DADOSDECOPYRIGHT
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ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.
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OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:lelivros.loveouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.
"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."
Traduçãode
MARIACLÁUDIAFITT IPALDI
ABobTanner,cujoentusiasmo,numafasedecisiva,foimaisimportantedoqueelesupõe.
PRIMEIRAPARTE
TEMPOSDIFÍCEIS
Umamigofieléumescudopoderoso.Umamigofieléobálsamodavida.
TextosApócrifos
Umaescuridãoterrívelabateu-sesobrenós,masnãopodemosnosrender.
Éprecisoerguerbemaltoaslâmpadasdenossacoragemeencontrarocaminhoquenosconduzirápelanoiteem
direçãoàmanhã.
MembroanônimodaResistênciafrancesa,
1943
UM_______________________
7denovembro-2dedezembro
1.LAGUNABEACH,CALIFÓRNIADominick Corvaisis deitou-se para dormir, puxando para o queixo o cobertor leve e o lençol
imaculadamentebranco.Estavasozinho,confortavelmenteacomodado,masdespertouemoutrolugar,nocantomais escuro do grande armário do saguão, encolhido comoum feto atrás dos casacos e paletóspendentesdoscabides.Tinhaospunhoscerradoscomforça;osmúsculosdopescoçoedascostasdoíam-lhe,tensos,comoseaindavivesseumpesadeloparaeleincompreensível.
Nao se lembrava de ter saído da cama, mas a descoberta de que andara durante o sono não osurpreendia:empoucassemanasera jáa terceiracrise.Osonambulismo,fenômenoconhecidotambémcomonoctambulismoeconsideradoperigosoempotencial,semprefascinouahumanidadeao longodaHistória.ParaDom,tornou-separticularmentefascinanteapartirdomomentoemquepercebeuqueelepróprioeramaisumavítimaconfusadesseestranhomal.Começouapesquisaredescobriuquedesdeoano1000a.C.jáapareciamnaliteraturareferênciasapessoasqueandavamenquantodormiam.Paraosantigospersas,osonâmbulovagavaàprocuradaalmaquelheescaparadocorpoduranteanoite.Paraoseuropeus,principalmenteduranteaIdadeMédia,tudose
explicava a partir de possessão demoníaca, embora existisse também quem preferisse falar emlicantropia.
OsnovoseestranhoshábitosnoturnosdeDomnãooassustavam,emboraointrigasseme,poralgumarazao difícil de entender, o fizessem sentir-se muito embaraçado. Como escritor, via naquelasperambulaçõesnoturnasapossibilidadedeexperiênciasnovasque,eventualmente,serviriamdeassuntoparaumromance.Aindaassim,emboraosonambulismopudessetransformar-seempuraarte,aqual,porsuavez,seconverteriaemdólaresparaengordarsuacontabancária,Domnãoconseguiatirardacabeçaaidéiadeque,afinal,tratava-sedeumadoença.
Comdificuldade,arrastou-separaforadoarmário,semconseguirfirmar-senaspernasentorpecidas.Adordopescoçocomeçavaaespalhar-sepelacabeçaepelosombros.
Como das outras vezes, sentia-se muito envergonhado. Por mais que os livros afirmassem que aocorrênciadecrisesdesonambulismoemadultoserabastantecomum,Domestavaconvencidodequeaquiloeracoisadecriança...Comourinarnacama.
Quando conseguiu afinal levantar-se, andou às apalpadelas pela sala, até o pequeno corredor quelevavaaoquartoedalichegouaobanheiro,aindavestidocomoquandosedeitara,comacalçadopijamaazul,semcamisaesemchinelos.Oespelhomostrou-lheorosto,quaseirreconhecível,deumlibertino,umdevassoquevoltavaparacasaapósdedicardiasinteirosaumalongaedesavergonhadaseqüênciadepecados.
Naverdade,Domerahomemdevíciosbemmoderados:nãofumava,nãocomiademais,nãousavadrogas e bebia pouco. Gostava de mulheres, mas não era promíscuo e acreditava na importância dafidelidadeparaajudaramanterumrelacionamentosolido.Naverdade,nãosedeitavacomumamulherfaziaquatromeses.
Mas era sempre a mesma coisa: cada vez que voltava de suas excursões noturnas pelos cantosescurosda casa, acordava exausto, como rosto cansado.Embora continuassedormindo, não tinhaumminutodesossegoduranteasnoitesemqueandava.
Domsentou-seaoladodabanheiraecruzouaspernasparaexaminarassolasdospés.Primeiroopédireito:estavaperfeito,semcortes,semferimentos,pelomenostãolimpoquantonomomentoemquesedeitara.Comoopéesquerdotambémseencontravaemboascondições,concluiuquenãotinhasaídodecasa.Jáporduasvezesacordaradentrodosarmários:umanasemanaanterioreoutradozediasantesdaprimeira. Nas duas ocasiões havia examinado os pés e constatara que realmente não saíra,emborasentisseumcansaçotãograndecomosetivesseandadoléguas.Talvezfossemrealmentemuitasemuitasléguas...percorridasemincontáveisidasevindasatéosarmários.
Um longo banho de chuveiro ajudou-o a eliminar boa par-‘te da tensãomuscular. Era um homemmagro, de boa condição física, que aos trinta e cinco anos ainda conseguia recuperar-se bem dequaisquer excessos que cometesse, acordado ou dormindo. Depois do banho e de um café, voltou asentir-sequasehumano.
Aindacomaxícaranamão,andouatéavarandaepercorreucomoolharacurvaelegantedabaíadeLagunaBeach,comsuascolinasquepareciamquererabraçaromar.Depoisentrouedirigiu-separaoescritório; a cadaminuto que passava, convencia-semais de que as crises de sonambulismo estavamrelacionadascomo trabalho.Talveznãocomo trabalhoemsi,massemdúvidacomodesconcertantesucessodeseuprimeirolivro,CrepúsculonaBabilônia,concluídoemfevereiro.
OprimeiroagenteaquemDommostraraosoriginais aceitou-ocomocliente.Osdireitosautoraisforamleiloadosentreváriaseditorasinteressadase,paragrandesurpresadoautor,acabaramnasmãosdaRandomHouse,que lhepagouumadiantamentomaisdoquerazoávelparaumlivrodeestréia.Empoucomais de ummês, também estavamvendidos os direitos de filmagem—que permitiram aDompagar aprimeiraparcelada casaondemorava—eoCrepúsculoera indicadopeloLiteraryGuild .Aelaboraçãodolivrocustou-lhesetemesesdetrabalho,semanasdesessenta,setenta,àsvezesoitentaequatrohorasdeconcentração;semfalarnosdezanosdelutaconsigomesmoatésentir-sepreparadoparacomeçaraescrever.
Ainda assim, o sucesso continuava a parecer-lhe surpreendentemente rápido. Nem mesmo tiveratempo para adaptar-se às mudanças: praticamente do dia para a noite, deixara de ser um escritorpaupérrimo,emboradigno,etransformara-seemautorderenome.
Não raras vezes, o ex-pobre Dominick Corvaisis olhava-se no espelho ou via-se refletido nasvidraçasensolaradasdanovacasadericoeespantava-se,perguntandoasipróprioserealmentemereciatudoaquilo.Outrasvezestinhaaimpressãodeestarseaproximandodeumabismo.Otriunfoassustava-o,e,comomedo,cresciaatensão.
»OqueaconteceriaquandooCrepúsculofossepublicado,emfevereirodoanoseguinte?Comooreceberiam os críticos? Justificaria o investimento da Random House ou serviria apenas para tornarpúblicoomaiorerroeditorialdadécada?Equantoaelemesmo?SeriacapazdeproduziroutroromanceouoCrepúsculoestariacondenadoaseroprimeiroeúltimofrutodeumaex-promissoracarreira?
As mesmas questões que circulavam obsessivamente em sua cabeça durante o dia com certezaocupavam-natambémànoite,enquantodormia...eporissopassavahorasandandoàvoltadasalacomoumzumbi!Porqueinconscientementequeriafugirdosproblemaseesconder-senumlugarondepudessetercertezadequeasdúvidasjamaisoencontrariam.
Noescritório,sentadoemfrenteaocomputador,digitouocódigocorrespondenteaodécimooitavocapítulo de seu novo livro, ainda sem título.Na véspera, trabalhara até ametade da sexta página dodécimooitavocapítulo,mas,aoconcentrar-senovídeoparaveremquepontoparara,descobriuqueasextapáginajáestavacompleta.Natelaverdeàsuafrentebrilhavamlinhasinteiras,queeletinhacertezadejamaishaverescrito.
Deinício,apenasarregalouosolhos.Logo,porém,começouabalançaracabeçadeumladopara
outro,semquereracreditarnoquevia.Umfiodesuorgeladoformou-seporbaixodagolaeescorreu-lhe lentamentepelascostas.Depoisdapágina seis,ovídeomostrouumapágina setee
depoisumaoito,todascompletas,daprimeiraàúltimalinha,comumaúnicafrase:“Estoucommedo.Estoucommedo.Estoucommedo.Estoucommedo”.Emespaçoduplo, quatro frasespor linha, treze linhasnapágina seis, vinte e sete napágina sete,
outras vinte e sete na página oito... Era a mesma frase repetida duzentas e sessenta e oito vezes. Amáquina jamais teria inventado a frase, pois apenas fazia o que estava programado. E seria absurdoimaginar que alguém tivesse entrado em casa durante a noite para brincar com o texto ou com ocomputador.Nãohaviasinaldearrombamentonem texistiriaalguémcapazdeinventarumabrincadeiracomo aquela. Era mais do que claro que ele trabalhara mesmo durante a crise de sonambulismo,repetindoduzentasesessentaeoitovezes:“Estoucommedo”.
Medodequê?Dosonambulismo?Impossível.Aexperiênciaeramuitodesagradável,sobretudonomomentodeacordar,masnãoerasuplícitonemtorturacapazdecausarterror!
TalvezestivessecommedodequeoCrepúsculofracassasse.Outraidéia,entretanto,começavaatomarforma,maisdensaepesadaquetodas:afrasenadatinhaa
ver com sua carreira ou com seu futuro profissional.O que o assustava era outra coisa, uma ameaçadiferente,algomuitoestranhoqueseuinconscientejápressentira,aindaquenãolhefosseacessívelaossentidos.Eele tentava romperabarreiraa separar suasduasmetades,conscientee inconsciente,paramandarasipróprioumaviso:“Estoucommedo”.
Nãoenão!Bobagem...Excessodeimaginação!Precisavatrabalhareacabarlogocomaquilo.Sim!Omelhorremédioeratrabalhar,trabalharmuito.
Além do mais, todos os livros sobre sonambulismo coincidiam num ponto: as crises erampassageiras, em geral concentradas em determinado espaço de tempo bem limitado. Poucas pessoasrelatavamaocorrênciademaisquemeiadúziadeandançasdurante
osono,todaspróximasumadaoutra,emdatasquecobriam,nomáximo,umperíododeseismeses.Comcertezanãovoltariaaperambularpelacasa,nemvoltariaaacordarencolhidodentrodosarmários.Decidido,Domoperouocomputadoratéassegurar-sedequenãosobraranamemóriaumúnico“Estoucommedo”,eretomouofiodahistóriaemqueestavatrabalhando.
Quandoolhouorelógiodenovo,surpreendeu-seaoverquejápassavadahoradoalmoço.Comoodiaestavaexcepcionalmentequenteparaomêsdenovembro,mesmonaCalifórnia,resolveualmoçarnavaranda. As palmeiras balançavam as folhas ao vento suave, o ar trazia-lhe o perfume das flores deoutonoe,aolonge,Lagunadebruçava-sesobreaságuasensolaradasdoPacífico.
Aotomaroúltimogolederefrigerante,Domlevantouacabeçaeriu,olhandoparacima.—Aíestá—pensouemvozalta.—Nãohácofrescaindo,nempianosdespencando...Enãopaira
sobreminhacabeçaaespadadeDâmocles...Eraodia7denovembro.
2.BOSTON,MASSACHUSETTS
Tudo começou na Casa Bernstein — Doces e Salgados, local que a dra. Ginger Marie Weissconsideravaimpróprioparaqualquertipodecomplicação.Ecomeçoucomoincidentedasluvaspretas.
Demodogeralpodia-seafirmarque,atéaqueledia,Gingernuncaencontraraumúnicoproblemaquenãopudesseresolver.Estavahabituadaaenfrentarosdesafiosqueavidalhepropunhae,habituadaaosgrandes, não havia por que tremer diante de simples problemas do dia-a-dia. Com toda a certeza
morreria de tédio se, de repente, sua vida se transformasse num mar de rosas. Em momento algumocorreu-lheapossibilidadedeencontrar-sefaceafacecomumaquestãoinsolúvelouinsuperávelparaseu nível de inteligência ou capacidade. Porém, sabia que, assim como é cheia de desafios, a vida épródigaemlições,algumasmais
fáceis de engolir que outras. Algumas simples, outras dificílimas. Algumas até muito indigestas,outrasabsolutamentearrasadoras.
Gingererainteligente,bonita,ambiciosa,trabalhadoraeexcelentecozinheira.Suagrandevantagem,noentanto,eraqueninguémalevavaasérionoprimeiroencontro.Magra,depequenaestatura,cinturafina, parecia tão insignificante quanto bonita. Muita gente subestimava-a no primeiro encontro econtinuavamasubestimá-ladurantesemanasoumeses,atédescobriremaospoucosqueGingerpodiasergrandeamiga,excelentecolegaouimplacávelinimiga.
A história da noite em que foi assaltada correu de boca em boca pelas enfermarias do HospitalPresbiterianodeColúmbia,emNovaYork,ondeelafizerasuaprimeiraresidênciamédica,quatroanosantesdoincidentedasluvaspretasnaCasaBernstein.
Como todososmédicos residentes,Gingeràsvezescumpriaplantõesdemaisdedezesseishoras;nessesdias,aosairdohospital,maltinhaforçasparamanterosolhosabertosatéentraremcasa.Numanoitedesábadoquenteeúmida,saiudohospitalpoucodepoisdasdezhoras,aotérminodeumplantãoexcepcionalmenteatribulado,e foiassaltadaporumdescendentediretodohomemdeNeanderthal,umsujeitosempescoçonemtestaecommãostãograndescomopásdeescavadeira.
—Se você gritar— disse omonstro—, arrebento-lhe a cara.—Saltou à frente dela como umbonecodemolaeinsistiu:—Estáentendendobem,suaputinha?
Aruadesertae,aváriosquarteirões,oscarrosmaispróximosaguardavamamudançadosinalnocruzamento.Nãohavianinguémqueasocorresse.
O assaltante empurrou-a para um beco estreito e escuro entre dois edifícios. Aos tropeções, elaesbarrounuma latade lixo, arranhouo tornozelo, quase caiu,mas conseguiu equilibrar-se e continuouandandorumoaofundodobeco.
De início, supondo que o homem estivesse armado,Ginger investiu suas esperanças em súplicas,suspirosegemidos.Tudoqueconseguiufoiqueoassaltantesesentissemaisseguroerelaxasse
aguarda.Nãoresistapensouadoutora.Seeleestiverarmado,resistirémortecerta.—Váandando!Com o braço torcido para trás, sem poder se mover, Ginger obedeceu. A meio caminho entre a
entradaeasaídadobeco,longedaúnicalâmpadaacesaquehaviaporali,ohomemempurrou-aparaumcantoepassouadescrever,compormenoreseemvozrouca,oqueplanejavafazercomeladepoisdetirar-lhetodoodinheiro.OdiscursodeuaGingerotempodequeprecisavaparacertificar-sedequeoassaltante não tinha arma. Então nem tudo estava perdido.O homemvomitava obscenidades,mas seurepertóriodeviolênciassexuaiseratãolimitadoque,emoutrascircunstâncias,seriacômico.Gingerlogoo classificou comoumpobre diabo que confia cegamente no poder da força bruta.Homens assim emgeralnãoandamarmados,porquesuamassamuscularlhesdáafalsaimpressãodequesãoinvulneráveis.Seguindoesseraciocínio,Gingerconcluiuqueoassaltantenãodeviasermuitohábilparalutar.
Enquanto o homem se curvava para esvaziar a bolsa que ela lhe entregara sem vacilar, Gingerencheu-sedecoragemeaplicou-lhenostestículosumpontapéviolentoedireto.Omonstrodobrou-seaomeio,urrandodedor.Semperdertempoelasegurou-lheumadasmãoseempurrouodedoindicadorparatrás,comtodaaforça,atétercertezadequeadordamãoofaziaesquecerogolpenostestículos.
Ogestodeforçaroindicadorparatráspodeimobilizarqualquerhomem,pormaisfortequeseja.Aopressionaronervodigitaldaparteanteriordamão,forçandoaomesmotempoosnervosradiaisemédios
daparteposterior,Gingerprovocavanoassaltanteumadorintensaquenaquelemomentojádeviaatingirasterminaçõesnervosasdoombroedopescoço.
O homem agarrou-a pelos cabelos e sacudiu-a da cabeça aos pés para que o soltasse. Foi umcontragolpe violento, que a fez gritar de dor e suar frio;mesmo assim, de dentes cerrados e o rostobanhadodelágrimas,elaresistiueforçouodedoaindamaispara
trás.Apressãoconstante,aplicadanopontoanatômicocorreto,empoucotempoobrigouoassaltanteasoltá-la.Elecaiudejoelhos,gemendoexingando:
—Ai!Mesolta!Largameudedo,suaputa!Em lugar de obedecer, Ginger agarrou o indicador com as duasmãos e, fincando o pé no chão,
empurrou-oduasvezesparatrás.Agoraogigantepodiasermanobradoàsuavontade.Gingerofezgirarsobreos joelhos,virar-separaa saídadobecoe segui-la, sempregemendo, trotandosobre trêspatascomoumamulamanca.Comosolhosinjetadosderaivaemedo,dedorevergonha,eleafitava,babandoseus insultos. Seis ou sete passos adiante, vencido pela frustração ou pela dor, o homem parou,acomodou-senaspatastraseirasevomitouojantar.
Aindaquequisesse,Gingernãopodiasoltá-lo:eleestavaenlouquecidoderaiva.Soltá-loali,semsaber sealguémoagarrarianovamente, seriacomoassinaraprópria sentençademorte.Semescolha,arrastou-oparaomeiodacalçadaeobrigou-oaesperar,ajoelhadoaseu lado,atéqueaparecesseumguarda. Quando afinal viram aproximar-se um policial fardado, o assaltante e a vítima sorriramaliviados.
Aspessoas subestimavamGinger emboaparte por causade seupequenoporte: elamediapoucomaisdeummetro emeio epesavamenosde cinqüentaquilos.Nãopareciamuito fortenemcapazdeassustar ninguém. Bem feita de corpo, não tinha as curvas de uma loira de capa de revista, mas, dequalquermodo,eraloiríssimaesempreatraíaosolharesmasculinosnoprimeiromomentodoprimeiroencontro. Ginger era a imagem viva da fragilidade: dos cabelos dourados ao pescoço de AudreyHepburn, dos ombrosmagros à cintura fina, da pele aveludada aos luminosos olhos azuis, tudo nelasugeria suavidadeedoçura.Alémdisso, eranaturalmentecalmaecalada,do tipoqueprefereouvir afalar—qualidadesquequasesempreosmenosavisadostendemaconfundircomtimidez.Suavozsoavacomoharpa,tãodocequeninguémaimaginariaexpressandoafirmevontadedeumamulherdeaço.
Gingerherdouoscabelosdourados,osolhosazuis,abelezaeaforçadamãe,umasuecachamadaAnna,quetinhamaisdeummetroeoitentadealtura.
— Vocêéminhamenininhadeouro—disse-lheAnna,quandoGingercompletaraasextasériedoisanosantesdaidadeprevista.
Nafestadeformatura,alémdereceberamedalhademelhoralunadaescolainteira,Gingerbrindaraos presentes com uma brilhante performance ao piano: Mozart para os mais calmos e um frenéticoreggaeparaosmaisanimados.
—Meninadeouro...—Annaabraçou-a,jánocaminhodevoltaparacasa.Opai,aovolante,choravadeorgulho.Jacoberamuitoemoti-,vo,massemprealegavaumaalergia,
jamaisdefinida,parajustificaraslágrimasquelheenchiamosolhosapropósitodequalquercoisa.Nodiadaformatura,acusavaopólen.
—Hámuitopólennoar—resmungava.—Detestopólen.—Vocêéaperfeição,bubeleh—Annasorriuparaafilha.—Juntouoquehádebomemmimeo
que há de bom em seu pai...Você vai longe... Espere só para ver!Vai para o ginásio, depois para opreparatório,depois...paraafaculdadequeescolher.Vocêécapazdefazeroquequiser...vocêécapaz!
Asduasúnicaspessoasquejamaisasubestimaramforamseuspais.Aopararemfrenteàgaragemdecasa,Jacobarregalouosolhos.
—Mas...oqueéqueestamosfazendoaqui?—perguntou.—Nossaúnicafilha,nossafilha,que,comoécapazdequalquercoisa,comcertezaaindaserápedidaemcasamentopeloreidoSiaoepilotaráumanaveespacialrumoàLua...nossafilharecebeseuprimeirodiplomaenãovamoscomemorar?!EstanoitemereceumafestaemManhattan,champanhenoPlaza,jantarnoWal-dorf...Não,não...Tenhoumaidéiamelhor...VamostomarsorvetenoWalgreen!
—Ótimo!—Gingeraprovou.Naquela noite, oWalgreen recebeu amais estranha família das redondezas: o pai judeu, pequeno
comoumjóquei,desobreno-mealemãoenarizadunco;amãesueca,loira,linda,gloriosamentefeminina,trintacentímetrosmais
altaqueomarido;eafilha,umafada,umaninfa,pequeninaefrágil,tãoloiraquantoopaieramoreno,ebonitacomoamãe,porémdeumabelezadiferente,mais sutil,menospalpável.Desdemuitopequena,Ginger entendia perfeitamente que, vendo-a andar de mãos dadas com o pai e a mãe, as pessoaspensassemqueelesahaviamadotado.
Gingeramava-ostantoque,quandomenina,jamaisencontroupalavrassuficientesparafalarsobreoassunto.Depoisdeadulta,continuavaprocurandoaspalavrascertas,mesmotantosanosdepoisdamorteprematuradospais.
Annamorreu num acidente de trânsito, pouco depois da festa do décimo segundo aniversário deGinger;afamíliaWeissimaginouqueJacobeafilhaestariamperdidossemaquelasuecaloiraque,aospoucos,sefizerarespeitareamar.Ninguémignoravaqueostrêseramunidosefelizes,queseamavammuito.Poroutrolado,ninguémparecia terdúvidasdequeosegredodosucessodotrioforaenterradocom Anna. Ela dera um novo rumo à vida do mais obscuro dos irmãos Weiss — Jacob, o gentilsonhador, semprecomonarizmetidoemromancespoliciaisoude ficçãocientífica.QuandoconheceuAnna, trabalhava como balconista numa joalheria; quando ela morreu já era proprietário deduasjoalherias.
Depoisdofuneral,afamíliareuniu-seemcasadetiaRachel,noBrooklyn.Escondidanumcantodacopa,enjoadacomocheirodetemperos,rezandoaDeusparaquelhedevolvesseamãe,Gingerouviuumaconversaentre tiaFrancinee tiaRachel.TiaFran-cinepareciamuitopreocupadacomofuturodoviúvoedaórfãjogadosaomundosemaproteçãodeAnna.
—Osnegóciosvãocomeçaradarprejuízo...Vocêsabequeelenãoécapaz,nãovaiconseguir,nemdepoisdoluto...opobre luft-menschlAnnaeraaúnicapessoasensatanaquelacasa!Semela,estarãoarruinadosemcincoanos...—dizia,subestimandoasobrinha.
Abemdaverdade,Gingertinhaapenasdozeanose,emborajácursasseoginásio,aindapareciaumacriancinha.Emsãconsciência,ninguémpoderiapreverque,
empoucotempo,estariaprontaparaassumiropapeldeAnna.Começaraaaprenderacozinharcomamãee, comoamãe,adoravaaculinária.Poucosdiasdepoisdo funeral, levouparaoquarto todososlivrosdereceitase,comaperseverançaedeterminaçãoquetambémherdaradamãeequejáeramsuamarcaregistrada,aprendeutudooqueaindanãosabia.Quandoosparentesdeseupaichegaramparaoprimeiro jantar em família depois damorte deAnna, Ginger ofereceu-lhes um banquete: bolinhos debatatacomqueijo;cremedelegumescomalmôndegas;fatiasdesalmãodefumado;vitelacompá-pricaemolhodeameixassecas.Paraasobremesapodiamescolher»entrepudimdepêssegoe tortademaçã.FrancineeRachelquiseramsaberondeJacobdescobriracozinheiratãofantásticaeeleapontouparaafilha.Ninguém acreditou. ParaGinger, nada havia de excepcional: alguém tinha que se encarregar dojantare,naausênciadeAnna,atarefacabiaaela;assim,foraparaacozinhaefizeraopossível.
Ojantarfoiapenasoinício.EraprecisotambémtomarcontadeJacobeadministraracasa.Gingerpôsmãosàobracomdedicação,entusiasmoeseriedade,comosempre.Móveis,roupas,pisoetapetes
brilhavamdelimposeresistiambravamenteàsinspeçõesdetiaFrancine.Compoucomaisdedozeanos,Gingeraprendeuaplanejaroorçamentoe,aostreze,assumiuocontroledetodasasdespesasdacasa.
Aos quatorze foi escolhida como oradora da turma, embora tivesse três anos menos que o maisjovemdeseuscolegas.DepoisfoiaceitaportodasasuniversidadesàsquaissecandidataraeescolheuoColégioPreparatóriodeBarnard.Amigoseparentesrecomeçaramadarsinaisdepreocupação:Ginger,deumavezportodas,estavadandoumpassomuitomaiorquesuaspequenaspernas.
OscursosemBarnarderamrealmentemaisdifíceisdeacompanhardoquenoginásio.Gingerjánãoconseguiaaprenderemseismesesoqueoscolegasaprendiamemdoze,porémaprendiaexatamenteomesmoqueosmelhoresalunos,emtemporigorosamenteigual.Suasnotasoscilavamentrenoveedez,eamarcamínima só ocorreu umavez, justamente quando começou a fre-qüentar oBarnard.Nessa épocaJacob sofreuaprimeiracrisedepancreatite; elapassavanoites emclaronohospital edemanhã saíacorrendoparanãoperderumminutodaaula.
JacobaindatinharazoáveiscondiçõesfísicasquandoGingercompletouopreparatório;estavafracoemuitomagronaformaturadafaculdade;enãosobreviveuatéofimdaprimeiraresidênciamédica.Ascrisesdepancreatiteevoluíramparacâncerdopâncreas,eelemorreusemsaberqueafilhaoptariaporumasegundaresidência,dessavezemcirurgia,noHospitalBostonMe-‘morial,abrindomão,assim,desuasgrandespossibilidadescomocientistaepesquisadora.
GingerviveramuitomaistempocomJacobdoquecomAn-na,razãopelaqualadordeperdê-lofoiimensamentemaiordoqueosofrimentocausadopelamortedamãe.Porémenfrentouevenceuador,domesmo modo como superava todos os obstáculos que encontrava pela frente, e concluiu a primeiraresidênciacomnotasexcepcionaiseasmelhorescartasderecomendaçãocomqueAnnateriasonhado.
Asegundaresidênciafoiadiadapordoisanos,duranteosquaiselaviveunaCalifórnia,emStanford,dedicadadecorpoealmaaumcursodepós-graduaçãoempatologiacardiovascular.Depoisdeummêsde férias — as mais longas de sua vida —, voltou a Boston. O dr. George Hannaby, diretor doDepartamento de Cirurgia do Boston Memorial e mundialmente conhecido por suas lições pioneirassobrecirurgiacardiovascular,aceitou-acomointerna,eGingerafinalpôdededicar-seintegralmenteàstarefasdasegundaresidência.
Passaram-se oito meses, até que, em novembro, numa terça-feira de manhã, ela entrou na CasaBernsteinparafazercompras,esuavidamudou.Ohomemdasluvaspretas:foientãoquetudocomeçou.
Gingernãotrabalhavaàsterças-feirase,amenosquealgumdeseuspacientesestivesseemriscodevida,ninguémaesperavanohospital.Nosprimeirosmeses,logodepoisdachegadaaBoston,eracomumvê-la trabalhando nos feriados ou nos dias de folga, sempre movida por energia e entusiasmoinesgotáveis. Na verdade, Ginger não tinha para onde ir, senão para o hospital. George Hannabyobrigara-aadescansarnosdiasemquenãoestavaescaladaparaosplantões,eencerraraadiscussãoafirmandoqueosmédicostrabalhamsobgrandepressãoemocionale,maisdoqueninguém,precisamdetempoparaserecuperar.
—Sevocêseesgota,setrabalhademais,semdescansarnunca—disse—,estáprejudicandonãosóvocêmesma,comoospacientestambém.
Assim,àsterças-feiras,Gingerpassouaacordarumahoramaistarde:tomavaumrápidobanhodechuveiroedepoisbebericavaduasxícarasdecaféenquantoliaojornalinteiroàmesadacozinha,diantedajanelaqueseabriaparaaRuaMountVernon.Asdezhorasvestia-separairatéaCasaBernstein,naRuaCharles,ealicompravacarneenlatada,pãezinhosdetrigointegral,saladadebatata,carnesfatiadas,salmão defumado, queijo. Depois voltava para casa e passava o resto do dia comendodesavergonhadamente,enquanto lia romancespoliciaiseaventurasdemistério.Nosprimeiros tempos,aindaignorantenaarteenoprazerdenãofazernada,achavaosdiasdefolgaterrivelmentelongos.Aos
poucos, porém, começou a aguardar com alegria a aproximação daqueles “domingos” deslocados,passandoaencararasterças-feirascomoumdosprincipaisatrativosdasemana.
Aterça-feiranegradenovembrocomeçoubem,comventoecéucinzento,frianamedidaexataparafazê-lasentir-seanimadaecheiadeenergia.AsdezevinteeumGingerentravanaCasaBernstein,que,como sempre, estava cheia de gente. Também como sempre, ela percorreu lentamente o longo balcãofrigorífico,olhandoospratossalgadosexpostosumaoladodooutro.Dalipassouàseçãodemassaseconfeitaria, continuando o ritual de imaginar cada gosto, cada cheiro e cada textura de massa antesdecompraralgumacoisa.Alojaeraumababeldecheirosevozesalegres:pãoassado,canelaerisadas;alho,cebola,cheiro-verdeeconversasrápidas,eminglêstemperadocomosmaisdiferentessotaques,doídicheaovernáculodeBoston,passandopelagíriada juventude; castanhas assadas, repolho,picles ecafé; tudo isso acompanhado pelo tilintar de louça, talheres e caixa registradora.Depois de escolher,comprarepagar,Gingercalçounovamenteasluvasdetricôazul-marinho,ajeitouopacotenobraçoeabolsanoombro,edirigiu-separaasaída.
Opacotejáestavaacomodadonobraçoesquerdo,quandoelapercebeuquedeixaraacarteirasobreobalcão.Voltou,apanhou-a,guardou-ae,aindadecabeçabaixa,lutandoparafecharozíper*dabolsa,rumouparaaporta.Naqueleexatomomento,entravanalojaumhomemigualmentedistraído,vestidonumcasacodetweedeusandoumchapéupretodeestilorusso.Osdoisnãoseviramecolidiramdefrente.Gingerfoiempurradaparatrás.Ágil,ohomemapanhouopacotedecomprasantesquecaísseaochãoe,comamãolivre,ajudou-aarecuperaroequilíbrio.
—Desculpe—disse.—Aculpafoiminha.—Oh,não!Foiminha!—Issoacontece.—Nãoviosenhorentrar.—Vocêestábem?—Estouótima.Obrigada.O homem devolveu-lhe o pacote. Ginger agradeceu e estava outra vez acomodando o pacote no
braço,quandoviuasluvaspretasqueeleusava.Eramluvascaras,definocouro,tãobemfeitasquemalseviamascosturas.Nadatinhamdeexcepcional,masGingergeloudemedo.Seria,então,porcausadohomem? Não, tratava-se de um sujeito como qualquer outro, um pouco pálido, de feições comuns egrossosóculosdetartaruga.Erainacreditável,inexplicáveleirracional,masoproblemaeramasluvas.Deummomentoparaoutro,apartirdoinstanteemquepousouosolhosnelas,Gingersentiuocoraçãodisparar.
Formasecheirosdissolveram-seasuavolta,comopartedeumsonhoqueseesvainomomentodedespertar: os fregueses que tomavam café às mesinhas, as prateleiras cheias de latas coloridas, oscartazes,orelógiodeparedecomologotipodeumafábricadeconservas,apilhadevidrosdeconfeitos,o balcão envidraçado. Tudo desaparecia como que encoberto por uma névoa vinda das entranhas daterra. Só as luvas persistiam, mais brilhantes a cada segundo, mais negras, mais reais, num mundoondetudopareciaperderaidentidade.
—Senhorita...Ginger ouviu a vozdohomemcomo se estivessem separadospor umabarreira intransponível, ou
como se ela estivesse parada à entrada e ele à saída de um longo túnel. Amedida que as for-1 massumiam,os sonscresciamaté se transformarnumagigantescaondadevibraçõesque lhemartelavaostímpanoseencobriaatéasbatidasdoprópriocoração.Gingernãoconseguiadespre-garosolhosdasluvas.
— Você está bem? — o homem perguntou, estendendo-lhe a mão num gesto talvez de
solidariedade,talvezdedesculpa,novamente.Ocouronegro,coladoàpele,brilhavacomporosquaseinvisíveis.Aolongodosdedos,ospequenos
pontos,semelhantesacicatrizes.Asjuntasdosdedosnãopassavamdeossosarredondadossobocouro...Eraprecisofugir.Derepente,Gingersabiaquetinhaquesairdali,fossecomofosse,paraqualquer
lugar.Tinhaquesalvar-se.Acadasegundoomedoficavamaisdensoepesado.Nãohaviaexplicaçãopossível,nemtempoaperder.Nãosabiadeondevinhaoperigo,porémsabiaqueseaproximavacadavezmais.Nopeito,ocoraçãopareciaapontodeexplodir.Elagemeubaixinho,osomescapandoentreosdentescerrados,elançou-separafrente,emdireçãoàsaída.Nãoentendiaarazãodesuaatitude,nemarelaçãoquepoderiatercomasluvaspretas.Nacorrida,quasederrubouohomemdocasacode tweed,masnemsequeroviu.Erapossívelatéqueelenãoestivessemaisali,queasluvaspretastivessemseapartadodeleepairassemvivasesoltaspeloespaçoarmandoobote.
Gingernãopoderiasairsemempurraraporta,etalvezativessemesmoempurrado,porémnãotinhacertezadenada.Sabiaapenasquesaíradaloja,estavanarua,lutandopararespiraroarfrio,eprecisavacorrerpara salvar aprópriavida.Adireita arrastava-seo tráfegopesadodaRuaCharles—buzinas,ronco demotores, pneus chiando.A esquerda, a vitrine daCasaBernstein reluziu por ummomento edesapareceu.EntãoGingerdisparoupelaruaafora.Jánãopensavaemnada.Eracomoseanévoaquebrotaradopisodalojacobrisse,naqueleinstante,acalçada,arua,omundo.Umasombracinzenta,quenãoparavadecrescer,pareciaengoliraprópriaGinger,devorando-a lentamente.Seaomenos tivessecertezadequeaquiloeraumpesadelo...Mas,esefosse?Omedoque„sentia,oterrívelmedoquevemcomospesadelos,nãoseriamenosreal.Talvezhouvessegentenascalçadas...Gingernãosabia,nãovia,não ouvia. Precisava apenas fugir, omais depressa possível, para o cantomais distante que pudesseencontrar,depressa,depressa.Sentiaos lábios secosearreganhados sobreasgengivas,os tendõesdopescoçoapontoderebentar,orostocontorcidodepavor.Ecorriacomosetivessenoscalcanharesumamatilhadecãesdanados.Cega,surda,muda.Perdida.
Minutos depois a névoa desapareceu. Ginger estava a meio caminho da ladeira da Rua MountVernon, parada junto à grade de ferro de uma abastada casa de tijolos vermelhos.Agarrou-se a doismontantesdagradecomtantaforçaqueosdedosdoerameencostouatestasuadanoferrofrio.Pareciaumaprisioneiratentandodesesperadamenteabriracela.E,noentanto,jácomeçavaaconformar-secomo inevitável. Tinha os pulmões ardendo, o peito dolorido pelo esforço da corrida e pela falta de ar.Tudoasuavoltapareciaestranho.Oqueestavafazendoali?Porque...comohaviachegadoatéaquelagrade?
Algumacoisaaassustara,maselaaindanãoconseguialembrar-sedoquepoderiatersido.Amedidaque conseguia respirar com mais calma, à medida que o coração retomava o ritmo normal, o medocomeçavaarefluirpoucoapoucocomoamarévazante.
Gingerlevantouacabeçaeolhouaoredor.Viuosgalhossecosdeumatíliaerguendo-secomoossosdeesqueletocontraocéupardacento.Eranovembro,umafria
manhãdenovembro,aindataoescuraqueaslâmpadasdaruacontinuavamacesas.Poucoadiante,notopoda ladeira, estava o Palácio do Governo. Abaixo, as luzes do cruzamento da Mount Vernon com aCharles.
Casa Bernstein... Claro! Era terça-feira, ela estava comprando comida quando... quando algumacoisaaconteceu.Sim,masoquê?Eondeestariaopacotequecarregava?
Soltouasgradesdeferroeolhouparasuasluvasdetricô.Luvas!Asluvaspretas...Ohomemdasluvaspretas a assustara.Não!As luvaspretas dohomemdo chapéu russo a assustaram.Ohomemdeóculoseolharmíope...eluvasdecouropreto.Porqueaassustaramtanto?Oquepoderiahaverdetãoaterrorizantenumpardeluvasdecouropreto?
Da outra calçada, um casal de velhos olhava para ela e Ginger tentou imaginar o que estariampensando.Seráquefizeraalgumacoisaterrívelenquantofugia?Nãotinhaamenoridéia.Brancototal.Nãoconseguialembrar-sedenadaapartirdoinstanteemqueviraasluvaspretas.Trêsminutos?Talvezmais...Umtempodeocoabsoluto,dememóriavazia.
Envergonhada, semsaberoque teria feitoouoqueestariampensandoosdoisvelhos,começouadesceraladeira,devoltaaopontoondeaquelaloucurahaviacomeçado.Juntoaumaesquina,encontrouseupacotedecomprassobreacalçada.Parouummomentoantesdeapanhá-lo,procurandolembrar-sedomomentoemqueodeixaracair.Nada.Nãoconseguialembrar-sedenada.
—Mas... oqueéqueestá acontecendocomigo?!—murmurou.As latasdecarnee abandejadesalmão haviam caído do embrulho, porém não faltava nada; Ginger recolheu as latas e a bandejaerecolocou-asdentrodosacodepapel.Aindasementenderoqueacontecera,pôs-seacaminhodecasa.Derepente,porém,parou,hesitouummomento,emarchoudecididaparaaCasaBernstein.Nãoprecisouesperar muito, porque, um ou dois minutos depois, o homem de óculos de tartaruga, chapéu russo ecasacodetweedapareceuaportadaloja.Aovê-la,mostrou-sesurpreso.
—Oh!—exclamou.—Porfavor,perdoe-me.Achoquenemtivetempodepedirdesculpas.Foitudotãorepentino...vocêsaiucorrendo...
Gingerconcentrou-seapenasnasluvaspretas.Umadelas,namãodireita,seguravacomfirmezaumpacotedepapelpardoidênticoaoseu.Aoutrafaziagestosnoar,acentuandoaspalavrasqueeletentavaarticular. Uma luva de couro negro riscando ara-bescos no ar frio de uma cinzenta manhã de umnovembro cinzento: nadamais, nadamenos.Tudonormal.Luvas rigorosamente comuns. Semomenorsinaldeameaçaouperigo.
—Nãosepreocupe—Gingerlevantouosolhosfitou-onorosto.—Tambémfiqueipreocupadacomoqueosenhorestivessepensandoevolteiparapedir-lhedesculpas.Passebem.—Tentousorrir,jácomeçandoaafastar-se.—Odiahojeestámesmoumpouco...estranho.Passebem.
Para chegar ao apartamento, precisava andar apenas alguns quarteirões, caminhada agradável emoutrascircunstâncias.Naquelamanhãentretanto,Gingersentia-secomoumautênticoUlissesdoasfalto,obrigadaaenfrentarmilperigosantesdeatingirasegurançadesuaItacadeconcreto.
Morava emBeaconHill no segundo andar de um prédio pequeno e antigo que um banqueiro doséculo19mandaraconstruirpararesidênciadafamília.Aoveroapartamentopelaprimeiravez,Gingerficaraseduzidapelaelegânciaepelorequintedosdetalhes:forrosdegessotrabalhado,medalhõessobreobatentedaspesadasportasdemadeira,varandasemtodososaposentos,gra-disdeferronafachada,eduas lindas lareiras de mármore — uma na sala e outra no quarto de dormir. Era um lugar quesugeriapermanência,continuidade,enãohavianadaqueelaprezassetantocomoumavidaestável;talvezfossesuareaçãoinconscienteàmorteprematuradamãe.
Aoentraremcasa,aindatremiadefrio,emboraocalordasalaaquecidaseespalhasseatéacozinha,Gingerguardoupartedascomprasnadespensa,partenageladeira,efoidiretoparaobanheiro.Parouemfrenteaoespelhoevendo-sepálida,deolhosvermelhos,aindaassustada,interrogou-se:
—Oquehouve,shnook?Desculpe,masvocêagiucomoumacompletameshuggene.Completamentefarfufket.Eporquê?VocêéasuperdoutoraWeiss,lembra-se?Porquê,doutora?
As palavras ecoaram sem resposta pelo amplo banheiro de paredes altas, e Ginger sentiu umcalafrio.Algumacoisamuitosériahaviaacontecido,poremmaisgraveaindaeraaqueleecodizendo-lheoqueelatemiadescobrir:nãosei...nãosei...
Jacob Weiss era judeu apenas por uma circunstância genética. Embora se orgulhasse muito dosséculosdeherançaculturalquereceberajuntocomosgenes,nãoeraumhebreupraticante.Raramenteiaà sinagoga e respeitava apenas os principais feriados religiosos — talvez com o mesmo espírito
alegrementeheréticodecertoscristãosquese reúnemparadevorarumafestivabacalhoa-danaSexta-feiradaPaixão.Gingerforaaindamaislongequeopaiejásehabituaraàidéiadeseragnóstica.Pesava-lheofatodesercinqüentaporcentojudia.Seprecisassedefinir-se,diria:“mulher,médica,trabalhadoracompulsiva, politicamente omissa” e mais meia dúzia de atributos, antes de pensar na profissão deféreligiosa.
Havia momentos, porém, que só o ídiche parecia oferecer-lhe as palavras de que necessitava:quando estava muito preocupada ou muito assustada. Era como se, em algum nível obscuro desuapersonalidade,elareconhecesseumcertopodermágiconalínguapaterna,comoseaquelaspalavraspudessemexorcizaromal,oazarouqualquercatástrofeiminente.
—Saircorrendopelarua,deixarcairopacote,esquecer tudo,atémesmoseunome,o lugarondeestava,oqueestavafazendo... tremerdemedosemsaberdeque...Vocêagiucomoumahrmish-tehl—Gingerbalançouacabeça,assobrancelhasfranzidàs.—
Eseumdeseusclientesavisse,doutoraWeiss?Queméqueconfianummédicolouco?!Como de outras vezes, as palavras em ídiche conseguiram acalma-la, senão completamente, pelo
menosobastanteparaarrancá-ladoestadodepânicolatenteedevolver-lheousualtomrosadodorostoeobrilhodosolhos.Percebeuquejánãoestavatremendo,emboraaindasentisseasmãosgeladas.
Ginger curvou-se sobre a pia e lavou o rosto; depois apanhou uma escova e penteou os cabelos.Despiu-se,enfiouopijamaeoroupão—uniformehabitualdosdiasdefolga—efoiparaoquartoaoladodoseu,transformadonumaespéciedesaladeestudos.Comumrápidoolharlocalizounaestanteumlivrogrosso,comsinaisvisíveisdeusointenso:oDicionárioMédico-EnciclopédicoTaber.Colocou-osobreamesaeprocurouoverbete“Fuga”.
Conhecia perfeitamente o significado da palavra e não conse-guiria explicar por que estavaconsultando umdicionário que havia quase decorado.Talvez tivesse a esperança de que o dicionáriotambém servisse de talismã, como as palavras em ídiche. Talvez acreditasse que, vendo as palavrasimpressas na página, conseguissemiraculosamente exorcizar omal.Claro.Uma espécie de voduparamédicascivilizadas.Láestava:
“Fuga(dolat.fuga),s.í.Severadissociaçãodepersonalidade.Sairdecasaoudequalquerrecinto,sob a ação de impulso incon-trolável. Passada a crise, pode-se verificar perda total ou parcial damemória,emespecialdosatospraticadosduranteoperíododeausência”.
Ginger fechou o dicionário e devolveu-o à estante. Tinha vários outros volumes que poderiamfornecer novas informações sobre fuga, suas causas, significado ou conseqüências possíveis, masresolveudeixá-losnaprateleira.Era impossívelcontinuaragindocomoseaquilo fosseumsintomadedoençagrave.Podia ser stress, conseqüênciaprevisíveldeexcessode trabalho.Umsimples incidenteisolado,semimportância.Umarápidacrisede fuga,maisnada,umaausênciadedoisou trêsminutos.Comcerteza,sinaldequeestavamesmoprecisandodescansar.Aprovadefinitivadequeasterças-feiraseramnecessáriasetalveznãosuficientes.Nessecaso,bastariarefazeraagendademodoapodersairdohospitalumpoucomaiscedo—umahorapordia,por
exemplo—,epronto,adeusstress,fugaseperdadememória!Parachegarondeestava,Gingertrabalharamuitomaisdoquesuamaeteriaimaginado,etudoque
fizera nascera sempre de uma única idéia: se era mesmo uma pessoa especial, tinharesponsabilidadesespeciais.Annasabiaqueelanãofugiriadenenhumadificuldade,Jacobconfiaranelaatéoúltimomomentodevida,Gingernãoosdecepcionaria.Quefaltalhefaziaamãenaqueleinstante!Annaafariapensarnossacrifíciosquelhecustarachegaratéali,nosfinsdesemanadeplantão,nosanoseanossemférias...eemtodososoutrosprazeresquedeixaradelado.Faltavamapenasseismesesparaofimdasegundaresidência.Depoispoderiamontaropróprioconsultórioenada,absolutamentenada,a
impediriaderealizaressesonho—oumaisainda:esseplanocuidadosamenteelaboradoeperfeitamenteexecutado.Ninguém,nadalheroubariaoprazerdeterfeitooquedecidirafazerdesimesma.
Eraodia12denovembro.
3.ELKOCOUNTY,NEVADA
ErnieBlocktinhamedodoescuro.Dentrodecasaomedoaindaerasuportável,masnarua,navastaescuridãodasnoitesdonortedeNevada,Ernieentravaempânico.Duranteodiapreferiaas salasdejanelasgrandes.Anoite,porém,tudomudava,eeleprocuravaassalasdepequenasjanelasestreitasoumesmo sem janela alguma, porque tinha a nítida impressão de que a escuridão forçava os vidros esacudia as persianas como um ser vivo, querendo entrar a qualquer custo para devorá-lo. De nadaadiantavacorrerascortinas,porquecontinuavaasentirapresençadanoite,alémdosvidros,alémdasparedes,àesperadomomentooportunoparadarobote.
Eraumhorroreumavergonha.Derepente,semmaisnemmenos,omedodoescuropassouafazerparte dele.Não sabia a razão; sabia apenas que tinhamedo.Medo. Ummedo comum emmilhões decrianças,claro.MasErnietinhacinqüentaedoisanos.
Na sexta-feira seguinte ao dia de Ação de Graças, estava sozinho, trabalhando no escritório domotel;Fayedecidiraaproveitaro feriadopara ir aoWisconsinvisitarLucy,Frankeascrianças, e sóvoltaria na terça seguinte.Para oNatal os dois tinhamplanosde fechar omotel e ir paraMilwaukeepassarasfestascomafilha,ogenroeosnetos,masdessavezFayeviajarasozinha.
Ernie jamais se acostumaria a viver semela,mesmopor algunsdias.Sentia uma falta terrível damulherque eranão apenas sua esposa faziamaisde trinta e umanos,mas tambémsuamelhor amiga.Amava-aagoramuitomaisdoquequandosecasaram.E, semela,achavaasnoitesmais longas,maisterríveis,maisescurasdoquenunca.
* Às duas horas da tarde de sexta-feira, Ernie já havia trocado os lençóis de todos os quartos,varridoelimpadoosbanheiros;oMotelTranqüilidadeestavaprontoparareceberoshóspedesdefimdesemana.Únicohotelemquasevintequilômetrosdeestrada,bempróximodoacessoàrodoviaprincipal,eraumlocal tran-qüilo,umapequena ilhaverdecercadadeplaníciespedregosas,vegetaçãorasteiraegalhos secos. Quarenta e oito quilômetros a leste estava Elko, e na diração oposta, a sessentaquilômetros,BattleMountain.Carlin,quepoderiaserconsideradaumabelacidade,eaviladeBeowawetambém não eram muito distantes, mas no Motel Tranqüilidade não se via sinal de vida pelasredondezas.Chegandoaoestacionamento,porexemplo,onovohóspedetinhaanítidasensaçãodequeafinalencontraraoúnico lugardoplanetaque lhe forneceriaabrigoecomidaameiocaminhodeumalongaviagem.
Ernieestavanoescritório,limpandoobalcão,debruçadoàprocuradearranhõesemarcasdeixadassobreotampodecarvalho.Emrigor,eraumtrabalhodesnecessário,porqueninguémsedemoravafrenteaobalcãootemposuficienteparaarranhá-lo,masserviaparafazê-loesquecerdequeashorascorriamelogo chegaria a noite. Se, por acaso, não aparecesse ninguém para passar a noite noMotel, ele iriadormircomacertezadequeestavacompletamente sozinho.Senão semantivesseocupado,voltariaapensarqueestavaemnovembroequeemnovembroanoitecemuitocedo,assim,quandoanoiteafinalchegasse,estariatensocomoumacordadeviolino,prestesarebentardeangústiaaomenorruído.
