O pouco que muito diz: embates discursivos em charges que tematizam o racismo
Franciele Luzia de Oliveira Orsatto (IFPR)
Davi Marchetti Giacomel (PIBIC-Jr IFPR/CNPq)
Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar uma análise de um conjunto de charges
que tratam da questão do racismo. Trata-se de um assunto frequentemente tematizado nas
charges, ainda nos dias atuais, demonstrando que a questão ainda não foi superada na
sociedade. Sendo assim, tais textos configuram-se como um material rico para a análise, por
serem críticos e mobilizarem formações discursivas específicas. O corpus de análise deste
trabalho é constituído por textos de autoria do cartunista Junião, publicados no site do próprio
autor e no site Ponte, um canal de informações sobre Segurança Pública, Justiça e Direitos
Humanos. Tendo como base teórica a Análise do Discurso (AD) da linha francesa, busca-se
investigar a construção de efeitos de sentido a partir dos textos do corpus, tendo em vista suas
condições de produção, a(s) formação(ões) ideológica(s) e discursivas mobilizadas, além do
trabalho do interdiscurso. Elegeu-se a AD como perspectiva teórica devido ao fato de essa
disciplina ter como foco o olhar para o discurso e a construção de efeitos de sentido, que
funcionam não independentemente, mas a partir de suas relações com o contexto histórico,
social e ideológico que as sustentam. O presente trabalho é resultado do projeto PIBIC-Jr
desenvolvido no IFPR-Cascavel, intitulado “Além da letra, além da imagem: leitura de charges
à luz da Análise de Discurso”, que envolve um bolsista do curso técnico de Informática
integrado ao ensino médio.
Palavras-chave: Análise de discurso, racismo, charges.
Introdução
As charges são produções textuais interessantes para se observar questões atuais,
considerando suas condições de produção. Seus recursos pictóricos, em sua maioria caricatos,
e sua composição verbal – curta e quase sempre irônica – configuram um material rico e sucinto
para se observar manifestações do discurso e da ideologia.
Foi considerando estas questões que as charges foram selecionadas como objeto de
estudo do projeto PIBIC-Jr “Além da letra, além da imagem: leitura de charges à luz da Análise
de Discurso”, desenvolvido no Instituto Federal do Paraná (IFPR), campus Cascavel, do qual
o presente artigo é resultado. Tal estudo tem por objetivo a compreensão do funcionamento do
discurso e dos efeitos de sentido produzidos pelas charges, analisando e enfatizando como há,
em sua constituição, relações inextricáveis desse discurso com o contexto histórico-social e
com as formações ideológicas (FIs) e discursivas (FDs) mobilizadas. As charges a que
direcionaremos o foco da pesquisa abordam a temática do racismo – um problema que ainda
se configura como uma temática atual por se fazer presente na realidade brasileira.
A despeito da persistência na tentativa de erradicar o preconceito histórico contra o
negro no Brasil, ainda se observa uma recorrente marginalização e preconceito, fato bastante
visível no âmbito socioeconômico do país. De acordo com dados do IBGE publicados em 2015
(GUIMARÃES, 2015), 54% da população brasileira é composta por afrodescendentes, estando
apenas 17% no cômputo dos mais ricos; 76% dos mais pobres são negros; recebem, por hora,
apenas 77,5% do que recebe um trabalhador branco... E não apenas. Os negros são notadamente
minoritários em estatísticas de acesso à educação e cultura, além de serem alvos de injustiças
com relação à segurança pública, já que a sociedade muitas vezes vê a figura do jovem negro
como “padrão de criminoso”. Ademais, não se pode deixar de observar o uso comercial do
corpo da mulher negra como objeto, em uma sexista e racista hipersexualização.
Se estatisticamente a condição desfavorável enfrentada pelo negro é visível, é possível
e pertinente examinar como tal condição é discursivizada, já que o que é dito não é mera
constatação da realidade, mas tem efeito sobre a concretude material da sociedade. Em outras
palavras, não é “só” discurso, não são meras palavras ao vento; são dizeres originados a partir
de condições de produção que interferem em como as coisas são, que garantem permanências
ou engendram transformações.
Sendo assim, é a partir dos pressupostos da Análise de Discurso de linha francesa que
as charges serão examinadas. Não porque são textos portadores de sentidos sobre o racismo
que devem ser questionados ou aceitos, mas porque mobilizam FIs e FDs e, ao fazê-lo, revelam
como a sociedade compreende essa questão, preenchendo-a de sentido(s).
