou nome próprio, o chamado sharenting que, de acordo com o dicionário Collins,
corresponde a prática dos pais em partilhar informações e imagens dos filhos nas redes sociais
de maneira abundante e detalhada.
Anne LongField, Alta Comissária para a Infância da Inglaterra, em novembro de 2018,
publicou no relatório Who Knows What About Me?87 que, em média, do nascimento até aos 13
anos de idade, os pais já publicaram cerca de 1300 fotos e vídeos dos seus filhos nas redes
sociais. E acrescenta a necessidade de se parar e pensar no que isso possa vir a significar para
84
SOCIALBLADE. Youtube stats summary. Disponível em: <https://socialblade.com/youtube/user/imwuant>.
Consultado em: 05-09-2019. 85 DELAS. ‘Insta mums’: as mães portuguesas que todas querem seguir. 27-07-2018. Disponível em:
<https://www.delas.pt/insta-mums-as-maes-portuguesas-que-todas-querem-seguir/>. Consultado em: 05-10-
2019. 86
INDEPENDENT. Instagram mums are being criticised for shameless 'self-promotion'. 05-09-2017. Disponível
em: <https://www.independent.co.uk/life-style/health-and-families/instagram-mums-self-promotion-photos-
children-parenting-perfect-a7930396.html>. Consultado em: 03-10-2019. 87
CHILDRENSCOMMISSIONER. Who knows what about me? Novembro/2018. Disponível em:
<https://www.childrenscommissioner.gov.uk/wp-content/uploads/2018/11/cco-who-knows-what-about-me.pdf>.
Consultado em: 03-10-2019.
33
a vida das crianças no momento presente, mas também como isso poderá impactar as suas vidas
futuras como adultos.
De acordo com uma pesquisa realizada pela empresa de segurança informática AVG,
em 2010, com a participação de 2,2 mil mães de 7 países europeus e 3 da América, demonstra
que a presença da criança está cada vez mais cedo no ciberespaço. Segundo o estudo, 23% das
crianças estão presentes na Internet antes mesmo do nascimento, pelas publicações dos seus
pais das imagens de ultrassom durante a gestação. Pouco tempo depois, o número mais que
triplica, 81% já está na internet antes de chegar aos 06 meses, e mais, 5% dos bebes até dois
anos já têm um perfil próprio numa rede social.88
Em novembro e dezembro de 2014, uma Pesquisa Nacional de Saúde da Criança do
Hospital Infantil CS Mott,89 em Michigan, conduzida pela GfK Custom Research perguntou a
uma amostra nacional de pais de crianças de 0 a 4 anos sobre os benefícios e preocupações
relacionadas com a partilha de informações sobre a parentalidade nos media. Os pais
consideram que estes meios fazem com que eles não se sintam sozinhos (72%), aprendem o
que não fazer (70%), recebem conselhos de pais mais experientes (67%) e que ajudam a
preocuparem-se menos (62%).
É interessante também fazer notar que cerca de dois terços dos pais entrevistados
demonstraram preocupação com alguém descobrir informações privadas sobre o seu filho
(68%), ou partilhar fotos do seu filho (67%), enquanto que 52% demonstraram preocupação
com o facto de que o filho pode sentir-se envergonhado do que eles compartilharam nos media
e redes sociais quando atingirem a fase adulta. Ainda, 74% admitem que conhecem outro pai
que partilhou informações consideradas excessivas sobre os filhos nas redes sociais. Referiram,
por exemplo, situações embaraçosas (56%), informações que poderiam facilitar a localização
da criança (51%) ou mesmo a partilha de fotos inapropriadas (27%).
Sendo assim, não se torna difícil perceber que se trata de um fenómeno universal, que
perpassa pela esfera individual dos pais mas que recai na proteção dos filhos menores, que
acabam por não ter direito de escolha, se querem ou não estar expostos nas redes sociais, mas
que contudo, poderão sofrer as consequências do atos que não escolheram expor.
88
ELMUNDO. El 81% de los bebés tiene presencia en redes sociales antes de los seis meses. Disponível em:
<https://www.elmundo.es/tecnologia/2019/08/13/5d529161fdddff74ac8b45d2.html>. Consultado em: 05-09-
2019. 89
MOTTPOLL. Parents on social media: Likes and dislikes of sharenting. 16-03-2015. Disponível em:
<https://mottpoll.org/reports-surveys/parents-social-media-likes-and-dislikes-sharenting>. Consultado em: 04-
10-2019.
34
Diante dos factos expostos, torna-se necessário analisar as implicações do fenómeno
sharenting para a vida das crianças, dado que de acordo com o n.º 1 do artigo 13.º da CRP, é
garantido que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Tal
garantia decorre também do que se encontra exposto no Preâmbulo da Convenção sobre os
Direitos da Criança, do reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis.
Apesar da Declaração de Genebra de 1924 ser o primeiro documento a garantir uma
proteção especial às crianças, foi somente em 1989, que a CDC, ratificada pelo Estado
português em 1990, que houve o reconhecimento da capacidade de autodeterminação e o direito
de participação da criança, o que lhes garante o direito de exprimirem livremente a sua opinião
sobre questões que lhe digam respeito, e de verem essa opinião sendo levada em consideração
conforme previsto no artigo 12.º.
Alem disso, o artigo 3.º da CDC consagra o princípio do superior interesse da criança,
pelo qual ratifica o entendimento de que todas as decisões que afetem as crianças,
primordialmente, devam ter em conta o seu superior interesse. Quer essas decisões sejam
administrativas ou judiciais, legislação, políticas ou programas, independentemente de se tratar
de instituições públicas ou privadas, cabendo ao Estado tomar medidas para efetivar tais
direitos.
Trata-se de um marco histórico mundial na proteção da criança, que a partir desse
momento passa a ser vista desvinculada do poder parental, para ser vista através de um conjunto
de direito-deveres próprios, pelos quais os pais assumem as responsabilidades de zelar, educar,
respeitar as suas decisões de acordo com seu desenvolvimento mental, psíquico, intelectual,
com interesse finalístico de promover o bem-estar físico e psíquico das crianças.
Ao conceber de forma inovadora direitos não antes previstos, a CDC, trouxe consigo
um caráter pedagógico, com intenção educativa, visando, a longo prazo, uma mudança de
mentalidade da sociedade. Entretanto, segundo Maria Clara Sottomayor,90 o que se vê na prática
é um direito ao respeito pela autonomia sem tutela, que se encontra à disposição dos próprios
pais que, subjetivamente, opinam de acordo com as suas próprias convicções.
Para João Botelho,91 o interesse do menor está diretamente relacionado com o tipo de
projecto de sociedade, ligado diretamente a uma noção cultural com um sistema de referências
vigentes em cada momento e na sociedade em que o menor se insere. Desta forma, a afirmação
90
SOTTOMAYOR, Maria Clara - Temas de Direito [...], ob. cit., p. 50. 91
BOTELHO, João – Regulação das Responsabilidades Parentais. Ed. Nova Causa, 2019 P. 14 e 15.
35
leva-nos a debruçar-nos sobre o crescimento do cibermundo e de uma sociedade que precisa de
se projetar ao momento tecnológico em que se encontra.
A superexposição dos menores nas redes sociais, podem ocasionar traumas psicológicos
que irão refletir na vida adulta dessas crianças, muitas vezes podendo levar a graves distúrbios
emocionais tendo em vista que as partilhas de suas imagens durante a infância possam a remeter
a situações de bullying, constrangimento e vergonha que repercutirão diretamente para o resto
de suas vidas.