Oescritórioestavaprofusamenteiluminadodesdeasprimeirashorasdamanha.Sobreobalcão,umalâmpada fluorescente projetava um retângulo de luz no feltro verde do tampo. Junto ao arquivo ondeguardavaasfichasdoshóspedes,reluziaumabajurdehastelonga.Dooutroladodobalcão,àdireitade
ondeficavamosaspirantesahóspedes,haviaumdisplaycomcartõespostais,outrocomlivrosàvendaeumapequenaestantecomguiasdeviagememapas.Aoladodaporta,dispunham-seumsofábegeeduasmesinhas laterais, cada qual ostentandoumabajur de três lâmpadas poderosas, todas acesas.No teto,uma luminária de vidro fosco difundia a claridade de duas lâmpadas. E a ampla janela envidraçadadeixavaentrar,emtodaaplenitude,osraiosdosol,queincidiamsobreoestofamentodosofáetingiamde ouro e mel o teto branco da entrada. Sobre as mesas laterais, o bronze polido de dois cinzeiroscintilava.
QuandoFayeestavaemcasa,Ernieconseguiavenceromedoedesligavaalgumaslâmpadas,certodequeelaprotestariacontra“tamanhodesperdíciodeenergia’’.Dequalquermodo,asimplesvisãodeumalâmpada apagada fazia-o estremecer; se não fosse tão importante guardar segredo sobre o que estavaacontecendo,Ernie tinhacertezadequenãoresistiriaà tentaçãode,outravez,acendê-las todas,assimqueFayeasdesligasse.
TantoquantoErniepodiaperceber,Fayeaindanãodesconfiavadenada,emboraomedodoescurojáfosseumtormentoparaelehaviaquasequatromeses.Melhorassim.PreferiaqueFayenãodescobrisse;em primeiro lugar, envergonhava-se de tremer de medo como uma criança e, em segundo lugar, nãoqueriavê-la preocupada.Não teria oquedizer, não saberia explicar oque estava acontecendo.Alémdisso, não perdera a esperança de superar o que lhe parecia ser uma doença. Mais cedo ou maistardeestariacuradoe,assim,nãohaviarazãoparacontartudoàmulherecausar-lhepreocupação.
Não podia ser tão sério.Em cinqüenta e dois anos de vida,Er-nie poucas vezes ficara doente, enuncacomgravidade.Sóestiverahospitalizadoumavez,duranteaguerradoVietnã,paratratardedoisferimentosabala.Nãohaviaregistrodedoençasmentaisemsuafamíliaenãoseriaele,ErnestEugeneBlock, que iria inaugurar o ramo genealógico dos Block abobalhados e desequilibrados, contandomisériasíntimasemdivãsdepsiquiatras.Ah!Masnão,mesmolClaroqueiavencer...aquilo.Porterrívelquefosse,porestranho,desconcertante,horríveleassustadorquefosse!
Osprimeirossintomassurgiramemsetembro:umligeiromal-estarqueaumentavaàmedidaqueiaescurecendoepersistiaatéodiaclarear.Noinício,nãoeramuitoacentuado,nemaconteciasempre,masdepoiscomeçouapiorar.Emmeadosdeoutubro,ocrepúsculo já lhedavacalafrios.Emnovembro,omal-estar transformara-se emmedo e, nas duas últimas semanas, alémdomedo, havia uma ansiedadequase incontrolável, que crescia com a aproximação da noite. Nos últimos dez dias Ernie já nãotinhacoragemdesairdecasaànoite.Fayeaindanãodesconfiavadenada,maseraapenasumaquestãodetempo;embreveeleteriaqueacharalgumaexplicação,algumacoisaqueservisseparadizeràmulherequeoimpedissedeenlouquecerdemedo.
Ernieeraumhomemtãograndeefortequepareciaimuneaqualquertipodemedo.Musculoso,comquase doismetros de altura, tinha ombros largos e bíceps poderosos. Os cabelos loiro-acinzentados,cortados rente à cabeça, deixavam entrever as formas regulares do osso craniano; o rosto simpáticopareciarealmentetalhadoempedra.Naescola,quandoeraumastrodofutebol,oscolegasochamavamde“Touro”—apelidoquesobreviveudurantemuitotempo.NaMarinha,emseusvinteeoitoanosdeserviço, muitas vezes era chamado de “senhor” por oficiais de patente superior à sua, tamanha aautoridade que emanava dele. Qualquer um daqueles oficiais ficariamuito surpreso se soubesse que,ultimamente,Ernie suava frio, tremia dos pés à cabeça e cerrava os dentes, cada vez que pensava nachegadadanoite.
O balcão brilhava como um espelho, mas Ernie ainda não se dava por satisfeito e continuava aesfregá-locomforça,aimensamãoabertasobreaflanelaamarelada;queriamanter-seocupadoparanãopensar.Asquinzeequarentaecinco,afinal, levantouacabeça.Osolhaviamudadode lugare jánãopareciadourado;dirigindo-serapidamenteparaohorizonte,tornava-secadavezmaisavermelhado.
Asquatrohoraschegaramosprimeiroshóspedes,osr.easra.Gilney;tinhamquaseaidadedeErnieevoltavamparacasa,emSaltLakeCity,depoisdeumasemanadeférias,comofilho,emReno.Ernieencompridouaconversacomelesomaisquepôde,porémaviagemforalongaeosdoispareciamterpressadeirdescansar.Láfora,osolavermelhavaòhorizonte.Haviapoucasnuvens,densasepesadascomogaleõesincendiados,carregadosdecadáveres,arrastadossemrumoporummardesangue.
Dezminutosdepois,apareceuumhomemalto,pálidoemagro;eraumfuncionáriodoMinistériodaAgricultura,encarregadodemedirumasterrasporali,epediuumquartoparaduasnoites.
Outravezsozinho,Ernielutavaparanãoconsultarorelógioenãoolharpelajanela.Bastava-lheoreflexodosolnaparedeasuafrenteparasaberqueosanguecobriaohorizonteecontinuavaabrotarportodososlados.
—Nadadepânico—disseparasimesmo.—VocêestevenoVietnã,jáviutudooquepodehaverdemais terrível.Merda!Você sobreviveu!Nãoépossívelquevá tremeragora, justamenteagora... sóporqueestáescurecendo!
As dezesseis e quarenta e cinco o sangue cobria omundo. 0 coração de Ernie disparou. Por ummomento tevea impressãodequesuascostelascomeçavamafechar-se,comoumaenormemandíbula,triturando-lheaalma.Aproximou-sedamesa,sentou-senacadeiradeFaye,fechouosolhoserespiroufundo, uma, duas, três vezes, tentando acalmar-se. Ligou o rádio. As vezes, a música servia-lhe desedativo.KennyRogerscantava,triste,falandodesolidão.
O sol, afinal, alcançou o horizonte e, lentamente,mergulhou na terra.A luz avermelhada da tardetornou-se azul-escura, comonos fins de tarde emSingapura, quandoErnie trabalhava comoguardanaembaixada,eramuitojovemenãotinhamedodenada.
Ocrepúsculochegou.Elogoveioopior:anoite.Nafachadadomotel,asletrasazuiseverdesdoneon acenderam-se automaticamente, acionadas pelo mecanismo fotossensível, mas Ernie sequerpercebeu.ContinuavasentadonacadeiradeFaye,osolhosfechados,atestacobertadesuorfrio.
Asseisemponto,SandySarversaiucorrendodoRestauranteTranqüilidade,bemaoladodomotel.Na verdade, era apenas uma lanchonete, com cardápio simples e limitado, que servia lanches aoshóspedes e aos caminhoneiros eventualmente atraídos pelo luminoso. Caso algum hóspede desejasse,haviaaopçãode“pernoitecomcafédamanhãnoquarto”,desdequeencomendadodevéspera.Sandydirigiaorestaurantejuntocomomarido,Ned;elaatendiaosfregueseseNedencarregava-sedacozinha.MoravamnumtrailerestacionadopertodeBeowawee,todasasmanhãs,dirigiam-seaotrabalhonumavelhacamioneta.
QuandoSandyabriuaporta,Erniesaltoudacadeira,lívido,certodeque,atrásdela,entrariaanoite,esgueirando-seporentresuaspernascomoumapantera.
—Vimtrazerojantar.—Sandysacudiuoscabelos,comosequisessejogarparalongeaumidadedanoite,ecolocousobreamesaumaembalagemdepapelãobrancocontendoumcheese-burger,batatasfritas,saladaderepolhoeumalatadecerveja.—Acheiqueumacervejaoajudariaaengolirtodoessecolesterol.
—Obrigado.Sandydavaaimpressãodenãosepreocuparcomaaparência.Excessivamentemagra,tinhacabelos
opacos e sempre despentea-dos, unhas roídas, dedos amarelados pela nicotina.Vestia-semal, andavacabisbaixaeraramentemostravaorosto,semprelavado.Noentanto,conseguiriaserumabelamulherseganhasse alguns quilos, sabiamente distribuídos do pescoço à virilha, e seguisse certos conselhos debelezaelementaresfornecidospelasrevistas
femininas.Era,contudo,umaboaalma.ErnieeFayeviviamimaginandocomoelaseriasedecidissecuidarmelhordesimesmaevivercommaisalegria.
As vezes, Ernie surpreendia-se preocupado comSandy domesmo jeito como se preocupava comLucy,suafilha,antesdeFrankaparecereLucydesabrocharemplenafelicidade.TinhaasensaçãodequealgumacoisamuitograveaconteceranavidadeSandy,umgolpeduro,definitivo,terrível;umgolpeque,se não conseguiu destruí-la, obrigou-a a baixar para sempre a cabeça, na tentativa de proteger-se denovasesperanças,novasfrustrações,novasdores,novosencontroscomamaldadehumana.
Ernieexaminouacomidaeabriualatadecerveja.—Pareceótimo—comentou.—Nedfazosmelhorescheese-burgersdomundo.— E uma sorte ter um homem que sabe cozinhar. — Sandy esboçou seu pequeno sorriso
envergonhado.—Principalmentenomeucaso...souumanegaçãocompletanacozinha.—Ora...apostoque,sevocêquisesse,seriaumaexcelentecozinheira.—Nadadisso.Nãoseicozinhar,nuncasoubeenuncavouaprender.ErniecorreuosolhospelosbraçossardentosdeSandy,emergindodasmangaslargasdouniforme.— A noite estámuito fria para andar por aí com essa roupa— disse.—Você vai acabar se
resfriando.—Oh,não...—Elasacudiuacabeça.—Eunão...Fazmuitotempoqueaprendianaosentirfrio.Aestranhafrasesoouaindamaisestranhanaqueletomdevoz.Antes,porém,queErnieconseguisse
abrirabocaparapedir-lheumaexplicação,Sandydeu-lheascostasmurmurando:—Voltomaistardeparaapanharabandeja.—Você...Orestauranteestácheio?—Nãomuito.Masestánahoradeapareceremoscaminhoneiros.—Sandyparouameiadistância
entreamesaeaporta.—Paraquêtantaslâmpadasacesas?—Comoseaperguntanãome-recesseresposta,continuouaandareteriasaídoseatosseengasgadadeErnienãoafizesseparar,a
mãonamaçanetadaportaentreaberta.—Eque...—Anoiteestavaali,aumpassodaporta,visível,palpável,eErniemalpôdeengolira
batataquemastigava.—Eque...bem...istoéummotel...osmotoristasquepassamnaestradaprecisamveragente,nãoé?
—Sim,masnãoaquinoescritório.—Sandyreplicou,olhandoemtorno.—Vocêestáquerendosebronzear?
—Não...Vocêsabe...ummotelmaliluminadodápéssimaimpressão...Osclientesgostamdeluz,declaridade...
— Everdade.Achoqueeununcapensarianisso...—Elacurvouaindamaisosombros,baixouaindamaisacabeça.—Deveserporissoquevocêéochefe.Nuncapensoemcoisasimportantes,sóembobagens...
Ernie suspendeu a respiração; sentia o coração bater como um tambor e as veias do pescoçolatejarem.Porfim,aportafechou-secomumestalido,eelerespirou.Viuovultomagrodamoçapassarpela janela e desaparecer. Sandy jamais se vangloriara de coisa alguma; ao contrário, sempre sedeclararaincompetente.Diziaquenãosabiacozinhar,nuncasoube,jamaissaberia.Quenãopensavaemcoisas importantes...Defeitos, falhas, nenhuma qualidade, nenhuma vaidade, nenhum orgulho.Não eraboacompanhia,mas,naquelanoite,qualquercriaturaracionalseriainteressanteepreciosaparaErnie.
Debruçadosobreabandeja,eletentouconcentrar-senarefeição,esforçando-separanãolevantaracabeçaatéacabardecomer.Eraoúnicomododeesqueceranoite,omedo,osuorfrioquecomeçavaaescorrer-lhepelasaxilas,pelatesta,pelascostas.
Asseisecinqüenta,oitodosvinteapartamentosdomotelestavamocupados.Eraasegundanoitedeumfimdesemanaprolongadoehaviamuitagentenaestrada;antesdasnovehoras,comcerteza,ametadedos aposentos estaria tomada, e mais tarde ainda apareceriam outros hóspedes. Contudo... como
conseguiriamanteromotelabertoatémaistarde?!Ernie era homemdaMarinha. Fazia seis anos que estava na reserva, porém ainda era homemda
Marinha,daquelesparaosquaisodever e a coragemeramsagrados,daquelesque jamais fugiramdaluta,quenuncatremeramfrenteaoinimigo,nemmesmonoVietnã,combalasvoandosobreacabeça,comfogopor todosos lados,comaretiradacortada,vendomorreremoscompanheiros.Naquelemomento,contudo, tremia de medo, sentia-se incapaz de permanecer no escritório, porque não havia cortinasnasjanelaseapenasumvidrofinooprotegiadaescuridão,danoite,docaos.Cadavezquealguémabriaaporta,seuestômagodavavoltaseumanáuseapesadaedoloridasubia-lhepelagarganta;abertaaporta,jánãohaviabarreiraqueoprotegessedanoite.
Sem querer, notou que suas mãos tremiam, úmidas. Estava tão tenso que não conseguia maispermanecersentado;andavadeumladoparaoutro,concentradoemnãoseaproximarmuitodasjanelas.
As sete e quinze já não tinha forças para resistir e, envergonhado, rendeu-se ao pânico.Comumgestorápido,incontrolável,acionouopequenointerruptorsobobalcãoeacendeuoluminosodaportadeentrada:“Nãohávagas”.Depoistrancouaporta,apagouasluzeseafastou-separaointeriordacasa,àmedidaqueassombrascresciamasuavoltacomosefechassemocerco.Subiuaescadailuminada,nafugaparaoquarto, repetindopara simesmo,acadadegrau,quenãohavia razãoparacorrer,quenãohavianadaatemer,quetudoestavacomosempre,queFayelogovoltaria.Eprincipalmentedizia-sequeeleeraumhomem,nãoummenino;quenãohavianinguémescondidonoescuroparapregar-lheumsusto.Era inútil, porque não tinha medo de que alguém lhe fizesse mal... tinha medo da própria noite, e omedocresciasempre.
Derepente,disparoupelaescadaacima,tropeçando,agarrando-seaocorrimão,semvernemouvir,dominadopelopânico.Noquarto,semcoragemdeabrirosolhoseencararaescuridão,tateouaparedeàprocuradointerruptor,bateuaporta,encostou-seàmadeiralisae,muitolentamente,ergueuaspálpebras.Oquarto
brilhouasuafrente,inundadopelaluzsuavedosabajuresaoladodacama.Ernie,porém,continuavaa tremer,mal conseguindo respirar, o corpo banhado de um suor fétido, o suor domedo.HaviamaislâmpadasnoquartoenasoutrasdependênciasqueFayetransformaraemverdadeirolarnoandarsuperiordomotel;Erniecorreudesalaemsala,acendendoasluzes,umaauma,portodososcantos.Ascortinasaindaestavamfechadas,exatamentecomoasdeixarananoiteanterior,etodasaslâmpadasacesas.Eelecomeçouasentir-serazoavelmenteseguro.
Algunsminutosdepois,maiscalmo, telefonouparaorestauranteedisseaSandyquefecharamaiscedoporquenãoestavapassandobem;pediu-lhequenãooperturbasseedeixasseascontasparaodiaseguinte.Então foiparaobanheiro.Queria livrar-sedaquelecheirodesuor,que lhepareciacadavezmaisforte,entranhadonapelecomoumestigma.Abriuochuveiroeesfregou-secomforça,durantemuitotempo.Porfim,enxugou-se,vestiucuecaslimpaseumconfortávelroupãodelã,ecalçouoschinelos.
Apesardaansiedadeedomal-estar,antesdaviagemdeFayeconseguiradormirnoescuro,emboracomaeventualajudadeumaouduascervejas.Depoisqueelapartira,noentanto,quasenãodormia.Asduas noites que passara sozinho foram um longo tormento que parecia infindável, entrecortado pormomentosdetorpor,sonolênciaeexaustão.Osolhosardiamsobaluzfortedalâmpadacentral,que,nãoobstante,parecia-lhemaisindispensávelquenavéspera.
Oque fariaquandoFayevoltasse?Seria capazde ficar na cama, imóvel, fingindoquedormianoquartocompletamenteescuro?Esecomeçasseasuarfrio,ouatremer,ouaberrardemedonomomentoemqueeladesligassealâmpadadecabeceira?Opensamentoofezsaltardapoltronaondeacabavadesentar-se.De punhos e dentes cerrados, quase sem perceber, Ernie aproximou-se da janela e tocou acortinacomaspontasdosdedos,cuidadoso,hesitante.Nopeito,ocoraçãonovamentedisparou.
Fayeconfiavanelecomoumpescadorconfianoportoseguro.Eraohomemqueelaamava,ohomemforte,indestrutível,eter-
no,queestaria semprea seu ladoparaajuda-la, ampara-la,dar-lheoapoionecessário.Ohomemsólido como um rochedo, como os homens devem ser. O que Faye pensaria se, de repente, elelhe faltasse? Não! Não podia decepcioná-la, não podia fracassar. Aquele ridículo e incompreensívelmedodoescuroprecisavadesapareceratéterça-feira,antesqueFayevoltassedoWisconsin.
Era fácil falar... Bastou pensar na escuridão que estava ali, a apenas alguns passos, atrás dascortinas,paraqueoutravezsentisseapelegelar-sedepavor.Atéque,derepente,percebeuquesólherestavaumasaída:encararo inimigo,partirparaaofensiva.Aeterna liçãodaguerraensinara-oaserforte,aerguer-sediantedofogoinimigo,aaceitarodesafio.Sempreforahomemdeluta...Haviadedarcerto!
Estavaparadofrenteàjaneladoquarto,nosfundosdomotel.Portrásdascortinas,dosvidrosedaspersianas,abria-seapaisagemdesertaeressequidadetantosetantosanos.Nadaalémdechãoecéuatéohorizonte;nenhumaluzalémdobrilhodistantedasestrelas.Precisavaabrirascortinas,escancararajanela,encarara imensidãoquepareciaespreitá-lo.Precisavalutar...pelomenostentar...Sevencesse,estarialivreparasempre!E,quandoFayevoltasse,tudoestariabem,comoantes.
Com dois movimentos rápidos e decididos, abriu a janela e debruçou-se ligeiramente para fora.Encontrou apenas a noite de sempre, fria, silenciosa e eterna. Mais nada. Nenhuma ameaça, nenhumfantasma.
Foi o tempo de um pensamento. Inexorável como um pesadelo, passos lentosmas firmes, a noitecomeçou a aproximar-se, a ganhar corpo.Não era visível nem tinha limites,mas era densa, pulsava,crescia.Anoiteesualegiãodehorrores:fantasmas,mutilados,cadáveres,pesadelo,putrefação,morte...Ecadavezmaispróximos.
QuandoErniefinalmenteconseguiurespirar,ajanelaestavafechadaesuatestasuadaapoiava-senovidrofrio.Agora,pelomenos,haviaovidro.OdesertodeNevadacontinuavacrescendoláfora,chegavaatéasmontanhasinvisíveis,aolonge.Masasmon-
tanhas moviam-se... afastavam-se... fugiam! Apenas a escuridão estéril da planície permanecia,rolandoemtodasasdireções,avolumando-se,ocupandoaterraeocéu.Avastanoiteencobriaomundo,turvava a razão, causava vertigens. Ernie sentia a garganta contrair-se, os pulmões fecharem-se comobalõesvazios.
—Ar!—gemeu.—Ar...Osomdaprópriavozarrancou-odotranse.Elecaiudejoelhosjuntoàparede,puxandoascortinas
numúltimoedesesperadogestodedefesa.Estavasalvo.Noquartoinundadodeluznenhumaescuridãopoderia atingi-lo.Ainda curvado, arrastou-se até a cama, enrolou-se na colcha e ficou quieto durantemuitotempo,esperandoqueosdentesparassemdebatereocoraçãovoltasseaoritmonormal.
Aexperiêncianãoderacerto.Arriscara-seaenfrentaranoite,eanoitequaseomatara.Tinhacertezadeque,apartirdaqueleinstante,nuncamaisseriacapazdesobreviveraumúnicomomentodeescuridão.
—Deus...—dissebaixinho,olhosnoteto.—Oqueéqueestáacontecendocomigo?Deus...Oh!MeuDeus...
Eraodia22denovembro.
4.LAGUNABEACH,CALIFÓRNIA
Nosábado,depoisdenovacrisedesonambulismo,Domresolveuquechegaraahoradededicar-se
metodicamenteàcura.Oprimeiropassoeracansar-seatéaexaustão.Assim,quandosedeitasseànoite,nãoteriaenergiasuficienteparaandarpelacasaeconseguiríadormirnacama,comoqualquermortal.
—Oprogramacomeçouàssetedamanhã,comumahoraemeiadecorridapelasladeirasdeLagunaBeach, para cima e para baixo, respirando o ar saudável ainda carregado de orvalho. Depois, jáaquecido,fezginásticanopátiodecasa,metrosacimadomar,atéficarcomaroupaencharcadadesuor.Passoumaiscincohorasdedicadoaojardim,trabalhopesadoecansativo,poisjáfa-
ziamuito calor.Na etapa seguinte do programa, foi até a praia, tomou um pouco de sol e nadoumuito. Jantou no Picasso, andou mais de uma hora pelas calçadas da cidade, praticamente desertasnaqueleperíododeentressafradeturistase,tardedanoite,voltouparacasa.
Despiu-se no quarto, sentindo no corpo os primeiros efeitos do esforço físico, uma espécie deformigamento,umadeliciosasensaçãodecansaço.Comomedidaextradeprecaução,aindapreparouumadose generosa de RemyMartin, seu conhaque preferido, e bebeu-a de um só gole. Na cama, teve aimpressãodequeadormecianoexatomomentoemqueapagoualâmpadadacabeceira.
Praticamentejánãohavianoiteemquenãoperambulassepelacasa,eoproblemapassaraasersuaprincipal preocupação. Quase não conseguia trabalhar. O novo livro, que parecia evoluir tão bem eprometiaseraindamelhorqueoprimeiro,estavaparado.Aolongodasduasúltimassemanasacordaranovevezesnofundodoarmário,quatrovezesemquatronoitesconsecutivas.Jánãovianadadedivertidoouinteressantenaloucuraemquesuavidasetransformara.Tinhamedodesedeitarparadormirporquesabiaque,adormecido,nãoeracapazdecontrolarseusgestos,atosoumovimentos.
Na sexta-feira, por fim, resolvera procurar um médico, o dr. Paul Cobletz, de Newport Beach.Conseguirafalar-lhesobreascrisesdesonambulismo,massaíradoconsultóriocomasensaçãodequenão havia sido completamente franco, pois não contara ao médico que começava a preocupar-seseriamentecomtudoaquilo.Nãodisseraaodr.Cobletzquecomeçavaaentrarempânico.
Dom era muito cioso de sua privacidade, talvez em conseqüên-cia da infância que tivera, dasdezenasdepaisemãesadotivosqueconhecera,dosrarosparentesquedemonstravamalguminteresseemsaberseestavavivooumorto.Mãesepaisfalsos,parentesausentesoupresentes,algunsmuitohostis,formavam uma espécie de nebulosa em suamemória, sem rostos definidos, com um ou outro sorriso,váriascarrancas,nenhumafeto.Talvezporisso,tal-
vez por outrosmotivos, também,Dom não era capaz de partilhar com ninguém suas experiênciaspessoaismaisprofundas.Namaioriadasvezes,eemrelaçãoamuitosassuntos, sóaspersonagensdeseuslivrosfalavamporele.
Os sintomas descritos por Dom não provocaram no dr. Cobletz nem grande preocupação, nemespanto.Depoisdesubmetê-loademoradoexameclínico,omédicoconcluiuqueseupacientegozavadeexcelentesaúde,eatribuiuascrisesdesonambulismoaummomentodestressrelacionado,talvez,comapublicaçãodoprimeirolivro.
—Nãoseriaocasodefazeroutrotipodeexames?—Domperguntou.»—Vocês,escritores,têmimaginaçãofértil.Soucapazdeapostarqueestácommedodeterumtumornocérebro.Acertei?—E...achoquesim.—Sentedoresdecabeça?Tonturas?Perdadevisão?—Não.—Examineisuasretinasenãohásinaldealteração.Pressãointracraniananormal,portanto.—O
dr.Cobletzexaminouasanotações.—Temtidonáuseas?Vômitos?—Não.Nadadisso.—Alteraçõesouproblemasdefala?Súbitasmudançasdehumor?Períodosdedepressãoseguidos
deperíodosdeeuforiasemrazãoaparente?Qualqueranormalidadedecomportamentooudehábitos?—Não.—Entãonãohámotivoparaoutrotipodeexames.—Talvez...psicoterapia?—Domcruzouosbraços,atento.—PeloamordeDeus!Claroquenão!Essascrisesvãodesaparecerlogo,derepente,assimcomo
surgiram.Fiquetranqüilo.Domvestiuacamisa,abotoou-a,enquantoomédicoguardavasuafichanoarquivo.—Nem...algumsonífero?—perguntou.— Não, não.—Omédicobalançou a cabeça.—Aindanão.Só receito soníferos e calmantes
quandoéabsolutamenteneces-sárioparaopacienteserecuperardatensão.Masnãoéseucaso,Dom.Vamostentaroutrocaminho.
Sugiro que pare de escrever por algumas semanas. Deixe a massa encefálica em paz e trate de dartrabalhoaocorpo.Façaginástica,corra,ande,respire.Enfim,façaopossívelparasecansarfisicamenteevápara a cama tão exaustoquenão consigapensar emnada.Tenho certezadeque emduasou trêssemanasvocêestarácurado.
Assim,nosábado,Dominiciouseuprogramadeexercícioslevando-omuitomaisasériodoqueodr. Cobletz poderia imaginar, e, pelomenos no primeiro dia, tudo deu certo. Ao despertar namanhãseguinte,porém,Domnãoestavanemnoarmário,nemnacama,e,sim,nagaragem.
Foiacordandodevagar,aindasufocadopelomedo,ocoraçãoaospulos,agargantaseca,ospunhoscerrados.Todososmúsculosdocorpodoíam,emparteporcausadosexercíciosdavéspera,emparteporcausadaposiçãoemqueestava.
Anoite,apanharadoispedaçosdelonaqueficavamguardadossobamesadagaragemecolocara-osatrásdacaldeiraquecompunhaosistemadeaquecimentodacasa.Eraaliqueestava,escondidoentreosdoispedaçosdelona.Masporquerazãoseescondera?
Jáacordado,afastandoalonaparapoderverondeestava,arregalandoosolhosavermelhados,aindasentiaopulsoacelerado.Aindaestavaassustado.Porquê?
Um pesadelo... Claro! Tivera um pesadelo, um sonho onde aparecia alguma coisa que o haviaassustadomuito.Entãosaíradacamaparaprocurarumlugarondepudesseesconder-se...eenfiara-senofundodagaragem,atrásdacaldeira,entreospedaçosdelona.
À frente, poucos passos adiante, seumoderno carro brancoparecia um fantasma,meio oculto nassombras.Aúnicailuminaçãodagaragemvinhadeumapequenajanelapoucoacimadamesa.Domsentia-secomosefosse,aomesmotempo,autorepersonagemdeumacenadeterror.Odiacomeçavaaclarear.Elevoltouparadentrodecasa,entrounoescritórioesentou-sediantedocomputador.Digitouocódigoeesperouqueomonitormostras
se o último texto que havia no disquete. Tudo bem: o texto era exatamente omesmo que deixaragravadonaquinta-feira.
Era um alívio, mas também uma decepção. Dom percebeu que se aproximara do monitor naesperança de encontrar alguma coisa — uma mensagem, um aviso, qualquer sinal que o ajudassea entender o que estava acontecendo.Havia uma parte dele, de seu cérebro, de seu inconsciente, queguardavatodasasrespostas,maseracomoumarquivosecretoeinacessível.Sóquandodormiaéqueoinconsciente encontrava espaço para manifestar-se plenamente, e Dom tinha a esperança de que ocomputadorpudesseajudá-lo.
Desligou o aparelho e permaneceu onde estava, pensativo, os olhos perdidos na paisagem quecomeçava a revelar-se à luz transparente da manhã. Depois de algum tempo, levantou-se para ir aobanheiro, mas parou de repente, junto à porta do quarto. Alguma coisa no carpete feriu-lhe o pé
descalço... um prego. Havia dezenas de pregos, todos iguais, sem cabeça, com pouco mais de trêscentímetros,espalhadospelocarpetedesdeaentradadoquartoatéajanela.
Dom seguiu com o olhar o estranho rastro de seu pesadelo e encontrou a caixa de pregos, quasevazia, tendoao ladoummartelo.Abaixou-se,apanhouomartelo,examinou-o, franziuassobrancelhas.Lentamenteexaminouaparedeeobatentedajanela.Eentãoviuumpregomeioenfiadonamadeiradaveneziana. Ali começava o rastro que se espalhara pelo quarto. Deus do céu! Algo acontecera... edeixara-otãoassustadoqueelehaviatentadopregarajanela!Tentaraimpedirquealguémentrasse...eentão,derepente,assustara-seaindamaisefugira.Correraparaagaragem,espalhandoospregospelochão,eforaesconder-seembaixodalona,atrásdacaldeira.
Domdeixouomartelocaireolhouparafora.Asroseirascomeçavamaflorir,agramabrilhavanaumidade damanhã e as pedras demármore na entrada da casa vizinha pareciam recém-lavadas.Umalindavista,dignadecartão-postal,oquedetão
terrível poderia ter acontecido naquele lugar tranqüilo? Quem se aproximara de sua janela paraassustá-lo?
Aospoucos,àmedidaqueodiaseespalhavasobreomar,Domviuchegaremasprimeirasabelhas,atraídaspelasrosas.Entãocurvou-seecomeçouaguardarospregos.
Eraodia24denovembro.
5.BOSTON,MASSACHUSETTS
Depoisdoincidentedasluvaspretas,passaram-seduassemanassemnovidades.Nosprimeirosdias,logoapósacenanaCasaBerns-tein,Gingerandoutensa,sempreàesperadequesobreviesseoutracrise.Maisdoquenunca,mantinha-seempermanenteestadodealerta,atentaaqualquerpossívelalteraçãodesuasfunçõesfisiológicasoupsicológicas.Comonãonotassenadadeestranho,começouatranqüilizar-se.Nãohaviasintomasdecefaléia,nemnáuseas,nemdornosmúsculosounasarticulações.Aospoucosfoise recuperando do susto e logo voltou a ser a calma e segura dra. Weiss que todos conheciam,principalmenteelamesma.Tratava-sedeumsimplescasode fugaassociadaastress,umaexperiênciadesagradávelquepoderiaevitarfacilmentecomprovidênciassimplescomodescanso,boaalimentaçãoemuitapaz.
Quandoestavanohospital,porém,descansoeraaúltimacoisaemquepoderiapensar.Apesardojeito lento de falar e da aparência preguiçosa, o dr. GeorgeHannaby, chefe da equipe de cirurgiões,mantinha os subordinados num ritmomaçante de trabalho e exigia de todos pontualidade, disciplina,ordem.Ginger não era a única residente que o assistia nas cirurgias,mas era a única que trabalhavaexclusivamentecomele,umaespéciede“eleita”.Ograndechefesempreachamavaparaqualquertipode intervenção, desde osmais variados implantes—de ponte cardíaca ou aórtica, de veia safena ouartéria mamária, de válvulas in-tracardíacas ou marcapassos — até embolectomias, cineangio-coronariografiasearteriografias.
Georgemantinha estrita e constante vigilância sobre sua brilhante discípula e jamais perdia umaoportunidade de comentar os mais insignificantes detalhes de procedimento cirúrgico errado queobservasse.Comseuarbonachãoedescontraído,omestre já enganaramuitos residentes ingênuos,osquais, para seuprópriousoe arquivo, costumavaclassificar emdoisgrupos:osqueaprendemcomoprimeiro erro e os que jamais aprenderão.Muitos jovensmédicos do serviçode cirurgia fugiamdelecomoodiabodacruz.Erairônico,cáustico,demolidor.
Apesarde tudo, trabalhandoao ladodeGeorgenasaladecirurgia,Gingersentia-seemcasa.Era
como cozinhar ao lado de Anna ou fazer as provas finais da escola sabendo que os pais dormiamtranqüilos,certosdeseusucesso.Claroquenohospitalospadrõeseraminfinitamentemais rigorosos,poisnãosetratavadefazerumsaborososuflêoutirarboasnotas,esimdesalvaravidadeumpaciente.Quando George Hannaby disse-lhe que ela era uma brilhante cirurgia, a mais brilhante que já viraemação,Gingersentiu-secomoseDeus,empessoa,aabençoasse.
Naúltimasegunda-feiradenovembro,trezediasdepoisdoincidentenaCasaBernstein,elaassistiaomestrenumimplantedetriplapontedesafena.OpacienteeraJohnny0’Day,decinqüentaedoisanos,oficial de polícia em Boston, prematuramente aposentado em função de seus problemas cardíacos.Musculoso, de faces avermelhadas, cabelo cortado rente e doces olhos azuis, Johnny estava sempredisposto a fazer piadas e rir de suas artérias entupidas. Ginger simpatizou com ele porque lhelembravaJacob,emboraosdoisnãopudessemsermenosparecidos.
Johnny era paciente de alto risco, mas isso não a faria sentir-se menos culpada se ele nãosobrevivesse ao terrível pós-operatório que o esperava. De qualquer modo, consideradas ascircunstâncias, Johnny tinha grandes chances de sobrevida. Saudável e mais jovem que a média dospacientes de implante de pontes cardíacas, não sofria de hipertensão nem apresentava histórico deflebite.Feitasascontas,tinhaumbomprognóstico.
Overdadeiroproblemanãoeraopaciente,masamédicaassis-tente.Atodomomentovoltava-lheà lembrançao incidentedas luvaspretas.Na tardedesegunda-
feira,Ginger ficavamais tensaàmedidaqueseaproximavaahoradacirurgia.Sentiaabocaamarga;doía-lhe o estômago. Desde a noite que passara à cabeceira de Jacob, no hospital, sabendo que elepoderiamorreraqualquermomento,jamaissesentiratãodesamparada,tãocheiadedúvidasedemedo.Talvez a sensação fosse agravada pela identificação que estabelecera entre Johnny e o pai. Talveztemessefalharcomseupacienteesentir-se,outravez,comoseestivessefalhandocomJacob.Ou,talvez,nadadissoservisseparaexplicarcoisaalguma.Estavatensa,pronto.QuandoJohnnyentrasseemfasederecuperação,tudoaquiloteriapassadoetodosririamdesuasapreensões.Dequalquermodo,aoentrarnocentrocirúrgico,aoladodeGeorge,Gingerbaixouosolhosparaasprópriasmãos,commedodevê-lastremer.Mãosdecirurgiãonãopodemtremer.Nunca.
A sala de cirurgia tinha paredes brancas, e por todos os lados viam-se os instrumentos eequipamentosdeaçoinoxidável,vidroeborracha.Nocentro,comonumaarenalimitadapelaslâmpadasque pendiam do teto, erguia-se a mesa onde o paciente estava sendo preparado pelas enfermeiras eassistentes.
Johnny 0’Day esperava na mesa em forma de cruz com os dois braços abertos apoiados sobrebandejas demetal, as palmas dasmãos para cima, os pulsos e antebraços cuidadosamente depila-dosparareceberemasagulhasintravenosas.
AenfermeiraAgathaTandy,técnicaemcirurgiacontratadamaisparaserviraodr.Hannabyqueaohospital,aproximou-sedosmédicos.Levavadoisparesde luvasdeborracha,quecalçouprimeiroemGeorge,depoisemGinger.
Oanestesista fezumsinalparaGeorge indicandoqueopacienteestavapreparadoparaentrar emcirurgia.Johnnyjáhaviapassadopela tricotomiaeseutroncobrilhava,depiladoepintadodeiododopescoçoàcintura.Osdiferentescamposoperatóriosjáestavamdefinidos,evárioslençóisverde-clarosforamdispostosdemodoadeixarexpostaapenasaáreanaqualocirurgião trabalharia.Oanestesistaencarregara-sedepassarumalarga tiradeesparadraposobreaspálpebrasdopacienteparamantê-lasfechadas e, assim, impedir que os olhos ressecassem, e Johnny 0’Day respirava bem, lenta masregularmente.
Nocantoopostodasala,juntoàparede,umamesinhabaixasustentavaumgravadorportátil.George
gostava de trabalhar ao ritmo de Bach, e a música, em volume baixo porém perfeitamen-te audível,enchiaa sala.Emgeral,Ginger tambémgostavade terogravadorporpertoeacreditavaqueoefeitorelaxantedosomerabenéficoparatodaaequipemédica;naqueledia,entretanto,nemBachconseguiriaomilagredeacalmá-la.Sentiaoestômagocontraído,pesado,frio.
Georgetomouposiçãoaoladodamesacirúrgica.Asuadireita,Agathapareciamontarguardafrenteàbandejadeinstrumentos.Juntoaospésdopaciente,postava-seoutraenfermeira,prontapararesolverqualquerproblemaquesurgissenodecorrerdacirurgia,quandonenhumdosoutrosmembrosdaequipepoderiaafastar-sedamesa.Umaterceiraenfermeira,comgrandesolhoscinzentosaparecendoporcimada máscara verde-clara, ajeitou uma imperceptível prega num dos campos cirúrgicos e prendeuuma ponta de lençol sob a coxa de Johnny. O anestesista sentou-se num banco alto, ao lado de seuassistente e junto à cabeceira da mesa cirúrgica, acomodando-se para monitorar os aparelhos queindicariamaevoluçãodossinaisvitaisdopaciente.
Gingerdeuumpassoàfrente,assumiuseupostoerespiroufundo.Iacomeçarojogo,esuasmãosnãotremiam.Oestômago,porém,continuavacadavezmaispesadoefrio.Seussombriospressentimentosmostraram-seinfundados,eacirurgiacorreusemanormalidades.George,comosempre,trabalhoucomrapidez, segurança e habilidade, qualidades que já eram suamarca registrada.Durante a cirurgia, emduasocasiõesdiferentes,afastou-sedamesaeordenouaGingerquedesseseqüênciaaoprocedimento,oqueelafezcomacalmaeafirmezahabituais.Ninguémpercebeu,masumfiodesuorgeladoescorreu-lhedevagarentreascostelasquandoassumiuocomandodacirurgia.Outrasgotasdesuor
acumularam-se junto ao gorro que escondia seus cabelos— problema simples que a enfermeiraresolveunumsegundo,tocando-lheatestacomumagazeseca.
Terminadaaoperação,Georgesuspirousatisfeitoenquantotiravamasluvaselavavamasmãosnapia:
—Perfeito.Aequipefuncionoucomoumrelógio.Gingerdeixouaáguamornaescorrer-lheentreosdedos.—Vocêparecetãocalmo—disse.—Estásemprerelaxado,comoseestivessecortandoumbife...—Seiquepareçocalmo.Masficotensoquandoopero.EporissoquegostodeouvirBach.—Ele
fechouatorneira.—Vocêtambémestavatensa.
-É...
—Maistensadoquedecostume.Seicomoé.—Asvezes,Georgeeracapazdefalarcommuitadoçura,criandocuriosocontrastecomaauradeautoridadequeocercava.—Oqueimportaéquevocêtrabalhoumuitobem.Nãopodemosobrigarocorpoadescontrair,mastambémnãopodemospermitirqueatensãonosfaçaerrar.Vocêesteveperfeita.Osegredoésaberusaratensão...Elapodeajudarmuito,obriga-nosasermaisatentos,aconcentrar-nosmais.
—Achoqueestoucomeçandoaaprender.Georgesorriuelevantouassobrancelhas:—Estásendomuitoseveraconsigomesma.Aliás,comosempre.Estoumuitoorgulhosodevocê,
menina. Quando a vi pela primeira vez, achei que você jamais daria certo como cirurgia. Cheguei apensaremaconselhá-laatentarganharavidacomoaçougueiranumsupermercado.Maseumeenganei...vocêvaiserumsucesso!
Ginger forçouumsorriso.Georgehaviapercebidoapenasumapartedoproblema.Haviamaisdoquetensãonosuorgeladoquelhecobriraatesta,asmãos...Elaestavamortademedo!Nãoeraummedo
saudável, do tipoquepoderia torná-lamais atenta ou aumentar sua concentração.Era ummedonovo,desconhecido.UmmedoqueelajamaissentiranavidaequeGeorge,comcer-
teza,nuncasentiríafrenteàmesacirúrgica.Eseaquelemedovoltasse?Eseaparecessesemprequeseusdedostocassemobisturi?Oquepoderiaacontecer?Oqueseriadesuacarreira?!
Asdezemeiadamesmanoite,Gingerestavadeitada, lendo,quandootelefonetocou.EraGeorgeHannaby.Setivesseligadomaiscedo,Gingerpensarialogoqueasnotíciasnãoeramboas,queJohnny0’Day tivera alguma complicação pós-operatória, ou qualquer outro desastre.Mas àquela hora já seacalmaraeriu,tentandofalarcomavozempostada:
—AdoutoraWeissnãoestá.Viajouesóvoltanomêsquevem.—Horrível!Comoatrizvocêseriaumfracasso.Opúblicoagradece,principalmenteosinternosdo
pavilhãodecoronárias.—Poisvocêdariaumótimocríticodeteatro...reclamadetudo!—Vocêestásendoinjusta.Sousensível,inteligente,lúcidoeculto.Eudariaumcríticofantástico.
Mas,porfavor,cale-seeescute.Tenhoboasnotícias...chegueiàconclusãodequevocêestápronta.—-Claroqueestou.Masprontaparaquê?—Paraentraremcena.Temosumimplantedeaorta.—Georgenãoerahomemderodeios.—Você...querdizerque...euéquevouoperar?Fazertudosozinha?!—Cirurgiã-chefe,doutora.Responsávelpelopacienteatéoúltimopontodesutura.—Implantedeaorta?—Porquenão?Seráquevocêseespecializouemcirurgiacar-diovascularparapassarorestoda
vidaremovendoapêndicessu-purados?Gingersentara-senacama,ascostasretas,otelefonetremendojuntoaoouvido.Ocoraçãobatia-lhe
forte,osolhosbrilhavamdeexcitação.—Jáestámarcada?—perguntou.—Devesernapróximasemana.Apacientevaiseinternarnaquintaounasexta-feira.Chama-se
Fletcher,ViolaFletcher.Naquartapodemosanalisaros exameseohistóricodo caso.Senãohouvernenhumoutroproblema,
achoqueelapoderáentraremcirurgianasegunda-feirademanhã.Claroquevocêestarálivreparapedirqualqueroutroexamequeacharnecessário.Ecaberáavocêmarcardataehoraparaacirurgia.
—MeuDeus...—Deuspodeajudar,masévocêquemopera,nãoesqueça.Vocêvaisentir-secomosefossemãe
dela...DonaViola,vairenascer!—Prometaquevocêserámeuassistente.—Issoépraxe,vocêsabe—Georgeriu.—Claroqueestareilá,paraocasodevocêprecisarde
mim.Masnãotenhodúvidasdequevouusarasmãossóparabaterpalmas.—Seeumeassustaretremer,vocêassume?—Nãosejaboba.Eclaroquevocênãovaitremer.Gingerfechouosolhos,respiroufundoemurmurou:—Nãosouboba.Nãovoutremer.—Assiméquesefala,doutora.Vocêécapazdefazeroquequiser.Vocêêcapaz!—PossopilotarumanaveatéaLuaecasarcomoreidoSião.—Oquê?—Nada.Umapiadinhafamiliar.—Agora,outroassunto—Georgecontinuou.—Hoje,nacirurgiadeOT)ay,viquevocêestavaà
beiradopânico.Nãoseisejáconversamossobreisso,masachoimportantevocêsaberqueessareação
éabsolutamentenormalemtodososresidentesdecirurgia.Emgeralocorrenaprimeiraintervençãoemqueumjovemmédicotrabalhacomoassistente.Osresidentespensamquenãosei,mascostumamdizerquesesentiram“apertados”.Todoselesfalamno“apertodaprimeiracirurgia”.Comvocêfoidiferenteporquenãoaconteceunaprimeiracirurgia,nemnasegunda,nemnaterceira...Chegueiapensarquevocêseriaminhaprimeiraresidentequenuncase“apertava”—Georgeriu.—Achoquevocêtambémpensouque não aconteceria com você... e acho que deve estar muito preocupada. Por isso resolvi telefonarespecialmenteparadizer-lhequeo“aperto”éparteimportantedo
treinamento. É uma experiência de... digamos... amadurecimento. O que importa é que vocêconseguiusuperarsuacrisedemedoefoibrilhante.
—Nãoseicomovocêsesairiacomocríticodeteatro—replicouGinger—,masnãohádúvidadequeseriaumótimotreinadordefutebol.Muitoobrigada.
Poucodepois,aodesligarotelefone,sentia-setãofelizqueriasozinha,abraçadaaotravesseiro.Derepente,arrancouascobertasdeumsaltoecorreuatéoarmárioondeguardavaseusvelhosálbunsdefotografias.Procurouumdeleselevou-oparaacama,jáabertonasúltimaspáginas,ondecolaraasfotosdeAnna e Ja-cobquemaisgostava. Jáquenãopodia tê-los a seu ladonaquelemomentode absolutaalegria,tentavarevê-los,comoestavam,vivosetãopróximos,emseucoração.
Bemmais tarde, a lâmpada de cabeceira desligada, Ginger começava a mergulhar no estado desemiconsciênciaqueprecedeosono,embalando-sedaalegriaqueGeorgelhedera,quandosubitamenteentendeu.Nãohaviasofridonenhum“aperto”emesmoqueotivesseexperimentado,issonãoaimpediriade controlar-se e cumprir seu papel com perfeição. Alguma outra coisa deixara-a tensa, e só agorapercebiaoqueera:medo.
MedodefugircomohaviafugidodaCasaBernsteinedasluvaspretas.Eseacontecesseemplenacirurgia?E seacontecessenomomentode tocarcomapinçaumaneurismadeaortaoude suturarumimplanteartificial?
Osusto a fez saltarna cama.O sono fugiucomoum ladrão surpreendidoempleno roubo.Gingercontinuousentadanacama,olhosmuitoabertos,acompanhandoosuavebalançodascortinassopradaspelovento,observandooreflexodoluarnaparededoquarto.
Comopoderiaaceitararesponsabilidadedefazerumimplantedeaorta?Ora...comosempreaceitaraasresponsabilidadesquelhecaíamsobreosombros:comseriedadeebomsenso.Quaiseramosfatos?Um incidentede fuga causadapor stress, estava sob controle, ela sentia-se emperfeitas condiçõesdesaude,e,evi-
dentemente,oepisódiodefuganãovoltariaaacontecer.Claroquenão.Mas...eseacontecesse?!Aos poucos, o cansaço venceu as preocupações eGinger acaboumergulhando num sono agitado,
cheiodesobressaltos.Poucodepois,odiacomeçouaclarear.Na terça-feira, depoisdeumaproveitosa incursão àCasaBerns-tein, comadespensa eo freezer
fartamenteabastecidos,Gingermergulhounaleituradeumótimolivropolicial.Voltavaasentir-secapazde fazer o que quisesse. Plena e absolutamente capaz. Assim, a cirurgia da sra. Fletcher retomava aperspectivanormal:eraumdesafio,importanteesériocomoqualquerbomdesafio,
queexigiaatenção,concentraçãoecuidado,masempregadosconformeabula,ouseja,semexageros.Naquarta,Johnny0’Daypareciaoutrohomem,animado,alegre.Eraaprovavivadequeoslongos
anos de estudo e trabalho haviam valido a pena. Ginger sentia-se como uma das mais preciosas eimportantesengrenagensdeumaengrenagemmágica,capazdesalvarvidas,aliviardoresedevolveraesperançaaosdesesperados.
Trabalhoucomoassistentenumimplantedemarcapasso,cirurgiaderotinasemproblemaalgum,edepois fez uma aortogra-fia, também rotineira. Passou boa parte da tarde no consultório de George,
ajudando-o no trabalho clínico, e examinou vários pacientes novos, quase todos indicados por outrosmédicos,embuscadediagnósticoespecializado.
Quandoaenfermeirainformouquejánãohaviapacientesnasaladeespera,GingersugeriuaGeorgequeanalisassemosexamesdeViolaFletcher,cinqüentaeoitoanos,candidataaoimplantedeaorta.Osexamesnãoacusavamnenhumaanormalidadeinesperada,eelanãohesitouemconfirmarodiagnósticodeGeorge.Concordouprontamentecomanecessidadedoimplanteeponderouquedeviarealizar-seomais brevemente possível, de modo a aproveitar o momento em que os sinais clínicos pareciamestabilizados.
—Segundademanha?—Georgeperguntou.—Perfeito.—Gingerassinouasrequisiçõeseentregou-asàenfermeiraencarregadademobilizar
ocentrocirúrgico,aequipeetodooarsenalnecessário.Às dezoito e trinta, Ginger completava doze horas de um dia de trabalho excepcionalmente
estimulanteenãosentianemsinaldecansaço.Georgeforaparacasa,eelanãotinhamaisnadaparafazernohospital;mesmoassim,continuouvisitandoospacienteseexaminandopapeletasdeacompanhamento,sem amenor disposição de sair. Por fim, resolveu ir até o consultório deGeorge para darmais umaolhadanodossiêdeViolaFletcher.
