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Curitiba,Vol.4,nº6,jan.-jun.2016ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE

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ABRAÇARASOLIDÃO:SOBREOSPERIGOSDOCONSENSO

EMBRACINGSOLITUDE:ONDANGERSOFCONSENSUS

LuísBueno1

RESUMO:ApartirdaanálisedecomooregionalismobrasileiroéabordadonoromancePolígonodassecas (1995), de Diogo Mainardi, este artigo pretende problematizar a aceitação de grandesconsensoscríticoscomoferramentascapazesdefazeravançaraleituracríticadasobrasliterárias.Palavras-chave:leituracrítica;ficçãobrasileira;regionalismo.ABSTRACT: By analysing how the novel Polígono das secas (1995) by Diogo Mainardi depictsBrazilian regionalist literature, this paper intends to question the great critical truths, as toolscapableofproducingnewrelevantcriticalreadings.Keywords:criticalreading;Brazilianfiction;regionalism.

Há muitas experiências radicais de solidão. No plano meramente intelectual,

aquelequenosinteressaaqui,umadasmaisintensaséaqueexperimentamosdiante

de um texto literário desafiador. Naquele instante em que sentimos quantas coisas

aquilo diz e, aomesmo tempo, percebemos não compreender exatamente nenhuma

dessascoisas.Aquemrecorrer?

OprocessodetreinamentoformalporquepassamosnoscursosdeLetraspode

servistocomoumamaneirade lidarcomessasolidão.Afinal,nesseprocessosomos

apresentados a estratégias de leituraqueparecerambem sucedidas a alguém— na

verdade a muita gente— e que por isso mesmo se cristalizaram como formas de

abordagemseguras.Aprendemosamanipularumasériedeconceitosquepelomenos

atenuam a sensação de solidão já que, por um lado, mostram caminhos seguros a

1ProfessordeLiteraturaBrasileiraeTeoriadaLiteraturanaUniversidadeFederaldoParaná.

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percorrer e, por outro, nos inserem numa coletividade, o grupo dos leitores

profissionais.

Sim, sentir-se seguro é uma coisa boa. E sim, pertencer a um grupo émelhor

ainda, sobretudo um grupo desse tipo, composto por gente de todas as idades, de

todos os países, de múltiplas formações. Um grupo que conta inclusive com

interlocutoresjámortoshámuitosanos,cujostextos,lidospelaprimeiravez,podem

terparanósosabordacoisanova,damútuacompreensão,darevelaçãoaté.

Mas, também sim, é preciso tomar cuidado com as coisas boas. O conforto

intelectual é um perigo. Conceitos podem se transformar em chave de leitura para

tudo. Leituras específicas podem se converter em verdades absolutas. Visões de

conjuntopodemvirarmuletas.Quandomenosnosdamosconta,caímosnatentaçãode

jásabermoscomoseráaleituradeumlivroqueaindanãolemos.E,pior,lemosenão

nosdamosodireitodeficarasóscomotexto,malouvindosuavozportrásdasoutras

vozes, aquelas que nos livramda sensação dolorosa da solidão que é comum sentir

quandoseduvidadetudo.

Paranoslivrarmosdessesperigos,umasoluçãopossíveléabraçarmosasolidão.

E,se forpossível fazerumarecomendaçãoemmatériatãocomplicadaetãopessoal,

seriainteressanteescolheresta:mesmodiantedoconsenso,cultivaradúvida.

Como nesse campo tudo é experiência, a proposta é a de ilustrar essa

recomendação com a discussão de um velho problema de leitura da literatura

brasileira. E, para fazer isso abraçando a solidão demaneira irredutível, vamos nos

manter dentro do campo da incerteza. A ideia é localizarmos um consenso sobre a

literaturabrasileiraquesemanifestounãoapenasnodiscursocrítico,mastambémna

prática literária, e lidarmos com ele por meio da consideração exclusiva de textos

literários.Oconsensoemquestãoéodocaráterrestritodaliteraturaregionalista,sua

abordagemidealizadoradohomemdointeriordopaís.

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Trata-se, aparentemente, de consenso antigo. Afinal, na edição de 23 de

dezembrode1914do jornalOEstadodeSãoPaulo,espremidoentreas“Notíciasdo

interioredolitoraldoEstado”—quenosinformamhaverchovidoforteemSantaRita

do Passa Quatro no sábado anterior, ou que o irmão do coronel José Deocleciano

Ribeiro,líderpolítico,haviavisitadoacidadedeFartura—eas“NotíciasdeMinas”—

quetêmcomoassuntoacontrovérsiadoslimitesentreMinasGeraiseoEspíritoSanto

—, aparecia um texto assinado por um certo J. B. Monteiro Lobato. Trata-se de

“Urupês”, que alguns anos depois integraria a primeira coletânea de contos de seu

autor, emboranão sejapropriamenteumconto.Émuitomaisumartigodeopinião,

que parte precisamente das idealizações que os textos românticos promoveram a

respeitodos índioscontrapondo-ascomadurezadoconhecimentodo índioreal: “O

balsâmico,elegante indianismodeAlencaresboroou-sepeloadventoiconoclastados

Rondons” (LOBATO, 1914, p. 06).Mas seu alvo não são os índios, e sim uma outra

gentequepassaria,naquelemomento,porprocessosemelhantedeidealização:“Não

morreu, no entanto, que nada morre; o indianismo anda para aí a deitar copada.

Trocoudenomesubrepticiamente;crismou-sedecaboclismo”(LOBATO,1914,p.06).

OhomemdointeriordoBrasilteriaocupadoolugardosíndios.