Não se pode esquecer que a partilha de fotos e informações pessoais da vida privada da
criança gera um rasto digital que irá acompanhar a criança para o resto da sua vida, podendo
até mesmo nalgum momento futuro interagir para a criação da sua biografia, tornando-se
claramente impossível, posteriormente, impedir a sua difusão. Tudo pois, a eficácia do
comando delete está a cada dia mais limitada, quando uma vez publicada, torna-se difícil
posteriormente tentar excluir fotos, vídeos ou até mesmo comentários sobre o que é postado,
sendo impossível manter o controlo sobre eles.
Para Stacey Steinberg, com a partilha de informações por parte dos pais nas redes
sociais, torna-se possível que nalgumas crianças possam se sentirem constrangidas, tendo em
vista que muitas vezes os progenitores não se atentam que as fotos publicadas possam estar a
expor a criança em situações embaraçosas.92
Sabemos que as responsabilidades parentais se baseiam sobretudo no superior interesse
da criança, cabendo aos progenitores nortearem suas decisões sempre pautados neste princípio.
Desta forma, é-lhes impossível permitir, fiscalizar, autorizar ou, até mesmo, proibir
relacionamentos e convivências virtuais dos filhos menores desde que estes apresentem perigo.
Contudo, não se pode esquecer que, apesar de deverem obediência aos pais, é importante que
seja levada em consideração a opinião do menor de acordo com sua maturidade, conforme
disposto no n.º 2 do artigo 1.878.º do CC.
A maior parte da doutrina entende que o interesse da criança é um conceito
indeterminado, na medida em que carece de um preenchimento valorativo, e o que se vê na
prática, são interpretações subjetivas que decorrem dos interesses dos adultos quanto às suas
92
STEINBERG, Stacey B. – Sharenting: Children´s Privacy in the Age of Social Media, 2017. UF Law Faculty
Publications, 2017, p. 854. Disponível em:
<https://scholarship.law.ufl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1796&context=facultypub>. Consultado em: 03-10-
2019.
36
próprias interpretações sobre o que seria melhor para as crianças, de acordo com as suas
convicções pessoais e ideologias.93
Contudo, hoje o Direito abre-se a uma nova necessidade de proteção dos menores, num
mundo através da internet, notícias e informações pessoais rapidamente podem ser vistas e
compartilhadas no toque das mãos, não sendo importante apenas que os pais fiscalizem as
condutas dos menores nas redes sociais, como também devem abdicar de inserir imagens dos
seus filhos sem que os mesmos sejam consultados, informados e, nos casos em que a capacidade
de discernimento não esteja completamente desenvolvida, contenham a divulgação.
Conforme reafirma Rosa Martins, “o poder atribuído pela lei a uma pessoa cujo
exercício se encontra vinculado ao interesse de uma outra, não pode ser exercido se, quando e
como o seu titular quiser, mas antes terá de ser exercido pelo modo exigido pela sua função”.94
O que vemos na maioria das vezes é a coisificação das crianças, como meras propriedades dos
pais, nos fazendo ver um mundo pela perspetiva do superior interesse dos adultos e não das
crianças com deveria ser plausível.
Acrescentando ao nosso entendimento, Jorge Duarte Pinheiro complementa que: “os
adultos são bem-intencionados. Contudo, aqueles que se designam a si próprios “maiores de
idade” quantas vezes não olham para as crianças como seres menores, como brinquedos que
animam o universo da gente crescida?”.95 Se os pais se encontram vinculados ao superior
interesse do menor, e se as partilhas de imagens e da intimidade não se compatibilizam para o
crescimento saudável, não nos restam dúvidas de que medidas necessitam ser tomadas pelos
legisladores para que momentos da intimidade possam ser preservados, estando em causa, não
apenas, a violação do direito à imagem, como também ao direito a reserva da intimidade da
vida privada e familiar do menor.
Hugo Tavares enfatiza que as consequências de uma exposição capaz de gerar
cyberbullying, pode ocasionar a instabilidade psicológica, baixa autoestima, diminuição do
rendimento académico, e incapacidade de socialização das vítimas que tendem a isolar-se,
podendo estas consequências prolongarem-se pela idade adulta, tendo até mesmo sendo
descritos casos de suicídio associados.96
93
SOTTOMAYOR - Maria Clara, Temas de Direito [...], ob. cit., p. 50. 94
MARTINS, Rosa - Menoridade, (In)capacidade e Cuidado [...], ob. cit., p. 189. 95
PINHEIRO, José Duarte - Estudos de Direito da Família [...], ob. cit., p. 326. 96
TAVARES, Hugo, Cyberbulling na adolescência. In: Nascer e Crescer. Revista de Pediatria do Centro Hospital
do Porto, vol. XXI, n.º 3, 2012, p. 174-177. Disponível em:
<http://www.scielo.mec.pt/pdf/nas/v21n3/v21n3a16.pdf>. Consultado em: 05-10-2019.
37
2. A indisponibilidade do direito à imagem
A consagração dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, mais precisamente os
direitos de personalidade, encontram-se previstos no artigo 26.º da CRP. Este reconhece a todos
o direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à
cidadania, ao bom nome e à reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida
privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação (n.º 1).
A personalidade jurídica que é adquirida por toda e qualquer pessoa com o nascimento
completo e com vida (n.º 1 do artigo 66.º do CC), simultaneamente implica também a qualidade
dos indivíduos em serem classificados como sujeitos de direitos dentro das relações jurídicas.
O n.º 1 do artigo 70.º do CC, dispõe sobre a tutela contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de
ofensa à personalidade física ou moral. O que garante que, além de serem direitos absolutos,
visto que são oponíveis a todas as pessoas, também se apresentam como
inalienáveis/intransmissíveis, uma vez que não podem ser cedidos, e irrenunciáveis dado que
não se pode renunciar ao direito, apenas ao seu exercício.
Além disso, os direitos de personalidade são ainda imprescritíveis (n.º 1 do artigo 298.º
do CC), o que garante ao titular exercer o seu direito ainda que tardio ou a simples omissão não
prejudica a sua eficácia, e extrapatrimoniais, ou seja, embora a lesão possa ter dano patrimonial
gerador de indemnização pecuniária, os direitos de personalidade não têm, em si, um valor
pecuniário.
Superada a definição dos direitos de personalidade, o problema que trazemos a análise,
prende-se com a averiguação dos direitos de personalidade do menor quando estes podem ser
colocados em situações de risco, não por si, mas pelos seus progenitores no já mencionado
sharenting. Por mais que possa parecer comum, verifica-se um fenómeno bastante complexo,
trazendo a indagação se há legitimidade dos pais para exporem os seus filhos dado que as
responsabilidades parentais, não existem para retirar dos menores direitos de personalidades
para que sejam devolvidos à idade adulta, mas sim, trata-se de direitos que nascem com os
indivíduos e morrem com eles.
Antes de prosseguirmos para os direitos de personalidade específicos em questão, é
pertinente mencionar que os direitos fundamentais não são expressões sinônimas. Enquanto
que os direitos fundamentais propõem-se a evitar intromissões ilegítimas do Estado na esfera
dos cidadãos, os direitos de personalidade, em contrapartida, visam proteger a pessoa de
intromissões ilegítimas de outras pessoas.
38
Note-se que não significa dizer que o Estado não tenha o dever de respeitar os direitos
de personalidade do cidadão, mas pelo contrário, por ser direitos que tendem a coincidir, ao
respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, o Estado acaba por respeitar os direitos de
personalidade.
