FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE
HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS
Uma nova polcia, um novo policial: uma biografia intelectual do coronel Carlos
Magno Nazareth Cerqueira e as polticas de policiamento ostensivo na
redemocratizao fluminense
(1983-1995)
APRESENTADA POR
Bruno Marques Silva
PROFESSOR ORIENTADOR ACADMICO: Amrico Freire
Rio de Janeiro, Agosto de 2016
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FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE
HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS
Uma nova polcia, um novo policial: uma biografia intelectual do coronel PM
Carlos Magno Nazareth Cerqueira e as polticas de policiamento ostensivo na
redemocratizao fluminense
(1983-1995)
APRESENTADA POR
Bruno Marques Silva
Rio de Janeiro, Agosto de 2016
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FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE
HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS
PROFESSOR ORIENTADOR ACADMICO: Amrico Freire
Bruno Marques Silva
Uma nova polcia, um novo policial: uma biografia intelectual do coronel PM
Carlos Magno Nazareth Cerqueira e as polticas de policiamento ostensivo na
redemocratizao fluminense
(1983-1995)
Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentao de Histria
Contempornea do Brasil CPDOC como requisito parcial para a obteno do grau de
Doutor em Histria,
Poltica e Bens Culturais.
Rio de Janeiro, Agosto de 2016
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Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
Silva, Bruno Marques Uma nova polcia, um novo policial: uma biografia intelectual do coronel
Carlos Magno Nazareth Cerqueira e as polticas de policiamento ostensivo
na redemocratizao fluminense (1983-1995) / Bruno Marques Silva. 2016. 471 f.
Tese (doutorado) - Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil, Programa de Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens Culturais.
Orientador: Amrico Freire. Inclui bibliografia.
1.Cerqueira, Carlos Magno Nazareth. 2. Rio de Janeiro (Estado) - Polcia
militar. 3. Segurana pblica - Rio de Janeiro (Estado). I. Freire, Amrico. II. Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil. Programa de Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens Culturais. III. Ttulo.
CDD 363.2
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6
AGRADECIMENTOS
Mais uma vez, me vejo diante da tarefa de agradecer o apoio de todos aqueles que
acompanharam mais um passo da minha trajetria acadmica. Esse reconhecimento, na
realidade, uma tentativa de provar a essas importantes pessoas que, mesmo nos
momentos de solido do meu doutoramento, procurei seguir firme exatamente por elas.
minha me, por simplesmente existir. Ao meu pai, pela torcida sempre
entusiasmada, como se espera de um amado amigo. minha irm pela eterna amizade.
Jurubeba, sobrinha, afilhada e, agora, aluna que sempre foi e ser uma das minhas
inspiraes. Ao Lucio, o meu obrigado. Minha famlia coautora dos meus acertos na
vida.
Aos amigos Gustavo e Luizinho, verdadeiros irmos que a vida me reservou e pais
das minhas outras duas adorveis afilhadas: Antonia e Olivia. E ainda, me deram duas
grandes amigas: Bruna e Daniele. Trevisano, Janana e Mrcio Hilrio, no os esqueci!
Sem vocs tambm no teria conseguido. Srgio Lamaro, meu sogro, obrigado pela
luxuosa reviso crtica do material da qualificao e pelo constante interesse pelo que eu
fao.
minha amada Luisa. Minha melhor amiga. Minha melhor companhia e, ainda,
revisora de textos. E, simplesmente, mulher. Voc foi a nica pessoa que realmente
suportou todo esse duro processo. Sobrevivi a mais essa etapa para reafirmar: tudo com
voc, ou nada!
Ao meu amor maior: meu filho Vicente. No conheo criana mais doce, sensvel,
inteligente e companheira. Voc sempre foi minha maior inspirao. Muitas vezes, fiquei
me perguntando como uma criana conseguiu entender to claramente as ausncias do
pai. Agora, os dias do papai sero s seus... Te amo, meu amigo!
Aos companheiros do magistrio. Professores admirveis com os quais tenho muito
orgulho de trabalhar. Em especial, ao meu grande amigo Guido. A firmeza de carter e
suas convices sempre perdem espao para a ternura que transborda. querida Silvana
Bandoli, que sempre acreditou na minha tese.
Agradeo ainda Vera Malagutti. Com seu apoio, essa tese efetivamente comeou.
Ao grande amigo bis Pereira. bis me ofereceu generosamente mais do que acesso s
fontes documentais, bibliografia e boas discusses sobre polcias e segurana pblica.
Sua erudio e serenidade serviram e serviro de inspirao para a minha vida.
7
Ao meu orientador Amrico Freire. Sempre atento e afetuoso. Com certeza, mais
um amigo nessas andanas acadmicas. Espero ter retribudo toda a sua dedicao.
Estendo meu agradecimento aos funcionrios do CPDOC/FGV Aline e Rafael.
Agradeo banca que examina esse trabalho. s professoras Angela Moreira e
Ludmila Ribeiro, solcitas e generosas, que me acompanharam desde o incio do
doutoramento. Agradeo tambm pelas valiosas contribuies dadas no exame de
qualificao e pelo esforo dispensado a fim de participarem da defesa da tese.
professora Adriana Barreto, pelo pronto aceite para composio da banca de avaliao.
s professoras Dulce Pandolfi e Karla Carloni pela leitura crtica da tese.
Ao meu amigo Jorge Ferreira. Tive o privilgio de conviver com ele desde a
graduao na UFF. Sua influncia foi decisiva para as minhas opes como historiador.
Com sua dedicao me transformou no que sou profissionalmente.
Por fim, gostaria de agradecer a todos os amigos que, de uma forma ou de outra,
estiveram comigo nessa e em outras caminhadas, pois assim, me asseguro de que no
esqueci de algum. Muitas vezes foram obrigados a escutar horas de papo fiado sobre
criminalidade, segurana pblica e polcia no Rio de Janeiro, muitas vezes contra a
prpria vontade. Reconheo.
Quero, por fim, reafirmar que, sem essas pessoas, esse trabalho seria impossvel e
o meu sucesso no faria o menor sentido. Ou melhor, nenhum sentido. A todos os citados
e aos muitos no citados, o meu mais sincero muito obrigado.
8
RESUMO
A tese pretende realizar uma anlise biogrfica do coronel PM Carlos Magno
Nazareth Cerqueira, com um recorte profissional e intelectual de sua trajetria. Seu
nome representou uma das expresses intelectuais mais importantes de um grupo
de oficiais reformistas engajados nas reformas implementadas na Polcia Militar
do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) nos governos de Leonel Brizola (1983-95).
Atentos s novas estratgias internacionais de policiamento, esses novos gestores,
comandados pelo secretrio Nazareth Cerqueira, redefiniram o papel da corporao
a partir de conceitos como preveno, integrao comunitria e legalidade,
encarando a polcia militar como um servio pblico. O comandante-geral da
PMERJ tentou construir um novo marco regulatrio na administrao da segurana
pblica no estado do Rio de Janeiro e, em especial, do trabalho policial ostensivo.
Cerqueira, ao buscar a adequao entre a atividade policial e os objetivos das
comunidades, combateu as tradicionais polticas de controle social, oferecendo
contornos institucionais concretos ao discurso brizolista dos direitos humanos. Essa
empreitada poltica teve como um de seus maiores desafios a redisciplinarizao da
prpria polcia. Seu comando, ao ensaiar o modelo comunitrio de policiamento no
Rio de Janeiro, constituiu-se numa importante contribuio dos governos pedetistas
para a redemocratizao brasileira nas dcadas de 1980 e 90. Os projetos e ideias
do coronel Cerqueira so fundamentais para a compreenso das permanncias e
transformaes no tratamento da segurana pblica. Recupero sua significativa
contribuio no campo das ideias e das disputas polticas a partir, sobretudo, dos
conceitos e mtodos oferecidos pela Histria Poltica e pela Histria Intelectual.
Palavras-chave: 1. Biografia. 2. Coronel Nazareth Cerqueira. 3. Polcia Militar do
Estado do Rio de Janeiro. 4. Segurana Pblica.
9
ABSTRACT
The thesis intends to carry out a biographical analysis of Colonel PM Carlos Magno
Nazareth Cerqueira, with a professional and intellectual profile. His name
represented one of the most important intellectual expressions of a group of officers
reformist engaged in reforms in the Military Police of Rio de Janeiro State
(PMERJ) in government of Leonel Brizola (1983-95). Attentive to the new
international policing strategies, these new managers, led by Nazareth Cerqueira,
redefined the role of the corporation from concepts such as prevention, community
integration and legality, facing the military police as a public service. The general
commander of PMERJ tried to build a new regulatory framework in the
administration of public security in the state of Rio de Janeiro and in particular the
ostensible police work. Cerqueira, to seek the adequacy of police activity and
objectives of communities, fought the traditional social control policies, providing
concrete institutional contours to the brizolista human rights speech. The biggest
challenge of this policy work was to disciplinary the policy themselves on a new
basis. His command, when testing the Community model of policing in Rio de
Janeiro, constituted an important contribution of pedetistas governments for
Brazilian democracy in the 1980s and 90s. Colonel Cerqueiras ideas and projects
are fundamental to understand the continuities and changes in the treatment of
public safety. The concepts and methods offered by Political History and the
Intellectual History were used to recover his significant contribution in the field of
ideas and political disputes.
Keywords: 1. Biography. 2. Colonel Nazareth Cerqueira. 3. Military Police of
Rio de Janeiro State. 4. Public Security.