A sequência, comobem se sabe, é a criação dessa espécie demito negativo, o

Jeca Tatu (que se grafava Geca na publicação original), verdadeira demolição de

qualquerpossívelvalorizaçãodosertanejo:

Porqueaverdadenua,despidadosmantosdiáfanosdafantasia,mandadizerqueentre as raças e sub-raças de variadomatiz social formadoras do nosso povo,metidadepermeioentreoeuropeutransplantado,criadordearteseindústrias,eoselvagemdetabuinhasnobeiço,umaexisteavegetardecócoras,insensívelaoevoluircircunvolvente”.(LOBATO,1914,p.06)

Nãohámesmoqualquerdúvida:háumdescompassoenormeentrea“verdade

nua”— a boçalidade do caipira— e aquilo que a fantasia teria criado— o caipira

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idealizado.E,depoisdeestabeleceressepontodepartida,oqueMonteiroLobatofazé

criarumafigurasemabsolutamentenadadepositivo.

ValeapenaassinalarqueaestratégiadeLobatofuncionoumuitobem.Projetou

seu nome e, quatro anos depois, ao lançar seu primeiro livro de contos, não

coincidentemente,portanto,intituladoUrupês,obtevesucessoenorme,comsucessivas

edições—noveaté1918.Maisdoqueisso,quarentaanosdepoisrecebeuconsagração

crítica definitiva, já que foi exatamente no Jeca Tatu que Lúcia Miguel Pereira

encontrou o primeiro personagem de valor do regionalismo brasileiro, aquele que

recusavaexatamenteaidealizaçãoqueoolharde“turista”haviaconstruídodenosso

homemdointerior(cf.PEREIRA,1957)

Nocampodaficçãomaisrecente,poderíamosestabelecerumalongadiscussão,

porexemplo, comRubemFonsecaque,numcontodeFelizanonovo (1975),põena

bocadeumescritorasseguintespalavras:“EunadatenhoavercomGuimarãesRosa,

estouescrevendosobrepessoasempilhadasnacidadeenquantoostecnocratasafiam

o arame farpado” (FONSECA, 1975, p. 143). O escritor “do presente”, como se vê,

posta-senumpontoqueestariaalémdouniversoruraldoregionalismo,ummundode

gente empilhada nas cidades que não guarda qualquer relação com ele, e, por isso

mesmo,estariasuperado.

Mas vamosmais adiante, vinte anos depois disso, no finalzinho do século XX,

quandooconsensohaviaseestabelecidodeformaaindamaissólida.Em1995,oentão

críticoecolunistadarevistaVejaDiogoMainardi lançouseu terceiro livrode ficção,

Polígonodassecas,dispostoexatamenteacombaterdiretamenteesseconsenso.Mas

tal combate não se faz sem ambiguidade. A proposta do livro é a de romper com a

valorizaçãodeumaliteraturaqueopróprionarrador,queseidentificacomo“oautor”,

afirmanãoexistirmais:“Aliteraturaregionalistanãoéumaquestãodeatualidade.O

filão sertanejo esgotou-se, seus maiores cultores morreram décadas atrás”

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(MAINARDI,1995,p.116).Sea literaturaregionalistaestáesgotada,porquediabos

alguémseocupadeenterrá-la?

Esse é exatamente o grande problema do consenso em literatura. Um

pretensamentesubstituiooutro,mascomosempreé“pretensamente”sempresetem

um fantasma nos calcanhares, algo de que toda gente se lembra e que alguns

descuidadosaindapodem julgarestarvivo.OquePolígonodas secas acaba fazendo,

nessesentido,édartestemunhodequeoburacoémaisembaixo,dequetalvezhaja

algumarelevâncianessaliteraturadenunciadacomotãoanêmicaesimplista.Ninguém

combateousodetílburisnasgrandescidadesporquenãohámaistílburis.Nãoocorre

aninguémescreverum tratadoouumromancecontra seuuso.Sua irrelevânciaem

nossotempoestápostademaneiratãoclaraquemuitagentesenteanecessidadedeir

aodicionáriodiantedamençãoaumtílburi.Issosiméconsensosobreainutilidadeou

ineficáciadealgumacoisa.Seoregionalismoprecisasercombatido,éporqueaindahá

caroçonesseangu,ofantasmaaindaameaça.

De toda forma, o narrador-autor de Polígono das secas define claramente o

consensoquedesejademolir.Éporissoque,nofechodecadaumadasquatropartes

emquesedivideoromance,elefazquestãodedarsuaschavesdeleitura.Naprimeira

parte, explica a origem do personagem que ele define como o principal, o Untor,

contando-nosumepisódiode obscurantismodahistória deMilãopassado em1630

quandoumacertaCaterinaRosaacusouumhomemdeespalharapestepelacidade

pormeiodeumuntoamareloqueelaovirapassandonummuro.Ocapítulofinalda

segundapartesechama“Nomes”eneleonarrador-autortratadeesclareceraorigem

dosnomesdeseuspersonagens:todoselesteriamsidoextraídosdenomesdecidades

quepertencemaoPolígonodasSecas,referênciasàquiloqueelechamade“obscuras

celebridadeslocais”(MAINARDI,1995,p.61):

Acertaaltura,oautordesteromancepensouemindagarsobrearealidentidadedecadaumdessespersonagenshistóricos.Duranteapesquisa,nãoconseguiu

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encontrarpraticamentenenhumainformaçãoquelhesdissesserespeito.Aindaque inúmeras cidades sertanejas tenham adotado seus nomes, eles não sãomencionados em livros de história ou de genealogia, enciclopédias oudicionáriosbiográficos.(MAINARDI,1995,pp.60-61)

Eessadeclaraçãofazpasmaroleitorque,porumacasodasortevenhaasaber

algumacoisasobreumcertoJanuárioCicco,quedánomeaumacidadedoRioGrande

do Norte. Acontece que esse leitor estava interessadíssimo em interpretar por que

razão dera o narrador-autor exatamente ao assassino de profissão o nome de um

médicoqueviveraentre1881e1952,membrodaAcademiaNorte-rio-grandensede

Letras, autor de uma série de livros de sua especialidade e de umúnico e estranho

romance,saídoem1937,quedebatianadamaisnadamenosdoqueamorte, jáque

seu título era Eutanásia. Nele, um personagem faz afirmações pode-se dizer

compatíveiscomopontodevistadonarrador-autordePolígonodassecas,comoesta:

“Enquanto isso,meu caro amigo, disse oDr. Paulo, acho de um ridículo jocoso essa

gentequesebatecontraaeutanásiaporcompaixão,queimandoargumentosdemoral

social e de sentimentalidade religiosa, porque a sociedade é omaior aleijão que se

conhece”(CICCO,1937,pp.157-158).

