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Curitiba, Vol. 4, nº 6, jan.-jun. 2016 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE BUENO, L. Abraçar a solidão... 219 ABRAÇAR A SOLIDÃO: SOBRE OS PERIGOS DO CONSENSO EMBRACING SOLITUDE: ON DANGERS OF CONSENSUS Luís Bueno 1 RESUMO: A partir da análise de como o regionalismo brasileiro é abordado no romance Polígono das secas (1995), de Diogo Mainardi, este artigo pretende problematizar a aceitação de grandes consensos críticos como ferramentas capazes de fazer avançar a leitura crítica das obras literárias. Palavras-chave: leitura crítica; ficção brasileira; regionalismo. ABSTRACT: By analysing how the novel Polígono das secas (1995) by Diogo Mainardi depicts Brazilian regionalist literature, this paper intends to question the great critical truths, as tools capable of producing new relevant critical readings. Keywords: critical reading; Brazilian fiction; regionalism. Há muitas experiências radicais de solidão. No plano meramente intelectual, aquele que nos interessa aqui, uma das mais intensas é a que experimentamos diante de um texto literário desafiador. Naquele instante em que sentimos quantas coisas aquilo diz e, ao mesmo tempo, percebemos não compreender exatamente nenhuma dessas coisas. A quem recorrer? O processo de treinamento formal por que passamos nos cursos de Letras pode ser visto como uma maneira de lidar com essa solidão. Afinal, nesse processo somos apresentados a estratégias de leitura que pareceram bem sucedidas a alguém na verdade a muita gente e que por isso mesmo se cristalizaram como formas de abordagem seguras. Aprendemos a manipular uma série de conceitos que pelo menos atenuam a sensação de solidão já que, por um lado, mostram caminhos seguros a 1 Professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura na Universidade Federal do Paraná.

ABRAÇAR A SOLIDÃO: SOBRE OS PERIGOS DO CONSENSO … · Curitiba, Vol. 4, nº 6, jan.-jun. 2016 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE BUENO, L. Abraçar a solidão

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ABRAÇARASOLIDÃO:SOBREOSPERIGOSDOCONSENSO

EMBRACINGSOLITUDE:ONDANGERSOFCONSENSUS

LuísBueno1

RESUMO:ApartirdaanálisedecomooregionalismobrasileiroéabordadonoromancePolígonodassecas (1995), de Diogo Mainardi, este artigo pretende problematizar a aceitação de grandesconsensoscríticoscomoferramentascapazesdefazeravançaraleituracríticadasobrasliterárias.Palavras-chave:leituracrítica;ficçãobrasileira;regionalismo.ABSTRACT: By analysing how the novel Polígono das secas (1995) by Diogo Mainardi depictsBrazilian regionalist literature, this paper intends to question the great critical truths, as toolscapableofproducingnewrelevantcriticalreadings.Keywords:criticalreading;Brazilianfiction;regionalism.

Há muitas experiências radicais de solidão. No plano meramente intelectual,

aquelequenosinteressaaqui,umadasmaisintensaséaqueexperimentamosdiante

de um texto literário desafiador. Naquele instante em que sentimos quantas coisas

aquilo diz e, aomesmo tempo, percebemos não compreender exatamente nenhuma

dessascoisas.Aquemrecorrer?

OprocessodetreinamentoformalporquepassamosnoscursosdeLetraspode

servistocomoumamaneirade lidarcomessasolidão.Afinal,nesseprocessosomos

apresentados a estratégias de leituraqueparecerambem sucedidas a alguém— na

verdade a muita gente— e que por isso mesmo se cristalizaram como formas de

abordagemseguras.Aprendemosamanipularumasériedeconceitosquepelomenos

atenuam a sensação de solidão já que, por um lado, mostram caminhos seguros a

1ProfessordeLiteraturaBrasileiraeTeoriadaLiteraturanaUniversidadeFederaldoParaná.

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percorrer e, por outro, nos inserem numa coletividade, o grupo dos leitores

profissionais.

Sim, sentir-se seguro é uma coisa boa. E sim, pertencer a um grupo émelhor

ainda, sobretudo um grupo desse tipo, composto por gente de todas as idades, de

todos os países, de múltiplas formações. Um grupo que conta inclusive com

interlocutoresjámortoshámuitosanos,cujostextos,lidospelaprimeiravez,podem

terparanósosabordacoisanova,damútuacompreensão,darevelaçãoaté.

Mas, também sim, é preciso tomar cuidado com as coisas boas. O conforto

intelectual é um perigo. Conceitos podem se transformar em chave de leitura para

tudo. Leituras específicas podem se converter em verdades absolutas. Visões de

conjuntopodemvirarmuletas.Quandomenosnosdamosconta,caímosnatentaçãode

jásabermoscomoseráaleituradeumlivroqueaindanãolemos.E,pior,lemosenão

nosdamosodireitodeficarasóscomotexto,malouvindosuavozportrásdasoutras

vozes, aquelas que nos livramda sensação dolorosa da solidão que é comum sentir

quandoseduvidadetudo.

Paranoslivrarmosdessesperigos,umasoluçãopossíveléabraçarmosasolidão.

E,se forpossível fazerumarecomendaçãoemmatériatãocomplicadaetãopessoal,

seriainteressanteescolheresta:mesmodiantedoconsenso,cultivaradúvida.

Como nesse campo tudo é experiência, a proposta é a de ilustrar essa

recomendação com a discussão de um velho problema de leitura da literatura

brasileira. E, para fazer isso abraçando a solidão demaneira irredutível, vamos nos

manter dentro do campo da incerteza. A ideia é localizarmos um consenso sobre a

literaturabrasileiraquesemanifestounãoapenasnodiscursocrítico,mastambémna

prática literária, e lidarmos com ele por meio da consideração exclusiva de textos

literários.Oconsensoemquestãoéodocaráterrestritodaliteraturaregionalista,sua

abordagemidealizadoradohomemdointeriordopaís.