Com o grande avanço da tecnologia, além da facilidade de capturar fotografias e
divulgar informações, não estamos mais a frente somente da proteção da imagem por si só. Para
Maria de Moraes, além de proteger a “imagem-retrato” do sujeito, protege-se também a
“imagem-atributo”, que corresponde ao conjunto de características que decorrem perante o
comportamento das pessoas, de modo a recompor a sua representação no meio social.97
Por essa razão, facilmente se identifica a necessidade de proteger a imagem do
indivíduo, evitando que a reprodução, circulação e partilha desta seja capaz de causar
transtornos à pessoa, ou simplesmente pelo respeito à vontade que a sua imagem não seja
divulgada.
Tratando-se de previsão constitucional, o direito das crianças encontra-se previsto no
capítulo dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, precisamente no artigo 69.º do
Código Civil. Todavia, conforme previsto no artigo 17.º do CC, constituem direitos
fundamentais análogos aos direitos fundamentais, liberdades e garantias, ou seja, e nas
situações em que houver conflito com os direitos dos pais, deve prevalecer sobre estes o direito
da criança.
Apesar do Código Civil Português não ter uma definição de direito de personalidades,
o artigo 79.º prevê o direito à imagem apresentando-o como um direito absoluto, pelo qual
garante que o retrato de uma pessoa não possa ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio
sem o seu consentimento (n.º 1). Excecionalmente não será necessário o seu consentimento
quando a sua notoriedade assim o justificar (n.º 2). Entretanto, ainda assim, o seu retrato não
poderá ser reproduzido se do facto resultar um prejuízo para a honra, reputação ou simples
decoro da pessoa retratada (n.º 3), e, no caso de imagens de menores, é sabido que a divulgação
deverá sempre ser requerida aos pais para que autorizem, por escrito, a divulgação.
Para Rui Medeiros e António Cortês, com exceção dos espaços públicos e as naturais
limitações ligadas às figuras, cada pessoa pode autodefinir a possibilidade de utilização, ou não,
dos registos, por fotografia ou filme, da sua imagem 98. É dentro deste viés que ficamos com a
indagação se as crianças, não seriam pessoas de direitos desprotegidas da sua própria imagem
97
MORAES, Maria Celina Bodin de - Na medida da pessoa ..., ob. cit., p. 136. 98
MORAES, Maria Celina Bodin de, idem, ob. cit., p. 618.
39
tendo em conta que muitas vezes é publicado, pelos pais, algo sem levar em consideração, o
psicológico, emocional e até mesmo futuramente a repercussão dos dados partilhados. Contudo,
estamos a tratar da exposição daquelas ditas como “desconhecidas”, mas que ainda assim são
alvo de exposição dos pais em perfis públicos, disponibilizando a quem quiser, momentos
particulares como refeições, dança, descontração, tolices ou, até mesmo, inconvenientes, por
exemplo, os filhos a tomarem banho, a fazerem xixi, sujos de comida, feridas após uma queda,
etc.
É inquestionável que crianças possam ser figuras públicas, e certamente temos milhares
no mundo todo que já não se encontram no anonimato antes mesmo de seu nascimento, que são
os casos das crianças pertencentes as famílias reais, celebridades ou mesmo que desenvolvam
a vida artística. Contudo, apesar de estarem sob os holofotes, estes apenas têm razão de ser em
locais públicos, reservando-lhes a reserva da intimidade da vida privada familiar.
Para Paulo Mota Pinto, a privacidade consistiria no direito do indivíduo se subtrair à
atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento
ou à divulgação pessoal. Por outro lado, contrapondo-se fundamentalmente ao interesse em
conhecer e em divulgar informação, e ao interesse em ter acesso ou controlar os movimentos
do indivíduo 99. E nos indagamos: não teriam as crianças o igual dever de subtrair-se da atenção
a terceiros a quem os pais a expõem? E mais, nos casos de violação, teriam mesmo a elas a
quem recorrer e serem ouvidas?
Entendemos que, ainda que as fotos partilhadas pelos pais possam ser aprazíveis, não
sabemos se, quando essa criança se tornar adulta, poderá ser constrangedor ou não tudo que já
foi exposto sobre ela mesmo que não tenha intenção aparentemente vexatórias. As mesmas
fotografias podem ser frutos de vergonha, constrangimento e incómodo, entretanto o que de
facto não podemos é prever o futuro resultado dessas exposições.
Por fim, o direito à imagem, corresponde ao direito de que não sejam registadas ou
divulgadas imagens da pessoa sem o seu consentimento, o que confere o direito à “reserva e a
transitoriedade” da palavra falada e da imagem pessoal, conforme aponta Jorge Miranda e Rui
Medeiros, fazendo garantir a autonomia na disponibilidade da imagem independente de estar
ou não, de forma direta, em causa o bom nome e a reputação das pessoas e independentemente,
se estar a recair na vida privada ou familiar da pessoa.100
99
PINTO, Paulo Mota - O Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, In Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra, Coimbra, v. 69, 1993, pp. 508-509. 100
MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa ..., ob. cit., p. 618.
40
3. A suscetibilidade de oposição à exposição por outrem
Antes da reforma do Código Civil de 1977, o artigo 1.884.º, hoje revogado, previa que
os pais tinham poder de corrigir, moderadamente, os filhos nas suas faltas, o que nos remete à
ideia de que os pais eram autorizados a dar “palmadas” como meio de correção para assim
efetivarem as suas obrigações de prepararem as crianças para a vida adulta. Apesar da
revogação do artigo mencionado, não podemos dizer que hoje são proibidos os castigos físicos
leves, mas sim, o que acreditamos é que com a omissão da expressão “correções moderadas”,
fica clara a mens legislatoris quanto à proteção e respeito aos menores, o que nos revela ser um
grande avanço para o reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos nas relações
familiares.
Importante mencionar, que o artigo 1.874.º do CC, acerca dos princípios gerais das
responsabilidades parentais, prevê que pais e filhos devem-se mutuamente respeito. Dessa
forma, traz uma importante significação para o entendimento de que o poder que é dado aos
pais sobre seus os filhos para que os representem, não é inteiramente livre. Existe um controlo
do Estado para que os pais não ultrapassem limites que podem causar prejuízo aos menores,
trazendo-nos uma grande revolução no modo de se perceber as relações entre pais e filhos. Com
isto, pretende-se uma transformação na mentalidade dos adultos, tendo em conta a ideia de que
apenas os filhos tinham o dever de respeitar os pais, verificando-se, agora com a nova redação,
um dever de respeito mútuo.
Na verdade, o fundamento das responsabilidades parentais está na proteção da esfera
patrimonial e pessoal do menor, já que presume-se que, pela falta de experiência de vida,
necessitam a observância de seus interesses por quem possa ter maturidade e conhecimento
suficiente para auxiliá-los na defesa de seus próprios interesses. Id est, a responsabilidade
parental é um um poder atribuído cujo exercício é funcionalizado ao interesse do menor, que
se encontra numa posição de igual dignidade à dos pais, devendo-se mutuamente respeito,
auxílio e assistência conforme disposto no n.º1 do artigo 1.874.º do CC101. Acrescenta ainda
que, apesar das responsabilidades parentais constituírem um grupo de poderes e deveres, deve
101
SOTTOMAYOR, Maria Clara - Liberdade de opção da criança ou poder do progenitor? – Comentário ao
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31 de Outubro de 2007, In Lex Familiae, ano 5, n.º 9
(Janeiro/Junho de 2008), Coimbra Editora, p. 55, também, MARTINS, Rosa – Poder Paternal vs Autonomia da
Criança e do Adolescente?, in Lex Familiae, ano 1, n.º 1, Coimbra Editora, 2004, p. 65.
