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Coisa Julgada Erga Omnes e Eficcia Vinculante

Coisa Julgada Erga Omnes e Eficcia Vinculante

Luiz Guilherme MarinoniTitular de Direito Processual Civil da UFPR. Ps-Doutorado na Universidade Estatal de Milo. Visiting Scholar na Columbia University. Advogado em Curitiba e em Braslia.

A diferena entre coisa julgada, eficcia erga omnes e eficcia vinculante est em suas essncias.[footnoteRef:1] Quando se fala em eficcia erga omnes, pretende-se tratar, em verdade, dos efeitos diretos da deciso. interessante analisar, para bem situar a questo, as chamadas coisa julgada erga omnes e ultra partes, peculiares disciplina da tutela processual dos direitos difusos e coletivos. [1: No sistema americano, a coisa julgada divide-se em dois tipos: res judicata e collateral estoppel, no se confundindo, em nenhuma de suas verses, com o stare decisis. Conforme assinala Heinsz, ao contrrio do stare decisis, ambas as teorias exigem no apenas identidade das causas, mas tambm das partes envolvidas nos processos. A res judicata envolve a noo de precluso do pedido [claim preclusion], enquanto a collateral estoppel traz consigo a idia de precluso de fato [issue preclusion]. A res judicata previne que uma pessoa renove a discusso acerca de um pedido se (1) h um julgamento final em ao anterior, (2) as matrias levantadas num caso subseqente so as mesmas ou poderiam ter sido demandadas na ao anterior, e (3) os pedidos na segunda ao envolvem a mesma parte ou interessados. A collateral estoppel impede que uma parte renove a discusso sobre um fato se (1) o fato no litgio subseqente o mesmo que aquele da ao anterior, (2) o fato foi objeto de litgio e necessrio a uma deciso final, (3) a pessoa contra a qual a collateral estoppel afirmada era parte ou interessada na ao anterior, e (4) a parte preclusa teve total e justa oportunidade de discutir o fato (No original: Res judicata and collateral estoppel are related but distinct concepts in the law of judgments. Unlike stare decisis, both of these theories require not only identity of issues, but also of parties involved in the actions. Res judicata involves the notion of claim preclusion, whereas collateral estoppels entails the idea of issue preclusion. Res judicata bars a person from relitigating a claim if (1) there is a final judgment from prior litigation, (2) the matters raised in the subsequent case either are the same or could have been litigated in the prior action, and (3) the claims in the second action involve either the same party or persons in privity with that party. Collateral estoppel prevents a party from relitigating an issue if (1) the issue in the subsequent litigation is the same as that raised in the prior litigation, (2) the issue was actually litigated and necessary to a final adjudication, (3) the person against whom the doctrine of collateral estoppel is asserted was a party to or in privity with a party to the prior action, and (4) the party precluded had a full and fair opportunity to litigate the issue) (Timothy J. Heinsz, Grieve it again: of stare decisis, res judicata and collateral estoppels in labor arbitration. Boston College Law Review, v. 38, mar./1997, p. 275-300).]

De acordo com o art. 103, I, do Cdigo de Defesa do Consumidor, a coisa julgada, em relao s aes que tratam de direitos difusos, erga omnes - salvo quando o pedido for julgado improcedente por falta de provas. O direito difuso definido pelo mesmo Cdigo como transindividual, indivisvel, de sujeito indeterminado, pertencente a toda a coletividade. Ora, se o direito pertence a todos - ou ao menos a um complexo indeterminado e indeterminvel de sujeitos -, a deciso acerca da situao litigiosa que envolve o direito - transindividual - deve abranger a todos, tornando-se imutvel, em princpio, para as partes do processo (autor legitimado extraordinariamente e ru) e para as partes em sentido material - para se utilizar da nomenclatura de Carnelutti.[footnoteRef:2] Bem vistas as coisas, esta disciplina da coisa julgada no tem qualquer particularidade exceto, obviamente, no que diz respeito possibilidade de propositura da mesma ao com base em outras provas. Em essncia, no a coisa julgada que opera efeitos erga omnes, mas os efeitos diretos da sentena. Note-se que, para quem no est catalogado como legitimado propositura da ao - art. 82 do CDC e art. 5. da Lei 7.347/85 , a imutabilidade da deciso no decorre da coisa julgada, mas da impossibilidade de discusso judicial da situao jurdica por falta de legitimidade para agir. [2: Francesco Carnelutti, Istituzioni del processo civile italiano, Roma: Foro Italiano, 1955, v. 1, p. 56.]

Somente em relao aos co-legitimados para a ao coletiva verifica-se a extenso da coisa julgada para alm dos limites das partes. Porm, isto tambm ocorre naturalmente, porque o trnsito em julgado abarca o efeito declaratrio da sentena[footnoteRef:3], que se torna imutvel em face da relao jurdica exposta no pedido formulado. Ora, se os co-legitimados - extraordinrios, porque o direito postulado no lhes pertence, porm a toda coletividade, ou, ao menos, a um plexo indeterminado de sujeitos - podem expor em juzo apenas uma nica relao jurdica material, o trnsito em julgado da sentena torna imutvel a declarao sobre essa relao jurdica s partes materiais e tambm aos legitimados extraordinrios - que, afinal, nada mais so que longa manus dos titulares do direito, com autorizao legal para agirem em seus nomes. Para melhor esclarecer, equipare-se o fenmeno com a hiptese em que o titular do direito possui, para a tutela de seus interesses em juzo, dois ou mais substitutos processuais. A propositura da ao por qualquer um deles, com o seu julgamento, acarreta a incidncia da coisa julgada no apenas quele que props a ao, mas tambm aos demais co-legitimados. que a relao jurdica material foi julgada. [3: A coisa julgada no constitui eficcia nem efeito da sentena. , sim, qualidade que pode se agregar aos efeitos sentenciais. A eficcia da sentena, enquanto mera virtualidade, no pode ser abarcada pela imutabilidade decorrente da coisa julgada, j que no existe concretamente. Os efeitos que, em tese, podem ser acobertados pela indiscutibilidade caracterstica da coisa julgada. Todavia, dentre esses efeitos h aqueles que dependem de agentes externos, e por isso no podem ser atingidos pela imutabilidade da coisa julgada, pois podem vir a no operar efetivamente. Assim, por exemplo, a execuo pode no ser requerida, quando o efeito executivo da sentena condenatria no ser atuado. Por outro lado, ocorrendo o pagamento voluntrio, evidente que o efeito executivo ser inibido. Mas isso, como bvio, no retira o selo de imutabilidade relativo declarao contida na sentena; ou seja, ningum poder negar, depois de passada em julgado a sentena, aquilo que foi declarado. Essa declarao (eficcia declaratria) gera um efeito declaratrio que, no caso de sentena capaz de produzir coisa julgada, imunizado. De modo que apenas o efeito declaratrio pode, efetivamente, tornar-se imutvel em decorrncia da coisa julgada. Deixe-se claro, porm, que todas as sentenas tm algo de declaratrio. Ou melhor, quando se diz que a coisa julgada material incide sobre o efeito declaratrio, deseja-se afirmar que a coisa julgada material toca no elemento declaratrio das sentenas declaratrias, condenatrias, constitutivas, executivas e mandamentais e no apenas na declarao prpria sentena declaratria , projetando para fora do processo um efeito declaratrio imutvel. Ver Luiz Guilherme Marinoni e Srgio Cruz Arenhart, Curso de Processo Civil, Processo de Conhecimento, v. 2, So Paulo: Ed. RT, 2010, 8. ed., Parte III, cap. 4.]

Por sua vez, o art. 103, II, do Cdigo de Defesa do Consumidor, trata da ao coletiva para a defesa de direitos coletivos (stricto sensu). Estes direitos so ditos pela lei (art. 81, II, CDC) transindividuais, de natureza indivisvel, mas com sujeito determinado, representado por um grupo, categoria ou classe de sujeitos, ligados entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica base. De acordo com o art. 103, II, a coisa julgada, nesta hiptese, opera ultra partes ressalvada a hiptese de improcedncia por falta de provas; opera alm das partes do processo, atingindo a todo o grupo, categoria ou classe a quem pertence o direito discutido. Assim, igual objeo pode ser oposta: no a coisa julgada que se estende para alm das partes do processo. o efeito direto da sentena que incide, de maneira imutvel, sobre os titulares do direito. E isto pela singela circunstncia de que eles no detm legitimidade ad causam para discuti-la. De outro lado, no que diz respeito aos demais legitimados, ocorre exatamente o mesmo do que se disse em relao tutela dos direitos difusos.[footnoteRef:4] [4: Ver Luiz Guilherme Marinoni e Srgio Cruz Arenhart, Curso de Processo Civil, Processo de Conhecimento, v. 2, cit., Parte III, cap. 4; Luiz Guilherme Marinoni e Srgio Cruz Arenhart, Curso de Processo Civil, Procedimentos Especiais, v. 5, So Paulo: Ed. RT, 2010, 2. ed., Parte VI, cap. 8. ]