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Trata-se, aparentemente, de consenso antigo. Afinal, na edição de 23 de

dezembrode1914do jornalOEstadodeSãoPaulo,espremidoentreas“Notíciasdo

interioredolitoraldoEstado”—quenosinformamhaverchovidoforteemSantaRita

do Passa Quatro no sábado anterior, ou que o irmão do coronel José Deocleciano

Ribeiro,líderpolítico,haviavisitadoacidadedeFartura—eas“NotíciasdeMinas”—

quetêmcomoassuntoacontrovérsiadoslimitesentreMinasGeraiseoEspíritoSanto

—, aparecia um texto assinado por um certo J. B. Monteiro Lobato. Trata-se de

“Urupês”, que alguns anos depois integraria a primeira coletânea de contos de seu

autor, emboranão sejapropriamenteumconto.Émuitomaisumartigodeopinião,

que parte precisamente das idealizações que os textos românticos promoveram a

respeitodos índioscontrapondo-ascomadurezadoconhecimentodo índioreal: “O

balsâmico,elegante indianismodeAlencaresboroou-sepeloadventoiconoclastados

Rondons” (LOBATO, 1914, p. 06).Mas seu alvo não são os índios, e sim uma outra

gentequepassaria,naquelemomento,porprocessosemelhantedeidealização:“Não

morreu, no entanto, que nada morre; o indianismo anda para aí a deitar copada.

Trocoudenomesubrepticiamente;crismou-sedecaboclismo”(LOBATO,1914,p.06).

OhomemdointeriordoBrasilteriaocupadoolugardosíndios.

A sequência, comobem se sabe, é a criação dessa espécie demito negativo, o

Jeca Tatu (que se grafava Geca na publicação original), verdadeira demolição de

qualquerpossívelvalorizaçãodosertanejo:

Porqueaverdadenua,despidadosmantosdiáfanosdafantasia,mandadizerqueentre as raças e sub-raças de variadomatiz social formadoras do nosso povo,metidadepermeioentreoeuropeutransplantado,criadordearteseindústrias,eoselvagemdetabuinhasnobeiço,umaexisteavegetardecócoras,insensívelaoevoluircircunvolvente”.(LOBATO,1914,p.06)

Nãohámesmoqualquerdúvida:háumdescompassoenormeentrea“verdade

nua”— a boçalidade do caipira— e aquilo que a fantasia teria criado— o caipira

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idealizado.E,depoisdeestabeleceressepontodepartida,oqueMonteiroLobatofazé

criarumafigurasemabsolutamentenadadepositivo.

ValeapenaassinalarqueaestratégiadeLobatofuncionoumuitobem.Projetou

seu nome e, quatro anos depois, ao lançar seu primeiro livro de contos, não

coincidentemente,portanto,intituladoUrupês,obtevesucessoenorme,comsucessivas

edições—noveaté1918.Maisdoqueisso,quarentaanosdepoisrecebeuconsagração

crítica definitiva, já que foi exatamente no Jeca Tatu que Lúcia Miguel Pereira

encontrou o primeiro personagem de valor do regionalismo brasileiro, aquele que

recusavaexatamenteaidealizaçãoqueoolharde“turista”haviaconstruídodenosso

homemdointerior(cf.PEREIRA,1957)

Nocampodaficçãomaisrecente,poderíamosestabelecerumalongadiscussão,

porexemplo, comRubemFonsecaque,numcontodeFelizanonovo (1975),põena

bocadeumescritorasseguintespalavras:“EunadatenhoavercomGuimarãesRosa,

estouescrevendosobrepessoasempilhadasnacidadeenquantoostecnocratasafiam

o arame farpado” (FONSECA, 1975, p. 143). O escritor “do presente”, como se vê,

posta-senumpontoqueestariaalémdouniversoruraldoregionalismo,ummundode

gente empilhada nas cidades que não guarda qualquer relação com ele, e, por isso

mesmo,estariasuperado.

Mas vamosmais adiante, vinte anos depois disso, no finalzinho do século XX,

quandooconsensohaviaseestabelecidodeformaaindamaissólida.Em1995,oentão

críticoecolunistadarevistaVejaDiogoMainardi lançouseu terceiro livrode ficção,

Polígonodassecas,dispostoexatamenteacombaterdiretamenteesseconsenso.Mas

tal combate não se faz sem ambiguidade. A proposta do livro é a de romper com a

valorizaçãodeumaliteraturaqueopróprionarrador,queseidentificacomo“oautor”,

afirmanãoexistirmais:“Aliteraturaregionalistanãoéumaquestãodeatualidade.O

filão sertanejo esgotou-se, seus maiores cultores morreram décadas atrás”

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(MAINARDI,1995,p.116).Sea literaturaregionalistaestáesgotada,porquediabos

alguémseocupadeenterrá-la?

Esse é exatamente o grande problema do consenso em literatura. Um

pretensamentesubstituiooutro,mascomosempreé“pretensamente”sempresetem

um fantasma nos calcanhares, algo de que toda gente se lembra e que alguns

descuidadosaindapodem julgarestarvivo.OquePolígonodas secas acaba fazendo,

nessesentido,édartestemunhodequeoburacoémaisembaixo,dequetalvezhaja

algumarelevâncianessaliteraturadenunciadacomotãoanêmicaesimplista.Ninguém

combateousodetílburisnasgrandescidadesporquenãohámaistílburis.Nãoocorre

aninguémescreverum tratadoouumromancecontra seuuso.Sua irrelevânciaem

nossotempoestápostademaneiratãoclaraquemuitagentesenteanecessidadedeir

aodicionáriodiantedamençãoaumtílburi.Issosiméconsensosobreainutilidadeou

ineficáciadealgumacoisa.Seoregionalismoprecisasercombatido,éporqueaindahá

caroçonesseangu,ofantasmaaindaameaça.

