MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃOUNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E
MUCURIPRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
FACULDADE INTERDISCIPLINAR EM HUMANIDADESMESTRADO PROFISSIONAL INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS
HUMANASDIAMANTINA – MG
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PERSONAGEM AUGUSTO
MATRAGA
CONSTRUCTION OF IDENTITY OF CHARACTER AUGUSTO MATRAGA
Wellington Costa de Oliveira1
RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar, de maneira interdisciplinar,
reflexões acerca da construção da identidade do personagem Augusto Matraga, no conto
“A hora e vez de Augusto Matraga”, da obra Sagarana de João Guimarães Rosa. Trata-
se de abordar o tema a partir das noções identitárias trabalhadas por diversos teóricos,
entre os quais Hall, Sartre, Heidegger, Ricoeur e outros. Pensar em identidade é pensar
naquilo que nos constitui como sujeitos e nos diferencia em relação ao outro. A
dinâmica proposta é percorrer o caminho vivido pelo personagem, sua trajetória
existencial, que culminará na reconstrução de sua identidade.
Palavras-Chave: identidade, discurso, ser, existência.
ABSTRACT: This article aims to present, in an interdisciplinary way, reflections on
identity construction Augusto Matraga character in the story "Time and time of
Augustus Matraga" Sagarana the work of João Guimarães Rosa. It is approaching the
theme from the notions of identity worked by various theorists, including Hall, Sartre,
Heidegger, Ricoeur and others. Thinking about identity is thinking about what
constitutes us as subjects and differentiates us in relation to each other. The dynamics is
1 Aluno do curso de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Ciências Humanas, da Faculdade Interdisciplinar em Humanidades, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), campus de Diamantina-MG.
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proposed travel the road lived the character, his existential trajectory, culminating in the
reconstruction of their identity.
Keywords: identity, discourse, being, existence.
INTRODUÇÃO
O presente artigo importa um momento há tempos aguardado pelo autor para que
pudesse problematizar e articular a construção da identidade do personagem Augusto
Matraga, objeto de estudo de seu mestrado. Para discutir a construção da identidade do
personagem Augusto Matraga, procurou-se estabelecer um diálogo teórico entre certos
conceitos presentes nos trabalhos de Sartre, Heidegger, Hall e Ricoeur. A aproximação
entre esses pensadores se dá em torno da concepção de identidade e relações
estabelecidas entre os processos de constituição da identidade.
Partindo da filosofia existencialista, observamos que seus pensadores, Heidegger e
Sartre, acentuam de modo fundamental, que o homem é um existente. Como postula
Sartre isto significa que:
“Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada; só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe Deus para concebê-la”2.
O homem é o que ele vai fazendo de si mesmo, de sua vida. Parte-se da premissa
que, de acordo com esse ramo da filosofia, o homem (Ser) não é um sujeito acabado,
pronto, e que ele vai se construindo e reconstruindo. O personagem Matraga do conto
2 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.05.
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também não está pronto, acabado. Pode-se afirmar que ele vai se construindo. Mas se
construindo em quê? O autor a partir da frase inicial do conto coloca em discussão a
questão da identidade. Como construir o ser a partir do não-ser? O autor dá existência
ao personagem quando cita a sua genealogia, “Matraga é Estêves. Augusto Estêves,
filho do Coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira”3. Então pode-se
afirmar que o pai dele é. Ele ainda não é. Matraga vai ainda construir sua identidade.
Observa-se que na construção da identidade do personagem há presente o modelo
de identidade chamado de mesmidade (identidade do mesmo). A mesmidade funda-se
na permanência de uma substância imutável, de um substrato, de uma estrutura que o
tempo não afeta. No caso do personagem a genética de ser filho do Coronel Afonsão
Esteves, isso é imutável, permanente.
Ricoeur (1991), na obra O si-mesmo como um outro, vai trabalhar sobre a ótica do
caráter o conceito de mesmidade dizendo que:
“Eu entendo aqui por caráter o conjunto das marcas distintivas que permitem reidentificar um indivíduo humano como sendo o mesmo. Pelos traços primitivos que vamos dizer, ele reúne a identidade numérica e qualitativa, a continuidade ininterrupta e a permanência no tempo. É por isso que ele designa, de maneira emblemática, a mesmidade da pessoa”4.