Porm, at por comodidade de linguagem, a doutrina costuma atribuir coisa julgada eficcia erga omnes. Entretanto, interessante constatar que o art. 28, pargrafo nico, da Lei n. 9868/99, diz que a declarao de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretao conforme a Constituio e a declarao parcial de inconstitucionalidade sem reduo de texto, tm eficcia contra todos e efeito vinculante em relao aos rgos do Poder Judicirio e Administrao Pblica federal, estadual e municipal. No mesmo sentido, o art. 102, 2, da Constituio Federal, afirma que as decises definitivas de mrito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas aes diretas de inconstitucionalidade e nas aes declaratrias de constitucionalidade produziro eficcia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. O art. 102, 2, expresso e claro no sentido de que a eficcia contra todos (erga omnes) deriva das decises do Supremo Tribunal Federal e no da coisa julgada. De qualquer forma, antes da Emenda Constitucional n. 3/93 no existia norma legal ou constitucional a regular os efeitos derivados das decises proferidas no controle abstrato de constitucionalidade. Foi a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal que, paulatinamente, construiu a tese dos efeitos erga omnes da deciso de inconstitucionalidade. luz da Emenda Constitucional n. 1/69, o Supremo Tribunal Federal inicialmente submetia a deciso de inconstitucionalidade proferida em controle abstrato ao Senado Federal, para que este determinasse a suspenso da execuo da lei. Porm, ainda antes da Constituio Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que as suas decises, proferidas em controle abstrato de constitucionalidade, produziam efeitos erga omnes, e, por isto, dispensavam a atuao do Senado Federal. Assim, na Representao n. 1016-3, o Ministro Moreira Alves proferiu voto, seguido unanimidade, em que se observa a seguinte passagem: Para a defesa de relaes jurdicas concretas em face de leis ordinrias em desconformidade com as Constituies vigentes na poca em que aquelas entraram em vigor, h a declarao de inconstitucionalidade incidenter tantum, que s passa em julgado para as partes em litgio (conseqncia estritamente jurdica), e que s tem eficcia erga omnes se o Senado Federal houver por bem (deciso de convenincia poltica) suspend-la no todos ou em parte. J o mesmo no ocorre com referncia declarao de inconstitucionalidade obtida em representao, a qual passa em julgado erga omnes, com reflexos sobre o passado (a nulidade opera ex tunc), independentemente de atuao do Senado, por se tratar de deciso cuja convenincia poltica do processo de seu desencadeamento se fez a priori, e que se impe, quaisquer que sejam as conseqncias para as relaes jurdica concretas, pelo interesse superior da preservao do respeito Constituio que preside ordem jurdica vigente.[footnoteRef:5] [5: STF, Representao n. 1016-3, Pleno, Relator Min. Moreira Alves, julgado em 20.09.79.]

De modo que se entende, h muito tempo, que a deciso de inconstitucionalidade produz efeitos contra todos. Entretanto, a atribuio de eficcia erga omnes s decises definitivas de inconstitucionalidade teve como premissa a coisa julgada que lhes qualifica. Muito embora a eficcia direta da deciso no se confunda com a coisa julgada, a primeira necessita da segunda para permitir a indiscutibilidade e a estabilidade da deciso transitada em julgado. Embora no processo de controle abstrato de constitucionalidade no se fale em partes, muito menos em partes materiais ou em terceiros juridicamente interessados, evidente que a ideia de alcanar a todos deriva da necessidade de no permitir, a quem quer que seja, opor-se declarao de inconstitucionalidade. Nesta dimenso, a prtica constitucional brasileira passou a acatar a tese de que a coisa julgada material qualifica a parte dispositiva da deciso de inconstitucionalidade. Entendeu-se que o dispositivo da deciso de inconstitucionalidade, isto , a declarao de que a norma x inconstitucional, tornar-se-ia imutvel e indiscutvel, e que tal dispositivo alcanaria a todos. Perceba-se que importaram, de forma isolada e autnoma, a coisa julgada material e a eficcia da deciso em relao a todos. No bastaria apenas a coisa julgada nem somente a eficcia erga omnes.Diante disto, discute-se se o Supremo Tribunal Federal pode voltar a tratar da norma que j declarou constitucional. Mas a discusso tem sido desvirtuada. Considerando-se a eficcia preclusiva da coisa julgada, tambm vista como o princpio do deduzido e do dedutvel, chega-se a afirmar que possvel propor outra ao de inconstitucionalidade, desde que fundada em outra causa de pedir. Objeta-se sob o argumento de que, na ao de inconstitucionalidade, o tribunal deve analisar a norma impugnada luz da Constituio, e, assim, no pode ficar adstrito aos fundamentos invocados na petio inicial. A adoo da ltima tese impediria a propositura de outra ao para a impugnao da norma. O Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 1896-8, afirmou que da jurisprudncia do Plenrio o entendimento de que, na Ao Direta de Inconstitucionalidade, seu julgamento independe da causa petendi formulada na inicial, ou seja, dos fundamentos jurdicos nela deduzidos, pois, havendo, nesse processo objetivo, argio de inconstitucionalidade, a Corte deve consider-la sob todos os aspectos em face da Constituio e no apenas diante daqueles focalizados pelo autor. de se presumir, ento, que, no precedente, ao menos implicitamente, hajam sido considerados quaisquer fundamentos para eventual argio de inconstitucionalidade, inclusive os apresentados na inicial da presente ao. Sendo assim, est prejudicado o requerimento de medida cautelar, j indeferida, por maioria de votos, pelo Tribunal, no precedente referido.[footnoteRef:6] Em sede de controle difuso, o Supremo Tribunal Federal no conheceu de recurso extraordinrio pelas mesmas razes. Decidiu-se, neste Recurso Extraordinrio, que, tendo o Pleno da Corte, ao julgar a ADI 2.031, relatora a eminente Ministra Ellen Gracie, dado pela improcedncia da ao quanto ao artigo 75, 1 e 2, introduzido no ADCT pela Emenda Constitucional n. 21/99, isso implica, em virtude da causa petendi aberta em ao dessa natureza, a integral constitucionalidade desses dispositivos com eficcia erga omnes.[footnoteRef:7] [6: STF, MC ADI n. 1896-8, Pleno, Relator Ministro Sydney Sanches, julgado em 18.02.99.] [7: STF, REx n. 357.576-7, 1. Turma, Rel. Ministro Moreira Alves, julgado em 17.12.2002.]

No entanto, a relao entre o efeito preclusivo da coisa julgada e a ideia de causa de pedir aberta constitui uma manipulao lgica e terica. Se h eficcia preclusiva da coisa julgada, todos os fundamentos dedutveis, desde que integrantes da causa de pedir, presumem-se deduzidos. O princpio do deduzido e do dedutvel faz precluir todos os fundamentos que fazem parte da causa de pedir invocada na ao que deu origem deciso qualificada pela coisa julgada material. Ora, falar em causa de pedir aberta significa pr de lado, para no incomodar, o princpio do deduzido e do dedutvel. Nesta hiptese, pouca importa se determinado fundamento poderia ter sido deduzido ou era integrante da causa petendi invocada. Como todos os fundamentos poderiam ser livremente analisados pelo tribunal, presume-se que todos tenham sido - ou possam ter sido - deduzidos. Porm, a ideia de causa de pedir aberta, bem vistas as coisas, liga-se natureza especfica do controle abstrato de constitucionalidade, e, assim, no deve ser vista como uma resposta eficcia preclusiva da coisa julgada. Ou melhor, preciso ter conscincia de que o instituto da eficcia preclusiva da coisa julgada incompatvel com a ao direta de (in)constitucionalidade. Basta indagar os motivos pelos quais se pensa na possibilidade de rediscutir a declarao judicial de que a norma constitucional, ou, em outros termos, as razes pelas quais se pode insistir em que a declarao de constitucionalidade, mesmo que envernizada pela coisa julgada material, no constitui obstculo rediscusso da especfica norma. interessante perceber que tais motivos so exatamente os mesmos que abrem oportunidade para a Suprema Corte americana realizar o overruling de um precedente. [footnoteRef:8] Assim, a alterao da realidade social e dos valores da sociedade, a evoluo da tecnologia e a transformao da concepo jurdica geral acerca de determinada questo. De qualquer forma, ainda que a constatao desta identidade seja interessante, o que realmente obriga a tratar a revogao da deciso de inconstitucionalidade como hiptese de superao de precedente, e no de desconsiderao da coisa julgada, a circunstncia de que, no controle abstrato de constitucionalidade, a coisa julgada material proporciona estabilidade ordem jurdica e previsibilidade aos jurisdicionados e no segurana jurdica s partes. [8: Ver Neil Duxbury, The Nature and Authority of Precedent. New York: Cambridge University Press, 2008; Melvin Aron Eisenberg, The Nature of the Common Law. Cambridge: Harvard University Press, 1998. ]

Acontece que a estabilidade da ordem jurdica e a previsibilidade no podem ser obstculos mutao da compreenso judicial da ordem jurdica. Lembre-se do que disse o Juiz Wheeler, em Dwy vs Connecticut Co.: A Corte que melhor serve ao Direito aquela que reconhece que as normas jurdicas criadas numa gerao distante podem, aps longo tempo, mostrarem-se insuficientes a outra gerao; aquela que descarta a antiga deciso ao verificar que outra representa o que estaria de acordo com o juzo estabelecido e assente da sociedade e no concede qualquer privilgio antiga norma por conta da confiana nela depositada. Foi assim que os grandes autores que escreveram sobre o common law descobriram a fonte e o mtodo do seu desenvolvimento e, em seu desenvolvimento, encontraram a sade e a vitalidade de tal Direito. Ele no nem deve ser estacionrio. A mudana desse atributo no deve ficar a cargo do Legislativo.[footnoteRef:9] [9: Cf. Benjamin N. Cardozo. The Nature of Judicial Process. New Haven: Yale University Press, 1921, p. 150-152.]