Desertos àquela hora, os consultórios particulares ocupavam toda a ala posterior do prédio,separada do conjunto onde funcionava o hospital propriamente dito. Ginger seguiu adiante, ouvindoseus sapatos de solado de borracha pisarem o linóleo polido, sentindo no ar o cheiro pesado dedesinfetante.
Asaladeespera,osgabinetesdeexameeocubículoondeGeorgeguardavaosarquivosestavamàsescuras, mas Ginger só se deu ao trabalho de acender as luzes quando se aproximou da mesa ondeencontraria o dossiê que estava procurando.Abriu uma das gavetas cuja chaveGeorge lhe dera faziameses,apanhouumadaspastasarquivadasesentou-senaconfortávelcadeiradecouroatrásdamesa.Alumináriaasuaesquerdadesenhavaumapequenailhadeluzsobreamadeirapolida.
Gingerabriuapasta,acomodou-separalerenesseinstanteviuumobjetoqueafezsaltarnacadeira,gritando de susto: o oftal-moscópio portátil que George usava para exames de fundo de olho. Umoftalmoscópio comum, normal, que ela própria utilizara várias vezes. Ainda assim, o inofensivoinstrumento tirava-lhe o fôlego, fazia-a sentir-se como se, de repente, alguma terrível ameaça pesassesobresuacabeça.Gingertinhaatestacobertadesuorfrio,ocoraçãodisparado,ocorporetesadoparafugir.Ooftalmoscópiofascinava-acomoumaserpentevenenosa.
Tal qual ocorrera naCasaBernstein, duas semanas antes, todos os outros objetos pouco a poucodesapareceramdeseucampode
visão,esfumaçaram-se,diluíram-seemnévoa,atérestarapenasooftalmoscópio,quepareciabrilharcomluzprópria.Gingerpercebia-onosmínimosdetalhes,viacadaarranhão,cadaminúsculamarcaqueousoproduziranocaboplástico.Osparafusos,muitopequenos,normalmentequaseinvisíveis,ganhavamproporções irreconhecíveis, como se o instrumento, de uso banal para qualquer clínico, crescesse emdimensõeseemsignificados...atétransformar-senotridentedodemônio,noinstrumentodomal,naarmacapazdedestruí-la...
Outravezomedodesciacomummantohorrendoecobriatudo.Gingerlevantou-sedeumsalto.Asuafrente,ooftalmoscópiobrilhavafriamente,aslentesvoltadasparaela...Oolhodomal.
—Fujadaqui...—disseparasimesma.—Fuja!—gritoueoecodesuavozarrepiou-lheoscabelos,soandocomoumdesesperadopedidodesocorro,comoo
gemidotorturadodeumacriançaperdida.Voltou-se,derrubouacadeiraondeestiverasentada,quasecaiuporcimadeoutra,ecorreuparafora
dasala,malconseguindorespirar.Precisavamuitoencontrarajuda,umamigoqueaprotegesse,masnãohavianinguém.Tinhacertezadequealgumacoisaaperseguia,aproximando-secadavezmais.
Osconsultóriosestavamdesertos,ooftalmoscópioganharavida,saíradasalaecorriaàsuaprocura,caçando-apelocorredor.Elaprecisavafugir.
Pelasegundavez,omantodenévoanegraenvolveutudo.Pouco mais tarde, ao despertar do transe, Ginger encontrou-se num dos patamares da escada de
emergência, no fundoda alados consultórios.Sentadanochão frio, de costas coladas ao concretodaparede, não conseguia lembrar se havia subido ou descido quando saíra correndo do consultório deGeorge.Umaúnica lâmpadaamareladabrilhavasobresuacabeça.Aoredor tudoerasilêncio,solidãoabsoluta,aindamaisterrívelporquedesabavasobreelanomomentoemquesuavidasepartiacomoumcopodevidro,emmilpedaços,parasempre.
Precisava de gente, e não encontrava ninguém. Queria ouvir uma palavra amiga, e o eco doscorredoressólhedevolviaoruídodesesperadodaprópriarespiraçãoofegante.Suavidaestavareduzidaàquelaimagem:umfriobecodeserto,silenciosoesemsaída.Ofatodeaindaestarali,sozinha,eraprovadequeninguémavirafugir.Masissonãolheserviadeconsolo,porqueGingersabiaquenãopoderiacontinuarfugindoparasempre.Sabiadetudo...
Aroupaencharcadadesuorafezestremecerdefrio.Jánãoestavaassustada;parecia-lhequeacrisedemedo fora apenas a recaída de uma doença antiga e conhecida. Levantou-se, passou amão peloscabelosepelatesta,eexaminouaescada,semsabersesubiaoudescia.Resolveusubir.
—Meshugge—resmungoubaixinho,ouvindooecodeseuspassosnocorredordeserto.Eraodia27denovembro.
6.CHICAGO,ILLINOIS
Fazia frio na manhã do primeiro domingo de dezembro, o céu de nuvens baixas e cinzentasprometendoneve.Àtarde,comcerteza,ianevareoperfilsombriodacidadeseocultariasobummaciomantobranco.Anoite todasas famíliasdacidadecomentariamanevasca— todasmenosas famíliascatólicas da paróquia de Santa Bernadette, que só falariam do padreBrendanCronin e de suamissamatinal.
OpadreCronin levantou-se às cinco emeiadamanhã e, depois dedizer suasorações, entrounobanho. Em seguida, fez a barba, vestiu-se, apanhou o breviário e saiu da casa paroquial sem levar ocasaco.Aoabriraporta,deteve-seuminstantee,satisfeito,aspirouoargeladodamanhã.
Tinhatrintaanos,masaparentavabemmenos,talvezporcausadocabeloruivoecrespooudorostocobertodesardas.Eragordo,deumagorduramaciçaeregulardacabeçaaospés.Do
jardimda infância ao segundo ano do seminário, sempre fora chamado pelomerecido apelido de“Bolota”, porém nunca se deixara abalar. Sempre bem-humorado, tinha um ar de querubim e pareciaincapazdeficarzangadooutriste.
Naquelamanha,comosempre,opadreCronindavaaimpressãodeestarempazcomomundo,mas,naverdade, estava terrivelmentepreocupado.Atravessouopátioemdireçãoà sacristia, abriuaportadosfundoseentrou.Asacristiacheiravaaincensoemirra,eaoodorfamiliarmisturava-seocheirodoóleo de polir madeira usado nos lambris e nos bancos. Sem dar atenção a nada, o padre continuouandandoeaproximou-sedaentradadaigreja.Parouuminstante,maslogoseguiuatéoaltar,ajoelhou-seebaixouacabeçaparapediraDeusqueoajudasseacarregaracruzquelhepesavanosombros.
Em geral costumava aproveitar aquele momento de solidão, antes da chegada dos fiéis e doscoroinhas que o auxiliavam no serviço religioso, parameditar sobre omistério insondável damissa,omilagredafé,aalegriadeserumdosconvidadosâceiadoSenhor.Masfaziaquatromesesquenadadisso acontecia. Aquele instante de recolhimento transformara-se num momento de culpa e aflição,porquenãoconseguiasentirmaisnada.Nada!Tinhaocoraçãovazio...Jánãoacreditava.Desesperado,cerrava os punhos, rilhava os dentes, lutava para reacender a fé em seu coração. Rezava e pedia esuplicavaaDeusqueoamparasse,maseracomoseDeusotivesseabandonadoparasempre.
Comoemtodasasmanhãsdosúltimosmeses, levantou-se,murmurouumDaDomineautomáticoefrioeandouatéasaletaondeeramguardadososparamentossacerdotais.Emoutrostempos,nomomentodevestir-separaamissa,sentia-senumestadodeexaltaçãoebeatitudecomosepreparasseocorpoparatestemunharumbelomilagre,umritualsagradoque,dealgummodo,permitiriaaoshomenspartilharagraçadivina.Quandocolocavaoamictodelinhoeaalvaquelhecaíaatéaospés,parecia-lhequeasvestesaproximavam-noumpoucomaisdeDeuse,deplenodireito, tornavam-noseuministroentreoshomens. Isso, porém, fora emoutros tempos; ultimamente não fazia senão trocar de uniforme.Nada oemocionava. Nem o santo manipulo que colocou no braço esquerdo, depois de beijar rapidamente apequenacruzbordada.Ocoraçãopesava-lhecomoumfardo.Sentiafrio,dor,medo,ondeantesabrigaraaalegriaeoconfortodafé.
Tudo começara em agosto, nos primeiros dias do mês. A dúvida instalara-se aos poucos e, aospoucos,acabaradestruindoasmaisprofundascrençasquedavamânimoaopadreCronin.
Perderafééumatragédiaparaqualquersacerdote.NocasodopadreCronin,porém,eramaisdoqueumatragédia.ElenãoconseguiasequerimaginaroqueseriasuavidasemaIgreja.Filhodecatólicosfervorosos,desdemeninoaprenderaaidealizarofuturocomosehouvesseapenasumcaminhoàfrente:serpadre.Paraissoestudouelutou,nãoparaagradaraospais,esimimpelidoporautênticaeprecocevocação religiosa.Sentira-a brotar aindana idade emque seus colegasde escola esforçavam-separaparecermaterialistas,agnósticos,cientificistas,modernos.
Eagora, de repente, a fé abandonava-o.Amissa, que insistia emcelebrar todas asmanhãs, era aúnicacoisaquelherestava,aúltimaligaçãorealcomopassado,comoquesempreforasuavida.Sabia,noentanto,quenãopoderiafingirpormuitotempo.Nãopoderiamentirindefinidamenteparaosaflitosedesesperados que procuravam sua igreja em busca de consolo e alívio, pois ele próprio já nãoacreditava. A santa missa deixara de ser um instante de comunhão com Deus e transformara-se emgrotescacomédia.
NomomentoemqueopadreCronincolocavaaestolasobreosombros,ummeninoentroucorrendonasacristiaeacendeuasluzes.
—Bomdia!—exclamou.—Bomdia,Kerry.Vocêvaibem?KerryMcDeviteraaindamaisruivoesardentoqueopadreCronin,etinhaolhosigualmentemuito
verdes.—Tudobem—disseele.—Masestáumfriodocão!—Emesmo?!Frio...doquê?—Frioora,muitofrio...Em outras circunstâncias o padre Cronin acharia engraçada a irreverência do menino. Naquela
manha,contudo,ocãopareciaestarmesmoàespreita,eKerryfugiuparaasacristia,assustadocomoolhar fulminante que recebeu. Sozinho, o padreCronin vestiu a casula, passou as tiras pelas costas eamarrou-asàcintura,comadisplicênciadeumoperárioatandooaventalparacomeçaratrabalhar.Nasacristia,Kerryapanhouoturíbulo.
Atéagosto,aquelesgestoseramsantosparaopadreCronin.Todaasuavida,cadahoradosseusdiaserasantificada,porqueescolheradedicar-seaoserviçodeDeus.Ededicara-secomtalafincoqueforaenviado a Roma para completar seus estudos teológicos. Apaixonou-se pela Cidade Santa — pelaarquitetura,pelaHistória,pelopovo.Antesdefazerosvotosdesacerdotejesuíta,passaradoisanosnoVaticano, trabalhando como assistente do monsenhor Giuseppe Orbella, conselheiro do papa paraassuntosdedoutrina.Oestágiodeu-lheodireitodeaspiraraalgumpostonaarquidiocesedeChicago,junto ao cardeal,mas o padre Cronin humildemente pediu que lhe permitissem ser o cura de algumaparóquia pequena. Foi assim que chegou à Igreja de Santa Bernadette, depois de visitar o bispoSantefioreemSanFranciscoeconsumiralgunsdiasdefériasnaviagemdecarroparaChicago.Eraumsimplescuradeparóquia,masviviafeliz,semuminstantedearrependimentooudúvida.
Naquelemomento,porém,vendoKerryparamentadoasuafrente,perguntava-se,pelacentésimavez,o que teria acontecido com ele. Por que sua fé o abandonara? Seria como uma doença incurável queacabariapormatá-lo...ounãopassariadeummaltransitório?
Como todas asmanhãs,Kerry abriu a porta que dava para o altar e caminhou alguns passos.Derepente,percebendoqueopadreCroninnãooseguia,parouevirou-separatrás,deolhosarregalados.
Osacerdotevacilava.Delonge,àluzsuavedoaltar,aimagemdoCristocrucificadoestavadeolhospostosnosfiéis,maspare-
cianaovê-lo.Paraele,agora,oaltareraapenasumpalco,comomilharesdeoutros,àesperadosatores.Nãoeramaisolugarsagradoaoqual,duranteanos,subiracomocoraçãovibrantedeamor.Nãopodiacelebraramissa!Nãopodiaenganaraquelaspessoas...Naopodiaenganarasipróprio!Aquilotudoeraumagigantescafraude!
KerryMcDevit franziu as sobrancelhas,mais preocupado que surpreso.Olhou para os bancos daigreja,voltouaolharparaocura,sementenderoquesepassava.
—Como posso celebrar amissa?! Eu já nao acredito...—murmurou o padreCronin, numa vozinaudível.
Era tarde demais. Com o cálice namão esquerda, a direita pousada sobre o véu, seguiu adiante,sentindosobresiosolhosacusadoresdoCristocrucificado.
Haviapoucomaisquecempessoasnaigreja.Eracedo,eosrostosdosfiéispareciambrilharmaisdoqueonormal,quaseinumanos,comoseDeus,emsuainfinitasabedoria,tivesseenviadoumalegiãodeanjoscapazesdedenunciaropecadomascaradodeféetestemunharcontraaheresiaeosacrilégio.
AmedidaqueamissaavançavaodesesperodopadreCronincrescia.QuandopronunciouoIntroiboâdaltâreDei, foicomoseamisériade todosospecadoresdesabassesobreseusombros.AalturadoEvangelho,ouviusuaprópriavoz,friaeoca,repetindoumdiscursoqueconheciadecorequenaolhedizianada.Sentiaosbraçospesados,cadavezmaispesados.Osrostosdosfiéisdiluíam-senumanévoacadavezmaisdensa.OpadreCroninsentiaoolharaterradodeKerryepercebiaomovimentoquecorriapelosbancos.Aroupagrudava-seasuascostas,osuorpingava-lhedatestasobreaBíbliaabertaasuafrente.Anévoacomeçouaenvolver tudo,amassadifusadosfiéis,oolhardeKerry,acruz...OpadreCroninteveasensaçãodequeestavacaindo,girando,sendocarregado,semsabercomo,paraovérticedeumturbilhãoondesóhaviatrevasevazio.Eentãochegouomomentodaelevaçãodahóstia.
—Mentira! Não posso fazer isso... Não sou sacerdote, não tenho fé! Não sou...nada\ Deus meesqueceu!Entregou-meaopecado,roubouminhafé...MalditoDeus!Milvezesmaldito!
OpadreCroninouviu-seberrardefúria,deódio.Umgritoselvagem,inacreditável.Eviu-se...Viuaprópriamão,arrastadaporumaforçadesconhecidaeirresistível,jogarlongeocálicesagrado.Ovinhomanchouaparededoaltar,respingouomantodaimagemdaVirgemMaria,eocálicecontinuourolandopeloaltaratépararjuntoaopúlpito,onde,instantesantes,elehavialidooEvangelho.
KerryMcDevitdeuumpassoatrásegemeubaixinho,commedodoquevia.Osfiéislevantaram-se,todos,numsómovimento,masnadapareciacapazdedeterafúriadeBrendanCronin.Comumrápidomovimento, ele estendeu o braço, apanhou a bandeja das hóstias da comunhão e jogou-a no chão.Gritandodedesespero,arrancouaestolaelançou-alonge.Entãovirou-seecorreuparaasacristia.
Em instantes, tudo voltou ao normal.O padreCronin passou amão pela testa, viu os paramentosarrancadosefechouosolhos,commedodeadivinharoquepoderiateracontecido.
Eraodia1?dedezembro.
7.LAGUNABEACH,CALIFÓRNIA
No primeiro domingo de dezembro Dom Corvaisis almoçava com Parker Faine no terraço dorestauranteLasBrisas, abrigados à sombra de umguarda-sol, vendo omar brilhar ao longe.Naqueleanooinvernoteimavaemnãochegar.Aosomdosgritosdasgaivotas,sentindonorostoenoscabelosabrisadomar,aspirandooperfumedosjasmineirosfloridosquesubiadojardim,DomcontouaParkertodososdetalhes,atéosmaisembaraçosos,desuaterrívelbatalhacontraosonambulismo.
Parker Faine era seu melhor amigo, talvez o único a quem Dom podia contar tudo, embora, àprimeiravista,fossemdoishomens
muito diferentes.Dom era alto e esguio; Parker, baixo e gordo.Dom fazia a barba diariamente ecortavaocabeloacadatrêssemanas;barbudoedesgrenhado,Parkermaispareciafrutodocruzamentodeumgladiador romanocomuma intelectualbeâtnikdos anos50.Domeraquase abstêmio, enquantoParkertornara-sefamosopelasededeálcool,praticamenteinsaciável,epelaexcepcionalcapacidadedebeber e jamais dar a impressãode ter perdidoo juízo.Domgostava de viver sozinho e tinha poucosamigos;Parkerconseguiatornar-seíntimodequalquerpessoacomquemtomasseumdrinqueoutrocassemeiadúziadepalavras.Parkerjátinhacinqüentaanos,quinzemaisqueDom;ricoefamosopormaisde
umquartodeséculo,nãoentendiacomoalguémpodiasentir-seinsegurojustamentequandocomeçavaaganhardinheiroetornava-seumastrodomundoliterário.Convenientementevestidoparaumalmoçoaoar livre,Domusavacalçadelinhomarrom-escuroecamisabegedemangascurtasecolarinhoaberto.Parkertrajavaseuuniformehabitual:tênisazuisdesbotados,calçaquasebranca,velhaeamarrotada,ecamisaestampada,abertanopeitoesaindodocós.Pareciaquecadaumdelesseprepararaparaumtipodiferentedeencontroeestavamsentadosjuntospormeroacaso.
Emboragrandes,asdiferençaserampoucoimportantes.DomeParkertinhamenormesafinidadesemvários aspectos essenciais. Ambos eram artistas, não por escolha ou tendência, mas por compulsão.Parkerpintavacompincéis e tintas, eDompintavacompalavras.Amboseramótimosnoque faziam,sérios,aplicadosemuitoexigentes.Eambosprezavammuitoaamizadequeosunia.
Conheciam-sehaviaseisanos,desdequeParkerchegaraaoOre-gonparaficarapenasalgunsmeses,enquanto preparava uma série de paisagens no estilo inconfundível que aliava, à perfeição, o supra-realismo da técnica com o surrealismo da imaginação. Pouco depois de chegar, fora contratado paraalgumas conferências na Universidade de Portland, onde Dom trabalhava como professor doDepartamentodeInglês.
Àmesa,Dombebericavasuacervejapreta,eParkerlambuzavaos dedos nos salgadinhos de queijo, atento às palavras doDom falava em voz baixa— cuidado
desnecessário, jáque iu\mcs,lspróximasninguémpareciapreocupadoemouviroquedi/wm.Naquelamanha,pelaquartavez,acordaranagaragem,poin.ísdacaldeira,taoapavoradocomoantes.E,acadadiaquepassava,asituaçãoparecia-lhemaisdesesperadora.
Quando acabou de falar, havia tomado apenasmeia garrala dr cerveja, sem sentir gosto algum; abebidaescuraeencorpadadescialhepelagargantacomosefosseágua—ou,piorainda,cola.Ibrkerjáconsumiratrêsdrinquesduplosepediraumquartoaogarçom,porémcontinuavainteiro,comocostumavadizer.
—Mas...Deusdocéu!Porquenãomecontouissoantes?perguntou,sério.—Hásemanas?!—Acheiquenaoeraimportante.—Vocêéumidiota.Mas...quemerda!—Parkertentoumanteravozbaixaegesticulou,irritado.O garçom aproximou-se, trazendo o quarto drinque, e inclinou-se para perguntar se gostariam de
almoçar.—Claroquenão—retrucouopintorbalançandoacabeça.—Domingoédiadebeber,nãode
comer.Oalmoçonaopassadeumpretextoparaouísque,eeuestouapenascomeçando.Paraalmoçar,temosqueparardebeber,eoqueéquevamosfazernorestodatarde?Seeusairandandoporaí,semternadaparafazer,vouacabardandotrabalhoàpolíciaeatrapalhandoasestadoscidadãospacatos...Nao,nao,nadadisso.Queroalmoçarlápelastrês.E,paranaoperdermostempo,prepareoutrodrinqueetragamais uma porção de salgadinhos, por favor.Quero tambémmaismolho e pimenta e um pratinho comcebolas.Aproveiteaviagemetragaoutracervejaparaomeuamigo.Elebemqueestáprecisando!
—Nao—Domprotestou.—Aindanaoacabeiesta.—Porissomesmoéquevocêestáprecisandodeoutra,intelectualpuritanoereprimido.Estáaí,
todoconfuso,porqueinsisteembebercervejamorna.Fossemoutrasascircunstâncias.Domembarcariacomprazernaviagemanimada,descontraída e cheiade alegriaqueo amigo lhepropunha.Naqueledomingo,
porém,sentia-seangustiadodemaispararir.Ogarçomafastou-se,eumanuvemencobriuosol.Parkeracomodou-senacadeira,respiroufundoe
olhouparaDom:— Tudobem...Vamospensar juntos.Devehaveralgumaexplicaçãorazoávelpara isso.Vocêjá
pensouemstressyjápensouemansiedadeporcausadapublicaçãodoCrepúsculo...Edaí?—Nocomeçopenseiquefosseporcausadaansiedade,mas...achoquenãopodesersóisso.O
casoéqueascoisasforamsecomplicandocadavezmais.Porra...Euseiqueestouansioso,masnãotãoansioso!Etambémnaoestoumorrendodemedo...Minhascrisesdesonambulismosãocompletamente...loucas!Deal-
‘gunsdiasparacátenhopassadotodasasnoitesandando.Eoproblemanãoésóesse.Hámilharesdesonâmbulospelomundo...masduvidoqueumdelesentrenumtransetãoprofundocomoeu,oufaçaascoisasqueeufaço.Jácontei...euestavatentandopregarasvenezianas!Pregar...—Domfezumgesto,martelandooar.—Commarteloetudo!Vocênãovaiconseguirmeconvencerdequeumsujeitoentraemtranse, semune de pregos emartelo e sai pregando as janelas da casa só porque espera, ansioso, aopiniãodeunscríticosidiotassobreseulivro!
—Podehaveralgumbloqueioinconsciente.Quemsabevocêestámaisansiosodoqueimagina...ApublicaçãodoCrepúsculotalvezestejatocandoalgumpontomuitosensível,algumtrauma.
— Bobagem.Issonãofazsentido.Naverdade,quandocomeceia trabalharnosegundo livro,oCrepúsculoviroupassado.Jánempensonele.Não,Parker...—Dombalançouacabeça,sério.—Vocêtambémnãopodeestar imaginandoqueumsujeito façaas loucurasque tenhofeitoapenasporqueestáansiosoporcausadeumabesteira...
—Temrazão...Nãoacreditonessascoisas.—Euentronosarmáriosparameesconder.Eusei,sinto...Quandoacordoaindaestoutremendode
medo,suandofrio,comanítidasensaçãodequealgumacoisamepersegue...algumacoi-saquequermepegar...equetalvezmematesemeencontrar.Asvezesacordocomvontadedegritar,
agargantadoendo,eogritonaosai.Ontem,afinal,conseguiberrar...“Fiquelongedemim!Fiqueaí,naoseaproxime!”Ehojefoiafaca...
—Quefaca?Vocênaomefalounisso.Domrecostou-senacadeira,osolhosfixosnocopodecerveja.—Acordeinagaragem,atrásdacaldeira.Etinhaumafacanamão...afacadecarnedacozinha...
Achoqueapegueieleveicomigo.—Parasedefender?Contraquem?—Claro...paramedefender...dacoisaquemepersegue.—Masquecoisaêessa?!Domsacudiuosombros,baixouacabeçaeapenasmurmurou:—Seilá...—Nãoestougostandonadadisso.Vocêpodiater-semachucado.—Naoéissoquemepreocupa.—Eoqueé,então?Antes de responder, Dom correu os olhos em volta. Tudo parecia bem, os outros clientes
concentravam-senoalmoçoenosdrinques,alheiosàconversaemredor.—Vamos,diga!—Parkerinsistiu.—Oqueéqueopreocupa?—Tenhomedodeferiralguém.Parkerarregalouosolhos.—Nãoépossível!Estáquerendodizerqueseriacapazdepegarumafacadecozinhaesairpor
aí...matandogente?!Vocêestádoido!—Balançouacabeça,sorriu,levouocopoaoslábios,bebeuumgoleedeixouqueolíquidoescorresse,suave,pelalínguaepelagarganta.—Não...Vocêestádelirando!Achoquecomeçouaconfundirvidarealeficção.Esqueça!Vocênãofazogênerohomicidacompulsivo.
—Háalgunsmeseseutambémnãofaziaogênerodesonâmbulo...
— Mas, quemerda!Você nunca foi louco, não está louco, nem perto de enlouquecer. Só estápensandoqueenlouqueceu...e istoéótimosinal,porqueos loucosdeverdade têmcertezadequesãonormais.
—Achoquevouprocurarumpsiquiatra.Jáfuiaomédico,fizalgunsexames...—Médico,sim,mas...psiquiatra...nempensar.Seriaperdadetempoededinheiro.Eulhegaranto
quevocênaoéneurótico,nempsicótico.Douminhapalavra!Comumsorrisonocantodoslábios,opintorafastouocopovazio,apanhouooutrodrinquequeo
garçomacabavadedeixar sobreamesae,poralgunssegundos,concentrou-seemmontarumpequenosanduíchedebatatafritacommolhodepimenta,maioneseecebola.Colocou-onabocaefechouosolhosparamelhorsaborearoprodígioqueconstruíra.
—Talvezhajaoutraexlicaçao—disse,aindasorrindo,depoisdçengolir.—Talvezvocêaindanaoestejabemadaptadoàsgrandesmudançasqueaconteceramemsuavida.
—Quemudanças?—Domfranziuassobrancelhas.—Vocêsabeperfeitamenteaquemudançasmerefiro.Lembra-sedequandonosconhecemos,há
seisanos?Vocêpareciaumalesma...branco,mole...—Uma...lesma?!—Umamerdadelesma.Evocêsabequeéverdade.Tinhatalento,masviviacomoumalesminha...
—Parker fez uma careta e juntou os dedos sobre amesa, tentando imitar omovimento da lesma.—Devagar,mole... Sabe por quê?Porquemorria demedodemostrar seu talento aomundo...morria demedodelutarpelosucesso...morriademedodetentar...enàoconseguir.Morriademedodavida!Naoqueriaqueolhassemparavocê,queovissem,quepercebessemsuaexistência.Vocêsevestiacomoumjoao-ninguémefalavataobaixoqueaspessoasmaloescutavam.Resolveudaraulasdeliteraturaporqueauniversidadeéummundoàparte,aparentementemaiscivilizado,menoscompetitivo.Averdadeéquevocêviviacomoumcoelhoassustado,escondidonatoca.
—Ah,sim,claro...—Domforçouumarisada.—Eporquevocêresolveuseaproximardemim?—Porquevocênuncameenganou.Enganavabemosdouto-resotáriosque trabalhavamcomvocê,mas eu fiquei curiosoporquedesconfiei quehavia alguma
coisaatrásdesuamáscaradelesma.Euvisuaverdadeiraface,amigo...Esempreassim...vejocoisasque os outros nao veem, porque sou artista. Nós, artistas, somos diferentes do resto da humanidadejustamenteporquevemosmaisdoqueosoutros.Ondeosoutrosveemsóumalesminha,nósvemosumhomem.
—Maseutambémsouartista.— Agora. Mas nao era quando nos conhecemos. Lembra que demorou três meses para criar
coragemdemedizerque“escreviaumascoisinhas”?,—Eraissomesmoqueeufazianaquelaépoca.—Vocêtinhagavetascheiasdecontos!Maisdecemcontosconcluídos!Eaindanaotinhacriado
coragemparamandarumúnicodelesaalgumaeditora.Sabeporquê,naosabe?Porquetinhamedodeserrejeitado,claro,masnãoerasóisso.Vocêtambémmorriademedodeseraceito.Morriademedodequeumagrandeeditoralheescrevesseumacartadizendoquevocêeraumgênio...—Riualto.—Lembraoquantoagenteconversouantesdevocêresolvermandardoisoutrêscontosparaaeditora?
—Nao.— Poiseulembro.Foramseismesesdeconversa!Eujáestavaquasedesistindodepedir,pelo
amordeDeus,quevocêmandasseoscontos,quando,derepente,vocêserendeue...zás!Ocoelhocrioucoragemparadarumaespiadinhanomundo.
Cadavezmaisentusiasmado,Parkerenfiounabocaumacolheradademolhodepimentaemaionese,
engoliuametadedodrinqueecontinuou;— Mas foi sóumaespiadinha,porque,quandooscontoscomeçarama serpublicados,você se
assustou outra vez e resolveu parar de escrever. Eu precisava ir lá visitá-lo todos os diaspara fiscalizar... para obrigá-lo a continuar trabalhando.Quando saí doOregon e você ficou sozinho,tratoulogodeparardeescrever...ecorreudevoltaparaatoca.Foiaressurreiçãodocoelhoassustado.
Domsorriucomocantodoslábios,masnãoprotestou.Eraapuraverdade.QuandoParkervoltarapara Laguna Beach, onde vivia, Dom passara a receber cartas e cartas dele, sempre nomesmo tom,estimulando-o a escrever.Na época, precisava de incentivomaior do que simples cartas, que semprepodiam ser deixadas de lado. Estava convencido de que não era um bom escritor, embora algumaseditorascomeçassemase interessarporseu trabalho,e logoparoudeoferecer-lhescontos.Empoucotempovoltouparaatocaeescondeu-secomoumautênticocoelhoassustado.Naoparoudeescrever,masoscontosjaziamnaúltimagavetadamesadetrabalho,comoantes.
Numa de suas cartas, Parker sugerira-lhe que escrevesse um romance. Idéia estúpida... Domachava-seincapaz,desprovidodetalentoedisciplinaparatanto.Umromanceeramuitomaisdoqueumconto.Maior,maisdifícil,maiscomplexo...Nuncanavidaconseguiríaescreverumromance!NovamenteDombaixaraacabeça,curvaraosombros,voltaraafalarbaixoeaandardevagar,pedindoaDeusqueahumanidadeoesquecesseparasempre.
—Hádoisverõestudomudou—Parkerrespiroufundo.—Derepentevocêdesistiudedaraulas,criou corageme assumiu seu destino.Resolveu ser escritor.Dodia para a noite!Nunca conversamosmuitosobreisso.Oquefoiquehouve?
Dominick franziu as sobrancelhas, pensou um pouco e descobriu que ele próprio também jamaispensarasobreoassunto.
—Naosei.Naotenhoamínimaidéia—respondeu.Nauniversidade, chegara a época de candidatar-se à efetivação comoprofessor.De repente,mas
sem surpresa, Dom percebera que a direção não estava interessada em mantê-lo no corpo docente,embora nao tivesse nenhum motivo para afastá-lo. Na verdade, ele se esforçara tanto para passardespercebidoqueosdiretores simplesmenteacabaramporesquecê-lo,pordeixá-lode lado,comoumdocumentodearquivomorto.
Quanto aos colegas, antes de qualquer outra coisa perguntavam-se se ele queria ser efetivado;depois, se estava mesmo interessado na vida acadêmica e, por fim, se merecia a efetivação. Dompercebera logoque, se fossedispensadodaUniversidadedePortland, jamaisconseguiríaempregoemoutraescola,eassim,decidirapartirantesqueodemitissem.Numúnicomomentodecoragememanosderecolhimentohumildeeassustado,enviaracurrículosaváriasfaculdadeseacabaraconvidadoparauma entrevista no Mountainview College, em Utah. A entrevista custara-lhe muito esforço, mas osdiretoresdaescolaparecerambemimpressionadospelaextensalistadecontospublicadosqueDomlhesapresentara.Depoisdealgunsmomentosdeconversa,convidaram-noparaassumiracátedradeRedaçãoeLínguaInglesa,comoprofessorefetivo—propostaqueDomaceitoucomalívio.
—SaídePortlandemjunho—disse,pensativo,servindo-sede‘outrogoledecerveja.—Tinhameutrailerpronto,carregadode
livros e roupas. Parti satisfeito, não me sentia derrotado... Nao foi uma saída forçada, como setivessem me despedido. Para mim, foi como se... eu quisesse recomeçar a vida. Eu queria moraremMountainview.Paradizeraverdade,omomentoemquemevinaestradafoiumdosmaisfelizesdeminhavida.
Ooutrobalançouacabeçaeconcordou,irônico:—Claroquevocêdeviaestarfeliz...Afinal,trocouumagrandeuniversidadeporumaescolinhade
aldeia,compoucosalunos,ondeseumedodeviverpassariadespercebido.Ouentão,melhorainda,seriavistocomomaniadegêniotemperamental.
—Umaperfeitatocadecoelho...—Claro...Eporquevocêdesistiudasaulasantesmesmodeassumir?— Já lhe comei. Quando cheguei à cidade, na segunda semana de julho, descobri que nao
suportariarecomeçartudooutravez,comoemPortland.Estavafartodevivercomoumcoelhoassustado.—Sim,issoéfácildeentender.Mas...Porquê?—Nãoeramuitogratificante.— Nunca foi gratificante.— Parker abriu os braços.—O que eu quero saber é por que, de
repente,vocêsesentiu“fartodevivercomoumcoelhoassustado”.—Naosei.— Mas você precisa saber! Deve ter pensadomuito nisso. Dom suspirou, os olhos distantes,
acompanhandoomovimentodeumveleiroquedeslizavasobreasondasemdireçãoaohorizonte.—Poisé...nãopensei...Agoraperceboquesimplesmentenãopensei...Estranho,não?Sousempre
tãocuidadosonasdecisõesquetomo...Analisotantocadagesto,cadapasso...Efiztudoissosempensarmuito.
—Aíestá!—Ooutroexclamou.—Eusabiaquehaviaalgumacoisaporaí.Essasúbitamudançadecomportamentotemavercomosproblemasquevocêestáenfrentandoagora.Vamoscontinuar.VocêchegouaMountainviewedisseaoscarasquenãoqueriaoemprego...
—Disse...Eelesnãogostaramdeouvir.—Edepoisvocêalugouumapartamentonacidade.— Um apartamento bem pequeno, quarto e sala, mal dava para andar. Mas de lá eu via as
montanhas.Eralindo.—Decidiuviverdaseconomiaseescreveroromance.—Nãoeramuitodinheiro,maseuestavahabituadoagastarpouco.—Foiumimpulsorepentino.Umtremendorisco.Vocênãoerahomemdecorrerriscos.—Parker
insistiu.—Porqueagiuassim?Oqueofezmudartanto?— Achoquea idéiademudardevida jáestavaemminhacabeçadesdealgum tempo.Quando
chegueiaMountainview,eumesentiatãoprofundamenteinsatisfeitoqueprecisavatomarumaatitude.Opintorrespiroufundo,balançouacabeçaedeclarou:— Não, meu velho... Deve haver outro motivo. Vamos recapi-tular. Conforme suas próprias
palavras,vocêestavafelizcomoumpardalnaareiaquandosaiudePortlandabordodo trailer.Tinhaconseguidoumemprego,bomsalárioeefetivaçãonumaescolinhadebairroondepoderiaseesconderàvontade,atéencherosaco.Tudoqueprecisavafazereraseacomodarporláedesaparecerdomundodosvivos.Mas,quandochegou
aMountainview, você já era outro homem... estava decidido a jogar tudo para o alto, alugar umcubículo,arriscar-seamorrerdefomeefrio...emnomedaarte.—Sacudiuacabeça,semseconvencer.—Quediaboaconteceucomvocêduranteessaviagem?Devetersidoumterremoto...umabalosísmico,algumacoisaincrível,queofezcriarcoragemparasairdatocadecoelho,fecharaportaejogarforaachave.
—Nãoaconteceunada.Foiumaviagemlongaechata.—Nãoparasuacabeça.Vocêviajouléguascomacabeça.Erguendoosombros,Domlimitou-seadizer:—Tantoquantopossolembrar,euestavarelaxado,curtindoopasseio,apaisagem... tudonasanta
paz...
—Garçom!—Parkergritou.—Maisumdrinqueeumacerveja.—Não,não...—Domcomeçou.—Eu...—Euseiquevocêaindanãoacabou—interrompeu-o—,masvouobrigá-loa terminar logocom
essadrogamorna.Vocêtemqueesvaziarmaisumagarrafaecomeçararelaxar.Euliquidooestoquedeuísquedacidade,masdescubrooqueexisteportrásdessascrisesdesonambulismo.TenhocertezadequeháalgumarelaçãoentreessarevoluçãoquehouveemsuavidaquandodeixouPortlandeoqueestáacontecendo agora. Quer saber por que estou tão certo disso? Porque ninguém passa por duas crisesdepersonalidade,emdoisanos,semqueexistaalgumarelaçãoentreelas.Precisamosdescobriroquehádecomumentreasduas.
Domfezumacaretaesuspirou:—Nãoestoupassandopornenhumacrisedepersonalidade.—Nãomesmo?—Parkerdebruçou-sesobreamesae,comolhosmuitosériosebrilhantes,fitou
depertoorostodoamigo.—Temcertezadequenãoestáemcrise?—Oh,Deus...Vocêtemrazão.E...ébempossível...equecrise!Atardejáiaavançadaquando,afinal,saíramdorestauranteLas Brisas, ainda sem ter encontrado resposta. A noite, Dom preparou-se para dormir com a
sensação de que partia para o cadafalso, commedo do que o esperava nas horas seguintes, antes donascerdosol.
Pela manha, foi arrancado do sono, aos berros. Havia alguém, alguma coisa fria, pegajosa,visguenta... uma coisa viva... agarrada a ele. Lutou como um desesperado, cego de horror, saltou,deupontapésparaconseguir livrar-se,eescapou,andandodequatropeloescuroatébateracabeçanaparede.
Aescuridãopareciapovoadaderuídosqueelenãoconseguiaidentificar.Ossonsvinhamdochão,dasparedes,detodososlados.Tudopareciavibrar.Domcontinuoutateandoatéencontrarumpontoondeduasparedesseuniamesentou-seali,ascostascontraasuperfíciegelada,àespera.Acoisaestavacadavezmaispróxima...iachegar...aqualquermomentopoderiatocá-lo,envolvê-loemseusbraçosdevisgo.
—Oqueéissoqueestáaquicomigo?—murmurou.O barulho aumentava sempre: gritos, marteladas, passos. O medo distorcendo as sensações, a
adrenalina despertando os sentidos, a pele arrepiando-se de horror, Dom sentiu que havia perdido aguerra. A coisa estava ali, confundida com a escuridão, a dois passos dele. Havia lutado enquantopudera,escondera-senosarmáriosdacasaenagaragem,tentarapregarasjanelas,armara-sedefaca...masagoraestavaperdido.Nãohaviaparaondefugir,nemondeesconder-se.Eraofim.
Dealgumlugarchegou-lheumsomdesconhecido.Seunome...Alguémochamava!—Dom...Dom,responda!Percebeuqueestavaouvindoaquelesomhaviaváriosminutos,talvezhoras.—Dominick,responda!Aporta!Alguémtentavaarrombaraporta,martelandofuriosamenteafechadura.Por fim,Dom despertou. Estava sozinho.Acoisa voltava, afinal, para as trevas da noite, para o
fundodospesadelos;nãoexistia,naoerareal.DooutroladodaportaestavaParkerFaine,seuamigo,chamando-o. De repente, foi como se o pesadelo recomeçasse. As paredes estremeceram, a portaescancarou-seasuafrente,eumfeixedeluzbrilhantecegou-o.Quandoconseguiuabrir
os olhos novamente, protegendo-os com a mão, viu a cabeça de Parker, como a de um gigante,delineadacontraoretânguloamarelado.
—PeloamordeDeus!Vocêestábem?Diante da porta havia uma verdadeira barricada: um armário, duas mesinhas-de-cabeceira, a
penteadeira,e,porcimadetudo,apoltronadeleitura.DuranteosonoDompreparara-separaresistiraumainvasão;trancaraaportaachave,eempilharadiantedelatodososmóveisdoquarto.Parkerafastouabarreiraeentrou.
—Vocêgritavatantoqueeuoouviládarua,quandocheguei—disse.—Oquehouve?—Umpesadelo.Nãomelembrodenada.—Ooutroconti-.nuavaencolhidonocanto,exausto,
tremendo,semforçasparaselevantar.—Franziuassobrancelhas.—Oqueéquevocêestáfazendoaqui?—Nãoselembra?—perguntouParker,avozbaixaetensa.— Vocême telefonou hámenos de dezminutos.Gritavamuito, pedia socorro.Disse que eles
estavamchegandoeiampegá-lo.—Oh,Deus...—Domgemeu,ocoraçãoaossaltos,orostorubrodevergonha.—Vocêdevetertelefonadosemsaber...Penseiemchamarapolícia,masacabeiresolvendovir
veroqueera.Imagineique,sefosseoutracrisedesonambulismo,vocênãogostariadeacordarcomacasacheiade“tiras”.
Dom abraçou os joelhos e escondeu o rosto.—O que está acontecendo comigo?—murmurou,aflito.—Estoucompletamentedescontrolado...Nãoseimaisoquefaço,oquedigo...Háalgumacoisameroendopordentro!
—Chega.—Parkeraproximou-se.—Nemmaisumapalavrasobreisso.Lutando contra as lágrimasque lhe subiampela garganta,Dom fechouos olhos.Sentia-se fraco e
indefesocomoumacriança.—Quehorassão?—perguntou.— Passa um pouco das quatro.Mas ainda está escuro.— Parker foi até a janela, afastou as
cortinaseolhouparafora.Oquartoestavapraticamentedesmontado.Voltavaparajuntodoamigoquandode repente parou, os olhosmuito abertos, fixos na cama.—Essa brincadeira está começando a ficarperigosa—disse,semsemover.
Ooutrolevantou-sedevagaratépoderveroquehaviasobreacama.Eraumverdadeiroarsenal:aliestavamapistola calibre22,quedurantemeses ficara esquecidanumadasgavetasda sala; a facadecozinha, a mesma que ele levara para a garagem; o cutelo, raramente usado; um martelo; o ferropontiagudoquedeveriaficarjuntoàlareiramasque,haviatempos,estavaguardadonagaragem.
— Estava esperando o exército russo?— perguntou Parker, muito sério.— Uma invasão deextraterrestres?Oqueoassustatanto?
—Nãosei.Meuspesadelos.—Oqueéquevocêvênessespesadelos?—Nãosei.—Nãoselembradenada?—Não! Não! Nãome lembro de nada, não sei de nada!—Dom gritou, mas logo, como antes,
encolheu-senovamente,baixouacabeça,cruzouosbraçossobreopeito.Parkeraproximou-senovamente,colocouamãoemseuombroetentousorrir:—Tratedeseacalmar,amigo.Vátomarumbanho,vista-se.Voucuidardocafé.Depois,quando
clarear,vamosfazeroutravisitaaesseseumédico.Achoqueestánahoradepedirmosqueeledêmaisumaolhadaemvocê.
Semcoragemdefalar,Dominickconcordoucomacabeça,virou-seefoiparaobanheiro.Eraodia2dedezembro.
DOIS___________
2-16dedezembro
1.BOSTON,MASSACHUSETTSViolaFletcher,cinqüentaeoitoanos,professoraprimária,mãededuasmeninas,esposadevotada,
mulherfeiadearmatreiroerisotorto,jaziaemsilênciosobreamesacirúrgica,emanestesiaprofunda,avidaentregueàsmãosdadra.GingerWeiss.
Durante toda a sua existênciaGinger preparara-se para ummomento como aquele, omomento deassumirocomandodeumacirurgiadealtoriscoqueenvolviacomplexoprocedimento.Anosdeestudos,infinitossacrifícios,enormesdificuldades...elavenceratodososobstáculosealiestava,humildee,aomesmotempo,orgulhosadesimesma.Eàbeiradopânico.
Asra.Fletcherestavaanestesiadaepreparadaparaacirurgia,ocorpoenvoltonos lençóisverde-claroscuidadosamenteesterilizados.Apenasumapartedeseu torsocontinuavaàmostra,exatamenteaáreaondeocirurgião trabalharia:umquadradodepelepintadade iodo.Juntoaopescoçodapacienteerguia-seatendacirúrgica,umaarmaçãodemetalmontadasobreamesa,deondependiaumlençol.Dopontodevistacirúrgico,atendaerausadacomoprecauçãoextracontraapossibilidadedecontaminaçãoda área a ser operada.Mas servia também para desperso-nalizar o paciente, e talvez fosse essa suagrandeserventia,jáque
poupavaocirurgiãodeverdepertoamáscarahumanadaagoniaedamorte,se,pordesgraça,suamãotremesseouaconfiançafalhasse.
A direita de Ginger, Agatha Tandy estava a postos, frente à bandeja onde, em perfeita ordem,alinhavam-se afastadores, pinças he-mostáticas, escalpelos, bisturis e vários outros instrumentos. Àesquerda,outrastrêsenfermeirasaguardavamogongoinicial.Poucoadiante, juntoàtendacirúrgica,oanestesistaeseuassistentemantinhamosolhosfixosnosmonitores.
GeorgeHannaby perfilava-se do outro lado damesa de cirurgia;mantinha uma posturamenos deprofessorquedeexperientetécnicodefutebolvendoofilhocalçaraschuteirasparaoprijneirograndejogodesuavida.Comele,aauradeforça,calmaecompetênciaquejamaisoabandonava.
Gingerestendeuamãodireita,eAgathaentregou-lheumbis-turi.Alâminaafiadíssimabrilhouporuminstantesobaluzbranca.Gingertocoudeleveotraçoquemarcavaolocaldaincisãonotorsodapaciente,estremeceuerespiroufundo.Porummomento,comoqueevocadaspelosacordesdeBachqueemanavam do pequeno gravador ao fundo da sala, surgiram-lhe diante dos olhos as imagens dooftalmoscópioedasluvaspretas.Bobagem...Aquiloeracoisadopassado...incidentesesquecidos.Elaestava em excelentes condições físicas, sentia-se bem, tranqüila, alerta, em total concentração paracomeçar a trabalhar. Esforçou-se uma segunda vez, agora voluntariamente, e pensou nas luvas. Eraoúltimoteste:sepressentissequalqueranormalidade,seafastariadamesaesuspenderíaacirurgia.Nãohouvenada.Eporquehavería?PorqueDeus a faria trocar anos e anosde trabalho ededicaçãoporalguns instantes de descontrole emocional, histeria passageira, stress relacionado ao excesso detrabalho?Nunca!Estavatudobem.Acirurgiaseriaumsucesso.Tinhaquedartudocerto!
O relógio na paredemarcava sete horas e quarenta e dois minutos. Era o momento de começar.Ginger fez a primeira incisão. Aplicou as pinças hemostáticas e continuou a cortar,maravilhando-se,comoaconteciasempre,comahabilidadeeasegurançadasprópriasmãos.Atingiuaprimeiracamadadetecidoadi-poso,passoupelascamadasmuscularesechegouaocentrodotóraxdapaciente.Rapidamente
ampliou a incisão o bastante para conter suas mãos e também as mãos de George Hannaby, casofosse necessária a intervenção do cirurgião-assistente. Duas enfermeiras aproximaram-se com osafastadores, aplicaram as pás do instrumento às paredes da incisão e, lentamente, fizeram girar aroscaqueas separava.AgathaTandy tocoua testadeGinger comum lençodepapel, atenta às lentesadaptadasaosóculosdecirurgia.Emgeralosuordatestadocirurgiãoembaçavaaslentes,bloqueando-lhemomentaneamenteavisãomicroscópica.Asuafrente,tGeorgesorriu.Nãoestavasuando.Raramentesuavaduranteascirurgias.
Comgestosseguroseritmados,Gingerprocedeuàligaduradosvasos,removeuaspinçaseentregou-asàenfermeira.Nasalasilenciosa,afitadeBachchegouaofim,enquantoumaenfermeiracuidavadevirá-la,ouviu-seapenasosibilocadenciadodopulmãoartificial.ViolaFletcherestavasuspensaentreavidaeamorte,ligadaàmáquinaquerespiravaporela,soboefeitodeumpoderosorelaxantemuscular,derivado farmacológico do curare, seus pulmões mantinham-se vivos exclusivamente graças aosocorromecânicodosrespiradores.
QuandoGeorge operava, a equipe costumava conversarmuito. Ele próprio estimulava a troca deimpressões, e até, às vezes, uma ou outra piada, porque achava importante trabalhar em climadescontraído.Ginger, no entanto, preferia o silêncio.Aquelesmomentosmágicos, quase sagrados, elaqueriausufruí-losintensamente,concentradanomovimentodasprópriasmãos.
Através da incisão do tórax ao abdome, examinou o cólon e constatou que estava bem, semanormalidadeaparente.TomouasgazesúmidasqueAgathalheestendeu,tocouosintestinoseinstalouaspás dos afastadores junto à parede da incisão, depois virou os dois seguradores na direção dasenfermeiras incumbidas demanter os intestinos naquela posição, afastados do campo ope-nuorio. Porbaixo,agoraexposta,estavaaaorta,artériacentraldocorpohumano.
Aaortadescepelotroncoechegaaoabdomedepoisdepassarpelodiafragma,correndoparalelaàsvértebrasdorsais.Naparteinteriordoabdome,poucoacimadavirilha,aaortadivide-seemdoisramossecundários:asartériasilíacas,queirrigamabaciaetransformam-seemartériasfemoraisaoatingiraporçãosuperiordascoxas.
—Aíestá—disseGinger.—Eumaneurisma.ExatamentecomoosraiosXindicavam.—Levantouacabeçaparaonegatoscó-piomontadoasuafrente,próximoàparede.—Estálocalizadojuntoàselaaórtica.