De toda forma, o narrador-autor de Polígono das secas define claramente o

consensoquedesejademolir.Éporissoque,nofechodecadaumadasquatropartes

emquesedivideoromance,elefazquestãodedarsuaschavesdeleitura.Naprimeira

parte, explica a origem do personagem que ele define como o principal, o Untor,

contando-nosumepisódiode obscurantismodahistória deMilãopassado em1630

quandoumacertaCaterinaRosaacusouumhomemdeespalharapestepelacidade

pormeiodeumuntoamareloqueelaovirapassandonummuro.Ocapítulofinalda

segundapartesechama“Nomes”eneleonarrador-autortratadeesclareceraorigem

dosnomesdeseuspersonagens:todoselesteriamsidoextraídosdenomesdecidades

quepertencemaoPolígonodasSecas,referênciasàquiloqueelechamade“obscuras

celebridadeslocais”(MAINARDI,1995,p.61):

Acertaaltura,oautordesteromancepensouemindagarsobrearealidentidadedecadaumdessespersonagenshistóricos.Duranteapesquisa,nãoconseguiu

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encontrarpraticamentenenhumainformaçãoquelhesdissesserespeito.Aindaque inúmeras cidades sertanejas tenham adotado seus nomes, eles não sãomencionados em livros de história ou de genealogia, enciclopédias oudicionáriosbiográficos.(MAINARDI,1995,pp.60-61)

Eessadeclaraçãofazpasmaroleitorque,porumacasodasortevenhaasaber

algumacoisasobreumcertoJanuárioCicco,quedánomeaumacidadedoRioGrande

do Norte. Acontece que esse leitor estava interessadíssimo em interpretar por que

razão dera o narrador-autor exatamente ao assassino de profissão o nome de um

médicoqueviveraentre1881e1952,membrodaAcademiaNorte-rio-grandensede

Letras, autor de uma série de livros de sua especialidade e de umúnico e estranho

romance,saídoem1937,quedebatianadamaisnadamenosdoqueamorte, jáque

seu título era Eutanásia. Nele, um personagem faz afirmações pode-se dizer

compatíveiscomopontodevistadonarrador-autordePolígonodassecas,comoesta:

“Enquanto isso,meu caro amigo, disse oDr. Paulo, acho de um ridículo jocoso essa

gentequesebatecontraaeutanásiaporcompaixão,queimandoargumentosdemoral

social e de sentimentalidade religiosa, porque a sociedade é omaior aleijão que se

conhece”(CICCO,1937,pp.157-158).

Aquele leitor, diante do caráter gratuito que o narrador-autor atribui a sua

escolha de nomes de personagem, muito além ou aquém das engenhosas

intencionalidadesimplícitasquejáestavadispostoafazer,esfria.Teriasidooacasoa

agirsecretamente?Esefoi,qualaimportânciadissojáqueoromanceéaquiloqueée,

poracasoounão,onomedojagunçovemdomédicoromancista?Convémguardaro

ímpetoeverificar,olharosdemaisnomes.PiquetCarneiro,porexemplo.Quemteria

sidoPiquetCarneiro?PoiseraumengenheironascidonoRiodeJaneiroquetrabalhou

naconstruçãodeestradasdeFerronoCearáenaadministraçãodoAçudedeQuixadá.

É também o bisavô do piloto de fórmula 1 Nelson Piquet. Nenhuma dessas facetas

parece ressoar no sertanejo que se vê transformado em boi que é personagem de

Polígonodassecas.

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E Manoel Vitorino? Para uma “obscura celebridade local” ele até que teve

algumaimportância.Foiovice-presidenteduranteomandatodoprimeiropresidente

civilbrasileiro,PrudentedeMorais,entre1891e1894,aquelequesucedeuFloriano

Peixoto. Um período turbulento, portanto. Curiosamente, durante quatromeses, em

funçãodeumacirurgiaaqueprecisousesubmeterotitular,ManuelVitorinoPereira

foi presidente interino. “Assumindo a presidência, Manuel Vitorino não se limita à

simplesfunçãodoexpedientequotidiano.Temasuapolíticapessoaleosseusplanos

especiaisdegoverno”(BELLO,1959,p.169),eisoquedizumhistoriador.Nãoparece

haver maiores relações entre o sertanejo propositadamente “genérico” que abre o

romancevagando como cadáverdo filhonosbraços embuscadeumcemitério eo

republicanoexaltadoquedeuonomeà cidadedaBahiaque, por suavez, serviude

fonteparaonomedopersonagemdoromancede1995.

Enfim,parecequeonarrador-autorescolheumesmoaleatoriamenteosnomes

deseuspersonagens.Seudesinteresse—omesmoquerevelaránocapítulofinalpelo

espaçofísico,aoafirmarquenãosentiranecessidadedeviajaratéosertão—parece

sersincero.Detodaforma,nacabeçadesseleitorjamaisdeixarádesoarumecoque

ligaráparasempreoJanuárioCiccopersonagemaoJanuárioCiccoquedecidiuusaro

romancecomoformadediscutirumtemapolêmicocomoaeutanásia.Maisoumenos

comooescritorDiegoMainardidecidefazercomoromanceregionalista.

Masdeixemosdedesvios:nãoénosnomesquecentraremosaatenção,massim

naquilodequetrataocapítuloexplicativodaterceiraparte,cujotítuloé“Bibliografia”,

poisénessemomentodoromancequealiteraturaregionalistaédefinida,assimcomo

ostermosdoataquequesepretendelançaraela.Otítulodestecapítuloédireto,como

aliástudosepropõeasernesteromance.Onarrador-autorcomeçadeclarandoquea

bibliografiadeque fezusoécurtaporqueconsidera “que todaa literaturasertaneja

pode ser reduziaa seisou sete títulos” (MAINARDI,1995,p.88)para chegaràquilo

queeleparecedefinircomoaessênciadessaliteratura:

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Aoincorporaroselementosdaculturasertaneja,aliteraturaregionalistaatribuiaohomemcomumopoderdeinterpretararealidade,conferindoumadimensãoalegóricaàssuasatividadescotidianas,mitificando-lheamentalidadevulgar,desua linguagem às suas crendices, como se séculos de obscurantismo tivessemgeradoummaiorgraudecompreensãodomundo.(MAINARDI,1995,p.88)

Independentemente de suas crenças (ou crendices) pessoais— que acabam

gerandodificuldadescomoadecompreenderexatamenteoqueéo“homemcomum”

e o que se oporia a ele como homem incomum ou extraordinário (será o próprio

escritor?),ouadelocalizarquemexatamentetem“opoderdeinterpretararealidade”

equemnãotem,ouaindaadedefiniroqueseriaum“graumaiordecompreensãodo

mundo” e sua contraparte, um graumenor— o valente e solitário leitor prossegue

firme em sua leitura do romance. E para isso é preciso aceitar suas premissas,

conviver com elas. E, de toda forma, mais que convicções do narrador-autor, essas

ideiastêmfunçãonarrativa.Numromancequeseafastaradicalmentedaexploração

psicológicaparapoderseconstituircomosátira,nãohaveriamesmomuitolugarpara

asmeias-tintas.Apontaroridículo,afinaldecontas,éumaoperaçãoquepartedaideia

dequeháalgoquenãosejaridículo.