Nas aes concretas, em que a sentena outorga tutela jurisdicional parte formal ou s partes em sentido material, a funo da coisa julgada dar segurana parte, permitindo-lhe usufruir da tutela jurisdicional que lhe foi outorgada sem medo que ela possa ser contestada ou usurpada. Nas aes abstratas, ao se decidir pela constitucionalidade, nenhum direito ou vantagem deferido diretamente a alguma parte. Como dito, o benefcio da coisa julgada, em tais aes, teria relao com a estabilidade da ordem jurdica e com a previsibilidade. Porm, como os fatores que autorizam a revogao de um precedente militam em favor da prpria oxigenao e do desenvolvimento da ordem jurdica, a nica restrio para a rediscusso de norma j declarada inconstitucional estaria no prejuzo que ela poderia trazer previsibilidade. Contudo, a previsibilidade no s no valor que pode se sobrepor necessidade de desenvolvimento da jurisprudncia da Corte, como tambm naturalmente perde consistncia diante de fatores que apontam para a provvel e necessria revogao do precedente.Ademais, o benefcio trazido pela previsibilidade, ao refletir sobre posio jurdica que se consolidou com base no precedente que se quer revogar, deve ser preservado mediante a adoo de modulao adequada dos efeitos da deciso de inconstitucionalidade. Existindo situaes que se consolidaram sob a gide da deciso de constitucionalidade, os efeitos da deciso de inconstitucionalidade no podem apanh-las, devendo ser modulados em ateno particularidade de a deciso estar declarando inconstitucional norma antes declarada constitucional. De qualquer forma, se poderia dizer que, bem ou mal, a deciso de constitucionalidade produziu coisa julgada material. Porm, quando se passa a compreender que as decises do Supremo Tribunal Federal devem ser obrigatoriamente respeitadas pelos demais rgos do Poder Judicirio, a funo da coisa julgada, diante das decises de constitucionalidade, perde utilidade. Na verdade, falar em coisa julgada, neste caso, instituir problema terico para a incontestvel necessidade de revogao de precedentes, que, uma vez perpetuados, impediriam o adequado desenvolvimento da ordem constitucional. No obstante, como a relao entre deciso de constitucionalidade e coisa julgada material est arraigada na cultura jurdica, torna-se importante tambm explicar a questo sob o enfoque do instituto da coisa julgada. No h dificuldade em admitir a revogao da deciso de constitucionalidade, a partir das bases que viabilizam a revogao de precedente, ainda que se entenda que a deciso de constitucionalidade produziu coisa julgada material e que todos os fundamentos que poderiam ser alegados para evidenciar a inconstitucionalidade esto preclusos.A coisa julgada reflete estado de fato e jurdico que existia em determinado instante naquele em que a deciso foi proferida -, razo pela qual a modificao do estado de fato e do direito faz surgir outra causa de pedir e, por conseqncia, outra ao, sem que seja violentada ou desconsiderada a deciso e a coisa julgada anteriormente formadas a partir de outros fatos e de outro panorama jurdico, ainda que semelhantes. Lembre-se que a alterao da situao financeira do ru de ao de alimentos que j transitou em julgado, formando coisa julgada que guarda deciso que declarou a inexistncia de direito de perceber alimentos diante da ausncia de condio financeira do demandado, constitui nova causa de pedir, e, assim, abre oportunidade a nova ao de alimentos. Isto no significa, porm, que a ao de alimentos no forma coisa julgada material. A ao de alimentos produz coisa julgada material como qualquer outra destinada a resolver litgio que deve ser definitivamente resolvido. Falta apenas perceber, com clareza, que a deciso que se estabilizou, em virtude da coisa julgada, convive harmonicamente com outra que eventualmente se forma a partir de nova situao ftica, dando origem a outra coisa julgada material. que cada uma das decises e coisas julgadas reflete um respectivo estado de fato, ou seja, uma particular causa de pedir.O mesmo ocorre quando h alterao do ordenamento jurdico. Depois do trnsito em julgado podem sobrevir no apenas novos fatos, mas tambm novas normas. Alm de fatos capazes de alterar a situao jurdica preexistente, podem surgir normas que abroguem as que foram aplicadas na primeira ao, e, assim, dem situao ftica anterior uma nova conformao jurdica. De modo que uma circunstncia de direito posterior tambm d origem a uma nova causa de pedir, e, portanto, a uma outra ao e a uma outra deciso.Para no fugir do exemplo da ao de alimentos, suponha-se que, ao invs da alterao da situao financeira, tenha surgido nova norma, segundo a qual a relao de parentesco, que dava origem ao dever alimentar reconhecido na sentena transitada em julgado, no mais obriga o condenado a pagar alimentos.[footnoteRef:10] O fato anteriormente reconhecido, segundo a nova lei, no mais fato constitutivo do dever alimentar.[footnoteRef:11]Assim, o devedor de alimentos pode propor ao inversa uma nova ao - contra o autor da ao anterior. A nova lei uma nova circunstncia, e, assim, no est coberta pelo princpio do deduzido e do dedutvel. Portanto, gera uma nova causa de pedir e, assim, oportuniza outro julgamento, outra deciso e outra coisa julgada. [10: Remo Caponi, Lefficacia del giudicato civile nel tempo. Milano: Giuffr, 1991, p. 29. ] [11: La duplicit dei possibili eventi sopravvenuti non che la conseguenza del duplice condizionamento che determina la durata limitata della situazione giuridica dedotta in giudizio (la temporalit della fattispecie e della norma giuridica) (Remo Caponi, Lefficacia del giudicato civile nel tempo, cit., p. 29). ]

A alterao do ordenamento jurdico modifica a relao entre as partes no plano substancial, mas no pode alterar a declarao de que o primitivo ru, no instante em que a sentena foi proferida, devia alimentos ao autor. O j condenado, mediante ao calcada na alterao da ordem jurdica, pode obter sentena que o exonere de pagar alimentos. Neste sentido, a nova lei, ao dar origem a nova ao e a outro julgamento, no infringe a coisa julgada.A nova lei tambm no retira do primitivo autor o benefcio que a sentena pretrita lhe gerou, uma vez que essa sentena lhe outorgou direito aos alimentos com base na lei ento existente. Mas a sentena, proferida sob a vigncia da lei antiga, no pode continuar a gerar benefcios ao autor que, a partir da alterao do ordenamento jurdico, deixou de ter direito aos alimentos. Raciocnio inverso significaria desconsiderao do efeito das novas leis sobre as relaes em curso. Tomar em conta uma nova lei, assim como um novo fato, simplesmente admitir a existncia de relaes continuativas. Na realidade, a percepo de que uma nova lei pode fazer cessar um benefcio at ento outorgado pela coisa julgada um reflexo da estrutura marcadamente temporal do prprio direito.[footnoteRef:12] [12: Remo Caponi, Lefficacia del giudicato civile nel tempo, cit., p. 31. ]

Tudo tambm muito simples quando se pensa na mutao da Constituio. evidente que, neste caso, as leis pretritas dependem da sua compatibilidade com a nova ordem constitucional. Assim, eventual sentena que tenha declarado a constitucionalidade de norma certamente pode ter a sua eficcia limitada no tempo edio da nova Constituio. O verdadeiro problema que a surge diz respeito ao cabimento da ao declaratria de inconstitucionalidade. Melhor explicando: argumenta-se que se a norma pretrita, para permanecer eficaz, depende de estar em compatibilidade com a nova Constituio, no haveria razo para admitir ao para declarar a sua inconstitucionalidade; a hiptese no seria de norma inconstitucional, porm de norma no recepcionada. Na Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 2, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, endossou a orientao de que, tratando-se de norma editada luz de Constituio pretrita, descabe a ao declaratria de inconstitucionalidade. Nesta ocasio, o Tribunal no admitiu a ao sob o fundamento de impossibilidade jurdica do pedido[footnoteRef:13]. [13: Por maioria de votos, o Tribunal no conheceu da ao, por impugnar leis anteriores Constituio de 1988 (impossibilidade jurdica do pedido), vencidos os Ministros Marco Aurlio, Seplveda Pertence e Nri da Silveira, que rejeitavam essa preliminar (STF, ADI n. 2, Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em 06.02.92).]

A ementa do acrdo proferida na Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 2 afirma que o vicio da inconstitucionalidade congnito lei e h de ser apurado em face da Constituio vigente ao tempo de sua elaborao. Lei anterior no pode ser inconstitucional em relao Constituio superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituio futura. A Constituio sobrevinda no torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes; revoga-as. [footnoteRef:14] [14: STF, ADI n. 2, Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em 06.02.92.]

O relator, Ministro Paulo Brossard, argumentou que norma anterior Constituio pode no ser recepcionada, mas no pode ser dita inconstitucional; inconstitucional pode ser apenas a norma posterior Constituio. O problema da norma anterior Constituio seria de direito intertemporal; no de direito constitucional. De acordo com o voto do relator, no h como admitir ao direta de inconstitucionalidade para tratar de normas que podem estar revogadas, mas no so inconstitucionais (...) O pedido juridicamente impossvel. A ao direta para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo; no para declarar revogada tal ou qual lei por fora de Constituio superveniente. [footnoteRef:15] [15: STF, ADI n. 2, Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em 06.02.92.]

