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Na Prática Clínica, oElectroencefalograma (EEG) é muito ou pouco útil?Como todos os exames complementaresde diagnóstico, há situações em que oEEG é muito útil e outras em que poucoajuda. O EEG é um exame que foi in-ventado em 1924 por Hans Berger(1873-1941)1 e desde então tem havidoenormes desenvolvimentos tecnológicosna área electrónica que têm revo-lucionado a capacidade de analisar aactividade eléctrica do cérebro2. As in-dicações quotidianas deste estudoforam largamente ultrapassadas pelassuas potencialidades no campo da in-vestigação.

O EEG, ao medir a actividade eléctrica do cérebro, serve paraavaliar as suas funções?Infelizmente o EEG não consegue darinformações sobre a maior parte dasfunções cerebrais (pensamento, memó-ria, linguagem, etc.) mas somente regis-tar diferenças de potencial eléctrico en-tre pontos do escalpe. Tem por isso mui-tas limitações. Desde logo espaciaispois, em condições habituais, não secoloca senão um número limitado deeléctrodos e, por outro lado, por maiseléctrodos que se coloquem não se con-segue ter eléctrodos suficientementepróximo das faces internas e inferiores

dos hemisférios cerebrais. Acrescemlimitações temporais já que as mediçõesque se explicitam em gráficos de curvassinusoidais com amplitudes e frequên-cias variáveis apenas reproduzem da-dos que ocorrem durante o registo,deixando-nos sem informação sobreacontecimentos que possam acontecernoutras épocas. Existem também limi-tações técnicas, pois entre o cérebro ea pele do couro cabeludo interpõem-sevárias camadas de tecidos que preju-dicam a condução eléctrica. Finalmentepodemos considerar as limitações designificado – muito ainda está para des-cobrir para que possamos saber tudo oque corresponde efectivamente a umadeterminada variação de sinal eléctrico.

Então o EEG é um exame de fracautilidade?Se na prática clínica for seguido oprincípio geral da medicina que é come-çar a abordagem do doente pela anam-nese e levá-la até às suas últimas con-sequências, então o recurso a este comoa outros exames complementares reve-la-se útil na medida em que conheça-mos a sua sensibilidade e a sua espe-cificidade. O EEG é muito útil na confir-mação de diagnósticos clínicos de al-gumas epilepsias. É no manejo clínicodas epilepsias que este exame conheceníveis de especificidade maiores,chegando a 78 ou 98% conforme os es-tudos. No entanto, como se pode de-preender do que já foi dito acima, a sen-sibilidade do EEG é fraca, situando-seentre 25 e 50%3,4. Isto significa que tempoucos falsos positivos, ou seja, quequando se encontram certos elementosgráficos sugestivos de certos síndromosepilépticos a probabilidade de confir-mar o diagnóstico é alta mas que, por

A utilidade do EEG*

*Adaptação em modelo FAQ («frequently asked questions»)

de palestra feita no «I Encontro deEpilepsia em Matosinhos»

Hospital Pedro Hispano, em 18 de Fevereiro de 2005.

**Neurologista e neurofisiologistaChefe de Serviço no Serviço

de NeurologiaHospital S. Sebastião, Santa Maria da Feira

ROSALVO ALMEIDA**

RESUMOAlinham-se respostas às perguntas mais vezes feitas sobre a utilização do electroencefalogramano quadro da prática clínica quotidiana. Descrevem-se algumas situações em que são conhecidospotenciais desenvolvimentos dessa tecnologia, referindo a sua importância no campo da investi-gação. Apontam-se as principais situações em que o EEG é útil como exame complementar de diag-nósticos clínicos, em particular no caso das epilepsias. Refere-se um grupo de situações em que sãomuito limitados os benefícios a esperar da electroencefalografia. O objectivo principal desta revisãoé desmistificar alguns conceitos ainda prevalentes entre médicos menos informados e contribuirpara combater certas más práticas. A argumentação fundamentada na literatura e na experiênciaprofissional procura explicitar, retirando as devidas consequências, os reais níveis da sensibilidadee da especificidade do EEG.

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outro lado, tem muitos falsos negativos,ou seja, quando um exame não revelaanomalias isso não pode ser argumen-to para anular um diagnóstico baseadonoutros elementos, em particular, naanamnese.

Um doente com epilepsia pode terEEGs sempre normais?Sim. Embora seja incorrecto usar apalavra normal neste contexto. O quese pode dizer é que um determinadoEEG realizado numa determinada horaem determinadas condições não reve-lou anomalias gráficas que confirmema hipótese diagnóstica.