Aquele leitor, diante do caráter gratuito que o narrador-autor atribui a sua

escolha de nomes de personagem, muito além ou aquém das engenhosas

intencionalidadesimplícitasquejáestavadispostoafazer,esfria.Teriasidooacasoa

agirsecretamente?Esefoi,qualaimportânciadissojáqueoromanceéaquiloqueée,

poracasoounão,onomedojagunçovemdomédicoromancista?Convémguardaro

ímpetoeverificar,olharosdemaisnomes.PiquetCarneiro,porexemplo.Quemteria

sidoPiquetCarneiro?PoiseraumengenheironascidonoRiodeJaneiroquetrabalhou

naconstruçãodeestradasdeFerronoCearáenaadministraçãodoAçudedeQuixadá.

É também o bisavô do piloto de fórmula 1 Nelson Piquet. Nenhuma dessas facetas

parece ressoar no sertanejo que se vê transformado em boi que é personagem de

Polígonodassecas.

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E Manoel Vitorino? Para uma “obscura celebridade local” ele até que teve

algumaimportância.Foiovice-presidenteduranteomandatodoprimeiropresidente

civilbrasileiro,PrudentedeMorais,entre1891e1894,aquelequesucedeuFloriano

Peixoto. Um período turbulento, portanto. Curiosamente, durante quatromeses, em

funçãodeumacirurgiaaqueprecisousesubmeterotitular,ManuelVitorinoPereira

foi presidente interino. “Assumindo a presidência, Manuel Vitorino não se limita à

simplesfunçãodoexpedientequotidiano.Temasuapolíticapessoaleosseusplanos

especiaisdegoverno”(BELLO,1959,p.169),eisoquedizumhistoriador.Nãoparece

haver maiores relações entre o sertanejo propositadamente “genérico” que abre o

romancevagando como cadáverdo filhonosbraços embuscadeumcemitério eo

republicanoexaltadoquedeuonomeà cidadedaBahiaque, por suavez, serviude

fonteparaonomedopersonagemdoromancede1995.

Enfim,parecequeonarrador-autorescolheumesmoaleatoriamenteosnomes

deseuspersonagens.Seudesinteresse—omesmoquerevelaránocapítulofinalpelo

espaçofísico,aoafirmarquenãosentiranecessidadedeviajaratéosertão—parece

sersincero.Detodaforma,nacabeçadesseleitorjamaisdeixarádesoarumecoque

ligaráparasempreoJanuárioCiccopersonagemaoJanuárioCiccoquedecidiuusaro

romancecomoformadediscutirumtemapolêmicocomoaeutanásia.Maisoumenos

comooescritorDiegoMainardidecidefazercomoromanceregionalista.

Masdeixemosdedesvios:nãoénosnomesquecentraremosaatenção,massim

naquilodequetrataocapítuloexplicativodaterceiraparte,cujotítuloé“Bibliografia”,

poisénessemomentodoromancequealiteraturaregionalistaédefinida,assimcomo

ostermosdoataquequesepretendelançaraela.Otítulodestecapítuloédireto,como

aliástudosepropõeasernesteromance.Onarrador-autorcomeçadeclarandoquea

bibliografiadeque fezusoécurtaporqueconsidera “que todaa literaturasertaneja

pode ser reduziaa seisou sete títulos” (MAINARDI,1995,p.88)para chegaràquilo

queeleparecedefinircomoaessênciadessaliteratura:

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Aoincorporaroselementosdaculturasertaneja,aliteraturaregionalistaatribuiaohomemcomumopoderdeinterpretararealidade,conferindoumadimensãoalegóricaàssuasatividadescotidianas,mitificando-lheamentalidadevulgar,desua linguagem às suas crendices, como se séculos de obscurantismo tivessemgeradoummaiorgraudecompreensãodomundo.(MAINARDI,1995,p.88)

Independentemente de suas crenças (ou crendices) pessoais— que acabam

gerandodificuldadescomoadecompreenderexatamenteoqueéo“homemcomum”

e o que se oporia a ele como homem incomum ou extraordinário (será o próprio

escritor?),ouadelocalizarquemexatamentetem“opoderdeinterpretararealidade”

equemnãotem,ouaindaadedefiniroqueseriaum“graumaiordecompreensãodo

mundo” e sua contraparte, um graumenor— o valente e solitário leitor prossegue

firme em sua leitura do romance. E para isso é preciso aceitar suas premissas,

conviver com elas. E, de toda forma, mais que convicções do narrador-autor, essas

ideiastêmfunçãonarrativa.Numromancequeseafastaradicalmentedaexploração

psicológicaparapoderseconstituircomosátira,nãohaveriamesmomuitolugarpara

asmeias-tintas.Apontaroridículo,afinaldecontas,éumaoperaçãoquepartedaideia

dequeháalgoquenãosejaridículo.

Napáginaseguinteonarrador-autorcomeçaarevelarquaisfontesutilizoupara

construirosdiversospersonagensparaalémdeseusnomes.Vamostratardeapenas

quatrodeles,quesereferemaoutrasobrasliteráriasespecíficas.2Sigamosaordemda

apresentaçãodecadaum:

A história de Manoel Vitorino, que carrega o filho nos braços em direção aocemitério,baseia-seemJoãoCabraldeMeloNeto:“–Óirmãosdasalmas!”Éacrendicedequeavidatemumvalorabsoluto,dequeamaismíseradasvidasvale tanto quanto qualquer outra. A ideia é socialmente sensata, mas não tem

2 Os demais personagens teriam sido extraídos de conjuntos de textos ou de costumes: PiquetCarneirodosromancesdecordelemgeral(cf.MAINARDI,1997),eashistóriasdasCatarinasRosas“subvertemcélebresmitosdocangaço”(MAINARDI,1997,p.90).

