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  • Resenha: O que o contemporneo? Sobre a traduo

    Sapere Aude, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 106-108. 2 semestre 2011 ISSN 2177-6342 106

    AGAMBEN, Giorgio. O que o contemporneo? e outros ensaios. Traduo

    Vincius Nicastro Honesko. Chapec: Argos, 2009. 91 pginas. ISBN 978-85-

    7897-005-5

    &

    RICOEUR, Paul. Sobre a traduo. Traduo Patrcia Lavelle. Belo Horizonte:

    EdUFMG, 2011.71 pginas. ISBN 978-85-7041-898-2

    Antnio Aurlio de Oliveira Costa Magda Guadalupe dos Santos

    Essas duas obras recm lanadas no mercado brasileiro merecem ser lidas e apreciadas numa perspectiva dialgica, o que aqui se prope. Em primeiro lugar, tem-se a obra do professor de filosofia da Universidade de Veneza, Giorgio Agamben, com preocupao esttica e pela teoria da linguagem.

    Em outro lugar, no menos importante que o primeiro, tem-se o texto de Paul Ricoeur, grande mestre da hermenutica contempornea, em que discute a pertinncia de uma filosofia da traduo.

    Certamente, os textos so originais e independentes entre si, assim, como o so os autores dessa resenha. Mas nos parece pertinente junt-los numa leitura com bases interlocutrias j que a questo de um dilogo intercultural que se apresenta no problema da traduo pressupe certa ontologia da linguagem, como questo afeita s teorias contemporneas.

    Apresentamos aqui alguns aspectos de cada uma dessas obras. Os textos que compe a obra de Agamben datam de 2006, 2007 e 2008. Sua traduo de 2009 e rene num s livro alguns ensaios que investigam a questo do tempo de uma perspectiva moral e poltica. A contemporaneidade uma singular relao com o prprio tempo (AGAMBEN, 2010, p.59), sem que se mantenha sobre a poca um olhar fixo, mas sempre distncia, para poder sobre ela se verter, embora j numa dissociao anacrnica, entrevendo sua ntima obscuridade (AGAMBEN, 2010, p.64). O filsofo italiano questiona acerca das possibilidades de distintas aes polticas, com novos registros de amizade que possam criticar as posturas governamentais existentes e at mesmo as posturas intersubjetivas, merecendo ambas ser desconstrudas e retomadas sob novas pautas valorativas.

    Professores do Departamento de Filosofia do Instituto Dom Joo Resende Costa da PUC MINAS. E-mail: [email protected] & [email protected]

  • Antonio Aurlio de Oliveira Costa & Magda Guadalupe dos Santos

    Sapere Aude, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 106-108. 2 semestre 2011 ISSN 2177-6342 107

    Seu processo de anlise , sem dvida, crtico e se assenta em pilares estticos voltados a apontar a relevncia das fraturas do tempo para alcanar as sutilezas da poesia. Numa linguagem nova,

    crtica e bela, o filsofo nos leva a refletir sobre os liames entre passado, presente e futuro, como meio de apontar para a relevncia do prprio pensamento na cultura contempornea.

    No ensaio o que um dispositivo, seu ponto de partida a questo conceitual, dialogando com Foucault e Hypollite, mas mantendo entre eles a base hegeliana da positividade, da prpria dialtica entre liberdade, coero, razo e histria. Entre todos os filsofos, h os jogos de poder que determinam os rumos da cultura. Texto denso e pleno de transdisciplinaridade temtica, o filsofo passeia pelos campos do saber, investigando o perfil antropolgico do sculo XX. Mas pela definio da filosofia como amizade que Agamben nos surpreende, tecendo novos dilogos entre Aristteles e

    Derrida. Ele conduz a leitura de seu texto para as dades culturais como as que se formam entre insulto e experincia de linguagem; religio e tica; sentimento e vivncia (AGAMBEN, 2010, p.84) e, finalmente, entre amizade e condiviso (AGAMBEN, 2010, p.92), como condies do prprio fato de existir como algo que se reparte, partilha e consente em termos polticos.