Para efetuar tal investigação, será apresentada, primeiramente, uma breve abordagem
teórica dos principais conceitos utilizados. Em seguida, o corpus de análise é examinado,
levando-se em conta aspectos verbais e não-verbais para se chegar ao plano discursivo e refletir
sobre de que forma poucos elementos conseguem dizer tanto.
Análise de Discurso: efetuando rupturas
A Análise de Discurso (AD) é relativamente nova no campo da linguística, surgindo
como disciplina na França nos anos 1960, constituída, como cita Orlandi (2001, p. 19), num
“espaço de questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares que são ao mesmo
tempo uma ruptura com o século XIX: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise”.
Dessa relação, então, nasce a disciplina, com um cerne na Linguística e,
necessariamente, com grande influência marxista e psicanalítica, uma vez que compreende o
discurso, seu principal objeto de análise, como a materialidade específica da língua e a língua,
por sua vez, como a materialidade específica da ideologia. (ORLANDI, 2001). Para a AD, o
discurso é entendido, fundamentalmente, como uma manifestação num meio social de relações
e confluências ideológicas.
O fundador da Análise do Discurso, Michel Pechêux, compreendendo o discurso dessa
forma, bebe nas leituras marxistas que Althusser realiza sobre a ideologia e sua relação com o
Estado. Daí vem a principal influência marxista da Análise do Discurso (MALDIDIER, 2003).
Como explica Mussalim (2001), no cenário da Linguística da época, encontravam-se
em evidência as vertentes estruturalistas, que partilhavam da ideia de que a linguagem
funcionaria como um sistema de signos unívoco. A AD nega, num caráter de ruptura, essa
Linguística engessada. Para o estruturalismo, como discorre Mussalim (2001),
A língua não é apreendida na sua relação com o mundo, mas na estrutura
interna de um sistema autônomo. Daí “estruturalismo”: é no interior do
sistema que se define, que se estrutura o objeto, e é este objeto assim definido
que interessa a esta concepção de ciência em vigor na época (MUSSALIM,
2001, p. 114).
Assim, as correntes conteudistas e estruturalistas se constituem como formas de
entender a significação dos textos/enunciados considerando apenas aspectos linguísticos, sem
considerar outros fatores. Não dispunham, portanto, de um olhar suficientemente abrangente
para compreender o fenômeno da constituição do sentido. E essa é uma das principais críticas
da AD, que, segundo Possenti (2005), mais nega do que propõe quaisquer características. A
AD nega, assim, a ideia de um sentido unívoco no discurso, pois entende os efeitos de sentido
como algo mais complexo que isso, como algo variável em diferentes inscrições na história e
sociedade.
Ainda sobre o que diferencia a AD enquanto teoria, Possenti (2001, p. 360)) considera
a ruptura com a filologia a maior das caracterizações da AD, especificando várias das suas
negações quanto à linguística tradicional. O autor explica que a disciplina, em suma:
[...] rompe com a concepção de sentido como projeto de autor; com a de um
sentido originário a ser descoberto; com a concepção de língua como
expressão das ideias de um autor sobre as coisas; com a concepção de texto
transparente, sem intertexto, sem subtexto; com a noção de contexto cultural
dado como se fosse uniforme. (POSSENTI, 2013, p. 360).
É considerando o resultado de todas essas rupturas que se pretende observar o corpus
de análise deste trabalho, composto por três charges do cartunista Junião, que perfazem uma
pequena seleção relacionada à temática do racismo. O autor, em sua produção, utiliza-se de
recursos imagéticos bastante caricatos e linguagem verbal breve e direta, criando e veiculando
textos curtos, críticos e humoristicamente irônicos.
Para isso, são mobilizados os seguintes autores: Orlandi (2001), Maldidier (2003),
Mussalim (2001) e Possenti (2001 - 2005), que exploram a disciplina da AD com focos
relevantes a nosso propósito, como: o contexto de surgimento e a ruptura que a AD representa
e especificidades terminológicas e conceituais prementes na constituição das Análises, como,
por exemplo, o conceito de Formação Discursiva.
Pretende-se observar, no discurso anti-racista presente nas charges, elementos
essenciais à constituição do sentido como polissêmico e dependente das condições de
produção. Buscaremos compreender as formações discursivas mobilizadas, a ideologia
pressuposta no discurso e a relevância dos elementos verbais e não verbais nos efeitos de
sentido proporcionados pela leitura das charges. Buscamos observar não o sentido em si, mas
compreender como ele se dá e o que o constitui, compreendendo não “o que”, mas “o como”.