41
ser entendido, teoricamente, que “os deveres dos progenitores devem estar antes dos seus
poderes”.102
Não trata-se apenas de representação nas relações jurídicas, mas também de cuidados
em geral, propiciando um crescimento capaz de provocar uma progressiva liberdade e
autonomia do menor para organização da sua própria vida. (n.º 2 do artigo 1.878.º do CC).
É importante pontuar, todavia, que o artigo 1.901.º determina que nos casos de
divergência dos progenitores quanto aos assuntos de particular importância na vida do menor,
estes devem pedir a intervenção do tribunal (n.º 1). E, tratando-se de um menor que já tenha 14
anos de idade, este deve ser ouvido pelo juiz, para dar a sua opinião, a não ser que haja
circunstâncias ponderosas que o desaconselhem (n.º 2).
Atualmente, o Código Civil prevê outras manifestações quanto ao respeito pela
individualidade pessoal dos menores, como previsto no artigo 1.886.º quanto ao poder atribuído
aos jovens, completados 16 anos, para decidirem livremente a sua opção religiosa; no n.º 2,
artigo 1.931.º onde prevê que a partir dos catorze anos o menor deve ser ouvido antes de
proceder a nomeação de um tutor; artigo 1.984.º, alínea a) quanto à audição dos filhos adotantes
maiores de 12 anos, assim como o direito do adotando maior de 12 anos prestar consentimento
para adoção conforme n.º 1 do artigo 1.981.º, n.º 1, alínea a).
Fora do Código Civil, é importante citar nesta procura pelo direito da criança tendo em
vista o seu superior interesse, o Decreto-Lei n.º 73/84, de 02 de Março, portaria n.º 52/85, de
26 de Janeiro, Regulamento das consultas de Planeamento Familiar a Centros de Atendimento
para Jovens, quanto ao regime do acesso às consultas de educação sexual e de planeamento
familiar, diplomas que vieram fortalecer o respeito à autonomia do menor, ao confirmar que os
menores poderiam frequentar consultas sem autorização dos pais, por se tratar de medidas
importantes para um desenvolvimento saudável à vida adulta. Outra importante alteração que
merece destaque, encontra-se no n.º 3 do artigo 38.º do código penal, quanto ao consentimento
eficaz prestado por quem tiver mais de dezasseis anos e possuir discernimento necessário para
avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta, assim como também o n.º 5 do
artigo 142.º, n.º 5, que retira do âmbito do poder paternal a decisão de consentir numa
interrupção da gravidez nos casos em que se trata de uma menor que já tenha dezasseis anos.
102
BOLIEIRO, Helena, GUERRA, Paulo - A criança e a família – Uma questão de direito(s), uma visão prática
dos principais institutos do direito da família e das crianças e jovens, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p.
177.
42
A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), entende que as relações familiares
constituem dados pessoais e que devem também serem protegidos. De acordo com a Lei n.º
67/98, de 26 de outubro, atualmente revogada pela Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto, definia
dados pessoais como qualquer informação de qualquer natureza, independente do respetivo
suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável,
conforme artigo 3.º, alínea a) do revogado diploma. Estranhamente, a Lei n.º 58/2019, de 08 de
Agosto, não traz nenhum artigo que contenha definição de dados pessoais, contudo, face a isto,
acreditamos que cabe neste caso, o mesmo entendimento anteriormente proferido pelo
legislador.103
De acordo com a consideração n.º 38 do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados
(RGPD) n.º 2016/679, de 27 de abril de 2016, “as crianças merecem proteção especial quanto
aos seus dados pessoais [...] essa proteção específica deverá aplicar-se nomeadamente, à
utilização de dados pessoais de crianças para efeitos de comercialização ou de criação de perfis
de personalidade ou de utilizador [...]. O consentimento do titular das responsabilidades
parentais não deverá ser necessário no contexto de serviços preventivos ou de aconselhamento
oferecidos diretamente a uma criança”. Oportuno mencionar também que, de acordo com o
artigo 8.º do RGPD, quando as condições aplicáveis ao consentimento de crianças em relação
aos serviços da sociedade da informação, prevê que a oferta de serviços da sociedade da
informação só será lícita às crianças se elas tiverem, no mínimo, 16 anos, caso contrário, é
necessário consentimento ou autorização dos representantes legais do menor; podendo os
Estados-Membros dispor quanto à idade, desde que não inferior a 13 anos.
O mesmo entendimento foi acolhido pela Lei de Proteção de Dados, Lei n.º 58/2019, de
08 de Agosto, no artigo 16.º, entretanto quanto ao consentimento de menores, o legislador optou
pela utilização da idade mínima de 13 anos de idade completos (n.º 1), e nos casos em que a
criança tenha idade inferior a 13 anos, o tratamento só será lícito se dado o consentimentos dos
detentores das responsabilidades parentais e, de preferência, com recurso a meios de
autenticação segura (n.º 2).
Para Luís Lingnau da Silveira, o tratamento de dados pessoais relativo a certo titular, e
que face a este se apresente como legítimo, não pode integrar dados respeitantes a terceiro
(mesmo que familiar daquele), salvo se este último consentir inequivocamente 104, entretanto
103
De mesmo modo que o artigo 4.º do RGPD define como dados pessoais, informação relativa a uma pessoa
singular identificada ou identificável [...], não trazendo em sua redação referências diretas a som e imagem. 104
SILVEIRA, Luís da - Comemoração dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, em
AA.VV, Vol. 1, Direito da Família e das Sucessões, p. 863
43
importante observar todavia, que proteção de dados relacionados à família, está
consequentemente em tela o próprio direito de reserva da vida privada e familiar conforme
designado pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem no artigo 8.º.
Nos termos da atual conceção quanto aos direitos da criança, não se pode esquecer que
mesmo se tratando de crianças sem capacidade de discernimento para reivindicar os seus
próprios direitos, as crianças necessitam de ser vistas como “um sujeito autónomo de direitos,
com especificidades resultantes das características das fases próprias do seu
desenvolvimento”.105
Para Guilherme de Oliveira, “neste nosso tempo, rápido e implacável, os menores vão
continuar a ser os pequenos peões que se arriscam, diariamente, nas veredas perigosas que os
adultos e a Família lhes reservam, distraidamente” .106 Observando as palavras do autor, é
inquestionável o urgir da necessidade do entendimento que a criança não é o prolongamento da
personalidade dos seus pais, mas sim, outra pessoa, que carrega personalidade e anseios
próprios.
Ora, mas como saber se a exposição mediática, publicação de fotos e vídeos íntimos
está a causar-lhes sofrimento em vez de entretenimento, se muitas vezes esta criança sequer foi
ouvida, e ainda assim, precisa de continuar a ser mantida calada dentro da mesma relação
afetiva com as pessoas de referência que fazem a partilha da sua vida, ou melhor, expõem,
postam e dispõe da sua vida privada, sem indagações, pareceres psicológicos ou conhecimento
de danos traumáticos que a exposição possa vir a desenvolver?
Concluímos, assim, que seria incompreensível que uma lei, de acordo com a maturidade
e discernimento da criança, pudesse, em determinadas situações conforme já mencionadas
anteriormente, possibilitar que a criança fosse ouvida nos processos que lhe dizem respeito;
serem arroladas como testemunhas seja em processo civil (artigo 495.º do CPC) ou penal (artigo
349.º do CPP), mas entretanto serem vedadas de consentir sobre a partilha da sua própria
imagem e informações da vida privada.