Napáginaseguinteonarrador-autorcomeçaarevelarquaisfontesutilizoupara

construirosdiversospersonagensparaalémdeseusnomes.Vamostratardeapenas

quatrodeles,quesereferemaoutrasobrasliteráriasespecíficas.2Sigamosaordemda

apresentaçãodecadaum:

A história de Manoel Vitorino, que carrega o filho nos braços em direção aocemitério,baseia-seemJoãoCabraldeMeloNeto:“–Óirmãosdasalmas!”Éacrendicedequeavidatemumvalorabsoluto,dequeamaismíseradasvidasvale tanto quanto qualquer outra. A ideia é socialmente sensata, mas não tem

2 Os demais personagens teriam sido extraídos de conjuntos de textos ou de costumes: PiquetCarneirodosromancesdecordelemgeral(cf.MAINARDI,1997),eashistóriasdasCatarinasRosas“subvertemcélebresmitosdocangaço”(MAINARDI,1997,p.90).

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validadeliterária.Naliteratura,avidainsignificanteprecisamorrer.(MAINARDI,1997,p.89)

Estaprimeiraapresentaçãoétalvezaquelaemqueonarrador-autorofereceao

leitoramais interessantedasanálisesdesuas fontes.Afinal,consideradoodesfecho

deMorteevidaseverina(1955),omais famosopoemade JoãoCabraldeMeloNeto,

nãopareceinjustodizerqueeleseconstituacomoumacelebraçãodavida,qualquer

uma.Vejamossuasduasúltimasestrofes:

–Severinoretirante,deixeagoraquelhediga:eunãoseibemarespostadaperguntaquefazia,senãovalemaissaltarforadaponteedavida;nemconheçoessaresposta,sequermesmoquelhediga;édifícildefender,sócompalavras,avida,aindamaisquandoelaéestaquevê,severina;masserespondernãopudeàperguntaquefazia,ela,avida,arespondeucomsuapresençaviva.Enãohámelhorrespostaqueoespetáculodavida:vê-ladesfiarseufio,quetambémsechamavida,verafábricaqueelamesma,teimosamente,sefabrica,vê-labrotarcomohápoucoemnovavidaexplodida;mesmoquandoéassimpequenaaexplosão,comoaocorrida;mesmoquandoéumaexplosãocomoadehápouco,franzina;mesmoquandoéaexplosãodeumavidaseverina.(MELONETO,1979,p.241)

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Aquestãoaquiédiscutirnoqueconsisteo“valorabsolutodavida”nopoemade

JoãoCabralecomoonarrador-autorointerpreta.Naúltimaestrofeomestrecarpina

explicita a ideiadequea continuidadedavida emsi— pequena, franzina, severina

que seja— é amelhor resposta para a grande pergunta de Severino: a vida vale a

pena?Emboraopoema lide o tempo todo coma ideia dequehaveria de fato vidas

grandes e pequenas, ao confrontar o conceito de vida “severina” do poema de João

Cabralcomodevida “insignificante”donarrador-autordePolígonodas secas,nãoé

difícilconcluirqueháumadiferençadebaseentreeles.Esteúltimoconstróiotempo

todouma lógicasegundoaqualháumadivisãoclaraentreasvidasque têmounão

significado—assimcomoháohomem“comum”emcontrastecomalgumoutroque

nãooseja.Na lógicageraldo livro,osertanejoésempre insignificante,de tal forma

queainsignificânciasemarcacomoumacaracterísticaessencialsua.Talvezporissoa

ideiadequetodasasvidastêmomesmovalorpossaservistacomosocialmenteútil,

contribuindo para a paz entre as classes, já que, no nível do imaginário todos se

julguemtãosignificativosquantoquaisqueroutros.

JánopoemadeJoãoCabral,apequenezéumaespéciedeacidentedepercurso

dentrodascircunstânciasespecíficasquecadavidaenfrenta.Opoemacomoumtodo,

mas especialmente neste momento, quando um nascimento é narrado em meio a

tantas mortes, opera com os momentos extremos da vida, em que todas elas são

irredutivelmente semelhantes. O primeiro berro do recém-nascido, assim como o

últimosuspirodomoribundo,porassimdizer,nãotemnenhumtipodedeterminação

exterior,nemdeclasse,nemdegênero,nemdenacionalidade,nemdenada.Sãoatos

puramentebiológicos.Dessamaneira,oconceitodevidaseverinavemexplicitamente

detudoqueseestabeleceemtornodessavidaenãonelamesma.Vemdascondições

específicasquetornamoshomensgrandesoupequenosnavidasocial.Sim,ovalorda

vidaéabsoluto,assimcomosuacontinuidade,emoutrasvidas,éumvalorabsoluto.

Exatamente por isso é que não haveria vida insignificante, pois as diferenças das

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formas como essa vida será vista pelas convenções — de classe, de gênero, de

nacionalidade,detudo—équedefinemsua“severinidade”,nãosuainsignificânciaem

si.Assim,JoãoCabralnãoidealizaosertanejo:eleapenasovêcomoumhomem.Um

homemqualquer.

OtrechodePolígonodassecasqueserefereaMorteevidaseverinaseencerra

com uma afirmação definitiva, a de que “na literatura a vida insignificante precisa

morrer. Como compreender tal afirmação? A explicação possível vem no final do

capítulo, quando o narrador-autor vai apontar ligações que se pode fazer com um

outronome,odeCaterinaRosa:

Oautorreconhecequeéumacomparaçãoumtantoforçada,comotantasoutrasao longodoromance,masbaseia-senofatodequeMollyBloom,numprocessosemelhanteaodeCaterinaRosa,assumiuopoderdapalavranaquelemonólogointeriordeUlisses.Desdeentão,tornou-seautoradetodososlivrosemtodasaslínguas, infligindo suas banalidades sobre o restante da literatura universal.(MAINARDI,1995,p.62)

Ele estende, portanto, sua condenação a um personagem não sertanejo, mas

igualmenteinsignificante.Aofazerissoindicaporquetodososinsignificantesdevem

morrernaliteratura:eles“infligem”seudiscursorestritoaomundo.Talideiareforça

definitivamente sua visão de que, por oposição, haveriamesmo vidas significativas,

aquelasquedeveriamsobrevivernosromancesparanosensinar—enãoinfligir?—

osvaloresaltosqueencarnam.