10
SUMRIO
Introduo12
Nazareth Cerqueira, o protagonista: delimitao e relevncia ...................................12
A vida de um policial militar: anlises interpretativas, ausncias e silenciamentos...15
Objetivos e problemtica central.................................................................................21
Biografar um policial: uma breve etnografia das fontes.............................................25
Plano de redao.........................................................................................................35
Captulo I - O assassinato do comandante: entre tragdias e memrias ..................43
O trgico fim de Nazareth Cerqueira ...........................................................................43
As tragdias cclicas .....................................................................................................48
A construo de um smbolo: algumas anlises interpretativas ...................................57
As memrias policiais ..................................................................................................64
Captulo II - O policial ...................................................................................................83
O negro que correu para a polcia ................................................................................83
O oficial e o seu tempo: caminhos possveis do fazer polcia...................................92
A Polcia Militar e a Guerra Fria .................................................................................99
Nova capital, nova polcia, novos percursos ..............................................................107
1964: trajetrias e rupturas polticas ..........................................................................116
As primeiras reflexes tericas: Cerqueira em tempos sombrios ..............................130
Oficial PM e militncia docente .................................................................................139
Captulo III - O comandante-geral .............................................................................155
A alta hierarquia e a construo da persona pblica ..................................................155
A redemocratizao brasileira e a eleio de Brizola: rumo ao comando da PMERJ.167
Nazareth Cerqueira: um comandante policial moreno? ..........................................186
A ditadura e as polcias militares ................................................................................196
As possibilidades de uma nova poltica de segurana pblica ................................215
Captulo IV - Plano Diretor da PMERJ: o manual reformista ...............................227
A estratgia de um Plano Diretor ...............................................................................227
11
Os ajustes no plano: redemocratizao e instabilidade poltica ..............................241
1986: a reorientao do Plano Diretor da PMERJ ..................................................255
Captulo V - A polcia o pblico e o pblico a polcia: o policiamento comunitrio
no Rio de Janeiro ........................................................................................................290
Primeiro comando da PMERJ (1983-1987): experimentos e incertezas ..................290
Os primeiros programas do policiamento comunitrio ............................................294
Cidade e segurana: os desafios da ordem pblica ..................................................298
A derrota do projeto pedetista nas urnas em 1986 ...................................................309
Segundo comando da PMERJ (1991-1995): certezas e radicalismos ......................323
Os programas de policiamento comunitrio na dcada de 1990 ..............................331
Repensar a PMERJ: o comando de Cerqueira e o campo acadmico ......................341
A derrota final da poltica reformista ou o futuro de uma iluso ..........................352
Captulo VI - O intelectual .........................................................................................370
O intelectual amador..................................................................................................370
O percurso do pensamento criminolgico crtico......................................................386
A polcia e as anlises acadmicas da dcada de 1990..............................................394
A criminologia crtica de Cerqueira: criminalidade da polcia e direitos humanos...402
Um novo final? ..........................................................................................................421
Consideraes finais ....................................................................................................426
Anexos ..........................................................................................................................440
Fontes e Bibliografia ...................................................................................................444
12
INTRODUO
Entendo que o setor pblico deve definir uma
poltica de segurana pblica comprometida com
os valores da dignidade humana, onde deve ficar
delimitado o papel e a responsabilidade dos
diferentes setores com a execuo e o controle,
cabendo ao administrador policial organizar as
suas diretrizes de acordo com essa orientao
poltica. (Carlos Magno Nazareth Cerqueira)1
Nazareth Cerqueira, o protagonista: delimitao e relevncia
Com essas palavras, aos 61 anos de idade, o coronel reformado e ex-comandante
geral da Polcia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) Carlos Magno Nazareth Cerqueira
conclua um de seus ltimos textos. A referida frase sintetiza sua trajetria pblica. Mas,
afinal, quem ter sido esse sujeito que, no final do sculo XX, acreditava na orientao
poltica da segurana pblica comprometida com os valores da dignidade humana?
Partindo dessa indagao central, minha tese prope uma biografia intelectual do
coronel Nazareth Cerqueira. Privilegiando o perodo de maior alcance poltico das suas
propostas no campo da segurana pblica em especial, das reformas institucionais na
PMERJ , o presente trabalho cobre o perodo compreendido entre os anos de 1983/87 e
1991/95. Tal recorte temporal corresponde s gestes de Cerqueira frente da Secretaria
de Polcia Militar nos dois mandatos do governador Leonel Brizola no Rio de Janeiro.2
Nesse perodo, o oficial Cerqueira geriu a PMERJ, tornando-se um ator privilegiado na
discusso e consecuo de polticas de policiamento renovadas.3
1 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Outros aspectos da criminalidade da polcia. In CERQUEIRA,
Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma iluso: o sonho de uma nova polcia. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 2001, p. 159. Publicado tambm na Revista Discursos Sediciosos crime, direito e sociedade. Rio
de Janeiro, Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, ano 3, n 5/6, 1 e 2 semestres de 1998. 2 Cerqueira ingressou na PM em 1954 e nela permaneceu por quase 40 anos, sendo duas vezes comandante-
geral da corporao: de 18 de fevereiro de 1983 a 15 de maro de 1987 e, novamente, de 15 de maro de
1991 a 1 de janeiro de 1995. 3 O conceito de policiamento a tentativa de manter a segurana por meio da vigilncia e ameaa de sano,
implicando o conjunto de atividades cujo objetivo preservar a segurana de uma ordem social particular
ou da ordem em geral. Enquanto o policiamento pode ser universal, a polcia, como corporao
especializada de pessoas a quem foi dada a responsabilidade bsica formal da fora legtima para
salvaguardar a segurana, um trao que s existe em sociedades relativamente complexas. Em si, a polcia
desenvolveu-se como uma instituio chave das sociedades modernas, sendo um dos aspectos do
surgimento das modernas formas de Estado. Isso no quer dizer, no entanto, que eles tenham sido meras
13
Apesar de produo terica anterior, foi nos dois governos pedetistas que Cerqueira
ganhou visibilidade como gestor pblico e figura poltica relevante4. Cerqueira liderou
por oito anos no consecutivos uma instituio de grande impacto poltico-estratgico
para os assuntos do Estado em pleno processo de reforma poltica e procurou materializar
suas reflexes em programas ligados, principalmente, ao chamado policiamento
ostensivo. Portanto, o objetivo mais amplo da tese a anlise, de corte biogrfico, da
trajetria profissional do coronel Cerqueira, com destaque para suas ideias e projetos com
vistas reforma da atividade policial-militar na histria fluminense recente.
Com um perfil profissional dedicado reflexo terica acerca da atividade policial
e como secretrio de Estado, Cerqueira se preocupou e se envolveu, sobretudo, com a
questo poltica. Portanto, a tese estruturada levando em conta as novas abordagens da
histria poltica e da histria intelectual. Com a ampliao da noo do poltico, no campo
historiogrfico, penso a poltica tambm no sentido de cultura, em que importam crenas,
ideias e tradies que do significado vida poltica em determinado contexto histrico.5
A histria poltica renovada incorporou para a pesquisa histrica os perodos mais
prximos objetos de uma histria do tempo presente que eram tratados
anteriormente por outras disciplinas. Assim, tal abordagem passou a ser entendida no
apenas como voltada para um perodo cronolgico recente, mas igualmente como a
resultante de uma demanda social que busca uma interpretao histrica para os eventos
com que cada vez mais intensamente se convive.6 Para Angela de Castro Gomes, o valor
dos acontecimentos polticos deve ser resgatado pelo analista, numa dialtica entre
memria-histria cada vez mais considerada e praticada nos estudos poltico-culturais.7
ferramentas do Estado executando devotadamente tarefas determinadas de cima. Ver REINER, Robert. A
poltica da polcia. So Paulo: EDUSP, 2004, p. 22-27. 4 Conceito explorado in MOISS, Jos lvaro e ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Dilemas da
consolidao da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 124. 5 O poltico passou a ser considerado a instncia mais favorvel para perceber a histria total de uma
coletividade. Renunciou-se ideia de que o relevante era o oculto e, ao contrrio, se proclamou o estudo
do explcito, do manifesto. In BORGES, Vavy Pacheco. Histria e Poltica: laos permanentes. In Revista
Brasileira de Histria. So Paulo, vol. 12, n 23/24, 1991, p. 15. 6 GOMES, Angela de Castro. Poltica: histria, cincia, cultura etc.. In Revista Estudos Histricos, Rio
de Janeiro, n. 17, 1996, p. 80. A dcada voltou a ser uma baliza valiosa, na avaliao de Sirinelli. In
SIRINELLI, Jean-Franois. Os intelectuais. In RMOND, Ren (org.). Por uma histria poltica. Rio de
Janeiro: FGV, 2003, p. 239. Tambm orienta a tese a colocao de Maria Paula Nascimento Arajo: de
uma forma geral, a literatura sobre a esquerda brasileira procurou privilegiar dois temas: a histria do PCB
e da luta armada. Dessa maneira, a experincia dos anos 1970 e 80 da resistncia ditadura e do processo
de redemocratizao ainda pouco abordada. In ARAJO, Maria Paula Nascimento. Por uma histria
da esquerda brasileira. In Revista Topoi, n 5, Sete Letras, 2002, p. 349. 7 GOMES, Angela de Castro. Poltica: histria, cincia, cultura etc.. Op. cit., p. 63.