O Ministro Seplveda Pertence, divergindo da maioria, no apenas ponderou que, no caso, nada impediria que se pensasse em inconstitucionalidade superveniente, como advertiu para o mal que adviria do rigor na admisso da tese da revogabilidade, qual seja, a impossibilidade do uso da ao direta. Reduzir o problema s dimenses da simples revogao da norma infraconstitucional pela norma constitucional posterior se alvitre que tem por si a seduo da aparente simplicidade -, redunda em fechar-lhe a via da ao direta. E deixar, em conseqncia, que o deslinde das controvrsias suscitadas flutue, durante anos, ao sabor dos dissdios entre juzes e tribunais de todo o pas, at chegar, se chegar, deciso da Alta Corte, ao fim de longa caminhada pelas vias freqentemente tortuosas do sistema de recursos. (...) Perdero com tudo isso, inevitavelmente, no s a rapidez, mas a uniformizao dos resultados da tarefa jurisdicional de conformao do direito velho s novas diretrizes da Lei Fundamental, com patente perda da efetividade desta e da segurana jurdica dos jurisdicionados. Ao contrrio, se se entende que o conflito cogitado se traduz em inconstitucionalidade superveniente chame-se, embora, de revogao sua conseqncia jurdica abre-se-lhe a via do controle abstrato, hoje generosamente ampliada pela desconcentrao da legitimidade ativa. [footnoteRef:16] [16: STF, ADI n. 2, Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em 06.02.92.]

certo que o parmetro para a aferio da inconstitucionalidade h de ser o texto constitucional existente poca da elaborao da norma contrastada. Assim, se uma norma no se compatibiliza com a nova ordem constitucional, h revogao. Neste caso, porm, h tambm um objeto que serve de parmetro para a aferio da revogao. A norma confrontada com a nova Constituio, e, assim com acontece na relao (norma x Constituio) que tem por fim a formao de juzo de constitucionalidade, nem sempre h certeza acerca da recepo ou no da norma pela nova ordem constitucional. Bem por isto, inegvel a imprescindibilidade de ao direta para estas situaes. O acrdo proferido na Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 2 - antes referido disse no ter conhecido a ao por falta de possibilidade jurdica do pedido. No conhecer da ao, na dico do acrdo, est em no admitir a ao direta para declarar, em abstrato, a inconstitucionalidade da norma revogada. Porm, mais do que saber se o pedido era possvel ou se o procedimento era adequado espcie de tutela jurisdicional pretendida, necessrio perceber que, assim como o controle concentrado importante para a norma considerada em face da Constituio do seu tempo, ela imprescindvel para a norma pretrita diante da nova Constituio. Lembre-se, alis, que a Lei 9.882/99 que regulamenta o processo e o julgamento da argio de descumprimento de preceito fundamental - afirma em seu art. 1, pargrafo nico, I, que tambm cabe argio de descumprimento de preceito fundamental quando for relevante o fundamento da controvrsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, includos os anteriores Constituio. H situao diversa quando se tem em conta a alterao dos fatos, capaz de tornar norma, ainda que j declarada constitucional, inconstitucional. certo que a alterao da realidade social e dos valores da sociedade, assim como a evoluo da tecnologia, podem fazer com que norma, j declarada constitucional, transforme-se em inconstitucional[footnoteRef:17]. Trata-se de razes que so adotadas, de forma costumeira, para a revogao de precedentes no common law. Porm, ainda que neste instante se pense em coisa julgada material e no em stare decisis[footnoteRef:18] ou eficcia obrigatria dos precedentes, tais razes constituem novas circunstncias, aptas a fazer surgir nova causa de pedir obviamente diferente daquela que fundou a anterior ao direta de constitucionalidade -, e, assim, outra coisa julgada material, em tudo distinta da anterior. Por serem coisas julgadas diferentes, suas eficcias temporais no se sobrepem. Uma cessa para a outra brotar. [17: Como diz Teori Albino Zavascki, a relao de harmonia entre a norma constitucional e as normas ordinrias poder ficar comprometida pro fatos sobrevindos, que alterem a realidade social. (...) No de se estranhar, assim, a ocorrncia do fenmeno da inconstitucionalidade superveniente, acima referido: uma norma nascida em harmonia com a Constituio pode tornar-se com ela incompatvel em face de substanciais mudanas da realidade social em que atua. (Teori Albino Zavascki, Eficcia das sentenas na jurisdio constitucional, So Paulo: Ed. RT, 2001, p. 114). ] [18: De regra, o termo stare decisis significa tanto a vinculao, por meio do precedente, em ordem vertical (ou seja, como representao da necessidade de uma Corte inferior respeitar deciso pretrita de Corte superior), como horizontal (a Corte respeitar deciso anterior proferida no seu interior, ainda que a constituio dos juzes seja alterada). Esta a posio adotada, entre outros, por Neil Duxbury e Melvin Aron Eisenberg. Em outra senda, h aqueles que optam por distinguir o termo stare decisis de precedent, como Frederick Schauer, para quem [t]ecnicamente, a obrigao de uma corte de seguir decises prvias da mesma corte dita como sendo stare decisis (...), e o termo mais abrangente precedente usado para se referir tanto stare decisis, quanto obrigao de uma corte inferior de seguir decises de uma superior. Ver Neil Duxbury, The Nature and Authority of Precedent, cit., p. 12-13; Melvin Aron Eisenberg, The Nature of the Common Law, cit., p. 48 e ss; SCHAUER, Frederick. Why precedent in law (and elsewhere) is not totally (or even substantially) about analogy. Disponvel em . ltimo acesso em 01/10/2009.]

A deciso declaratria de inconstitucionalidade, diante das relaes continuativas, no retroage sobre a coisa julgada, mas limita a sua eficcia temporal.[footnoteRef:19] A coisa julgada antes formada, espelhando a realidade ftica e jurdica legitimamente interpretada pelo Tribunal, permanece vlida e intacta. Ela limitada em virtude de circunstncia posterior, expressa na declarao de inconstitucionalidade. [19: O problema relativo a se saber se a coisa julgada, nas relaes continuativas, infringida ou tocada pela declarao de inconstitucionalidade muito discutido na Alemanha. A posio majoritria no sentido de que se pode proteger a coisa julgada sem se deixar de atender superveniente declarao de inconstitucionalidade (Cf. Rui Medeiros, A deciso de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Catlica Ed., 1999, p. 571).]

Sem retroagir sobre a coisa julgada, a declarao de inconstitucionalidade incide imediatamente sobre as relaes em trnsito, dando-lhes a regulao constitucional prpria ao momento em que se desenvolvem. Frise-se que, embora atribuir efeito a uma deciso que aplicou uma lei posteriormente declarada inconstitucional no signifique o mesmo que atribuir efeito a uma lei inconstitucional[footnoteRef:20] - e, portanto, a deciso de inconstitucionalidade no deva retroagir sobre a coisa julgada -, no h racionalidade em admitir que uma deciso continue a produzir efeitos, regulando uma relao que se desenvolve no tempo, depois de a lei por ela aplicada ter sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. [20: Humberto Theodoro Jr. e Juliana Cordeiro de Faria parecem no ter compreendido o que pretendo demonstrar quando digo que atribuir efeito a uma deciso que aplicou uma lei posteriormente declarada inconstitucional no signifique o mesmo que atribuir efeito a uma lei inconstitucional. Contestando o que escrevi em outro lugar (O princpio da segurana dos atos jurisdicionais, Revista de Direito Processual Civil, v. 31, p. 147), assim argumentam: estranhvel, ab initio, atribuir-se lei menor relevncia que sentena, quando o que se tem a coibir a inconstitucionalidade. Esta pode invalidar uma simples lei mas nada pode contra a sentena passada em julgado. No parece razovel esta estranha hierarquia de inconstitucionalidades (Humberto Theodoro Jr. e Juliana Cordeiro de Faria, A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para o seu controle, Coisa julgada inconstitucional, Rio de Janeiro, Amrica Jurdica, 2002, p. 209). Ora, no se est atribuindo lei menor relevncia que sentena. Apenas se est demonstrando que atribuir efeitos a uma sentena fundada em lei inconstitucional no o mesmo do que admitir efeitos a uma lei declarada inconstitucional. bom lembrar que a teoria da nulidade tem sido relativizada, de modo a se ressalvarem os atos pretritos deciso de inconstitucionalidade. Portanto, somente uma aplicao muito rigorosa e completamente inadequada da teoria da nulidade poderia explicar a desconstituio da coisa julgada como conseqncia direta e inarredvel da declarao de inconstitucionalidade. Theodoro Jr. e Juliana no percebem que a sentena que aplica lei posteriormente declarada inconstitucional , em si, uma deciso ou um juzo constitucional. A declarao de inconstitucionalidade da lei no gera a inconstitucionalidade da sentena que na lei se fundou. No h, portanto, qualquer hierarquia de inconstitucionalidades, mas sim a necessria ressalva da coisa julgada diante da declarao de inconstitucionalidade. Em vez de se adotar a polmica lio do jurista portugus Paulo Otero, basta dar maior ateno ao texto da prpria Constituio da Repblica portuguesa (art. 282, 3) para se perceber a possibilidade de se ressalvar a coisa julgada diante da deciso de inconstitucionalidade, ou melhor, para se detectar a diferena entre lei declarada inconstitucional e sentena, transitada em julgado, fundada em lei posteriormente declarada inconstitucional. oportuno reafirmar que o defeito da tese de Paulo Otero est em ver a deciso que aplica lei posteriormente declarada inconstitucional como uma deciso que viola de forma flagrante uma norma inconstitucional, o que, inclusive, constitui contradio com o seu argumento de que o juiz no pode mais ser visto como mero aplicador da lei. Ora, exatamente porque o juiz no mais um executor das leis, mas deve decidir interpretando a lei de acordo com a Constituio, que a sua deciso constitui um juzo constitucional, mesmo quando aplica lei mais tarde declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal. Afirmam Theodoro Jr. e Juliana, ainda, que no se compreende como possa a injustia da sentena afastar a coisa julgada, fundada em simples ilegalidade na hiptese da ao rescisria, e tenha que ser tida como irrelevante quando o contraste se trave entre o ato decisrio e a Constituio (Humberto Theodoro Jr. e Juliana Cordeiro de Faria, A coisa julgada inconstitucional..., cit., p. 209). preciso esclarecer, em relao a este ponto, que a deciso que aplica lei posteriormente declarada inconstitucional no contrasta com a Constituio. Fosse assim, toda e qualquer deciso tomada por juiz ou tribunal em controle difuso da constitucionalidade inevitavelmente poderia, um dia, contrastar com a Constituio, deixando sem qualquer explicao o trabalho da jurisdio e a expectativa de confiana legtima gerada aos vencedores das demandas encerradas. A simples ilegalidade, de que falam os autores, a violao literal de lei. Ora, a deciso que viola frontalmente a Constituio ou que aplica lei j declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal obviamente no irrelevante, podendo igualmente ser rescindida com base no art. 485, V, do Cdigo de Processo Civil. Sustenta-se, aqui, a no-assimilao destas decises por deciso que aplicou em poca em que se controvertia sobre a questo constitucional lei posteriormente declarada inconstitucional. Theodoro Jr. e Juliana, assim como outros que pregam a relativizao da coisa julgada, simplesmente ignoram o efeito desta tese sobre o sistema de controle difuso da constitucionalidade. A lgica da argumentao dos tericos da relativizao da coisa julgada, em vez de tutelar a plenitude da Constituio, faz apenas com que a voz do Supremo Tribunal Federal tenha o efeito perverso de destruir as decises judiciais, desvalorizando os juzes e os tribunais e tornando o processo civil um objeto ainda mais inexplicvel ao cidado. Ver Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada Inconstitucional. 2. Ed. So Paulo: Ed. RT, 2010.]