Outro jovem negro assassinado: só mais um
Figura 1 – Apenas estatísticas
Fonte: Junião (2014)
A primeira charge analisada, publicada em 25 de abril de 2014, ilustra um agente
policial reportando um assassinato a uma pessoa sentada em uma escrivaninha com um enorme
arquivo por detrás. É possível identificar o personagem que enuncia como policial por suas
vestimentas e pelo coldre em que carrega sua arma. Sentado, quem recebe o papel das mãos do
policial é um funcionário cujo cargo não se pode saber ao certo; porém, sua indumentária, terno
e gravata, o identifica como um burocrata, cuja função é receber e arquivar os relatórios das
ações policiais. Nota-se que tal recebimento não parece provocar nenhuma mudança a não ser
acumular papel: enganos continuam acontecendo (o engano em questão é só “mais um”) e, ao
que tudo indica, essa situação provavelmente se repetirá no futuro.
A imagem mostra uma notável abundância de papéis, que abarrotam o arquivo e se
empilham em frente a ele, semelhantes ao que o policial traz, que imaginamos ser uma espécie
de registro de ocorrência ou similar. Os elementos verbais se constituem em um curto título:
“Outro jovem negro assassinado”; e na fala do policial à pessoa sentada: “Cometemos mais um
engano!” Podemos observar, com o uso do pronome indefinido “outro”, uma inespecificidade
quanto a quem foi morto, à vítima; não interessa identificar quem foi morto nem o porquê:
estes são dados que, aparentemente, ficarão restritos ao arquivo – se existirem. Importa muito
mais a “conclusão” a que se chega com o ocorrido: trata-se de um descuido, uma desatenção
que ocasionou uma morte. Assim, atenua-se o assassinato que é exposto no título; ele não é
denominado dessa forma pelo policial, que o resume a um mero engano, uma eventualidade
rotineira da qual um jovem negro é vítima. Deve-se destacar, então, que não se trata de uma
simples referência neutra, isenta... Para a família do jovem, este fato poderia ser denominado
como um assassinato, um ato incompreensível, uma tragédia, enquanto para o cômputo da
polícia, a denominação utilizada é a de “mais um engano”.
A partir desse título, é possível refletir sobre a mobilização de FDs distintas, entre as
quais se pode citar a FD da família do jovem e a FD midiática. Para a FD da família do jovem,
“assassinato” seria o termo exato para denominar o ocorrido – e não “engano”, “acidente”,
“descuido”. Há, além disso, a mobilização da FD midiática, visto que o título se assemelha a
uma manchete jornalística. Assassinatos viram notícia porque não deveriam ocorrer, são atos
brutais, violam da lei penal, e a mídia tem o papel de torná-los públicos. Tanto a FD da família
do jovem como a FD midiática reconhecem que o ocorrido não é nem aceitável, nem um fato
isolado: motivo de denúncia para a sociedade e para os órgãos responsáveis em puni-lo.
Ainda sobre o título, pode-se destacar que a caracterização do jovem como negro é o
que justifica – para algumas FDs – o assassinato. Dizer apenas “Outro jovem é assassinado”,
sem qualquer caracterização, não justificaria o engano; soaria como uma manchete de jornal
incompleta. É o fato de o jovem ser negro (característica que também poderia ser pobre,
favelado etc.) que oferece uma justificativa para ele ter sido confundido com um bandido e,
assim, ter sido assassinado pela polícia, “merecendo” o fim que levou.
A autoria do assassinato é identificada quando o policial usa a primeira pessoa do plural:
“Cometemos mais um engano”. Essa fala configura-se como materialização da FD policial –
que se configura a partir de um Aparelho Repressor do Estado (ARE), segundo Althusser
(1985), que visa garantir, pela força física, quando necessário, as condições políticas dos
Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Para essa FD, o assassinato é um engano, conforme já
explorado; se fosse preciso escolher uma palavra apenas para designar o ocorrido, esta seria
“engano” e não “assassinato”, por carregar uma carga negativa muito menor do que o outro
termo – cujo sentido remete ao maior atentado contra a vida humana.