14
Recentemente, ganhou corpo a anlise do discurso poltico, numa preocupao com
a historicidade dos temas. Ao longo do sculo XX, assistiu-se a imploso da concepo
meramente representacional das ideias. A histria intelectual remete a textos abrangentes,
uma vez que ela inclui as crenas no-articuladas, opinies amorfas, alm das ideias
formalizadas. Preocupa-se com a articulao desses temas s suas condies externas e
visa inserir o estudo das ideias e atitudes no conjunto das prticas sociais. A partir de
ento, muitos estudos passaram a se dedicar ao pensamento poltico-social, designao
que une a histria poltica histria intelectual.8 Deste modo, a nfase sobres os
pensadores sociais passou a se destacar na chamada biografia intelectual, um gnero
que floresceu nos Estados Unidos enquanto recuava na Europa.9
Contudo, a tese no pretende contar a histria temporal de uma vida de modo linear
e cronologicamente orientado. Para Giovanni Levi, seguindo uma tradio biogrfica
estabelecida e a prpria narrativa da disciplina histrica, geralmente contentamo-nos com
modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estvel,
aes sem inrcia e decises sem incertezas.10 Nesse sentido, Pierre Bourdieu falou
acertadamente da iluso biogrfica, considerando que era indispensvel reconstruir o
contexto, a superfcie social em que age o indivduo, numa pluralidade de campos, a
cada instante.11 Assim sendo, valho-me do contexto no somente para preencher
possveis lacunas documentais muitas vezes comuns nos estudos biogrficos, mas busco
compreender sobre que sistema de valores, sobre que concepes e com quais
referncias Nazareth Cerqueira moldou o conjunto de ideias polticas que o orientaram
ao longo da vida.12 No limite, pretendo entender como o destino individual do coronel
Cerqueira atuou nesse mesmo contexto. Nas palavras de Franois Dosse, a emergncia
8 GOMES, Angela de Castro. Poltica: histria, cincia, cultura etc.. Op. cit., p. 67. 9 FALCON, Francisco. Histria das ideias. In CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domnios da Histria Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 117. 10 Seguindo a tipologia biografia e contexto, proposta por Levi, a poca, o meio e a ambincia so
valorizados como fatores capazes de caracterizar uma atmosfera que explicaria a singularidade das
trajetrias. No se trata de reduzir as condutas a comportamentos-tipos, mas de interpretar as vicissitudes
biogrficas luz de um contexto que as torne possveis. Essa utilizao repousa sobre uma hiptese:
qualquer que seja a sua originalidade aparente, uma vida no pode ser compreendida unicamente atravs
de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrrio, num contexto histrico que a justifica. Ver LEVI,
Giovanni. Usos da biografia. In AMADO, Janana e FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). Usos e
abusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 175. 11 Idem, p. 169. Bourdieu prope a noo de trajetria como uma srie de posies sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente num espao, estando sujeito a permanentes transformaes. Bourdieu
afirma que falar em histria de vida pelo menos pressupor que a vida uma histria e que, uma vida
inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existncia individual concebida como uma
histria e o relato dessa histria. In BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In idem, p. 190. 12 DOSSE, Franois. O desafio biogrfico: escrever uma vida. So Paulo: Edusp, 2009, p. 104.
15
de um si, que j no um eu devido s alteraes provenientes de sua relao com o outro
e de sua travessia do tempo, oferece um meio de sair da iluso biogrfica denunciada
pela sociologia bourdieusiana.13 Dessa forma, o destaque da tese sero as ideias de
Nazareth Cerqueira; porm, acredito que uma reflexo sobre o homem, o oficial PM e o
comandante tambm ser de suma importncia.
A vida de um policial militar: anlises interpretativas, ausncias e silenciamentos
A partir de tais balizas terico-metodolgicas, entendo que, ainda hoje, os textos do
coronel Nazareth Cerqueira e documentos produzidos pela sua gesto so referncia para
a instituio policial-militar do Rio de janeiro e tambm de outros estados brasileiros.
Continuam sendo lidos, comentados, lembrados, mas, a meu ver, ainda no detidamente
analisados. Chama a ateno, ainda, o fato de algumas obras das cincias sociais sobre o
perodo da redemocratizao fluminense no analisarem profundamente sua atuao
como comandante da PMERJ e, muitas vezes, sequer o citarem.14 De maneira geral, as
referncias a esse personagem apresentam-se de forma indireta e quase sempre pensadas
a partir da figura poltica de Leonel Brizola e do chamado brizolismo15 ou, ainda,
da dimenso da gesto pblica da segurana. Nesses estudos, no se destaca devidamente
suas reflexes, tampouco a centralidade do coronel como sujeito histrico inserido no
relevante debate sobre polticas pblicas de segurana.
O que, de fato, j existe uma restrita bibliografia que trata da trajetria de Nazareth
Cerqueira enquanto comandante-geral da PMERJ de forma marcadamente
13 Idem, p. 408. 14 Coimbra, por exemplo, assinala que todos os governos fluminenses, desde a primeira eleio direta para
governador, tm se pautado at hoje, por forte apelo contra a violncia, trazendo solues mgicas para a
questo da segurana pblica. COIMBRA, Ceclia. Operao Rio: o mito das classes perigosas. Rio de
Janeiro/Niteri: Oficina do Autor/ Intertexto, 2001, p. 125. Para Edmundo Coelho, necessrio haver a
disposio poltica de enfrentar o problema das altas taxas de criminalidade atravs de medidas preventivas
e repressivas, o que no ocorreu no Rio de Janeiro entre 1983 e 1986. O governo do estado dedicou
segurana pblica escassa ateno, se tanto. A ao policial foi seriamente comprometida por questes (e
argumentos) de natureza poltico-ideolgica. Citado in COELHO, Magda Prates (org.). A oficina do diabo
e outros estudos sobre criminalidade (Edmundo Campos Coelho). Rio de Janeiro, Record, 2005, p. 371.
Segundo Peralva, a criminalidade era vista como problema social, e s polticas de mdio e longo prazo,
capazes de reduzir as desigualdades, poderiam aportar uma soluo definitiva para o problema. Esse
discurso entrou em choque com a sensibilidade predominante no seio do aparelho policial, ao mesmo tempo
que as condies gerais da transio crise econmica, continuidade autoritria em nvel federal de fato
impediam que os governadores recm-eleitos dispusessem de meios para o exerccio de suas polticas.
PERALVA, Angelina. Violncia e democracia: o paradoxo brasileiro. So Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 81.
A meu ver, geralmente negligencia-se uma anlise mais apurada sobre a atuao do comandante Cerqueira. 15 Mesmo em obras em que, finalmente, o coronel citado, suas reflexes e projetos no experimentam um
exame mais apurado. Cito, como exemplo, o relevante livro de SENTO-S, Joo Trajano. Brizolismo:
estetizao da poltica e carisma. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
16
memorialstica.16 Entretanto, so dignas de nota as primeiras obras em que as anlises
sobre a poltica de segurana pblica no Rio de Janeiro passam a incorporar a figura de
Cerqueira e de seus projetos com algum destaque.
Na dcada de 1990, caracterizada por muitos como a poca da decadncia do Rio,
houve esforos na busca de alternativas para o aumento dramtico do fenmeno criminal.
Foi importante a pesquisa realizada pelo Instituto Superior de Estudos da Religio (Iser),
da qual resultou o livro Violncia e poltica no Rio de Janeiro.17 A inteno era oferecer
novas reflexes para o debate que, segundo os autores, apresentava um carter
homogeneizante, tendendo a construir uma imagem de Brizola, de seu vice Nilo Batista
e de sua poltica de segurana como conivente com o crime e populista.18 A obra se
inseria em novas perspectivas acadmicas que partiam de observaes empricas, que
defendiam certa autonomia no fenmeno do crime, sem vincul-lo diretamente s
condies socioeconmicas. A nfase dos estudos se dava nas chamadas redes
criminais, analisando a violncia como uma relao capaz de articular amplos segmentos
sociais. Avanou-se na distino entre pobreza e criminalidade, evitando estigmatizaes,
abordando o problema em toda a sua complexidade. A ideia de que o crime era apenas
uma das formas da luta de classes no era mais o principal fundamento terico. Pesquisas
indicavam que os pobres eram as principais vtimas da criminalidade violenta, seja pela
ao policial ou dos delinquentes. 19
16 Destaco as anlises interpretativas: CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma iluso: o
sonho de uma nova polcia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001; NOBRE, Carlos. Coronel Nazareth
Cerqueira: um exemplo de ascenso negra na Polcia Militar do Rio de Janeiro publicado no X Congresso
da Associao Latino-Americana de Estudos Afro-Asiticos, Universidade Candido Mendes, Rio de
Janeiro, 2002. In bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/nobre.rtf e LEAL, Ana Beatriz, PEREIRA,
bis Silva e MUNTEAL FILHO, Oswaldo (orgs.). Sonho de uma polcia cidad: Coronel Carlos Magno
Nazareth Cerqueira. Rio de Janeiro: NIBRAHC, 2010. 17 SOARES, Luiz Eduardo (org.). Violncia e Poltica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume
Dumar/ISER, 1996. 18 Idem, p. 260. Sobre o deslocamento do conceito estigmatizante de populismo da linguagem acadmica
para o vocabulrio da mdia e da populao, ver GOMES, Angela de Castro. O populismo e as cincias
sociais no Brasil: notas sobre a trajetria de um conceito. In FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua
histria: debate e crtica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p. 21. Para Peralva, incapaz de
empreender uma verdadeira reforma da instituio, a autoridade de Brizola esvaiu-se rapidamente em face
de uma polcia que se decompunha e escapava cada vez mais a qualquer controle, fazendo recair ao mesmo
tempo sobre a pessoa do governador a responsabilidade pelo crescimento da criminalidade no estado. Essa
situao se tornou ainda mais problemtica em razo da virada populista assumida pela poltica de Brizola,
acusado de comprometimento com o crime. PERALVA, Angelina. Op. cit., p. 81. 19 Podem ser destacadas vises sobre os aspectos simblicos da violncia na vasta obra de Alba Zaluar e
Gilberto Velho, alm da abordagem de conceitos sobre cidadania e violncia na relao entre favelas e
asfalto. Aponto tambm a obra CARVALHO, Maria Alice R. Quatro Vezes Cidade. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1994. Para uma anlise bibliogrfica mais ampla ver DORNELLES, Joo Ricardo W. Conflito e
segurana. Entre pombos e falces. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 10.
17
Nesse livro, os autores analisam as tentativas de reforma na corporao policial
militar fluminense e, enfim, do destaque atuao do comandante Nazareth Cerqueira.