Destarte, não se pode deixar de parabenizar o legislador português pela sensibilidade e
razoabilidade ao salvaguardar a possibilidade da criança, ao longo de sua infância, poder
desempenhar um papel ativo no que diz respeito à sua própria vida.
105
LEANDRO, Armando - Protecção dos direitos das crianças em Portugal, em AA.VV., Direitos das crianças,
Coimbra, Coimbra editora, 2004, p. 102. 106
OLIVEIRA, Guilherme de - Temas de Direito de Família, 2.ª ed. Coimbra ed., 2001. p. 303.
44
Em Espanha, o artigo 9.º da Ley Organica 1/1996 de Protección Jurídica del Menor, de
15 de Janeiro, prevê o direito da criança em ser ouvida e escutada, sem discriminação com base
na incapacidade ou qualquer outra circunstância, quer seja no ambiente familiar, quer seja em
qualquer procedimento administrativo, judicial, ou de mediação em que seja afetado e que leve
a uma decisão que afete a sua esfera pessoal, familiar, ou social, tendo em consideração a sua
opinião, a depender da idade e maturidade, devendo para tanto, receber as informações que lhe
permitam exercer o seu direito em linguagem compreensível, em formatos acessíveis e
adaptados às suas circunstâncias. Importante ressaltar que apesar do n. 1 do artigo
supramencionado não faz qualquer referência a limite mínimo de idade, o n.º 2, estabelece a
presunção de maturidade alcançados aos 12 anos, não obstante que, antes dessa idade, a
capacidade de discernimento do menor possa ser avaliado por pessoa especializada, tendo em
vista o desenvolvimento evolutivo da criança e a sua capacidade de entender e avaliar a questão
específica a ser abordada no caso, solução esta que não podemos deixar de tecer elogios.
Quanto ao legislador francês, também optou por não fazer referência à idade, entretanto,
o artigo 338-1 do Código de Processo Civil, não nos remete com clareza ao dispor que cabe ao
titular do exercício da autoridade parental pelo tutor, pessoa ou serviço a quem a criança foi
confiada. Informar a mesma do seu direito de ser ouvida e assistida por um advogado em todos
os processos que lhe dizem respeito. O artigo 338-2 do mesmo diploma, prevê ainda que o
pedido de audiência possa ser apresentado ao juiz pelo menor, não necessitando, para isso, de
qualquer forma, sendo a recusa da audição do menor só ser possível se for baseada na falta de
discernimento ou quanto o fato de que o processo não dizer a respeito do menor, conforme o
artigo do mesmo código.
No que ao Código Civil Italiano diz respeito, o artigo 315 bis, reconhece o direito ao
menor que atingiu doze anos de ser ouvido, como também àquele com idade inferior mas que
se encontre capaz de discernimento nos assuntos que lhe dizem respeito. Contudo, não podemos
deixar de demonstrar dúvidas quanto às exceções previstas no artigo 336 bis, do mesmo código,
onde o menor não será ouvido nos casos em que a escuta contrarie o seu interesse, ou seja,
manifestamente supérflua à sua audição.
Não podemos deixar de tecer a nossa crítica ao legislador brasileiro quanto a
discriminação da criança em razão da idade imposta pela Lei n.º 8.069, de 13 de Julho de 1990
que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e rececionado pelo Código
Civil Brasileiro de 2002, pelo qual prevê no inciso III do artigo 1.740 do CC que a opinião do
menor só será ouvida se este já contar com doze anos de idade, ainda que o §1.º do artigo 28 do
45
ECA dispõe que sempre que possível, a criança ou adolescente será previamente ouvido/a por
uma equipa interprofissional, de modo a respeitar o seu estágio de desenvolvimento e grau de
compreensão sobre as implicações da medida, e terá à sua opinião devidamente considerada.
Assim sendo, no direito brasileiro, apenas aos adolescentes107 serão facultados as
garantias processuais do inciso III do artigo 111 do ECA, o direito de ser ouvido pessoalmente
pela autoridade competente.
Não entendemos ser coerente pressupor que a criança necessite de uma faixa etária
mínima para que assim possa ser ouvida a respeito dos atos relacionados com a sua própria
vida. Tornando-se confuso perceber que esta somente teria capacidade de se movimentar na
esfera jurídica com discernimento suficiente para outros atos previstos na lei, e não teria
maturidade suficiente para determinar autonomamente e a salvaguardar os seus outros
interesses108 quando omissa a faixa etária na lei.
Apesar disso, importa-nos perceber a partir de que momento poderia ser tido em conta
o consentimento do menor visto que, apesar da lei e doutrina aludirem à “maturidade” como
um momento decisivo em que o menor adquire as suas faculdades mentais capazes de atuar por
si mesmo,109 seria necessário que houvesse uma delimitação da idade e verificar em que
circunstância será essa maturidade conquistada e percebida. Algo ainda muito nebuloso perante
a doutrina quanto à fixação de uma idade mínima, contudo resta-nos uma certeza: sempre que
possível, deve ser ouvida a opinião do menor pelos pais quanto à partilha das imagens na
internet.
107
O direito brasileiro distingue crianças e adolescentes foi faixa etária. Conforme previsto no artigo 2.º do
ECA, são consideradas crianças a pessoa até doze anos incompletos, e adolescentes aquela entre doze e dezoito
anos de idade. 108
BARBOSA, Mafalda Miranda - Breves reflexões em torno do art. 127.º do Código Civil, In BFD, vol. XC,
Tomo II, 2014, p. 695. 109
MARTINS, Rosa - Poder Paternal vs Autonomia da Criança e do Adolescente?, In Lex Familiae, ano 1, n.º 1,
Coimbra Editora, 2004, p. 73.
46
4. A recente atenção da jurisprudência
Perante todo o exposto, pretendemos mostrar a rapidez com que o sharenting se tem
propagado mundialmente e que, embora tenha recebido muitas críticas, o fenómeno encontra-
se cercado de complexidade cuja opinião/entendimento dependerá de como àquelas que se
sentirem prejudicados, ou não, irão manifestar no caso concreto face aos seus progenitores.
Em França, no dia 02 de Setembro de 2014,110 o Tribunal de Apelação de Aix-en-
Provence, julgou o pedido de um dos progenitores separado, para a remoção de uma conta do
Facebook aberta pela mãe do seu filho de sete anos. A mãe alegara que a conta tinha sido criada
para que o menor pudesse jogar no tablet. Contudo, os magistrados decidiram aceitar o pedido
do pai e ordenaram que a mãe fechasse a conta dentro de um prazo de dez dias após a sentença
e, passado este período, sob pena de prisão. A decisão foi proferida em conformidade com a
jurisprudência já estabelecida, a incluir uma sentença do Tribunal de Apelação de Agen, de 16
de maio de 2013,111 que ainda que sem ordenar o cancelamento de um perfil em determinada
rede social, consideraram que a abertura de um perfil no Facebook pela mãe, em nome da sua
filha de 10 anos de idade, provavelmente, estaria a colocá-la em perigo.
Noutro julgamento, no dia 25 de junho de 2015,112 o Tribunal de Versailhes concedeu
favorável o pedido de um pai para que sua ex-esposa parasse de publicar fotos do seu filho de
apenas quatro anos, como também excluísse os comentários e fotografias já publicadas do
menor na sua conta do Facebook. O Tribunal ordenou que a mãe parasse de publicar qualquer
informação referente à criança sem a devida autorização do pai além de excluir o conteúdo
conforme o pedido. O Tribunal declarou ainda que a publicação de fotos da criança e
comentários relacionados a ela no site do Facebook, não se trata de um ato comum, mas que
exige o acordo de ambos os pais (tradução nossa).