Àgathasecou-lheosuordatesta.Um aneurisma é como uma bolha de sangue. Ocorre quando, por qualquer razão anatômica, uma
pequenaporçãodaparededeumvasosedilata,ultrapassandoodiâmetronormaldovaso.0aneurismapulsacomoumpequenocoração.Nocasodaartériaaorta,adilataçãodaparededovasopodeocorreremqualquerlugar,dopescoçoàvirilha.Quandoacontecejuntoàgargantapodecausardificuldadesparadeglutiralimentos,tosseseveraerebeldeaqualquerterapia,doresnopeito,transtornosderespiraçãooudefala.NocasodeViolaFletcher,adilataçãoprovocavafortesdoresabdominais.Sendoumaespéciedebolha, o aneurisma é um ponto frágil na estrutura do vaso e, sendo frágil, pode rebentar a qualquermomento.Eentãoamorteévirtualmenteinevitável.Gingernovamentebaixouosolhosparaopequenobulboavermelhado,cheiodesangue,batendolentoevivo.Alipareciaresidiroúltimoredutodomistériodavida,um reduto secretoque jamaisviraa luzdodia,o segredodos segredos.Naquelemomentoomédico era quase Deus: criaria vida onde havia morte, devolveria a saúde a alguém que sofria,reconstituiria a ordem onde a natureza implantara o caos. Era ummomento de expectativa, acima dotempo.Violanãoestavanemmortanemviva:estavaentregueasuasmãos,asuaperícia,àciênciaqueGinger dominava a serviço dos homens.Amorte era a desafiante.No canto oposto do ringue,Gingerpreparava-separaenfrentá-la.
AgathaTandyapanhouumpequenosacoplástico,fechadoavácuo,eabriu-o.Aliestavaaporçãodeaorta artificial que substi-tuiria a seção comprometida da artéria de Viola Fletcher. Era um tubotraqueado, de paredes de fibra sintética porosa, que se bifurcava em “Y” invertido — perfeitareproduçãodadivisãodaaortanasduasartériasilíacas.
Ginger pegou o tubo, colocou-o sobre a região do aneurisma,mediu-o e cortou-o com a pequenatesoura que recebera da assistente. Então devolveu-o a Agatha, que, por sua vez, mergulhou-o numapequena bandeja cheia de sangue de Viola Fletcher e agitou o recipiente para frente e para trás atéencharcar o tubo.Depois de implantada na paciente, a artéria sintética ainda precisaria recebermaissangue.Gingerdesligariaosvasos,fariaosanguepreenchercompletamenteaáreaimplantada,tornariaadrená-loesódepoispassariaàsuturadefinitiva.Comesseprocedimento,estimulavaacriaçãodeumafinacamadadesangueno interiordo tubo—elemento importanteparaprevenireventuaisvazamentosnospontosdesutura.Comotempo,ocontínuofluxosanguíneoacabariaporformaroutramembrana,essadefinitiva, reproduzindo a estrutura original do vaso. Então ninguém con-seguiria distinguir a novamembrana, íntegra e perfeita, da membrana natural. Uma nova artéria estaria criada, mas umaartériamelhor que a natural,mais sólida,mais resistente, praticamente indestrutível. Quinhentos anosdepois, quando Viola Fletcher já estivesse reduzida a pó, quando sua memória fosse nada sobreoplaneta,aindaexistiriaoimplantesintético,tãointato,flexíveleperfeitocomonaqueleinstante.
AgathasecouosuordatestadeGinger.—Estácansada?—Georgeperguntou.—Estouótima.—Tensa?—Nemumpouco.Eramentira.Georgepercebeuesorriuportrásdapequenamáscaraquelhecobriaoslábios:—Éumprazervê-latrabalhar,doutora.—Tambémacho.Umadasassistentesconcordou,rápida,semlevantarosolhosdoquefazia.—Eeutambém.—Dacabeceiradamesa,oanestesistasorriu.—Ora...obrigada!—disseGinger.—Vocêtemgraça,doutora—Georgecontinuou.—Temmãosleves,sensíveis.Tudoolhaetudo
vê.Eumapena,masessasqualidadessaomuitorarasemnossaprofissão.GingersabiaqueGeorgenãoelogiavaninguém,amenosqueestivesseabsolutamenteconvencidodo
quedizia.Sabiaqueerahomemdecobrardeveres,tarefas,pontualidade,perfeição,eraramentesedavapor satisfeito. Deus do céu! George Hannaby orgulhava-se dela! Se não estivesse à mesa cirúrgica,Gingercomcertezateriachoradodeemoção.Comaalegria,percebeuqueGeorgesubstituiraJacobemseucoração.OuvirseuselogioseracomoverorisonhorostodeJacob.
Apartirdessepontoaoperaçãoprosseguiunormalmente.Gingersentia-semuitofeliz.Esqueceuaspreocupações,esqueceuomedode teroutracrisee,mais segura, trabalhoucomredobradaeficiência.Procedeuaocontrolerigorosodofluxosangüíneoatravésdaaorta,alteroucuidadosaemetodicamenteofluxoeadrenagemdosvasos, ligouaspequenasveiassecundáriascomnósdefioplástico,aplicouaspinçasadequadasnasartérias,inclusivenasilíacasenaprópriaaorta.Emmenosdeumahoraconseguiuinterrompero fluxodesangueparaaspernasdapaciente,eoaneu-risma,esvaziado,paroudepulsar.Comumpequenoescalpelo,furouotecidoe,logo,comumatesoura,abriuaparedeanteriordovaso.
Naquele momento, Viola Fletcher não tinha artéria aorta; estava à mercê da cirurgiã-chefe, maisdependentee impotentedoquenuncaantes—e,provavelmente,nuncadepois—emsuavida. Jánãohavia volta. Daquele instante em diante era preciso trabalhar bem, sem errar e, principalmente, sem
perderumsegundodetempo.Aoredordamesa,aequipepareciahipnotizada.Ninguémconversavanemfaziamovimentosinúteis
oudesnecessários.Nogravador,afitachegounovamenteaofinal,masninguémsepreocupouemvirá-la.O tempo parecia voar, medido apenas pelo silvo monótono do pulmão artificial e pelo bip-bip doeletroen-cefalógrafo.
Gingertiroudabandejaaaortaartificial,colocou-anaaberturasuperiordaartériasecionada,pinçouasduasextremidadesinferioreseconcentrou-senasuturasuperior.Então,novamente,concluídaasutura,removeuduaspinçasefezosangueenchero tuboplásticoqueestava implantando.Atéentão,sentiaatestaseca,semvestígiodesuor.TinhacertezadequeGeorgepercebera.Passadooprimeiromomentocrítico, sem que ninguém precisasse pedir-lhe, uma das enfermeiras-assistentes aproximou-sedogravadore,outravez,tornoualigá-lo.
Emboraaindativessehorasdetrabalhopelafrente,Gingersentia-serelaxadaecalma.Deslocou-seaoladodamesa,nadireçãodospésdapaciente,eafastouoslençóis.Agathaaproximou-secomoutrabandejade instrumentoscontendotodoomaterialnecessárioparaduasgrandes incisões,umaemcadacoxa, pouco abaixo da prega inguinal, no ponto de inserção das pernas no tronco. Passo a passo,pinçando veias e artérias, abrindo caminho entre camadasmusculares,Ginger atingiu as duas artériasfemorais.Repetiu omesmoprocedimento adotado na porção superior da aorta, abriu as duas artériasfemorais,umadecadavez,einseriunasaberturasasextremidadesdotubosintético.
Emcertomomento,surpreendeu-secantarolandobaixinho,acompanhandoosacordesquevinhamdogravador.Sentia-seopróprioHipócratesreencarnado,omédicodosmédicos,operandohaviamilênios,desdeocomeçodostempos.Pareciaquenasceraparafazerexatamenteoqueestavafazendo.
Senãoestivésse tãoconcentradanasuturadovasodeViolaFlet-cher, teriapensadoemJacob.E,pensandonopai,terialembrado
algumasdas frasesqueelecostumavadizerquandoseviadiantedealgo inevitável,dadoroudofracasso.“Otemponãoespera”.“Ajuda-teeDeusteajudará”.“Tostãoeconomizadoétostãomerecido”.“AvingançaaDeuspertence”.“Não julgues,paranãoseres julgado”.“Quemcomferro fere...” Jacobtinhaumrepertórioinfinitodefrases.Mashaviauma,emespecial,quepronunciavasempre:“Antesdaqueda, vem o orgulho”. Ginger poderia ter pensado nessas humildes palavras, cheias de sabedoria.Masestavatãofeliz,tãosatisfeitaconsigomesma,tãoorgulhosadesuaestréiacomocirurgiã-chefe,queseesqueceudapossibilidadedaqueda.
Continuavaatentaàsprópriasmãos.Voltouaoabdome, retirouaspinçasdosbraços inferioresdoimplanteedrenou-os;depois,cuidadosamente,colocou-osnasaberturasdasartériasfemoraisesuturouas inserções. Por fim, retirou as últimas pinças e viu o sangue fluir naturalmente, devolvido ao trilhohabitual.Aindadedicouvinteminutosàsuturadosúltimosvasosereexaminoutodosospontosàprocuradealgumvazamento:nãoencontrounenhum.Mãosapoiadasnamesa,deixou-seficar,porcincominutos,observandoapulsaçãodoimplante,percorrendocadacentímetrodaartériaexposta.Estavaperfeito.
—Podemosfechar—disse,afinal,levantandoacabeça.—Magnífico!—aplaudiuGeorge.Gingercomeçoupelasincisõesdascoxas.Voltouaoabdome,retirouosafastadoresdosintestinose
recolocou-osnacavidadeabdominal.O resto foi fácil: repore reconstituirascamadasdegordura,ascamadasmuscularesatéapele,costuradacomumgrossofionegro.
Na cabeceira, o anestesista retirou a venda plástica, quemantinha fechados os olhos deViola, edesligouorespirador.Umadasenfermeirasdesligouogravadorbemnomeiodeummovimento.Gingeraproximou-sedacabeceiradamesaeolhouparaapaciente,que,emborajárespirasseespontaneamente,conservavaamáquinadeoxigêniopresaàcabeça.Aoutraenfermeiradespiuasluvasdeborracha.
Semabrirosolhos,Violagemeubaixinho.—SenhoraFletcher—peguntouoanestesistaestámeouvindo?Apacientenãorespondeu.—Viola?Vocêestábem?Jáacordou?—Gingerinsistiu.Osolhosdasra.Fletcherpermaneceramfechados,maselamoveulevementeacabeçaeentreabriuos
lábios.—Estoubem...doutora.Uma das enfermeiras suspirou, aliviada. A equipe reuniu-se em torno de Ginger para os últimos
cumprimentos,queelaaceitoueagradeceuenquantodeixavaasala,aoladodeGeorge,tirandoasluvas,ogorroeamáscara.Sentia-seprestesaexplodirdesatis-tfação.Umsegundodepois,aproximando-sedapiapara lavarasmãos,começouacarregaropesoda tensão.Osombroseopes-p coçodoíam,aspernassofriamcãibra,ospésardiam.
—Deusdocéu...—suspirou.—Estouexausta!—Eusei—Georgesorriu.—Vocêestátrabalhandohámaisdecincohoras.Jápassadahorado
almoço.Implantedeaortaéumaverdadeiramaratona.—Vocêtambémficaexaustoquandofazumimplantedesses?Claroquefico.— Eestranho...Quandosaídasalaeuestavaótima.Foide repente.Ládentro,eracomoseeu
estivessecomeçandoatrabalhar.—Ládentrovocêsesentiacomosefosseumdeus—Georgeriu,carinhoso.—Enfrentouamorte,
lutouevenceu.Osdeusesnãosentemcansaço,nãotêmcãibranemtorcicolo.Otrabalhodelesédivertidodemaisparaquepensemnocansaçoquevemdepois.
Junto às duas pias, ainda ao lado deGeorge, Ginger tirou o avental, apanhou uma das pequenasembalagensdesabonete,abriu-aecomeçoualavarasmãos.Aospoucos,quasesemsentir,debruçou-seefitouofundodacubaovalada.Cobertadepequenasbolhasdesabão,aáguagiravaummomentosobresi própria, girava... e sumia pelo ralo. Mais água acumulava-se, girava e desaparecia, tragada pelotorvelinho.Giravacadavezmaisdepressa,maisdepressa,maisdepressa,esumia...
Aterceiracrisefoiapiordetodas.Piorqueocasodasluvaspretas,piorqueooftalmoscópionoconsultóriodeGeorge.Derepente,comumgritodepavor,Gingerjogoulongeosaboneteearregalouosolhos,orostopálidocomoamorte.Oturbilhãocrescia,aáguagiravacadavezmais,começavaasairdapia, iaapanhá-la...Elaprecisavafugir!Nacorrida, teveavaga impressãode livrar-sedeAgatha,quetentava segurá-la, de ouvir a voz de George chamando seu nome. Mas foi apenas um instante, etudomergulhounanévoa.Ocenário,aspersonagens,Agatha,George,aante-saladocentrocirúrgico...nãohaviamaisnadaouninguém.Tudosumia,eapenasapiabrilhavacomumaluzmaligna,ameaçadora.Estavaenlouquecendo.Eraumapia!Apiadesempre,apiadocentrocirúrgico...Nãopodiadeixar-selevarpelomedo.Nãoqueriafugir,não,não...
Masfugiu.Correuparaforadasala.Anévoadensadiluíaasimagensasuavolta,atéenvolvertudo.Entãoastrevassefecharam.
AprimeirasensaçãodeGingerfoidefrio.Havianevado,aindanevava...osflocosdealgodãocaíamdevagar, passando adiante de seus olhos como pequenas plumas.Não havia vento.Ginger levantou acabeçaeolhouomurodetijolosqueseerguiaasuafrente,deumladoeoutro.Metrosacima,apareciaum pequeno retângulo de céu cor de chumbo. A neve vinha de lá e, em apenas alguns segundos,acumulava-sesobreseuscabelos...nevavaeelaestavasentadanochão,chorandoetremendodefrio.
Apeledeseurostoardia,osossosdamãocomeçavamadoer,osdentesbatiam.Vestiaocamisolãoverde-claro que usava sob o avental de cirurgia. Tinha o corpo úmido e sentia o contato gelado dos
tijolos em que suas costas se apoiavam. Encolhida a um canto, abraçando os joelhos contra o peito,tentavadefender-sedealgumacoisa.A temperaturade suapele começavaabaixar,maselanão tinhaforçaspara levantar-seeentrar.Lembrou-sedapia,do raloengolindoaáguae,afinal, lembrou-sedetudo.
Outra crise! Tivera outra crise, fugira desesperada, atropelandoAgatha.George tentara chamá-la,porémelamaloouvira.Geor-
ge!Nítida,comonumacenadefilmeantigo,lembrou-sedaexpressãodesurpresaqueapareceranorostodomédicoaovê-lafugir.Naoconseguialembrar-sedemaisnada;entretanto,podiaadivinhar:saíradocentrocirúrgicogritando,completamenteenlouquecida,foradesi...Assustaraaequipe,eassustaraopróprioGeorge,e,afinal,destruirasuapromissoracarreira.
De olhos fechados, colou as costas à parede gelada. Mais frio... quanto mais frio, melhor! Umviolento choque térmico, a morte rápida e indolor. Estava sentada num dos corredores externosdohospital,umaespéciedeentradadeserviçoquelevavaaoprédioprincipal.Aesquerda,umapesadaportadeferrodavapassagemàcaldeiraquealimentavaosaquecedores,juntoàssaídasdeemergênciadaquelaala.
Ginger lembrou-se da noite em que fora assaltada, quando ainda trabalhava no HospitalPresbiterianodeColúmbia.Oassaltantelevara-aparaumbecoparecidocomaquele,masentãoelaaindanão havia começado a enlouquecer. Era umamulher equilibrada, segura, determinada a não se deixarvencer.Eagora...perderatudo,sentia-sefraca,quasemortadefrioedemedo.Terrívelironia:morrersozinhaedesamparadanumbecogelado.
Todaasuavidareduzidaatãopouco.Osanosdeescola,afaculdade,aslongasnoitesdeplantãonohospital,otrabalho,osacrifícioparaqueserviram?Paraelaacabarcomoumcãovadio,semrumoesemdono.Haviafracassado.DecepcionaraGeorge,Anna,Jacob...Decepcionaraasiprópria.Erainútilfingirquenãosabiaoquesepassava.Nãosabiaexatamenteoqueera,masestavaconscientedequesetratavadealgumacoisamuitograve,graveobastanteparaacabarcomseussonhosdetrabalharcomocirurgiã.Oquepodiaser?Crisepsicótica?Tumorcerebral?Aneu-rismaintracraniano?
Derepente,aportadeferroabriu-se,eGeorgeHannabyapareceu,oaventalenrolando-seàspernas,a respiração entrecortada.Deteve-se procurando algo em seu redor, e deparou com ela, encolhida naneve. Ginger viu-o arregalar os olhos e franzir as sobrancelhas incrédulo, e imaginou que estivessefazendoascontas
dashoras, dias emeses quehavia perdido comela.Suamelhor aluna, sua assistente exclusiva, agrandepromessadacirurgiacar-diovasculardoMemorial...Gingerfechouosolhos,encolheu-seaindamaisjuntoàparedeerecomeçouachorar.
—Mas...oqueaconteceu?—Georgeaproximou-se,aindaincrédulo.Ela respondeu com um soluço, o rosto escondido nas mãos. George que a esquecesse, que
desaparecessedali,queadeixassesozinhacomamiséria,avergonha,ahumilhação.Porqueprecisavapassarpormaisaquelaprovação?Oqueelequeria?
—Porfavor,digaoqueaconteceu.Oque...querqueeufaça? Porentreosdedos,Gingerviuqueoutras pessoas também chegavam à porta de ferro. As lágrimas não a deixavam ver bem, nem elaprecisavasaberquemeram:bastava-lhesaberqueGeorgeestavaali,asuafrente,perguntando-lheoqueacontecera.
— Nãosei...—respondeubaixinho,semcoragemdelevantarosolhos.—Algumacoisa...estáacontecendocomigo...
—Oqueé?—Nãosei.
AúnicaGingerWeissqueconhecianuncaprecisarapedirajudaaninguém,bastava-seasimesma.Eagoramalsabiadizeroqueestavaacontecendo!—Sejaláoquefor,vamosdarumjeito—prometeuGeorge,inclinando-seemsuadireção.—Seiquevocênãoédeseentregar.Estáouvindo?Asvezesficosem saber o que fazer com você porque sei que não gosta de receber ajuda. Sempre quer fazer tudosozinha.Masagoraédiferente,nãoé?Vocêestámeio...perdida...—Balançouacabeça.—Destavezvouajudá-la,vocêqueiraounão.Ouviubem?
—Estragueitudo.Decepcioneivocê...Georgesorriu.—Não,aindanão—murmurou.—Sabe...Ritaeeunãotivemosfilhas.Sóosrapazes...Mas,se
tivéssemostidoumamenina,gostaríamosquefosseigualzinhaavocê.DoutoraWeiss,vocêéumamulhermaravilhosa...fantástica...especial.Jamaismedecepcionaria.Paramim,seriaumahonrase,pelomenosumavezna
vida,vocêaceitassemeuombro,seencostasseneleemedeixasseajudá-la.Comoseeufosseseupai.
Gingerlevantouosolhos,viuamãodeGeorgeestendidaparaelaeapertou-acomforça.Erasegunda-feira,dia2dedezembro.AindasepassariammuitassemanasatéGingerdescobrirqueoutraspessoas,emoutroslugares—
gente que não se conhecia —, viviam a mesma experiência, sinistras variações de um pesadelosemelhanteaoseu.
2.TRENTON,NEWJERSEYPoucoantesdameia-noite,JackTwistabriuaporta,saiudoarmazémerespiroufundooargeladoe
úmido. No mesmo instante, um homem descia de um caminhão cinzento, junto a uma das rampas dedescarga. Jack não ouvira ruído algum porque, com certeza, o caminhão estacionara enquanto o trempassava.
O pátio ao redor estava às escuras, apesar das quatro pequenas lâmpadas amareladas que, pormedida de segurança, permaneciam sempre acesas balançando ao vento como aranhas engaioladas.Por azar, umadessas lâmpadas iluminava exatamente a porta por onde Jack acabava de sair e o ladodireitodocaminhãoondeseencontravaovisitanteinesperado.
O homem tinha cara de prontuário policial: queixo quadrado, lábios finos e retos, nariz torto equebradomaisdemeiadúziadevezes,olhospequenosebemseparados.Eraumdossádicosobedientesqueagangempregavaquandoprecisavademão-de-obraextra.Emoutrasencarnaçõespoderiaterganhoa vida como especialista em estupro e saque nas hordas de Gengis Khan, ou carrasco nazista, outorturador-chefe em qualquer prisão sta-linista. No futuro, poderia bem ser umMorlock, como H.G.WellsimaginouemAmáquinadotempo.ParaJack,nopresente,ohomemeraproblemadacabeçaaospés.
Ficaramosdoisparados,umnafrentedooutro,masJacknãolevantouorevólvernemlhedeuumtiro,comodeveriafazer.—Oqueestáfazendoaí?—perguntouMorlock, ríspido.Contudo,aoverasacolade lonaqueo
outroarrastavacomamãoesquerdaeapistolanadireita,apontadaparaochão,arregalouosolhoseexclamou:—Max!
Maxdeviaseromotoristadocaminhão,eJacknãoesperouqueaparecessealguémparaapresentá-los. Voltou-se, correu para dentro do armazém, fechou a porta e encostou-se à parede, pensando nahipótesedeoMorlockdecidirtestarapontaria.
Aúnicailuminaçãoquehavianoarmazémprovinhadeumconjuntodelâmpadasfracasquetambém
permaneciamacesasdurantetodaanoitenoescritóriomaisaofundo.Erapoucaluz,masbastavaparaqueJackvisseosrostosdeseusdoiscompanheiros,MortGersheTommySung,paradosapoucospassosdasaída.Nãopareciamsatisfeitos.
Minutos antes ia tudo tão bem! Haviam descoberto um dos maiores armazéns daMáfia, um dos“ninhosdedesova”dodinheirodotráficodedrogasarrecadadoemmetadedoEstadodeNewJersey.Odinheirovinhaemmalas,sacolas,caixasdepapelãooudeplásticoe,depoisdepassardemãoemmão,aolongodeumacadeiade“pombos-correio”queorecebiadostraficantes,eradeixadonoarmazém.Asmaiores remessaschegavamaosdomingoseàs segundas.As terças-feiras,apareciamosbemvestidoscontadoresparaacertar“acontabilidadedadivisãodeprodutosquímicos”daorganização.Asquartas,odinheiro,jácontadoeacondicionadoemmaletas,partiaparaMiami,LasVegas,LosAngeles,NovaYorkou qualquer outro grande centro onde, afinal, os conselheiros financeiros, bacharéis em Harvard ouColúm-bia, procuradores daMáfia ou de algumas “famílias”, dedicavam-se a “esquentá-lo”, ou seja,torná-lolegalerendoso.
Jack,Mort e Tommy estavam apenas interrompendo um dos elos dessa cadeia, exatamente o queligavaoscontadoresbemvestidoseosdoutoresdeHarvard.Ostrêsapoderaram-sedequa-
tropesadossacosdelonacheiosdedinheiroedecidimmga\i.naquelafortunacomobemquisessem.—Qualéoproblema?—perguntaraJack,Somosapenasumelonovonamesmacorrente.Ecomo
sefôssemosintermediáriosfree-lancers.—Ostrêsrirammuito,Mas naquelemomentoMort estava outra ve/,muito serio. Ti nha cinqüenta anos, ventre saliente,
ombros caídos, e começava a perder os últimos fios de cabelos.Como sempre, usava terno escuro echapéudefeltro,porémacrescentaraumsobretudocinzentoaouniformehabitual.Jacknãoselembravadejamaistê*Iovistocomoutraroupa.Ochapéuperderaovinco—oquealiásopróprioMorttambémpareciaterperdidohámuitotempoeoternoestavaamarrotado,masoconjuntodava-lhetodooardeumalinhadofigurantenumfilmedegangster.
—Quemestáláfora?—perguntou,avozcansadaeazedadesempre.—Vidoiscarasnumcaminhão.—Gentedaturma?— Não sei.Bom,paradizer averdade, sóvimesmoum—Jackcorrigiu-se—,masvalepor
dois...AtépareceoFrankenstein.—Nãoháporquesepreocupar.Asportasestãotrancadas.—Elespodemteraschaves.Aobservaçãofezostrêscorreremparaassombrasdofundodoarmazémeesconderem-seentreas
pilhas de engradados e caixotes acomodados nas empilhadeiras.No imenso armazém, asmercadoriasenchiam prateleiras que subiam até o teto. Televisores, fornos de microondas, liqüidificadores,torradeiras,peçasparacarrosetratores,emaiscentenasdeitens.Asprateleiraspareciamordenadaselimpas,masoarmazém,comoqualquergrandeoficinadeserta,tinhaumarsinistroeameaçador,comoseoscorredoresescurosaindaabrigassemasvozeseoshabitantesdodia.
Começara a chover forte, e as pesadas gotas de água batendo na laje de concreto ecoavamcomopassosporentreasprateleiras.
—Bemqueeuavisei—resmungouTommy.—Eudissequeeraperigosomexercomessagente.Descendentedechineses,Tommyacabavadecompletartrintaanos,setemenosqueJack.—Casas
dejóias—continuou—,carrosblindados,atébancos...váláqueseja...MasaMáfia!Éloucuraquererroubaressescaras!Ecomoentrarnumbardefuzileirosnavaisecuspirnabandeira.
—Masvocêveio,nãoveio?—Eusei,Jack...Asvezesfaçobobagem.
Notomdesalentadodesempre,Mortinterrompeu-o:—Sóháumaexplicaçãoparaessecaminhãoapareceraqui.Elesdevemestartrazendodinheirode
apostas,cavalos,“pó”,qualquermerdadessas,ecomcertezaémaisgentedoqueosdoisquevocêviu.Devemterhomensarmadosnacarroceriaguardandoa
grana.—Eporqueelesnãoatiram?—Tommyperguntou.— Porque pensam que somos um exército armado até os dentes. Estão commedo de nós—
arriscouJack.—Provavelmenteelestêmtransmissoresderádioejápediramreforços.—Mortajeitouochapéu,
pensativo.—VocêachaqueessaporradeMáfiatemumafrotadecaminhõesequipadoscomrádio,comoa
CompanhiaTelefônica?—Tommyvirou-separaele.—AMáfiaéumnegóciocomoqualqueroutro.Oscarassãoorganizados.Os três calaram-se, tentando ouvir ruídos que indicassemmovimento no pátio.Nada. Só a chuva
tamborilava na laje. Cada um examinou a própria arma, sofisticada, moderna e... insuficiente paraenfrentaraMáfia.
De repente, Jack lembrou-se de um filme antigo visto na televisão: munidos apenas de pedras eporretes, patriotas húngaros tentavam deter o avanço dos tanques russos. Como sempre as coisas secomplicavam, e ele dramatizava, escolhendo invariavelmente o papel de vítima, de pobre coitadoperseguidopelasforçasdomal.Gostavadeserassim.Viaatendênciaadramatizarcomoumadesuasmaisaltasqualidadesmorais.Verdadeque,encurralado
noarmazém,arealidadesuperavaqualquertentativadeficção:nãohaviaoquedramatizar.Mortacabouchegandoaalgumaconclusãoparecidaedisse:— Nãovaiadiantarnada tentarsairpelos fundos.Eles jádevemter tomadoposição,compelo
menosdoisnafrenteedoisatrás.Asduasúnicassaídaspossíveiseramasportasdeaçodasrampasdedescarga.Nãohaviajanelas,
aberturasdeventilação,chaminé,nada.Nemsaídadeemergêncianemescadaparasubiraotelhado—naverdade,nemexistia telhado.Aoplanejaro roubo,os trêshaviamestudadodetidamenteasplantasdoarmazém,econheciam,palmoapalmo,aarmadilhaemquehaviamcaído.
—Então...oquevamosfazer?A pergunta de Tommy era dirigida não a Mort, mas a Jack, que fazia questão de organizar
pessoalmente todos os “serviços” dos quais participava. Assim, Tommy esperava que ele seencarregassetambémdeimprovisarsoluçõesquandoparecianãohaveramínimaesperança.Jackeraohomemdasidéiasbrilhantes.
Derepente,porém,opróprioTommybateunatesta:—Ora!Porquenãosaímosdomesmojeitoqueentramos?Haviamentradonoarmazémcomoalgunsguerreirosgregosentraram em território inimigo, numa ligeira adaptação da idéia do cavalo de Tróia. Era a única
maneira de burlar o elaborado sistema de segurança que, à noite, tornava o armazémpraticamenteinexpugnável.Duranteodiaasegurançacorriaporcontadahonestafachadadeumdepósitoque,comotantosoutros,armazenavaobjetos,móveisemercadoriasdetodotipopermitidopelalei.Comumterminaldecomputadordomésticoealgunscódigos,Jackconseguiraentrarnosistemadoarmazéme,aomesmotempo,nodeumdeseusgrandeseilustresclientes,entãosimularaosregistroseletrônicosdeuma entrega a ser feita num enorme engradado lacrado. O plano estava dando certo: o engradadoforaentreguenaquelamanhãeguardadoexatamentenascondições requeridaspelosdocumentosqueo
acompanhavam.DentroestavamJack,MorteTommy.Tinhamcincoopçõesdesaída,umadecada lado,oque lhespermitiríaabriro recipienteaindaqueele fosseacomodadoentreoutros
quatro. Poucodepois das onze da noite, saíram e surpreenderamos rapazes do escritório, que jamaisesperavamveralguémburlarosistemadesegurança.
— Podemos voltar para o engradado — Tommy continuou. — Quando eles entrarem e nãoencontraremagente,vãopensarquetiveramumavisão.Amanhãànoitejáterãoesquecidotudo.Entãosaímoseacabamososerviço,conformeoplanejado.
— Não dá certo. Esses caras não costumam ter visões. Vão desmontar o armazém até nosencontrarem—declarouMort,balançandoacabeça.
— E isso mesmo— Jack concordou.— Já sei o que vamos fazer. Em voz baixa, distribuiurapidamente as tarefas. Tommy correu até o painel para desligar as luzes do armazém. Jack eMortapanharamosquatrosacosdedinheiroeforamarrastando-osparaosetorondevárioscaminhõesaguardavam as cargas da manhã seguinte. Estavam ainda a mais de um quarteirão de distânciado objetivo, quando Tommy apagou as poucas luzes. Os dois pararam, Jack acendeu a lanterna quesemprelevavapresaaocinto,econtinuaramandando.Alonaarrastadasobreopisoproduziaumruídosurdo,queecoavademodosinistronoarmazémdeserto.
Comsuapróprialanternatambémacesa,Tommyreuniu-seaoscompanheiros;apanhouumdossacosqueMortcarregavaeumdosdeJack.Achuvacomeçavaadiminuire,porentreobarulhodaventania,Jackteveaimpressãodeouvirumcarrofrear.Seriamosreforços?
No fundo do armazém estavam estacionados quatro enormes caminhões, de cinco eixos e dezoitopneus,cadaqualviradoparaumadasrampasdecarga.Jackaproximou-sedocaminhãomaispróximo,subiueexaminouopainel.Exatamentecomoprevira.Todosalipareciamconfiarcegamentenasegurançaeletrônica,comoseninguém,emtempoalgum,fossepensaremroubarumdoscaminhões.Achaveestavanocontato,brilhandoàluzdalanterna.
Emseguida,JackeMortexaminaramosoutrostrêsveículos,onde encontraram também as respectivas chaves. Ligaram os motores e voltaram ao primeiro
caminhão. Atrás do banco havia uma rede com almofadas, onde os motoristas, revezando-se àdireção,podiamdormirnasviagensmaislongas.TommySandguardavaossacosdedinheironessaredequandoJackeMortseaproximaram.JackesperouqueTommysaísse,sentou-seaovolante,desligoualanternaedeuapartida.Mortacomodou-seaseulado.Osquatrocaminhõesagoraroncavamalto,comosfaróisapagados.
De lanterna namão,Tommycorreu para o painel que controlava omecanismoda primeira porta.Escolheuumadaschaveseligou-a.Depois,sempreguiadopelofeixedeluz,dirigiu-separaasegundaportaeacionouorespectivomecanismo.Repetiuaoperaçãocomaterceiraeaquartaportas,desligoualanternaecorreuparaocaminhãoondeJackeMortoesperavam.Lentamente,asengrenagenschiando,aspesadasportasdeaçocomeçaramasubir.
Láfora,osMorlockveriamasportassubirem,ouviriamoroncodosmotores,mascadaumestariaolhando para, nomáximo, dois buracos negros e não poderia saber por qual deles sairia o primeirocaminhão.Nadúvidapoderiamdescarregar asmetralhadoras sobre asquatro saídas. Jack,no entanto,estavacertodequerefletiríamdurantealgunssegundosantesdeoptaremporumarespostatãoviolentaetamanhodesperdíciodemunição.
Tommysubiunocaminhãoetrancouaporta,apertandoMortentreeleeJack.—Comoessasportassãolerdas—Mortresmungou,nomomentoemqueasportaschegavama
meiocaminhodoteto,mostrando-lhesumafatiaretangulardenoitechuvosa,escuraefria.— Passeporcimadosfilhosdaputa.—Eraapenasumasugestão.Tommyjamaisdariaordens
Jack.Afivelandoocintodesegurança,Jackreplicou:—Emelhoragentenãosearriscar.Ocaminhãopodeficarpresonocarro.A porta continuava subindo. Mãos firmes no volante, Jack percebeu movimento no pátio. Dois
homensarmadospassaramadian-te deles, meio curvados, deslizando no piso molhado. Pelo visto, ainda não haviam decidido
desperdiçaramuniçãoda“família”.A primeira porta, exatamente a que ficava na frente de Jack, já estava quase aberta. E então, de
repente, surgiu o carro cinzento, os pneus cantando no chão escorregadio. Numa rápida manobra, omotoristagirouovolante,eocarrobloqueouduasdasrampasdedescarga.Deseupontodeobservação,Jackviuospneusdafrentesubiremalgunscentímetrosderampaea luzdosfaróis, jogadaparacima,iluminar a cabine do caminhão que ali roncava. Até um cego veria que o caminhão estava semmotorista.Aprimeiraportacontinuavasubindo.
—Abaixem-se!—Jackgritou.MorteTommyobedeceramcomopuderam,eJacksoltouo freiodemão.Comumpoucodesorte
conseguiriam passar... Foram três rápidos gestos: engrenar a primeiramarcha, soltar a em-breagem episarfundonoacelerador.
Nomomentoemquesóumdoscaminhõessemovimentou,osMorlockentenderamquetinhamumaúnicasaídacomaqualsepreocupar,esobreelaconcentraramofogo.Anoiteencheu-sedosecoruídosinistrodeumasaraivadadebalas.Jacksentiuumadelaspassarzunindojuntoaovidrodesua janela,encolheu-sesemquerer,porémmanteveopéfirmenoacelerador.Passoupelaporta,desceuarampa.Láembaixo,outrocarroestavaestacionado,bloqueandoapassagem.Osreforçoshaviamchegado.
Jackoptoupeloaceleradoremvezdofreioesorriu,satisfeito,vendoohorrorestampar-senorostodosocupantesdoautomóvelquandoperceberamqueocaminhãoavançava.Agradedocaminhãoacertoualateraldocarro,virou-odeladoeaindaoarrastoupormaisdedezmetros.OchoquefezJacksaltardobanco,masocintodevolveu-oemsegurançaaoassento.Porbaixodopainel,MorteTommygritavamdedor,jogadosdeumladoparaoutrocomolatasvelhas.
Para livrar-sedoautomóvel,Jackdesceraarampaemaltavelocidade.Agoraprecisavadetodaaforçaquesabiater—edemuitadaquesequerdesconfiavater—paracontrolarocaminhão,
impedindo-o de guinar para a direita e colidir de frente com a parede do armazém.E conseguiu.Entresuacabineeocaminhoquelevavaàsaídadopátiorestavaapenasumcarroazul-escuroocupadoportrêshomens.Doisdelesabriramfogo.
Umfezmiraabaixodalinhaindicadapelosmanuaiseacertouagrade,espalhandofaíscasparatodososlados.Ooutroerrouporexcesso,mirandoaltodemais:acertouabuzinamontadaacimadacabineesilenciou-a.Jackviu-apenderaoladodajanelaeficarbalançando,presanosfios.
Ocaminhãojáestavamuitopróximodocarro.Osfiéisservidoresda“família”adivinharamoperigoe fugiram como coelhos assustados, um para cada lado. Jack passou por cima do último obstáculo,reduzindo-oaummontedeferragensimprestáveis.Seguiuemfrente,passoupeloladodoarmazém,peloarmazémseguinte,poroutroarmazém,sempreacelerando.
Mort e Tommy saíram do esconderijo e sentaram-se, gemendo e praguejando. Os dois estavammachucados.MorttinhasanguenonarizeTommyhaviacortadoosupercíliodireito.Nadaqueparecessegrave.
— Por que será que tudo sempre acaba dando errado?—Mort suspirou, a voz ainda maiscavernosaporcausadonarizmachucado.
— Nada deu errado— Jack ligou os limpadores de pára-brisa.— O que aconteceu foi que
ganhamosumadoseextradeemoção.—Odeioemoção.—Mortlevouumlençoaoferimento.Peloretrovisor,Jackviuqueocarrocinzentosepreparavaparasegui-los.Os outros dois automóveis estavam fora de combate,mas aquele ainda podia criar-lhe
sérios problemas.O caminhão era lento demais para uma pista plana.Além disso, a chuva deixara aestradamuitoescorregadia,eelenãotinhaexperiênciasuficienteparadirigirummonstrocomoaquele,ànoite,emaltavelocidade.Haviatambémumruídoestranhonomotor,algumacoisaquesesoltaradentrodo capô depois da colisão com o carro azul-escuro. Se o caminhão parasse de repente, em plenaestrada,ostrêsestariammortoseosMorlockrecuperariamodinheiro.
Talvezfossempromovidos.Poralihaviaváriasfábricas,armazéns,grandesoficinas,masaprimeiracidadeficavaaquasedois
quilômetros de distância. Muitas fábricas estavam fechadas àquela hora, em total escuridão, porémalgumastrabalhavamininterruptamente,diaenoite.Peloespelhoretrovisor,cadavezmaisperto,vinhaocarrocinzento.Jackescolheuumapequenaentradaàesquerda,ondeviuumaplaca iluminada:FábricaHardwright—Embalagensdeespuma.
—Merda!Paraondevocêestáindo?—Tommygritou.—Nãotemosmotorparaescapardeles.—Masnãopodemospararparanegociararetirada,porra!Elestêmmetralhadoras,jáesqueceu?
—Mortgemeuportrásdolençoensangüentado.—Deixecomigo.—Jackeraohomemdasidéias.A fábrica Hardwright não estava trabalhando. Mas, atrás do grande prédio às escuras, numa
verdadeira clareira iluminada por lâmpadas de vapor de mercúrio, viam-se dezenas de caminhõesestacionados. Jack passou pelo edifício central da fábrica, contornou o estacionamento e preparou-separaumamanobrabrusca.
—Segurem-se!—gritou.MorteTommyfirmaramospésnochão,colaramascostasaobancoeesperaramochoque.O gigantesco caminhão gemeu em seus cinco eixos e dezoito pneus, completou uma curva muito
fechadaportrásdafábricaeparoubruscamente,aalgunspassosdoportãodesaídadoestacionamento.Delonge,podiamveraestradaporondehaviamchegado.Emsegundos,apareceramosfaróisdocarrocinzento,pequenasrodelasamareladasquerapidamentecresceramnaescuridãoatétransformarem-seempoderososfeixesdeluz.
Adiantedocaminhão,achava-seoportãodoestacionamento,que,comcerteza,jamaiserafechado.Jack começou a contagem regressiva. De repente, amarcha engrenada, pisou fundo no acelerador. Ocaminhão saltou para a frente. Era, porém, um veículo pesado, de partida mais lenta do que Jackcalculara;alémdisso,ocarrocinzentocorriamaisdoqueelesupunha.Dequalquer
modo, embora não conseguisse apanhá-lo à altura do trinco da porta direita, atingiu-o em plenacarroceria. Foi o suficiente para fazê-lo girar em espiral, completando uma volta e meia antesdeespatifar-se,defrente,contraomurodoestacionamento.Comonãoeraocasodeverificarsealgumdeseusocupantesprecisavadesocorrosmédicos,Jackmanobrouocaminhãoeretomouaestrada.Poucoadianteavistaramasluzesdacidade.
Podiam,enfim,retomaroplanoinicial.Aprimeiraparadaprevista,depoisdesairdoarmazém,eraumpostodegasolinaabandonadoqueostrêsjáhaviamexaminado.Jackdeixouparatrásasbombasdegasolina e estacionou ao ladodas ruínas doquepo-deria ter sidoum restaurante.No instante emquepuxouofreio4emão,Tommysaltoudacabineemergulhounaescuridão.
Estavam num bairro de classe média baixa, de ruas estreitas e casas escuras. Na segunda-feira
anteriorhaviamdeixadoporaliumpequenocarrodelatariamaltratadaemotorperfeito.Eraotransporteque os levaria de volta aManhattan, onde poderiam facilmente esquecê-lo para sempre em qualqueresquina.ApoucosmetrosdoarmazémdaMáfia,esperava-osumcarromaior,semchapaesemnúmerodemotorouchassi.SeosMorlocknãotivessemaparecido,ostrêsteriamandadoatéoautomóvel,queoslevariaaopostodegasolina,ondeotrocariampelocarromenor.
JackeMortdescarregaramos sacosdedinheiro, encostando-osàparededoposto.Mortvoltouàcabine do caminhão e limpou cuidadosamente o volante e todas as partes onde pudessem ter deixadoimpressõesdigitais.Jackpermaneceuaoladodossacos,vigilante.Ninguémestranhariaapresençadeumcaminhãoabandonadonumvelhopostodegasolina.Era tardeenãohaviacarrospelas ruas,masseapolíciapassasseporaliemsuarondahabitual...
Tommylogoapareceucomocarroquemanobroueestacionouentreasduasbombas.Mortfechouocaminhão, apanhou dois sacos e foi arrastando-os pelo chão. Jack seguia-o de perto, mas,quandoterminoudecolocarossacosnobancodetrás,Mortjáestavaacomodado,limpandoonariz.Jacksentou-seaoladodeTommysorrindoparasimesmo.
—PeloamordeDeus,dirijacomcuidado—disse.—Vamossercondecoradospelapolíciarodoviária—prometeuTommy.Ospneusderraparamaosaíremdalamaquecercavaasbombasederrraparamnovamenteaotocaro
asfaltodarua,masTommyconseguiucontrolarocarro.—Porqueéquetudo,sempre,acabadandoerrado?—Mortsuspirou.—Nadadeuerrado—disseJack.Ocarrodeslizounoasfaltoequasesechocoucomumdosveículosestacionadosjuntoaomeio-fio.
Foi o último incidente.Pouco adiante chegaramao entroncamentode onde tomarama rodovia rumo àcidadedeNovaYork.
—Porqueéqueessecarroderrapatanto?—Mortperguntouderepente.—Vámaisdevagar.— Eraporcausadalama—explicouTommy.—Masnãosepreocupe.Daquiparafrenteésó
asfalto.—Esperoquenãoaconteçamaisnada.Quemerdadenoite!— Merda de noite?!— Jack riu.—Mort!Você jamais será admitido noClube dosOtimistas
Anônimos... Linda noite! A melhor noite de nossas vidas! Estamos ricos, rapazes, ricos!Estamossentadosemcimadeumamontanhadedinheiro!
Mort arqueou as sobrancelhas por baixo do chapéu de feltro que ainda pingava água. Pareciasurpreso:
—Bem...Olhandoporesselado...Atéquemelhoraumpouco.TommySungdeuumagargalhada.Jacktambémriualto.Mortapenassorriu,comentando:—Etudolivredeimpostos.De repente, o mundo parecia fantástico, maravilhoso, engraça-díssimo. Tommy diminuiu a
velocidade,postou-seatrásdeumaambulânciafeericamenteiluminadaepassouemabsolutasegurançapelopostodepolícia.Afugadoarmazémjáfaziapartedofolcloredeacontecimentosengraçadosquelhesenchiamavida.
Mais tarde, quando as risadas cederam lugar a olhares calmos e sorrisos de franca admiração,Tommydeclarou:
— Euqueriadizerque...vocêfoiótimo,Jack.Aidéiadeusarocomputadorparafazeraquelasnotas de entrega... o en-gradado... Puxa!E aquele aparelho que você inventou para abrir o cofre semprecisarexplodir...Quebelotrabalho!Vocêédosbons!
—Eexcelentenaorganização—acrescentouMort.—Maséaindamelhorparaenfrentarcrises.Vocêpensarápido.Voulhedizerumacoisa...sevocêusassetudoquesabeparaserumhomemdebem,paraviverdoladocertodavida,sóDeussabeoquepoderiaconseguir!
—Oladocertodavida?!Existeladomaiscertodoqueoladoquetrabalhaparaficarrico?—Jackvirou-separatrás.
—Vocêsabedoqueestoufalando.—Nãosouheróinemestouinteressadoemviver“doladocerto”,entreos“homenshonestos”.São
todos hipócritas. Falam em honestidade, verdade, justiça, consciência social, mas vivem como setivessemaalmaemleilão.Nãoadmitemisso,massãoassimmesmo,eépor issoquequerodistânciadeles.Euassumo...paramim,sóodinheiroconta.Queroterdinheiro,muitodinheiro,eoshonestosquesefodam.—Amedidaquefalava,Jackpercebiaquesuavozmudava,perdiaaalegria,tornava-secadavezmais fria e cheia de ressentimentos.—O “lado certo”, “as boas causas”...—Olhou através dachuva,vendooslimpadoresbateremcadenciados,deumladoparaooutro.—Vocêpassaavidalutandopelas“boascausas”,evemumdessesotárioshonestoseacabacomvocê.Elesquesefodam!
—Faleiporfalar—Mortarregalouosolhos,surpreso.Jackmergulhounaslembrançasdopassado.Amargaslembranças.Doisoutrêsquilômetrosadiante,
disse,avoztensaebaixa:—Nãosouherói,droga!Emdiasqueaindaestavamporvir,teriaoportunidadedelembraressaspalavras.Esesurpreenderia
muitoaodescobriroquantoestavaerrado.Eraodia4deDezembro,quarta-feira,àumaedozedamadrugada.
3.CHICAGO,ILLINOIS
Àsoitoevintedamanhãdequinta-feira,cincodedezembro,opadreStefanWycazik jácelebraramissa, tomaraodesjejumeestavasentadoemseuescritóriocomumaúltimaxícaradecafé.Dandoascostasparaamesa,olhoupelagrande janela francesaqueseabriaparaopátioondealgumasárvoreserguiam para o céu os galhos esqueléticos, enegrecidos pelo frio.Num cenário assim era impossívelesquecerosproblemasdaparóquia.
OpadreWycazikcostumavareservaraquelemomentodamanhaparasipróprio;hábitodeanos,queprezavamuito.Entretanto,pormaisqueseesforçasse,nãoconseguiatiraropadre 'BrendanCronindacabeça. O falso cura. O profanador do cálice sagrado. A delícia das mexeriqueiras da paróquia. Obatalhadorincansável.Odefensordospobres,dosdesesperadosedosdesva-lidos.Nãoerapossível...Nãofaziasentido!
PárocodaIgrejadeSantaBernadettefaziadezoitoanos,opadreWycazikemmomentoalgumdesuavidapassarapeloinfernodadúvida.Agora,àsimplesidéiadeduvidar,estavaperplexo.Poucodepoisdeordenado,trintaedoisanosantes,foraenviadoparaumapequenaparóquianaárearuraldoEstadodeIllinois,comamissãodeauxiliarovelhopadreDanTuleen.
Commais de setenta anos, o padreTuleen era o homemmais doce, sentimental e encantador queStefanWycazik jamais conhecera. Sofrendo de artrite e enxergando jnal, certamente seria obrigado aaposentar-se,nãofosseaindaoverdadeiropastordeseurebanho.Paranãoafastá-lodaparóquiadeSãoTomás,ondeseencontravaporquatrodécadas,ocardealdecidiuprocurarumsacerdote jovemqueseencarregassedastarefasmaiscansativas,esuaescolharecaiusobreStefanWycazik.Vinteequatrohorasdepois de chegar aSãoTomás,Stefandeu-se contadagigantescamissãoqueo esperava,masnão se
intimidou.Poucosoutrosteriamconseguidosair-sebemdeempreitadatãoséria,maselejamaisduvidou,nemporuminstante,dequeconseguiriaarcarcomaresponsabilidadequelhejogavamsobreosombros.
QuandoopadreTuleenmorreuempaz,trêsanosdepois,acúriamandououtrosacerdoteparaSãoTomás e designou a Stefan Wycazik para uma paróquia nos subúrbios de Chicago. O vigário dessaparóquia,padreOrgill,começavaaterproblemasdealcoolismo,porém,sendoumhomemforteebom,mereciareceberajudaparaencontrarasalvação.AincumbênciadopadreWycazikeraexatamenteessa:ajuda o colega, ampará-lo, oferecer-lhe um ombro amigo, guiá-lo até que se reconciliasse consigomesmo.Semnuncaduvidardenada,Stefanfezexatamenteoquelheexigiam.
Nos três anos seguintes serviu em duas outras paróquias, sempre encarregado de encaminharsoluçõese resolverproblemasquepareceríam insolúveis aocomumdosmortais.AaltahierarquiadaIgrejacomeçavaamencioná-lo“oinfalívelbraçodireitodocardeal”.
Numadesuasmissõesimpossíveis,foimandadoparaoVietnã,afimdetrabalharporseislongoseterríveis anos ao lado do padre Bill Nader no Orfanato Nossa Senhora das Graças, em Sai-gon. OorfanatoforacriadopelaArquidiocesedeChicagoeeraumdosprojetosmaisimportantesqueocardealcoordenava.BillNadertinhacicatrizesdetiros,umanoombroesquerdo,outranocalcanhardireito.Trêsconfradesseus—doisvietnamitaseumamericano—haviamsucumbidoemataquesdosvietcongs.
Nememmeioaohorrordaguerra,emmomentoalgumopadreWycazikduvidoudequesobreviveriaparacontinuaracumpriramissãoqueDeuslhereservara.QuandoasforçasinimigastomaramSaigon,Bill,Stefane treze freirasconseguiramescapardopaís levandoconsigocentoevintee seiscrianças.Nosmeses seguintes, morreram centenas demilhares de pessoas; ainda assim, StefanWycazik nuncaduvidoudaimportânciadeseugesto.Haviadescobertoqueodesespero,àsvezes,podeseroverdadeiroalimentodafé.
De volta aos Estados Unidos, ofereceram-lhe uma promoção a monsenhor como prêmio pelosserviçosprestadosàIgreja.