Ora,háemMorteevidaseverinaumadesconfiançaenormedequea literatura

sejacapazdeproduzirqualquerverdade,deinfligiroquequerquesejaaquemquer

que seja. Na penúltima estrofe, o mestre carpina se revela incapaz de responder à

perguntadeSeverino,perguntafeitaporassimdizerinextremis,diantedorio,ondea

“melhor saída” parece ser “a de saltar, numanoite, fora da ponte e da vida” (MELO

NETO, 1979, p. 233). Mesmo assim Seu José, o mestre carpina, declara com

tranquilidadeque“édifícildefender,/sócompalavras,avida”(MELONETO,1979,p.

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233). A defesa do valor absoluto da vida ele só foi capaz de fazer diante de uma

manifestaçãoconcretadavida,onascimentodemaisumacriançaqueteráuma“vidaa

retalho,/queécadadiaadquirida”(MELONETO,1979,p.232).Opoema—qualquer

poema—éfeitoassim,“sócompalavras”.Assimcomoaspalavrasdomestrecarpina

atribuem um sentido ao nascimento que acaba de acontecer, sem o qual seu

argumentoseesvaziaria,opoemaapenasatribuiumsentidoaomundo,não“inflige”

nada a ninguém.Exatamentepor isso, na literatura, nada é necessário, nadaprecisa

acontecer.

Passemosàsegundaapresentaçãodasfontesparaacriaçãodospersonagensde

Polígonodassecas:

AhistóriadeCristinoCastroestáemEuclidesdaCunha:“... o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios quenunca viu... usufrui, parasitariamente, as rendas de suas terras... De quatro emquatrobezerros,[ovaqueiro]separaum,parasi.”Os sertanejos acreditam que amorte redime o ser humano. O unto amareladodemonstraqueossertanejosnãopodemaspirarnemmesmoaumaderradeirailuminação.(MAINARDI,1997,p.89)

Aqui o narrador-autor parte de algo bem concreto, já que o senador Pompeu,

patrãodeCristinoCastro,toma-lhetrêsdasquatrofilhase,tendoperdidoumaperna

numacidente,mandaocangaceiroJanuárioCiccoamputartrêsdosquatromembros

dovaqueiro.Nessesentido,EuclidesdaCunhateriafornecidoapenasumainformação

apartirdaqualasituaçãonarrativatirariaseuabsurdo.Masoleitorseassustacoma

repentinamudançadenível:daremuneraçãodovaqueiroparaacrençanaredenção.

É possível dizer que em Os sertões (1902) aparece o sertanejo que acredita numa

redençãopelamorte.Masdaíàconclusãodequeolivroassumaessavisãoeidealizeo

sertanejovaiumadistânciaenorme,queolivrodeEuclidesdaCunhanãopercorre.A

voz narrativa deOs sertões decerto descobre grandeza naquelas pessoas em que, a

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princípio,encontrara-sesomenteinferioridade.Terminaporenxergaralinaraçafraca

umaraçaforte,massemidealização:

É que neste caso a raça forte não destroi a fraca pelas armas, esmaga-a pelacivilização.Ora,osnossosrudespatríciosdossertõesdoNorteforraram-seaestaúltima.Oabandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptaçãopenosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou quedescambassemparaasaberraçõesevíciosdosmeiosadiantados.(CUNHA,1998,pp.102-103)

Por caminhos muito diversos daquele que levaria Lévi-Strauss a tirar as

conclusõesquetiraemRaçaehistória,EuclidesdaCunha,munidodavisãodeciência

de seu tempo, e manipulando o conceito de raça forte aplicada à que não é a do

sertanejo, termina por escapar a qualquer idealização, já que, de outro lado, não

supervaloriza os “meios adiantados”, que também teriam seus problemas. É quase

surpreendente para o leitor de hoje como a partir de uma visão tão velha, que não

hesita em usar termos como “vícios”, “aberrações” ou mesmo “rudes patrícios”,

estabeleça-seumavisãotãodesimpedida.Ficamaisdifícilparaesseleitoraceitarcom

tranquilidadealeituraqueonarrador-autorfazdeOssertõesdoqueaconteceracoma

deMorteevidaseverina.

Aexplicaçãoparaopersonagemseguintetambémécomplicada:

O obstinado jagunço JanuárioCicco é tiradode JoãoGuimarãesRosa.Destrói acrendicedequeossertanejospodemencontrarumamissãoquepreenchasuasvidas. Não é o que acontece. Os sertanejos são condenados a viver sem ummotivo.Éestaamensagemqueaverdadeiraliteraturaprecisadar.(MAINARDI,1995,p.89)

Guimarães Rosa já fora referido no capítulo “Nomes”, como “seguramente o

maiorcultordogênero”(MAINARDI,1995,p.62).Nessacondição,édeseesperarque

emsuaobrahaja—comode fatohá—umagaleria imensadesertanejos,de forma

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queoleitorseencontraemsituaçãomaisdifícildoquenoscasosanteriores,emque

era fácil reconhecero livro-fonte.Como JanuárioCiccoéum jagunçoecomoGrande

sertão: veredas é tido como a obra-prima do autor, é natural que a referência diga

respeitoaesseromanceeaseuprotagonistaRiobaldo.Adificuldadenessecasoéade

identificar qual missão capaz de preencher sua vida Riobaldo, que chega à velhice

perguntando,teriaencontrado.Esteleitor,porexemplo,nãosabenemcomocomeçar

aprocurar.Numexercícioextremo, seriapossível fazeralgumasperguntasao texto.

Seriaessamissãoprovarqueodiabonãoexiste?Nessecaso,nemaofinaldanarrativa

amissãosecumpriu,eseriamuitomaisadúvidaapreenchercomseuvazioessavida.

Seria por acaso atravessar o Liso do Sussuarão ematar Hermógenes? Se fosse, era

paraeleestarmaistranquilonavelhice,jáquenessamissãoeleforabemsucedidoe

problemas colaterais, como a morte de Diadorim, não gerariam maior inquietação

porquefariampartedasprovaçõesnaturaisaocumprimentodequalquermissão.