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validadeliterária.Naliteratura,avidainsignificanteprecisamorrer.(MAINARDI,1997,p.89)

Estaprimeiraapresentaçãoétalvezaquelaemqueonarrador-autorofereceao

leitoramais interessantedasanálisesdesuas fontes.Afinal,consideradoodesfecho

deMorteevidaseverina(1955),omais famosopoemade JoãoCabraldeMeloNeto,

nãopareceinjustodizerqueeleseconstituacomoumacelebraçãodavida,qualquer

uma.Vejamossuasduasúltimasestrofes:

–Severinoretirante,deixeagoraquelhediga:eunãoseibemarespostadaperguntaquefazia,senãovalemaissaltarforadaponteedavida;nemconheçoessaresposta,sequermesmoquelhediga;édifícildefender,sócompalavras,avida,aindamaisquandoelaéestaquevê,severina;masserespondernãopudeàperguntaquefazia,ela,avida,arespondeucomsuapresençaviva.Enãohámelhorrespostaqueoespetáculodavida:vê-ladesfiarseufio,quetambémsechamavida,verafábricaqueelamesma,teimosamente,sefabrica,vê-labrotarcomohápoucoemnovavidaexplodida;mesmoquandoéassimpequenaaexplosão,comoaocorrida;mesmoquandoéumaexplosãocomoadehápouco,franzina;mesmoquandoéaexplosãodeumavidaseverina.(MELONETO,1979,p.241)

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Aquestãoaquiédiscutirnoqueconsisteo“valorabsolutodavida”nopoemade

JoãoCabralecomoonarrador-autorointerpreta.Naúltimaestrofeomestrecarpina

explicita a ideiadequea continuidadedavida emsi— pequena, franzina, severina

que seja— é amelhor resposta para a grande pergunta de Severino: a vida vale a

pena?Emboraopoema lide o tempo todo coma ideia dequehaveria de fato vidas

grandes e pequenas, ao confrontar o conceito de vida “severina” do poema de João

Cabralcomodevida “insignificante”donarrador-autordePolígonodas secas,nãoé

difícilconcluirqueháumadiferençadebaseentreeles.Esteúltimoconstróiotempo

todouma lógicasegundoaqualháumadivisãoclaraentreasvidasque têmounão

significado—assimcomoháohomem“comum”emcontrastecomalgumoutroque

nãooseja.Na lógicageraldo livro,osertanejoésempre insignificante,de tal forma

queainsignificânciasemarcacomoumacaracterísticaessencialsua.Talvezporissoa

ideiadequetodasasvidastêmomesmovalorpossaservistacomosocialmenteútil,

contribuindo para a paz entre as classes, já que, no nível do imaginário todos se

julguemtãosignificativosquantoquaisqueroutros.

JánopoemadeJoãoCabral,apequenezéumaespéciedeacidentedepercurso

dentrodascircunstânciasespecíficasquecadavidaenfrenta.Opoemacomoumtodo,

mas especialmente neste momento, quando um nascimento é narrado em meio a

tantas mortes, opera com os momentos extremos da vida, em que todas elas são

irredutivelmente semelhantes. O primeiro berro do recém-nascido, assim como o

últimosuspirodomoribundo,porassimdizer,nãotemnenhumtipodedeterminação

exterior,nemdeclasse,nemdegênero,nemdenacionalidade,nemdenada.Sãoatos

puramentebiológicos.Dessamaneira,oconceitodevidaseverinavemexplicitamente

detudoqueseestabeleceemtornodessavidaenãonelamesma.Vemdascondições

específicasquetornamoshomensgrandesoupequenosnavidasocial.Sim,ovalorda

vidaéabsoluto,assimcomosuacontinuidade,emoutrasvidas,éumvalorabsoluto.

Exatamente por isso é que não haveria vida insignificante, pois as diferenças das

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formas como essa vida será vista pelas convenções — de classe, de gênero, de

nacionalidade,detudo—équedefinemsua“severinidade”,nãosuainsignificânciaem

si.Assim,JoãoCabralnãoidealizaosertanejo:eleapenasovêcomoumhomem.Um

homemqualquer.

OtrechodePolígonodassecasqueserefereaMorteevidaseverinaseencerra

com uma afirmação definitiva, a de que “na literatura a vida insignificante precisa

morrer. Como compreender tal afirmação? A explicação possível vem no final do

capítulo, quando o narrador-autor vai apontar ligações que se pode fazer com um

outronome,odeCaterinaRosa:

Oautorreconhecequeéumacomparaçãoumtantoforçada,comotantasoutrasao longodoromance,masbaseia-senofatodequeMollyBloom,numprocessosemelhanteaodeCaterinaRosa,assumiuopoderdapalavranaquelemonólogointeriordeUlisses.Desdeentão,tornou-seautoradetodososlivrosemtodasaslínguas, infligindo suas banalidades sobre o restante da literatura universal.(MAINARDI,1995,p.62)

Ele estende, portanto, sua condenação a um personagem não sertanejo, mas

igualmenteinsignificante.Aofazerissoindicaporquetodososinsignificantesdevem

morrernaliteratura:eles“infligem”seudiscursorestritoaomundo.Talideiareforça

definitivamente sua visão de que, por oposição, haveriamesmo vidas significativas,

aquelasquedeveriamsobrevivernosromancesparanosensinar—enãoinfligir?—

osvaloresaltosqueencarnam.