Tal enunciado, aliás, é sintomático ao trazer revelações sobre o procedimento e os
objetivos da polícia: sua função seria acabar com os bandidos, seja prendendo-os ou
assassinando-os. O extermínio da vida é, muitas vezes, visto como medida louvável e
necessária – dialogando com o provérbio popular “Bandido bom é bandido morto”. Tal
provérbio demonstra que não é na polícia ou qualquer outra instituição repressora do Estado
que a ideologia é produzida. Na verdade, a ideologia se realiza nas instituições (ALTHUSSER,
1985).
O uso da força pelo ARE polícia é notado quando se fala em assassinato. Porém, é a
partir das outras FDs que o uso da força em seu extremo é designado dessa forma. A FD policial
prefere silenciar esse uso, ainda que não haja dúvidas de que ele ocorra. Isso é feito com o uso
do termo “engano”, que, ao contrário de “assassinato”, não pode ser necessariamente associado
à força e brutalidade. Entendese, então, “engano” como “assassinato” à partir da interação, da
polêmica entre uma FD, a policial, e outras (MAINGUENEAU, 1993), como a da família do
jovem, que, neste caso, caracterizam a polícia como um órgão repressor e assassino.
Ainda sobre a fala do policial, é possível comentar como o elemento “Mais um”, que
sugere repetição, é reforçado em termos de imagens. O aspecto de rotina trazido pelos
elementos verbais é reafirmado pela quantidade massiva de documentos que podemos observar
no arquivo. Há a representação de numerosas ocorrências anteriores, sendo esse “número”
reafirmado pela prancheta na mão do policial, acrescendo a característica de estatística ao fato.
Além disso, há a expressão indiferente do sujeito sentado à escrivaninha, que não indica
nenhuma surpresa. Esse aspecto numeroso, junto da inexpressão do arquivista, nos faz pensar
na ocultação dessa quantia de ocorrências de jovens negros assassinados. Com a retenção da
informação, o ARE “polícia” conseguiria esconder do conhecimento popular o preconceito
envolvido nas ações policiais contra negros.
Nesse ponto, é possível fazer uma relação com outra FD, a FD jurídica. Não é da alçada
da polícia julgar, mas executar, fazer cumprir a lei. No Estado democrático, as duas funções
não devem estar na mesma instituição ou grupo; a função de julgamento é, então, de
responsabilidade da esfera judiciária. Mais amplamente, denominaremos a FD que envolve a
produção desse discurso sobre julgamento como FD jurídica. Na charge em análise, falar dessa
FD parece menos previsível do que as outras já comentadas. Isto, porque ela é marcada pela
pouca força ou pela quase ausência. Embora se saiba que é preciso uma instância responsável
por esse julgamento, não se mostra se ela realmente age, ou se age com eficácia e rapidez – e
o que não é dito/mostrado significa. Em outras palavras, esse não dito leva a crer que a
existência de julgamento é questionável, que há a possibilidade de provas serem “perdidas”, de
os casos de abuso “caírem no esquecimento”, etc.
Engano corriqueiro
Figura 2 – Mais uma regra de sobrevivência
Fonte: Junião (2014)
A segunda charge analisada mostra um homem negro, vestido socialmente, se
despedindo da esposa e do filho, também negros, para ir trabalhar, acenando e sorrindo. A
esposa está levando o filho do casal para a escola, fato que pode ser notado pela mochila às
costas do menino e seu uniforme. Ele se despede do pai: “Tchau papai!!! Bom trabalho!!”, e a
mãe complementa: “E cuidado para não ser preso por engano na volta!!!”. O texto é legendado
com a frase “Cenas do cotidiano”.
Aqui, observamos uma cena comum, cotidiana, e naturalizada pela família: a
preocupação com uma ação discriminatória que a polícia pode vir a cometer. E a legenda, com
o uso do plural na palavra “casos”, acrescenta a ideia de número, de repetição dessa cena e da
preocupação da esposa com o marido negro na volta do trabalho. Temos também mais um
exemplo claro da ação do AIE polícia, através do uso do termo “prender”, que é associado ao
sistema prisional, orientada pelo estereótipo da figura marginalizada e criminalizada do negro,
na construção de um cenário de perseguição e na mobilização de um discurso racista para pautar
sua ação discriminatória. E o medo da discriminação policial, como nos aponta o autor com a
naturalidade da cena envolvendo uma criança em idade escolar, atravessa gerações. O discurso
racista ganha materialidade quando esse medo é concreto.