Entretanto, para Luiz Eduardo Soares, houve esforos de modernizao e moralizao da
PMERJ, graas liderana aberta, honesta e inteligente de seu comandante geral, mas
o governo ainda acreditava que a criminalidade era sintoma dos males sociais e
econmicos. E o sintoma no merece ateno. O autor defende o mrito de Brizola ao
cercar-se de profissionais cuja biografia atestava compromissos com mudanas
civilizatrias na rea de segurana, como Cerqueira, mas no teria investido recursos
necessrios para que as mudanas superassem as intervenes tpicas.20 Ele reconhece
que o coronel introduziu o policiamento comunitrio no Brasil e deu incio renovao
da cultura institucional da Polcia Militar, em 1983. Mas, para Soares, infelizmente, as
orientaes se revezaram, o apoio da sociedade por vezes lhe faltou e as contradies se
multiplicaram. Ele tinha a conscincia de que a corporao que idealizava, em seus
projetos pioneiros, ainda estava muito longe de se tornar realidade.21
Entretanto, o antroplogo, em outras obras, reforava a perspectiva de que as
foras situadas esquerda do espectro poltico no teriam sabido enfrentar o problema da
criminalidade, desde as eleies estaduais de 1982, pois fecharam os olhos para a
existncia da segurana pblica como problema-chave, assumindo responsabilidades
de governo sem uma poltica alternativa, positiva e construtiva, sem projeto, sem
capacidade de planejar e avaliar. Portanto, sem uma reflexo amadurecida sobre
segurana e na ausncia de poltica houve sucessivos fracassos.22 Dessa forma,
ganhou espao, em parte do campo acadmico, a ideia de absentesmo brizolista.23
As anlises de Luiz Eduardo Soares, a despeito de sua lucidez acadmica e do seu
compromisso tico, associam a poltica de segurana dos governos Brizola a uma
20 SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurana pblica no Rio de
Janeiro. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 110 e 111. Nilo Batista diz, em entrevista concedida
em 2001 ao historiador Srgio Lamaro (no Projeto Histria administrativa do RJ), se orgulhar de ter
prendido poucos adolescentes infratores, evitando o encarceramento desesperanado. 21 SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general... Op. cit., p. 377. 22 SOARES, Luiz Eduardo. Segurana municipal: sugestes para uma agenda mnima. In SENTO-S,
Joo Trajano (org.). Preveno da violncia: o papel das cidades. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
2005, p. 26. 23 Segundo avaliao de Sento S, seria possvel afirmar que ao longo dos seus 25 anos de existncia o
estado do Rio de Janeiro foi o cenrio de vrias polticas de segurana pblica 25, talvez , como se pode
constatar que jamais houve poltica de segurana para o estado. Caso as duas alternativas no sejam
equivalentes, tenderamos a ficar com a segunda opo, a despeito das iniciativas bem-intencionadas de
alguns atores polticos. In SENTO-S, Joo Trajano. Azules e treme-terra: 25 polticas pblicas de
segurana e o novo estado do Rio de Janeiro. In FREIRE, Amrico, SARMENTO, Carlos Eduardo e
MOTTA, Marly Silva da (orgs.). Um estado em questo: os 25 anos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
FGV, 2001, p. 166.
18
tendncia das esquerdas brasileiras ao reducionismo analtico to tpico no contexto da
redemocratizao: a associao simplista entre crime e pobreza. Importante destacar,
frente s anlises do antroplogo, que Soares fala tambm de um lugar especfico, uma
vez que ocupou, no final da dcada de 1990, a importante funo de gestor pblico da
segurana no Rio de Janeiro.
Entretanto, contextualizando, principalmente, suas ideias e seus programas, minha
tese entende que, apesar de notrios fracassos, esse resgate de grande relevncia para
a discusso sobre a construo de polticas de segurana pblica numa perspectiva
democrtica. Dessa forma, avalio que tais referncias analticas so tambm
comprometidas por certos silenciamentos e ausncias, ainda marcantes, na construo
narrativa sobre a segurana pblica e, em particular, sobre a histrica atuao das agncias
policiais brasileiras. Isto se deve, a meu ver, a uma constelao de fatores.
Apesar dos avanos nas reflexes sobre criminalidade e segurana pblica no Rio
de Janeiro, a Polcia Militar stricto sensu , ainda, um campo pouco frequentado pela
historiografia brasileira.24 Somente, a partir dos anos 1990 os estudos historiogrficos que
trata da polcia se intensificou.25 Ao final dessa dcada, Jaqueline Muniz apontava, em
sua tese de doutorado Ser policial , sobretudo, uma razo de ser26 em que refletiu,
especificamente, sobre aspectos do cotidiano da Polcia Militar para um certo
amadurecimento acadmico que incorporou o tema polcia s reflexes sobre o campo
da segurana pblica.27
24 NETO, Paulo Mesquita. Violncia policial no Brasil: abordagens tericas e prticas de controle. In
PANDOLFI, Dulce Chaves, CARVALHO, Jos Murilo de, CARNEIRO, Leandro Piquet e GRYNSZPAN,
Mrio (orgs.). Cidadania, justia e violncia. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 139. 25 Na rea das cincias sociais brasileiras, a produo bibliogrfica sobre as polcias ainda escassa. Ver
KANT DE LIMA, Roberto, MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violncia,
Criminalidade, Segurana Pblica e Justia Criminal no Brasil: uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n
50, 2000. Mesmo no mbito internacional, tal problemtica no possui um grande nmero de produes
sobre o tema, a no ser as produes dos anos noventa, como aponta David Bayley, pois h um certo descaso
e falta de reconhecimento por parte da academia em relao a esse assunto. Sendo lembrada somente
quando protagoniza, ou mesmo atua como coadjuvante, em acontecimentos poltico-histricos e, em geral,
enquanto agente repressor. O mais curioso, segundo Bayley, a falta de reconhecimento assolar at mesmo
os cientistas polticos, visto que Weber j afirmava que o Estado moderno tem como caracterstica
fundamental o monoplio do uso legtimo da fora fsica no interior de determinado territrio. Citado in
TOIGO, Marceu Dornelles. Polcia como objeto de estudo: onde est o reconhecimento acadmico?.
Disponvel no site da Revista Espao Acadmico, ano III, n 25, 2003. In
http://www.espacoacademico.com.br/025/25ctoigo.htm. Acessado em 13 de agosto de 2013. Ver
BAYLEY, David. Padres de Policiamento. So Paulo: Edusp, 2001, p. 269. Merece destaque, entretanto,
os trabalhos, no Brasil, de Roberto Kant de Lima, Jaqueline Muniz e Ignacio Cano. 26 MUNIZ, Jacqueline. Ser policial , sobretudo, uma razo de ser: cultura e cotidiano da Polcia Militar
do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Cincia Poltica. IUPERJ, 1999. 27 Idem, p. 8. Muniz problematizou o chamado mandato policial, analisando um aspecto central: a tenso
entre os determinantes legais e as necessidades operacionais derivadas da misso de preservar a ordem
pblica. Preocupada com o fazer ostensivo da polcia, a autora, por meio de uma etnografia policial,
19
Entretanto, estudiosos se debruaram sobre as instituies responsveis pela polcia
criadas na cidade do Rio de Janeiro, desde a chegada da Corte portuguesa, ainda no sculo
XIX tendncia inaugurada pela obra Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia
em uma cidade do sculo XIX, de Thomas Holloway.28 As anlises, geralmente, tomam
como ponto de partida a Intendncia Geral da Polcia. Tais estudos entendem o trabalho
policial, desde sua criao, como agente controlador das desordens urbanas e da
criminalidade. Assim, diante das necessidades do nascente Estado brasileiro, as elites
teriam se concentrado nas tarefas imediatas de manter obedientes e ordeiras as massas
oprimidas de escravos e homens livres pobres. Dessa forma, perpetuaria a violncia
estrutural a represso contnua contra as classes populares.29
Por esse caminho as instituies da justia criminal possuam um papel central na
definio das formas do Estado brasileiro e ainda que sejam objeto de ateno
passageira, so melhor reconhecidas como o instrumento do controle do que como uma
pea do sistema cuja montagem exigiria uma operao de alguma complexidade, garante
Marcos Bretas.30 No ano de 1997, o mesmo historiador publicou sua dissertao de
mestrado intitulada A Guerra das Ruas. Povo e Polcia na cidade do Rio de Janeiro31.
Segundo o autor, a historiografia recente brasileira teria pautado suas anlises, em parte,
aponta para a dificuldade cotidiana de conciliar, em ambientes ordenados pelo acaso, incerteza e risco, os
princpios da legalidade e legitimidade que conformam a vigncia do estado de direito. Como hiptese
central, Muniz destaca as tenses inerentes ao emprego das chamadas foras comedidas: um ato que
pressupe o emprego da fora ou a sua ameaa e que seja, a um s tempo, produtivo, legal e legtimo. Na
sua avaliao, o desconhecimento dessas tenses nas atividades de polcia e a ausncia, no Brasil, de um
acervo consistente e disponvel de reflexes sobre o estado da arte dos meios de fora policiais tm
contribudo para a cristalizao de falsas oposies tais como operacionalidade policial x direitos
humanos ou polcia x direitos civis. In idem, p. 21-22. 28 Holloway considerado o principal estudioso do aparelho policial do sculo XIX e suas implicaes para
ordem colonial. Segundo ele, a PM criada, em 1809, tendo como modelo a polcia portuguesa, alm de
controlar a segurana pessoal e coletiva, era responsvel pelas obras pblicas e pelo abastecimento da
cidade. Tambm inclua na sua pauta de ao a vigilncia da populao, a investigao de crimes e a captura
de criminosos. In COTTA, Francis Albert. Olhares sobre a polcia no Brasil: a construo da ordem
imperial numa sociedade mestia. Revista de Histria e Estudos Culturais, ano VI, n 2, vol. 6, 2009, p.
9. Ver HOLLOWAY, Thomas H. Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia em uma cidade do
sculo XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997. 29 LEEDS, Elizabeth. Cocana e poderes paralelos na periferia urbana brasileira: ameaas democratizao
em nvel local. In ZALUAR, Alba e ALVITO, Marcos (orgs.). Um sculo de favela. Rio de Janeiro: FGV,
1998, p. 235. 30 BRETAS, Marcos. A Polcia carioca no Imprio. In Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol.
12, n 22, 1998, p. 221. Para Bretas, se realmente existem assuntos impenetrveis ao exame do historiador,
o policiamento das classes superiores da sociedade um srio candidato. Desde a criao das modernas
corporaes policiais, presume-se que as classes superiores devem ser protegidas e no policiadas. Isso no
quer dizer que os respeitveis no pratiquem delitos, mas que a maioria de suas transgresses fogem aos
procedimentos tradicionais da polcia. Citado in BRETAS, Marcos. Observaes sobre a falncia dos
modelos policiais. Tempo Social. So Paulo: Revista de Sociologia da USP, vol. 9, n 1, 1997, p. 84. 31 BRETAS, Marcos. A Guerra das Ruas. Povo e Polcia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional/Ministrio da Justia, 1997.