Problema difcil posto quando se olha para a mutao da compreenso geral acerca de determinada questo constitucional, pretendendo-se equipar-la, para o efeito de constituir nova circunstncia ou nova causa de pedir, com a mudana do estado de fato. Todos sabem que a modificao da interpretao do direito no permite a correo da deciso qualificada pela coisa julgada material. Por igual razo, no h como admitir que, em virtude de nova compreenso do direito constitucional, desconsidere-se a coisa julgada e, assim, a garantia constitucional da segurana jurdica.A questo importante, particularmente por demonstrar que se est diante do problema da eficcia temporal dos efeitos obrigatrios dos precedentes e que esta eficcia temporal no se confunde com a eficcia temporal da coisa julgada. indiscutvel que uma Corte Constitucional no pode ficar presa a entendimentos jurisprudenciais passados. Porm, isto obviamente no quer dizer que a Corte possa abandonar as suas posies diante de qualquer tese, nova doutrina ou interpretao discrepante. O abandono de um precedente constitucional, neste caso, depende da mutao da compreenso geral portanto, na academia e nas Universidades a respeito da questo de direito em que o precedente se baseou. Por compreenso geral preciso entender a compreenso pacfica, clara, sobre a questo jurdica, capaz de evidenciar que a manuteno do precedente configuraria a perpetuao de um equvoco.O motivo pelo qual fcil racionalizar a alterao de precedente constitucional e no a paralisao da eficcia temporal da coisa julgada material se liga aos diferentes resultados que se almejam atravs desta ltima e da eficcia obrigatria dos precedentes. Do ponto de vista subjetivo, a eficcia obrigatria dos precedentes garante a previsibilidade dos jurisdicionados[footnoteRef:21], enquanto a coisa julgada garante parte a segurana de que o resultado que lhe foi conferido pela jurisdio no ser alterado. [21: Ver Evan H. Caminker, Precedent and Prediction: The Forward-Looking Aspects of Inferior Court Decisionmaking. Texas Law Review, 1994, v. 73, p. 1-82.]

Ora, fcil perceber que a previsibilidade perde fora quando a compreenso geral acerca de questo de direito contraria o fundamento de determinado precedente. H previsibilidade em sentido inverso, no sentido de que o precedente ser revogado. De modo que a garantia de previsibilidade, oriunda da fora obrigatria dos precedentes, no constitui obstculo revogao de precedente com base em alterao da compreenso geral sobre questo de direito. Porm, algo completamente diferente se passa em relao garantia de imutabilidade, peculiar coisa julgada. Neste caso, como bvio, no apenas no se supe, como, em verdade, no se admite ou tolera a revogao da coisa julgada em virtude da alterao da compreenso geral do direito. Note-se que, no primeiro caso, a segurana se realiza pela previsibilidade, ao passo que, na hiptese de coisa julgada, a segurana jurdica est na imutabilidade e na indiscutibilidade.Quando, no momento da revogao judicial do precedente, ainda existia certo grau de confiana nele depositado, o Tribunal deve modular os efeitos retroativos da deciso de inconstitucionalidade em ateno a este fator. No o caso, assim, de estabelecer uma simples relao lgica entre a alterao da compreenso geral do direito e a retroatividade da deciso, mas de compatibilizar a retroatividade da deciso com o momento em que ganhou corpo a previsibilidade de que, em virtude de tal alterao, o precedente deveria ser revogado. De qualquer forma, a coisa julgada material, diante das relaes continuativas, no afetada pela ao que se funda em nova circunstncia. Assim, admitindo-se ao de inconstitucionalidade baseada em nova concepo geral acerca da questo de direito, no se estaria ferindo a garantia de segurana proporcionada pela coisa julgada. Mas a nova concepo geral sobre a questo de direito seria alada ao patamar de nova circunstncia, capaz de dar origem a ao de inconstitucionalidade dirigida a inverter o resultado anteriormente obtido com a ao de constitucionalidade.Embora nova concepo geral de direito no possa permitir a propositura de ao de exonerao de obrigao alimentar por aquele que foi vencido na ao de alimentos, a natureza do controle abstrato de constitucionalidade impe soluo diversa. Se a deciso oriunda de ao ancorada em nova concepo jurdica produz efeitos para o futuro, no h porque manter eficaz no tempo a coisa julgada erga omnes proveniente da deciso abstrata de constitucionalidade calcada em conscincia jurdica no mais aceitvel pela comunidade.Diante desta concluso cabe perguntar se o jurisdicionado pode propor ao concreta, para buscar a realizao de pretenso que tenha como pressuposto a inconstitucionalidade de norma j declarada constitucional, com base nas novas circunstncias antes referidas, vistas como hbeis a permitir a propositura de ao direta de inconstitucionalidade. Considerando-se unicamente a coisa julgada diante das relaes continuativas, no haveria razo para estranhar tal possibilidade, j que a coisa julgada nunca afetada por ao baseada em nova causa de pedir. Assim, ao fundada em nova circunstncia, ainda que dirigida realizao de pretenso individual, no viola a coisa julgada erga omnes. O problema, em verdade, no est na coisa julgada erga omnes como obstculo ao concreta, mas na anlise de se outro tribunal, alm do Supremo tribunal Federal, pode aferir a presena de nova circunstncia como fundamento ao estancamento dos efeitos temporais da coisa julgada erga omnes.A soluo deste problema exige que seja agregada discusso a questo dos efeitos obrigatrios dos precedentes ou dos efeitos vinculantes. Sabe-se que as decises proferidas em ao de constitucionalidade tm eficcia erga omnes e efeito vinculante em relao aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, 2, CF). De modo que, se os demais rgos do Poder Judicirio so obrigados a respeitar as decises tomadas em ao direta pelo Supremo Tribunal Federal, apenas a constatao de que a ao concreta baseada em novas circunstncias no afeta a coisa julgada erga omnes no bastante para definir se os tribunais estaduais ou regionais federais, por exemplo, podem fazer cessar os efeitos temporais da coisa julgada. Torna-se evidente, diante desta encruzilhada, que a coisa julgada erga omnes no se confunde com a eficcia vinculante. Ao decidir de forma contrria ao Supremo Tribunal Federal, o tribunal estadual ou regional federal no viola a coisa julgada erga omnes, mas desconsidera a eficcia vinculante. Seria possvel argumentar, em contrrio manuteno da eficcia vinculante diante do surgimento de nova circunstncia, que o tribunal estadual ou regional federal, nesta situao, no viola a autoridade do Supremo Tribunal Federal. Mas este argumento correto apenas na poro que no tem significado resistncia. Realmente, ao decidir outra demanda, estruturada sob nova causa de pedir, o tribunal federal regional ou estadual no viola a autoridade da coisa julgada e do Supremo Tribunal Federal. Porm, estes tribunais, ao chamarem a si o poder de fazer cessar, ainda que apenas em relao parte da ao concreta, os efeitos da coisa julgada erga omnes, evidentemente negam a eficcia vinculante. No cabe a qualquer outro rgo do Poder Judicirio dizer que uma nova circunstncia suficiente para fazer cessar a eficcia da coisa julgada erga omnes - derivada de deciso proferida pelo Supremo Tribunal Federal em ao direta de constitucionalidade. Apenas o Supremo Tribunal Federal tem poder para revogar os seus precedentes.Frise-se o fundamento desta concluso: ao se admitir uma nova circunstncia, ainda que no se volte a tratar da mesma questo j resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, afirma-se que o precedente no mais presta a definir a interpretao da questo constitucional. Outro rgo do Poder Judicirio, que no o Supremo Tribunal Federal, estaria a dizer que houve alterao da realidade social etc., capaz de permitir a revogao do precedente firmado em ao direta de constitucionalidade. Porm, o fato de a eficcia vinculante incidir em relao aos demais rgos do Poder Judicirio significa exatamente que apenas o Supremo Tribunal Federal pode revogar os seus precedentes. No calha argumentar que, diante de nova circunstncia, no se revoga o precedente, mas apenas se diz que o precedente no se aplica a uma nova situao. Ora, se necessrio dizer que o precedente no se aplica, h, para o efeito que aqui interessa, revogao do precedente. Ou melhor, h exerccio de poder deferido unicamente ao Supremo Tribunal Federal. No obstante, de se pontuar. O fato de nenhum outro rgo judicial, que no o Supremo Tribunal Federal, poder revogar os precedentes relativos a decises tomadas em ao direta de constitucionalidade, no significa excluir a possibilidade de exerccio de ao concreta. possvel admitir a incoao do controle difuso para se chegar ao Supremo Tribunal Federal, j que o jurisdicionado no dispe de qualquer outro meio para fazer valer o seu direito enquanto o precedente no for revogado.Contudo, para no se concluir que sempre imprescindvel chegar ao Supremo Tribunal Federal, possvel admitir, em hipteses excepcionais, de notria e incontestvel perda de substrato do precedente, uma espcie de revogao antecipada, nos moldes do que ocorre no common law mediante o que se denomina de antecipatory overruling.[footnoteRef:22] [22: Robert S. Summers, Precedent in the United States (New York State). In: Interpreting Precedents: A Comparative Study. London: Dartmouth, 1997, p. 394 e ss.]