A mãe mostra um medo pela saída do pai que parece ser incorporado na rotina,
naturalizado e assimilado. A recomendação “e cuidado para não ser preso” é tão natural para
eles quanto seria a frase “e não esqueça de levar o casaco”, demonstrando, através do nosso
entendimento do “discurso de mãe”, como agora é uma realidade assimilada e não mais vista
como o grande problema social que é, mas sim como algo comum, cotidiano. A personagem
mãe é, portanto, uma determinada posição sujeito – conceito que designa o resultado da relação
do sujeito e a forma-sujeito de uma dada FD. O sujeito pode enunciar de diversos lugares
sociais: de mãe, de trabalhador, de aluno, de eleitor.... Não se trata de uma escolha consciente,
mas de um lugar que é determinado pela FI e pela FD, ou seja, já predeterminado: de uma
forma ou de outra, sabe-se de antemão o que é ser mãe na estrutura social e sua ação e seu dizer
influenciam a família.
Assim, a mãe aparenta demonstrar apenas uma preocupação direta, pessoal, com o pai,
que se limita ao âmbito da família. Em outras palavras, não se demonstra uma preocupação
direcionada à sociedade como um todo, ou seja, uma indignação com o sistema e a sua
característica situação de insegurança à qual a família é submetida, apenas por serem negros.
Embora provavelmente possa haver ciência de que esse problema não é pontual ou individual,
ele é tratado como tal nesse momento: pensa-se, assim, o que é possível fazer, em termos de
cuidado individual, para não sofrer as consequências do pensamento racista.
Ao caráter cotidiano que é colocado sobre a cena, acrescenta-se o uso, pelo autor, dos
mesmos recursos de pontuação para a despedida do filho e a recomendação da mãe, que
complementa a frase do filho, aparentando colocar as duas falas num mesmo grau de
importância, num mesmo tom, o que reforça a ideia de naturalidade com a qual o medo
cotidiano é tratado.
Assim, pode-se observar a relação mantida entre duas FDs: a FD familiar e a FD racista.
Esta afeta não só como os enunciados da FD familiar são constituídos, mas também afeta as
atitudes da própria família. Certos enunciados só são ditos pela FD familiar porque há uma FD
racista com a qual é preciso se confrontar; certas atitudes são tomadas porque é preciso, de
alguma forma, prever e se proteger do que pode acontecer.
Ainda sobre o medo natural da mãe de o marido ser preso, podemos pensar em como,
mesmo com a ideia de prestígio social que suas vestimentas nos trazem, a preocupação existe.
Mesmo com a aparentemente boa condição social – inferível a partir da maleta na mão do pai,
que indica que ele é algum tipo de executivo, advogado ou algo do gênero – existe a
preocupação com a ação discriminatória da polícia, passando a ideia de um racismo
extremamente engendrado na sociedade, até nas mais altas camadas, com uma família padrão.
“É só mimimi”
Figura 3 – Apresentador Marcão do Povo é demitido após chamar cantora Ludmilla de macaca
Fonte: Junião (2017)
A segunda charge analisada mostra, com um fundo negro, uma televisão transmitindo
o pronunciamento de uma figura trajada com uma bata, como uma espécie de monge, e
encapuzada com um capuz branco de forma cônica. Esse personagem segura uma tocha e diz:
“Um Absurdo! Estão me crucificando porque eu chamei aquela artista negra de macaca!”. No
sofá, três indivíduos vestidos com a indumentária, como a vista no televisor, estão sentados,
também segurando tochas, e defendendo o pronunciamento anterior, dizendo: “Esse negros
reclamam de tudo!”, “Muito mimimi!” e “Não entendem piadas!”.
Primeiramente, ao olhar para o texto, podemos observar a indumentária atípica das
pessoas representadas. Essa roupa, uma veste branca alongada e um capuz branco cônico,
caracteriza um integrante dos movimentos KKK (Ku Klux Klan), que defendiam e ainda
defendem, nos EUA, bandeiras extremistas e reacionárias, como: a supremacia branca,
nacionalismo branco, antissemitismo, anticatolicismo e demais correlatas. Esse movimento
sempre se posicionou contra políticas de inclusão, o que nos faz entender o sentido de seus
membros apoiando e justificando o que seria um ato racista. As tochas seguradas são
características do KKK e também denotam o que seria uma espécie de “caça às bruxas”, no
caso, uma caça aos negros que se acham no direito de reclamar de piadas depreciativas.