20
por uma leitura marxista sobre a burocracia policial moderna, principalmente os estudos
desenvolvidos no final da dcada de 1970. Ele observa que o tema polcia teria sido
sistematicamente inserido como um apndice histria das classes populares e do
movimento operrio, sobre o qual a polcia estendia sua implacvel represso.32
De acordo com Muniz, tratava-se de um modismo universitrio da poca que
impelia os pesquisadores a darem a sua contribuio para a luta contra o regime militar,
engajando-se em uma viso crtica e comprometida com as causas populares. Tais
pressupostos caminhariam no sentido de demonstrar o papel dos mecanismos de
represso e controle estatais na construo dialtica da classe trabalhadora no Brasil desde
os tempos da escravido, tomando como monoltica a relao do governo com os seus
meios de fora, e destes ltimos com a populao.33 As polcias seriam mencionadas,
portanto, no contexto das chamadas resistncias populares. As referncias, em muitos
textos acadmicos, apontariam para o cumprimento das estratgias violentas de
domesticao concebidas por outros atores a burguesia e a elite agrria brasileiras.
Segundo Muniz, tudo se passa como se o mundo das ruas dramatizasse, atravs da
oposio polcia versus populao, um roteiro j escrito da luta de classes.34
Assim, no campo da historiografia, Bretas ressalta que tais estudos sobre a polcia
eram quase sempre incapazes de recuperar as dimenses cotidianas da atividade
policial. Portanto, o pesquisador reivindicou a necessidade de se construir uma histria
que analisasse o policial e suas relaes cotidianas.35 O comportamento do policial seria
orientado tanto por cdigos previamente definidos quanto por aes baseadas na sua viso
dos eventos e de sua insero no meio social em que vive.36
Seguindo essa perspectiva, Muniz, lembra que seriam raras as anlises histricas
que tm se ocupado em tentar resgatar os aspectos cotidianos das atividades de polcia,
como as interaes dos policiais e as pessoas nas tarefas rotineiras de patrulhamento ou
32 Idem, p. 32. 33 MUNIZ, Jacqueline. Op. cit., p. 43. Dentre os estudos histricos que se orientaram por esta perspectiva
ver, por exemplo, NEDER, Gislene. A Polcia na Corte e no Distrito Federal 1831-1930. Rio de Janeiro:
PUC-RJ, 1981. 34 MUNIZ, Jacqueline. Op. cit., p. 44. 35 Para Bretas, seria proveitoso uma passagem do estudo da polcia para o estudo do policial. aqui que
se estruturam os significados que conformam a ao policial, em grande parte independendo de estruturas
organizacionais, tantas vezes reformadas sem alcanar resultados efetivos. BRETAS, Marcos.
Observaes sobre a falncia dos modelos policiais. Op. cit., p. 81. 36 Bretas tambm acredita que os estudos sobre as instituies policiais devem focalizar as questes
referentes cultura e mentalidade policial, visto que possvel traar como se relacionam caractersticas
mais ou menos comuns no imaginrio e nas aes desenvolvidas cotidianamente pelos membros destas
instituies em vrios pases. In BRETAS, Marcos. Observaes... Op. cit., p. 81.
21
ainda nas contingncias surgidas das ruas.37 Para a autora, at recentemente, no era
comum encontrar abordagens que faam aparecer os policiais como sujeitos de suas
aes ou que se mostram capazes de descrev-los como atores que interpretam e decidem
sobre as atribuies registradas nas leis e nas regulamentaes institucionais. Assim, os
policiais seriam apresentados como seres desprovidos de um saber prprio, de uma viso
singular sobre o seu lugar no mundo. Em suma, os policiais aparecem apassivados
diante de um jogo do poder mais essencial que a eles s caberia executar.38
Objetivos e problemtica central
Em consonncia com tais perspectivas, minha tese procura oferecer uma reflexo
que encare a Polcia Militar como uma instituio formada por atores com interesses
prprios, capazes de participar da definio de seus poderes e atribuies, construindo
seu saber especfico sobre como controlar o espao urbano.39 Privilegiando, entretanto,
outra temporalidade, desejo contribuir para esse campo historiogrfico, atento ao alerta
de Bretas: quando se fala em polcia, trabalhamos normalmente com uma ideia geral,
sem que se discuta o que existe de especfico. Para o historiador, proclama-se sua
falncia, com grande dificuldade em se pensar alternativas, na medida em que a ideia
genrica permanece.40
O fato que, quando muitas pessoas pensam em segurana pblica, geralmente
associam a ideia atuao da polcia. Entretanto, o policiamento ostensivo apenas um
dos pilares do complexo sistema criminal, porm, o mais visvel pela populao.41
Afinal, como destacou Sento-S, a polcia que torna essa inveno to abstrata, o
Estado Moderno, algo concreto.42
Deste modo, entendo que, se encararmos a polcia militar como instituio
integrante dos aparelhos de dominao estatal a servio exclusivo das classes dominantes,
segundo certas perspectivas, no haveria qualquer sentido estud-la como uma realidade
37 MUNIZ, Jacqueline. Op. cit., p. 44. 38 Idem, p. 45. 39 BRETAS, Marcos Luiz. A Guerra das Ruas. Op. cit., p. 28. 40 Idem, p. 80. 41 Poucos problemas sociais mobilizam tanto a opinio pblica como a criminalidade e a violncia. No
para menos. Este um daqueles problemas que afeta toda a populao independentemente de classe, raa,
credo religioso, sexo ou estado civil. So consequncias que se refletem tanto no imaginrio cotidiano das
pessoas. O tema polcia ilustrativo dos percalos e vicissitudes que a segurana pblica enfrenta na
formulao de polticas nessa rea no Brasil. In BEATO, Cludio C. Polticas Pblicas de Segurana:
Equidade, Eficincia e Accountability. In http://www.observatorioseguranca.org/pdf/01%20(42).pdf, p. 1-
7. Acessado em 13 de janeiro de 2014. 42 SENTO-S, Joo Trajano. Azules e treme-terra... Op. cit., p. 183.
http://www.observatorioseguranca.org/pdf/01%20(42).pdf
22
em si mesma. Acredito, por outro lado, na trajetria do oficial PM Nazareth Cerqueira
como objeto de estudo para pensarmos, no limite, a relao entre Estado e sociedade na
histria recente do Brasil.43 Isto porque para se compreender o difcil caminho para a
conquista de um equilbrio entre o controle social e o respeito aos direitos prprios da
cidadania no Brasil que acaba por redefinir o papel das policias , torna-se necessria a
anlise da sua biografia profissional e intelectual.
Cerqueira foi responsvel pela produo de reflexes tericas que chamam a
ateno por sua atualidade. Portanto, suas ideias e seus projetos so fundamentais para a
compreenso das permanncias e transformaes no tratamento da segurana pblica.
Nessa perspectiva, a histria recente do Rio de Janeiro torna-se um campo de pesquisas
frtil para estudiosos de polticas pblicas que tratam da criminalidade.44 Entendo que,
para ns, historiadores, tais questes meream um olhar especfico, visto que a poltica
de manuteno da ordem pblica foi certamente uma das reas mais discutidas assim
como a poltica educacional e o ponto mais polmico das gestes de Leonel Brizola.45
Entretanto, pretendo realizar uma anlise que contribua para a historiografia
brasileira no que tange, especificamente, ao estudo das biografias intelectuais e, no
limite, da PMERJ, destacando a importncia da contribuio poltica e intelectual do
coronel e comandante Nazareth Cerqueira. Penso que o exame da sua experincia
profissional poder abrir, tambm, possibilidades de compreenso do percurso dessa
instituio bicentenria, notadamente, no contexto da redemocratizao brasileira.
O coronel Cerqueira fez parte, como sujeito histrico, de uma atmosfera poltica
marcada por oficiais PM progressistas sensveis emergncia dos movimentos sociais
populares. Acredito que sua trajetria profissional, suas ideias e projetos representativos
desse grupo especfico de policiais, que chamarei de reformistas46 questionam a
memorialstica simplificadora que associa as gestes da Polcia Militar violncia
estrutural, bem como corrupo e negligncia.
43 A redemocratizao restituiu muitos dos direitos da cidadania no Brasil. Entretanto, a maioria continuou
fora do alcance da proteo das leis e dos tribunais, sendo privadas de servios urbanos e de servios
de segurana e de justia. Os cidados simples se viram merc da polcia e de outros agentes da lei
que definem na prtica que direitos sero ou no respeitados. Para eles, existem os cdigos civil e penal,
mas aplicados de maneira parcial e incerta. Ver CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil: o
longo caminho. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2013, p. 210-216. 44 Como referncia cultural, os acontecimentos no Rio de Janeiro possuem uma grande repercusso e
afetam a imagem do pas inteiro. In CANO, Ignacio, SENTO-S, Joo Trajano, RIBEIRO, Eduardo e
SOUZA, Fernanda Fernandes de. O impacto da violncia no Rio de Janeiro. In LAB/UERJ, 2004, p. 2.
http://www.lav.uerj.br/docs/rel/2004/impacto_vio_rio_2004.pdf. Acessado em 12 de fevereiro de 2014. 45 SENTO-S, Joo Trajano. Brizolismo: estetizao da poltica e carisma. Op. cit., p. 287. 46 Essa definio ser discutida e aprofundada no captulo seguinte da tese.
http://www.lav.uerj.br/docs/rel/2004/impacto_vio_rio_2004.pdf
23
Dessa forma, a problemtica central da tese visa compreender como a cpula da
PMERJ, nos governos de Brizola, agiu no sentido de construir novas formas de controle
social, a partir do comando de um oficial ligado causa dos direitos individuais e aos
conceitos de preveno, legalidade e integrao comunitria. Defendo que esses
eixos estruturadores representaram avanos significativos na concepo de segurana
pblica, reconhecidos recentemente.47 Houve planejamento efetivo para a segurana
pblica do estado do Rio de Janeiro com a promoo de servios policiais antes
inexistentes e com a abordagem de problemticas at ento desconsideradas. Assim
sendo, pretendo demonstrar que a experincia de Cerqueira, acumulada em anos de
trabalho como oficial, sua atuao como comandante-geral e lder de um grupo de
oficiais progressistas , bem como seu dilogo com o campo poltico e acadmico
alargaram suas reflexes sobre segurana pblica, marcou a histria da PMERJ.