    ***

    Em Sobre a Traduo, texto publicado em 2004, exatamente um ano antes de seu falecimento, Paul Ricoeur analisa a relao entre traduo e interpretao. Os paradigmas da traduo so aqui tratados, tambm em dilogo com Derrida e Heidegger, considerando a metfora viva como base dialgica.

    Os trs textos que compem a obra so claros, distintos e tratam das novas interpretaes

    causadas pelas tradues e pela fundamentao do sentido inerente ao processo de traduo do que , realmente, intraduzvel, devido s equivalncias sem identidade, aos desafios diante das diversidades das lnguas.

    Em dilogo com Derrida, identifica a rejeio do privilgio de uma lngua em particular, tal como se verifica em Heidegger, e ao abandono da considerao abstrata da linguagem, tal como se

    vislumbra em Gadamer. Derrida apresenta a multiplicidade lingstica como figura de abertura ontolgica e o fato do paradigma da traduo (RICOEUR, 2011, p.48) lhe parecer mais um processo de reinveno cultural da linguagem. Ricoeur v na traduo o desejo de acolher a palavra estrangeira no processo de transformao e de reconfigurao da prpria lngua: sempre possvel dizer a mesma

  • Resenha: O que o contemporneo? Sobre a traduo

    Sapere Aude, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 106-108. 2 semestre 2011 ISSN 2177-6342 108

    coisa de outro modo (RICOEUR, 2011, p.50), definindo uma palavra por outra, vislumbrando na linguagem, tal como Peirce, a reflexividade da linguagem sobre si mesma (RICOEUR, 2011, p.50)

    A traduo lhe parece um rol de dificuldades, em seu duplo sentido de provao e de exame, mas se revela, sobretudo, enquanto uma pulso de traduzir (RICOEUR, 2011, p.22). Mas nesse processo depara-se tambm com a relao entre o autor, o tradutor e o leitor. Na passagem intermediada pelo tradutor, um idioma inteiro se faz chegar ao outro. Mas sua tarefa desconfortvel, paradoxal, com suspeita de traio que remete o filsofo a uma linhagem exegtica que passa por Schleiermacher, Franz Rosenzweig e grandes nomes do Romantismo alemo, como Herder, Goethe, Schiller e Novalis. Todos esses nomes levam Ricoeur a compreender que as inquietantes paragens do indizvel, do intraduzvel, apenas nos levam a rever os pressupostos da amizade, da discrio, da

    preservao da distncia na proximidade (RICOEUR, 2011, p.56). Pois, traduzir remeter busca de sentido idia, ainda que confusa, de uma restituio.

    Alm do texto, h tambm, tal como em Agamben, o confronto com a poesia. Se em Agamben esta sempre retorno, mas enquanto adiamento, reteno e no nostalgia ou busca por uma origem, um caminhar e no uma simples marcha para frente, pois, um passo suspenso (AGAMBEN, 2009, p.19), em Ricoeur, a poesia , sobretudo, dificuldade. Unio inseparvel do sentido e da sonoridade, do significado e do significante (RICOEUR, 2011, p.24). Tal confronto, contudo, serve de analogia face s dificuldades do texto filosfico. A filosofia pressupe intertextualidade que se dissimula na prpria grafia da palavra (RICOEUR, 2011, p.25) e que toma o sentido de transformao, refutao de empregos anteriores por autores de tradies distintas ou similares.

    Finalmente, vale argumentar, a tentativa de se encontrar uma identidade comunitria na vasta rea cultural em que se identificam as questes lingsticas, as presunes ou produes de

    equivalncia e de comparaes, enfim, de verdadeira construo do comparvel (RICOEUR, 2011, p.68). Enfim, buscando nos grandes poetas alemes, como em Hlderlin e Paul Celan, a questo do sentido, volta-se finalmente para Husserl, para ali identificar, mesmo que criticamente, que o sentido

    completo no ato de conferir sentido, o que no exclui a luta contra o intraduzvel, seja porque este real, seja porque o impulso a traduzir tambm constante em cada cultura.