Na construção da identidade do indivíduo, do personagem em voga, há também a
problematização sobre o que o diferencia dos demais da sociedade e o que o torna
singular. Como propõe Ricoeur (1991), é ipseidade (identidade do si). “Ipseidade é
aquilo que caracteriza o indivíduo como ser único, singular, como nenhum outro era, o
que o mesmo dizia de si”5.
Observa-se que a problematização da identidade começou com o Cogito de
Descartes, exatamente por que este permanece encarcerado em si mesmo e não consente
assim fundar a certeza objetiva da verdade.
3 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.344.4 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p.144.5 Idem, p.140.
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“E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava”6.
Desta forma o cogito-sum, ou seja, o penso como englobando também
necessariamente a realidade do sujeito pensante, tornou-se o protótipo da ideia clara e
distinta. O cogito inclui tudo o que pode ser pensado.
Ricoeur observa que Descartes exaltou o sujeito retirando a possibilidade da
dúvida sobre si mesmo enquanto outro.
“[...] ou o Cogito tem valor de fundamento mas é uma verdade estéril à qual não pode ser dada uma sequência sem ruptura da ordem das razões, ou é a ideia do perfeito que a fundamenta na sua condição de ser finito, e a primeira verdade perde a aureola do primeiro fundamento”7.
A proposta de Ricoeur é construir uma identidade que comporte o pensar o
homem entre os demais. Para Ricouer torna-se necessário pensar a identidade através da
mesmidade e ipseidade como já citado anteriormente. O si mesmo como outro implica
também pensar no conceito de alteridade.
“Si-mesmo como um outro sugere, imediatamente, que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade num grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que, de preferência, uma passa na outra, como se diria em linguagem hegeliana. Ao ‘como’ queríamos ligar a significação forte, não apenas de comparação – o si-mesmo como sendo semelhante à alteridade –, mas mais de uma implicação o si-mesmo enquanto... outro”8.
Sendo assim, de acordo com Ricoeur, só se pode pensar em identidade como
alteridade. O idêntico e o diferente são inseparáveis.
6 DESCARTES, Rene. Discurso do método. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.38.
7 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p.21.8 Idem, p.14.
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Faz-se agora um diálogo com a teoria de Domingues (1999) na tentativa de
entender a construção da identidade através da concepção de homem. Domingues, em
sua obra O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências
humanas, ele dialoga com Foucault e diz que ele:
“Ao construir sua arqueologia das ciências humanas, nos sugere que o homem é um problema recente na trajetória da cultura e como tal destinado a desaparecer do espaço de nossa Episteme, como rosto na areia com o refluxo da maré”9.
Segundo Domingues, “há quatro idades na arqueologia das ciências humanas que
nem o homem e a Episteme são os mesmos”10. Essas idades fornecem uma trajetória
estruturante da concepção de homem. O homem da Idade Cosmológica é pensado a
partir do cosmos. A alma é entendida como: “cósmica e vai buscar através do espírito e
do movimento uma explicação para physys. Temos a antropologia do homem interior
personificada na máxima socrática conhece-te a ti mesmo”11. Na Idade Teológica,
pensa-se o homem a partir da problemática dos desígnios da providência divina. Nesse
período, “o homem está envolto no mistério da criação e da teologia do pecado.
Observar-se aqui uma antropologia do homem pecaminoso herdado da filosofia
agostiniana”12. Dando continuidade Domingues, propõe a Idade Mecânica, nessa idade
“o homem adquire autonomia e é interrogado a partir dele mesmo e de seus dispositivos
mecânicos que no fundo de seu ser regulam suas relações entre o ‘eu’ e o mundo” 13.
Temos aqui a figura do grande relojoeiro que é Deus, esse relojoeiro constrói o homem
com seus mecanismos capazes de se mover. Essa concepção da origem à antropologia
do homem máquina presente na filosofia de Descartes. Por fim, propõe a Idade
Histórica, nesse momento temos “o descentramento do homem e sua dissolução na
9 DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 2ª ed.,1999, p.15.
10 Idem, p.15.11 Idem, p.15.12 Idem, p.16.13 Idem, p.16.
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natureza humana, nas positividades da história e da cultura num período da idade
moderna aos nossos dias. Nessa idade teremos modos do ser: do indivíduo em Freud; da
sociedade em Marx; da língua em Bopp, etc., nasce à antropologia do homem histórico
que nos reenvia Kant”14.
A problematização da construção da identidade, do sujeito, do homem, como se
vê é algo histórico. A hermenêutica da conta de entender essa construção do sujeito,
pois como Ricouer (1989) afirma: “... o sujeito de que ela fala sempre foi oferecido à
eficácia da história”15. O idealismo de Dilthey postulou que o conhecimento da história
da humanidade conduziria ao conhecimento de si mesmo.