Mas,antesdedesistir,éinteressantepensarsealgumoutrosertanejodaampla

galeriaroseanateriasidocapazdeencontrarumamissãoquepreenchessesuavida.

Em Sagarana é difícil localizar esse sertanejo. Em “Burrinho pedrês” o único

personagemquepareceteralgumtipodesabedoriaouclarezaéoburrinho,esóse

salvamdoafogamentoosdoisvaqueirosque,poracaso,agarram-seaele.“Duelo”éa

históriadeduasvidasdedicadasaumamissãohomicidasemvencedorquesepudesse

sentir em plenitude.Mesmo em “A hora e vez de AugustoMatraga”, o protagonista

passaporumagrandemudança—saindodesuacondiçãodeproprietárioparauma

vida de trabalho na companhia de um casal de negros pobres, aparentemente

encontrandoumamissão—queafinalserevelaapenasaparente.Umcírculosefecha

entre a abertura do conto, em que se lê que “Matraga não é Matraga, não é nada.

MatragaéEstêves”(ROSA,1978,p.324),eseufecho,emqueele,àsportasdamorte,

dá-seaconhecer:“PerguntemqueméaíquealgumdiajáouviufalarnonomedeNhô

AugustoEstêves,dasPindaíbas!” (ROSA,1978,p.370).Ouseja,nemMatraganemo

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simples Nhô Augusto desprovido de sobrenome, mas sim o Estêves, identificado

tambémpelonomedapropriedade.JánoCorpodeBaile(1956)hádetudo:Soropita,o

sertanejoracistaevingativo;Manuelzão,queéexatamenteaquelequedescobriráque

sua vida não teve sentido; Pedro Orósio, que volta para sua terra natal não para

resgatarqualquercoisa,jáqueacabaradevoltardelá,maspormedo.Enfim,nadase

localizaalitambém.TalidealizaçãonãoparecefazerpartedaobradeGuimarãesRosa.

Eis,agora,aúltimadasfontesdonarrador-autoremquevamosnosdeter:

O flageladoDemervalLobão inspira-seemGracilianoRamos,omaiscomumdetodososmitossertanejos.Afiguradoflageladopareceprovarqueosimplesatodesobreviverjustificaavida.Oautordesteromancenãoaceitaendossartalideia.(MAINARDI,1995,p.90)

Eaquificamaisfácilperceberoverdadeirointeressedestadiscussãoporqueé

exatamente neste ponto que podemos flagrar um certo consenso tomando forma,

lendo antes mesmo de ler. Graciliano Ramos publicou apenas quatro romances, e

apenasumdelestratadesertanejos.Nãoédifícil,portanto,concluirqueonarrador-

autorserefereaVidassecas,esseúnicoromance.Precisamos,portanto,iraesselivro,

que teria instaurado não apenas ummito sertanejo, como também omais comum.

Segundo o narrador-autor, o romance deGracilianoRamos provaria que sobreviver

justifica a vida e, como tal, participaria deumprocessode idealizaçãodo sertanejo,

terminandopormitificá-lo.

Éevidentequea sobrevivênciaépreocupaçãocentralparaospersonagensdo

livro.Noentanto,deondeexatamenteseriapossíveltiraraideiadequeemVidassecas

“osimplesatodesobreviverjustificaavida”?Aliás,comodefiniroquejustificaavida

nesse romance?Ospersonagens atéprocuram justificativas,masnão exatamente as

dessetipo:

AgoraFabianoconseguiaarranjarasidéias.Oqueoseguravaeraafamília.Viviapreso comoumnovilho amarradoaomourão, suportando ferroquente. Senão

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fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia ocorpoeraalembrançadamulheredosfilhos.Semaquelescambõespesados,nãoenvergariaoespinhaçonão,sairiadalicomoonçaefariaumaasneira.Carregariaa espingardaedariaum tirodepédepauno soldadoamarelo.Não.O soldadoamareloerauminfelizquenemmereciaumtabefecomascostasdamão.Matariaos donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homensquedirigiamosoldadoamarelo.Nãoficariaumparasemente.Eraaidéiaquelhefervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.(RAMOS,1938,p.51)

Presoesurradoinjustamente,jogadonumacela,aoperaçãomentaldeFabianoé

adeexplicar comosuportamoralmente tamanhahumilhação.Eele, comoénatural,

nãoapontaparasuaprópriacovardia.Surpreendentemente,tambémnãoseescorana

suacondiçãodesertanejopobreeoprimido.Éaalgomuitopoucoregionalistaqueele

recorreráparaexplicar-seasimesmo:oslaçosafetivos,aresponsabilidadedepaide

seus filhos,maridodesuamulheredonodesuacachorra.Umaespéciededesculpa

típica,quejogasobreosombrosdosoutrosaresponsabilidadeporsuaprópriainação.

Portanto, nenhuma grandeza se atribui a Fabiano, nenhuma justificativa grandiosa

parasuavidaseesboça.

Se no nível dos personagens não localizamos aquilo que o narrador-autor de

Polígono das secas define como omito criado por Graciliano Ramos, quem sabe no

narrador? Mas nele também não há nada. O narrador de Vidas secas, na verdade,

parecetergrandedificuldadedeapontaroquequerquesejacomocapazdejustificar

avida.Pense-se,porexemplo,noúnicomomentoderealesperançaqueviveafamília,

aquele, no fecho do romance, em que se projeta um futuro melhor na cidade. É

precisamenteaíqueonarradorabandonadevezopontodevistadospersonagense

se colocamuito acima deles, apenas para indicar que é só de sobrevivência que se

trata,nãodealgumsignificadoaseatribuiràquelasvidas:

E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia depessoasfortes.Osmeninosemescolas,aprendendocoisasdifíceisenecessárias.Elesdoisvelhinhos,acabando-secomounscachorros,inúteis,acabando-secomoBaleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra

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desconhecidaecivilizada,ficariampresosnela.Eosertãocontinuariaamandargente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, comoFabiano,SinháVitóriaeosdoismeninos.(RAMOS,1938,pp.196-197)

Nem se transferindo para a cidade e se livrando da condição de sertanejos,

participando de um círculo supostamente mais largo de vida, nem assim sua vida

ganhariasentido,umajustificativacomoquerPolígonodassecas.Ofimdavidaqueo

narradorvêparaeleséomesmodeBaleia:oqueo leitor temdiantede si sãodois

velhos “acabando-se como uns cachorros, inúteis” (RAMOS, 1938, p. 196). É na

inutilidadequeolivrodesemboca,nãonagrandeza.Oqueoautor-narradorleunãofoi

Vidas secas, portanto, foi a imagemda literatura regionalista comoalgo superficial e

laudatório projetada sobre Vidas secas. É mais uma vez o consenso que se

consubstancia,àreveliadotextoconcreto.