O que significa um relatório de EEG que revela uma «hiperexcitabilidade cerebral generalizada»?Esse conceito está hoje ultrapassado edeve ser evitado. A regularidade ou irre-gularidade eléctrica de um exame tem,só por si, pouco significado específico.Há demasiadas influências externas,para além das limitações referidas aci-

ma, que impedem atribuir valor diag-nóstico a variações dispersas de ampli-tude e frequência do sinal registado.Citam-se, entre essas influências, a gli-cemia, o equilíbrio hormonal, a proximi-dade maior ou menor do sono prévio, atemperatura, as medicações em uso eos seus níveis de circulação, o grau deatenção ou relaxamento mental du-rante o exame, etc. Não se pode tambémesquecer que os artefactos técnicos po-dem simular anomalias gráficas e porvezes são difíceis de eliminar. Finalmen-te, deve referir-se que em crianças eadolescentes os padrões de normalida-de são diferentes do adulto, como, porexemplo, a resposta à activação provo-cada pela alcalose respiratória forçadana hiperpneia solicitada durante o exa-me5.

Quais são as formas de epilepsia em que o EEG é específico?Há várias. A mais vulgar é a epilepsiade ausências da infância que se mani-festa por interrupções momentâneas(poucos segundos de duração) da cons-

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Figura 1.

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ciência, por vezes com pestanejo ou au-tomatismos gestuais breves, sem que-da, com recuperação imediata, repetin-do-se várias vezes ao dia. Este síndro-mo é muito facilmente diagnosticadoem crianças na idade escolar (ciclo bá-sico ou primeiros anos do secundário)e o EEG é típico – em cada ausência,surgem complexos de ponta-onda, a 3Hz, síncronos, simétricos e generali-zados a todos os eléctrodos colocados(Figura 1).

Há também um síndromo bastantefrequente que ocorre em crianças umpouco mais velhas, podendo iniciar-seantes da puberdade, em que ocorremcrises durante o sono. São crises de iní-cio focal (a maior parte da vezes comcontracções de meia face ou sensaçõesestranhas na boca acompanhadas dedificuldade em falar) seguindo-se, masnão sempre, uma convulsão generali-zada. Um quadro destes configura osíndromo de epilepsia benigna da crian-ça com paroxismos centro-temporaisonde se detectam pontas nas derivaçõescentrais ou temporais (Figura 2) num

EEG realizado durante o sono. Esteselementos gráficos surgem por vezesmesmo com a criança acordada, assimcomo há casos em que não se consegueregistá-los mas que cursam como osoutros para uma cura espontânea aofim de poucos meses ou anos6.

Há outros síndromos em que os tra-çados de EEG muito ajudam aodiagnóstico. É o caso do Síndromo deWest que ocorre em bebés com menosde um ano, com crises (espasmos in-fantis) em que a criança se contrai emflexão, em salvas, e se verifica uma pa-ragem ou retrocesso do desenvolvi-mento psicomotor (deixa de sorrir ou dese sentar, por exemplo). O EEG queneste caso é considerado urgente apre-senta um padrão de «tempestade» e fal-ta de sincronização (hipsarritmia) queé típico.

Também, sobretudo no adulto, se po-dem encontrar focos de ondas lentaspersistentes que sugerem, de formamais ou menos significativa, que umaregião sofreu uma lesão e está disfun-cional. Todavia, o EEG não é o exame

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Figura 2.

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indicado para confirmar lesões e muitomenos para identificar a sua origem.Hoje, os exames de imagem cumpremessa tarefa com elevados graus de espe-cificidade e sensibilidade. É frequentesermos «surpreendidos» por um EEG«normal» sobre um grande glioma.

A fotossensibilidade, enquanto perturbação que explica crisesepilépticas desencadeadas pelos televisores e monitores de computadores, é detectada pelo EEG?Algumas pessoas são sensíveis a estí-mulos luminosos repetidos, apresen-tando facilmente, perante certos «fla-shes», convulsões generalizadas, prece-didas ou não de abalos mioclónicos, ede facto esse fenómeno pode ser detec-tado no EEG. Havendo casos de fotos-sensibilidade extrema que obrigam amedicação permanente, outros há emque basta tomar algumas precauçõespara evitar a repetição de crises: ver TVou usar computadores não muito per-to, não muito tempo, em ambiente nãomuito escuro e, sempre que possível,preferir monitores de 100 Hz ou LCD(«liquid cristal display»). Seja como for,de novo a clínica, mais do que o EEG,leva a recomendar que, por melhoresque sejam os monitores e por mais pre-cauções que se tome, deve ser presta-da a maior atenção às imagens visiona-das – padrões de luminosidade forte emciclos alternados – pelas pessoas fotos-sensíveis7. Por tal razão, a estimulaçãoluminosa intermitente (ELI) é uma pro-va de activação rotineira num EEG.