Coincidentemente a 25 de junho de 2015, o Tribunal da Relação de Évora, num acórdão
relatado pelo Desembargador Bernardo Domingos, constitui uma esperançosa resposta quanto
à proteção do direito à imagem dos menores em Portugal. De forma inédita, entre todos os
tribunais portugueses de segunda instância, determinou que os pais de uma menor de 12 anos
de idade deveriam “abster de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a
110
CA Aix-En-Provence, 6e ch. C, 02 Septembre 2014, n.º 13/19371, JurisData 2014-019786. 111
CA Agen, ch. mat. 1, 16 Mai 2013, n.º 11/01886, JurisData n.º 2013-009716. 112
CA Versailles, 2e ch. Sect. 1, 25 Juin 2015, n.º 13/08348, JurisData n.º 2015-015861.
47
filha nas redes sociais”.113 Trata-se de um assunto que detém grande repercussão na opinião
pública face à indagação se os pais, enquanto detentores das responsabilidades parentais,
poderiam ou não serem proibidos de publicarem fotos dos seus filhos menores nas redes sociais,
ainda que perante um grupo restrito de pessoas, sem que estivessem a violar os direitos de
personalidade dos seus filhos.
Mas, trazemos a indagação: tratando-se de publicações que causem desconforto, perigo
ou até mesmo cyberbullying,114 poderia o Estado aplicar medidas tendo em conta a existência
do princípio da intervenção mínima do Estado na família? É certo que o Estado não tem o
condão de impor paradigmas do que seria certo ou errado para a educação dos filhos, porém
incumbe-lhe cooperar com os pais para educação, conforme disposto na alínea c) do artigo 67.º
da CRP.
Outra questão importante quanto ao acórdão, refere-se ao facto de ter sido uma decisão
proferida em sede de recurso num processo de regulação provisória do exercício das
responsabilidades parentais referente à filha menor, que em nada versava sobre condutas
inadequadas dos pais quanto à exposição da menor. Assim, neste caso, entendemos que ainda
que seja uma apelação interposta proferida no âmbito de um processo acerca da regulação das
responsabilidades parentais, o tribunal tem o dever de proteger a criança, visto que esta é a parte
mais fraca dentro da família.115
Entende-se ainda que por se tratar de um processo de jurisdição voluntária, possibilita
ao tribunal ser livre para conhecer sobre outros factos que não sejam levados pelas partes ao
seu conhecimento (n.º 2 do artigo 986.º do CPC), além de não ter que estar sujeito a critérios
de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente
e oportuna (artigo 987.º do CPC).
Note-se que, apesar de “conveniente e oportuna” (artigo 987.º do CPC), não poderá
corresponder ao livre critério do(s) julgador(es) a valer de casuísmo e baseando-se em critérios
113
Acórdão de 25.06.2015, Proc. n.º 789/13.7TMSTB-B.E1, Relator Bernardo Domingos. Disponível em:
<https://www.dgsi.pt>. Consultado em: 04-05-2019. 114
Expressão proveniente da língua inglesa, é definida por Hugo Tavares como um ato hostil repetido e deliberado
de ameaça e ofensa (denegrir, humilhar), feito através de tecnologias da informação (telemóveis, internet, etc.),
implicando necessariamente que o provocador/abusador e a vítima sejam menores de 18 anos, caso contrário,
envolvendo maiores de idade passa ser denominado assédio de menores. Cfr. TAVARES, Hugo, Cyberbulling na
adolescência ..., ob. cit., p. 174. 115
SOTTOMAYOR, Maria Clara - Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de
Divórcio, 5.ª ed., Porto, Almedina, 2011, p. 31.
48
subjetivos,116 é necessário que a decisão seja fundada em princípios regulatórios, doutrina e
jurisprudência a que no caso em questão refere-se à proteção da imagem e à reserva da vida
privada da criança.
É verdade que a situação que nos propomos a análisar e a seguinte decisão proferida
pelo tribunal, deve ser uma conduta dita como habitual aos pais em abster os menores de certas
exposições. Isto porque, não caberia a lógica de que os progenitores que não estivessem
intentado ações ao tribunal para regulação das responsabilidades parentais, não estariam
proibidos de publicações dos menores, tendo em vista que não há decisão de um tribunal que
os proíba expressamente.
Se àqueles pais que nunca tiveram intervenção de um tribunal, não tivessem que
resguardar a imagem dos menores, certamente estaríamos diante de uma violação do princípio
da igualdade conforme o artigo 13.º da CRP. Os perigos causados pelo sharenting estão
presentes, independentemente, de estarmos a falar de filhos de pais casados, divorciados ou que
vivem em união de facto.
Posteriormente, a 09 de fevereiro de 2017,117 o Tribunal de Apelação de Paris, numa
solicitação feita pela progenitora, decretou a proibição de publicar fotografias, em qualquer
meio, da vida quotidiana dos seus filhos sem o consentimento do outro progenitor.
A solicitação partiu da mãe dos menores, com idades de 09 e 06 anos à data do
julgamento, num processo de divórcio, alegando que o pai publicara na sua conta do Facebook
várias fotografias dos menores. O Tribunal declara que a proibição se faz necessária a fim de
“respeitar o exercício conjunto da autoridade parental, que exige o consentimento de ambos
os pais quanto às decisões a serem tomadas com vistas ao interesse da criança”, o que
demonstra a preocupação do Tribunal com o perigo que o excesso do uso das redes sociais
pelos pais podem causar ao expor fotografias das crianças. Em consonância com o artigo n.º
371-1 do CC francês, conforme já citado anteriormente.118 Afirma o entendimento que a difusão
de uma fotografia do filho menor sem o consentimento do outro pai seria, na legislação
francesa, contrária ao interesse da criança. O que, decerto, discordamos, na medida em que, por
vezes, a importância da audição da criança quanto ao incómodo da sua exposição pode ser
adversa à perceção de ambos os pais.
116
MARQUES, J. P. Remédio - Acção Declarativa à luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora,
2008, pp. 109 e ss. 117
CA Paris, Pôle 3, chambre 4, 9février 2017, n.º 15/13956. 118
Cfr. Parte I, n.º 2. Sobre Responsabilidade Parental.
49
De modo similar, vemos a decisão do dia 23 de dezembro de 2017119, referente ao
processo n.º 39913/20015, onde o Tribunal de Roma, decidiu obrigar uma mãe a remover as
fotos do seu filho de 16 anos da rede social, como também a condenou a um pagamento de uma
multa pecuniária ao filho. A decisão faz parte de um processo complexo, no qual um juiz de
primeira instância designou um tutor face à suspensão das responsabilidades parentais de ambos
os progenitores.
Apesar de estarem presentes outras questões em causa, atentamos para a partilha de
fotos e informações pessoais do menor por parte da mãe em redes sociais, especificamente
Facebook e Instagram. Contudo, o que chama atenção neste caso, está nas oitivas feitas ao
menor pelo juiz, onde ele se manifesta a respeito das publicações feitas pela sua genitora,
alegando que fica “aborrecido com o facto de que ele passa como se estivesse doente e que os
seus colegas são cientes do que é publicado na web sobre ele 120” (tradução nossa). Acrescenta
ainda, quanto ao seu desejo de estudar nos Estados Unidos: “para ter mais oportunidades de
emprego...quero ter a vida de um garoto normal... que esperança eu tenho na Itália, onde todos
conhecem a minha história... o que posso fazer como zelador?” (tradução nossa). Ao se referir
à mãe, indaga o menor: “de acordo com ela, uma pessoa que diz que ama pode escrever essas
coisas” (tradução nossa) refere-se, ao mostrar as capturas de ecrã das páginas sociais pelas quais
a mãe teria incluído fotos da família e detalhes de disputas legais.