Contudo, h que se refletir sobre os desafios de um empreendimento historiogrfico
como este. Analisar a vida de um indivduo um caminho repleto de surpresas para o
historiador. Suas ideias, valores, opes e motivaes despertam, alm do interesse
analtico, a curiosidade de aproximar-se da experincia vivida. Permitem, ainda, a
oportunidade de tentar compreender como a vida de uma pessoa permite indagaes e
esclarecimentos sobre o contexto histrico de uma coletividade. Assim, os limites entre a
liberdade individual e a influncia contextual so chaves fundamentais e delimitam o
complexo e, ao mesmo tempo, interessante caminho da investigao biogrfica. O desafio
colocado parece ser o de narrar determinada vida, tentando selecionar eventos de um
percurso48 multifacetado, inserindo-a numa sequncia de fatos em direo a um futuro
que j se conhece de antemo. Deste modo, entendo que a biografia intelectual do coronel
Nazareth Cerqueira expressa certa combinao de acaso com aes direcionadas num
campo cheio de possibilidades ao mesmo tempo flexvel e determinado.49
47 As memrias sobre o coronel Nazareth Cerqueira ganharam fora com o controverso debate em torno
das Unidades de Polcia Pacificadora (UPPs) implementadas, a partir de 2008, no Rio de Janeiro. 48 Analisando a trajetria dos intelectuais, Sirinelli afirma que os percursos individuais so, na maioria das
vezes, complexos. Para o historiador, se os itinerrios desde j apresentam, com bastante frequncia,
srios problemas de reconstituio, ainda mais complexas so as questes de interpretao. Ora, as
trajetrias pedem naturalmente esclarecimento e balizamento, mas tambm e, sobretudo, interpretao. O
estudo dos itinerrios s pode ser um instrumento de investigao histrica se pagar esse preo. In
SIRINELLI, Jean-Franois. Os intelectuais. Op. cit., p. 247. 49 Por muito tempo, a fronteira que separa a biografia da histria sempre foi bastante imprecisa. Aps um
longo perodo de descrena, o indivduo voltou a ocupar um lugar central nas preocupaes dos
historiadores. Ver LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In REVEL, Jacques. Jogos de Escala:
a experincia da microanlise, Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 225. Dentre os mtodos ditos ultrapassados
de fazer histria, o mais estigmatizado foi a biografia. Na medida em que a historiografia privilegiava as
anlises de natureza econmica ou sociolgica, parecia arbitrrio, e mesmo perigoso, selecionar um
24
Optei por um personagem com rica trajetria, acreditando que ele seja capaz de
revelar muito de sua poca. Dando nfase sua vida pblica, meu trabalho parte de um
oficial da PMERJ para discutir a relao entre vida e obra, pensando como uma age sobre
a outra. Para Georges Duby, o indivduo , tanto quanto o acontecimento, revelador, por
tudo que desperta como declaraes, descries e ilustraes, pelas ondas que seus gestos
ou suas palavras pem em movimento ao seu redor.50 O objetivo desse estudo ,
portanto, o de demonstrar como a existncia inteira de um indivduo cabe numa de suas
obras, num de seus fatos [e] como, nessa existncia, insere-se uma poca inteira.51
Na presente tese, entendo que os objetivos do comandante Nazareth Cerqueira, no
sentido de implementar um novo modelo de polcia em um Estado democrtico, passavam
pelo campo das ideias. Ao formular projetos e publicar textos sobre as relaes entre
democracia, segurana pblica e atividade policial, Cerqueira se configurava no apenas
como um gestor de polcia, mas tambm como um intelectual.52 Entretanto, bom
lembrar que as ideias no passeiam nuas pela rua; que elas so levadas por homens que
pertencem eles prprios a conjuntos sociais.53 E a explorao do encontro entre a histria
intelectual e a dos intelectuais se far pela reinsero das suas ideias polticas no seu
ambiente sociocultural, e por sua recolocao num contexto histrico. A reconstituio
das diversas experincias de Nazareth Cerqueira servir para iluminar tais questes.54
indivduo dentro da massa de homens que fizeram e que fazem a histria. Mais grave ainda era admitir a
possibilidade de que essa histria de vida pudesse fornecer elementos de compreenso do todo social. Alm
disso, havia ainda o risco de o historiador se deixar envolver pelos sentimentos de seu biografado o que
lhe retiraria a capacidade crtica e o distanciamento indispensveis ao ofcio de pesquisador. MOTTA,
Marly Silva da. O relato biogrfico como fonte para a histria. Vidya, Santa Maria, n 34, 2000, p. 3. As
orientaes do chamado individualismo metodolgico nas cincias sociais e aquelas presentes no que se
tornou conhecido como uma nova histria poltica e cultural so os melhores exemplos dessa nova proposta
terica. quando os pesquisadores trabalham com a tenso entre as duas dimenses do individualismo
moderno afirmam a ideia de que o indivduo social e singular, tendo sempre escolhas, sendo um sujeito
ativo e no um objeto no qual se inscrevem desgnios de quaisquer foras. In GOMES, Angela de Castro.
Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 20. Para Adam Przeworski, possvel
estudar cientificamente o comportamento das escolhas individuais (percepo, avaliao e deciso) porque
os resultados podem ser previstos, dadas as condies e os objetivos. Dessa maneira, o individualismo
metodolgico explica os fenmenos coletivos a partir dos comportamentos individuais, das escolhas
realizadas, partindo do princpio de que uma sociedade no um sistema, e de que os fenmenos sociais
so o resultado de um aglomerado de comportamentos. Se os indivduos so modelados pelas sociedades,
eles manifestam preferncias que devem ser explicadas. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e
socialdemocracia. So Paulo, Cia das Letras, 1989, p. 115-117. 50 Citado em DUBY, Georges. Idade Mdia, Idade dos Homens. So Paulo: Cia. das Letras, 1989. 51 DOSSE, Franois. Op. cit., p. 11. 52 A forma como os cidados de um pas experimentam a poltica seus valores, sua memria coletiva e
suas expectativas pode dizer muito sobre a sociedade em que vivem e sobre o lugar que nela tm
ocupado os intelectuais. GOMES, Angela de Castro. Poltica: histria, cincia, cultura. Op. cit., p. 79. 53 Ver SIRINELLI, Jean Franois. Os intelectuais. Op. cit., p.246. 54 Acredito, portanto, que os intelectuais, como Cerqueira, continuaro sendo estudados, debatidos,
interpretados, em seus discursos e aes, como seres humanos que, para alm da extrema diversidade dos
contextos, das trajetrias e das propostas, voltam-se para uma questo bsica a da organizao poltica e
25
Com o entusiasmo pelas massas, a historiografia em reao abordagem
positivista confinou os intelectuais ao campo dos subobjetos da histria. Entretanto,
Ren Rmond, no contexto da renovao da histria poltica, acentuava que o
comportamento poltico dos intelectuais mereceria por si s um estudo.55 Dessa
maneira, percebo o comandante Cerqueira como um intelectual produtor de bens
simblicos, envolvido direta ou indiretamente na arena poltica.56 Dessa forma, meu
objeto de estudo tambm pode contribuir para a histria dos intelectuais, entendido como
um campo histrico autnomo, situado no cruzamento das histrias poltica, social e
cultural.
No por outro motivo que a literatura est repleta de tentativas de entender os
intelectuais, de decifrar suas relaes com as classes, o Estado e a poltica.57 Trata-se de
um debate repleto de indagaes. Creio que na vida pblica que podemos compreender
por que os intelectuais so representativos no apenas de um grupo social, mas de um
desempenho que lhes nico. Dessa maneira, todo intelectual, cujo ofcio seja articular e
representar ideias especficas, aspira fazer com que elas funcionem numa sociedade.
Assim, a tese procura pontuar em que medida a trajetria profissional e intelectual
do coronel Nazareth Cerqueira foi fundadora de um novo grupo, com novas vises sobre
as formas de controle social no Rio de Janeiro. Nesse sentido, creio que o percurso do
oficial Cerqueira ao posto do comando-geral da PMERJ, no contexto da redemocratizao
brasileira, desempenhando um papel poltico relevante, lhe abriu as portas do universo
historiogrfico.
Biografar um policial: uma breve etnografia das fontes
Apesar de no reservar um captulo sobre o espetculo da busca pelas fontes
conforme recomendou Marc Bloch58 -, acredito ser til ao leitor conhecer alguns passos
que a presente tese percorreu. Ao perceber a incipiente produo bibliogrfica sobre a
questo da segurana pblica e sobre as polcias brasileiras, em especial , fiz a minha
social da Cidade, e neste sentido preciso que se definem como intelectuais. In REIS, Daniel Aaro (org.).
Intelectuais, histria e poltica: sculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 7. 55 Citado in SIRINELLI, Jean-Franois. Os intelectuais. Op. cit., p. 231. 56 GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio... os intelectuais cariocas e o modernismo. In Estudos
Histricos, n. 11. Rio de Janeiro, FGV, 1999, p. 64. 57 Destaco os Cadernos do crcere de Gramsci, A traio dos intelectuais de Benda e Microfsica do poder
de Foucault. Ver definies in SAID, Edward W. Representaes do intelectual. As Conferncias Reith de
1993. So Paulo: Cia das Letras, 2005, p. 19-20. 58 Ver BLOCH, Marc. Apologia da histria, ou o ofcio do historiador. Obra citada in SOUZA, Adriana
Barreto de. Pesquisando em arquivos militares. In CASTRO, Celso e LEIRNER, Piero. Antropologia dos
militares: reflexes sobre pesquisas de campo. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 199.
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escolha. Percebi que essas temticas vinham sendo trabalhadas, h algum tempo, pela
Sociologia, Cincia Poltica, Antropologia e pelo Direito. Apesar de, em hiptese alguma,
negligenciar o dilogo interdisciplinar, passei a ter a convico de que ns, historiadores,
teramos contribuies a oferecer a esse debate acadmico.