Eleagradeceuhumildementeerecusouarecompensa:queriaapenasumaparóquiaquefossesósua.Eláestava.
QuandorecebeuaparóquiadeSantaBernadette,descobriuqueprecisariasaldarumadívidademaisdecemmildólares, reformara igreja,cujo telhadoameaçavaruir,construirumaescolaeatrairmaiornúmerodefiéis.Umdesafiotalhadoparaseutemperamento.Emquatroanosdetrabalhoincansável,fezaassistênciaàsmissascresceremmaisdequarentaporcento.Emcinco, reconstruiuacasaparoquialereformouaigreja.Emsete,comprouoterrenoparaaescolaparoquialedeuinícioàsobras.
Umasemanaantesdemorrer,ocardealrecompensou-opelosrelevantesserviçosprestadosàSantaMadreIgreja,conferindo-lheotítulodepárocoperpétuodaigrejadeSantaBernardette.
OpadreWycazikera,pois,umhomemdefémonolítica,daquelesque,emmomentoalgum,duvidamdeque a fé removemontanhas.Por issonão conseguia entender como,de repente, emplenamissadedomingo,seuconfradeBrendanCroninperderaafé,eperdera-atãocompletamenteque,numataquededesesperoefúria,chegaraajogarnochãoocálicesagrado.Nafrentedosfiéis.Felizmentehaviapoucosfiéis.Seaqueleacessotivesseocorridonamissadasonze,oescândaloteriasidomilvezesmaior.
Quando o padreBrendanCronin chegara à paróquia, faziamais de um ano emeio, Stefan estavadecididoanãogostardele.EmprimeirolugarporqueeleestudaraemRoma,namaisfamosainstituiçãodeensinoreligiosodomundocristão.Claroqueeraumahonraserconvidadoparaestudarcommestresda Igreja, claro que era de lá que saía a nata dos sacerdotes, os mais cultos, os mais ilustrados...Entretanto, na espantosa maioria dos casos, os sacerdotes mais cultos e ilustrados não passavam deafetadosmoleco-tesdenarizempinado,erammuitomenossábiosdoqueseimaginavam,etremiamdehorror diante da possibilidade de sujar as santas mãos com o barro malcheiroso de que é feita a
humanidade.Aidéiadeensinarocatecismoàscrianças,porexemplo,parecia-lhesindignadesuaaltasapiência.Quantoavisitarprisõesouhospitais,nemfalar!
Alémde ter estudadoemRoma,opadreCronineragordo, tinhaacaramuito redondaeosolhosverdessuavesdemais.Tudonelepareciadenunciarumaalmapeguiçosaecorrupta.
O padreWycazik vinha de uma família de poloneses altos e ossudos na qual jamais nascera ounascerianenhumgordo.DescendentesdemineirosqueemigraramparaaAméricanapassagemdoséculo,habituadosaofrioeaoesforçofísico,seusancestraistiveramfilhosaltosemagros,quealimentaramcomtrabalhohonestoepesado,semlhesdartempoparaengordar.Desdemenino,opadreWycazikacreditavaque todohomemhonesto e confiável eranecessariamente alto, forte,magro,dotadodeossos longos eresistentes.
Parasuagrandesurpresa,porémBrendanCroninrevelou-seumtrabalhadorinfatigávelededicado.Nãotinhaonarizempinado,nemsepavoneavadosconhecimentosdedoutrinaadquiridosemRoma.Eraagradável, divertido, contavapiadas, ria comospresosquevisitava e tinha infinitapaciência comospequeninos, que as mães arrastavam para as aulas de catecismo. Em dezoito anos, o padreWycazikjamaistiveraaseuladoumcuracomoele.
Por tudo isso,parecia-lhe impossívelentenderacrisenamissadedomingo.Contudo,mesmosementender, começava a pressentir que ali estava outro dos grandes desafios que Deus lhe mandavaregularmente:reconduzirBrendanCroninaorebanho.Noiníciodesuavidaeclesiásticaforaincumbidodeajudarumcuraalcoólatraevenceraodemônio.Agora, tantosanosdepois,odestinoentregava-lheoutraovelhadesgarrada,quelherecordavaosdiasdajuventude,aquecia-lheosanguenasveias,enchia-odeentusiasmoerenovava-lheafé.
Alguémbateuàporta.OpadreWycaziklevantouosolhosparaobelorelógiodourado,presentedeumparoquiano,únicoobjeto requintadoqueadmitianasobriedadedeseuescritório.Eramexatamenteoitoemeiadamanhã.
—Entre—disse,virandoacadeiradefrenteparaamesa.O padre Brendan Cronin ainda estava pálido, com olheiras, como Stefan o vira no domingo, na
segunda-feira,naterçaenaquarta,quando o encontrara várias vezes para discutir as possíveis causas de tão repentina crise de fé e
tentarencontrarummododereconciliá-locomDeus.Estavatãopálidoqueassardaspareciambrilharemseurosto,
—Sente-se.Aceitaumcafé?—Não,obrigado.—Brendanpassoupelosofá,ignorouapoltronaefoiencostar-seaobatenteda
janela.Ovelho pároco pensou emperguntar-lhe se comera bemou se, como antes, limitara-se a engolir,
meioàforça,umpedaçodetorradaeumaxícaradecaféamargo.Decidiu-se,noentanto,poroutrotipodeabordagem:
—Vocêleuostextosquesugeri?---Li.OpadreWycazikdispensara-odastarefashabituaisesugeriraquesededicasseàleituradealguns
livroseensaiosqueapartirdeumpontodevistaintelectual,discutiamaexistênciadeDeuseabordavamaloucuradoateísmo.
— E certamente refletiu sobre o que leu— comentou, recostando-se na cadeira giratória.—Encontrou alguma coisa que o... ajudasse? — Com um suspiro, Brendan balançou a cabeça.Nadaencontrara.
—TemrezadopedindoqueDeusoilumine.
—Sempre.Mascontinuonoescuro.—Econtinuaabuscarasraízesdessadúvida.—Nãoparecehaverraiz.Era quase insuportável a expressão de desânimo estampada no rosto de Brendan. Habitualmente
alegre e descontraído, desde a missa de domingo o jovem cura mostrava-se cada vez mais calado,mergulhadoemsimesmo,alheiroedistante.Falavapouco,devagar,usandofrasescurtasesecas.
— Claroquehá raízesnadúvidaqueoatormenta— insistiuopadreWycazik.—Devehaveralgumacoisa,umasemente,umcomeço.
—Esóadúvida—Brendanrespondeuemvozquaseinaudível.—Estáaqui.Parecequesempreesteveaqui.
—Masvocêsabequeadúvidanãoestavaa/.Vocêtinhafé!Entãoissotemumcomeço.Vocêdissequecomeçouemagosto.Comofoi?Quando?Deveteracontecidoalgumacoisa...algumincidente,ouumconjuntodeincidentes...queolevouareversuafilosofiadevida.
—Não.—ApalavrasooucomoumgemidodedorOvelhocuratevevontadedelevantar-se,andaratéeleesacudi-lopelosombros.Todavia,munindo-
sedepaciência,continuou:— Hámuitosbonssacerdotesque,emalgummomentodavida,passamporcrisesdefécomoa
sua.Háatéalgunssantosquedesafiaramosanjos.Masemtodosessescasosocorreuamesmacoisa...oprocessofoilentoegradual,arrastou-seporanosantesdeeclodirnumaverdadeiracrisedefé.Alémdomaisemtodosessescasossemprefoipossívelidentificarummomento,umincidenteespecífico,quedeulugar à dúvida. A morte de uma criança, por exemplo. A doença incurável de um ente querido.Assassinatos,estupros.AeternaquestãodedescobrirporqueDeuspermitequeessescrimesocorram.Porqueexisteaguerra,porqueexisteador...Adoutrinatemrespostaparatodasessasperguntas,masemalgunscasosumarespostaintelectualnãobasta.Umacoisaécerta...adúvidaquantoàexistênciadeDeus semprenascedealgumacontradiçãoespecíficaentrenossa idéiadoque sejaagraçadivinaearealidadehumanacheiadedoresofrimento.
—Nãoemmeucaso.Semdaratençãoàspalavrasdooutro,opadreWycazikrespiroufundoeprosseguiu:— E aúnicamaneiradevencer adúvida e reencontraro abrigoda fé édiscutir a contradição
específica,deondetudosurgiu.Paraissoexistemconfessoreseguiasespirituais.—Nãoháoquediscutir.Minhafésimplesmente...desmoronou,emedeixounoar.Comoumpiso
quepareciasólidoederepentedesaba,porquesempreesteveminado.— Entãonão foi umprocesso.Nãohouvenada, nenhumacontecimento, nenhumamorte injusta,
nenhumadoença,nemaguerra,nada?Afédesabou,comoopiso,derepente,semmaisnemmenos?—É.—Masquemerda!—OpadreWycaziksaltoudacadeira.Assustado,ooutroarregalouosolhos.— É issomesmo... quemerda!— repetiu o velho cura, dando-lhe as costas.Emparte, queria
mesmosacudiromarasmodeCro-nin,empartecomeçavaairritar-secomaquelahistória.Virou-sedefrenteparaajanelaerecomeçou:—Vocênãopodeter-setransformadotanto.Naopodetersidoumbomsacerdoteemagostoeviradoateue iconoclastaemdezembro.Nãoépossível.Principalmenteporquevocêafirmaquenãoaconteceunada,nenhumfatoespecialmentedolorosooudifícildeentender.Oquepode estar havendo é uma espécie de bloqueio. O fato ocorreu,mas você não consegue identificá-loporquebloqueousuapercepção.Enquantonãodecidirenfrentarsuasverdadesinteriores,nãoterácomosairdesseestado...lastimável.
O silêncio pesou, denso e doloroso, sobre a sala.O relógio douradobateu umquarto de hora.O
padreCroninlevantouacabeça:— Nãosezangue,porfavor.Suaamizadeéumadascoisasquemaisprezonomundo...Eunão
suportaria...alémdetudooquejáestáacontecendocomigo...Talvezfosseumaprimeirabrechanaconchaemqueseescondera.OpadreWycazikaproximou-se,
sentoueobrigou-oasentar-setambém.— Nãoestouzangadocomvocê—declarou.—Estoupreocupado, intrigadoe,principalmente,
muitofrustradoporquevocênãoquerdeixarqueeuoajude.Masnãoestouzangado.—Acredite,euqueroqueosenhormeajude.Masprecisosersincero...Nãotenhoamenoridéia
dequalquercoisa,qualquerfato,quepossaexplicaroqueestáacontecendo.Eestranho...Eummistério.O velho pároco tocou-lhe o ombro, levantou-se, voltou à cadeira atrás da mesa e sentou-se,
pensativo.— Está bem—disse afinal.—Estou convencido de que seu problema não é intelectual. Isto
significaqueasleiturasquelheindi-queinãoterãonenhumautilidade.Seuproblemadeveteralgumaraizpsicológica,inconsciente.Aindasentado,Brendanescutava-o,atentoeintrigado.Apossibilidadedequeestivessesofrendode
algummal psíquico parecia dar-lhe novas esperanças. Então o caso era mais simples e Deus não oabandonara!OpadreWycaziktambémpareciaaliviado:
—Comovocêdevesaber,nossoprovincialéopadreLeeKel-log.Oquevocêtalveznãosaibaéque ele dirige uma pequena equipe de dois psiquiatras, também jesuítas, encarregada de tratar dosproblemasemocionaisoupsicológicosdenossossacerdotes.Possoconseguirumhorárioparavocê.
—Achaquesim?—Semdúvida.Sóque,nomomento,achoprecipitado.Sevocêcomeçarafazeranáliseagora,o
provincialseráobrigadoa informaropadre-prefeito,encarregadodadisciplina,que,porsuavez, teráqueabriruminquéritoevasculharosdoisúltimosanosdesuavidanaparóquia,àprocuradequalquerfalha,dequalquerviolaçãodosvotos.
—Maseununca...—Eusei—Stefansorriu.—Masopadre-prefeitotemodeverdesermuitorigoroso.Aindaque
você receba tratamento e fique perfeitamente curado, o inquérito não será encerrado.A ordem tem odireitodeevitarquequalquersacerdote...digamos...vacilante... tenhaacessoaosmaisaltospostosdahierarquia.Seufuturoestariabloqueadoparasempre.Pareceumpreçoexcessivoapagar.Sempretiveaimpressãodequevocêteriacondiçõesdeaspiraraopostodemonsenhor,talvezmais.
Ojovemcurabaixouacabeçaemurmurou:—Souumpadresemambições.— Mascheiodequalidades,enquantoconseguirficarlongedalistanegradopadre-prefeito.Se
entrarnessa lista, seu futurose limitaráaumhorizonteparecidocomomeu,evocêmorrerádevelhocomosimplespároco.
AsombradeumsorrisoflutuounosolhosdopadreCronin:—Parece-meumfuturomaravilhoso—replicouemvozbaixa.—CabeàIgrejadecidiroserviçoquevocêpodeprestar-lhe.Omelhorquepossofazerétomar
algumasprecauçõesparatentarimpedirquesecometaumerroirreparável.Precisodesuaajuda.Queroquemedêalgumtempo,atéoNatal,porexemplo.Chegadelerensaiosdeteologia,chegadeconversarsobrecrisesde fé.Vamos trabalhar juntos.Pretendousá-locomocobaiadealgumas teoriasque tenhodesenvolvido.Vocêserátratadoporumamador,masganharátempoparaenfrentaropadre-prefeito.AtéoNatal.Se até lánão tivermosconseguidonada,marcareihoraparavocêcomnossopsiquiatra.Estácerto?
—Sim.Estácerto.Satisfeito coma resposta,opadreWycazik acomodou-sena cadeira, apoiouos cotovelos sobre a
mesaeesfregouasmãos.—Ótimo!—exclamou.—Temosmaisdetrêssemanas.Naprimeirasemanaqueroquevocêvolte
ausarroupacomum.EsqueçaabatinaeprocureodoutorJamesMcMurtrynoHospitalInfantilSãoJosé.Elevailhedarumemprego.
—Comocapelão?— Como faxineiro.Vocêvai lavarprivadas, trocar camas,qualquer coisaquemandarem fazer.
Ninguémmais,alémdodoutorMcMurtry,saberáquevocêépadre.Brendanfranziuassobrancelhas,sementender:—Mas...paraquetudoisso?— Tenho esperanças de que, dentro de uma semana, vocêmesmo responderá essa pergunta. E
quandotiverentendidoporqueoestoumandandoparaumhospital,teráencontradoumadaschavesparaabrir seuscaminhospsicológicos.Poderá lerdentrodesimesmoedescobriráporquesua févacilou.EntãosereconciliarácomDeus.
Brendanbalançouacabeça,semmuitaconvicção.—Vocêmedeutrêssemanas—opadreWycaziklembrou-o.— Eusei.Estábem.—Numgesto inconsciente,Brendanpassouosdedospelodurocolarinho
engomadodabatina.Seriadifícilviversemele,eissoerabomsinal.—AtéoNatalvocêvaimorarlongedacasaparoquial.Eulhedareidinheirosuficienteparaalugarumquartocomrefeiçõesnumhotelbarato.Queroquesemisture
aopovo,que saia, por algum tempo,doabrigodavida eclesiástica.Arrumeamala e, quandoestiverprontopara sair, passepor aqui.Vou telefonar aodoutorMcMurtry e acertarosdetalhesde seunovoemprego.
OpadreCroninlevantou-se,comumsuspiro,ecaminhouatéaporta.Derepenteparouevoltou-se:—Háumdetalhequetalvezreforceaidéiadequeestoucomalgumproblemapsicológico.Tenho
tidounssonhosestranhos.Paradizeraverdade,ésempreomesmosonho...—Sonhosrecorrentes...Issoétemafreudiano.— ... um sonho que se repete seguidamente, desde agosto— continuou Brendan, ignorando o
comentáriodooutro.—Nasemanapassadarepetiu-setodasasnoites.Nãoéumsonhoagradável.Ebemcurto...etenhoaimpressãodequeserepeteváriasvezesduranteanoite.Erápido...masmuitointenso.Vejoluvaspretas...
—Luvaspretas?—E...Esempreestounumlugarestranho,deitado,eparecequeamarradonacama,comosbraços
parabaixo,aspernaspresas...Queromelevantar,correr,fugirdali,masnãoconsigo.Estáescuroequasenãovejonadaameuredor.Entãoaparecemaquelasmãos.
—Deluvaspretas?—Sim.Asluvassãolustrosas,deplásticooudeborracha,ebemjustas,coladasàsmãos.Nãosão
luvas comuns.—Brendan deu alguns passos em direção ao centro da sala e cobriu os olhos com asmãos,natentativadelembrartodososdetalhesdosonho.—Nãoseiquemé,nãoconsigoverdireito.Sóvejoasluvas...atéopunho.Esóoquevejo...orestodacenapareceenvoltoemnévoa.
Quandocomeçouafalar,eraevidentequealembrançaacabavadeocorrer-lhe,masnãoimaginavaquepudesseteralgumarelaçãoimportantecomseuproblema.Aocalar-se,contudo,estavapálidocomoumlençolesuavoztremia.Pareciaassustado.
O vento empurrou a janela, que bateu ruidosamente.Absorto nas palavras do jovem sacerdote, o
padreWycaziksequerouviuobarulho.—Ohomemdasluvaspretasdizalgumacoisa?—perguntou.— Não.Elenunca falanada.—Brendanafastouasmãosdosolhos e, estremecendo,baixoua
cabeça.—Masasmãos...metocam.Sãofrias...pegajosas.Cadavezmaisinteressado,ovelhopárocoaprumouascostasnacadeiraeapoiouoscotovelossobre
amesa:—Ecomoéqueelastocamemvocê?Onde?—Norosto...Nopescoço,nopeito...frias...Andampelocorpo...—Emachucamvocê?—Não.—Mesmoassim,vocêtemmedo.Temmedodohomemqueusaasluvas...oudasprópriasluvas?—Nãosei...Sóseiquetenhomedo,muitomedo...—Eumsonhotipicamentefreudiano.Nãohácomofugirdisso.—Achoqueosenhortemrazão—suspirouopadreCronin.— O sonho é umdosváriosmecanismosqueo inconsciente utiliza paramandarmensagens ao
consciente.Emseucaso,nãoédifícil identificaralguns símbolos freudianosnessas luvaspretas.Elaspodemserasmãosdodemônio,atentaçãoqueprocuraafastá-lodagraçadivina.Ouasgarrasdesuaspróprias dúvidas, de seu sentimentode culpapor estar perdendo a fé.Ou asmãosdopecado... comoserpentesemseucorpo.
—Erazoável—ponderouojovemcura,esboçandoumsorrisotriste.—Asmãostocamemmim.—Deudeombrosevoltouparaaportamasparounovamente.—Talvezosenhoracheestranhooquevoudizer...achoquenãohánadadesimbóliconessasluvas.Tenhocertezadeque...elasexistem!Sãoapenasumasluvaspretase,emalgumlugar,emalgumtempo,sãoreais.Ouforamreais.
— Está querendo dizer que alguma vez em sua vida passou por uma experiência como a queapareceemseusonho?
OpadreCroninbaixouacabeçaefixouosolhosnotapate:—Nãosei.Epossívelquetenhaacontecidoalgumacoisaparecida,talveznainfância.Achoque
essesonhonãotemligaçãoalgumacomminhacrisedefé.— Não, não... — protestou o outro com veemência. — Não é possível imaginar que duas
experiênciasestranhaseaflitivascomoosonhorecorrenteeacrisedefésurjamaomesmotempoporpuraesimplescoincidência.Issojamaisacontece.Devehaveralgumarelaçãoentreelas...Diga-me,emquecircunstâncias,emsuainfância,poderiateracontecidoalgumacoisasemelhanteaoquelheapareceemsonho?Qualquerfatoquetenhaenvolvidoluvas,porexemplo.
—Nãosei,maspasseiporduasoutrêsdoençasgravesquandoeramenino.Talvezummédicoquetivessemeexaminado,usandoluvas...nãosei.Talveztenhasido
uma experiência tão desagradável que inconscientemente reprimi todas as lembranças, que agoravoltam...
—Nuncaviummédicoexaminarumacriança...comluvaspretas.Brendanrespiroufundoantesdereplicar:—E...osenhortemrazão.Dequalquermodo,nãoconsigotirardacabeçaaidéiadequenãohá
nadadesimbóliconessasluvas.Paramimsãotãoreaisquantoestamesa...ouoslivrosemsuasestantes.Orelógiomarcououtroquartodehora.Oventosopravacadavezmaisforte.—Edearrepiar—comentouopadreWycazik,semreferir-senemaotempo,nemàventania.—
Masgaranto-lhe que há alguma simbologia nesse sonho, e tenho certeza de que existe alguma relaçãoentreosonhoeseusproblemasdefé.Talvezseuinconscienteestejaquerendoavisarquevocêenfrentará
umagrandebatalha.Nãosei,massejacomofor,vocênãoestarásozinho.Podecontarcomigo.—Obrigado.—AgradeçaaDeus.Eletambémestáaseulado.Ojovemcuralimitou-seabaixaracabeçaecurvarosombros,desesperançado.—Eagoratratedefazeramala—ordenouStefan.—Osenhorvaificarsemninguémparaajudá-lo.—TenhoopadreGerranoeasirmãsquecuidamdaescola.Vocêdeveirtratardeseuspróprios
problemas.DepoisdasaídadeBrendan,opárocovoltouàmesa.Luvaspretas.Eraapenasumsonhoe,emessência,bemsimples,emboradesagradável.Noentanto,a
expressãonorostodeBrendanCroninnãolhesaíadalembrança.Estavaaterrorizado...porqueviaduasmãosenluvadasesentia-asandandoporseucorpo,tocando-o,grudando-senele...frias,pegajosas.Luvaspretas.OpadreWycazik cruzouosbraços eolhoupela janela.Talvez adivinhasseque aquele seriaomaiordetodososdesafiosquejaenfrentaraaolongodavida.Láfora,começavaanevar.
Eraquinta-feira,dia5dedezembro4.BOSTON,MASSACHUSETTSNa sexta-feira, quatro dias depois da catástrofe da pia e do implante de aorta emViola Fletcher,
Ginger Weiss continuava internada no Memorial, dessa vez como paciente levada pelo dr. GeorgeHannaby.
Durante três dias, fora submetida a todos os testes disponíveis no hospital, o que chegava bempróximodetodosos testesdisponíveisnaciênciacontemporânea.Haviamfeitovárias tomo-grafiasdecrânio,chapasradiográficas,ultra-sonografias,pneu-moventriculografias,punçãolombar,angiogramaeváriosoutrosexamesparapodercruzarosresultados.Suamassaencefálicafoivasculhadacentímetroacentímetro para verificar alguma formação neoplásica, eventuais massas císticas, tumores, coágulos,aneu-rismas.
Passoapasso,osmédicosconcluírampelapossibilidadedealgumaformaçãotumoralnoperineuroerefizeramváriostestes,
ao final dos quais levantaram a hipótese de hipertensão intracraniana crônica.Testaramo líquidoraquidiano à procura de alguma evidência de concentrações anormais de proteína, sangramentosintracranianos, baixas taxas de glicose, qualquer sinal de infecção bacteriana ou de contaminação porfungos.Erammédicostratandodeumacolegae,maisdoqueemqualqueroutrocaso,forammeticulosos,cuidadososepersistentesnabuscadoselementosquelhespermitissemdefinirumdiagnósticocorreto.
Asduasdatardedasexta-feira,GeorgeHannabyentrounoquartodeGingercomosresultadosfinaisdagigantescabateriadeexamesecomospareceresdajuntamédicaquesereuniraespecialmenteparaanalisá-los. O fato de o próprio George aparecer para informar o diagnóstico era mau sinal. Gingerficariamaisaliviadasequalqueroutroespecialistafossedar-lheanotíciadequeestavacomcâncernocérebro.
Sentadanacama,GingerusavaopijamaazulqueRitaHannaby,mulherdeGeorge,fizeraagentilezadebuscaremseuapartamento,juntocomoutrasmilpequenascoisasquelhedessemconforto.Tinhaumlivropolicialabertosobreos joelhose lutavaparaconvencer-sedeque,emboraseumal fossegrave,nãoeratãogravequeamedicinanãopudessecurá-lo.Naverdade,porém,estavamorrendodemedo.
O queGeorge tinha para dizer era ainda pior do que a pior notícia que ela poderia receber. Osmédicos não haviam encontrado nenhuma anormalidade em nenhum dos exames. Ginger não estavadoente.Nãotinhaqualquermalformaçãocongênita.Nemtumorcerebral.Nemaneurisma.Nada.
QuandoGeorgeacaboudedizer-lheexatamenteisso,Gingersentiu-sedesabarcomoumcastelodecartas.Depoisdequatrodias,desdeque fora encontradananeve, eraoprimeiromomentoemque sepermitiarelaxar.Echorou,baixinho,quasesemruído,aslágrimasdaterrívelangústiaquelhecrescianopeito.
Umtumor,umcoágulo,qualquercoisafísicaquepudesseseroperada,corrigida,extirpada!Qualquercoisaquelhepermitisse,algumdia,retomaracarreiramédica.Masnão.Seuproblemanão
era físico: era mental,^um mal psicológico que a medicina não entendia bem e que não saberiacorrigircombisturi eantibióticos.Umcasodeevidente indicaçãodepsicoterapia... surtosde fugaouausênciasemcausafisiológicaaparente.Nemospsicote-rapeutaspodiamgarantiracura.Eotratamentotalvezdemorassemeses,anos.Havianaliteraturamédicareferênciasfreqüentesapacientesque,apartirde surtosdeausência, acabavampordesenvolver sintomasdeesquizofrenia.Suaschancesdevoltar avivercomoumapessoanormalerampoucas,enãohaviaabsolutamentenenhumaderetomarocomandodeumaequipedecirurgia.
Eraofimdosonhodetodaumavida...osonhorompia-se,estilhaçava-secomoumglobodecristalatingidoporumtiro.Apsicoterapiapoderiamantê-laàtona,devolvê-laàvidaanterioraossurtos,porémjamaislhedevolveriaalicençaparaoperar.
George apanhou um maço de lenços de papel na pequena caixa sobre a mesa-de-cabeceira eofereceu-os a Ginger. Depois serviu-lhe um copo de água e um calmante. Ela resistiu, mas acabouengolindoocomprimido.Georgeacariciou-lheamãoecomeçouafalaremvozcalma.
—Masnadadissoaconteceucomigo!—Gingerconseguiu,afinal,interrompê-lo.—Tiveumlarorganizado e sólido, uma casa que nem o psiquiatra mais louco classificaria de “atmosferapsicologicamentedestrutiva’’!Tiveumainfânciafeliz,amaisfelizqueumacriançapoderiadesejar.—Comummovimentobrusco,arrancoudacaixaoutropunhadodelenços.—Porquetinhaqueacontecercomigo?!Porqueeu,eu, justamenteeu, tinhaquevirarpsicótica?!Tiveumamãemaravilhosa,umpaimaravilhoso,umacasalinda!Não...Nãopossoacreditar!
— Acalme-se, doutora...—George sentou-se na borda da cama.—Antes demais nada, umarespeitávelcorrentemédicadefendeumateoriasegundoaqualasdoençasmentaisseriamresultadodedeterminadas alteraçõesbioquímicasquenossa ciência aindanao conseguedeterminarouprever. Issoquerdizerquetalvezosproblemaspsicológicostenhammenosavercomasori-
gensfamiliaresdoquesepensa.Nãoachonecessáriovocêreverasamadasfigurasdeseuspaisparatentarentenderoqueestáacontecendo.Etambémnãoestouconvencido...repito...nãoestouconvencidodequevocêtenhaqualqueroutracoisaalémdeumsimplesproblemadestress.
—Vocêestátentandomeenganar!Porfavor!—Eu?!Enganarumpaciente?—Georgearregalouosolhos.—Não,nadadisso.Estourealmenteconvencidodequeháalgumacausafísicaoufisiológicapara
suas crises. E possível que você tenha alguma malformação ou neoformação ainda muito pequena eimpossíveldedescobriratravésdosexamesqueconhecemos.Seráprecisodartempoaotempo,observarseu comportamento e esperar que aconteça outro surto ou apareça outra sintomatologia. Dentro dealgumas semanas oumeses repetiremos os exames e,mais diamenos dia, acabaremos descobrindo oproblema.
Gingeratirouaolixoumabolotadelençosdepapelamarrotadoseapanhououtromaçodacaixinha.— Você acha?—perguntou franzindo as sobrancelhas, commedode alimentar esperanças.—
Acreditamesmoquetalvezsejaumtumorouumaneoplasiatãopequenaqueaindanãopodemosver?—Entreoutrascoisastambémpequenas,sim,acho.Paramim,pelomenos,essahipóteseparece
maisconfiáveldoqueapossibilidadededistúrbiospsicológicos.Não,vocênãotemnenhumproblema
mental.Eestáveleequilibrada.Nãoconsigoacreditarquepossasofrerdequalquerdisfunçãomental,e,entreduascrises,agirdemodotãoestável.Issonãofazsentido!
Uma luz de esperança! Ginger nunca pensara em suas crises a partir daquele ponto de vista. Dequalquermodo,eraumtristefuturopassaravidaàesperadequalquersintomaqueindicasseumtumornocérebro.Triste,porémmaisestimulantequeumfuturodeloucura.Nãohaviamédicocapazdeextirparaloucuracombisturiseescalpelos.
—Ospróximosmesesvãoserdifíceis—Georgecontinuou.—Precisamosesperar.—Suponhoquejáestouproibidadetrabalhar,nãoé?— No centro cirúrgico, sim, claro.No entanto, se nadamais acontecer, nãovejomotivoque a
impeçadecontinuaratrabalharcomigonoconsultório.—Mas...eseeutiver...outracrise?—Estareiaseuladoparaimpedirquesemachuqueoufiraalguém.— Eoquepensarãoseuspacientes?Nãoachaquepodemseassustarcomigolá?Imagine!Uma
assistenteque,semmaisnemmenos,viraumameshugeneesaidoconsultório...—Porquenãodeixaqueeumeencarreguedoquemeuspacientespossampensar?Dequalquer
modo,issonãoéparaja.Vocêprecisadescansarporumaouduassemanas.Nadadetrabalho.Descanse,relaxe.Essesúltimosdiasforammuitodesgastantesparavocê,tantofísicaquantoemocionalmente.
—Estouimóvelhádias!Nãofaçooutracoisasenãodescansar!Nãosacudaobule!—Oquê?—Georgefranziuatestasementender.Surpresaporterusadoaquelaexpressão,Gingersorriu.— Eumacoisaquemeupaiviviadizendo—explicou.—Eumaexpressãoemídiche,hoknit
kayntshaynik.Significaexatamenteoqueeudisse...nãosacudaobule,ouseja,nãodigabobagens.Masnãomepergunteporquesignificaisso...Nãotenhoamínimaidéia.Eapenasumaexpressãoquemeupaiusouduranteavidainteira.
— Bem,nãoestousacudindoobule.Oquequerodizeréquevocêdevecontinuaremabsolutorepouso.Equevaidescansaremminhacasa,comRitatomandocontadevocê,pelomenosporduasoutrêssemanas.
—Nãoposso!Nãopossolhesdarmaistrabalho...— Nãoserá trabalho,nemparamimnemparaRita.Temosumaexcelenteempregada.Vocênão
precisa se preocupar com nada, nem mesmo com a arrumação da cama. O quarto de hóspedes temumalindavistaparaabaía.Nãohánadamaisrepousantequeveromar.Naverdade,foiexatamenteissooqueseumédicoreceitou.
—Obrigada,muitoobrigada,masnãoépreciso.Georgecruzouosbraçoselançou-lheumolharsevero.—Achoquevocênãoentendeu—disse.—Nãoestouconvidandoumasimpáticamocinhapara
passar férias em minha casa. Estou falando como seu médico e como seu chefe... estou lhe dandoinstruçõesdecondutaparaaspróximassemanas.Nãodiscuta,doutora.
—Maspossomuitobemficaremminhacasa...— Não pode ficar sozinha— insistiu ele, balançando a cabeça.—E se tiver outra crise? Se
estiver cozinhando, por exemplo, e de repente provocar um incêndio? Só irá perceber depois querecuperaraconsciência,eentãopoderásertardedemais...Emuitoarriscado,tantoparavocêcomoparaoutraspessoas.
‘Não, não doutora... Não vou permitir que fique sozinha. Se não quiser ficar conosco, vá passaralgumtempocomseusparentes.Háalguémdesuafamíliaquetenhacondiçõesdehospedá-la?
—EmBoston,não.TenhotiosetiasemNovaYork...
Naverdadenãopodiasequerpensaremhospedar-seemcasadenenhumdeles,emboratiaRacheletia Francine sempre a recebessem de braços abertos. Jamais teria coragem de aparecer por lá nascondições emque estava...E se tivesse uma crise?As tias não saberiamo que fazer,mas certamentejogariam toda a culpa em Anna e Jacob. “Não souberam criar a pobre menina”, diria Rachel, entrelágrimas e suspiros. “Foramexigentes demais coma coitadinha”, completariaFrancine.Não...Ambaseram muito boas, tentariam ajudá-la, mas Ginger não podia permitir que seus pais acabassemtransformadosembodeexpiatório.Elesnãotinhamculpadenada.
—Ficocomoquartodehóspedescomvistaparaomar—declaroucomumsorriso.—Ótimo!—Continuoachandoquevoudartrabalhoeachobomprevenirdesdejá...seeugostar,ficolápara
sempre.Um dia, quando você voltar para casa, talvez encontre amobília trocada, um novo papel deparedeeseuquartodedormirtransformadoemmeuconsultório.
— Quando isso acontecer, dou-lhe um pontapé no traseiro e ponho você na rua. — Georgelevantou-seebeijou-lheatesta.—Voutratardesuaalta.Enquantoisso,arrumeasmalas.VoutelefonarparaRitaepedirquevenhabuscá-la.—Eleseaproximoudaportaevoltou-se,outravezsério.—Seiquenãoseráfácil,masvocênãopodedesanimar.
Gingerouviuseuspassosafastando-sepelocorredoremdireçãoaosaguão,edeixou-secairsobreos travesseiros, os olhos fixos na parede amarelada a sua frente. E então, numgesto súbito, jogou ascobertas,saltoudacamaeentounobanheiro;abriuastorneirasdapiaedebruçou-se,fitandooralo.Apia logo se encheu de água, e a água começou a girar, cada vezmais rápida, descendo pelo orifícioescuro.Impossívelacreditarqueumainocentepiabrancacheiadeáguapudesseterdesencadeadotantosproblemas.Nasegunda-feira,depoisdefazeroimplantedeaortaemViolaFletcher,umralodepiaigualàqueleparecera-lheaprópriabocadoinferno!
— Mas...por que?!— perguntou-se pela centésima vez, começando a desesperar-se.— Oh,papai...Comoprecisodevocê!Comoseriabomsevocêestivesseaquicomigo...Oh,Deus!
DentretantasfrasesqueJacobcitava,haviaumaquesemprelhepareceraengraçada.Aindaecoava-lhenosouvidos, acompanhadadeum levemovimentodecabeça...Quandoalguém lheconfessavaqueestavapreocupadocomo futuro, seupaidavadeombrosedizia:“Eporque sepreocuparcomodiadeamanhã,sevocêaindanemsabeoquepodelheacontecerhoje?”
Quantaverdade!...Gingerlembrou-sedafrasedopai,dorápidomovimentodecabeça,dolevantardeombros,porémnãoconseguiulembrar-sedoqueafaziarirtantoquandoaouvia.Sentiu-seinválida,partida,perdida.
Erasexta-feira,dia6dedezembro.
5.LAGUNABEACH,CALIFÓRNIA
Namanhadesegunda-feira,dia2dedezembro,DomeParkerFaineouviram,noconsultóriododr.Cobletz,umdiagnósticobemmais tranqüilizadordoqueesperavam.Domforaexaminadohaviapoucotempoenãoseconstataranenhumaanormalidadequepudessepreocupar.
O médico disse que, após a última consulta, no dia 23 de novembro, começara a pesquisar ummaterialsobresonambulismo.Descobriraque,nocasodeadultos,ascrisesemgeralerampassageiras,embora não se descartasse a possibilidade de que o mal se tornasse crônico. No limite extremo,encontrara registros de pacientes que, a partir de surtos freqüentes de sonambulismo, acabaram pordesenvolver um quadro de sintomatologia bem mais grave, diagnosticada como psicose maníaco-
depressiva. Os autores eram unânimes em afirmar que, embora à primeira vista o sonambulismo nãopudesseserincluídoentreasmoléstiasgraves,eraummaldecuradifícil.Emalgunscasos,ospacientesdavamsinaisdecrescenteansiedadeemrelaçãoaosonoouàhoradedormir.Eraessaansiedade,enãoosonambulismoemsi,quepodiaeventualmentecriarsériosproblemasparaavidadiáriadopaciente.
Domsentiu-sejogadosobreesseterrenominado.Lembrou-sedatrincheiraqueconstruíradiantedaportadoquartoedoarsenalreunidosobreacama.
Semdarmostrasdepreocupação,odr.Cobletzsugeriuumalinhaterapêuticasimples,afirmandoquemuitoscasosdesonambulismopersistenteforamcuradoscompequenasdosesdesedativo,ministradasàhoradedormir.Depoisdealgumasnoitesdesonoregular,aansiedadediminuíasignificativamenteeascrisesdesapareciam.Noscasosmaisdifíceis,aumentava-seadosedesedativonoturnoeprescreviam-secalmantesparaoperíododeatividadedopaciente,semprecomoobjetivodecombateraansiedade.ParaDominick,consideradasasextenuantestarefasaquesededicavaduranteosono,omédicoreceitoudosesdiurnasdecalmanteeumacápsuladesoníferoantesdedormir.
QuandovoltavamdeNewport,tendoomaràdireitaeasmontanhasàesquerda,ParkerFainedissequenãoeraseguroDomficarsozinhoànoiteenquantoascrisesnãodiminuíssemdeintensidade.
—Tenhoumquartodehóspedes—informou,comosempredirigindoemvelocidademaiordoquearecomendada, porém menor que a proibida. Por algum estranho mistério de personalidade, dava aimpressãodeconcentrar-se,aomesmotempo,naestradaeemDom.—Vouficardeolhoemvocê,masnão pense que pretendo lavar suas cuecas.De qualquermodo, estarei por perto.Teremos tempo paraconversar sobre o assunto, até descobrir que relação existe entre suas andanças noturnas e o queaconteceunaqueleverãoemMountainview.Souomelhor“papo”destacidade.Senãotivessecometidoaburricedeserpintor,teriacometidoaburricedeserpsicanalista.Nãoseiporque...sempreconsigofazeraspessoasfalaremdesimesmas.Eentão?Comoé?Vamosbrincardepsicoterapia?
Domnãoaceitou.Queriaficarsozinhona tocaquehaviacompradocomosuordeseurosto,ondetinha conforto. Era diferente. Pela primeira vez na vida não estava fugindo de nada. Amudança queocorreradurante aviagemparaMountainview,naqueleverão, foradramática, inexplicável,mashaviasidoumamudançaparamelhor.Aostrintaetrêsanos,eleafinalcomeçavaacontrolaraprópriavida,asegurá-lapelasrédeas,amontá-ladeumsalto,comoosvelhoscowboys,epreparava-separaexploraraterravirgemqueseabriaàsuafrente.Estavagostandodonovohomemqueviacrescersobsuaantigapeleenadaconseguiriadetê-lo.Restava-lheapenasummedo:odevoltar,pordescuido,àvidavaziaquelevavaantes,edemorrerdetédio.
Talvez Parker tivesse razão: as crises de sonambulismo podiam estar relacionadas com tantasalterações em sua vida. Mas, talvez, as coisas fossem bem diferentes e, nesse caso, Dom poderiaencontraroutrascausas,nemtãomiteriosasnemtãocomplexas.Outalvez,ainda,arelaçãoentreasduascrisesdepersonalidadefossemuitosimples:osonambulismoestariaencobrindoseumedoin-
consciente de deixar-se envolver pela excitação de uma nova vida. Nesse caso, ele teria quemergulharfundoemsipróprio,resistiromaisquepudesseecriarcoragemparavoltaràtonacomoumnovohomem.Claro!Queriaficaremcasa,sozinho,tomarosremédiosqueodr.Cobletzprescreveraepensarmuito.
Desdesegunda-feiraatéosábado,diasetededezembro,adecisãopareceu-lheperfeita.Haviadiasemquesequerprecisavadoscomprimidosdecalmante, limitando-seaosoníferodanoite,que tomavacomumcopodeleiteouchocolatequente.Afreqüênciadascrisesdesonambulismodiminuíram.Antesdecomeçaratomarosremédios,Domsofriacrisesdiárias.Comotratamento,teveapenasduas:umanaquinta-feira e outra na sexta, ambas bem mais curtas, limitadas às últimas horas da noite, quase aoalvorecer.Comosenãobastasse,jánãosededicavaatarefastãoestranhasenquantodormia.Nãoreunia
armas,nãoerguiabarricadasnemtentavapregarjanelas.Tantonaquintaquantonasexta-feira,aexcursãonoturnalimitara-seaumaprosaicatrocadecama:saíradoquartoeescondera-senoarmáriodocorredor.Verdade que acordara com os músculos doloridos e as pernas dormentes, tremendo de medo e semconseguirlembrar-sedenenhumdetalhedosonhoqueoassustara.
ComagraçadeDeus!Começavaamelhorar.Naquinta-feiravoltouatrabalhar,retomandoofiodonovoromancequeestavaescrevendo.Tabitha Wycombe, sua editora em Nova York, telefonou-lhe na sexta, com ótimas notícias. A
imprensaacabavadepublicarduascríticasdepré-lançamentodoCrepúsculo,ambasexcelentes.Depoisde lê-las pelo telefone, Tabitha confessou que havia reservado o melhor para o fim: as livrariascontinuavampedindo o romance, estimuladas pela onda de publicidade e por centenas de exemplaresdistribuídos entre livreiros e críticos. Já haviamduplicado a tiragem inicialmente prevista e, a julgarpelos primeiros resultados, seriamobrigados a duplicá-la novamente.Domconversou ao telefone pormaisdemeiahorae,quandoTabithase
despediuedesligou,eleteveasensaçãodequesuavidavoltavaàplenaetranqüilanormalidade.Nosábado,aconteceuumacoisaestranha,quepodiaindicartantorealmelhoraquantoumarecaída.
Domnuncaselembravadenenhumdetalhedospesadelosqueofaziamsairdacamaeesconder-sepelacasa. Mas no sábado, ao acordar em pânico, mantinha na memória uma única imagem, muito nítida,presente,talvez,nosúltimosmomentosdosonho,poucoantesdeacordar...
Lembrou-se de ter sonhado com um banheiro do qual via apenas os contornos, como se tudoestivesse envolto em névoa. Alguém empurrou-o até a pia. Dom debruçou-se, fraco, enjoado, com oestômagoembrulhado.Nãoconseguiaverapessoaaseulado,massentiaapoderosapressãodasmãosquelheempurravamacabeça.Nãopodiagritar,nemrespirar...EstavamorrendolPrecisavafugirdali,escapardaquelasmãos,masestavatãofraco,tãofraco...Diantedeseusolhos,oralodapiapareciacadavez mais próximo, com o metal cromado brilhando entre as brumas que envolviam tudo. Era umadaquelaspiasantigas,querequeremumapequenatampadeborrachaparavedarasaídadaágua.Alguémhaviatiradoatampaeaáguajorravacomforçadatorneira,batianasparedesdacuba,respingava-lheorostoecorriaparaoralo,girando,girandocadavezmaisrápido,maisrápido...Apessoaqueelenãoconseguia identificarprendia-lheacabeçaegritava,masDomnãopodiaentenderoquedizia.Oralo,aágua...Eracomoseaquelaminiaturadeturbilhãotivesseopoderdearrancá-lodavida,domundo,dedentrodesipróprioearrastá-loparaprofundezascadavezmaiores,maisameaçadoras,maisterríveis.De repente entendeuoque asmãosqueriam: enfiá-lo napia e fazê-lo esvair-se coma água, como sefosse um resto de lixo, um osso roído, um pedaço de carne malcheirosa a caminho do triturador dedetritos...
Acordougritando.Estavanobanheirodesuaprópriacasa,debruçadosobreapia,gritando,comabocaroçandooralo.Deuumpassoatráseporpouconãocaiudecostasnabanheira.Segurou-seàtoalhapenduradajuntoaoespelho,equilibrou-se,osjoelhosaindatrêmulos,malconseguindorespirar.Algunsinstantesdepois,quandoarespiraçãocomeçouanormalizar-se,voltouàpiaeolhouparadentro.Nadaalémdeumralocomumdemetalcromadonumainofensivapiadeporcelanabranca.Aoladodatorneiraluziaapequenatampacromada.Apenasisso.
Obanheirodopesadelonãoeraoseu.Eraoutro,emalgumoutro lugar.Dominick lavouorostoevoltouparaoquarto.
Sobreamesa-de-cabeceira,orelógiomarcavaduasemeiadamadrugada.Emboranãofizessesentido,nemparecesseterrelaçãorealousimbólicacomsuavida,opesadelo
aindaoperturbava.Dequalquermodo,jáquenãosepreocuparaempregarasjanelas,nemcorreraembuscadesuasarmasdeguerra,talveznãofossetãosérioquantoparecia.Talvezatéfosseumprimeiro
sinal de melhora. Começava a lembrar-se dos pesadelos. Aos poucos se lembraria de tudo que lhepassavapelacabeçaenquantodormia...Quandoissoacontecesse,conseguiriadescobriroqueoatorme-tavatantoepoderiaenfrentarseusfantasmasàluzdodia.Entãofaltariaapenasumpassoparaacura.
Nem mesmo amparado por tantas idéias reconfortadoras, Dom conseguiu coragem para voltar adormir. Ao lado da cama, na primeira gaveta da mesa-de-cabeceira, estava o vidro de sonífero.Omédicoprescreveraapenasumacápsulapornoite,masquemalpoderiahaverse,umaveznavida,eledobrasseadose?
Domfoiatéasala,serviu-sedeumpoucodeuísqueevoltouaoquarto;entãoapanhouumacápsula,colocou-anaboca,engoliu-acomabebidaeenfiou-seentreascobertas.
Claro que começava a melhorar! Já se lembrava de fragmentos de sonhos... Logo as crises desonambulismoseriamapenasumaestranharecordaçãodeumestranhoperíododesuavida,nadamais.Retomaria a rotina, voltaria a trabalharnormalmente e, nashorasdeócio, porpurodesfastio, tentariadescobriroqueacontecera.Porque,emdeterminadascircunstâncias,umhomemnormaleequilibradosedeixariaenvolverpormedos,sonhos,pesadelosoudelírios?
Ocomprimidocomeçavaafazerefeito.Dommergulhavanumestadodesemiconsciência,deslizandodevagar,deixando-se levar...Foi assim,entreacordadoedesperto,queouviuaprópriavozmurmurarbaixinho,naescuridãodoquarto.Diziaalgumacoisa...sempreamesma,repetidaváriasvezes:
—ALua.ALua.ALua.ALua.Oqueseriaaquilo?Domaindatentouresistir, intrigado,ansioso.Masosoníferoeouísqueforam
maisfortesearrastaram-noparaumsonoprofundo,semluzesemcor.Eramtrêshoraseonzeminutosdamadrugadadedomingo,dia8dedezembro.
6.NOVAYORK,NOVAYORK
CincodiasdepoisdeterroubadomaisdetrêsmilhõesdedólaresdaMáfia,JackTwistfoivisitarumamulhermortaqueinsistiaemcontinuarrespirando.
Nodomingo,àtarde,estacionouseuautomóvelnagaragemsubterrâneadeumaclínicaparticularnoEastSideetomouoelevadorparasubiràrecepção,ondeseapresentouàportariaerecebeuumcrachádevisitante.
Ninguémdiria que estavanumhospital.Aportaria e a recepção eramdecoradas com luxo e bomgosto,nomesmoestiloarrefeçodaarquitetura.OsdoispequenosoriginaisdeErté,ossofásepoltronasestofadosasrevistasdispostassobreumamesabaixa,tudopareciasaídodeumcenáriodosanos20.
Excesso de luxo. Ninguém, ligava para os Erté. O hospital economizava emmil outros detalhes,porém jamais arriscaria comprometer sua imagem, porque precisava continuar atraindo clientesmilionáriosemanterestáveisoslucrosanuaisdecemporcento.Osquartosestavamsempreocupados:esquizofrênicoscatatôni-cosdemeia-idade,criançasautistas, jovensevelhoscomatosos, todoscomomesmoprognósticofechado.Erampacientesem
estadocrônico,defamíliasricasobastanteparagarantir-lhesomelhoratendimentopossível.Semprequepensavanaquelehospital,Jackficavaindignado:comoéquenãoexistianacidadeum
único bom hospital a preços razoáveis para doentes mentais ou portadores de lesãocerebral irreversível?Os impostos subiamde hora emhora e os serviços públicos deterioravam-se aritmoquaseidêntico.Eraamesmacoisaemtodososlugares...Aclassemédiaquesedanasse.
Senãofosseumladrãopróspero,habilidosoebem-sucedido,jamaispoderiapagaroqueosmédicoslhe cobravam pontualmente a cada fim de mês. Bendito talento! Grande e bendito talento para aapropriaçãoindébita.
* O crachá de visitante abriu-lhe caminho até o outro elevador que subia ao quarto andar, ondeficavam os quartos de paredes brancas e limpas, lâmpadas fluorescentes e cheiro dedesinfetantehospitalar.Nofimdocorredor,últimaportaàdireita,viviaamulhermortaqueinsistiaemcontinuarrespirando.Jackparounafrentedaporta,comamãonotrinco.Fechouosolhos,respiroufundoeentrou.
Era um quarto muito mais simples que o saguão da recepção, porém agradável. Parecia umapartamento de segunda categoria num hotel de luxo: pé-direito alto, lareira de pedra clara,carpete verde-musgo, cortinas claras, um sofá estampado em tons de verde e duas poltronas.A teoriadiziaqueospacientessentiam-semelhoremambientesmaisdomésticosemenosfriosquenosquartosdehospital tradicionais. Difícil acreditar que os pacientes notassem qualquer diferença, mas as visitasapreciavamoconfortodosestofados.
A cama hospitalar destoava pateticamente da decoração geral, apesar dos lençóis estampados emalegreediscretocolorido.Sobreacama,apaciente.