Também sobre a caracterização das personagens, e observando que uma máscara, em
princípio, oculta ou altera o semblante do usuário, podemos inferir que o grupo da charge não
quer ser relacionado ao próprio discurso racista. Aqui, o ocultamento da identidade real isenta
o ocultado de responsabilidade sobre o que é dito, dando liberdade a quem fica por detrás da
máscara para dizer o que bem entender.
É possível reconhecer as personagens como pertencentes a um determinado grupo
principalmente devido à vestimenta uniformizada e à defesa coletiva ao pronunciamento da
TV. O fundo preto, em contraste com a imagem que se assemelha muito a um ritual, já nos
denota, antes de assimilar os ditos verbais, certa agressividade, uma relação visual com a Idade
das Trevas. A cor preta, principalmente chapada, nos desenhos, frequentemente remete a um
quê de obscurantismo e de violência, e aqui não é diferente na leitura desta charge.
Quando lida, a charge de imediato gera um impacto por defender o que seria
indefensável, o racismo, porque iria contra o censo geral do discurso “politicamente correto”.
E, assim, ela se constrói semanticamente e discursivamente com ironia, mostrando um absurdo
dito pela boca de pessoas que materializam um discursivo advindo de uma formação discursiva
racista. E é justamente na relação que podemos produzir com a realidade, por entendermos os
membros do KKK como pessoas reais, dizendo coisas que realmente são pensadas e, não
raramente, ditas e registradas, que se observa a constituição metafórica, relacional, do discurso.
Também pensando em relações metafóricas, o autor é feliz em colocar o discurso racista do
KKK como um discurso cotidiano, trazendo para a realidade preconceito em grau quase irreal
que, na verdade, como nota o leitor, já faz parte dela. A característica de constituição metafórica
da língua (ORLANDI, 2001) se faz presente e fundamental, portanto, para a compreensão e
construção do efeito de sentido da charge.
Com humor ácido, a criticidade da charge também atinge os sujeitos que sustentam o
discurso racial como “opinião própria”, requerendo o direito a livre expressão. Quando é
representada a discriminação vinda de um grupo reconhecidamente discriminatório, o KKK,
com falas comuns no dia-a-dia de muitos, o autor consegue mostrar o absurdo do discurso
racista de maneira escancarada e impactante.
Assim, estamos falando de um “tapa na cara” de quem dissemina o discurso racista,
mostrando que esse discurso nada tem de diferente do discurso de um grupo tão violento e
maligno como o KKK. Afinal, o discurso de ambos tem origem comum na mesma formação
discursiva, a qual podemos nominar formação discursiva racista, e, também, de certa maneira,
da mesma formação ideológica, observando o ódio dos dois lados.
Considerações finais
A partir da análise das charges em questão, pode-se observar que o discurso manifesta-
se não apenas de forma explícita ou verbal. Na verdade, a imagem e o implícito tem um papel
fundamental, se não mais, tão importante quanto os elementos verbais para a constituição de
sentido. Os textos são capazes de dizer muito com pouco – e só o fazem porque mobilizam o
que não está materialmente em sua composição, isto é, porque mobilizam discursos.
A polícia, a família, a mídia: diversas instituições aparecem nos textos e são
reconhecidas pela forma como funcionam e como as FDs a que estão ligadas organizam os
dizeres possíveis. Ao debruçar-se sobre esses elementos, é possível visualizar como o racismo
se manifesta nessas instituições; é uma questão que interfere na forma como a polícia lida com
a criminalidade, na forma como a família negra se organiza para se proteger de ações racistas,
na forma como a mídia retrata a questão, muitas vezes não apenas noticiando ou abordando o
tema, mas também reproduzindo discursos racistas.
Como se ressaltou ao longo do trabalho, as charges em questão ainda fazem sentido
porque o racismo é realidade, porque a FD racista ainda tem força e voz na sociedade. Os textos
tocam em algo ainda não superado e que precisa ser discutido, seja na mídia – local primeiro
de publicação das charges –, seja no ensino, que deve estimular uma leitura crítica, além da
linearidade.
Assim, pode-se pensar que há novos caminhos de pesquisa que se mostram,
aproximando a AD da prática do professor de língua, cujo papel não pode se limitar ao ensino
da norma-padrão ou ao trabalho com a leitura em um nível tão linear quanto propõe o
estruturalismo. Por promover uma leitura menos “ingênua” ou decodificadora, a AD e seus
dispositivos teóricos pode contribuir para levar à sala de aula temas de discussão importantes
para a formação cidadã.
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