Com base nos factos, em maio de 2017, o juiz determinou que a mãe removesse
informações e fotos do menor, reiterando a decisão anterior que ordenava que a mãe parasse de
publicar os dados pessoais do menor além de remover os já publicados. Contudo, a mesma
incumpriu a decisão, conduzindo para uma aplicação coercitiva indireta, de acordo com artigo
614.º bis do Código de Processo Civil Italiano, que determina o pagamento de uma multa em
caso de descumprimento da decisão. Além de se basear no artigo 96.º da Lei n.º 633/1941 sobre
os direitos autorais italianos, que prevê que o retrato de uma pessoa não pode ser exibido,
reproduzido ou colocado no mercado sem o seu consentimento, salvo em algumas exceções.
Importante retratar, além disso, que se trata de um menor de 16 anos, em que a lei
italiana atribui ampla margem de autodeterminação. Entretanto, ao relatarmos as situações de
menores sem capacidades de discernimento, onde um dos pais discorda da publicação, a
119
ALTALEX. Tribunal de Roma. Processo n° 39913/20015. Disponível em:
<https://www.altalex.com/~/media/altalex/allegati/2018/allegati%20free/tribunale_roma_ordinanza_23_dicembr
e_2017%20pdf.pdf>. Consultado em: 03-10-2019. 120
Idem
50
jurisprudência italiana orienta-se pelo entendimento por descartar a foto, dado que conforme o
Código Civil Italiano, o consentimento deve ser de ambos os progenitores.
É oportuno refletir de outro modo, que as publicações podem trazer perigos aos filhos,
mas também, muitos pais partilham momentos dos filhos com um intuito positivo de
demonstração de afeto, felicidade ou mesmo para diminuir distâncias entre familiares a amigos
[...], podendo, em alguns casos, tratarem até de uma questão de demonstração de orgulho dos
pais para mostrar o crescimento de um filho.121
Sabemos que o que, de facto deve ser levado em consideração primeiramente, seria a
utilização do bom senso por parte dos progenitores em não revelar fotografias e vídeos nas
redes sociais que possam por em risco a segurança dos menores. Contudo, o que vemos
acontecer demasiadamente são, na verdade, o crescente número de pais que, por negligência ou
vaidade, expõem os menores de forma desnecessária.
Ainda não há casos no Brasil, como já vistos nos países citados anteriormente,
entretanto a advogada de direito digital Alessandra Borelli, acredita que em um futuro próximo
se venha a ter casos semelhantes, porém ainda é impossível prever como a justiça brasileira
atuará.122 Atualmente a violação do direto à imagem é passível de pagamento de indemnização
até mesmo chegar a penalidade de seis anos de prisão.
Todavia, o que vemos é que os tribunais não se encontram com um entendimento
pacífico sobre o assunto, apesar de se pautarem no superior interesse do menor. Vemos que o
Estado não se encontra, e nem deve, estar numa posição de autoridade com fins de ditar aquilo
que os pais possam compreender como melhor para a educação dos seus filhos, mas sim,
resguardar os menores para o seu superior interesse quando estiverem ameaçados.
Simili modo, que em um futuro próximo possamos a vir a ter filhos que se sintam
incomodados com a exposição indevida dos pais durante a infância, pode ser também que para
maioria isto não represente um problema.
Apesar não termos uma significativa demanda de menores nos tribunais a reivindicarem
à proteção da privacidade no que diz respeito a exposição pelos pais nas redes sociais,
acreditamos que num futuro muito próximo possamos vir a ser surpreendidos, visto que as
121
OBSERVADOR. Publica as fotos dos seus filhos nas redes sociais? Talvez não devesse. 12-07-2015.
Disponível em: <http://observador.pt/2015/07/12/publica-fotos-dos-seus-filhos-nas-redes-sociais-talvez-nao-
devesse/>. Consultado em: 02-10-2019. 122
REVISTA CRESCER. Privacidade das crianças na Internet: quem deixou você postar isso? 12-06-2018.
Disponível em: <https://revistacrescer.globo.com/Criancas/Comportamento/noticia/2018/06/quem-deixou-voce-
postar-isso.html>. Consultado em: 03-10-2019.
51
gerações expostas aos media, podem, hoje, ainda ser demasiado jovens para tomarem medidas
legais contra os seus progenitores, porém, por se tratarem de direitos de personalidade e sendo
esses imprescritíveis poderão, facilmente, serem reivindicados quando atingirem a vida adulta.
Vejamos o caso de um filho de figuras públicas. A título de exemplo, tomemos um casal
de Bloggers que partilham a sua vida íntima nas redes sociais. Para ambos os progenitores pode
ser normal dispor as suas vidas privadas na medida em que são remunerados por patrocinadores
e empresas pela ampla divulgação. E o menor? Não teria o direito de abster a sua vida, em
detrimento das prendas, ter que vestir as roupas que foram oferecidas e a privacidade da sua
vida, já que ambos os pais concordam primeiramente com a sua própria exposição e,
consequentemente, com a dos seus descendentes? Entramos nesse ponto para a reflexão que,
no caso concreto, também estamos perante a possibilidade de casos em que o superior interesse
da criança não se coadune com o interesse dos pais.
Tratando-se da partilha de imagens dos menores e, certos de que não há nenhuma
legislação portuguesa que proíba, expressamente, os progenitores de tal prática, no entanto,
posicionamo-nos pelo entendimento de que não seria necessário a criação de uma lei específica
para que se pudesse ser conferida a tutela do direito à imagem nas redes sociais, dado que os
artigos 79.º e 80.º já do CC já os garante, tendo em conta, coibirem a difusão,123 independente
de onde ela ocorrer, inclusive na Internet (entendimento nosso).
A título de exemplo, analisamos uma determinada situação em que seja selecionado um
mecanismo capaz de delimitar um grupo restrito de pessoas para visualizarem determinada
imagem nas redes sociais. Não estariam do mesmo modo os progenitores a violarem o direito
à imagem do filho? Na nossa opinião, primeiramente, o mais importante faz alusão ao bom-
senso e proporcionalidade quanto ao uso das imagens respeitantes o filho, atitude que seria
muito pertinente por parte dos pais para que se evitasse uma possível divulgação sem
precedentes. Em seguida, adotar um regime jurídico para cada tipo de definição de privacidade
nas redes sociais, traria dificuldades quanto a sua própria delimitação, ou seja, criaríamos
embaraços em provar à data das publicações e se as opções de privacidade estavam restritas ou
acessíveis a todos na altura dos factos.
É de suma importância que a divulgação das imagens e informações levem em
consideração a proteção e o superior interesse do menor, onde a construção do conteúdo deva
123
Com exceção nos casos de criança desaparecida onde é admitido que ocorra a divulgação da sua imagem desde
que, para isso, haja o consentimento de ambos os pais, por entender que se trata de atos existenciais graves e raros
que pertencem ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças, competindo sempre a decisão de
publicar a ambos os pais. Cfr. BOLIEIRO, Helena, GUERRA, Paulo – A criança e a família ..., ob. cit., p. 177.
52
ponderar a sua autonomia, a exemplo de impedir que ocorra a partilha quando o menor se
manifesta contrariamente a sua exposição, práticas a ridicularizá-lo, em poses sensuais ou
mesmo que exposição à hostilização. Tudo pois, uma vez publicados, facilmente poderão ser
reproduzidos, inclusive para fins criminosos. Id est, uma vez publicadas somos incapazes de
medir o alcance que essas publicações terão.