Jackaproximou-se,baixouagradee,curvando-se,beijouorostodaesposa.Elanãosemoveu.Jacktomou-lheamãoesegurou-aentreassuas.Imóvel,inerte,insensível,aquelamãoeramaciaequente.
—Jenny?Soueu.Vocêestábem?Quetal?Estábonita...bonitacomosempre.Naverdade,paraumamulherque,haviaoitoanos,estavaemcoma,nãodavaumpasso,nãosaírado
quarto,enãotomarasolnemrespiraraumátomodearlivre,Jennypareciamuitobem.NoentantosóJackpoderiadizersinceramentequeaachavabonita.ClaroqueJennyjánãoeraamesma,porémeradifícilacreditarquevivianamorandoamortedesdequaseumadécada.
Oscabelosperderamobrilho,mascontinuavamfartoscomoantes,tãocastanhoscomoquandoeleavirapelaprimeiravez,quatorzeanosatrás,vendendoperfumesnaseçãodeartigosmasculinosdeumaloja de departamentos. As enfermeiras encar-* regavam-se de lavá-los duas vezes por semana e deescová-los diariamente. Se quisesse, Jack poderia acariciar-lhe os cabelos, a nuca, o pescoço semperturbá-la,porquejánãohaviaoquepudesseperturbarJenny.Dequalquermodo,nãoatocou,porqueissooperturbava,emuito.
Jennynãotinharugasnatesta,nemjuntoaosolhos,semprefechados.Estavamagra,porémmenosdoque seria de esperar. Parecia não ter idade, como uma princesa de contos de fada, adormecida faziaséculosesperandoobeijoquepoderiadevolvê-laàvida.Apenasarespiraçãolentaecadenciada,quefaziaosseiossubiremedesceremsobacamisolaeoslençóisdobrados,indicaqueelaaindavivia.Umavezououtra,Jennyengoliaasaliva,movimentoinvoluntárioeinconscientequenadasignificava.
Pacientedelesãocerebralextensaeirreparável,jamaisvoltariaamover-se.Nãohaviaesperança.Jack sabia disso e estava conformado. As coisas seriam ainda piores se ela não pudesse receber oscuidadosmédicosdeumbomhospital—fisioterapia,exercíciosdiáriosquelhepermitiamconservarotônusmuscular.
Jackdeixou-seficar,comamãodaesposaentreassuas,contemplando-lheorosto.Haviaseteanosquepassavaduasnoitesporsemanaecincoouseishorastododomingoaoladodela.Asvezes,quandopodia,apareciatambémàtarde,duranteasemana,ejamaissecansavadeolhá-la.
Emdadoinstante,puxouumadaspoltronasparapertodacamaesentou-se,sempresegurandoamãodeJennyefitando-a.Entãocomeçouaconversarcomela.Contou-lhesobreofilmequevira,sobredoislivrosqueacabarade ler.Falou-lhedo tempo,do frioque fazia,dovento.Descreveu-lheemdetalhesduaslindasvitrinesdecoradasparaoNatalquehaviavistonocaminho.Jennynãosorriu,nãopiscou,nãomoveu um músculo. Permaneceu como estava havia oito anos, como continuaria até morrer: imóvel,inamovível.
ComoseriaavidadeJennyse,poracaso,algumasensibilidadeaindasobrevivesseemseucérebro
quasemorto?E se ela aindapudesseouvir ou entenderoque sepassava a suavolta?Oque sentiria,prisioneiradeumcorpoquenão respondia aordens, súplicas, pedidos?Como se sentiria, incapazdecomunicar-secomaspessoasqueacercavam,alheias,distantes,certasdequeelanadaviaousentia?OsmédicosdisseramaJackqueissoeraimpossível:Jennynãopodiaouvirnemver,exceto,talvez,imagensou fantasias incompreensíveis para nós e para ela, retalhos de idéias, qualquer coisa como rápidosinstantesdesensaçõesque,porvezes,brilhassementreoscircuitosrompidosdeseucérebro.Mas...eseestivessemenganados?
Nadúvida,Jackcontinuavafreqüentandoohospital,sentava-seaoseuladoefalava-lhecomoseelapudesseouvi-lo.Doladodefora,odiatornava-secadavezmaiscinzento.
As cinco e quinze da tarde, Jack levantou-se da poltrona, foi até o banheiro e lavou o rosto, queenxugoucomosolhosfitosnoespelho,tentandoadivinharoqueJennypoderiatervistodeatraentenele.Não era um homem bonito: tinha a testa larga demais e as orelhas enormes. Embora sua visão fosseperfeita,umdosolhos,ligeiramenteestrábico,escapavaparaoladoesquerdo.—Haviagentequenãoconseguiaencará-loaoconversarcomele,pois tentavasabercomqualdosolhos realmenteavia.Aorir,Jackpareciaumpalhaçodecircomambembe.Aofranzirassobrancelhas,tornava-seamedrontador.Dequalquermodo,Jennyoamara.Eporisso,acimadetodasasoutrascoisas,Jacktambém
aamaraapaixonadamente,Porissoelalhefaziatantafalta.Porissoepormiloutrosmotivos.Jack fechou os olhos e deu as costas ao espelho.Não conseguia imaginar que pudesse existir no
mundohomemquesesentissemaissódoqueele,naquelemomento.Sepudesseexistirsolidãomaiordoqueasua...queDeusoajudasseanuncadescobri-la.
Voltouaoquarto, aproximou-sedacamaedespediu-sedaesposa.Beijou-a, aspirouoperfumedeseuscabelosesaiu.Ascincoemeiaemponto,deixouohospital.
Narua,sentadoaovolantedocarro,olhavaemvolta.Pedestres,motoristas...gentecomoele.Não,nãoexatamentecomoele.Aqueleseramoshabitantesdooutroladodomundo,do“ladocerto”,osbons,osbemeducados,osjustos,quedesviariamosolhosoumudariamdecalçadasesoubessemqueeleviviade roubar, que era um ladrão profissional. Jamais aceitariam a idéia de que eram os verdadeirosculpadospeloscrimesquecometia,assimcomonãoaceitariamaverdademaissimples:Jackjamaiste-riasetornadocriminososeeles,osjustos,osbons,nãolhetivessemfeitooquefizeram...aeleeaJenny.
Jacksabiaqueaamarguranãoresolvianada,apenasofaziasentir-semaissó,distanciadodeseussemelhantes.Aamarguraeracorrosiva,masemmomentoscomoaquele,aprópriadorparecia-lhebem-vinda,poisdava-lheasensaçãodequecontinuavavivo.
Mais tarde,depoisde jantar sozinhonumrestaurantechinês, Jackvoltouaoespaçosoapartamentoonde morava, num dos prédios mais elegantes da Quinta Avenida, com vista para o Central Parque.Oficialmente,oapartamentoerapropriedadedeumagrandeempresacomsedeemLichtenstein,queocompraraepagaracomchequevisadocontraumbancosuíço;emsuacontaeramdebitadas,mensalmente,asdespesasdecondomínio.
JackTwistalimoravasobonomedePhilippeDelon.Opessoaldoprédioeospoucosvizinhoscomquemconversava sabiamapenasqueera filhodeuma rica família francesaedavamuito trabalhoaospais.Eraumaespéciedeovelhanegra,queafamília
decidiramandarparaosEstadosUnidossobopretextodequealguémprecisavasupervisionarosinvestimentos. Na verdade, dizia-se, ninguém o queria na França. O disfarce era perfeito, poisJackfalavafrancêsfluentementeeeracapazdeconversardurantehoraseminglês,comperfeitosotaqueestrangeiro,semcometerqualquerdeslizequeotornassesuspeito.Claroquenãoexistiafamíliafrancesae Jack era o único proprietário da empresa sediada emLichtenstein responsável pela conta no bancosuíço. Vivia das rendas que auferia investindo o que roubava. Não era, de modo algum, um ladrão
comum.Noapartamento,dirigiu-separaoarmáriodoquarto,entroueremoveuumadasdivisõesdofundo,
daliretirouduasmalas,quelevouparaasala,colocando-asaoladodesuapoltronafavorita,juntoàjanela.Entãofoiatéa
cozinhaeapanhouumagarrafadecervejanorefrigerador.Voltouàsala,sentou-see,naescuridão,ficouolhandoparaoparquecobertodeneve,vendoosarabescoscaprichososqueasluzesdesenhavamentreassombrasdasárvoresdesfolhadas.
Estavaapenasadiandoomomentodeabrirasmalas,esabiadisso.Afinal,comumsuspiro,acendeuoabajuraoladodapoltrona,puxouamalamenorparamaisperto,abriu-aecomeçouaexaminaroquecontinha.Eram jóias: colares,broches,pendants,brincosdediamantes; umapulseirade esmeraldas ediamantes; três braceletes de diamantes e safiras; anéis, broches,borrettes, pren-dedores de gravata,alfinetesdeouro.Frutodeumtrabalhoqueeleprópriohaviaexecutado,sozinho,seissemanasatrás.Deiníciopensaraemlevarmaisalguém;contudo,àmedidaqueosplanosavançaram,chegaraàconclusãode que não precisaria de ajuda e, como previra, o assalto correu sem surpresas. A únicasurpresaocorreradepois.
Normalmente, depois de concluir umassalto bemplanejado e rigorosamente executadode acordocomosplanos,Jackentravanumestadodeexaltação,quasedeeuforia.Paraele,nãosetratavaapenasderoubaralgunsincautos,porémdealgomais:cadaassaltobem-sucedidoeracomoumgolpenoqueixodoinimigo,
umalentaeinexorávelvingançacontraomundoquelheroubaraJennye,comela,oprópriosentidodavida.Atéosvinteeumanos,Jackderaaopaísomelhordesimesmo,eoquereceberaemtroca?Anosdeprisãonumchiqueirolatino-americano,àmercêdeumditadorassassino.EJenny...
Elefechouosolhos,respiroufundo.Mesmotantosanosdepois,aindalhedoíaalembrançadesuavolta,doreencontrocomJenny,doestadoemqueaencontrouquando,afinal,conseguiulocalizá-la.Não!Jáchegavadedar-seaopaís,àsociedade...Erahoradecomeçararecebere,searetribuiçãonãolhevinhanaturalmente,sabiaondeprocurá-la.Cadavezquevoltavaparacasacomosbolsoscheiosdejóiasoudedólares,sentia-seexaltado,eufórico,quasefeliz.Aidéiadequeestavaàmargemdalei,eacimadasregras,semprelhecausavaprazer.
Assim fora, invariavelmente, até o dia em que roubara aquelas jóias. Em casa, examinando aspedras,Jackpercebeuquenãosentianada:nemexcitação,nemeuforia,nemprazer...nada.Adescobertaassustou-oporque,dequalquermodo,oprazerperversodesentir-sevingadoaindasignificavaalgumacoisa,eraumúltimolaçoqueomantinhaligadoaomundo,aoshomenseàvida.
Sentado na poltrona, Jack virou a mala e espalhou as jóias sobre os joelhos, na esperança dereencontrarsuasantigasemoções.Separoualgumaspedras,aproximou-asdalâmpada.Emrigor,jamaissepermitiriadeixarnoapartamento,portantotempo,asprovasdoroubo.Mas,poroutrolado,dequelheserviriam aquelas jóias, se não lhe pudessem dar um pouco de alegria? Sobrancelhas franzidas, Jackvoltouarecolherasjóias,guardou-asnamalaefechou-a.
Namalamaior, estavamosdólaresdapartilhadoassaltoaoarmazémdaMáfia, cincodiasatrás.Conseguiramabrirapenasumdosdoiscofres,porémencontrarammaisdetrêsmilhõesdedólares,maisdeummilhãoparacadaum,emnotasdevinte,cin-qüentaecem.Jáerahoradecomeçaraconverterodinheiroemchequesquepudessemser remetidosparasuacontacorrentenaSuíça.Noentanto,estavaacontecendocomosdólaresomesmo
estranho fenômeno: Jack ainda não sentia prazer algum em tocá-los ou pensar neles. Os dólarestambémnãolhedavamaansiadasensaçãodetriunfoqueomantinhaàtonadavida.
Jackapanhouummaçodenotas,examinou-o,virou-odeumladoparaoutro,aproximou-odonariz.
O cheiro do dinheiro sempre lhe parecera excitante, mas aquele dinheiro parecia diferente, como osdiamantes:nãolhedizianada,apenasexalavaosuordosmuitosdedospelosquaispassara.Jacknãosesentiu vitorioso, nem mais esperto que os otários do mundo, nem mais forte que a lei, nem maisinteligentequeosratoshumanosquepovoavamasruasdo“ladocerto”davida,cabisbaixos,fazendooquelhesdiziamquefizessem.Sentiu-seoco.
Se aquilo tivesse acontecido depois do assalto à Máfia, talvez pudesse pensar que o assalto odeixaraindiferenteporqueroubarladrõesnãoeraamesmacoisaqueroubarosimbecisdo“ladocerto”.Mas... e os diamantes? Fora um assalto perfeito, à casa de um perfeito homem de negócios, legítimorepresentantedosratos.Porquenãopreenchiamseuvazio?
Um dos motivos que o levara a planejar novo golpe, logo depois do roubo dos diamantes foraexatamente esse: estava preocupado com o vazio que sentia no peito. Uma das regras que jamaisdesobedecia era a de observar uma folga de nomínimo algumsmeses entre um trabalho e outro.Noentanto,umasemanadepoisderoubarosdiamantes, jáestavaplanejandogolpeaoarmazémdaMáfia.Ora...eseoproblemafossebemmaissimples?Queimportânciapoderiamterdiamantesemilhõesdedólaresparaumhomemquejánãoprecisavadenada?Tinhadinheirosuficienteparavivercomtodooluxo até o fim da vida e manter Jenny até mesmo se ela lhe sobrevivesse, o que erapraticamente impossível. Talvez tivesse tentado enganar-se a si mesmo o tempo todo. Não buscavaemoçõesque lhedessema impressãodeestarvivo...Oquequeria,naverdade, eradinheiro,milhõesdedólares...Comojátinhaconseguindoacumularafortunacomquesempresonhara,odinheiroperderaacapacidadedeemocioná-lo.
Jackfranziuassobrancelhas.Erarazoável,masaltamenteimprovável.Conhecia-semuitobem.Sabiaexatamenteoquesentiaaoconcluirumtrabalho...Esabia-o,sobretudo,pelafaltaquelhefaziam,naquelemomento,asúltimasemoçõesqueaindaomantinhamvivo.
Alguma coisa estava acontecendo, umamudança, uma transformação, umvazio.Não tinha planos,nem desejo algum, nem horizonte à vista.Um calafrio percorreu-lhe a espinha.O que seria dele... seperdesseoprazerdesentir-sevingado?Comopoderiacontinuarvivendo?!
Comgestoslentos,pensativos,recolocouosmaçosdedinheironosacoondeosguardavaerepôsosaconamala.Entãoapagoualuzedeixou-seficarnoescuro,bebericandoacerveja,osolhosperdidosnanevedoparque.
Como se não bastasse omedode ter perdido o último laço que o aproximavados homens, aindahaviaopesadelo,sempreomesmo,repetindo-secommuitafreqüência,durantesemanas,desdealgumasnoitesantesdoroubodasjóias.Nosonho,eletentavaescapardeummotociclistadecapaceteescuro...Eraisso,pelomenoslheparecia,poisnãoselembravadequasenadaalémdocapacete:nemmoto,nemhomem, nem rosto... nada. Uma pessoa sem corpo e sem rosto perseguia-o a pé por salas ecorredores,longosesombrioscorredores.Asvezeselecorriaemcampoaberto,porumainfinitaestradadeserta que rasgava a paisagem, banhada pela luz esbranquiçada do luar. Com o sonho, noite apósnoite,omedoaumentava.Nasúltimasnoites,Jackdespertaraaosgritos,suandofrio.
A interpretação do sonho parecia óbvia: o homem do capacete era um policial; talvez a leicomeçasse a suspeitar dele, talvez Jack começasse a termedo de ser preso. Era estranho... Pormaisóbviaquelheparecesseaidéia,Jacknãoconseguiaconcentrar-senela.Osonhodava-lheoutrasensação.Ohomemdocapacetenãopareciaserdapolícia...não,não...Eraoutracoisa.Se,pelomenos,pudessetercertezadequenãovoltariaasonharcomaquelemalditocapacete...Odiajáhaviasidotãodifícil!Elevoltouaorefrigerador,apanhououtracervejaenovamentesentou-sejuntoàjanela,naescuridãodasala.
Era o dia 8 de dezembro, e JackTwist—ex-oficial doCorpo deBrigadas deElite doExércitonorte-americano,guerrilheirotreinadoemguerrasdequepoucoseouviufalar,salvadordemilharesde
vidasnoscharcosdaAméricaCentral,sobreviventedastorturasqueenlouqueceramseumelhoramigo,bem-sucedido ladrãoprofissional,homemdecoragemquasesobre-humana—tentavadescobrirse lhesobravaforçaparacontinuarvivendo.Sejánãoviasentidoemroubarparavingar-sedoquehaviamfeitoasuavida,precisavaacharoutrarazãoparaviver.Etinhaqueachá-lalogo.Precisavadescobriralgumaoutracoisa.Precisava...desesperadamente.
7.ELKOCOUNTY,NEVADA
ErnieBlockvoavapelaestrada,semverasplacasdelimitedevelocidade,desesperadoparachegarlogoaoMotelTranqüilidade.Nãoselembravadejamaistercorridotantoaovolantedeumcarro,anãosernaqueledomingo,noVietnã,quandoservianosetordeInteligênciadaMarinha.Dirigiaentãoumjipe,atravessandoterritórioaliado,e,derepente,semsabercomo,vira-seapanhadonofogocruzadodedoispelotões inimigos. As balas passavam zunindo junto à sua cabeça, os morteiros arrancavam lama daestrada,cadavezmaisperto.Quando,afinal,afastou-sedalinhadefogo,haviarecebidotrêsferimentosdeestilhaçosdegranadas,estavatemporariamentesurdoporcausadasexplosões,lutavaparamanterocontroledojipequeaindacorriamesmosemmaispneusnemlonasnasrodas,eimaginavaquejamaiscon-seguiriasentirtantomedo,nemquevivessemilanos.
Pelaestrada,devoltaaElko,oVietnãcomeçavaaparecer-lhebrincadeiradecriança.Começavaaescurecer.ErnietinhaidoaElkopoucodepoisdoalmoço,afimdecomprarmantimentosparaomotel;levaraocaminhãoedeixaraFayeencarregadade
atenderàrecepção.Tinhatempodesobraparairevoltarantesdocrepúsculo,masomalditopneuinventara de furar, e para trocá-lo ele perdera minutos preciosos. E ainda perdera mais temponaborracharia,emElko,porquenãoqueriaretomaraestradasemestepe.Somandoumacoisaeoutra,estavamaisdeduashorasatrasado,eosoljáseaproximavadohorizonteparaosladosdeGreatBasin.
Pisando fundo no acelerador, Ernie ultrapassou todos os outros veículos que transitavam pelarodovia.Deummodooudeoutro,sabiaquejamaisconseguiriachegarvivoemcasaseaescuridãoosurpreendessenaestrada.Pelamanhãalguémencontrariaocadáverdeumhomemagarradoaovolantedeum caminhão, ou, se sobrevivesse, achariam os restos do que havia sido, reduzido a trapos, loucofurioso,gemendoemordendo-sedehorror,depoisdeterpassadohorasmergulhadonacontemplaçãodapaisagemnegra,emcompletaescuridão.
Desde o dia deAçãodeGraças, fazia duas semanas emeia... e Faye ainda não descobrira nada.Depois que ela voltou de Wis-consin, Ernie não conseguia dormir sem deixar acesa a lâmpada decabeceira, à qual se acostumara durante os dias de solidão. Pela manhã, lavava os olhos com águaboricadaougastavavidrosevidrosdecolírioparaencobrirossinaisdanoitemaldormida.Porsorte,Fayenãooconvidaraparasairànoite,nemfalaraemiraocinemaemElko.Porduasvezestiveraqueandardoescritórioatéorestaurante,jánoitefechada.Eramapenasalgunspassosaoladodaparededomotel,pelocaminhomuitobemiluminado,masErniechegaraapensarquenãoconseguiria,equeFayeacabaria descobrindo seu segredo. Sentira-se frágil como nunca, vulnerável, indefeso... e quaseenlouquecidodemedo.Masconseguirairevoltar,eFayenãosuspeitaradenada.
NaMarinha, emesmo depois da baixa, Ernie jamais deixara de corresponder ao que as pessoasesperavam...NãoerajustoqueFaye,justamenteela,fosseaprimeiraadecepcionar-secomele.Deus!Asmãosagarradasnovolantedocaminhão,osolhosfitandoanoitequeseaproximava,aindaencobertapelosúltimos
tons alaranjados do poente, Ernie Block franziu as sobrancelhas. Começava a pensar numaexplicaçãoqueatéentãonãolheocorrera:senilidade.Podiaser...senilidadeprecoce.Tinhaapenascin-qüentaedoisanosmasqueoutraexplicaçãopoderiahaver?Eraterrível,porémmenosassustadordoquenãoencontrarexplicaçãonenhuma.
Entender era fácil. Aceitar é que era difícil. Faye dependia dele! Como poderia permitir que ocarregasse,comoumfardo,pelorestodeseusdias...Umvelhodoente!NenhumdosBlockjamaisdeixara
a família ao desamparo! Nenhum dos machos Block poderia permitir que sua mulher assumisse asresponsabilidadeseosencargosdavida.Não!Impossível.Impensável!
Aestradacontornavaumapequenaelevaçãodoterrenoantesdechegaràrodovia.Poucomaisdeumquilômetro adiante estava o motel, única construção à vista na paisagem deserta. Faye acendera oluminoso de neon, que aparecia, ao longe, contra o céu arroxeado. Para Ernie, foi como a visão doparaíso.
Em algunsminutos a noite estaria chegando. Ernie foi tirando o pé do acelerador, commedo deatropelaralguémeserobrigadoapararantesdechegaremcasa.Aagulhadovelocímetrodescia:cem,noventa,setentaecinco,cinqüenta...
Já estavaquasenaentradadomotelquandoviroua cabeçaparao sul,para longedaestrada.Derepente,sempoderentenderoquevia,sentiuumarrepionaespinha.Haviaalgumacoisanapaisagem...alguma coisa que, no lusgo-fusco do poente, delineava-se em determinado ponto, a menos de umquilômetro a sua frente. Uma voz interior dizia-lhe que ali estava a explicação de todos os seustormentos.
Mas...oquehaviacomaquelelugar,aquelelugaremespecial?OqueotornavadiferentedorestodapaisagemdosmilharesemilharesdequilômetrosquadradosqueErnieconheciatãobemcomoochãodesuacasa,quejáviratantasvezes?!
Nabaixadadoterrenoquaseemfrenteaomotel,noaclivesuave,umpoucoantes,noscontornosdaterra,nobarrancodoar-roioquecorriasilencioso,nosarbustos,naspedrasroladascomo
poracasoeespalhadasportodososlados...haviaalgumacoisaquepareciaquererfalar-lhe.Algumacoisamisteriosaqueesperava,exigindo investigação!Eracomoseaprópria terra lhegritasse:“Aqui,Ernie! E aqui que você encontrará algumas das respostas de que precisa... Aqui encontrará parte daexplicaçãodeseusmedosnoturnos.Aqui...”
Eraridículoeespantoso,masErnieviu-seestacionandoocaminhãoamenosdequinhentosmetrosdecasa.Queriairatélá!Queriachegaraopontoqueatraíasuaatenção!Sentiu-secomoumiluminado,um escolhido dos deuses, em plena e gloriosa epi-fania, parado diante das portas de uma revelaçãomonumental,espantosa.
Saltoudocaminhãoedispôs-seaatravessarapistaparachegaraumaelevaçãodoterreno,dooutrolado,deondepoderiavermelhorafatiadeterraqueohipnotizava.Precisouesperarquepassassemduascarretasantesdeatravessaraestrada.Ocoraçãobatia-lheforte,eErnieesqueceucompletamentequeanoitejálhechegavaaoscalcanhares.
Parounoacostamentoeesperou,indiferenteaofrioeaoventogeladoquesopravasemparar.Aproximava-se o momento... Alguma coisa terrivelmente importante estava para acontecer... De
repente, foi como se suas sensaçõesgirassemem redemoinho sobreumeixo invisível emudassemdedireção:não!Algumacoisa jáacontecera... exatamente ali, naquele local!Não conseguia pensar, nemlembrar,nementender,masnãoduvidava:omedodoescurocomeçaraali,emalgummomentodealgumtempo...Erniedescobriuquesabiadetudo...porémjamaisconseguirialembrar-se.Amemóriaotraíaeotrairiasempre!
Loucura!Eraimpossível...Qualquerfatoquetivesseocorridoaliefossesuficientementeimportanteparadesencadear tantosefeitosemseucomportamento teria sidopresenciado tambémporFaye.Ernienãoeraesquecido,distraído,ouidiota...Nãoerahomemdereprimirmemóriasperturbadoras...Lutaranaguerra,
enfrentarainimigos,encararaaprópriamorte,ejamaisseabalaracomnenhumdoshorroresdequeforatestemunha.
Aindaassim,osuorgeladocontinuavaacolar-lheacamisaàscostas.Bemali,àfrentedesuacasa,à
vista de todos, alguma coisa acontecera com ele, um relâmpago, uma fagulha de realidade que seuconscientenão conseguiu assimilar e sepultoupara semprenas sombrasdo esquecimento.De repente,sem razão aparente, ele começava a lembrar-se... como se uma picada de agulha, durante a noite,incompreensívelerepentina,ofizesseacordardeumpesadelo.
Cabeça erguida, pés separados e plantados no chão com firmeza, peito aberto e forte, ombrospoderosos,pareciadesafiarohorizonte.Queriaouviroqueaquelapaisagemtivesseparadizer-lhe,pormaisassustador,terrível,monstruosoquefosse.Querialembrar-se!Seconseguisse,talvezpudesseviverde novo como antes, comoumhomem!No entanto, assim como se abrira por um instante, amemóriafechou-senovamente.Apaisagemvoltouaseramesmadetodasastardes,semsegredos,semmistérios,semvestígiosdeacontecimentosinsólitos.Erniesentiu-semurcharcomoumbalãofurado,semtremores,semsuorfrio.Nopeito,ocoraçãoretomouoritmonormaletranqüilodetodososdias.
Erniepiscou, respirou fundoeolhouem torno sementenderoque fazianoacostamento, longedocaminhão.PediuaDeusqueFayenãoovissedajaneladomotel.Se,poracaso,elaseaproximassedaportaeolhasseparaaestrada,certamenteveriaaluzamareladadopisca-piscadocaminhão.Eraaúnicaluz próxima, uma única pequena luz brilhando na escuridão da noite que já envolvia tudo.Apenas nohorizonte,longe,aindahaviaumanesgadesolamarelo-arroxeado.
Anoite!Foicomoummurronopeito.Aexaltaçãodosmomentosemquequaseselembraratinham-nofeitoesqueceromedodaescuridão.Semaexaltaçãoparaprotegê-lo,estavasó,àmercêdanoite,emplena estrada. Gritou e disparou a correr. Ouviu o ranger dos freios de um caminhão que quase oatropelou,ouviuogemidogravedabuzinadeumacarretaquedesvioudocami-
nhao, e continuou correndo, alucinado. A escuridão parecia agigantar-se a seu redor, quasealcançando-o.Eleparouuminstantejuntoàportadocaminhão,osolhosfechados,anítidaimpressãodequeanoiteseinstalaranacabinedomotorista.Bastariaabriraportaparafazê-laescaparparasempre,viscosa,densa...
Numúltimoedesesperadogesto,comoseescolhesseapressaramortequeoesperava,abriuaportadocaminhãoeouviu-abater contra a carroceria.Sempensar, saltouparadentroda cabine.Nada...Anoite não chegara ali. Então era preciso fechar-se no caminhão e esperar. Olhos fechados, os dentesbatendodemedo,eletrancouaportaefechouovidro.Aidéiadequeestavaapoucosmetrosdecasadeu-lheforçasparareagir.Erniegirouachavenaigniçãoeviuosfaróisacenderem-seasuafrente...Eraluz!Sabiaquenãotinhacondiçõesdevoltaràrodoviaeaproximar-sedomotelpelaentradaprincipal;noentanto,talvezconseguissecontrolar-sepelomenosatéchegaraoportãodesaídadoestacionamento.Foio que fez. Quase sem sentir,manobrou o caminhão e estacionou-o adiante da janela da recepção. LáestavaFaye.Faltavaapenasatravessaropátiodoestacionamento.
Aovê-loaproximar-secorrendo,cabisbaixo,Fayeabriuaporta.—Jácomeçavaamepreocupar—disse,sorrindo.—Opneufurou...Erniecaminhouatéobalcão,semlevantaracabeça,fingindoquetentavacorrerozíperdajaqueta.
Precisoudealgunsinstantesparasentir-secomcoragemdeolharparaFayeesorrir.Masestavaemcasa,aoladodaesposa,eissoodevolviaaumestadobempróximodanormalidade,osuficiente,esperava,paraqueelanãodesconfiassedenada.
— Fiquei com saudade...— declarou Faye, de costas para o balcão, arranjando as pregas dacortina.
—Parecequesaíhámeses...—E...Achoqueestouapaixonadaporvocê.Fiqueicomsaudade,comosenãoovissehámuito
tempo.Nãopossoviversemvocê.
Faye aproximou-se do balcão, encostou-se ao lado do marido e beijou-o. Embora estivessemcasadoshaviamuito tempo, seusbeijos eram sempre sinceros e cheiosde calor.Estavam juntos faziatrintaeumanos,masosbeijosdeFayeaindatinhamopoderderejuvenescê-lo.
—Comprouosmantimentos?Eomaterialelétrico?Aslâmpadaseastomadasqueencomendei?—Elaseafastou.—Descarregouocaminhão?
—Não...—Ernieolhousobressaltadoparaaportaporondehaviaentrado.—Estoucansado...Nãoqueromaistrabalharhoje.
—Massãosóumaslâmpadas...Duasoutrêscaixasdelataria...—Sim,eusei...—Elesorriuedeu-lheascostas.—Juroqueamanhãdemanhãcarregotodasas
latasquevocêquiser.As caixas estão segurasnocaminhão...Mas...—Olhouem torno,perplexo.—Vocêjápreparouarecepção!AdecoraçãodeNatal...Estálinda!
—Nãodigaquevocêpercebeu!—Fayeriualto.Festõesverdes,fitasvermelhasedouradas,pinhasebolascoloridasenfeitavamaportaeaparede
sobreosofá.Aoladodoscartões-postais,umPapaiNoelemtamanhonaturalcurvava-sedandoboas-vindasaquementrasse.Sobreobalcão,renascoloridaspuxavamumpequenotrenódelouça,carregadodepresentes.
—Vocêsubiunaescadaparapenduraressasbolas?—Ernieergueuosolhosparaoteto.—Naescadapequena.—Jálhedissequeéperigososubirnaescadaquandonãoestouemcasa.Esevocêcaísse?—Poistambémjálhedissequenãosoufeitadeporcelana,querido.—Fayeolhouparaomarido.
—Oproblemaéquevocês,velhoslobos-do-mar,passamavidaquerendosefazerdefortes.Ossuper-homens...
—Emesmo?Alguémbateucomosnósdosdedosnaportadafrenteeentrou.Eraumcaminhoneiroàprocurade
umquartoparapassaranoite.OcoraçãodeErniedisparou,eelesóvoltouasentir-seseguroquandoviuohomemfecharaportanovamente.Tratava-
sedeumsujeitoaltoemagro,dechapéudecowboy,jaquetaecalçadebrim.Fayesorriuparaele,elogiou o chapéu, como era seu costume. Ela sempre achava alguma coisa agradável para dizer aqualquerhóspedequechegasseeconseguiafazercomquetodossesentissemàvontade,emsegurança.
Erniedeixou-apreencherafichadocaminhoneiroefoipendurarocasaconumdosganchosjuntoàporta. Depois dirigiu-se à mesa onde Faye deixara a correspondência do dia: contas, como sempre,materialdepublicidade,umacartapedindodonativosparaumaassociaçãodecaridade,ochequedesuapensão,oprimeirocartãodeNataldoano,eumenvelopebranco,comum,semendereçodoremetente.Ernie abriu-o: continha apenas uma foto colorida, tirada em frente ao motel, junto à porta doquartonúmeronove.Umhomem,umamulhereumameninasorriamparaacâmara.Ohomem,compoucomenosdetrintaanos,eramorenoesimpático.Amulher,tambémmorena,pareciaumpoucomaisjovem.Eamenina,entrecincoeseisanos,eraexcepcionalmentebonita.Ajulgarpelosshortsecamisetasqueusavamepelosolquebrilhavanaparededomotel,deviamterposadoparaofotógrafonoaugedoverão.
Intrigado, Ernie examinou o verso da foto, à procura de uma dedicatória ou de qualqueridentificação.Nada.Oenvelopetambémnãolheserviuparasaberdequemsetratava.Pelocarimbodocorreio,concluiuqueafotografiahaviasidopostadaemElko,nosábadoanterior,dia7dedezembro.
Voltouaolharparaaspessoasretratadas,tentandolembrarseasconhecia.Derepente,sentiuanucacrispar-se,ocoraçãodisparar...exatamentecomonomomentoemquedescobriraaquelapequenaporçãodeterrajuntoàrodovia.Assustado,deixouafotocairsobreamesaevirouorosto.
Juntoaobalcão,Fayecontinuavaaconversarcomocaminhoneirodechapéudecowboy.Ernieaviu
virar-separaapanharumadaschavespenduradasnopainelenãodesviouosolhos.Fayetinhaopoderdeacalmá-lo,mesmodelonge,mesmosemperceberqueeleaolhava.Jáeralindaquandoaconhecerae,naquelemo-
mento, tantos anos passados, parecia-lhe ainda mais bonita. Talvez os primeiros fios brancoscomeçassemaapontarentreseuscabelosloirosmasseriadifícilpercebê-los.Osolhosazuisebrilhantesda adolescente pela qual Ernie se apaixonara continuavam osmesmos, talvezmais luminosos e, comcerteza, mais maduros e sábios. Faye tinha o rosto aberto e franco das mulheres de Iowa, às vezesexplosivas,massempreconfiáveis.
Quando,afinal,ocaminhoneiroseafastou,levandoachave,Erniejásesentiamaiscalmo.Levantou-se,apanhouafotografiaelevou-aatéaobalcão.
—Sabeoqueéisso?—perguntou.—Umafamíliaemfrenteaoquartonúmeronove.—Fayebaixouosolhosparaafoto.—Devem
terpassadoporaqui.—Franziuassobrancelhas,examinandoos trêsrostoscommaisatenção.—E...masnãomelembrodeles.Nuncaviessafamília...Egentedesconhecida.
—Eporquenosmandariamumafoto?Semnome,endereço,nada?—Ora...Comcertezaimaginaramquenoslembraríamosdeles.— Mas para isso seria necessário que tivessem ficado vários dias aqui— Ernie balançou a
cabeça, cada vez mais intrigado.— Que tivéssemos conversado e nos conhecido um pouco melhor,pelomenos. Também tenho certeza de que jamais os vi.—Gostava de crianças e jamais esqueceriaaquelameninasealgumdiaativessevisto.—Agarotinhaélinda.
—Maisdifícilseriavocêesqueceramãedagarotinha—Fayecomentou,rindo.—Pareceartistadecinema.
—CarimbodeElko...—Erniemalaouviu.—Porque,diabos,alguémsairiadeElkoparavirdormiraquinomotel?
— Talvez nãomorem emElko. Talvez tenham vindo nas férias do último verão. Tiraram essafotografia, voltaram para casa... No sábado, por acaso, passaram por Elko, lembraram-se de nós emandaramafoto.
—Semnomenemendereço?Semumcartão?!—E...issoéestranho...—Essasfotosjásaemreveladasdacâmara—elepensouemvozalta.—Porquenãoadeixaram
conoscoantesdepartir?Aporta,abriu-seoutravez,eentrouumrapazdecabeloscresposebigodefarto,esfregandoasmãos
geladas:—Temvagas?—perguntou,aproximando-sedobalcão.Erniedeixou-oentregueaFayeevoltou
parajuntodamesadecarvalho.Tinha a intenção de reunir toda a correspondência e subir,mas deixou-se ficar, imóvel,
pensativo,olhosfixosnostrêsrostosdafotografia.Eraterça-feira,10dedezembro,ànoite.8.CHICAGO,ILLINOISQuando Brendan Cronin se apresentou como atendente no Hospital Infantil São José, o dr. Jim
McMurtry era o único a conhecer sua verdadeira identidade.O padreWycazik fizera-o prometer queguardariasegredoe,também,quecuidariadedarmuitotrabalhoaBrendan.Quantomaisdesagradáveisas tarefas,melhor, recomendaraopároco.Assim,noprimeirodiade trabalho,coubeaBrendan trocarcamasdedoentesgraves,quedeixavamoslençóisempapadosdeurinaefezes;limparurinóiseprivadas;
auxiliarosfisioterapeutasnosexercíciospassivosaplicadosacriançascomatosas;darcomidanabocadeummeninodeoitoanos,paralítico;empurrarcadeirasderodas;limparovômitoelavarasroupasdedoispacientesdecâncer,constantementenauseadosporefeitodaquimioterapia.Ninguémsepreocupouem agradecer-lhe os serviços nem o chamou de padre Cronin. Enfermeiras, médicos, assistentes,pacientesefaxineiroschamavam-nosimplesmen-tesdeBrendanenãolhepermitiamesquecer,nemporuminstante,afarsaemquesetransformarasuavida.
Arrasado pelo sofrimento daquelas crianças, ao final do primeiro dia Brendan escondeu-se nobanheiromasculino,trancou-sepordentroeláficou,chorando.Foraobrigadoamassagearemovimentararticulaçõesdepacientesdeartritereumatóide,cujasjun-
tasinchadasedoloridasmalsuportavamocontatodagazeembebidaemanestésico.Emraroscasosoanestésico localconseguiaaliviaraardênciadapele,sobaqualosossospareciampartir-seacadaexercício.O calvário das pobres crianças era quase insuportável.E havia ainda as que apresentavammúsculos atrofiados, feridas purulentas e fétidas resultantes de queimaduras,mutilações causadas porespancamentoemaus-tratos.Brendanchoravaportodasassuascrianças.
Pormais que se esforçasse, não conseguia entenderoqueopadreWycazikpretendia comaquelaterapiapelodesespero.Seelejánãoeraumhomemdefé,porqueoobrigavaaconviverdepertocomoslimitesdosofrimentohumano?SeexistiaumDeusdemisericórdiaeamor,seJesusrealmentevieraaomundoparanossalvar,porqueosinocentescontinuavamasofrer,morrendodevagar,umpoucopordia?Ah, sim... Brendan conhecia de cor os argumentos dos doutores da Igreja: a humanidade estava àmercêdadoredosofrimentoporquese separoudeDeus,porqueoesqueceu,porque ignorouagraçadivina.Masdequevaliamosargumentosteológicosfrenteaosgemidosdeumacriançadilaceradapelador?!
No segundo dia de trabalho, o pessoalmédico ainda o chamava de Brendan,mas as crianças jáhaviam adotado o apelido de “Bolota”, que ele mesmo sugerira aos pacientes daenfermaria,interrompendoaleituradeumalongahistória.AscriançasadoraramahistóriaqueBrendanleu,porémgostarammuitomaisdasoutrasqueeleinventouaosabordafantasia,embaladopelosrisosque arrancava de alguns, pelos simples sorrisos de outros, pelo silêncio pacificado de tantos. Paraalgumasdaquelascrianças,osilêncioerasinaldemáximafelicidade,poisindicavaque,pelomenos,nãoouviamosprópriosgemidos.Ao términodosegundodia,eleaindachorou, trancadonobanheiro,masapenasporalgunsminutos.
Noterceirodia,oapelidogeneralizou-se.Médicos,enfermeiras,atendentes,todosesqueceram-sedeBrendanparasempre:nascia“Bolota”,oamigodascrianças.Senãoconseguissereencontrar
a fé, Brendan pelomenos já tinha como ganhar a vida. Poderia empregar-se como atendente emhospitaisinfantis.Alémdefazertudooquelhecabia,aindaencontravatempoparadistrairospacientescomsuashistóriasecaretasengraçadas.Peloscorredores,ouviam-se,a todoinstante,asvozesagudasdas crianças enfermas, chamando-o pelo velho apelido. EBrendan sentia-se reconciliado, senão comDeus,pelomenoscomavida.Jánãochoravanobanheirodoshomens.Asvezes,quandoalembrançadealgumdeseuspequenosamigoslhedoíademais,choravaànoite,noquartodehotelondedormiadesdequedeixaraacasaparoquial.
Na quarta-feira à tarde, exatamente uma semana depois de ter sido admitido como atendente nohospital, Brendan afinal entendeu o que havia por trás dos planos do padreWycazik. Foi como umailuminação— não divina, mas plenamente racional. Uma descoberta súbita, repentina, que o colheuenquantopenteavaumadascrianças.
Eraumameninadedezanos,Emmeline,pacientederaraegravíssimaafecçãoóssea.Emmy,comotodosachamavam,orgulhava-semuito,ecomrazão,deseuslindoscabelosnegros,fartosebrilhantes;
semprequepodia,escovava-ossozinha,mas,àsvezes,asarticulaçõesdasmãosedosbraçosdoíam-lhetanto que elamal conseguia segurar a escova.Na quarta-feira,Brendan acomodou-a numa cadeira derodaselevouparaasaladeraiosX,ondeosmédicosregularmentefaziamoacompanhamentodoefeitodas drogas que amenina estava tomando.Uma hora depois, ele a reconduziu ao quarto e começou aescovar-lhe os cabelos. Emmy olhava pela janela e, de repente, apontando para fora com o dedi-nhodeformado,perguntou:
—Estávendoaquelamanchadeneve?Brendanolhounadireção indicada,masnãoviunadaalémdeumamanchaclara sobreocimento
cinzentodopátiointernodohospital.— Pareceumnavio—explicouela.—Umlindonavioantigo,comtrêsvelascheiasdevento,
voandoporcimadasondas.Deinício,Brendannãoconseguiuvernemnavionemvelascheias de vento,mas, aos poucos, insistindo, percebeu que, de fato, amancha de neve lembrava
vagamenteafiguraqueameninacontinuavaadescrevercomdetalhescadavezmaisricos.— Evejasóosenfeitesna janela—disseela,depoisdeesgotaradescriçãodonavio.—Até
parecequeavidraçavirouárvoredeNatal!Tudo que Brendan distinguia na superfície do vidro eram gotas de água congeladas; no entanto,
compreendia que amenina as transformasse nos enfeites coloridos de uma fantástica árvore deNatal.Presanaquelehospital,deondetalveznuncamaissaíssecomvida,elaprecisavaimaginarparasimesmaummundorçielhor.
— Deus gosta do inverno e da primavera— continuou Emmy.—As estações são diferentesporqueElenãoqueriaqueagenteenjoassedevertudo,sempreigual,sempreamesmacoisa...AirmãKatherinedisseisso,eagoraestoudescobrindoqueéverdade.Quandoosolbateunogelo,alidoladodefora,minhacamavirouumarco-írisdeverdade.E tãobonito,nãoé?Anevepareceumcasacodepele,todobranco,enfeitandoomundo...Eagente,quandoolha,ficaassim,debocaaberta...Porissoéquenãoexistemflocosdeneve iguais...ecadaumémaisbonitodoqueooutro...EparaagentenãoesquecerqueDeusfezparanósummundomuitobonito.
Apesardadoençaqueadeformava,EmmycontinuavaaacreditaremDeus,nabondadedivina,naperfeiçãodomundoqueElecriara.Nãoera,aliás,aúnicacriançadohospitalquemanifestavatamanhafé.MuitosoutrospacientescontinuavamavivernacertezadequeumPaigenerosoebomosguiavapelavida,eessepensamentodava-lhescoragem.BrendanquaseadivinhavaoquelhediriaopadreWycazik:“Se essas pobres crianças sofrem tanto e nem assim perdem a fé, que desculpa miserável você estátentandoencontrarparaoquelheaconteceu?Epossívelque,emsuainocênciaepureza,essascriançassaibammuitomaissobreDeusdoquevocê,comseuslongosanosdeestudoemRoma...Talvezsaibamalgoquevocêesqueceu...EtalvezDeusesteja
lhemandandoumrecadoatravésdelas.Oquevocêacha?Pelomenosachapossível?”Era uma lição, sim, clara, emocionante, mais ainda insuficiente para restaurar a fé em Brendan
Cronin. O que o comovia era a serena coragem com que as crianças encaravam o sofrimento.A possibilidade de existir umDeus capaz de dar lições aos homens, lançandomão de caminhos tãotortuosos,nãopareciaseropontocentraldoproblema.
PacientementeBrendancontinuouaescovaroscabelosdeEmmy;quandoterminou,tirouameninadacadeira de rodas e colocou-a na cama. Enquanto puxava os cobertores e cobria as tristes pernasesqueléticasdaenferma,sentiucrescerdentrodesinovaondadefúriaerevolta,amesmafúriaqueoinvadira durante amissa na Igreja de Santa Bernardette, dois domingos atrás. Se encontrasse por alialgumcálicesagradoouumabandejarepletadehóstiasconsagradas,certamenteosjogarianochão.
Amenina gemeu, e Brendan imaginou que talvez ela adivinhasse o que lhe passava pela cabeça.Emmy,porém,arregalouosolhos:
—Oqueaconteceu,“Bolota”?Vocêsemachucou?—Como...?—Vocêqueimouasmãos?Sementender,BrendanbaixouosolhosparaasmãoseviuamesmacoisaqueEmmytinhavisto:no
centrodecadapalmahaviaumamarcacircular,comoseapeleestivessequeimadaeinchada.Umanelvermelho de quase cinco centímetros de diâmetro, muito nítido, com bordas claramente delineadas.Pareciaqueosanéisforamimpressosnapele,mas,aotocá-loscomapontadosdedos,Brendansentiuqueasmarcastinhamrelevo.
—Eestranho—murmurou.Omédicoqueestavadeplantãonopronto-socorrodohospitaleraodr.StanHeetonque,naquele
instante,examinavaatentamenteasmarcasdasmãosdeBrendan.—Sentedor?—perguntou.—Não.—Coceira?Sensaçãodeardor?—Nada.—Formigamento,talvez?Tambémnão?Játevequalquercoisaparecida?Nainfância?—Nãoqueeusaiba.—Algumoutrotipodemanifestaçãoalérgica?Não...Aumexamesuperficialpareceumamarcade
queimaduramuito leve,masvocê lembrariase,poracaso, tivesseencostadoasmãosemalgumobjetoquenteobastanteparaqueimá-las.Achoquepodemosexcluirahipótesedequeimadura.—Omédicofezumabrevepausaantesdeperguntar:—Vocêdissequelevouagarotaàsaladeradiologia?
—Sim,masnemchegueiaentrarnasaladeexames.— Não há o menor indício de que isso seja resultado de queimadura por radiação. O mais
prováveléquesejaumaderma-tose, talvezuma infecçãopor fungos,emboraossintomasclínicosnãoconfirmemessediagnóstico.Nãohácoceira,nemformigamento.Alémdissoosanéissãomuitonítidos,oqueraramenteacontecenasinfecçõesporMicrosporumouTrichophyton.
—Eentão?—Brendanrespiroufundo.—Oquepodeser?Omédicohesitouporuminstanteerespondeu,levantandoosombros:—Nadasério...Provavelmenteumareaçãoalérgica.Seasmarcaspersistirem,vocêdeveráfazer
algunstestesparaidentificaroagentealergênico.Odr.Heetonafastou-sedamesadeexamesedirigiu-seaumapequenaescrivaninhaparapreenchero
formulário de receitas. Brendan ficou em silêncio examinando as estranhasmarcas; depois cruzou osbraçoseescondeuasmãos.Semlevantarosolhos,aindaescrevendo,omédicocomentou:
— Vamoscomeçarcomumtratamentosimples,àbasedecor-tisona.Seemdoisoutrêsdiasasmarcasnãodesaparecerem,volteaoconsultório.—Estendeu-lheareceitajápronta.
—Háalgumriscodecontágio?—perguntouBrendan,apanhandoopapel.—Osenhorsabequetrabalhocomcriançasetalvez...
—Não,não!Nãosepreocupe.Nãoháomenorriscodecontágio.Agora,porfavor,deixe-medarmaisumaespiada.
Opadremostrou-lheaspalmasdasmãoseviuodr.Heetonarregalarosolhos:—Mas...Quediaboéisso?!Osanéishaviamsumido.
Namesma noite, no quarto de hotel, Brendan voltou amergulhar no sonho que contara ao padreWycazikeque faziaparteda rotinadesuavida.Viu-sedeitadoemalgumlugardesconhecido,comosbraçoseospésamarradosàslateraisdacama.Umapesadanévoaenvolviatudo.Dedentrodessanévoaapareciamasmãosqueiamtocá-lo.Mãosenluvadas.Asmesmasluvaspretasebrilhantes.
Eledespertouenroladonoslençóis,encharcadodesuor.Sentou-se,acendeualâmpadadecabeceira,recostou-se nos travesseiros e esperou que as imagens do pesadelo se esvaíssem.De olhos fechados,passouamãopelatestaeestremeceu.Commedodoquepoderiaver,ergueuaspalmasdasmãosatéosolhoseaproximou-sedalâmpada.Osdoisanéisdepelevermelhaeinflamadaláestavam,nítidoscomonomomento em que haviam aparecido, à tarde.Aos poucos, porém, enquantoBrendan os examinava,foramdesaparecendo,atésumirem.
Eraquinta-feira,dia12dedezembro.
9.LAGUNABEACH,CALIFÓRNIA
Namanhãdequinta-feira,DomCorvaisisacordounacama,certodequepassaraumanoitenormal.Entretanto, ao sentar-se na frente do computador para começar a trabalhar, descobriu que se enganaramais uma vez. Numa das primeiras crises, quando se sentara àmáquina em transe de sonambulismo,escreveraasmesmastrêspalavras,repetidasàexaustão:“Estoucommedo.Estoucommedo.Estoucommedo”.Agoralianovídeo:“ALua.ALua.ALua.ALua”.
Centenasdevezes,sempreasmesmasquatroletras:“ALua”.Amesmacoisaquerepetira,baixinho,nodomingodemadrugada,antesdeadormecer.Domficouparalisado,deolhosfixosnomonitor,cadavezmaisassustado;nãosabiaoquepoderiahaverdetãoespecialem“ALua”.