Ao se analisar a construção da identidade do personagem, vê-se que ele sempre
viveu à sombra do pai “Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de
filho único de pai pancrácio16”. Com a morte do pai, Coronel Afonsão, Matraga assume
a identidade de Coronel. Qual seria a identidade do Coronel Augusto Esteves? A
identidade de Augusto Esteves construída por Rosa no conto está integrada num espaço
violento e animalizado, no qual a posse da terra, dos animais, dos empregados, da
esposa e da filha se confundem. O poder financeiro, arrogância, violência, são
constitutivos da identidade do coronel Augusto Esteves. Novamente vê-se a questão da
mesmidade presente na identidade do personagem. Pode-se, assim como Heidegger,
perguntar quem é o “ser-ai”. O conhecimento de si é presuntivo, é um conhecimento
que se dá sempre no âmbito precedente da relação, o sujeito se constitui sempre na
relação comunicativa falando de algo para alguém. Segundo Ricoeur (1991), a
identidade do personagem é construída através da narrativa, conforme propõe:
14 DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 2ª ed.,1999, p.16.
15 RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica II. (trad. de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando). Porto: Rés, 1989, p.61.
16 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.346.
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“A narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem”17.
Para Ricoeur a identidade narrativa é ponte mediadora entre os conceitos de mesmidade e ipseidade, que constituem a identidade do personagem.
“[…] a identidade narrativa mantém-se entre as duas; tornando narrável o caráter, a narrativa restitui-lhe o movimento abolido nas disposições adquiridas, nas identificações-com sedimentadas. Tornando narrável a perspectiva da verdadeira vida, ele lhe dá traços reconhecíveis de personagens amados e respeitados. A identidade narrativa mantém juntas as duas pontas da cadeia: a permanência no tempo do caráter e da manutenção de si”18.
Na construção da identidade do personagem, ressalta-se que com a perda do poder
financeiro, advindo do mal uso do dinheiro e dos bens herdados, Augusto Esteves perde
também a mulher, a filha, os jagunços e a própria identidade. Ele é destituído da
identidade de Coronel pelas mãos de outra patente Major Consilva. Após ser
vilipendiado por seus algozes, Augusto Esteves ao perder a identidade, recebe uma
marca a ferro e fogo. Nesse momento há morte do sujeito e sua redução à animalidade.
Marcado como gado, ele é abandonado à própria sorte para morrer. Ao se perder, o
personagem se encontra. A perda da identidade de coronel dá espaço para surgir a
identidade do santo. A passagem de forma violenta o destitui da identidade anterior,
Augusto Esteves, que num primeiro momento dá lugar a Nhô Augusto, que será
denominado Augusto Matraga.
O caminho acima percorrido por Augusto Matraga, faz parte da construção da sua
nova identidade em que cada etapa é importante. Por isso, não se excluem mutuamente,
mas sim, completam-se dentro do processo. Para Sartre (1987), primeiramente o ser
humano existe, encontra-se no mundo, surge, a partir daí é que se definirá, ou seja,
construirá a sua essência, que não é dada a priori:
17 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p. 176.18 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p. 196.
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“O homem é tão somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo.”19.
Segundo Reale o existencialista entende que o ser humano vai além do “simples
momento do processo de uma Razão oniabrangente ou uma dedução do Sistema”20.
“A existência é modo de ser finito e é possibilidade, isto é, um poder-ser. A existência, precisamente, não é essência, coisa dada por natureza, realidade predeterminada e não modificável. As coisas e os animais são o que são e permanecem o que são. Mas o homem será o que ele decidiu ser”21.
Esse poder-ser é questionado pelo personagem quando dialoga com mãe Quitéria
sobre sua atual situação: “Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe
Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no
céu?”22. De acordo com Sartre não temos como alterar o passado, apenas podemos
modificar a sua significação:
“O passado que sou, tenho-de-sê-lo sem nenhuma possibilidade de não sê-lo. Assumo sua total responsabilidade como se pudesse modificá-lo, e, todavia, não posso ser outra coisa senão ele. Veremos mais tarde que conservamos continuamente a possibilidade de modificar a significação do passado, na medida em que este é um ex-presente que teve um futuro. Mas, do conteúdo do passado enquanto tal, nada posso subtrair, e a ele nada posso adicionar”23.