Ora,háemMorteevidaseverinaumadesconfiançaenormedequea literatura

sejacapazdeproduzirqualquerverdade,deinfligiroquequerquesejaaquemquer

que seja. Na penúltima estrofe, o mestre carpina se revela incapaz de responder à

perguntadeSeverino,perguntafeitaporassimdizerinextremis,diantedorio,ondea

“melhor saída” parece ser “a de saltar, numanoite, fora da ponte e da vida” (MELO

NETO, 1979, p. 233). Mesmo assim Seu José, o mestre carpina, declara com

tranquilidadeque“édifícildefender,/sócompalavras,avida”(MELONETO,1979,p.

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233). A defesa do valor absoluto da vida ele só foi capaz de fazer diante de uma

manifestaçãoconcretadavida,onascimentodemaisumacriançaqueteráuma“vidaa

retalho,/queécadadiaadquirida”(MELONETO,1979,p.232).Opoema—qualquer

poema—éfeitoassim,“sócompalavras”.Assimcomoaspalavrasdomestrecarpina

atribuem um sentido ao nascimento que acaba de acontecer, sem o qual seu

argumentoseesvaziaria,opoemaapenasatribuiumsentidoaomundo,não“inflige”

nada a ninguém.Exatamentepor isso, na literatura, nada é necessário, nadaprecisa

acontecer.

Passemosàsegundaapresentaçãodasfontesparaacriaçãodospersonagensde

Polígonodassecas:

AhistóriadeCristinoCastroestáemEuclidesdaCunha:“... o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios quenunca viu... usufrui, parasitariamente, as rendas de suas terras... De quatro emquatrobezerros,[ovaqueiro]separaum,parasi.”Os sertanejos acreditam que amorte redime o ser humano. O unto amareladodemonstraqueossertanejosnãopodemaspirarnemmesmoaumaderradeirailuminação.(MAINARDI,1997,p.89)

Aqui o narrador-autor parte de algo bem concreto, já que o senador Pompeu,

patrãodeCristinoCastro,toma-lhetrêsdasquatrofilhase,tendoperdidoumaperna

numacidente,mandaocangaceiroJanuárioCiccoamputartrêsdosquatromembros

dovaqueiro.Nessesentido,EuclidesdaCunhateriafornecidoapenasumainformação

apartirdaqualasituaçãonarrativatirariaseuabsurdo.Masoleitorseassustacoma

repentinamudançadenível:daremuneraçãodovaqueiroparaacrençanaredenção.

É possível dizer que em Os sertões (1902) aparece o sertanejo que acredita numa

redençãopelamorte.Masdaíàconclusãodequeolivroassumaessavisãoeidealizeo

sertanejovaiumadistânciaenorme,queolivrodeEuclidesdaCunhanãopercorre.A

voz narrativa deOs sertões decerto descobre grandeza naquelas pessoas em que, a

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princípio,encontrara-sesomenteinferioridade.Terminaporenxergaralinaraçafraca

umaraçaforte,massemidealização:

É que neste caso a raça forte não destroi a fraca pelas armas, esmaga-a pelacivilização.Ora,osnossosrudespatríciosdossertõesdoNorteforraram-seaestaúltima.Oabandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptaçãopenosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou quedescambassemparaasaberraçõesevíciosdosmeiosadiantados.(CUNHA,1998,pp.102-103)

Por caminhos muito diversos daquele que levaria Lévi-Strauss a tirar as

conclusõesquetiraemRaçaehistória,EuclidesdaCunha,munidodavisãodeciência

de seu tempo, e manipulando o conceito de raça forte aplicada à que não é a do

sertanejo, termina por escapar a qualquer idealização, já que, de outro lado, não

supervaloriza os “meios adiantados”, que também teriam seus problemas. É quase

surpreendente para o leitor de hoje como a partir de uma visão tão velha, que não

hesita em usar termos como “vícios”, “aberrações” ou mesmo “rudes patrícios”,

estabeleça-seumavisãotãodesimpedida.Ficamaisdifícilparaesseleitoraceitarcom

tranquilidadealeituraqueonarrador-autorfazdeOssertõesdoqueaconteceracoma

deMorteevidaseverina.

Aexplicaçãoparaopersonagemseguintetambémécomplicada:

O obstinado jagunço JanuárioCicco é tiradode JoãoGuimarãesRosa.Destrói acrendicedequeossertanejospodemencontrarumamissãoquepreenchasuasvidas. Não é o que acontece. Os sertanejos são condenados a viver sem ummotivo.Éestaamensagemqueaverdadeiraliteraturaprecisadar.(MAINARDI,1995,p.89)

Guimarães Rosa já fora referido no capítulo “Nomes”, como “seguramente o

maiorcultordogênero”(MAINARDI,1995,p.62).Nessacondição,édeseesperarque

emsuaobrahaja—comode fatohá—umagaleria imensadesertanejos,de forma

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queoleitorseencontraemsituaçãomaisdifícildoquenoscasosanteriores,emque

era fácil reconhecero livro-fonte.Como JanuárioCiccoéum jagunçoecomoGrande

sertão: veredas é tido como a obra-prima do autor, é natural que a referência diga

respeitoaesseromanceeaseuprotagonistaRiobaldo.Adificuldadenessecasoéade

identificar qual missão capaz de preencher sua vida Riobaldo, que chega à velhice

perguntando,teriaencontrado.Esteleitor,porexemplo,nãosabenemcomocomeçar

aprocurar.Numexercícioextremo, seriapossível fazeralgumasperguntasao texto.

Seriaessamissãoprovarqueodiabonãoexiste?Nessecaso,nemaofinaldanarrativa

amissãosecumpriu,eseriamuitomaisadúvidaapreenchercomseuvazioessavida.

Seria por acaso atravessar o Liso do Sussuarão ematar Hermógenes? Se fosse, era

paraeleestarmaistranquilonavelhice,jáquenessamissãoeleforabemsucedidoe

problemas colaterais, como a morte de Diadorim, não gerariam maior inquietação

porquefariampartedasprovaçõesnaturaisaocumprimentodequalquermissão.