Atéentão,otratamentododr.Cobletzpareciaestardandoresultado.Faziamaisdeumasemanaquenãotinhacrisesdeso-nambulismo.Aúnicaalteraçãonoquadroforaopesadelodesábadoànoite,emque alguém tentava enfiá-lo numa pia de banheiro. O próprio dr. Cobletz, que Dom haviaprocurado,mostrou-seentusiasmadocomseusprogressos.
—Vamoscontinuarcomessaterapêutica—disse-lheomédico.—Vourenovarasreceitas,maséimportantequevocênãoseexcedanasdosesdecalmante.Tomeumcomprimidopordia,nomáximodoisseficarmuitoagitado.Agora,quantoaosonífero,nãopassedeumacápsula,ànoite.
—Nuncatomeimaisdeuma—Dommentiu.— Ótimo.Essas drogas criam dependência, e você poderá, apenas, trocar de doença.Mas, se
seguirminhasinstruções,nãotenhodúvidasdequeestarácuradoatéaprimeirasemanadejaneiro.Domtambémacreditavaqueestivessemelhorando;poressarazãoetambámparaqueodr.Cobletz
não alterasse o tratamento, resolveu não confessar que, às vezes, tomava mais de quatro doses decalmanteetrêsdesonífero,quasesempreacompanhadasdecervejaduranteodia,edeuísqueànoite.Aindaassim, tinhacertezadeque,maisdiamenosdia,superariaoproblema,voltariaacriarcoragemparadeitar-sesemmedodospesadeloseacordariaempaz,emsuaprópriacama.GraçasaDeus!Claroqueotratamentoestavadandocerto!Pelomenosatéaquelemomento.“ALua”.
Frustradoefurioso,Domfezodisquetevoltaraocomeçoeapagouaslinhasqueescreveraduranteanoite.Erammaisdecem,e,àmedidaquedesapareciamdomonitor,elesentiacresceraansiedade.Derepente, incapaz de suportar a tensão, levantou-se, foi até o banheiro e tomou um comprimido decalmante.
Não poderiamesmo continuar trabalhando. Às onze e trinta, foi com Parker Faine buscar DennyUlmes eNyugenKaoTran, seus “afilhados” dos Irmãos daAmérica, entidade de assistência social a
menoresdesamparadoscomaqualcolaboravadesdeostemposdePortland,Oregon.Eraaúnicaligaçãoquemantinhacomavidadacomunidade,aúnicafrestaemsuabemprotegidatocadecoelho.
O próprio Dom passara a infância de casa em casa, acolhido com carinho por certo tempo emalgumas,apenas toleradoemoutras,cadavezmais solitárioe infeliz.Algumdia, sechegasseacasar,adotariaumoudoisdaquelesmeninosdosIrmãosdaAmérica.Enquantoissonãoacontecia,gostavadepassar alguns fins de, semana com os garotos, tentando, ao mesmo tempo, proporcionar-lhes horasagradáveiseconsolaracriançaabandonadaquesobreviviadentrodele.
Nyugen Kao Tran, “afilhado” de Dom, preferia ser chamado de “Duke”, em homenagem a JohnWayne, cujos filmes adorava. Inteligente, magro e extraordinariamente ágil, tinha treze anos e era ocaçuladeumafamíliadepescadoresquefugiradoshorroresdaguerradoVietnã.Depoisdesobreviveràbrutalidade do conflito, ao confinamento num campo de concentração e à angústia de vagar por duassemanasemmaraberto,num,pequenobarcoàderiva, seupaimorreraassassinado.Ocrimeocorrerafaziatrêsanos,duranteumassaltoàlojaemqueeletrabalhavacomoguarda-noturno,osegundoempregoqueconseguiranoensolaradoemaravilhososuldaCalifórnia.
DennyUlmeserao“afilhado”deParker;opaimorreradecâncer.Omeninoeramaisretraídoque“Duke”; todavia, comoosdois se entendiamàsmilmaravilhas,DomeParker costumavamprogramarjuntosseuspasseios.
Deinício,Parkerresistiraàidéiadeadotarum“afilhado”dosIrmãosdaAmérica:—Mas...eu?!—perguntava,semprequeDomvoltavaaoassunto.—Porqueeu?Nãosouejamais
sereipai...Bebodemaisesoumulherengo.Chegaasercrimeimaginarqueeupossaser-virdeorientadormoralparaqualqueradolescente.Soupreguiçoso,irresponsável,egoísta...Vivono
mundodalua...Oqueéqueeupoderiaensinaraumgaroto?!Alémdomais,nãohámolequeabandonadoquenãogostedecachorro...eeuodeiocachorro!Odeiopulgasecheirodecachorro.Vocêestá louco!Logoeuvouadotarum“afilhado”dosIrmãosdaAmérica?!Estádoido...
Apesarde tudo,naquelaquinta-feiraà tarde, juntoaomar, foiParkerquemorganizouapartidadevôlei, jáqueaágua lhepareceu friademaisparaummergulho.Depois inventououtro jogo,de regrascomplicadíssimas,queenvolvia,alémdequatro jogadores,duas raquetes,umaboladeplásticoeumalata vazia. Sob sua orientação,Dom e osmeninos construíram tambémum castelo de areia completo,incluindoodragãoqueameaçavaumainvisívelprincesa.
Maistarde,almoçandonoRestauranteHamletParkeraproveitouomomentoemqueosgarotosforamaobanheiroparacomentar:
—Meuamigo,essacoisadeIrmãosdaAméricafoiumadasmelhoresidéiasquejátivenavida...—Quevocêteve?!—Domarregalouosolhos.—Vocêdissequenãogostavadecachorro,queos
meninostinhampulgas...Quasepreciseiarrastarvocêpeloscabelos!—Euestavanummaumomento—Parkerjustificou-se.—Sempregosteidecrianças.Todosos
artistas têmcoraçãodecriança...Paracriar,éprecisonãoenvelhecernunca.Osmeninosmeajudamaconservarajuventude...
—Agorasófaltacomprarumcachorro—Domriu.Parkertambémriu,esvazioudeumgoleocopodecervejaedebruçou-sesobreamesa,aproximando-sedoamigo:—Estátudobemcomvocê?—perguntou.—Hoje,napraia,tiveaimpressãodequevocêestava
preocupadocomalgumacoisa.—- Há muitas coisas que me preocupam... Mas estou bem. As crises de sonambulismo quase
desapareceram.Tenhosonhadopouco.Cobletzéumbommédico.—Eonovolivro?Nãomevenhacomconversafiada.Digaaverdade.Estátrabalhandodireito?
—Olivrovaibem—Dommentiu.— Você, às vezes, fica como olhar perdido... como se estivesse dopado— comentou Parker,
acomodando-senacadeira.—Vocênãoestáseentupindodecomprimidos,está?—Acha,queeusouidiota?—Domdesviouosolhos,atrapalhadocomaperspicáciadoamigo.—
Seimuitobemquecalmantenãoégomademascar...Claroquenãoestoumeentupindodenada.Por um momento, Parker ficou em silêncio, examinando atentamente o rosto do outro; depois
resolveumudardeassunto.O filme até que não era ruim, mas, depois de meia hora de projeção, Dom não conseguia mais
continuarsentado.Invadidoporincontrolávelecrescenteansiedade,levantou-se,foiatéobanheirodoshomenseengoliuocomprimidodecalmantequelevaranobolso,prevendoalgumacriserepentina.
Que diferença poderia fazer um comprimido a mais ou a menos? O importante é que estavamelhorando,conseguindovenceraansiedade. Jánãoandavapelacasa,ospesadeloserammais raros.Estavamelhorando.
O cheiro de desinfetante barato, de urina rançosa e de privada suja dava-lhe náuseas.Engolido aseco,ocomprimidopareciaentalar-senagarganta.
Anoite,apesardosremédios,osonhorepetiu-se.Aoacordar,Domconseguiulembrar-sedeoutrosdetalhesquelheescaparamnanoiteanterior.Alémdapiaondealguémqueriaafogá-lo,haviaumacama,umquarto desconhecido, umanévoadensa e amarelada queo impedia de distinguir formasou rostos.Havia,pelomenos,duasoutraspessoasnoquarto...maspareciamfantasmas,sombrasdefumaçae luzqueapareciamedesapareciamnoar.
Domimaginouquetalvezestivessedentrodaágua,nofundodeummarmisteriosoefrio.Eradifícilrespirar,oartornava-secadavezmaispesado,ospulmõesesforçavam-secadavezmaisparacumprirsua função. Dom sentiu que estava morrendo. Os vultos de fumaça aproximavam-se da cama,preocupados, e conversavam entre si, em voz baixa e aflita; era impossível entender o que diziam,emboranãofalassememnenhumalínguaestranha.Umamãofriatocou-lheapele.Domouviuumbarulhodevidroquebrado.Emalgumlugar,umaportabateu.
Corterápido,comonosfilmes.AgoraDomestánumbanheiro,ounumacozinha.Ealguémforça-lhea cabeça para dentro da pia. E difícil respirar,O ar parece cola.As narinas se fecham.Os pulmõescomeçam a arder. Dom luta, quer resistir, quer escapar, mas alguém o segura, agarra-lhe a cabeça.Continuamosgritos,porém,comoantes,éimpossívelentenderoquedizemosfantasmas.Econtinuamaempurrá-losobreapia.
Aodespertar,aindadeitado,Domlembrou-sedaquelamanhãemqueacordaranacama,felizpornãoter andado pela casa, e depois descobrira que havia escrito as mesmas palavras centenas de vezes.Lembrou-se tambémdaquelamadrugadaemqueacordaranobanheiro,afogando-senapia.Pelomenosagoraestavanacama...jáeraumbomsinal.
—Estoumelhorandomesmo...murmurou.Trêmulo,sentou-senacamaeacendeuoabajur.Nãoavistoubarricadasdiantedaportanempregos
na janela. Nenhum sinal de medo ou de crise de sonambulismo. O relógio marcava duas e nove damadrugada.Sobreamesa-de-cabeceiraao ladodo relógio,haviauma latadecervejamorna.Comumgoleamargo,eletomoumaisumacápsuladesedativo.
—Claro...claroqueestoumelhorando.Erasexta-feira,dia13.10.ELKOCOUNTY,NEVADANasexta-feira,trêsdiasdepoisdaestranhaexperiêncianarodovia,ErnieBlocknãoconseguianem
dormir,nemfingirquedor-mia.Àmedidaqueanoiteavançava,tornandoaescuridãocadavezmaispresentedoladodefora
dosvidrosedascortinas,sentia-semaistensoeansioso.Entãopressentiuquecomeçariaagritare,secomeçasse,nadanomundopoderiadevolver-lheasanidade.Paraevitarodesastre,levantou-sedacama,semfazerruído,foiparaobanheiro,trancouaportaeacendeualuz.Maravilhosaebenditaluz...Erniedesceu a tampa da privada e sentou-se, de cuecas, tentando acalmar-se. Precisou de mais de quinzeminutosdeplenaluz,comoumlagartoprecisadesol.
Maistranqüilo,ponderouquedeviavoltarlogoparaoquarto,antesqueFayeacordasseedesseporsua falta. Para preparar um disfarce mais convincente, puxou a descarga, abriu a torneira da pia edemorou-se lavando asmãos. Acabou de enxaguá-las e ia apanhar a toalha pendurada junto à janelaquando,semquerer,olhouparacima.Ovidrofoscoimpediaquevisseocéuescuro,porémmesmoassimele sentiu um calafrio. Foi como se alguma coisa naquela janela tivesse o poder de desencadear umatorrente de idéias violenta, ininterrupta, incontrolável. Estava em perigo... Era preciso fazer algumacoisa.
—Possopassarporessajanela—disse,numfiodevoz.—Possoescaparporaíesaltarparaotelhadodadespensa.Nãoédifícil...Possocorrerportrásdomotel,chegaratéoarroio,subiracolina,irparaolesteatéchegaraumdaquelesranchoseprocurarajuda...
Como que em transe, piscando e suandomuito, sem parar de pensar em fugir, subiu na borda dabanheira.Eraprecisofugir...masdoquê?Dequem?Porquê?Estavaemcasa,nacompletasegurançadesuasvelhaseconhecidasparedes.Enoentantonãoconseguiatirarosolhosdajanela.Dominava-oumaforçamaiorquesuavontade,algumacoisaincompreensívelepoderosa,queelenãopodiacontrolar.
Sentiaqueprecisavasairdalicomoseaquelafosseaúltimachancedeescapardaangústia.Logo,porém,aremotaesperançadefugirtranformou-seempânico.Oestômagodavavoltas,ocoraçãopareciaquererexplodirnopeito.Semsaberporqueagiadaquele
modo,masincapazdecontrolar-se,Erniemexeunotrinco,empurrouovidroeabriuajanela.Havia alguém do lado de fora.Alguém... ou alguma coisa... no telhado da despensa.Um homem,
talvez,umasombraescura,semrosto.Assustado,Ernietentoufecharajanela,masnãoconseguiamovimentarsequerumdedo.Haviaum
homem no telhado, um homem de capacete. O visor espelhado cobria-lhe o rosto com-pletamente. Oestranhoestendeuamãopelajanela,procurandoalcançá-lo.Umaluvapreta.
Erniegritou.Quisescapardaluvaeescorregounabanheira.Aindatentousegurar-senacortinadeplástico, mas apenas arrancou-a das argolas que a prendiam. Então perdeu totalmente o equilíbrio edesabounochão,sentindoumapontadadedoragudanascostelas.
— Ernie! — Faye gritava, esmurrando a porta. — Pelo amor de Deus, abra! O que estáacontecendo?
Comesforço,eleselevantou,aproximou-sedaportaeabriu-a.—Nãoentre—disse.—Háalguémláfora.Aquedaeadornascostasdavam-lheaimpressãodequecomeçavaadespertardeumpesadelo.O
homemdocapacetetalvezfizessepartedopesadelo...talvezfosseumaalucinação...Asuafrente,Fayetremiasobopijama.—Onde?—perguntou.—Notelhado?Quemé?—Nãosei.Esfregando as costas doloridas, Ernie subiu novamente na banheira e olhou para fora. Não viu
ninguém.—Comoeraele?—Fayeaproximou-se.
Nãosei.Pareciaummotociclista,comluvasecapacete...Enquantofalava,Erniepercebiaquenadadoquedissessefariasentidoparaaesposa.Aproximou-se
da janela, debruçou-se para fora e olhou emvolta, por cima do telhado da despensa, para um lado eoutro.Nada...nãohavianinguém.Fossequemfosse,ohomemdaluvapretahaviasumidonanoite.Se,poracaso,eramesmoumhomemdecarneeosso.
Só então Ernie deu-se conta de que estava diante da janela aberta, exposto à escuridão que seespalhavapelascolinasatéasmontanhasdistantes.Totalescuridão,apenaspontilhadadeestrelas.Foisóuminstante,umafraçãodesegundo,eomedo,outravez,tomoucontadele.Ernieencolheu-se,fechouosolhos,virou-separadescerdabanheiraefugirdanoite.
—Fecheajanela—ordenouFaye.Numderradeiroesforçoparacontrolar-se,jásemcoragemparaabrirosolhos,eletateouajanelaà
procuradotrinco,puxouovidroe,afinal,conseguiufechá-lo.Entãodesceudabanheira,respiroufundoeolhouparaamulher.
—Achoque,agora,vocêpodecontartudo—disseela.Ernienãorespondeu.NosolhosdeFayehaviapreocupação,que jáesperavaencontrar.Haviasurpresa, tambémprevisível.Porémhaviamais...Elaparecia ter
adivinhado tudo, e, para isso, Ernie não estava preparado.Os dois ficaram frente a frente, olhos nosolhos,emsilêncio..
—Eentão?—Fayeinsistiu.—Podemecontaragora?—Mas...contaroquê?Eujádisse...haviaumhomemnajanela.—Nãoédissoqueestoufalando.Querosabersevocêestáprontoparamecontar...tudolSejaláo
quefor...Oqueestáacontecendo!Porquevocênãoconseguedormir,porquevivecomosealgumacoisaoameaçasse...—Fayecontinuavacomosolhos fixosno rostodomarido.—Hámaisoumenosdoismeses que você anda preocupado como nunca esteve desde que nos casamos. Preocupado e... commedo...
Entãoelasabia,apesardetodososcuidadosqueErnietomaraparaesconder-lheaverdade.—Não...nãoémedo...—Sim,émedo.—Nãohaviasarcasmonemdesrespeitoemsuaspalavras.FayeeradeIowa,elá
asmulheres aprendem que é preciso encarar os problemas de frente, para poder resolvê-los.— Emtodaanossavidasóvivocêtermedoumavez...FoiquandoLucytinhacincoanoseficoudoente.Osmédicosdisseramqueossintomaspodiamsugerirumadistrofiamuscular.Lembra-se?
—MeuDeus...Quasemorridemedo.—Foiaúnicavez.—TambémsentimedonoVietnã...algumasvezes.—Entreasparedesazulejadasdobanheiro,sua
vozsooudistanteeoca.—MaseunãoestavanoVietnãeportantonãovi.—Elaaindatremiadefrio,osbraçoscruzados
sobreopeito.—Etãorarovervocêcommedoque...tambémestouassustada...Maisassustadaainda,querido,porquenãotenhoidéiadoqueestáacontecendo.Seéalgumsegredo,vocêtemobrigação...de...mecontar—gaguejou,osolhosenchendo-sedelágrimas.—Sejaláoquefor!
—Nãochore...—Erniepediu.—Nãochore!Tudovaiacabarbem,euprometo.—Contetudo,deumavez!—Estábem.Euconto.—Agora!Já!Ernie sentiu um frio no estômago.Havia subestimado Faye...Afinal de contas, ela eramulher de
marinheiro,amelhormulherqueummarinheiropoderiadesejar.Acompanhara-opelomundointeiro,de
IowaaSingapura,deSingapuraàCalifórnia,daCalifórniaaoAlaska.SónãoestiveranoVietnãe,maistarde, em Beirute. Mas em todo lugar aonde os oficiais da Marinha podiam levar as esposas, Fayeestivera a seu lado, cercando-o de conforto, cuidados e carinho. Havia enfrentado dificuldades,problemas,solidão,ejamaissequeixara.Erafortecomoumrochedo.Queloucurateresquecidoisso!
—Estábem—Ernierespirouquasealiviado,depoisdemesesdetensão.—Voucontartudo.Faye preparou um café e os dois sentaram-se à mesa da cozinha, bem agasalhados em grossos
roupões,commacioschinelosnospés.ElaadivinhavaospensamentosdomaridoesabiaqueErnietinhadificuldadeemfalarsobresimesmo.Eraprecisobastantecaféemuitapaciência.
Ernieeraexcelentemarido,porémàsvezessucumbiaàteimosiadosBlock.Eraummaldefamília,principalmentedoshomens.
Aquela gente tinhamanias: fazia as coisas àmaneira dos Block, e havia umamaneira para cadasituação.Todasasoutraseramerradas,e,aolongodosanos,Fayeaprenderaajamaisperguntarporquê.OsBlockgostavamdecamisetaspassadasa ferro,massóadmitiamcuecasamassadascomosaíamdovaral.AsesposasdosBlocksempreusavamsutiã,mesmoemcasaenoaugedoverão.TodososBlockalmoçavam pontualmente às doze e trinta, jantavam às sete, e Deus tivesse piedade da mulher queservisseacomidacomdoisminutosdeatraso...Eraumcaudaldereclamações,protestoselamentos.OsBlock sempre compravam carros da mesma marca; não porque considerassem tais carrosmuitosuperioresaosoutros,massimplesmenteporquesemprehaviamescolhidoaquelamarca.
Com a graça de Deus Ernie não tinha sequer um décimo das manias da família. Para começar,conseguirasairdePittsburgh,ondegeraçõesdeBlockviviamnomesmobairro.Devoltaaomundoreal,longedainfluênciadosseus,elesetransformara.AsmaniasdosBlockjamaissobreviveriamàvidanaMarinha: como esperar que as refeições, por exemplo, fossem servidas com a pontualidade que atradiçãoexigia?Depoisdecasada,Fayeencarregara-sedeesclarecerquepretendiaproporcionar-lheamelhor vida doméstica que ele pudesse desejar, mas que não se deixaria intimidar pelo respeitoobsessivoanenhumaridículatradiçãofamiliar.Emboranemsemprecomfacilidade,Ernieadaptara-seapontodeserconsideradoaovelhanegradafamília,culpadodepecadostãogravescomodirigirqualquerveículomotorizado,inclusiveosquenãolevavamamarcaeleitapelosBlock.
Dosantigosvíciosfamiliareshaviamsobradopoucos,umdosquaisdiziarespeito,precisamente,àsrelaçõesentremaridoemulher.Paraele,oprincipaldeverdomaridoaindaeraprotegeramulherdetodos os dissabores da vida— o que lhe parecia óbvio, pois via as mulheres como seres frágeis evulneráveis,incapazesdeenfrentarproblemasgraves.Parapoderlevaracaboessatarefa,eraimportantequeomaridonuncadeixasseamulhersurpreendê-lonummomentodefraqueza.Emboraseucasamento
nunca se tivesse pautado por essas regras, nem sempre Ernie conseguia perceber que os dois jáhaviamsuperadoastradiçõesfamiliaresdosBlockfaziamaisdeumquartodeséculo.
Fayenotavaquealgumacoisanãoiabeme,noentanto,Erniecontinuavaafingirqueeraumarocha.Maisainda:queviviacomoumfelizmarinheironareserva,dedicandoalegrementeseusdiasàsegundaprofissãoqueescolheranavida, adeproprietáriodemoteldeestrada.Desdealgum tempo, elaviaaafliçãodomaridoaumentarcomoumfogointeriorqueoconsumia.Deinícioprocuroufacilitarascoisase fez-lhe algumas perguntas, mas Ernie nem deu sinal de tê-la ouvido. Nas últimas semanas,principalmente depois que voltara de Wisconsin, começou a perceber que ele evitava sair à noite.Parecianãotersossegoatéquetodasaslâmpadasdacasaestivessemacesas.
Sentadosnacozinha,ocaféfumegandonaxícara,asjanelasbemfechadas,FayeouviaatentamenteoqueErnielhecontava,interrompendo-oapenasquandolhepareciaqueomaridoprecisavadeestímuloparacontinuar.Ahistória eraestranha,maselanão seassustoucomnada; aocontrário, àmedidaqueErnie falava, sentia-se cada vezmais segura, consciente do que estava acontecendo e da forma como
poderiaajudá-lo.Emvozbaixaefraca,Ernieconcluiuseurelato:—Entãoéisso!Eessaarecompensaportantosanosdetrabalhoepoupança?Senilidadeprecoce!
Elogoagora,quandopoderiamosaproveitaravida,começoaandarporaí feitoumidiota,babandoemijandonacalça?Comoumpesomortoparavocêcarregar?Eeuquepensavaterunsvinteanosdeboavidapela frente...MeuDeus...Eu sempre soubequeavidanãoé justa...Masnuncapenseiqueaindafosseencontrarpelaproaummarencapeladocomoesse...
— Não vamos naufragar— Faye tocou-lhe amão por cima damesa.—Claro que omal deAlzheimerexiste,claroquepodeatacaratégentemaisjovemquevocê,masvocênãoestáficandosenil.Peloqueli,etambémpeloqueviacontecercommeupai,possogarantirqueasenilidadenãoapareceassim...sejaprecoce
ounão.Seucasoédefobia.Fobia.Hápessoasque têmmedodealtura,porexemplo.Poralgumarazãoqueaindanãoconhecemos,vocêacabouentrandoemumacrisedemedodoescuro.Vaipassar.
—Jáouviufalardefobiasqueaparecemderepente,dodiaparaanoite?Aindaestavamdemãosdadas,eFayeseparou-sedeleantesderespondercomoutrapergunta:— Você se lembra de Helen Dorfman? Era a proprietária do nosso apartamento em Camp
Pendleton.— Sim,claro...OprédiodaRuaVine...HelenDorfmanmoravanoprimeiroandar,apartamento
um,enósalugamosoapartamentoseis...Fazmaisdevinteanos.—Erniepareciareanimar-seàmedidaqueconseguialembrar-sedetantosdetalhes.—Helentinhaumgatopreto...elegostavamuitodenós...Lembraquenosdeixavapresentesnasoleiradaporta?
—Camundongosmortos.— E...Os ratinhos ficavam lá, junto como jornal eo leite...—Ernie riu, piscoue levantoua
cabeça.—Jáseiporquevocêfalounisso.HelenDorfmantinhamedodesairdecasa...Nemconseguiaandarpelopátio!
— Acoitadasofriadeagorafobia—disseFaye.—Medoirracionaldeespaçosabertos.Viviacomoprisioneiraemsuaprópriacasa.Osmédicosdiziamqueentravaem“crisepânica”quandosaía.
—“Crisepânica”...—Ernierepetiu.—E...issomesmo.—EatéaostrintaecincoanosHelenfoiperfeitamentenormal.Aagorafobiacomeçoudepoisda
mortedomarido.Tudoissoparalhedizerqueasfobiaspodemaparecerderepente,aqualquermomento.—Sejaláquediaboforumafobia,venhadeondevier...émuitomelhorquesenilidadeprecoce.
Mas...nãoqueropassarorestodavidamorrendodemedodoescuro!— Nem vai passar.Na época deHelen, ninguém sabia nada sobre fobias,mas hoje em dia é
diferente.Háestudos,pesquisas...edevehavertratamento.Eclaro!Emsilêncio,Erniebaixouacabeça.—Eunãoestouficandolouco—murmurou.—Eusei,bobinho...Apalavra“fobia”davavoltasevoltasnacabeçadeErnie.Nosolhosazuisdaesposaelecomeçava
averaluzdeumaesperança.— Dequalquermodo,oqueéqueasensaçãoesquisitaquetivenarodoviapodeteravercom
essa...fobia?Eaalucinaçãodehoje?Omotociclistanotelhado...Comoéqueessascoisasseencaixamemsuaexplicação?
—Nãosei.Masumespecialistapodeexplicartudo.Tenhocertezadequetudoseencaixa.—Estábem...masporondecomeçamos?Comoéquevamos‘acabarcomessaloucura?—Jáestátudoplanejado—declarouFayecomdecisão.—AquiemElkonãohánenhummédico
capazdetratarumcasocomooseu.Precisamosdeumespecialista,dealguémcomexperiênciaemcasosde fobia.AchoqueemReno tambémnãoencontraremosoqueestamosprocurando.Masnumacidademaior...Mil-waukee,talvez.Lá,alémdomais,podemosficaremcasadeLucy.
—EaproveitarparavisitarFrankJúnioreDorie...—Erniesorriu,pensandonosnetos.— Claro.Já tínhamosplanejadopassaroNatalcomeles,nãoé?Poisbastaviajarumasemana
antes, nopróximodomingo... naverdade, amanhãmesmo, já quehoje é sábado.Teremosuma semanaparaprocurarumbommédicoe,depoisdoNatal,sevocêaindaestiveremtratamento,euvenhoparacá,contratoalguémparatomarcontadomotelevoltoparaficarcomvocê.Jáestávamosmesmopensandoemcontratarumgerente...nãoé?
—Sefecharmosomotelumasemanaantesdoprevisto,SandyeNedsairãoprejudicados.Talvezosdoisestejamcontandocomafériadorestaurante...
— O restaurante pode continuar funcionando para atender aos caminhoneiros... Aliás, devecontinuar.EseNednãotrabalhardireitinhovaiterquesehaverconosco,quandovoltarmos!
Ernieconcordoucomumacenodecabeçaesorriu:—Vocêéfantástica...ah!Vocêémesmoincrível...maravilhosa!—E.Asvezeseutambémmeachodeslumbrante.—NãomecansodeagradeceraDeusportervocê.— Eu também. Não me arrependo de ter casado com você, e estou certa de que jamais me
arrependerei.—Estoumesentindoaliviado...Porquediabosdemoreitantotempoparalhepedirajuda?—PorquevocêéumBlock,sóporisso...—EosBlocksãoduroscomoconcreto!Ambos riram, felizes por estar juntos, livres da tensão que durante tanto tempo os acabrunhara.
Subitamentecomovido,Er-nietomouamãodaesposaelevou-aaoslábios.— E a primeira vez que consigo rir de verdade há semanas— disse.— Você é um grande
timoneiro,querida.Podemosenfrentarqualquermar,nãoéverdade?—Qualquerum.Erasábado,14dedezembro.OdiacomeçavaaclareareFayeBlocktinhacertezadeque,embreve,
superariamaqueladificuldade,comosempre,aolongodavida,haviamsuperadotodasasdificuldades,Bastavaquesemantivessemjuntos,ladoalado,mãonamão.
ComoErnie,elatambémseesqueceradafotografiaquehaviamrecebidonaterça-feiraanterior,numenvelopesemremetente.
11.BOSTON,MASSACHUSETTS
Sobre omármore polido da penteadeira estava uma linda toalha de crochê ricamente trabalhada;sobreatoalha,umpardeluvaspretaseumoftalmoscópiodeaçoinoxidável.
Paradajuntoàjanela,àesquerdadapenteadeira,Gingertinhaoolharperdidonohorizonte,porcimadasondasdeummarcinzentocomoocéudaquelatardededezembro.Aneblinaconferiaàpaisagemumaespéciedeluminosidadedifusaeperolada.NoslimitesdapropriedadedosHannaby,próximoàencostade
umrochedo,via-seumanesgadepraiaeumancoradourocobertodeneve.Havianevetambémnatrilhagramadaquesubiaemdireçãoàcasa.
Eraumacasamuitogrande,construídaporvoltade1850,àqualseacrescentaramvárioscômodos
em1892,1905e,novamente,em1950.Umaalamedamuradadetijolosconduziaatéduaspesadasportasde madeira da entrada principal. Pilares, colunas, capitéis, portais esculpidos em pedra, janelasemolduradas, balcões de ferro trabalhado, sacadas abertas para o mar, tudo contribuía para dar àconstruçãoumaspectoimponenteemajestoso.
Apropriedadeforaadquirida,em1884,pelobisavôdeGeorgeHannaby,ejánaquelaépocatinhaumnome,comoasantigasmansõesdosromancesingleses.Chamava-seMirantedoMar,eeraesseodetalheque mais intimidava Ginger. No Brooklyn, onde nascera, as pessoas moravam em casas simples eanônimas.
No hospital, George Hannaby jamais a fizera sentir-se intimidada ou diminuída. Era uma figurarespeitável pela experiência e pela autoridade, mas não deixava de parecer-se com qualquer mortalcomum, desses quemoram em casas normais.NoMirante, tudomudava:George era nobre eGinger,plebéia.Nãoquealgumaatitudeoupalavramarcassequalquerlimiteintransponívelparaela.Nemqueseus anfitriões fossem capazes de qualquer gestomenos afetuoso... O que a fazia sentir-se deslocadaeramosfantasmaspatríciosdaNovaInglaterraqueviviamnoMirante.
Ginger ocupava um dos apartamentos de hóspedes, composto de quarto, sala e banheiro; emborafosseomaissimplesdosváriosquehavianoMirante,oferecia-lhetalvezmaisespaçoeconfortoquesuaprópria casa.Um requintado tapete em tons de azul e pêssego cobria o assoalho de largas tábuas decarvalho.Otetobrancocontrastavaharmoniosamentecomasparedespintadasemsuavecordepêssego.
Portodososladosdispunham-sepeçasantigas, transportadasnoséculo19pelosnaviosmercantesdobisavôdeGeorge:lindascômodasusadascomopenteadeiras,mesas-de-cabeceira,gavetei-rospararoupas.
Asduaspoltronasestofadasemseda,tambémcordepêssego,haviamsidocompradasdiretamentedeumafinalojafrancesa.Osdoisabajuresaosladosdacamaforammontadosapartirdecandelabrosdomais delicado cristal.Era tudo perfeito, lindo,masGinger sentia-se como se cada pormenor servisseapenas para impedi-la de esquecer que, ali, a aparente simplicidade brotava de profundas e robustasraízesdeelegânciaetradição.
Comojáfizeraincontáveisvezesnosúltimosdezdias,elaseaproximoudapenteadeiraeexaminouas luvaspretas;depoiscalçou-as, flexionouosdedos,virouasmãos, àesperadeumacrisedemedo.Quanto mais examinava as luvas, contudo, menos ameaçadoras lhe pareciam. Eram luvas comuns,compradasnodiaemquedeixaraohospital;nãopareciamteropoderdeprovocar-lhequalquertipodecrise.Tirou-as,depressa,aoouvirumabatidanaporta.
—Estápronta,querida?—avozdeRitaHannabyperguntou.—Sim.Jáestouindo!Apanhouabolsaeparouuminstantenafrentedoespelho.Usavaumconjuntodemalha,compostode
saiaverde-claraeblusabrancacomumpequenodebrumverdejuntoàgola;sapatosebolsadecouroemperfeita harmonia com a roupa; pulseira de ouro, com a cor e o brilho de seus cabelos. Achou-sedefinitivamentechique...Ora,talveznãochique,masrazoavelmentebemvestida.
Adecepçãomaioresperava-anocorredor.MalpousouosolhosemRita,sentiu-seemdesvantagem.Não estava nem mesmo apenas razoavelmente bem vestida. Parecia uma boneca enfeitada... Umaaspirante,amadoraeincompetente.Umaaprendizdeelegância!
Magra,comoGinger,porémumpalmomaisalta,aoscinqüen-taeoitoanosRitapareciaumarainha,dacabeçaaospés.Oscabeloscastanho-escuros,tratadospormãosdemestre,eramperfeitos.Orosto,setivesse feições ainda mais regulares, parecería severo. Entretanto, uma boa alma simples e calorosabrilhava em seusbelos olhos cinzentos, napele deporcelana, nos lábios fartos, no sorriso fácil.Ritausavatailleurcinzento,colarebrincosdepérolas,
ochapéutiefeltropretodebruadocomumafitadetafetá.Omaisimpressionantenaquelefestivalderefinadaelegânciaeraquenada,absolutamentenada,foraplanejado.QuemvisseRitaHan-nabypoderiaimaginarquepassarahoraspreparando-separasair.Nao.Gingertinhacertezadequeelajánasceracompérolas,portederainhaeguarda-roupacompleto.Eraumcasodeelegânciacongênita.
—Vocêestá...deslumbrante!—exclamouRita.—Pertodevocê,eumesintocomoseestivessedejeansdesbotadoecamisetavelha.—Bobagem!Vocêémaisbonitadoquejáfuiouserei.Esperesóparaveraqualdenósogarçom
atendemelhor.Gingersabiaqueerabonita,nuncaperderiatempocomfalsasmodéstias,maserabonitacomouma
fada...Rita eradiferente: tinhanobreza.Poderia sentar-se emqualquer tronoeninguémse atreveria aduvidardeseuslegítimosdireitosàrealeza.
Naoeraculpadela;desdeachegadadeGinger,tratava-anãocomofilha,mascomoirmãeamiga.Naverdade,Gingersentia-sedeslocadanoMiranteehumilhadapelaelegânciadeRitaunicamenteporquesuavidaestavaemruínas.Atéduassemanasatrás,nãosabiaoqueeradependerdealguémparaviver.Ealiestava,nãosódependentedacaridadealheia,comoincapazdedarumpassosozinhapelarua.Ritadedicava-se a ela em tempo integral, inventava passeios agradáveis, procurava assuntos quepudessem interessá-la, esforçava-se ao máximo para fazê-la esquecer os problemas. Em vão: comopoderia alguém deixar de pensar que, aos trinta anos, estava reduzida à miserável condição de órfãpobre?
As duas desceram juntas a escadaria demármore, apanharamos casacos no armário do saguão esaíram,encaminhando-separaoluxuosoautomóvelqueasesperavadiantedaportaprincipal.Herbert,umaespéciedecruzamentodemordomocomfactó-tum,jáligaraocarroedeixaraomotorgirandoparaesquentar.Nãoesquecera,claro,deligartambémacalefaçãointerna.
Excelente motorista, em pouco tempo Rita deixava para trás as ruas tranqüilas dos bairrosresidenciais e mergulhava no tráfego intenso do centro da cidade, em direção ao consultório dodr. lmmanuelGudhausen, naRuaState.A terceira consulta deGin-ger estavamarcada para as onze etrinta.Oplanoterapêuticopreviatrêssessõesporsemana—■àssegundas,quartasesextas-feiras—atéconseguiremdescobrirasraízespsicológicasdotraumaquedavaorigemàscrisesdemedo,àsreaçõesdefugaeàperdadeconsciência.Nosmomentosdedepressãomáxima,Ginger juravaquepassariaospróximostrintaanosdesuavidadeitadanodivãdodr.Gudhausen.
Ritaplanejava fazeralgumascomprasdurantea sessãoedepoisvoltarparabuscarGingere iremalmoçar juntas.Comosempreacabariamcomendoemalgumrestauranteelegantíssimo,cujadecoração,porsimplesquefosse,pareceriaocenáriodeumapeçadeteatro,naqualRitaeraaestrelaeGingerfaziaopapeldegaro-tinhaquefingiaseradulta.
— Pensouno que eu lhe disse sexta-feira passada?—Rita perguntou, semdesviar o olhar dotrânsito.—Otrabalhovoluntárionoserviçosocialdohospital?
—Nãosei...Achoquevaisermeio...estranho.—Éumtrabalhoimportante.—Eusei.Admiromuitooquevocêfazparaarrecadarfundosparaohospital.Seidoequipamento
queconseguiramcomprarcomodinheiroarrecadado...MasachoquenãoestoupreparadaparavoltaraoMemorial.Nãocreioquesuportariaestar tãoperto...eaomesmotempo tão longe...doúnico trabalhoqueseifazerparaganharavida.
— Então não pense mais nisso, querida. Temos outras coisas, como o Comitê Pró-orquestraSinfônica, aAssociação deAmparo aosVelhos, aComissão deAssistência Judiciária aosMenores...Vocêseriamuitoútilemqualquerumdessesgrupos.
Ritatrabalhavaemvárioscomitêsdeassistênciasocial,nãoapenasorganizando-os,como,também,envolvendo-sepessoalmentenotrabalhodiáriodemantê-losemfuncionamento.
—Algumdessesainteressa?—insistiu.—Tenhoaimpressãodequevocêgostariadetrabalharcomcrianças.
— Sim,mas...—Ginger respirou fundo— já imaginouoquepoderáacontecer seeu tiverumataquenomeiodascrianças?Elasmorreriamdesusto,eeu...
—Ora,quebobagem!Vocêsempredizamesmacoisaquandoinsistoemtirá-ladedentrodecasa.“Eseeutiverumataquenomeiodarua?”Averdadeéquetemossaídomuito,eatéagoravocênaoteveataquenenhum.Comcertezanuncamaisterá.Porém,mesmoquetenha,agora,nomeiodarua,nãovaimefazerdesistir,nemmedeixarembaraçada.Poucascoisasnomundoconseguemmeembaraçar.
—Seiquevocênãoéumavioletadeestufa...Masnãopresenciouumdemeusataques.Nãosabecomoeufico,nemdoque
soucapaz...— Você fala como se fosse omédico e omonstro de saias. Sei que não é assim. Ainda não
espancouninguématématar,espancou?Gingernãopodiadeixarderir.—Vocêéimpossível...—Entãoestáresolvido.Ótimo!Vocêvaisermuitoútilanossogrupo.Comcerteza,RitanãoviaemGingerumsimplescasonovoqueexigiaasuaatençãoeboapartede
seuespíritocaritativo;jáqueforaencarregadadecuidardela,estavaarregaçandoasmangaseatirando-se ao trabalho. Nada a deteria até conseguir a total reabilitação da jovem amiga. Suas atençõescomoviam Ginger, porém, ao mesmo tempo, deixavam-na ainda mais deprimida, porque a faziamperceberoquantoprecisavadecuidados.
O automóvel parou num semáforo; era o terceiro veículo da fila, cercado de outros carros,caminhões,ônibus,táxisevárioscaminhõesdeentregas.Atravésdosvidrosfechados,osruídosdaruachegavamatéGingercomoseviessemdemuitolonge.Aoouvirosomespecialdeummotor,elavirouacabeçaeolhouparafora.Entãoviuumagrandemotocicleta.Nomesmoinstante,omotociclistatambémolhouemsuadireção.Nãotinharosto,masapenasumvisorespelhadoqueseestendiadatestaaoqueixo.
Foiaprimeiracriseemmaisdedezdias.Outravezanévoaencobriu tudo.Aúnicadiferençaemrelaçãoàsoutrascrisesfoiarapidezcomquetudoaconteceu.Nãohouveetapas,comonocasodasluvas,dooftalmoscópiooudapia.DessavezGingersentiu-semergulharderepente,sempausa,numoceanodemedo. No momento em que seus olhos encontraram o visor do capacete, seu coração disparou, arespiraçãoficoususpensaeeladesligou-sedarealidade,perdendo-senumadensaondadeterror.
Primeirodeu-secontado somdasbuzinas.Buzinasdecarros,deônibus,decaminhões.Guinchosagudos,animalescos.Gemidos,zurros,ganidos,latidos,uivos.Entãoabriuosolhos.Aindanãoconseguiaver com clareza,mas percebeu que continuava sentada no carro. Pouco adiante, o sinal estava verde,porém o automóvel parecia mais próximo da calçada, como que atravessado sobre o leito da rua,obstruindootrânsito.Porissosoavamtantasbuzinasaoredor.
Gingerouviu-sesoluçarbaixinho.EviuRitainclinadaparaela,segurando-lheospunhoscomforça.—Vocêestábem?Sangue.Depoisdosgemidosdesesperados,dosuivoseganidos...haviasangue.Asaiaverde-clara
estavamanchadadesangue.Assimcomosuasmãos...easmãosdeRita!—Oh,meuDeus...—Vocêestábem?UmadasunhasdeRitaforaarrancadaependia,presaporumfiodecutícula,balançandonoar.O
dorsodeumadesuasmãospareciaterlevadoumamordida!Haviaarranhõestambémnapalmadamão.O sangue pingava da unha arrancada, dos arranhões e das mordidas. Os punhos do paletó cinzentoestavamempapa-dosdesangue.
Asbuzinascontinuavamprotestando,cadavezmaisferozes.GingerlevantouosolhoseviuqueRita,sempretãoimpecável,estavapálidaedesgrenhada.Naface
esquerdaumarranhãosangrava,eosangue,escorrendopelorosto,misturava-seàma-quilagemepingavadoqueixo.—GraçasaDeus!—Ritasuspiroualiviada.—Jápassou.—Oquefoiqueeufiz?—Sómedeuunsarranhões.Nadagrave.Vocêteveumacrise,entrouempânicoetentousairdo
carro.Eutrateideimpedi-laporcausadotrânsito.Manobrandocomdificuldadeparapassaraolado,omotoristadeumcarrogritou-lhesumpalavrão.— Eu feri você... — Ginger engoliu o suco amargo que lhe subiu pela garganta, a náusea
crescendo.Ritacontinuavaimpassível,indiferenteàsbuzinasquesoavamaoredor.SoltouospunhosdeGinger
etomou-lheasmãoscomcarinho.—Jápassou,querida.Estátudobem.Sóprecisodeumaspinceladasdemertiolate.Omotociclista.Ovisorespelhado.Gingerolhoupelajanelaàesquerda:aquelehomemsemrostohaviadesaparecido.Apenasumrapaz
comumpassavacomsuamotocicletaaoladodocarro,semintençãodeameaçá-la.Alistaaumentava:asluvaspretas,ooftalmoscópio,oralodapiae,agora,ovisorespelhado.Oque
poderiahaverdecomumentretodosessesobjetos?—Sintomuito...muito...soluçou,aslágrimasescorrendo-lhepelorosto.—Esqueça.Temosquetratardesairdaqui.Ritaabriuoporta-luvas,apanhouummaçodelenços
depapelelimpouovolanteeaalavancadocâmbio,aindasujosdesangue.Gingerafundounoassentoestofado,fechouosolhosetentouparardechorar,masnãoconseguiu.Era
a quarta crise psicótica em cinco semanas. Chegara a hora de lutar. Não podia continuar cabisbaixadiante do próprio destino, figindo-se dócil e conformada, esperando a próxima crise ou o passe demágicaquelheexplicassetudo.Não!Precisavafazeralgumacoisa!
Erasegunda-feira,dia16dedezembro,eGingerdecidiuagirantesdesofrerumaquintacrise.Aindanãosabiaporondecomeçar,massabiaqueencontrariaum
meio.Nãopodiamaisterpenadesimesma.Tocaraofundodopoço...opontoextremodehumilhação,medoedesespero.Acontecesseoqueacontecesse,nãohaveria comopiorar as coisas.Só lhe restavacomeçaralutarpelavida.Comosemprefizera.Ah...ehaveriadeconseguir!Sempreconseguia...Iasairdopoço,voltaràvida,voltaràluz...Eesquecerparasempreaescuridãoemquehaviamergulhado.
TRÊS______________
VésperaediadeNatal
1.LAGUNABEACH,CALIFÓRNIA
Àsoitohorasdamanhãdeterça-feira,dia24dedezembro,DomCorvaisislevantou-seelavouorosto,
sentindo-seaindatontoporcausadosmuitoscalmantesesoníferostomadosnavéspera.
Era adécimaprimeiranoitequedormia semsonhosoucrisesde sonambulismo.A terapia estavafuncionando.Quemal pode-ria haver numa temporária e controlada dependência de remédios, se, empoucotempo,acabariaporlivrar-sedaafliçãoconstantedepassarasnoitesperambulandopelacasa?
Nãoacreditavanapossibilidadedetornar-sedependente,nemmesmopsicologicamente.Sabiaqueestavaexagerandonasdoses,masaindanãoeraocasodepreocupar-se.Quandoosvidrosestavamquasevazios, inventou uma complicada história que envolvia um assalto a sua casa e conseguiu que o dr.Cobletz lhe desse outra receita. Mentira ao médico para poder comprar os soníferos e, agora, osmomentosdemaiorclarezaelucidezeramraros.Emgeral,seusdiaspassavamcomoqueenvoltosemnévoa,asuavenévoainduzidapelasedaçãoquímicaconstante.Jánemconseguiapensarnoquepoderiaaconteceremjaneiro,quandoseesgotasseoprazoestabelecidopelodr.Cobletzparaatentativadecuraclínica.
Às dez horas, incapaz de concentrar-se para escrever,Dom vestiu uma jaqueta de veludo e saiu.Faziafrio.Dedezembroaabril,comoemtodososanos,aspraiasestariamdesertas,excetoemalgunsrarosdiasumpoucomaisquentes.
Ao volante de seu carro, descendo para o centro da cidade, Dom via Laguna Beach como queadormecidasobocéusombrioecinzento.Chegouaocorrer-lheaidéiadequetalvezsuaimpressãofosseresultadodoentorpecimentoprovocadopelosremédios,maslogoeletratoudefugirdetãoperigosalinhadeanálise.Conscientedequenãoestavaemplenogozodesuasfaculdadesdepercepção,dirigiacomextremocuidado.
Amaiorpartedacorrespondênciaquerecebiachegava-lhepelacaixapostal.Assim,tomouorumodocorreiopara recolheroquehouvessechegado.Comoeraassinantedemuitas revistas,alugaraumadas gavetas maiores, que, sendo véspera de Natal, estava quase cheia. Dom nem se preocupou emexaminar o que lhe haviammandado: reuniu todos os envelopes e revistas e voltou ao carro com aintençãodepassarosolhosnacorrespondênciaenquantotomasseodesjejum.
Seguiu então para o Cottage, restaurante popular e já tradicional, um pouco acima da estradacosteira.Ahoraeratardiaparaodesjejumeprematuraparaoalmoço,demodoqueorestauranteestavaquase deserto.Dom escolheu uma dasmesas comvista para omar, sentou-se e pediu dois ovos combacon,queijo,torradasesucodelaranja.Enquantomastigava,começouaexaminarosenvelopes.Alémdas revistas e de algumas contas, havia uma carta de Lennart Sane, a maravilhosa agente sueca quenegociava direitos autorais de traduções na Escandinávia e na Holanda, e um envelope da RandomHouse.Aoverologotipodaeditora,eleadivinhouoconteúdo,eaexcitaçãodissipouanévoaqueaindalheenvolviaocérebro.Domlargouatorradaeabriuoenvelope:continhaoprimeiroexemplardeseuprimeiroromance.Homemnenhumpoderásaberoqueumamulhersentequando,pelaprimeiravez,tomanosbraçosofilhorecém-nascido.Masumromancistapodeexperimentarumasensaçãomuitosemelhante
quando,pelaprimeiravez,vêseunomeimpressonoprimeiroexemplardeseuprimeirolivro.Domnãoconseguiadesviarosolhos.Terminaradecomereestavaesperandoocaféquando,comum
sorriso,decidiuexaminaro restantedacorrespondência.Entreoutros,haviaumenvelopebranco, semnomenemendereçodoremetente,contendoapenasumafolhadepapelcomduasfrasesdatilografadas:
Osanâmbulodeveráprocurarnopassadoaorigemdeseuproblema.E láqueestásepultadoosegredo.
Atônito,Domleuereleuamensagem.Emsuamão,opapeltremia.Elecomeçouasuarfrio.
2.BOSTON,MASSACHUSETTS
Gingersaltoudotáxieparouummomentodiantedeumprédiodeseisandares,revestidodetijolosno melhor estilo vitoriano. Uma rajada de vento sacudiu-lhe os cabelos e agitou os galhos nus dasárvoresdaRuaNewbury,numruídosecodeossoschocalhando.Elacurvouacabeçaparaenfrentaraventania,passoupeloportãodeferro trabalhadoeentrounoedifícionúmero127.Durantedécadasalifuncionara oHotelAgassiz, umdosmarcos históricos da evolução da cidade, agora transformado emprédio de apartamentos. E alimorava Pablo Jackson, sobre quemGinger sabia apenas o que lera noBostonGlobedavéspera.
DepoisqueGeorgesaiuparairaohospitaleRitafoifazersuasúltimascomprasdeNatal,Gingerescapoudecasa,ignorandoosrogosdaempregadaLaviniaparaqueesperasseapatroavoltar.Deixaraum bilhete dizendo que estava bem e não demoraria; agora rezava para seus anfitriões não sepreocuparemmuito.