Diante das adversidades sofridas, Matraga encontra socorro junto àqueles que não
pertenciam a sua classe social, ao seu convívio diário: “...o preto que morava na boca do
brejo”, “...chamou a preta, mulher do preto que morava na boca do brejo”24. Nota-se que
19 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.06.20 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990. 3 vol.,
p.594. 21 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990. 3 vol.,
p.594.22 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.361.23 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.168-
169.24 ROSA, 2000, p.352.
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aqueles que o socorrem são identificados pela raça, mas não são nomeados, são os
outros. Também estão à margem da sociedade. Pois vivem no meio do mato, na encosta
de um barranco, desprovidos dos bens materiais e do convívio urbano. Matraga está
órfão e é adotado pelo casal de negros. Ele agora tem uma mãe, Mãe Quitéria. É
batizado novamente como “Nhô Augusto”. Abandonado pelos seus, ele encontra refúgio
em si mesmo e na religião para reconstruir a própria identidade. Matraga ao
experiênciar a quase morte, rememora a própria vida. Sartre (1987) diz que:
“a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio, suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução e a própria significação dos problemas permanece indeterminada”25.
Mergulhado nesse universo de sensações, ele faz uma releitura da própria vida. O
personagem deseja a presença do Padre para pedir perdão dos pecados e poder morrer
em paz. O padre redireciona o pensar de Matraga para uma prática do bem, do perdão,
da penitência. Leva-o a entender que a sua história de vida pode seguir outro caminho
que irão conduzi-lo a um novo eu. A dinâmica de mudança se dá pelo trabalho e oração:
“Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”26.
O termo reze e trabalhe, nos remete a conceito basilar dos beneditinos ora et
labora27, o par trabalho e oração é fundamental para constituição do ser no mundo.
Nota-se que mesmo antes das adversidades sofridas, a descrição do
25 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.661.26 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.355.27 A Regula Benedicti foi composta em 529 para a abadia de Monte Cassino, na Itália, por São Bento de
Núrsia (480-543), irmão gémeo de Santa Escolástica. Ela preceituava a pobreza, a castidade, a obediência, a oração e o trabalho, bem como a obrigação de hospedar peregrinos e viajantes em seus mosteiros, dar assistência aos pobres e promover o ensino.
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personagem o desumaniza “bicho grande do mato”28, “cascavel barreada em
buraco”29. É a partir do convívio com o outro, com o diferente, que ele se reconhece
humano: “Apenas, Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente,
humanamente, e foi essa a primeira vez”30. Passa-se a ver, conforme a noção de
sujeito sociológico proposta por Hall, que o personagem começa a entender, que o
sujeito “é formado na relação com outras pessoas importantes para ele”31. A sua nova
identidade começa a ser construída a partir do convívio com a família de negros e
através do exercício da penitência proposta pelo Padre. Não que tais personagens não
existissem anteriormente, mas sim, porque começaram a existir no horizonte de
Matraga e tornaram-se importante para ele.
Essa trajetória estabelecida por Rosa, a qual o personagem deve percorrer é
existencial. É ela que será fator preponderante para a construção da identidade do
personagem. Ao se tomar consciência do mundo, das próprias atitudes, da
responsabilidade dos atos tomados, Matraga questiona a própria existência. Na
verdade ele busca compreender a própria existência. A compreensão para Heidegger
não se desvincula da dinâmica existencial que é a realização do poder ser que é o ser-
no-mundo. Como Ricoeur destaca “O compreender não se dirige, portanto, à posse
de um fato, mas à apreensão de uma possibilidade de ser”32.
A compreensão conduz o personagem a construção da nova identidade. A
identidade do homem religioso, começa com a tomada de consciência da impotência
enquanto ser diante da morte, diante dos homens e até mesmo diante de si. Isso o faz
buscar alento nas palavras do padre que diz: “cada um tem a sua hora e vez: você há
de ter a sua”33. É na religiosidade que busca se realizar e construir-se como sujeito.
28 ROSA, 2000, p.368.29 Idem, p.377.30 Idem, p.386.31 HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p.11.32 RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica II. (trad. de Alcino Cartaxo e Maria
José Sarabando). Porto: Rés, 1989, p.98.33 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.356.
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Sartre diz “o ser é, o nada não é, o nada é posterior ao ser, pois precisa de algo para
negá-lo”34. Matraga ao tomar consciência do não ser, demonstra que em algum
momento ele já teve a consciência da posição ser. No passado Matraga era o Coronel
Augusto Esteves, esta passagem do ser para o não ser, exige do personagem que com
base no passado busque alternativas que possam reconstruir o self no presente.