Eisaarmadilhaaqueoexcessodesegurançaqueamanipulaçãodeconceitos

muito fixospode conduzirna abordagemdo texto literário— e não só. Contra essa

armadilhaaúnicaatitudepossíveléenfrentarotexto,abraçarasolidãoportanto.Não

para fazermos um exercício solipsista e ficarmos contentes com as nossas próprias

conclusões,baseadasemnossosprópriospreconceitos,masparaestabelecermosum

pontodereferênciaapartirdoqualpossamos,aísim,dialogarcomasoutrasleituras,

as outras conclusões, os outros preconceitos. Afinal de contas, a experiência mais

radicaldesolidão—enãoapenasintelectual—talveznãosejafalarsozinho,massim

fazerpartedeumgrandecoroque,julgandoterváriasvozes,nofundofalasozinho.

A esta altura, este leitor poderia muito bem encerrar seu trabalho. Afinal de

contas,aomostrar,pelomenossegundoseupontodevista,quePolígonodassecasse

constróisobreo falsoconsensodequea literaturaregionalistabrasileira idealizaos

sertanejos,elecumpriuoobjetivoqueestabeleceudesaída.Acontecequeumperigo

maior aparece aqui, uma dúvida bastante séria: não estaria este leitor trabalhando

tambémelecomumconsenso?DiogoMainardiéumafigurapúblicaconhecidaenãoé

nadadifícilqueoleitorestejalendonãoumromanceespecífico,massimumromance

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docolunistaquedeixoumuitoclarassuasopiniõesemanosdetrabalhonaimprensa.

Não é demais lembrar que, numa citação feita pelo próprio leitor, o narrador-autor

havia igualado o sertanejo a Molly Bloom, a literatura regionalista à literatura

universal. Isso não indicaria que na verdade ele não trabalha com consensos nem

estereótipossobreosertanejo,massimtratandodohomemapartirdosertanejo?

Pensandodessamaneira,seriapossível levantarahipótesedequeonarrador-

autor esteja movido por algo como aquela indignação feroz que corroera até o

momento damorte o coração domaior dos indignados, Jonathan Swift3. Lembre-se

que, depois de dezesseis anos e sete meses de viagens, Gulliver não é capaz de

encontrarnadaqueoreconciliecomosYahooscomoumtodo—ouseja,comaraça

humana.4Ficarianossonarrador-autor contentedeapenasdemoliros sertanejosou

defatodesejademolirahumanidadecomoSwift?

Paraverificarcomoissosedá,vamosconsiderarostrêspassosdePolígonodas

secasemqueonarrador-autorelevaotomeampliaoalcancedesuaindignaçãopara

muito além dos sertanejos, o que acontece nos mesmos dois capítulos que nos

interessaramdiretamenteaqui,“Nomes”e“Bibliografia”,mastambémna“Conclusão”.

Adiantemos de saída que se observa nesses momentos um curioso

comportamento:eleseflagranumaespéciedehybris.Masvejamoscomalgumacalma

um por um. O primeiro é exatamente o já mencionado quando ele manifesta viva

revoltacontraafiguradeMollyBloom.Nasequênciaimediatadotrechocitadoacima

sobre a personagem de Joyce, ele concluirá o capítulo com os dois parágrafos

seguintes:

3 A referência aqui é ao epitáfio que Swift escreveu para si mesmo, e que ainda se pode ler naCatedral de Saint Patrick emDublin, no qual o autor dasViagens de Gulliver se caracteriza destamaneira (a passagem no original latino é a seguinte: “Ubi sæva Indignatio Ulterius Cor lacerarenequit”).4Paranãoseterqualquerdúvidaquantoaisso,otermousadoéYahoo-kind(SWIFT,1994,p.328)— “espécie dosYahoo emgeral, na enfática traduçãodeOctavioMendesCajado (SWIFT, 1971, p.275)—emclaraanalogiacommankind(humanidade).

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A esta altura o autor do romance alarga desmesuradamente ametáfora. A suamissão já não é destruir a literatura regionalista, mas toda a literatura desteséculo.AliteraturadeCaterinaRosa.AliteraturadeMollyBloom.Aliteraturadossertanejos.A verdadeira literatura degrada o homem. Quando não é assim não serve.(MAINARDI,1995,p.62)

É significativo que a passagem do sertanejo a Molly Bloom, da literatura

regionalistaatodaliteraturadesteséculolhepareçadesmesurada—comoseopasso

universalizantequeidentificasseVidassecasaoUlisses lheparecesseexcessivo,como

seaojerizaatodososYahoosfossedemaisparaele.Enfim,écomose,mesmoali,entre

duas figuras insignificantes, a do sertanejo e a de Molly, houvesse graus de

insignificância,jáqueenquantoeletratadosprimeiros,nãolheocorrequepossaestar

exagerando, mas quando entra a personagem de Ulisses a metáfora lhe parece

desmesuradamentealargada.

Osegundoéquandofazumaoutratransiçãouniversalizante,entreosertanejoe

ohomem.Oprimeiromovimentoquefazémuitointeressante:

Deacordocomaaudaciosatesedoautor,nãosetrata[aliteraturaregionalistadeque se vinha tratando até ali] de verdadeira literatura. A verdadeira literaturademonstraqueosertanejonãosabenada,nãomudanada,nãoaprendenada,nãoentende nada, não vale nada. A verdadeira literatura destrói as veleidades dohomemacercasesi.Apartirdomomentoemqueacreditanasprópriasideias,ohomemcomeçaaimpô-las.(MAINARDI,1995,p.90)

AquisimteríamosairadeumSwift,agrandeindignação.Nomeiodoparágrafo,

oqueseatribuíadedeletérioaosertanejopassaaseatribuiraotodososhomens.Mas

vejamos no que ela vai dar lendo os dois parágrafos seguintes, mais uma vez os

últimosdocapítulo:“Aestaaltura,oautorsente-secomoumfanáticoquedeblaterado

alto de uma pedra. É tomado pelo tom colérico do discurso, chegando a conclusões

mais peremptórias do que inicialmente pretendia. Começa a perder o controle.”