De qualquer maneira, a coisa julgada da declarao de constitucionalidade no impede a considerao de novas circunstncias, inclusive a alterao da concepo geral acerca de questo de direito, em sede de recurso extraordinrio. No haveria racionalidade em admitir a invocao destas circunstncias em ao de inconstitucionalidade e, ao mesmo tempo, impedir o Supremo Tribunal Federal de as enxergar ao se defrontar com recurso extraordinrio. Em caso de recurso extraordinrio, h necessidade de no violar a segurana jurdica daquele que se comportou de acordo com a deciso de constitucionalidade. No se pode esquecer que, no caso de relaes continuativas, a deciso opera para o futuro porque a prpria ao, tendo que se fundar em nova circunstncia, no objetiva alcanar seno as situaes que esto por vir. Assim, no h como admitir ao direta de inconstitucionalidade ou ao concreta para negar situao jurdica formada com base na deciso de constitucionalidade, pois isto seria violar a coisa julgada. Alis, mesmo que no haja deciso proferida em ao direta, mas apenas precedente decorrente de deciso tomada em recurso extraordinrio, a situao jurdica que se consolidou com base no precedente no pode ser atingida pela posterior deciso que declarou a inconstitucionalidade.Ou seja, a deciso proferida na ao direta de inconstitucionalidade no pode apanhar situaes pretritas e no apenas a coisa julgada material.[footnoteRef:23] Do mesmo modo, a deciso tomada em recurso extraordinrio, alm de obviamente no poder atingir a coisa julgada, no pode alcanar situao anterior que se formou a partir de precedente. [23: No Estado Constitucional brasileiro, em que o juiz tem o dever de interpretar a lei de acordo com a Constituio e de realizar o controle da constitucionalidade no caso concreto, no h como sustentar que a jurisdio atua a vontade da lei, na linha proposta por Chiovenda, ou mesmo se limita a criar a norma concreta, nos termos da teoria de Kelsen e das doutrinas de Carnelutti e Calamandrei. Nas teorias clssicas, o juiz declara a lei ou cria a norma individual a partir da norma geral. Atualmente, cabe ao juiz o dever-poder de elaborar ou construir a deciso, isto , a norma jurdica do caso concreto, mediante a interpretao de acordo com a Constituio e o controle da constitucionalidade. A deciso transitada em julgado, assim, no pode ser invalidada como se constitusse mera declarao ou aplicao da lei, mais tarde pronunciada inconstitucional. A deciso judicial o resultado da interpretao de um juiz dotado de dever de controlar a constitucionalidade no caso concreto, e, portanto, no pode ser pensada como uma deciso que se limita a aplicar uma lei posteriormente declarada inconstitucional. Como oberva Proto Pisani, possvel dizer que a coisa julgada material opera como lex specialis, separando a disciplina do direito feito valer em juzo da norma geral e abstrata, da decorrendo a inoperatividade do ius superveniens retroativo sobre a fattispecie concreta de que deriva o direito objeto da coisa julgada, e ainda a inoperatividade da superveniente declarao de inconstitucionalidade da norma geral e abstrata sobre a qual se decidiu (Andrea Proto Pisani, Appunti sul giudicato civile e sui suoi limiti oggettivi, Rivista di Diritto Processuale, 1990, p. 389). A sentena que produziu coisa julgada material, por constituir uma norma elaborada por um juiz que tem o dever de realizar o controle difuso da constitucionalidade, no pode ser invalidada por ter se fundado em lei posteriormente declarada inconstitucional. Note-se que isto equivaleria nulificao do juzo de constitucionalidade e no apenas nulificao da lei declarada inconstitucional. Impedir que a lei declarada inconstitucional produza efeitos muito diferente do que negar efeitos a um juzo de constitucionalidade, legitimado pela Constituio. Proteger a coisa julgada no significa permitir que, no plano substantivo, um ato inconstitucional produza efeitos. Ver Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada Inconstitucional, cit.]

A deciso proferida em recurso extraordinrio, considerando inconstitucional a norma antes afirmada constitucional pelo precedente tambm derivado de recurso extraordinrio, no deve ter efeitos retroativos em relao prpria situao litigiosa sob julgamento. Em todos os casos em que a revogao do precedente no s conduzir a uma nova deciso acerca da questo de constitucionalidade, mas puder apanhar situao jurdica que se formou em benefcio do recorrido, os efeitos retroativos da deciso proferida no recurso extraordinrio devero ser limitados ou mesmo inibidos. No h dvida que, em tal hiptese, poder haver deciso favorvel sem quaisquer efeitos concretos benficos. Mas isto prprio de um sistema em que mesmo as decises proferidas em controle difuso assumem a natureza e a funo de precedentes constitucionais com fora vinculante, independentemente de suas repercusses nos casos concretos que os oportunizaram. certo que esta ideia ainda no faz parte da prtica do Supremo Tribunal Federal. Porm, trata-se de questo que tem grande importncia para o adequado desenvolvimento do sistema de precedentes. A confiana depositada pelo jurisdicionado no precedente no pode ser desconsiderada pelo Supremo Tribunal Federal. O responsvel pela legitima expectativa criada em favor do jurisdicionado deve zelar para que as situaes que se pautaram no precedente sejam efetivamente respeitadas, sem deixar de considerar, igualmente, os fatores que possam fazer crer que a confiana no precedente j teria esmorecido. No direito estadunidense, a prtica judicial dos efeitos retroativo e prospectivo variada. Em caso de revogao de precedente, caminha-se entre a eficcia geral meramente prospectiva e a eficcia geral plenamente retroativa, admitindo-se, em determinados casos, a irretroatividade da deciso em relao ao prprio caso sob julgamento. [footnoteRef:24] [24: Ver Melvin Aron Eisenberg, The Nature of the Common Law, cit, p. 89 e ss. ]

De outro lado, conveniente ressaltar, desde j, que no apenas a deciso de constitucionalidade que se sujeita s chamadas novas circunstncias, mas tambm a deciso que, proferida em recurso extraordinrio, reconhece a inconstitucionalidade de norma. A norma, no caso, no retirada do ordenamento jurdico, embora os motivos determinantes da deciso fiquem acobertados pela eficcia vinculante, atingindo todos os outros rgos do Poder Judicirio, bem como a administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Assim, certamente possvel que a deciso que reconheceu a inconstitucionalidade de dada norma um dia seja contrariada, pelas mesmas razes que autorizam a revogao de precedente constitucional ou que do ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de declarar inconstitucional uma norma que antes pronunciou constitucional.Esta questo oportuniza a anlise dos efeitos vinculantes da deciso, uma vez que faz ver que a estabilidade da proclamao da inconstitucionalidade no decorre da coisa julgada material, mas de os fundamentos determinantes ficarem acobertados pela eficcia vinculante. O verdadeiro motivo para se pensar em eficcia vinculante est na preocupao com a estabilidade dos fundamentos determinantes da deciso.[footnoteRef:25] Assim, equivocado imaginar que os efeitos vinculantes acobertam apenas a parte dispositiva da deciso. O objetivo da eficcia vinculante no tornar indiscutvel ou imutvel o dispositivo da deciso, nem tornar indiscutveis ou imutveis os fundamentos da deciso em relao s partes, sejam formais ou materiais. [25: Como escreve Michael Sachs, o prprio Tribunal Constitucional Federal defendeu, em jurisprudncia constante e de longa data, a concepo de que essa fora vinculante de suas decises vai alm do respectivo dispositivo i.e., vai alm da deciso normalmente encontrada acerca do objeto do processo para tambm abranger os fundamentos determinantes de suas decises. Com isso, essa eficcia vinculante tambm atinge as concepes jurdicas que sejam determinantes para as decises (Michael Sachs, Verfassungsprozessrecht, 2. ed. Frankfurt am Main: Verlag Recht und Wirtschaft, 2007, p. 186). No original: Das BVerfG selbst hat in stndiger Rechtsprechung lange Zeit die Auffassung vertreten, dass diese Bindungskraft seiner Entscheidungen sich ber den jeweiligen Tenor bzw. die regelmig darin getroffene Entscheidung ber den Entscheidungsgegenstand hinaus auch auf die tragenden Grnde seiner Entscheidungen erstreckt. Damit beansprucht es diese Bindungswirkung auch fr die Rechtsauffassungen, die fr seine Entschediungen jeweils mageblich sind (Michael Sachs, Verfassungsprozessrecht, 2. ed. Frankfurt am Main: Verlag Recht und Wirtschaft, 2007, p. 186).]