Matraga toma consciência de si, da finitude humana e principalmente passa a
ver o reflexo de suas ações no mundo. Temos aqui o que Heidegger define com
Dasein (O ser-ai). Segundo Heidegger (1989), na obra Ser e Tempo, a pergunta sobre
o ser não deve se basear no ser daquele ente que são as coisas, que consiste em
simples presença no mundo, mas sim no ser daquele ente que é o homem, o único
ente capaz de fazer-se a pergunta sobre o ser. O ser do homem não consiste numa
simples presença no mundo, e sim num Ser-aí (Dasein):
O ser-aí, o Dasein, imerso em sua existência, é um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], que se encontra sempre situado num contexto de vivência no mundo, e não está simplesmente lançado num espaço apenas delimitado física ou naturalmente. O conceito de ser-no-mundo é uma estrutura ontológica fundamental do ser-aí, que indica a inseparabilidade do homem e do mundo e igualmente do mundo em relação ao homem. Estar em um mundo significa habitar o mundo”35.
Segundo Ricoeur (1989), em Heidegger “este Dasein não é um sujeito para
quem há um objeto, mas um ser no ser. Dasein designa o lugar onde surge a questão
do ser, o lugar da manifestação, a centralidade do Dasein é apenas a de um ser que
compreende o ser”36.
Matraga adentra na compreensão do mundo. A tomada de consciência de si
conduz Matraga a se reconhecer não somente como homem, mas sobretudo como
34 SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p.57.
35 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989, p.54.36 RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica II. (trad. de Alcino Cartaxo e Maria
José Sarabando). Porto: Rés, 1989, p.96.
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humano. Ricoeur ressalta que o discurso é “a articulação significante da estrutura
compreensível do ser-no-mundo”37. O homem possui um mundo e não apenas uma
circunstância, este oferece maneiras possíveis de ser, como estaturas de nosso ser-no-
mundo.
Ao final do conto Matraga chega ao arraial do Rala-Coco montado no jumento.
A cena faz alusão a Jesus entrando em Jerusalém. Por fatalidade do destino encontra-
se novamente com o bando de Joãozinho Bem-Bem. É a partir desse encontro mortal,
que a construção identitária de Augusto Matraga chega ao fim. Pois, acontece a
remissão dos pecados, o reconhecimento do personagem pelo parentes, e a chegada a
sua hora e sua vez. Augusto é identificado como um santo guerreiro pelo povo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações feitas, aqui, busca apresentar a interdisciplinaridade entre a
literatura e a filosofia na construção da identidade do personagem. Observa-se que o
fenômeno literário pode ser analisado e interpretado com o auxílio da filosofia, em
particular da hermenêutica. O presente texto teve como objetivo mostrar a trajetória da
construção da identidade do personagem Matraga, apresenta também o caminho
percorrido para se chegar às conclusões de que a identidade não está pronta, não está
dada. Ela é construída constantemente e reconstruída também. Aqui entende-se a
proposição de Hall (2006) quando diz:
“Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo”38.
37 Idem, p.100.
38 HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p.09.
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Essa “crise de identidade”, foi justamente o que testemunhamos ao decorrer da
narrativa. É questionador pensar que não se tem uma identidade única. Porém, se tem
identidades que são construídas no decorrer da vida. Como responder a questão ‘Quem
sou eu?’. No conto observa-se que Matraga só tem consciência de quem é de fato ao
final da vida.
A filosofia existencialista considera o homem como ser finito, “lançado no
mundo” e continuamente dilacerado por situações problemáticas ou absurdas. A
identidade de acordo com Hall (2006), não está pronta, finita, acabada. É um construir-
se, um completar-se e até certo ponto como se vê no conto, um reconstruir-se a cada
momento e circunstância proposta pela vida. João Guimarães Rosa ao iniciar o conto
diz: “Matraga não é Matraga, não é nada”, assim como no Grande Sertão: veredas
(2006), temos a expressão “Nonada”. Pode se pensar que a intenção do autor seja
justamente propor a seguinte questão, que o sujeito não está pronto e acabado. Ele se
constrói aos poucos a partir da negação. De acordo com a hermenêutica o sujeito ao
expor o seu ser-no-mundo, compreende a experiência da vida interpretando suas ações.
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REFERÊNCIAS
DESCARTES, Rene. Discurso do método. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 2ª ed.,1999.
HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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