(MAINARDI,1995,p.90)

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Note-se,desaída,queaimagemdeauto-rebaixamentoésertaneja,referênciaao

episódiodaPedradoReino,aliásreferidonoromance:o fanáticoé,maisumavez,o

sertanejo.Mas,acimadetudo,oqueaconteceéumaespéciederefluxo.Noinstanteem

quepassadacondenaçãodaboçalidadedosertanejoàboçalidadedetodososYahoos,

ele não resiste amanifestar seu desconforto, sua falta de controle.Mais uma vez, é

comoseessepassofossedemaisparaele.Tudoacaba,pelaforçadodiscursoedessa

estranhaauto-ironia,refluindoparaostermossimplistasquecolocamosertanejo—e

nãoohomem—comooserquenadavale.

O terceiro passo, dado na “Conclusão”, é aparentemente mais firme. Durante

todo o capítulo, o raciocínio transita entre o sertanejo e o homem, a literatura

regionalistaealiteraturaemgeral.Oolhardemolidordonarradorfinalmenteparece

conseguir ver um no outro, ou seja, o sertanejo no homem e o regionalismo na

literaturauniversal:“Nograndiosoprojetodoautor,destruiraliteraturaregionalista

correspondeadestruiraliteraturauniversal”(MAINARDI,1995,p.117),sintetizaele.

Noprosseguimentodessasuatarefa,imaginaumacuriosaconjunção,aofigurar-

se como um “Raskolnikov do sertão, que mata seguindo um processo lógico,

inevitável”(MAINARDI,1995,p.118).Aíéahoradoleitorembatucarnãocomoque

diz o narrador-autor sobre o regionalismo,mas no que fala sobre Dostoiévski. Sim,

Raskolnikovcriaumalógicarigorosaparajustificaroassassinatoqueplanejacometer

equefinalmentecomete.Todaumaelaboradaconcepçãodehomemsuperior—que

ele naturalmente aplica a simesmo— émobilizada. No pólo oposto estaria Aliena

Ivánovna, a criatura inferior, agiota desprezível. Como um homem genial, capaz de

criar coisas que beneficiariam toda a humanidade, poderia viver tão mal, sem

dinheiro,correndooriscodenãochegaraondepoderiachegar,enquantoaquelavelha

éricaevivetãobem?Matá-laseriaumgestodejustiça,frutodeumraciocínio“lógico,

inevitável”. A tarefa do narrador-autor seria, portanto, semelhante a essa, a do

superiorquesuprimeoinferior.Umapergunta,noentanto,nãosaidacabeçadoleitor:

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eorestodeCrimeecastigo(1866),emqueaculpatornadescabidaalógicainfalível,

emqueopróprioRaskolnikovnãoconseguefugirdaideiasubreptíciadequesuavida

nãoémenosseverinaqueadaagiota?

Detodamaneira,verifiquemos,comofizemosnosdoispassosuniversalizantes

anteriores, o que ocorre no desfecho do capítulo— que neste caso é também o

desfechodolivro:

Aestaaltura,oautorassumeotomproféticodeAntonioConselheiro.Aambiçãoé conceber uma verdade irrefutável, universal, eterna, de sabor bíblico,resumindoodogma literárioaumaúnicasentença,simplese linear: “Quandoaliteratura não mata a humanidade, é a humanidade a matar a literatura.”(MAINARDI,1995,p.118)

Enãonossurpreendemos.Oqueaquiseapontoucomoumapercepçãodeestar

incorrendoemhybrissemanifestaatéofim.Maisumavezadesmesura—o“dogma”

—aparecequandoonarrador-autorsecaracterizacomoosertanejofanáticoeboçal.

Quando ele era Raskolnikov, o que havia era um processo lógico. Quando algo

ridiculamenteexpõeaambiçãoabsolutadetudodefinircomumafrase,eleéAntônio

Conselheiro.

Trata-se de um processo reiterativo que confirma, portanto, o fato de o

narrador-autortrabalharcomumalógicasegundoaqualalgunsYahooscheirambem,

enquanto outros não, diferentemente deGulliver, que precisa andar sempre com “o

narizmuito bem tampado com folhas de arruda, alfazema e fumo” (SWFT, 1971, p.

275).Issoenchedeesperançaesteleitordequesualeiturapossafazersentido,deque

eleestejadefatolendoaobraenãooconsensoquesecriouemtornodoautor.

Agorasim,jáexausto,esteleitorpodefinalmenteencerrarseutrabalho.Tendo

lutadocontraosconsensoscomopôdee, tendochegadoaondechegou tantonoque

diz respeito ao regionalismo brasileiro quanto a Polígono das secas, coloca-se ele

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próprio como objeto para outras leituras, como voz a ser contestada. E assim a

conversapodecontinuar.

REFERÊNCIASBELLO,JoséMaria.HistóriadaRepública.4ªed.SãoPaulo:CompanhiaEditoraNacional,1959.CICCO,Januário.Eutanásia.RiodeJaneiro:Pongetti,1937.CUNHA,Euclidesda.Ossertões.SãoPaulo:Ática,1998.EdiçãocríticadeWalniceNogueiraGalvão.FONSECA,Rubem.Felizanonovo.RiodeJaneiro:Artenova,1975.LOBATO,Monteiro.Urupês.InOEstadodeSãoPaulo.SãoPaulo,23/12/1914,p.06.MAINARDI,Diogo.Polígonodassecas.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1995.MELONETO,JoãoCabralde.Morteevidaseverina.In_____.Poesiascompletas.3ªed.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1979.PEREIRA,LúciaMiguel.Prosadeficção—De1870a1920.2ªed.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1957.RAMOS,Graciliano.Vidassecas.RiodeJaneiro:JoseOlympio,1938.ROSA,Guimarães.Sagarana.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1978.SWIFT,Jonathan.Gulliver'sTravels.London:Penguin,1994.____.ViagensdeGulliver.SãoPaulo:Abril,1971.Trad.OctavioMendesCajado.