Mas,antesdedesistir,éinteressantepensarsealgumoutrosertanejodaampla

galeriaroseanateriasidocapazdeencontrarumamissãoquepreenchessesuavida.

Em Sagarana é difícil localizar esse sertanejo. Em “Burrinho pedrês” o único

personagemquepareceteralgumtipodesabedoriaouclarezaéoburrinho,esóse

salvamdoafogamentoosdoisvaqueirosque,poracaso,agarram-seaele.“Duelo”éa

históriadeduasvidasdedicadasaumamissãohomicidasemvencedorquesepudesse

sentir em plenitude.Mesmo em “A hora e vez de AugustoMatraga”, o protagonista

passaporumagrandemudança—saindodesuacondiçãodeproprietárioparauma

vida de trabalho na companhia de um casal de negros pobres, aparentemente

encontrandoumamissão—queafinalserevelaapenasaparente.Umcírculosefecha

entre a abertura do conto, em que se lê que “Matraga não é Matraga, não é nada.

MatragaéEstêves”(ROSA,1978,p.324),eseufecho,emqueele,àsportasdamorte,

dá-seaconhecer:“PerguntemqueméaíquealgumdiajáouviufalarnonomedeNhô

AugustoEstêves,dasPindaíbas!” (ROSA,1978,p.370).Ouseja,nemMatraganemo

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simples Nhô Augusto desprovido de sobrenome, mas sim o Estêves, identificado

tambémpelonomedapropriedade.JánoCorpodeBaile(1956)hádetudo:Soropita,o

sertanejoracistaevingativo;Manuelzão,queéexatamenteaquelequedescobriráque

sua vida não teve sentido; Pedro Orósio, que volta para sua terra natal não para

resgatarqualquercoisa,jáqueacabaradevoltardelá,maspormedo.Enfim,nadase

localizaalitambém.TalidealizaçãonãoparecefazerpartedaobradeGuimarãesRosa.

Eis,agora,aúltimadasfontesdonarrador-autoremquevamosnosdeter:

O flageladoDemervalLobão inspira-seemGracilianoRamos,omaiscomumdetodososmitossertanejos.Afiguradoflageladopareceprovarqueosimplesatodesobreviverjustificaavida.Oautordesteromancenãoaceitaendossartalideia.(MAINARDI,1995,p.90)

Eaquificamaisfácilperceberoverdadeirointeressedestadiscussãoporqueé

exatamente neste ponto que podemos flagrar um certo consenso tomando forma,

lendo antes mesmo de ler. Graciliano Ramos publicou apenas quatro romances, e

apenasumdelestratadesertanejos.Nãoédifícil,portanto,concluirqueonarrador-

autorserefereaVidassecas,esseúnicoromance.Precisamos,portanto,iraesselivro,

que teria instaurado não apenas ummito sertanejo, como também omais comum.

Segundo o narrador-autor, o romance deGracilianoRamos provaria que sobreviver

justifica a vida e, como tal, participaria deumprocessode idealizaçãodo sertanejo,

terminandopormitificá-lo.

Éevidentequea sobrevivênciaépreocupaçãocentralparaospersonagensdo

livro.Noentanto,deondeexatamenteseriapossíveltiraraideiadequeemVidassecas

“osimplesatodesobreviverjustificaavida”?Aliás,comodefiniroquejustificaavida

nesse romance?Ospersonagens atéprocuram justificativas,masnão exatamente as

dessetipo:

AgoraFabianoconseguiaarranjarasidéias.Oqueoseguravaeraafamília.Viviapreso comoumnovilho amarradoaomourão, suportando ferroquente. Senão

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fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia ocorpoeraalembrançadamulheredosfilhos.Semaquelescambõespesados,nãoenvergariaoespinhaçonão,sairiadalicomoonçaefariaumaasneira.Carregariaa espingardaedariaum tirodepédepauno soldadoamarelo.Não.O soldadoamareloerauminfelizquenemmereciaumtabefecomascostasdamão.Matariaos donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homensquedirigiamosoldadoamarelo.Nãoficariaumparasemente.Eraaidéiaquelhefervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.(RAMOS,1938,p.51)

Presoesurradoinjustamente,jogadonumacela,aoperaçãomentaldeFabianoé

adeexplicar comosuportamoralmente tamanhahumilhação.Eele, comoénatural,

nãoapontaparasuaprópriacovardia.Surpreendentemente,tambémnãoseescorana

suacondiçãodesertanejopobreeoprimido.Éaalgomuitopoucoregionalistaqueele

recorreráparaexplicar-seasimesmo:oslaçosafetivos,aresponsabilidadedepaide

seus filhos,maridodesuamulheredonodesuacachorra.Umaespéciededesculpa

típica,quejogasobreosombrosdosoutrosaresponsabilidadeporsuaprópriainação.

Portanto, nenhuma grandeza se atribui a Fabiano, nenhuma justificativa grandiosa

parasuavidaseesboça.

Se no nível dos personagens não localizamos aquilo que o narrador-autor de

Polígono das secas define como omito criado por Graciliano Ramos, quem sabe no

narrador? Mas nele também não há nada. O narrador de Vidas secas, na verdade,

parecetergrandedificuldadedeapontaroquequerquesejacomocapazdejustificar

avida.Pense-se,porexemplo,noúnicomomentoderealesperançaqueviveafamília,

aquele, no fecho do romance, em que se projeta um futuro melhor na cidade. É

precisamenteaíqueonarradorabandonadevezopontodevistadospersonagense

se colocamuito acima deles, apenas para indicar que é só de sobrevivência que se

trata,nãodealgumsignificadoaseatribuiràquelasvidas:

E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia depessoasfortes.Osmeninosemescolas,aprendendocoisasdifíceisenecessárias.Elesdoisvelhinhos,acabando-secomounscachorros,inúteis,acabando-secomoBaleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra

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desconhecidaecivilizada,ficariampresosnela.Eosertãocontinuariaamandargente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, comoFabiano,SinháVitóriaeosdoismeninos.(RAMOS,1938,pp.196-197)

Nem se transferindo para a cidade e se livrando da condição de sertanejos,

participando de um círculo supostamente mais largo de vida, nem assim sua vida

ganhariasentido,umajustificativacomoquerPolígonodassecas.Ofimdavidaqueo

narradorvêparaeleséomesmodeBaleia:oqueo leitor temdiantede si sãodois

velhos “acabando-se como uns cachorros, inúteis” (RAMOS, 1938, p. 196). É na

inutilidadequeolivrodesemboca,nãonagrandeza.Oqueoautor-narradorleunãofoi

Vidas secas, portanto, foi a imagemda literatura regionalista comoalgo superficial e

laudatório projetada sobre Vidas secas. É mais uma vez o consenso que se

consubstancia,àreveliadotextoconcreto.

Eisaarmadilhaaqueoexcessodesegurançaqueamanipulaçãodeconceitos

muito fixospode conduzirna abordagemdo texto literário— e não só. Contra essa

armadilhaaúnicaatitudepossíveléenfrentarotexto,abraçarasolidãoportanto.Não

para fazermos um exercício solipsista e ficarmos contentes com as nossas próprias

conclusões,baseadasemnossosprópriospreconceitos,masparaestabelecermosum

pontodereferênciaapartirdoqualpossamos,aísim,dialogarcomasoutrasleituras,

as outras conclusões, os outros preconceitos. Afinal de contas, a experiência mais

radicaldesolidão—enãoapenasintelectual—talveznãosejafalarsozinho,massim

fazerpartedeumgrandecoroque,julgandoterváriasvozes,nofundofalasozinho.

A esta altura, este leitor poderia muito bem encerrar seu trabalho. Afinal de

contas,aomostrar,pelomenossegundoseupontodevista,quePolígonodassecasse

constróisobreo falsoconsensodequea literaturaregionalistabrasileira idealizaos

sertanejos,elecumpriuoobjetivoqueestabeleceudesaída.Acontecequeumperigo

maior aparece aqui, uma dúvida bastante séria: não estaria este leitor trabalhando

tambémelecomumconsenso?DiogoMainardiéumafigurapúblicaconhecidaenãoé

nadadifícilqueoleitorestejalendonãoumromanceespecífico,massimumromance

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docolunistaquedeixoumuitoclarassuasopiniõesemanosdetrabalhonaimprensa.

Não é demais lembrar que, numa citação feita pelo próprio leitor, o narrador-autor

havia igualado o sertanejo a Molly Bloom, a literatura regionalista à literatura

universal. Isso não indicaria que na verdade ele não trabalha com consensos nem

estereótipossobreosertanejo,massimtratandodohomemapartirdosertanejo?

Pensandodessamaneira,seriapossível levantarahipótesedequeonarrador-

autor esteja movido por algo como aquela indignação feroz que corroera até o

momento damorte o coração domaior dos indignados, Jonathan Swift3. Lembre-se

que, depois de dezesseis anos e sete meses de viagens, Gulliver não é capaz de

encontrarnadaqueoreconciliecomosYahooscomoumtodo—ouseja,comaraça

humana.4Ficarianossonarrador-autor contentedeapenasdemoliros sertanejosou

defatodesejademolirahumanidadecomoSwift?

Paraverificarcomoissosedá,vamosconsiderarostrêspassosdePolígonodas

secasemqueonarrador-autorelevaotomeampliaoalcancedesuaindignaçãopara

muito além dos sertanejos, o que acontece nos mesmos dois capítulos que nos

interessaramdiretamenteaqui,“Nomes”e“Bibliografia”,mastambémna“Conclusão”.

Adiantemos de saída que se observa nesses momentos um curioso

comportamento:eleseflagranumaespéciedehybris.Masvejamoscomalgumacalma

um por um. O primeiro é exatamente o já mencionado quando ele manifesta viva

revoltacontraafiguradeMollyBloom.Nasequênciaimediatadotrechocitadoacima

sobre a personagem de Joyce, ele concluirá o capítulo com os dois parágrafos

seguintes:

3 A referência aqui é ao epitáfio que Swift escreveu para si mesmo, e que ainda se pode ler naCatedral de Saint Patrick emDublin, no qual o autor dasViagens de Gulliver se caracteriza destamaneira (a passagem no original latino é a seguinte: “Ubi sæva Indignatio Ulterius Cor lacerarenequit”).4Paranãoseterqualquerdúvidaquantoaisso,otermousadoéYahoo-kind(SWIFT,1994,p.328)— “espécie dosYahoo emgeral, na enfática traduçãodeOctavioMendesCajado (SWIFT, 1971, p.275)—emclaraanalogiacommankind(humanidade).

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A esta altura o autor do romance alarga desmesuradamente ametáfora. A suamissão já não é destruir a literatura regionalista, mas toda a literatura desteséculo.AliteraturadeCaterinaRosa.AliteraturadeMollyBloom.Aliteraturadossertanejos.A verdadeira literatura degrada o homem. Quando não é assim não serve.(MAINARDI,1995,p.62)

É significativo que a passagem do sertanejo a Molly Bloom, da literatura

regionalistaatodaliteraturadesteséculolhepareçadesmesurada—comoseopasso

universalizantequeidentificasseVidassecasaoUlisses lheparecesseexcessivo,como

seaojerizaatodososYahoosfossedemaisparaele.Enfim,écomose,mesmoali,entre

duas figuras insignificantes, a do sertanejo e a de Molly, houvesse graus de

insignificância,jáqueenquantoeletratadosprimeiros,nãolheocorrequepossaestar

exagerando, mas quando entra a personagem de Ulisses a metáfora lhe parece

desmesuradamentealargada.