O principal desafio estava em escolher por onde comear, tendo em vista a
impossibilidade de estudar, em curto espao de tempo, todas as instituies que compem
o sistema criminal brasileiro. Restou, ento, a pergunta: por que no recuperar uma
histria recente marcada pela trajetria de um personagem polmico com o qual guardava
alguma familiaridade desde os tempos da graduao em Histria? Por que no Leonel
Brizola e seus dois mandatos frente do executivo estadual fluminense?59
Assim, entrei em contato com a bibliografia referente questo da criminalidade
urbana e tive o primeiro contato com alguns programas relativos ao policiamento
desenvolvidos nas dcadas de 1980 e 90 no Rio de Janeiro. Nesse momento, a PMERJ
apareceu como a melhor opo para dar o primeiro passo, principalmente pelo fato de ser
a instituio pblica com muitos problemas visualmente identificados, porm pouco
estudada. Consequentemente, um dos principais responsveis por tal poltica de
segurana dos governos do PDT me pareceu um rico objeto de estudo: o coronel Nazareth
Cerqueira.
Ao ler as obras Meu casaco de general: 500 dias no front da segurana pblica no
Rio de Janeiro (2000) de Luiz Eduardo Soares e O futuro de uma iluso: o sonho de uma
nova polcia, lanado em 2001 e organizado por colaboradores diretos de Cerqueira no
Instituto Carioca de Criminologia (ICC)60 , fiquei impressionado com seu discurso que
articulava, de forma contundente, a questo da segurana pblica como um dos requisitos
para a conquista de liberdades democrticas no pas. Cerqueira assumiu o engajamento
poltico, naqueles tempos de transio poltica, quando colocava com clareza a
importncia de um polcia legalista e preventiva. Para tal, procurou incessantemente
desenvolver um campo de estudos e renovar as prticas policiais. Tentou superar tradies
arraigadas na mentalidade e na atividade policial militar, se arriscando, no momento
delicado da redemocratizao brasileira. Ele expressava poca o que, hoje, para muitas
59 Aqui, fao referncia s pesquisas desenvolvidas na graduao em que me dediquei a analisar o projeto
do trabalhismo radical, em torno da figura de Leonel Brizola, orientado pelo professor Dr. Jorge Ferreira. 60 Trata-se de uma organizao no governamental criada em outubro de 1995 e idealizada por Nazareth
Cerqueira e por Nilo Batista (advogado criminalista, secretrio no primeiro governo Brizola e vice-
governador na segunda gesto do PDT) a fim de aprofundar as pesquisas e estimular debates sobre a
temtica da segurana pblica, numa perspectiva interdisciplinar.
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pessoas ligadas a temtica da segurana pblica pode soar bvio. Portanto, chamou-me a
ateno seus paradigmas, o flego de suas ideias, mas tambm as poucas referncias
sua trajetria profissional. Fiquei particularmente chocado com a maneira como sua vida
foi interrompida: com um assassinato brutal cometido por outro policial no ano de 1999.
A partir do ano de 2012, comecei a desenvolver efetivamente meu trabalho de
pesquisa para a tese intitulado Polcia no Exrcito: a trajetria do coronel Nazareth
Cerqueira e a segurana pblica no Rio de Janeiro (1983-1995) ligado ao Programa de
Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens Culturais no Centro de Pesquisa e
Documentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC/FGV).
Logo no incio do doutoramento, consegui identificar muitas fontes documentais
relativas gesto de Nazareth Cerqueira no ICC e organizada em 40 caixas. Aps a morte
do coronel Cerqueira, o referido instituto passou a funcionar no mesmo espao do
escritrio de advocacia de Nilo Batista, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
Foi digna de nota a recepo que minha pesquisa teve, principalmente, da esposa
de Nilo, a professora Vera Malagutti. Ela autorizou o acesso pleno a esse arquivo, bem
como cpias no prprio instituto de todos os documentos que me interessaram. Tais
fontes depositadas no ICC pretendem guardar as memrias do saudoso coronel,
segundo a prpria Vera Malagutti. Na realidade, no se trata de um arquivo convencional,
mas sim da reunio do material encontrado na sala de trabalho de Cerqueira, logo aps
sua trgica morte. As 40 caixas encontradas localizam-se exatamente em um depsito.
Apesar de etiquetadas, a indexao no necessariamente corresponde ao contedo
existente. As fontes so diversas: documentos pessoais de Cerqueira correspondncias,
agendas e documentos institucionais. Portanto, tratou-se de um trabalho de pesquisa
longo e cansativo e que dependeu de diversas autorizaes, uma vez que o acesso era
restrito. A ajuda desses colaboradores diretos e amigos de Cerqueira foi de extrema
importncia para o desenvolvimento do meu trabalho.
Destaco o acesso a muitos textos do coronel principalmente suas primeiras
monografias de concluso de cursos na polcia de 1968 e de 1977 , s vrias edies da
Revista da PMERJ61 e da Revista Discursos Sediciosos62 (onde se encontram vrios
61 As revistas, idealizadas no primeiro comando de Nazareth Cerqueira, renem reuniam artigos de oficiais,
praas e acadmicos que compartilham as diretrizes policiais de cada comando, que refletem reflexes
sobre o fenmeno criminal e tambm problematizam a prpria atividade policial. 62 A coleo, organizada por Nilo Batista e Vera Malagutti e publicada em coedio com o Instituto Carioca
de Criminologia, compe-se de vrios artigos ligados ao campo do Direito, com especial ateno para a
temtica da chamada criminologia crtica.
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artigos do coronel escritos aps a experincia dos comandos), e tambm aos documentos
oficiais produzidos pela sua gesto frente da PMERJ, notadamente a redao do Plano
Diretor da PMERJ (1984-1987). De extrema importncia foi o encontro de um
manuscrito produzido pelo prprio Cerqueira, quando do seu depoimento, no ano de
1988, para o Projeto Cem anos de Abolio promovido pelo Museu da Imagem e do Som
que guarda, por sua vez, o registro em udio de tal entrevista. Nesse relato, Cerqueira
reconstituiu vrios momentos importantes da sua trajetria anterior ao comando.
Outra fonte relevante encontrada no ICC foi o j citado livro O futuro de uma
iluso: o sonho de uma nova polcia. Trata-se de uma obra em homenagem Cerqueira
e, segundo os organizadores, o livro em questo encerrava a coleo de seis volumes
intitulada Polcia Amanh (tambm obtida para a pesquisa), logo aps o assassinato do
coronel. Na primeira parte, os artigos publicados por pessoas que compuseram sua rede
de relaes do conta de sua luta contra a discriminao, pelos direitos humanos e por
uma polcia democrtica. Na segunda, alguns dos principais artigos de Cerqueira so
republicados, pois, segundo os idealizadores do projeto permitem reconstituir essa
trajetria e consolidam, assim agrupados, o pensamento desse intelectual raro que ousou
sonhar e no mediu esforos para realizar esse sonho.63
Meses depois, aps o incio propriamente dito do curso no CPDOC, adentrei os
muros da PMERJ. A primeira experincia se deu com a minha participao na I
Jornada de Cincias Policiais e Segurana Pblica da Academia de Polcia Militar D.
Joo VI: Carlos Magno Nazareth Cerqueira, organizada pelos alunos do Curso de
Formao de Oficiais, no bairro de Sulacap.64 Descobri o evento, por meio de uma rpida
pesquisa no stio institucional da PMERJ. Chamou-me a ateno o ttulo dado ao evento
por seus organizadores. Soube, ento, que o principal facilitador desse evento era o
coronel bis Pereira, ento comandante da academia. Durante uma semana, assisti a
palestras de oficiais e acadmicos especialistas no assunto que me interessava. Os oficiais
ouvidos foram quase unnimes em relao importncia da obra de Nazareth Cerqueira
63 In Apresentao. In CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma iluso... Op. cit. Os textos
destacados so: Remilitarizao da segurana pblica a Operao Rio (1996); Polticas de Segurana
pblica para um Estado de direito democrtico chamado Brasil (1996); O futuro de uma iluso: o sonho
de uma nova polcia (1997); A polcia comunitria uma nova viso de poltica de segurana pblica
(1997); A criminalidade da polcia (1997); Ensaio sobre um projeto de avaliao do sistema de justia
criminal (1997); Outros aspectos da criminalidade da polcia (1998); As polticas de segurana pblica
do governo Leonel Brizola (1998) e A polcia e os direitos humanos: estratgias de ao (1999).
Importante destacar que a anlise dessas e de outras obras de Carlos Magno Nazareth Cerqueira ser
desenvolvida no ltimo captulo da tese. 64 Participei como ouvinte na I Jornada de Cincias Policiais e Segurana Pblica de 17 a 19/07/2012.
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e a definio mais destacada foi a de que o coronel foi um homem e um comandante a
frente de seu tempo, inclusive de um dos palestrantes, o socilogo Igncio Cano. Eles
no relutaram em dividir a histria da PMERJ em antes e depois de Cerqueira.
Inclusive, em rpida conversa, o coronel bis Pereira, o qualificou como o Robert Peel
do Brasil, em referncia ao fundador da Polcia Metropolitana de Londres. Parecia bvia
e instigante, para mim, a necessidade de uma anlise mais apurada sobre a trajetria do
coronel Cerqueira. E ainda, como historiador, situ-lo e entend-lo no seu prprio tempo.
Em meados de 2012, escrevi ao ento comandante-geral da PMERJ, o coronel Erir
Ribeiro da Costa Filho. Meu objetivo era ter autorizao oficial para a pesquisa nos
arquivos da corporao. Expus, sucintamente a pesquisa que pretendia realizar. Fui
indagado sobre o que eu objetivava exatamente, ao abordar a trajetria de Cerqueira.
No gabinete do comando-geral localizado no quartel da rua Evaristo da Veiga, no centro
do Rio apresentei, ento, com mais clareza, os objetivos acadmicos, informando que a
pesquisa resultaria numa tese de doutorado ligada a FGV. Para minha surpresa, no houve
grande demora na resposta favorvel: algo em torno de uma semana. Em uma instituio
hierrquica e burocrtica, creio que meu pedido foi endereado pessoa situada na
posio certa. Esse fato no pode ser ignorado por quem deseja pesquisar instituies
como a polcia militar. Com a autorizao formal em mos, consegui acesso a quase todos
os arquivos que pretendia investigar.