A eficcia vinculante almeja isolar os fundamentos determinantes da deciso, impedindo que os rgos pblicos que aplicam o direito possam neg-los. Assim, alm de no se limitar ao dispositivo, a eficcia vinculante no se volta a dar segurana s partes, e, portanto, est muito distante da coisa julgada. certo que na ao abstrata no existe partes e ainda assim se fala, inclusive no plano normativo, em coisa julgada. Trata-se, porm, de distoro do fenmeno da coisa julgada, que se popularizou por fora da sua aceitao perante a comunidade jurdica. Quando primitivamente se concebeu a coisa julgada na ao abstrata, pensou-se, em verdade, em eficcia vinculante limitada ao dispositivo da deciso. Embora exista discusso acerca dos limites objetivos da eficcia vinculante, a sua razo de ser ou a sua essncia afastam completamente a idia de v-la limitada ao dispositivo da deciso. Isto porque a eficcia vinculante vista como eficcia obrigatria em relao aos rgos pblicos incumbidos de aplicar o direito e, se bastasse obrigar-lhes a se curvar aos dispositivos das decises, seria suficiente a tal coisa julgada erga omnes. Ou melhor, embora a eficcia vinculante destine-se a conferir segurana jurdica aos jurisdicionados, ela no se preocupa em garantir a indiscutibilidade ou a imutabilidade da precisa soluo dada ao objeto litigioso, mas em tutelar a estabilidade da ordem jurdica, a previsibilidade e a igualdade.Como est claro, a eficcia vinculante tem o mesmo objetivo da eficcia obrigatria dos precedentes e, nesta dimenso, do stare decisis. O precedente apenas garantido quando os rgos judiciais esto a ele vinculados. Porm, a parte dispositiva no capaz de atribuir significado ao precedente; esse depende, para adquirir contedo, da sua fundamentao, ou, mais precisamente, da ratio decidendi[footnoteRef:26] ou dos fundamentos determinantes da deciso. Na verdade, a eficcia obrigatria dos precedentes , em termos mais exatos, a eficcia obrigatria da ratio decidendi. Da a razo bvia pela qual a eficcia vinculante no pode se limitar ao dispositivo da deciso. S h sentido e razo para falar em eficcia vinculante quando se pretende dar estabilidade e fora obrigatria ratio decidendi. Afinal, a sua aplicao uniforme e no o respeito exclusivo parte dispositiva - que garante a previsibilidade e a igualdade de tratamento perante a jurisdio, dando-se efetividade ao postulado de que casos semelhantes devem ser tratados de igual modo. [26: Sobre o conceito de ratio decidendi, ver Geoffrey Marshall, What is binding in a precedent. In: Interpreting Precedents: A Comparative Study. London: Dartmouth, 1997, p. 503 e ss; Julius Stone, Precedent and Law: The Dynamics of Common Law Growth. Sydney: Butterworths, 1985, p. 123 e ss.]

De forma que pretender que a eficcia vinculante seja limitada ao dispositivo , antes de mais nada, no ter conscincia de que a eficcia vinculante tem o objetivo de preservar a coerncia da ordem jurdica, assim como a previsibilidade e a igualdade. Mas no se pense, apressadamente, que a eficcia vinculante pode obstaculizar o desenvolvimento do direito ou congelar as decises do Poder Judicirio, impedindo a sua renovao e adequao aos novos tempos. O art. 102, 2, da Constituio Federal expresso no sentido de que a eficcia vinculante no atinge o Supremo Tribunal Federal. Objetiva-se, ao imunizar o rgo que prolatou a deciso da eficcia vinculante da ratio decidendi, exatamente permitir a revogao do precedente.No h dvida que o Supremo Tribunal Federal, como qualquer tribunal que profira decises que obriguem outros rgos judiciais, pode revogar os seus precedentes. No pode revog-los em virtude de simples alterao pessoal na compreenso do direito ou da mera alterao na composio do Tribunal, com a sada de um ou alguns Ministros e a entrada de outro ou outros. Se isto fosse possvel como patologicamente chega a ocorrer no common law -, a coerncia da ordem jurdica ficaria na dependncia de meras vontades, alterando-se a todo instante. Como bvio, no se quer dizer com isto que novas posies pessoais no possam ou devam ser ouvidas, ou que a composio do Tribunal no expresse vontades morais diferenciadas. O que se deseja evidenciar que, para se alterar um precedente, qualquer membro do Tribunal, seja recente ou antigo, deve expressar fundamentao capaz de evidenciar que o precedente perdeu a sua razo de ser em face da alterao da realidade social, da modificao dos valores, da evoluo da tecnologia ou da alternncia da concepo geral do direito. Neste caso, o Juiz assume um nus de evidenciar que tais motivos no s esto presentes, como so consistentes e fortes o bastante para se sobreporem s razes determinantes antes adotadas. Caso a maioria do Tribunal no consiga vencer o nus de alegar, demonstrar e evidenciar que boas razes impem a revogao do precedente, esse dever ser mantido.[footnoteRef:27] [27: Gilmar Mendes, em sede doutrinria, afirma que de um ponto de vista estritamente material tambm de se excluir uma autovinculao do STF aos fundamentos determinantes de uma deciso anterior, pois isto poderia significar uma renncia do prprio desenvolvimento da Constituio, tarefa imanente aos rgos de jurisdio constitucional. Todavia, parece importante, tal como assinalado por Bryde, que o Tribunal no se limite a mudar uma orientao eventualmente fixada, mas que o faa com base em uma crtica fundada do entendimento anterior, que explicite e justifique a mudana. Quem se dispe a enfrentar um precedente, fica duplamente onerado pelo dever de justificar-se (Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, So Paulo: Saraiva, 2009, p. 1.338)]

Porm, no h dvida que o Supremo Tribunal Federal pode revogar os seus precedentes. Isto indicado, como j se disse, pela prpria Constituio Federal. Trata-se, hoje, de algo absolutamente natural, inclusive nos sistemas de common law. Na realidade, desconhece-se, na atualidade, sistema de eficcia absolutamente vinculante, ou seja, sistema que proba a Corte Suprema de um pas de revogar os seus precedentes. Lembre-se que a particularidade da eficcia absolutamente vinculante a proibio de o tribunal revogar a sua prpria deciso, ainda que tenha bons fundamentos para tanto. o que acontecia na Cmara dos Lordes da primeira metade da Inglaterra do sculo XX. No final do sculo XIX, a House of Lords decidiu, em London Tramways, que no poderia revogar os seus precedentes, tendo esta deciso constitudo espcie de imunidade contra o overruling[footnoteRef:28]. Tal precedente constituiu o ponto culminante de uma evoluo em direo vinculao absoluta da Cmara dos Lordes s suas decises[footnoteRef:29]. Apenas em 1966 a House of Lords declarou que, diante de certas circunstncias, poderia revogar as suas prprias decises.[footnoteRef:30] Antes disso, a House estava absolutamente vinculada aos seus julgados, ainda que estivesse convicta de que em certos casos, ao reiter-los, estaria perpetuando uma deciso injusta.[footnoteRef:31] [28: Neil Duxbury, The Nature and Authority of Precedent, cit., p. 125.] [29: Jim Evans, Precedent in the nineteenth century. In: GOLDSTEIN, L. (Ed.) Precedent in Law. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 58.] [30: Em 1966, um Statement autorizou a House of Lords a revogar os seus precedentes. Eis parte da justificativa para o overruling: os Lordships consideram o uso do precedente uma base indispensvel para decidir o que o direito e para aplic-lo aos casos concretos. Fornece um grau mnimo de certeza perante o qual os indivduos podem pautar suas condutas, bem como uma base para o desenvolvimento ordenado de regras jurdicas. Os Lordships, no obstante, reconhecem que uma aderncia muito rgida aos precedentes pode levar injustia em um caso concreto e tambm restringir excessivamente o devido desenvolvimento do direito. Eles propem, portanto, modificar a presente prtica e, embora tratando as antigas decises como normalmente vinculantes, deixar de lado uma deciso anterior quando parecer correto faz-lo. Segundo Neil Duxbury, o Practice Statement de 1996 prova de que a Corte podia voltar atrs em sua palavra, algo que ela de fato fez. (Neil Duxbury, The Nature and Authority of Precedent, cit., p. 126).] [31: V. Neil MacCormick, Can stare decisis be abolished? Judicial Review, 1966, p. 198. ]