Osegundoéquandofazumaoutratransiçãouniversalizante,entreosertanejoe

ohomem.Oprimeiromovimentoquefazémuitointeressante:

Deacordocomaaudaciosatesedoautor,nãosetrata[aliteraturaregionalistadeque se vinha tratando até ali] de verdadeira literatura. A verdadeira literaturademonstraqueosertanejonãosabenada,nãomudanada,nãoaprendenada,nãoentende nada, não vale nada. A verdadeira literatura destrói as veleidades dohomemacercasesi.Apartirdomomentoemqueacreditanasprópriasideias,ohomemcomeçaaimpô-las.(MAINARDI,1995,p.90)

AquisimteríamosairadeumSwift,agrandeindignação.Nomeiodoparágrafo,

oqueseatribuíadedeletérioaosertanejopassaaseatribuiraotodososhomens.Mas

vejamos no que ela vai dar lendo os dois parágrafos seguintes, mais uma vez os

últimosdocapítulo:“Aestaaltura,oautorsente-secomoumfanáticoquedeblaterado

alto de uma pedra. É tomado pelo tom colérico do discurso, chegando a conclusões

mais peremptórias do que inicialmente pretendia. Começa a perder o controle.”

(MAINARDI,1995,p.90)

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Note-se,desaída,queaimagemdeauto-rebaixamentoésertaneja,referênciaao

episódiodaPedradoReino,aliásreferidonoromance:o fanáticoé,maisumavez,o

sertanejo.Mas,acimadetudo,oqueaconteceéumaespéciederefluxo.Noinstanteem

quepassadacondenaçãodaboçalidadedosertanejoàboçalidadedetodososYahoos,

ele não resiste amanifestar seu desconforto, sua falta de controle.Mais uma vez, é

comoseessepassofossedemaisparaele.Tudoacaba,pelaforçadodiscursoedessa

estranhaauto-ironia,refluindoparaostermossimplistasquecolocamosertanejo—e

nãoohomem—comooserquenadavale.

O terceiro passo, dado na “Conclusão”, é aparentemente mais firme. Durante

todo o capítulo, o raciocínio transita entre o sertanejo e o homem, a literatura

regionalistaealiteraturaemgeral.Oolhardemolidordonarradorfinalmenteparece

conseguir ver um no outro, ou seja, o sertanejo no homem e o regionalismo na

literaturauniversal:“Nograndiosoprojetodoautor,destruiraliteraturaregionalista

correspondeadestruiraliteraturauniversal”(MAINARDI,1995,p.117),sintetizaele.

Noprosseguimentodessasuatarefa,imaginaumacuriosaconjunção,aofigurar-

se como um “Raskolnikov do sertão, que mata seguindo um processo lógico,

inevitável”(MAINARDI,1995,p.118).Aíéahoradoleitorembatucarnãocomoque

diz o narrador-autor sobre o regionalismo,mas no que fala sobre Dostoiévski. Sim,

Raskolnikovcriaumalógicarigorosaparajustificaroassassinatoqueplanejacometer

equefinalmentecomete.Todaumaelaboradaconcepçãodehomemsuperior—que

ele naturalmente aplica a simesmo— émobilizada. No pólo oposto estaria Aliena

Ivánovna, a criatura inferior, agiota desprezível. Como um homem genial, capaz de

criar coisas que beneficiariam toda a humanidade, poderia viver tão mal, sem

dinheiro,correndooriscodenãochegaraondepoderiachegar,enquantoaquelavelha

éricaevivetãobem?Matá-laseriaumgestodejustiça,frutodeumraciocínio“lógico,

inevitável”. A tarefa do narrador-autor seria, portanto, semelhante a essa, a do

superiorquesuprimeoinferior.Umapergunta,noentanto,nãosaidacabeçadoleitor:

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eorestodeCrimeecastigo(1866),emqueaculpatornadescabidaalógicainfalível,

emqueopróprioRaskolnikovnãoconseguefugirdaideiasubreptíciadequesuavida

nãoémenosseverinaqueadaagiota?

Detodamaneira,verifiquemos,comofizemosnosdoispassosuniversalizantes

anteriores, o que ocorre no desfecho do capítulo— que neste caso é também o

desfechodolivro:

Aestaaltura,oautorassumeotomproféticodeAntonioConselheiro.Aambiçãoé conceber uma verdade irrefutável, universal, eterna, de sabor bíblico,resumindoodogma literárioaumaúnicasentença,simplese linear: “Quandoaliteratura não mata a humanidade, é a humanidade a matar a literatura.”(MAINARDI,1995,p.118)

Enãonossurpreendemos.Oqueaquiseapontoucomoumapercepçãodeestar

incorrendoemhybrissemanifestaatéofim.Maisumavezadesmesura—o“dogma”

—aparecequandoonarrador-autorsecaracterizacomoosertanejofanáticoeboçal.

Quando ele era Raskolnikov, o que havia era um processo lógico. Quando algo

ridiculamenteexpõeaambiçãoabsolutadetudodefinircomumafrase,eleéAntônio

Conselheiro.

Trata-se de um processo reiterativo que confirma, portanto, o fato de o

narrador-autortrabalharcomumalógicasegundoaqualalgunsYahooscheirambem,

enquanto outros não, diferentemente deGulliver, que precisa andar sempre com “o

narizmuito bem tampado com folhas de arruda, alfazema e fumo” (SWFT, 1971, p.

275).Issoenchedeesperançaesteleitordequesualeiturapossafazersentido,deque

eleestejadefatolendoaobraenãooconsensoquesecriouemtornodoautor.

Agorasim,jáexausto,esteleitorpodefinalmenteencerrarseutrabalho.Tendo

lutadocontraosconsensoscomopôdee, tendochegadoaondechegou tantonoque

diz respeito ao regionalismo brasileiro quanto a Polígono das secas, coloca-se ele

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próprio como objeto para outras leituras, como voz a ser contestada. E assim a

conversapodecontinuar.

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