Concentrei, ento, a pesquisa no Arquivo Geral da PMERJ, localizado no prdio do
Batalho de Choque (Regimento Caetano de Farias), tambm no centro da cidade. Ali,
tive acesso a vrios documentos, mas principalmente aos Boletins da PMERJ
produzidos entre os anos de 1946 e 2009 e digitalizados , srie Cadernos de Polcia
idealizada na gesto de Cerqueira ao primeiro Plano Diretor da histria da corporao,
bem como aos relatrios da sua gesto. A consulta aos boletins foi importante, uma vez
que eles traziam, por exemplo, declaraes dos comandantes-gerais, informaes sobre a
situao funcional dos policiais, regulamentaes dos programas de policiamento,
diretrizes sobre treinamento policial, em geral, transformadas em Notas de Instruo.65
65 Os boletins de informao da PMERJ e as Notas de Instruo so documentos publicados no sentido de
normatizar algumas atividades policiais especficas, dentro dos marcos legais brasileiros, tendo divulgao
restrita tropa. Os boletins trazem, diariamente, informaes acerca das escalas de servios, instrues
sobre operaes policiais, informaes sobre treinamento policial (oferta de cursos, classificao em
programas de treinamento), assuntos gerais, como por exemplo, alteraes de funes ou movimentaes
tanto de oficiais como de praas, atos do comandante-geral, atos administrativos (pagamentos, benefcios,
compra de material, comunicao de viagens de oficiais) e, ainda, informaes relativas justia e
disciplina referentes aos membros subalternos da corporao. Por fim, os boletins trazem uma ltima seo
intitulada comunicao social onde so transcritas informaes mais gerais, vistas como de interesse dos
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Vale a pena destacar, entretanto, a dificuldade em relao organizao desses
arquivos. O arquivo geral geralmente utilizado a fim de atender a burocracia interna da
instituio. Tive contato com um pesquisador externo, apenas. Contudo, observei vrias
consultas feitas por policiais reformados ou por pensionistas. Na realidade, o arquivo
tambm uma espcie de depsito. Organizao, segundo os responsveis, s existia para
a documentao mais recente, a dos policiais da ativa. A identificao nas vrias pastas
e envelopes geralmente no correspondia ao contedo.
Dessa maneira, poucos sabem a localizao de documentos especficos, mas, em
contrapartida, muitas dvidas eram sanadas, com alguns telefonemas para amigos, ou
seja, para companheiros de farda. Ficou claro que a colaborao profissional entre eles se
pauta, muitas vezes, em relaes pessoais marcadas at por certa informalidade. Acho
que tive certa facilidade, nesta fase da pesquisa, pois consegui entender rapidamente tal
dinmica e explorar essa solidariedade corporativa. O pesquisador precisa saber lidar com
essa caracterstica da instituio. Sempre aberto s brincadeiras de alguns oficiais PM,
me via impelido a interromper o trabalho de pesquisa a fim de socializar comentrios
sobre assuntos cotidianos com os policiais responsveis pelo arquivo. Sem dvida, a
minha condio masculina facilitou esse dilogo, marcado, muitas vezes, por apelidos e
brincadeiras sexistas. Entretanto, alguns comentrios sobre a situao daquele e de outros
arquivos da PMERJ, a situao profissional dos policiais e a gesto da segurana pblica
fluminense eram feitos em locais mais reservados. Afinal, como destacou Adriana
Barreto, por pertencerem a uma instituio com traos especficos e exclusivos, esses
arquivos impem ao pesquisador e o verbo no casual um dilogo cotidiano com
cdigos e smbolos muito particulares, constitutivos da identidade social do militar.66
Contudo, vrias vezes me vi obrigado a reafirmar a necessidade de um estudo
acadmico sobre os policiais militares. Destacava a permanente e recproca desconfiana
entre a corporao e o mundo acadmico. Isto porque, nesse e em outros arquivos da
PMERJ, geralmente, depois da pergunta recorrente quanto minha profisso (Voc
polcia?), vinha a indagao sobre o que eu estava fazendo ali?. Pontuei vrias vezes,
portanto, a contribuio que eu poderia dar histria da instituio. Ganhei, assim,
policiais. J as notas de instruo abordam questes operacionais e doutrinrias mais especficas acerca
do trabalho policial. A partir do segundo comando de Cerqueira, as notas se tornaram mais frequentes.
Eram publicadas como aditamentos aos Boletins da PMERJ. Muitas vezes traziam tambm reflexes
tericas acerca de questes como criminalidade, atividade policial, segurana pblica, entre outros,
oferecidas por diversos cientistas sociais e tericos da criminologia. 66 SOUZA, Adriana Barreto de. Op. cit., p. 201.
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simpatias, a despeito da distncia recorrente em relao minha condio de paisano.67
Era cada vez mais bvio que eu e meu estudo ramos tambm estudados pelos policiais.
Aos poucos, policiais se dispuseram a dar entrevistas, inclusive, me passando
contatos telefnicos pessoais. Nem mesmo aos horrios restritos de pesquisa, fui
submetido. Esperava, sinceramente, mais resistncias e desconfianas em relao minha
tese. Talvez conservasse ainda a imagem de uma instituio avessa aos estudos
acadmicos, questo dos direitos humanos e ao seu ex-comandante Cerqueira.
O interessante nessa histria que eram (e possivelmente ainda so) comuns as
dificuldades encontradas por pesquisadores externos quanto ao acesso aos documentos
da corporao.68 Cristina Buarque de Hollanda, por exemplo, menciona, em seu livro
Polcia e direitos humanos: poltica de segurana pblica no primeiro governo Brizola
(Rio de Janeiro: 1983-1986) publicado em 2005, essa dificuldade. Sua pesquisa teria sido
imensamente dificultada pela restrio de acesso a documentos e publicaes da
polcia.69
O nico grande obstculo que encontrei, a despeito da falta de estrutura de
praticamente todos os arquivos da instituio, foi conseguir acesso ao Museu da PMERJ.
Ao que parece, a oficial responsvel impunha um tipo de metodologia para a incurso de
pesquisadores externos no muito comum. Dias e horrios, previamente agendados por
assessores nem sempre disponveis eram necessrios. Cheguei a ouvir o comentrio que
a tenente-coronel em questo no era uma pessoa fcil. Confesso que preferi no
aprofundar o assunto. Apesar de possuir autorizao formal do comando-geral, os
responsveis pelo museu pareciam no o encarar como um arquivo pblico.
Cabe ressaltar, contudo, outra dificuldade encontrada durante a pesquisa
documental. No consegui localizar, mesmo aps incessante procura, a chamada folha
de alteraes de Nazareth Cerqueira. Trata-se de uma pasta com informaes funcionais,
ligada seo de pessoal da PMERJ, que me possibilitaria traar com inigualvel preciso
(informaes sobre promoes, cursos realizados, punies disciplinares) a trajetria
67 Castro, em sua investida etnogrfica na Academia Militar das Agulhas Negras, nos explica o termo
paisano utilizado nas instituies militares. Normalmente, ele utilizado em lugar de civil, mas
embora parea ser a mesma coisa, no . Paisano um termo claramente pejorativo. CASTRO, Celso.
Op. cit., pp. 38-39. 68 Adriana Barreto comenta, em seu artigo, sobre as dificuldades que encontrou no Arquivo Geral da
PMERJ: a identidade militar constituda a partir de um processo de socializao intenso, no qual o
indivduo aprende um conjunto de valores, comportamentos e atitudes que do forma a um grupo fechado
e altamente hierarquizado, a um ns, os militares, em oposio a um eles, os civis. In SOUZA, Adriana
Barreto de. Op. cit., p. 203. 69 HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polcia e direitos humanos: poltica de segurana pblica no
primeiro governo Brizola (Rio de Janeiro: 1983-1986). Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 22.
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profissional de Cerqueira. Investiguei os arquivos da Academia D. Joo VI, do gabinete
do comando-geral, do Estado-Maior da PMERJ e at mesmo do Ministrio da Justia.
rgos com os quais Cerqueira teve algum vnculo durante seu percurso profissional.
Havia a crena de que se tratava, to somente, da desorganizao dos arquivos.
Entretanto, tenho a convico de que por motivos, no mnimo obscuros, essa fonte
especfica simplesmente desapareceu. O curioso constatar que um dos grandes
facilitadores da pesquisa, o Cel. bis Pereira, mesmo assumindo a funo de comandante-
geral, no ano de 2014, tambm no obteve sucesso quando da requisio de tal
documento. Infelizmente, dentro dos limites da tese, no tenho condies de refletir mais
detidamente sobre essa ausncia documental, ou, nas palavras de Celso Castro, desse
formidvel problema de ordem prtica70. Contudo, esse fato me permite pensar, apenas,
que a vida e as ideias de Cerqueira, compartilhadas por alguns oficiais da ativa, ainda so
entendidas por muitos como subversivas ou simplesmente superadas. Ou ainda, que
permanecem algumas das disputas de dcadas anteriores, agora refletidas nas memrias
concorrentes. E a, novamente, as ausncias e silenciamentos fazem parte dessas
estratgias de luta.71 O que consegui encontrar foi o importante processo de reforma de
Nazareth Cerqueira, de 1987, no Departamento de Pessoal (DIP) localizado no 4 BPM,
no bairro de So Cristvo, o que me possibilitou preencher algumas lacunas
documentais, junto com a anlise exaustiva dos Boletins da PM.
A partir do ano de 2013, me vali dos contatos, cada vez mais intensos, com o coronel
bis Pereira. O Cel. bis se diz um seguidor da filosofia de Nazareth Cerqueira. Desde 2012,
quando ele comandou a Academia D. Joo VI, nossos encontros eram peridicos. Foram
muitas horas de conversas informais e tambm gravadas (e autorizadas) para o acervo
71 Huyssen nos lembra que o esquecimento no um fracasso da memria. Para o autor, no se trata da
oposio simplista entre lembrar e esquecer. Ou mesmo de um paradoxo em que a memria requer
esforo de trabalho, enquanto o esquecimento simplesmente acontece. Huyssen prope entender o
esquecimento como um amlgama da memri