Em suma, conforme Anne LongField, no relatório Who Knows What About Me?, não
sabemos ainda quais serão as consequências do sharenting para a vida das crianças, mas, de
facto, o que sabemos é que o fenómeno tende só a aumentar. 124 Acontece que, atualmente,
muitos empregadores, antes de contratarem funcionários, analisam as redes sociais dos
candidatos em processos de seleção, com o intuito de obter mais informações sobre eles.
Atentamos ao facto de que as informações e dados partilhados durante a infância podem conter
rastros que influenciarão também à vida profissional, podendo gerar constrangimentos e
traumas no local de trabalho. Todavia, é preciso que os pais parem para pensar no que tal pode
vir a significar para a vida delas no presente e como isso pode impactar as suas vidas futuras
quando adultas. Quanto aos Estados, cabe-lhes monitorarem a situação e fortalecer legislações
de proteção de dados, com vista a uma proteção genuína das crianças. E aos pais, falta por vezes
a sensibidade e o bom senso para verificarem se a partilha está direcionada para o superior
interesse da criança, ou se não advém, exclusivamente, de um interesse pessoal deles.
124
CHILDRENSCOMMISSIONER. LONGFIELD, Who Knows What About Me? 2018. Disponível em:
<https://www.childrenscommissioner.gov.uk/wp-content/uploads/2018/11/cco-who-knows-what-about-
me.pdf.>. Consultado em: 06-10-2019.
53
CONCLUSÃO
1. Verificamos ao longo da história que, durante muitos séculos, a criança era vista como
um ser irracional subordinada ao pater potestas, indigna de qualquer direito. Somente na Idade
Moderna, se inicia o reconhecimento de uma ideia da infância pela qual hoje compreendemos.
A construção da imagem da criança para ser vista como sujeito de direitos e não como
mero objeto dos pais, caminha por um longo percurso e quando, comparada ao decorrer dos
séculos, trata-se de uma vitória recente conquistada com a Declaração dos Direitos da Criança
em 1959, motivando que o século XX possa vir a ser reconhecido como o Século da Criança.
Com tais avanços no reconhecimento da singularidade da infância, é possível notar que
a criança passa a ser vista como um ser humano que detém capacidades psicológicas,
emocionais e físicas próprias, lhes são reconhecidas a inocência, é-lhes assegurada uma
proteção jurídica necessária. Em contrapartida, sem que se possa passar despercebido que a
maturidade passa por um processo gradativo, obrigando que a lei possa acompanhar tal
desenvolvimento na esfera da capacidade jurídica da criança.
A Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro que, apesar de versar sobre alterações do regime
jurídico do divórcio, trouxe relevante avanço ao direito da criança ao modificar a expressão
“poder paternal” para “responsabilidades parentais”. Dessa forma, pretende salvaguardar o
princípio do superior interesse da criança aferindo, para tal, o conhecimento do seu meio, do
seu estado de desenvolvimento como também das suas necessidades.
Constata-se que o superior interesse da criança demanda de critérios subjetivos, com
vista a procurar uma solução que melhor satisfaça esse interesse.
Face à observação da crescente partilha de fotos dos filhos por parte dos pais nas redes
sociais, esse fenómeno já tem definição própria, sendo conhecido como sharing que começa a
ser analisado pela doutrina em razão dos direitos que possam a vir ser violados. Trata-se de um
assunto novo e complexo, gerador de muita discussão e angústia que, embora desconheçamos
as consequências, tudo dependerá de como a sociedade definirá privacidade, no futuro.
Acreditamos que ao partilharem amplamente as fotos dos seus filhos nas redes sociais,
os pais não refletem que podem estar a causar algum prejuízo à criança, devendo preocuparem-
se com os perigos que a partilha pode causar, a exemplo da chegada das imagens às redes
54
internacionais de produtores, comerciantes e colecionadores de imagens infantis com conteúdo
sexual, muitas vezes ligado ao crime organizado.125
2. Atualmente, muitas crianças já possuem identidade digital, face à superexposição
conduzida pelos seus progenitores, o que pode vir a ocasionar uma série de constrangimentos
e incómodos. Dessa forma, a qualquer momento poderão entender que as suas vidas privadas
estão a ser expostas indevidamente pelos pais. Em contrapartida, consideramos que pode não
representar nenhum constrangimento, dado que a privacidade não dispõe da mesma perspetiva
para todos.
É imprescindível que o consentimento da criança seja analisado, sobre critérios de
maturidade e idade, quanto à capacidade de auferirem discernimento acerca dos assuntos
diretamente ligados à sua própria vida.
Os pais até podem direcionar a educação dos filhos, no entanto, a personalidade do
menor é formada pelas suas próprias experiências de vida, não cabendo aos pais escrever essa
história. Ou talvez sim. Pode ser que, no futuro, os filhos possam queixar-se pela ausência de
uma vida digital ativa que os possibilite recordar momentos da sua infância. O que de facto não
podemos prever, nem determinar como será a autonomia da criança e a sua perceção sobre a
privacidade.
Apesar de tudo, a partilha excessiva, por parte dos pais, nas redes sociais gera
importantes preocupações e o estado atual da arte no direito da criança leva-nos a concluir, com
base no superior interesse da criança, a eficácia normativa. Posto isto, compreendemos que os
direitos à personalidade da criança, máxima direito à reserva da intimidade da vida privada e
direito à imagem, poderão ser violados se a exposição não atender ao interesse do menor, e nem
estabelecida pelo exercício das responsabilidades parentais.
3. Neste desiderato, em se tratando de menores, não percebemos como solução o facto
de proibir, negar ou sancionar os pais pelas partilhas de fotos e informações dos menores no
ciberespaço. Mas sim, de ser levado em consideração o objetivo da partilha a fim conscientizá-
los do dever que lhes cabem de salvaguardarem os interesses dos seus filhos, de forma cautelosa
e sensata no ciberespaço, de modo que sempre seja avaliada cada situação in concreto.
Entendemos não se tratar de um impedimento absoluto, mas sim que a partilha seja
possível desde que o menor não seja identificado, ou se assim sendo, seja comprovado sua
maturidade capaz de consentir de forma livre e esclarecida a divulgação.
125
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25-06-2015, Processo n.º 789/13.7TMSTB-B.E1, Relator:
BERNARDO DOMINGOS. Disponível em: <https://www.dgsi.pt>.
55
Todavia, se é discutível que a imagem publicada ou divulgada não reflete o superior
interesse da criança, logo devemos concluir que os pais devem abster-se da divulgação, salvo
em situações em que a exibição possa ser justificada.
56
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ÍNDICE DE JURISPRUDÊNCIA
Tribunal da Relação de Coimbra
Acórdão de 18-10-2011, Processo n.º 626/09.7TMCBRC.C1, Relator Regina Rosa.
Tribunal da Relação de Évora
Acórdão de 11-04-2012, Processo n.º 612/097TMFAR.E1, Relator: Maria Alexandra M.
Santo.
Acórdão de 25-06-2015, Processo n.º 789/13.7TMS, Relator: Bernardo Domingos.
Tribunal da Relação de Coimbra
Acórdão de 18-10-2011, Processo n.º 626/09.7TMCBRC.C1, Relator Regina Rosa.
Tribunal da Relação de Évora
Acórdão de 11-04-2012, Processo n.º 612/097TMFAR.E1, Relator: Maria Alexandra M.
Santo.
Acórdão de 25-06-2015, Processo n.º 789/13.7TMS, Relator: Bernardo Domingos.