Isto est muito longe de poder acontecer no Brasil. No fosse a Constituio Federal, a dizer que a eficcia vinculante no atinge o Supremo Tribunal Federal, a racionalidade impediria a nossa mais Alta Corte de reiterar decises quando consciente do seu equvoco. Reafirme-se, porm, que o Supremo Tribunal Federal est, em outro sentido, obrigado diante das suas prprias decises, pois apenas pode revog-las quando for capaz de expressar fundamentao suficiente a evidenciar que o precedente perdeu a sua razo de ser em face da alterao da realidade social, da modificao dos valores, da evoluo da tecnologia ou da alternncia da concepo geral do direito.Ademais, no h dvida que o Supremo Tribunal Federal vinculado coisa julgada das suas decises, no podendo, em hiptese alguma, desconsider-las. Note-se, agora com maior facilidade, que a questo da possibilidade de declarar inconstitucional norma j declarada constitucional ou de declarar constitucional norma declarada inconstitucional em recurso extraordinrio, sem dvida revela hiptese em que se trata da admissibilidade da revogao de precedente e no de descaso com a coisa julgada. No caso de norma declarada constitucional em ao direta, a revogao do precedente no retroage, e, no caso de norma declarada constitucional em ao concreta, a revogao do precedente no retroage sobre a coisa julgada desta especfica ao. Em caso de norma declarada inconstitucional em recurso extraordinrio, evidente que posterior declarao de constitucionalidade no retroage sobre a coisa julgada que se formou. Alm disto, e esta outra estria, a revogao do precedente nem sempre retroage quando no h coisa julgada material. Ou seja, no porque no h coisa julgada que a deciso de revogao do precedente est liberada para produzir efeitos retroativos, como se no houvesse que se garantir a segurana jurdica decorrente da previsibilidade ento gerada pelo precedente que at ento sobrevivia. A existncia de coisa julgada e a inexistncia de eficcia vinculante em relao ao Supremo Tribunal Federal apenas um dos pontos que evidenciam a distino entre coisa julgada e eficcia vinculante. Olhando-se no sentido inverso, a diferena entre os institutos ainda mais bvia. Ora, os demais rgos do Poder Judicirio no esto vinculados apenas s decises que produzem coisa julgada erga omnes, mas tambm ratio decidendi das decises proferidas em recurso extraordinrio, o que demonstra que a eficcia vinculante tambm anda de mais separadas da coisa julgada quando analisada em relao aos demais tribunais. Quando deciso do Supremo Tribunal Federal produz coisa julgada erga omnes e possui eficcia vinculante, os tribunais de justia, por exemplo, esto duplamente submetidos mesma deciso, porm por razes diversas e autnomas. Devem respeito coisa julgada erga omnes e ratio decidendi. Na hiptese de relaes continuativas, embora em tese possam considerar novas circunstncias para fazer cessar a eficcia temporal da coisa julgada, no podem tomar em conta aquelas que so capazes de permitir a revogao do precedente constitucional, negando a sua ratio decidendi. Nesse caso, o que os impede de fazer cessar a coisa julgada no a coisa julgada erga omnes, mas a eficcia vinculante. Fora tudo isto, no demais lembrar que decises que sequer so aptas a produzir coisa julgada material so capazes de conter eficcia vinculante. Basta atentar s decises que concedem medida liminar em aes direta de constitucionalidade e de inconstitucionalidade. Estas decises, por no terem carga declaratria suficiente, no produzem coisa julgada material. Entretanto, tais decises podem ter eficcia vinculante, ainda que no produzam coisa julgada. Neste caso, as razes de decidir sero provisrias, ou melhor, existiro motivos determinantes de uma deciso provisria ou, simplesmente, uma ratio decidendi provisria como natural a todo e qualquer juzo sobre o mrito proferido no curso de um processo. Porm, ainda que provisria, a ratio decidendi tem fora obrigatria ou eficcia vinculante em relao aos demais rgos judiciais e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. No haveria porque conferir eficcia vinculante s decises definitivas e negar igual fora s decises provisrias, proferidas em aes de constitucionalidade e inconstitucionalidade. A menos que se pretenda dar vazo ao controle difuso durante o tempo de processamento das aes voltadas ao controle abstrato. Porm, no parece que seja esta a inteno do sistema estruturado sob o binmio controle concentrado-controle difuso. Se o processo objetivo foi instaurado, abrindo-se oportunidade ao exerccio da jurisdio constitucional, no h razo para negar eficcia s decises provisrias do Supremo Tribunal Federal. Perceba-se que, ao se negar eficcia vinculante s decises liminares proferidas em aes diretas de constitucionalidade e inconstitucionalidade, o exerccio da jurisdio constitucional, em sede de juzo provisrio, torna-se um flatus vocis. O Supremo Tribunal Federal vem decidindo no sentido de que as suas decises liminares tm eficcia vinculante. Assim, por exemplo, na Reclamao n. 2.256, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, decidiu-se, por maioria, vencido o Ministro Marco Aurlio, que a deciso liminar concedida na ADI n. 1.730/RN tinha eficcia vinculante, de modo a desautorizar deciso proferida pelo Tribunal de Justia do Rio Grande do Norte, que a desobedecera[footnoteRef:32]. [32: O Tribunal, por maioria, julgou procedente a reclamao para cassar o acrdo do Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Norte, que deferiu o mandado de segurana, vencido o Senhor Ministro Marco Aurlio, que no a conhecia. Votou o Presidente, o Senhor Ministro Maurcio Corra. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Celso de Mello e Carlos Velloso e, neste julgamento, o Senhor Ministro Seplveda Pertence. (STF, Rcl. n. 2.256, Plenrio, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 11.09.2003).]

No obstante, tratando-se especificamente da ratio decidendi, importa advertir que, embora esta, nas decises concessivas de liminar, tenha natureza provisria, isto no significa que se possa descurar da sua precisa delimitao. que a importncia da definio da ratio decidendi tem relao com a circunstncia de a deciso ter eficcia vinculante, e no com a cognio se sumria ou exauriente - emprestada deciso, ou melhor, com o fato desta produzir ou no coisa julgada material. De outro lado, nos termos do artigo 102, I, l, da Constituio Federal, cabe Reclamao ao Supremo Tribunal Federal para a preservao de sua competncia e garantia da autoridade de suas decises. A Lei n. 8.038/90 que institui normas procedimentais para os processos que especifica, perante o Superior Tribunal de Justia e o Supremo Tribunal Federal -, regula a Reclamao em seu Captulo II, estabelecendo que, ao julgar procedente a reclamao, o Tribunal cassar a deciso exorbitante de seu julgado ou determinar medida adequada preservao de sua competncia (art. 17).A Reclamao, enquanto instituto processual, no depende da eficcia vinculante[footnoteRef:33]. Antes da Emenda Constitucional n. 3/93, que introduziu o efeito vinculante, j se admitia a Reclamao diante do controle abstrato de constitucionalidade, porm adstrita ao autor da ao direta de inconstitucionalidade e ao rgo que editou a norma, alm de limitada ao desrespeito parte dispositiva da deciso e no sua ratio decidendi. Porm, admitindo-se que a ratio decidendi ou os motivos determinantes da deciso de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade ficam cobertos pela eficcia vinculante, no h como limitar a Reclamao ao dispositivo da deciso de (in)constitucionalidade. Se os fundamentos determinantes tm eficcia vinculante, a proibio que atinge os demais rgos judiciais e os rgos da administrao pblica logicamente mais extensa. Assim, por exemplo, os juzes esto proibidos de desrespeitar as razes essenciais que levaram deciso de inconstitucionalidade e no somente de adotar a norma que foi declarada inconstitucional. Por simples conseqncia, no h porque restringir a Reclamao ao autor da ao direta e ao rgo que editou a norma. Em virtude da eficcia vinculante, legitimados Reclamao so os eventuais beneficiados pela deciso e os que desrespeitarem a sua ratio decidendi, ou melhor, qualquer um deles. [33: A Reclamao constitui forma de cassar deciso que desrespeitou a autoridade de tribunal hierarquicamente superior, a qual no depende da eficcia vinculante. Ou seja, se a Reclamao instrumento tcnico-processual destinado a impedir o desrespeito autoridade do Tribunal, ela em tese pode ser utilizada ainda que a deciso desrespeitada no tenha eficcia vinculante. Porm, deixe-se claro, apenas para cassar a deciso que desrespeitou o dispositivo da deciso e no a sua ratio decidendi.]

Lembre-se que, na Reclamao n. 1987, o Supremo Tribunal Federal deixou claro o cabimento de Reclamao para ressuscitar a autoridade dos fundamentos determinantes de deciso prolatada em ao direta de inconstitucionalidade.[footnoteRef:34] Na ocasio, disse o relator da Reclamao, Ministro Maurcio Correa, que a questo fundamental que o ato impugnado no apenas contrastou a deciso definitiva proferida na ADI n. 1662, como, essencialmente, est em confronto com os seus motivos determinantes.[footnoteRef:35] [34: Ausente a existncia de preterio, que autorize o seqestro, revela-se evidente a violao ao contedo essencial do acrdo proferido na mencionada ao direta, que possui eficcia erga omnes e efeito vinculante. A deciso do Tribunal, em substncia, teve sua autoridade desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto da reclamao. Hiptese a justificar a transcendncia sobre a parte dispositiva dos motivos que embasaram a deciso e dos princpios por ela consagrados, uma vez que os fundamentos resultantes da interpretao da Constituio devem ser observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui para a preservao e desenvolvimento da ordem constitucional. (STF, RCL n. 1987, Pleno, Rel. Min. Maurcio Corra, DJ de 21.05.2004).] [35: STF, RCL n. 1987, Pleno, Rel. Min. Maurcio Corra, DJ de 21.05.2004.]

Por fim, no h dvida que, tratando-se de deciso com eficcia vinculante, a sua no observncia no pode deixar de caracterizar grave violao de dever funcional, abrindo oportunidade para medidas de ordem administrativa, criminal e civil.[footnoteRef:36] Os rgos judiciais e autoridades administrativas vinculados obviamente no podem deixar de observar as decises. Bem por isto, caso o faam, devem responder por suas aes.[footnoteRef:37] [36: De acordo com Gilmar Mendes, a no-observncia da deciso caracteriza grave violao de dever funcional, seja por parte das autoridades administrativas, seja por parte do magistrado (Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 1.339)] [37: Ver Roger Stiefelmann Leal, O efeito vinculante na jurisdio constitucional, So Paulo: Saraiva, 2006, p. 167-168.]

Caso um rgo judicial se negue a adotar deciso com eficcia vinculante, desrespeitando os seus fundamentos determinantes, estar caracterizado o ilcito suficiente propositura de ao de ressarcimento contra o Estado. Neste caso, dificuldade haver, apenas, para se determinar a extenso do dano provocado parte que, litigando na ao concreta, injustamente submeteu-se arbitrariedade do juiz ou do tribunal. Igual raciocnio, como bvio, aplica-se hiptese em que rgo da administrao pblica comete a ilicitude.Para concluir este tpico, destinado a demonstrar a relevncia da eficcia vinculante diante da eficcia erga omnes da coisa julgada, importa, fundamentalmente, destacar que a eficcia vinculante se liga eficcia dos precedentes e no ao significado da deciso para as partes ou mesmo eficcia que naturalmente decorre das decises que realizam o controle abstrato de normas. Com a eficcia vinculante no se quer garantir uma tutela jurisdicional parte ou quele que diretamente afetado pela deciso em controle concentrado. A eficcia vinculante se destina a dar fora obrigatria ratio decidendi ou aos fundamentos determinantes da deciso, impedindo que eles sejam desconsiderados em quaisquer decises de rgos judiciais inferiores.[footnoteRef:38] [38: De lado, obviamente, a obrigatoriedade acarretada aos rgos da administrao pblica, que, neste momento, no importa.]

A eficcia vinculante garante aos jurisdicionados a coerncia da ordem jurdica, assim como a previsibilidade e a igualdade, o que nada tem a ver com os objetivos da coisa julgada e da eficcia erga omnes. A eficcia vinculante enfatiza a obrigatoriedade do respeito aos precedentes. Alis, no haveria motivo para pensar em ratio decidendi e obiter dicta se os precedentes no contassem com o respeito dos rgos judiciais.


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