O EEG é útil à decisão quando sepretende descontinuar a medicaçãodepois de obtido o controlo dascrises?O valor prognóstico do EEG é contro-verso. Quando persistem anomaliasgráficas é difícil assumir a decisão de in-terrupção de medicamentos mas podehaver situações em que isso é possível.

No entanto, está suficientemente com-provado que os factores decisivos sãoessencialmente clínicos. A idade do iní-cio das crises, a existência ou não deanomalias estruturais do sistemanervoso central, o tipo de crises ou o sín-dromo epiléptico, a facilidade com quese obteve o controlo – tudo pesa, junta-mente com os resultados do EEG e otempo decorrido desde que o doenteestá sem crises8.

O EEG tem outras aplicações na epilepsia?O EEG é da maior utilidade para o refi-namento de localizações quando se se-lecciona um doente para a cirurgia, sejaatravés de eléctrodos no escalpe, sejaatravés de eléctrodos corticais coloca-dos junto ao cérebro antes da interven-ção cirúrgica propriamente dita. Alémdisso, têm sido desenvolvidas técnicasdigitais de mapeamento e de reconstru-ção espacial, por vezes integrando da-dos de EEG e de imagem que são muitoeficazes na identificação de focos epilep-togénicos.

Também a conjugação do EEG coma gravação videográfica do doente (ví-deo-EEG) se revela da maior utilidadepara estabelecer conexão entre as alte-rações eléctricas do encéfalo e as mani-festações clínicas, permitindo frequen-temente obter bases sólidas para distin-guir crises epilépticas de crises não epi-lépticas (sejam elas psicogénicas oudevidas a perturbações orgânicas deoutras origens).

O EEG só serve para apurar o diagnóstico clínico das epilepsias?É também utilizado com eficácia comocomplemento de diagnóstico na Doençade Creutzfeldt-Jakob, assim como navariante humana da encefalopatia es-pongiforme bovina visto que, nas doen-ças priónicas, existem sintomas (mio-clonias) que são explicados por activida-des eléctricas periódicas com traduçãono EEG9. A detecção de focos de activi-

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dade paroxística no lobo temporal podepôr na pista de uma encefalite herpéti-ca se as manifestações clínicas foremconsentâneas com essa hipótese diag-nóstica.

O EEG é igualmente útil no estudodo sono, em particular mas hipersóniasdiurnas e, associado ao registo de ou-tros sinais (movimentos, ECG, oxime-tria, fluxos ventilatórios, etc.) funcionacomo um auxiliar precioso na caracte-rização dos quadros de apneias do sonoe no diagnóstico de outras perturbaçõesintrínsecas do sono, como por exemplona narcolepsia.

Quais são as aplicações do EEG nocampo da investigação científica?O EEG é utilizado sobretudo na inves-tigação do sono e das influências denovos fármacos tanto no sono como naelectrogénese. Existem também estu-dos e já algumas aplicações sobre o usode métodos quantitativos para moni-torização electroencefalográfica de co-mas10 e de intervenções cirúrgicas comcirculação extracorporal. Também osestudos de demências têm sido direc-cionados para avaliações quantitativasseriadas11,12.

O EEG é um exame que tem utilidade no rastreio de doençasquando há sintomas de provávelcompromisso cerebral?O papel do EEG nesse campo é muitolimitado. O recorrer sistematicamentea um exame como este a propósito decefaleias13,14, dificuldades escolares ouatrasos intelectuais15, depressões ouansiedade, alterações de comportamen-to16, défices cognitivos ou motores, se-quelas de traumatismos cranianos17 oude infecções meníngeas é certamenteuma má prática se não houver outrasrazões associadas.

Uma perda de conhecimento não tes-temunhada e não explicada pode seruma boa razão para pedir um EEG,conquanto que se esteja ciente de que

um traçado normal nada acrescentaráàs conclusões. Nunca será demais cha-mar, por outro lado, a atenção para oconhecido «mandamento» da clínica:«não tratarás exames mas apenas doen-tes». O primado da anamnese, de novo,é a chave da questão.

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Endereço para correspondênciaRosalvo AlmeidaUnidade de Neurofisiologia ClínicaServiço de NeurologiaHospital S. Sebastião4520-211 Santa Maria da FeiraTelefone: 256 379 700Fax: 256 362 847E-mail: [email protected]

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