OpróprioPabloJacksonabriu-lheaporta,eGingerarregalouosolhos.Estavasurpresanãoporelesernegroetermaisdeoitentaanos—essesdetalhesjáhaviamsidomencionadosnoartigodojornal—,maspelaincrívelvitalidadedohomemasuafrente.Alto,commaisdeummetroeoitenta,esguio,Pablovestiacami
sabrancaecalçapretadevincoperfeito;oscabelos,brancosebrilhantes,davama impressãodeenvolvê-lonumaauramágicaemisteriosa.Comumgestogalante,convidou-aaentrarecaminhouasuafrenteindicando-lheocaminhocomaelegânciadeumhomemquarentaanosmaisjovem.
Outrasurpresaaguardava-anasaladeestar.Emboranãoesperasseencontrarumambientedignodemuseu,ficoudeslumbradacomoaspectomodernoearejadodoaposento.Tudoeraamplo,elegante,deexcepcionalbomgosto,desdeasparedes claras atéos amplos sofás confortáveis.Um tapete coloridoquebravaamonotoniadaslinhasretasdosmóveis,criandoailusãodeummovimentodeondasmacias.Acimadoenormeaparador,umoriginaldePicassoatraíairresistivelmenteaatenção.
Ginger sentou-se numadas duas poltronas dispostas frente a frente, junto à varanda.Agradeceu ocaféerespiroufundo:
—SenhorJackson,achoquecomeçamosmal.Eulhementiquandofalamospelotelefone.— Uma confissão...Não émau começo—ele sorriu, cruzou as pernas e esperou, asmãos de
longosdedosnegrosdescansandonosbraçosdapoltrona.—Nãosourepórter.— NãotrabalhanoPeopie?—examinou-lheorosto,atento.—Ora,tudobem.Soubequevocê
nãoerarepórterassimqueavi.Osrepórteres,hojeemdia,chegamàportadenossacasafingindo-seinteressados,ouinteressantes,comopreferir,massempresãomuitoarrogantes.Nomomentoemqueavi,paradaàminhafrente,tivecertezadequenãoeraumdeles.
—Estouprecisandodeajuda.Eosenhoréaúnicapessoaquepodemeajudar.— Umadonzela emapuros?—Pablonãoparecia nemzangadonemansiosopara vê-la partir,
comoela,decertomodo,receara.— Imaginei que não concordaria em falar comigo se eu lhe contasse a verdade. Soumédica,
residenteemcirurgianoMemorial,daquideBoston.Quandolioartigosobreosenhor,publicadoontemnoGlobe,penseiquetalvezpudessemeajudar.
— Seriaumprazerconhecê-la,mesmoseviesseapenasparamevenderassinaturasderevistas.Aos oitenta e um anos, um homem não pode mais se dar ao luxo de desperdiçar qualquer chancedeconhecergenteinteressante.
Gingersorriu,agradecidaporseuesforçoparadeixá-laàvontade.Tinhaboasrazõesparadesconfiarqueavidasocialdaquelevelhinhodeoitentaeumanoseramilvezesmaisexcitantequeasua.Pablocontinuou:
— Alémdisso,nemmesmoumfóssilcomoeudeixariapassaraoportunidadedeconhecerumamulhertãobonitacomovocê.Masvamosaoqueinteressa.Oquepensaquepossofazerparaajudá-la?
Sentadanabeiradapoltrona,elaretesou-seedisparou:—Antesdemaisnada,gostariadesabersetudoqueoGlobedissesobreosenhoréverdade.—Namedidaemquepodeserverdadeoquedizemosjornais...—Pabloergueuosombros.—E
verdadequemeuspaisviveramnaFrança,comoamericanosexpatriados;queminhamãetrabalhoucomocantoranumcafédeParis,antesedepoisdaPrimeiraGuerraMundial;quemeupaieramúsico.TambéméverdadequeelesconviveramcomPicassoequeperceberamqueeraumgêniomuitoantesdeorestodahumanidade entender isso. Eume chamo Pablo em homenagem a ele.Meus pais compraram algumasobras de Picasso nos tempos em que ainda eram baratas, e o próprio pintor lhes deu várias telas depresente.Meuspaiserampessoasdebongoüt...bomgosto,comodizemosfranceses.Jamaischegaramapossuircem telasdePicasso,comodiziao jornal,masapenascinqüenta.Oque,naverdade, foimaisdoquesuficienteparalhesdarconfortoatéofimdavidaeparamemanter.
—Eéverdadequeosenhortrabalhoucomomágico?— Durante mais de cinqüenta anos— Pablo riu e ergueu a mão direita como se fizesse um
juramento, reconhecendo modestamente o prodígio de sua longevidade. Um belo gesto deprestidigitação.Gingersurpreendeu-se,olhosmuitosabertos,esperandoquede
repente surgisse umapombabranca, ouumcoelho.—Cheguei a sermuito famoso.Sxnspareil, omelhor,semdúvidasesemmodéstia.SeiqueminhafamafoimaiornaEuropadoquenaAmérica,mas,aindaassim,muitagenteporaquifalavaeouviafalardasminhasmágicas.
—Seuespetáculoincluíaumatodehipnotismo,nãoé?Osenhorhipnotizavaalguémdaplatéia...Pablorespondeucomumacenodecabeça:—Eraamelhorpartedoshow.Opúblicoficavadeslumbrado.—Eagora,peloquedizojornal,osenhorestátrabalhandoparaapolícia,usandosuastécnicasde
hipnose em testemunhas de crimes... para fazer com que se lembrem de detalhes que possam teresquecido.
—Sim,masnãoéumtrabalhoregulareconstante.—Elefezumgestonoar,comoquerecolhendonacartolaocoelho,apombaequaisquergrandesesperançasqueGingerpudesseteralimentado.—Nosúltimosdoisanosapolíciameprocurouapenasduasvezes,comoúltimorecurso.
—Mas...osenhorconseguiuajudar?Aspessoasselembraramdoquehaviamesquecido?— Ah,sim...exatamentecomodizo jornal.Porexemplo...umhomemparado juntoaomeio-fio
pode ter visto, de relance, a chapa do carro em que o criminoso escapou, mas a impressão nãoésuficienteparaqueelearegistrenamemóriaconsciente.Oqueaconteceéque,emboranãoconsciente,o registro permanece em sua memória. Isso é uma lei... nunca esquecemos o que vemos ousentimos,mesmoquenãotenhamosconsciênciadetodasasimpressõesqueguardamos.Oqueahipnosefazéconduzirapessoa,atravésdeumtranse,devoltaaopassado:comissoépossívelfazê-lareviverdeterminada situação.No caso da testemunha que dei como exemplo, basta pedir-lhe que olhe para ocarroe“veja”onúmerodachapa.
—Eissofunciona...sempre?—Não.Masquasesempre.—Porqueapolíciaprocuraosenhor?Ospsiquiatrasquetrabalhamparaapolícianãoconhecem
astécnicasdehipnose?
— Épossívelqueconheçam.Massãopsiquiatras,nãoespecialistasemhipnose.Quantoamim,comotenhoanosdeexperiência,acabeipordesenvolverummétodopróprio...técnicaspróprias,que,emgeral,funcionammelhordoqueastécnicasconhecidaspelospsiquiatras.
—Osenhor,então,éomelhor.—Umexpert...Sim,éverdade.Souomelhordentreosmelhoresqueexistem.Masporqueisso
lheinteressatanto,doutora?Gingersentara-secomabolsasobreosjoelhos,asmãoscruzadas.Mas,àmedidaquefalavasobre
suascrises, foientrelaçandoosdedos,cadavezcommais força,atéqueasarticulaçõescomeçaramadoer,esbranquiçadas.Asuafrente,Pabloouvia,atento,interessado,deixando-se,aospoucos,envolverporsuaestranhahistória.
—Pobrecriança...—disse,afinal.—Espereummomento.Espere,porfavor.—Levantou-sederepenteesaiudasala.Quandovoltou,traziadoiscálicesdeconhaque.
—Obrigada,senhorJackson.Nãocostumobeber,principalmenteaestahora.—Porfavor,mechamedePablo.Quantoàbebida,achoquevocêpassouanoiteemclaro,mal
tomouseudesjejum,esaiu.Seurelógiobiológico,portanto,nãoestáacertadocomorelógiocronológicodasoutraspessoas.Paravocê,écomoseestivéssemosnomeiodatarde,horaperfeitaparaumconhaque.
Diante do argumento, Ginger aceitou a bebida. Pablo voltou à poltrona, e, por alguns instantes,nenhumdosdoisfalou.Foielaquemquebrouosilêncio:
—Precisoquemehipnotize,quemefaçaregrediraodiadozedenovembro,aomomentoemquesaídaCasaBernstein.Eaíquequeropararparaquevocêmeinterrogue,atéeuconseguirentenderporqueaquelasluvaspretasmeassustaramtanto.
—Impossível!—Pablointerrompeu-a.—Nãoenão.—Possopagar...—Oproblemanãoéesse.Nãoprecisodedinheiro.Soumágico,nãosoumédico.— Jáestoume tratandocomumpsiquiatra.Chegueiasugerirquemehipnotizasse...maselese
negaaadotaressetipodeterapia.—Edevetersuasrazões.— Segundo ele, émuito cedopara tentar uma regressão hipnótica.Disse que é possível que a
hipnose ajude, mas que pode ser perigosa... que preciso estar preparada para encarar a verdade.Umaconfrontaçãoprematurapoderiamelevaraum...colapso...algumaespéciedesurtodepressivo.
—Concordocomseupsiquiatra.Elesabeque...—Talvezsaibaoqueémelhorparaosoutrospacientes.—Gin-gerquasegritou,lembrando-sedo
tormentoqueeramassessõesdeterapia,obrigadaafalarefalar,semprecomasensaçãodequeperdiatempoedinheiro.—MasnãotemamenoridéiadoquepodesermelhorparamimlSetiverqueesperaraindaumanoantesdetentarahipnose,játereienlouquecidocompletamente,eacuranãovaimeservirdenada!Tenhoquefazeralgumacoisa!Eomaisrapidamentepossível...enquantohátempo!
—Nãopossoassumirumaresponsabilidadeque...— Eusei—Gingerinterrompeu-o,pousouocálicesobreamesaaoladodapoltronaeabriua
bolsa.—Sabiaquevocêdiriaexatamenteisso.—Tiroudabolsaumafolhadepapeldatilografada.—Porfavor,leia.—Pablopegouopapeledesdobrou-ocommãosfirmes.
—Oqueéisso?—perguntou.—Umadeclaraçãofirmadapormim.Assumototalresponsabilidadeporqualquercoisaquepossa
meacontecer.Vocêestaráisentodeculpas,nãopoderáserprocessado,nem...Eledevolveu-lheodocumento,semlê-lo.— Não estou preocupado em ser processado... A lei émuito lenta, e eu soumuito velho. Em
qualquercaso,jáestareimortoquandochegarahoradeserjulgadopelajustiçadoshomens.Oproblemanãoéesse,doutora.Oproblemaéque,casoalgumacoisalheaconteça,eumesmojamaismeperdoarei...nemnessemundo,nemnoinferno.Esevocêentraremsurtodepressivo?
—Senãomeajudaragora,eseeutiverqueesperarumanoparadescobriroquevaiserfeitodeminha vida, vou entrar em surto depressivo muito antes do que você pensa! — Ela se levantou,desesperada, e prosseguiu:—Sememandar embora agora, seme obrigar a voltar para a casa ondeestou,obrigadaaviverdacaridadealheia,dependendodabondadedealgunsamigos...SememandarparaaquelemalditodoutorGudhausen,eu...nãosei...—Derepente,faltou-lheavoz.Gingerengoliuemseco, respirou fundo.—Não é verdade...eu sei... Estarei condenada...Nao posso continuar a viverassiml Se eu entrar em surto amanhã de manhã... a culpa será sua! Porque pode me salvar e merecusousuaajuda!
—Sintomuito,doutora.—Porfavor...—Nãoposso.— Negro desgraçado!—Ginger parou de repente, lábios entreabertos, horrorizada como que
acabava de dizer. Fechou os olhos e gemeu baixinho, cobrindo o rosto com as mãos. — Oh,Deus...Desculpe,desculpei—Deixou-secairnapoltrona,escondeuorostoentreasmãosechorou.
Pablolevantou-seeaproximou-se,calmocomosempre.—Nãochore,doutoraWeiss,porfavor.Ascoisasvãoseresolver.Nãodesespere.—Enganoseu.Ascoisasnuncavãoseresolverparamim.Minhavidajamaisvoltaráaseroque
era...Antesdereplicar,eletomou-lheasmãos,afastou-asdorostoeobrigouGingerafitá-lo.Entãosorriu
emostrou-lheapalmadamãodireita,paraquesecertificassedequeestavavazia.Derepente,rápido,tirouumamoedinhaprateadadedentrodaorelhadela.Evoltouaficarmuitosério.
—Estábem—disse,porfim.—Vocêconseguiu.Nãoestouconvencidodequedevofazeroquemepede,masvoufazer.Nunca,emoitentaeumanos,conseguiresistirachorodemulherbonita.
Emvezdeparardechorar,Gingercomeçouasoluçaralto,aliviada,indiferenteàslágrimasquelhecorriampelorosto.Talvez,finalmente,começasseasurgirumaesperança...
— ... e agora você está dormindo, dormindo... dormindo profundamente... Está relaxada, solta,cadavezmaissolta...evairesponderaminhasperguntas.Estábem?
—Sim...— Vocênãopodeserecusararesponder.Nãopodeserecusar.Vocêvairesponder.Vaidizera
verdade.As cortinas das três grandes janelas da sala estavam fechadas e as luzes apagadas. Uma única
lâmpadabrilhava,amarelada,aoladodapoltronaondeGingerestavasentada.Aluzrefletia-seemseuscabelosecriava-lheumaauréoladouradaao redordo rostomuitopálido.Afrentedapoltrona,Pabloobservava-a,atento.Eraumamulhermuitobonita,deumabelezadoceefrágil.Algumacoisa,porém,portrásdorostodelinhasperfeitas,mostravaumaalmadeguerreira,umaalmaforte,quasemasculina.
Juste milieu... o meio-termo perfeito, o equilíbrio vital, o corte de ouro dos clássicos... oscontráriosemharmonia...belezaecaráteremdosesiguais.
Gingermantinhaolhos fechados,masPablopercebeu,porbaixodaspálpebrascerradas,a intensaatividadedaspupilas.Sinaldetranseprofundo.Voltouentãoasuapoltrona,mergulhadanassombrasdasala,sentou-seecruzouaspernas.
—Porqueéquevocêtemmedodasluvaspretas?—perguntouemvozbaixa.—Nãosei.
— Nãoesqueçaquevocêtemquedizeraverdade.Nãopodementir,nãopodeescondernada...Agoraresponda...porquetemmedodasluvaspretas?
—Nãosei.—Eporquetemmedodooftalmoscópio?—Nãosei.—Porquetemmedodoralodapia?—Nãosei.—VocêconheceomotociclistadaRuaState?—Não.—Então,porquetevemedodele?—Nãosei.Franzindoassobrancelhas,Pablosuspirouebalançouacabeça.— Tudobem.Vamosfazerumaviagemno tempo.Parece impossível,masepossíveleatébem
fácil.Vocêvaiviajardevoltaàinfância.Nãohácomoresistir...Otempoéumriocorrendoparatrás...paratrás...cadavezmaisparatrás.Jánãoestamosnodiavinteequatrodedezembro...otempocontinuaacorrerparatrás...diavinteetrês...vinteedois...vinteeum...—Econtinuouatéchegaraodiadozedenovembro.—AgoravocêestánaCasaBernstein,esperandootroco.Estásentindoocheirodospaes?Dostemperos?Diga...quecheirossãoesses?
Gingerinspirou,orostotransfigurado.Suavozsooudiferente,animada,alegre:— Castanhas assadas... picles... pães demel... café... Chocolate! Sinta esse cheiro! E bolo de
chocolate!—Ótimo!Agoravocêjárecebeuotroco...—Esqueciacarteira!—interrompeu-o.—-Entãovolteaobalcãoeapanheacarteira.Ótimo...Vocêestáandandoparaaporta,tentandoabrir
abolsa...—...guardaracarteira...Tenhoquefazerumalimpezanessabolsa...—Opacotedecomprasestánobraçoesquerdo...Agora!PaftlVocêesbarranohomemdochapéu
russo.Eleseguraopacoteenãoodeixacair...Sobressaltada,Gingeragitou-senacadeira.—Oh!—exclamou,levantandoacabeçaderepente.—Elelhepededesculpas.Dizqueaculpafoidele.—Oh,não.Foiminha!—ElajánãofalavacomPablo,esimcomohomemdasluvaspretas.—
Nãoviosenhorentrar...Oh,estouótima.Obrigada.—Elelhedevolveopacote.Vocêagradece...—Pablodescru-zouaspernasecurvou-separaa
frenteafimdeobservá-ladeperto.—Então...vocêvêasluvaspretas.Atransformaçãofoiviolentaeinstantânea.Gingersaltounapoltrona,costasretas,tensa,eabriuosolhoscomosefosseumabonecadelouça.—Asluvas...MeuDeus!Asluvas!—Fale...Comosãoessasluvas?—Brilhantes.—Eoquemais?—Não!—elegritouelevantou-se.— Por favor, sente-se—Pablo pediu-lhe, sem alterar a voz.Ginger não semoveu, comoque
paralisadanomeiodeummovimentodefuga.Nãocorreu,mastambémnãovoltouasentar-se.—Estou-lhedizendoparasesentareacalmar-se.
Porfimelasentou-se,mascontinuoucomascostasmuitore-«tas,asmãosfechadascomforça,aindatensa.Osolhoscontinuavamarregalados,fixosnorostodePablo,masnãovendosenãoopardeluvaspretas.Pareciaumanimalprontoparasaltarefugiràprimeiraameaça.
—Estátudobem...Vocêestácalma...cadavezmaiscalma...maiscalma...—Sim...estoucalma...—Arespiraçãotornou-seumpoucomaislenta,osombrosmoveram-sede
leve,porémGingercontinuavatensa.Pablosempreconseguiracontrolarqualquerpessoaquehipnotizasse.Eagoradeparavacomalguma
coisamuitoestranha:aquelamoçacontinuavaaresistiràsugestãohipnótica.Apartirdecertoponto,eledecidiucontra-atacar:
—Entãofalesobreasluvaspretas—disse,atentoeansioso.—Oh,Deus...—Obelorostocrispou-sedemedo.—Acalme-se...relaxe...efalesobreasluvaspretas.Porquetemmedodasluvaspretas?—Não...nãodeixequeelasmetoquem!Não\Gingercruzouosbraçossobreopeitoeencolheu-senapoltrona.—Agoraescutebem..,.—Pabloaproximouapoltrona.—Otempoestásuspenso.Orelógionão
andamais,nemparaafrentenempara trás.Asluvasnãopodemtocaremvocê.Nãovoupermitirquecheguempertodevocê,fiquetranqüila.Tenhoopo-
derdefazerotempoparar,ejáoparei.Nadavailheacontecer.Vocêestásegura...Estámeouvindo?—S-sim...—Aindahaviamedoeincertezaemsuavozeelacontinuavaencolhidanofundoda
poltrona.Cada vezmais intrigado, Pablo observava-a.Ginger continuava como que paralisada pelomedo,
apesardotranseprofundoedasinstruçõesclarasparaacalmar-se.— Lembre-se,o tempoparou—disseele.—Vocêestáseguraporquenãovoupermitirqueas
luvaspretasseaproximem.Podeexaminá-lasàvontade...ediga-meporqueaassustamtanto.Semresponder,elacomeçouatremer.— Émuito importante.Olhebem...—Pablocalou-seummomentoedecidiumudara linhadas
perguntas.—Temcertezadequesãoasluvasquelhedãotantomedo?Sãoessasluvas?—Não...nãoessasluvas...—Asluvaspretasquevocêestávendoapenasafazemlembrardeoutrasluvas...éisso?Outras
luvas...quevocêviuemoutrolugar...talvezhámuito,muitotempo...Eisso?—Sim!Eisso!—Equandofoiquevocêviuasoutrasluvas?Quando?—Nãosei.—Euseiquevocêsabe.—Eleselevantou,deualgunspassospelasala,sempredeolhospostos
na figurinha dourada, encolhida em sua poltrona, tremendo de medo.—Muito bem, vamos soltar otempo,masseminterrompernossaviagemparaopassado.Vamosparatrás...paratrás...atéodiaemquevocêviuasverdadeiras luvaspretas...Asprimeiras...Asprimeirasqueaassustaram.Estamos indo...indo...jáquasechegando...Agora!Vocêestádiantedasverdadeirasluvaspretas.
Napoltrona,olhosesbugalhados,GingernãovianemasaladeestardePabloJackson,nemalojadedocesesalgados.Estavanopassado,emalgumpontoperdidonopassado.
— Ondevocêestá?—eleperguntou,ansioso,debruçadosobreapoltrona.—Precisamedizerondeestá...Nãopodementir.
—Orosto...—elagemeubaixinho,avoztãoaterrorizadaquePablosentiuumcalafriopercorrer-lheascostas.—Orosto...semrosto...—Expliquemelhor.Querostoéesse?Descrevaorostoquevocêestávendo.
—Asluvaspretas...orostodevidro...escuro.—Mas...oqueestádizendo?...Umrostocomoodomotociclista...Ocapacete?—Asluvas...ovisor...—Derepente,umespasmodemedosacudiu-a.—Calma,calma...Estátudobem,vocêestásegura.Euestouaqui...Agora,fale.Aindaestávendo
umhomemdecapacete,comovisorsobreorosto...eusandoluvaspretas?Vindo de algum lugar indefinível, o som encheu a sala. Era alguma coisa como um lamento, um
gemido,umsoluço,saídonãodagarganta,masdedentrodocorpo...VinhadeGinger.Eraumganidodeterror.
—Acalme-se...Relaxe...acalme-se.Ninguémpodeferi-la.Vocêestáemsegurança...—Cadavezmaisassustado,Pabloajoelhou-sediantedapoltrona,acariciandoobraçodeGingercommovimentossuaveselentos,tentandoevitaroriscodeprecisarfazê-ladespertardotranseantesdomomentoprevisto.—Faleparaselivrardisso...Ondevocêestá?Estámuitolonge?Quandoéessemomentoemquevocêestá?
Oganidodeterrortransformou-seemuivo.Umbradosemtempooulugar.Arespostatorturadademilêniosdemedosufocado.
Pablo retesou-se frente à poltrona. Quando falou, já não havia suavidade em sua voz, mas umcomandofrioefirme:
—Estoucontrolandosuamente.Vocêestádormindoeeucontroloseupensamento.Nãopodefazernadaqueeunãoqueiraedevefazertudoqueeumandar.Eulheordenoquefale.
Elasaltounapoltrona,comoserecebesseumadescargaelétrica,masnãofalou.—Responda.Ondeéquevocêestá?—Emlugarnenhum.—Onde?Derepente,elaparoudetremer.Osbraços,quecontinuavamcruzadossobreopeito,soltaram-see
caíramaoladodocorpo,inertes.Comoporencanto,omedodesapareceudorosto,dosolhos,dosgestos.Emvozmuitofraca,inexpressiva,Ginger,afinal,respondeu:
—Nãoestouemlugarnenhum.Euestoumorta.—Nãoéverdade.—Euestoumorta—repetiu.—Eimportantequevocêmedigaondeestãoasluvasquelhecausamtantomedo.Eimportante
paravocê...securar.Semedisser,opesadeloestaráterminado.Querosaberondeestãoessasluvasquelhefazemtantomal.Eimportantequevocêfale.
—Euestoumorta...Pablocontinuavaajoelhadodiantedapoltrona,osolhosfixosnorostodeGinger.Porisso,porque
estavapróximoeatento,viuquesuarespiraçãotornava-seirregular.Tocou-lheamãoesentiu-ainerte,gelada. Rápido, tomou-lhe o pulso e começou a contar.A pulsação irregular... começava a fugir! Empânico,localizouaveiadopescoço.Quasenada:apenasumlatejarlento,muitofraco.
Elaestavaentrandonumtransemuitomaisprofundoqueoproduzidopelahipnose!Estavatentandofugir para algum ponto aindamais distante, para não ouvir a voz que a guiava e não ser obrigada aresponder as perguntas.Mas... seria possível?! Seria possível que alguém decidissemorrer, parar derespirar,deterocoração...apenasparanãoterqueresponderalgumasperguntas?
Ao longo da vida Pablo Jackson encontrara asmais estranhas reações de bloqueio a lembrançastraumáticas. A literatura psicanalíti-ca, entre outras, era pródiga em relatos de casos de bloqueiosinconscientes, de defesas inconscientes face a lembranças assustadoras oudolorosas.Que experiênciapoderia ser tão terrível a ponto de fazer com que uma mulher jovem, saudável, inteligente, bonita,
preferissemorreraterqueenfrentarumasimplesrecordação?!Tocando-lheorosto,aflito,eleresolveu:—Chegadeperguntas.Vocêpodevoltar.Nãovouperguntarmaisnada.Nãoprecisadizercoisa
alguma.Ginger fez ummovimento com os lábios quase imperceptível. Parecia suspensa entre a vida e a
morte,tentandodecidirquecaminhoescolher.— Acredite...Juroquenãovoumais lhepedirquefale.Juro!—Osdedosaindacoladosaseu
pulso,Pablosentiuqueobatimento,aospoucos,voltavaànormalidade.—Acabaram-seasperguntas...Podevoltar...Volte...
Ginger inspirouprofundamenteuma, duas, três vezes, a cor retornando-lhe aos lábios.Empoucosminutos,retornavaaopresente,napoltronadasaladeestar,eestavadesperta.
—Oquehouve?—perguntou,olhandoaoredor.—Jásei...Vocênaoconseguiumefazerviajarmuito,nãofoi?
— Meu Deus... — Pablo desabou sobre sua poltrona. — Se você soubesse... Viajou muito,doutora!Eparamuitolonge...
—Você...estátremendo...Porquê?Oqueaconteceu?FoiavezdeGingercorreratéobarevoltarcomagarrafapararepetiradosedeconhaque.Poucodepois, ao despedir-se dePablo para entrar no táxi que ele chamara pelo telefone,Ginger
aindadizia:— Juroquenão tenho amínima idéia doque aconteceu.Tenho certeza absoluta de que jamais
passeiporqualquerexperiênciatãotraumáticaapontodemefazerpreferiramorteàlembrança.Nãofazsentido!
—Façasentidoounão,háumtraumaemseupassado.Umtraumaqueenvolveumhomemdeluvaspretas, um homem com um “rosto sem rosto”, como você disse, “o rosto de vidroescuro”.Provavelmente,ummotociclista,comooquevocêviunaRuaStateequetantoaassustou.Essalembrança está soterrada em seu passado, no inconsciente mais profundo... e você não parecesinceramenteinteressadaemfazê-laviràluz.Meuconselhoéqueconteaseupsiquiatraoqueaconteceuhoje,edeixequeeleescolhaamelhorterapiaaserseguida.
—Gudhausenétradicional,andamuitodevagar.Queroquevocêmeajude.—Nãopossoarriscarsuavida.Demodoalgumconcordareiemhipnotizá-laoutravez.— Amenosqueencontrealgumareferênciaaqualqueroutrocasocomoomeu...Vocêprometeu
pesquisar.—Nãoesperemuitodeminhaspesquisas—Pablosorriu.—Naverdade,estoupesquisandohá
maisdecinqüentaanosenuncalinadasobreotipodereaçãoquevocêapresentou.—Vocêprometeu...—Prometipesquisar.Esóissoquevoufazer.—Prometeutambémque,casoencontrealgumaterapiarazoávelparatratarumbloqueiocomoo
meu,vaitestá-laemmim.Continuava aturdida, porém sentia-se infinitamentemais calma do que quando chegara à casa de
Pablo Jackson. Pelomenos haviam conseguido encontrar uma hipótese de trabalho, embora ainda nãosoubessem exatamente o que significava ou até onde poderia levá-los. Tinham uma equação: bastavadescobrirafórmulaqueatornariacompreensível.Haviaumnóemalgumpontodeseupassado.Quandoo localizassem, no espaço ou no tempo, estaria aberta a possibilidade de cura definitiva. Seria o fimdascrisesedomedo.
—Contetudoaseupsiquiatra—Pabloinsistiu.
—Tenhopoucasfichaseprefiroapostartodasemvocê.—Vocêéteimosa.—Não.Souapenasdecididaepersistente.—Teimosia.—Firmeza.Decisão.—Acharnemenú—ChegandoaoMirante,vouprocurarumdicionáriodefrancêsedescobrirseéuminsulto.Sefor,
vocêvaiouvirpoucaseboasquandoeuvoltarparaapróximasessão.Atéquinta!—Nãoadiantavirnaquinta-feira—preveniuPablo.—Precisodealgumtempoparapesquisar.E
nãovouhipnotizá-lanovamenteenquantonãoencontraralgumtipodeexplicaçãoteóricaconfiávelparaoqueaconteceuhoje,eenquantonãosouberexatamenteoquefazeremtermosdeterapia.
—listábem.Esperoatésextaousábado.Sevocênãotelefonaratélá,podeseprepararporqueestareisentadaaquinasoleiradaporta,aoladodoleiteedopão,àespera.—Gingerfitou-onosolhos,comtristeza.—Vocêéminhaúnicaesperança.
—Pobremenina...—elesuspirou.—Nãoalimentegrandesesperanças.—Naoháperigo,porquesótenhouma...você.—Gingerergueu-senapontadospésebeijou-ono
rosto.—Auívvoir.Nãoprecisadedicionário...significa“atébreve”.—Shãlon.Tambémnãoprecisadedicionário...querdizer“fiqueempaz”.Nacalçada,dirigindo-separaotáxiqueaesperava,lembrou-sedeumadasfrasespreferidasdeseu
pai.Umafrasesábiaerealistaque,dealgummodo,serviuparacontrabalançaraimpressãodequetudoestavacomeçandoamelhorarapenasporqueconseguiradarumprimeiropasso:“Omomentomaisclarododiaésempreoúltimo,antesquedesçamassombrasdanoite”.
3.CHICAGO,ILLINOIS
Winton Tolk, o patrulheiro alto, preto e sempre sorridente, saiu da viatura para comprar trêssanduíches e três refrigerantes no bar da esquina, deixando Paul Armes ao volante e o padreBrendanCroninnobanco traseiro.Brendanviaaentradadobar,masnãooquesepassava ládentro,porque as vitrines brilhavam, cobertas de desenhos e cartazes coloridos: Papai Noel, renas, festõesverdes,fitasvermelhas,anjoseestrelas.Nevavanovamente,eoserviçodemeteorologiapreviaquinzecentímetrosdeneveatéameia-noite,oquegarantiaumbeloNatalbranconodiaseguinte.
QuandoWintonsaiudocarro,Brendaninclinou-separaPaulArmes:—SemquererdesmerecerOBomPastor,oquevocêmedizdeNatalBranco?Quefilme!-Ah,umabeleza...—suspirouooutro.ContinuaramfalandosobrefilmesdeNatal,eBrendantinhacertezadequeselembraradomelhorde
todosostempos.—LionelBarrymorefaziaoavarento.EGloriaGrahame...queatriz!—EThomasMitchell?Wintonaproximou-sedaportadobareentrou.—Queelenco!—exclamouBrendan,saudoso.—Estamosesquecendodeoutro...DeIlusãoTambémseVive...—Grandefilme.MasaindaprefiroOBomPastor...Emais...Ostiroseoruídodevidroestilhaçadoocorreramnomesmoinstante,semdiferençadefraçãodesegundo.Mesmonocarro,dejanelasfechadas,comozumbido
intermitente do rádio e do aparelho de calefação, Brendan ouviu o barulho e calou-se de repente,deixando a frase suspensano ar.A explosão acabava comapazda ruaprincipal e reduzia a cacosoPapaiNoelpintadonavitrinedobardaesquina.Depoisdosprimeiros tiroshouveumapausa,e logooutrarajadarompeuosilêncio.
— Merda!— Paul Armes desabotoou o coldre e saiu da viatura, pistola na mão; os últimosestilhaçosdevidroaindaretiniamnacalçada.—Fiqueabaixado!—gritouparaBrendanprotegendo-seatrásdaportadocarro.
Aturdido,Brendanolhouparaobara tempodeveraportaabrir-secomviolênciaedois rapazesaparecerem,umpretoeumbranco.Opretousavabonéde tricôe jaquetademarinheiro,eempunhavaumapistola semi-automáticadecanocurto.Ooutro,decasacodecouro, tinhaumrevólver.Correramjuntosparaforadobar,meioabaixados,onegromirandoaviaturapolicial.Brendanestavadiantedele,hipnotizado pelo cano da arma. Viu um brilho amarelado, como um flash... podería jurar que foraatingido.Mas o vidro traseiro, próximo de seus olhos, continuava in-tato.O vidro da frente é que seestilhaçou sobre o painel e o banco. Com o susto, Brendan despertou e jogou-se no chão, à frentedobancoondeestiverasentado,ocoraçãobatendocomotambor.
Má sorte: Winton Tolk entrara no bar exatamente quando os dois rapazes limpavam a caixaregistradora.Talvezestivessemorto.
Comosbraçosporcimadacabeça,escondidosoboassentodaviatura,BrendanouviuavozdePaulArmesdirigindo-seaosrapazes:
—Larguemasarmas!Maisdois tiros.De revólver.Mas... do revólverdequem?Doassaltanteoudapolícia?Maisum
tiro...Alguémgritou.Paulouumdosrapazes?
Semcoragemparalevantar-se,Brendanesperou.GraçasaoscontatosdopadreWycazik,faziacincodiasqueacompanhavaWin-tonePaulnotrabalhodiáriodepatrulhamentodasruas.Vestia-sedeternoegravata,sembatina,eforaapresentadoaospoliciaiscomoadvogadocontratadopelaIgrejaparaavaliaroalcanceeautilidadedosprogramasdeassistênciasocial.Umaboahistóriaque,atéali,ninguémhaviapostoemdúvida.WintonePaulcobriamaáreacentral,entreaAvenidaForsteraonorte,aMarginaldoLago a leste, aEstrada de Irving Park ao sul, e aAvenidaNorthAshland a oeste. Era a regiãomaismiserável de Chicago, detentora de altos índices de criminalidade, habitada por negros, índios e,principalmente, porto-riquenhos. Cinco dias de convivência diária bastaram para que Brendanaprendesseagostareadmirarosdoispoliciais.Maisdoqueisso,aexperiênciafizera-oconheceravidadifícil de todas as boas almas que viviam e trabalhavam naquela região de ruas imundas e prédiosdecadentes...miseráveispresasdequesealimentavamoschacaisdahumanidade.Sentia-sepreparadopara qualquer surpresa, e já havia visto muita coisa... até que o incidente no bar mostrou-lhe queaindanãoconheciaopior.
Outrotirofuroualatariadaviatura,fazendo-aestremecer.Encolhido,Brendanpensouemrezar,masas palavras não lhe vinham àmemória. Continuava a ser um homem semDeus, omais solitário doshomens.
Doladodefora,PaulArmesgritou:—Larguemasarmas!Eumdosrapazesrespondeu:—Foda-se!DepoisdeumasemananoHospital InfantilSãoJosé,BrendanconversaracomopadreWycazike
foramandadoparaoutrohospital,encarregadodaenfermariadosdoentesterminais,lugartriste,povoadode gemidos, onde não havia crianças.Como já acontecera no São José, logo entendeu o que o velhopárocoqueriaensinar-lhe:hápessoasparaasquaisamortenãoéummal,esimumabênçãodeDeus.Pessoas que pedem a Deus que as leve, e pessoas que agradecem a Deus a graça de fazer cessar osofrimentodeseusentesqueridos.Amortedeumhomemoudeumamulherpodedemonstrarque,quasesempre,háalgodenobreeprofundonoatodeseparar-sedosvivos.Ecomose,poralguns instantes,todospudessempartilharadormísticadamortedeCristo.
Outramagnífica lição...Brendan,noentanto,aindanãovoltaraacrer.Encolhidodentrodaviaturapolicial,paralisadoentredoisfogos,tentavaencontraraspalavrasdequalqueroração,entremuitasqueconhecia,masamemórianãooajudava.Nãoconseguiafalar,tinhaabocaseca,alínguapesada.
Osgritoscontinuavam,porémBrendannãoconseguiaentenderoqueestavaacontecendo,emparteporqueváriaspessoasgritavamaomesmotempo,emparteporqueostirosodeixaramsemi-surdo.
AindanãotiveratempoparapensarnaliçãoqueopadreWycazikpretendiaensinar-lhe,fazendo-oconhecerdepertoobairropobre.Haviapobresportodaacidadee,fossequalfossealição,Brendanjásabiaquenenhumaseriasuficienteparaconvencê-lodequeDeuseramaisrealqueumarajadadebalas.Amorteseriasemprefeia,malcheirosa,insensata.Diantedela,dequevaleriaapromessadavidaeternanaglóriadeDeus?
Brendanaindaouvia tiros,omatraqueardapistolaautomáticaepassosdealguémquecorria.Eracomoseestivessenafrentedebatalha.Outrarajadadebalas,emaisvidrosestilhaçaram-se.Outrogrito,agoramaisterrívelqueoprimeiro.Outrotiro...eosilêncio.Silêncioperfeitoeprofundo.
PaulArmesabriuaportadaviatura,Brendanespiouparaforaegritoudesustoehorror.—Fiqueabaixado!—gritouopolicial,esgueirando-separaretomaroassentodomotorista.—Há
doismortos,maspodehaveroutrosassaltantesarmadosdentrodobar.—OndeestáWinton?—Brendanperguntou.
Paulnaorespondeu.Apanhouomicrofoneechamou:—Atenção,plantãodacentral!Atenção,plantãodacentral!Deuascoordenadasdolocaleoendereçodobar,epediureforços.Deolhosfechados,aindaencolhidonofundodocarro,Brendanpodialembrar-seperfeitamenteda
fotografia queWinton Tolk levava na carteira e exibia a todo omomento: a esposa, Raynella, e trêsfilhos.
—Essesfilhosdaputa...—resmungouPaulArmes,avoztrêmula,recarregandoaarma.—VocêachaqueWintonestá...ferido?—Deveestar.—Eprecisandodesocorro.—Jápedireforços.—Mastalvezprecisedesocorro...jál—Brendanquasegritou.— Não podemos entrar lá. Deve haver outros desses merdas. Dois ou mais... não podemos
adivinhar.Temosqueesperarosreforços.—Wintonpodeestarperdendosangue...Seosreforçosdemoraremmuito,elepode...morrer.—Evocêpensaqueeunãosei?—Paulestremeceuderaiva.Acabouderecarregaraarmaesaiu
novamentedocarroparaobservaraentradadobar.QuantomaisBrendanpensavaemWinton,maisfuriosoficava.Seaindafossecapazderezar,talvez
conseguissemastigareengolirpelomenosumpoucodaraiva.Semfé,oódiocresceu,cresceuatétomarcontadele.Nãoerajusto...Não,nãocomWinton!Nãoestavacerto!Eleabriuaportatraseiradaviaturaesaiuparaacalçadacobertadeneve.Asuafrenteestavaobar.
— Brendan!—PaulArmesgritoulevantando-sedetrásdaviatura.—Nãoentre!PeloamordeDeus...volteparaocarro!
Semdarouvidos,Brendancontinuouaandar,movidopelaraivaepelacertezadequeWintonTolkprecisavasersocorridologo,ouestariamortoquandochegassemosreforços.
Sobreacalçada jaziaocorpodoassaltantedecasacodecouro; tinhaumburaconopeitoeoutrojuntoàgarganta.Aalgunspassosdesuamãoaberta,estavaumapistola,comcertezaamesmaqueferiraWinton.
—Cronin!—Armeschamava.—Volteaqui!Brendanjáestavadentrodobar,masnãovianada.Asluzesestavamapagadas,talveztivessemsido
destruídasduranteotiroteio.Aalgunsmetrosdaentrada,entrecacosdevidro,jaziaocorpodonegrodeboné de tricô. Brendan passou a perna por cima do cadáver e continuou andando. A batina talvezservisse,pelomenos,paraprotegê-lodostiros,sealgumdaquelesdegeneradosfossecatólicopraticante.Ounão...Seaquelesanimaiseramcapazesdeatirarnumpolicial,oquenão fariamcomumpadreco?Brendanestavacegodefúria...porqueDeusnãoexistia!Ouporque,casoexistisse,poucoligavaparaodestinodosbonsedosjustos!
Obalcão ficava junto à parede dos fundos. Por trás do balcão estava a grelha.A frente, algumasmesasecadeiras,quasetodasdepernasparacima.Pelochãoespalhavam-seguardanapos,copos,potesdemostarda,velhasnotasdepoucosdólares.Umpoucoàesquerda,umaenormepoçadesanguee,nomeio,WintonTolk.
Brendan aproximou-se do policial, esquecido da possibilidade de que outro assaltante estivesseescondido atrás dasmesas caídas, e ajoelhou-se no chão empapado de sangue.Winton recebera doistiros. Tinha dois horríveis buracos de bala no peito, nada que pudesse ser tratado com torniquete oubandagens.Osanguebrotavadasferidaseescorria,numfiogrosso,pelocantodaboca.Estavaimóvel,deolhosfechados,inconscienteoumorto.
—Winton?—Brendanchamou-o.Nada.Nemresposta,nemomaislevesinaldemovimento.Quase sempoderpensar,movidoporuma fúria tãoviolenta comoaqueo fizera jogarno chãoo
cálicedamissa,BrendanapalpouopescoçodeWinton,umamãodecadalado,àprocuradequalquersinaldevida.NãosentiuapulsaçãodaaortaepensounafotografiadeRaynellaedascriançasdeTolk.Rubro de raiva, gemia de horror pela indiferença deDeus e pelamiséria dos homens abandonados àprópriadesgraça.
—Não...—rilhouosdentes.—Elenãopodemorrer!AspontasdosdedosaindatocandoopescoçodeWinton,sentiuumleveestremecimento.Aindanão
eraumaveiapulsando...maseraumsinaldevida.Comasmãos,apalpouopeito,osbraçosdopolicial,àprocurademaisumindício,eencontrou-o,muitofracoeirregular,maseraumsinal!
—Eleestávivo?Brendanergueuacabeçaeviuumhomemdeaventalbranco,certamenteodonodobarlevantando-se
detrásdobalcão.Aseuladoapareceuumamulher,tambémdeavental.Narua,soavaasirenedeumaambulânciaqueseaproximava.
SemtirarasmãosdopescoçodeWinton,Brendansentiaqueaspulsaçõestornavam-seaospoucosmais fortes e regulares.Não podia ser...Winton perderamuito sangue, permaneceramuito tempo semsocorromédico.Dificilmentesobreviveria,aindaqueaambulânciachegasseatempodelevá-loparaohospital.Asirenesoavaadoisquarteirõesdedistância,pelomenos.
Brendandesviouasmãosparaopeito.Osanguebrotavaentreseusdedos,comoquenascidodeumafonteinesgotável.Elejánãoconseguiasentiródionemraiva.Estavavazio,esgotado.Baixouacabeçaecomeçouachorar.
WintonTolkmexeu-se.Tossiu.Abriuosolhos.Respirouuma,duasvezes.Gemeu.Surpreso,Brendantocou-lheopulso,voltouaapalpar-lheopescoço.Estavabatendo!Umapulsaçãoaindatênue,masnãotãofracacomodaprimeiravez.
—Winton!—Chamou-o,elevandoavozparafazer-seouvirapesardosomestridentedasirenequezumbiadiantedobar.—Estámeouvindo?
O patrulheiro não o reconheceu. Tossiu outra vez e estremeceu. Brendan ergueu-lhe a cabeça,virando-aparaolado,demodoqueosanguenãosedepositassenofundodagarganta.Comisso,Wintonrespiroumelhor.Estavamuitoferido,perderamuitosangue,comcertezaestavaemchoque...masestavavivo.VjVo.
Narua,asirenecalou-se.Brendancorreuatéobalcãoempurrandooproprietárioeamulher,quepareciamparalisados.Elepróprioestavadesesperado:sabiaquenãohaviaumsegundoaperder.
— Saíamda frente!—gritou.—Tragamummédico.DigamaArmes que ele está vivo!Vão,depressa!
Oproprietáriodobarcorreuparaaporta,eBrendanvoltouparajuntodeWinton.Opatrulheirojárespiravamelhor. Sentindo asmãos úmidas de sangue, num gesto automático Brendan esfregou-as nopaletó.Entãopercebeuque,pelaprimeiravezemquaseduassemanas,asmarcasavermelhadasvoltaramaaparecer,umanapalmadecadamão.Osmesmosanéisdepelevermelhaeinchada.
Policiais e enfermeiros invadiram o bar, passando por cima do cadáver do assaltante branco, eBrendanafastou-separadar-lhesespaço.Foiatéobalcãoeencostou-seum instantepara respirar.Derepente,eracomosetodoocansaçodomundocaíssesobreseusombros.Nãoconseguiudarumpassoalémdobalcãoeláficou,parado,olhandoparaaspalmasdasmãos.
Durantedoisoutrêsdias,logodepoisdeconsultarodr.Hee-ton,usaraaloçãoàbasedecortisonaqueomédicolhereceitarae,comoasmarcassumiram,deixaradeaplicaroremédio.Nempensaramais
noassunto.Deviaserumaalergia,umcasoestranhoerepentino,masnadaalémdealergia.Ali,juntoaobalcão do bar, olhava para as própriasmãos e não entendia o que estava acontecendo.As vozes dospoliciaiseenfermeiroschegavam-lheaosouvidoscomoseviessemdemuitolonge:
—Vejam!...Nuncavitantosangue!—Doistirosnopeito!Nãopodeestarvivo...—Porra!Saiadafrente!—Precisamosdeplasmahumano.Urgente.— Onde está a identificação dele? Se não acharem, testem o sangue. Alguém aí sabe o tipo
sanguíneodopolicialTolk?Deixem!Fazemosotestenaambulânciaacaminhodohospital.Brendan afinal conseguiu desviar os olhos dasmãos e fitou o grupo que se agitava em torno de
Winton Tolk. Em segundos o patrulheiro estava colocado na maca, envolto em cobertores, sendocarregado para fora. Um dos policiais arrastou o cadáver do assaltante e abriu passagem para osenfermeirosquelevavamamaca.Nacalçada,PaulArmesaproximou-sedocompanheiroferidoetentousorrir-lhe.
Nochão,ficouapoçadesangue.Não:omardesangue.NovamenteBrendanolhouparaaspalmasdasmãos.Asmarcashaviamsumido.
4.LASVEGAS,NEVADA
Otexanodecalçaamarela jamais teria tentadoarrastarJorjaMo-natellaparaacama,sesoubessequeelaestavafuriosaapontodequerercastraroprimeiroqueseatravessasseemseucaminho.
Emboraa tardedodia24dedezembro jáestivesseadiantada,oespíritodoNatalaindanãoderasinaisdesuapresença.Emgeralcalmaebem-humorada,Jorjaestavanumdeseuspioresdias, indoevindopelocassino,dobarparaasmesasdejogo,dasmesasdejogoparaobar,abastecendooscoposdosjogadores.
Haviaváriasrazõesparatamanhomauhumor.Aprimeira,eraqueJorjaodiavaseutrabalho.Sejádetestavasergarçonetenumbartranqüilo,quediránumcassinodotamanhodeumcampodefutebol.Eradematar!Umaviagemcompleta aobar, ida e volta, bastavapara acabar com seuspés.Duasviagensdavam-lhebolhasnoscalcanhares.Eohoráriode trabalho?Comoéqueumamulherpodiapensaremorganizaravidadeumafilhadeseteanos,trabalhandonoshoráriosmaisimpossíveis?
Não bastasse a primeira razão, havia ainda o uniforme: um minúsculo maio vermelho que maismostravadoquecobria,baixoemcima,altoembaixo,ridículo,horrível!Eusadocomumafai-
xaelásticaparaafinaracintura,quejáerafina,eaumentarobusto,quejáeragrande.Jorjaandavapelosalão,sentindo-seumpôstererótico,dotipoquesevêemoficinamecânica.
Aterceirarazãodomauhumoreramoshomens:dodonodocassinoaosmiseráveis,desgraçados,malditosvagabundosquejogavamdiaenoiteeviviambeliscando-lheotraseiro.Claro!Quemulhersesubmeteria a vestir uma roupa daquelas... a menos que estivesse interessada em incríveis aventuraseróticas?!
Equantoaonome?Jorja.Tãobonitinho...Mamãedeviaestarbêbadaquandoo inventou.Nãoeramais simples escrever Geórgia, como todomundo? Claro que ninguém desconfiaria que era Jorja sepudesseresponder,rápido,quandolheperguntassem:Jorja,Jórgia,Geórgia,sonstãoparecidos.Masodono do cassino exigia que asmeninas usassemum crachá pendurado nomaio, e lá estava, como emmanchetedejornal:JORJA.Dequinzeemquinzeminutos,apareciaumidiotaperguntandoseonomeeraessemesmo.Era.Umnomeidiota,malescrito,metidoabesta.Sópodiaandarpenduradonumamulher
idiota,mal resolvida,metida a besta.Em seus pioresmomentos, ela pensava em requerer à Justiça ocumprimento de um simples direito à dignidade: que seu nome fosse escrito corretamente. Em seusmelhoresmomentos,lembravaquequalqueralteraçãonagrafiainventadaporsuamãenummomentodeexaltaçãocriadorapoderiaofendê-la.Dequalquermodo,seosrapazescontinuassemcomaspiadinhas,talvez fosse obrigada a rebatizar-se: madre Teresa de Calcutá. Havia remota possibilidade de quebastasseissoparadeixá-losimpotentesporunsseismeses.
Servirbebidaaosfigurõesnãoeraopior.Opioreraquandoapareciaumsuperfigurão,deDetroit,ou deLasVegas, ou deDal-las, e inventava de se engraçar com ela, e pedia que o dono do cassinoarranjasseumencontromais...íntimo.Haviatantasgarotasporali...Naverdade,nemtantas,mashaviaalgumas.Porquelogoela?Jorjasabiaoqueiaacontecerdesdeomomentoemqueviaentrarumdostaissuperfigurões.Opatrãochamava-a,passava-lheorecado,eelarespondia:
—Vãoosdoisparaoinferno,vocêeele.Sougarçonete.Nãosouprostituta.Tintimpor tintim,oqueacabavadeacontecer,quinzeminutosantes.Ummagnatadopetróleo,de
cara verruguenta e olhos de sapo, procedente deHouston,metido em fosforescentes calças amarelas,camisaazul,gravatavermelha.Umdosmaioresclientesdohotel.Láveioele...ohálitofedendoaalho.
Eagoraopatrãoestavafuriosoporqueelanãoaceitaraoconvitedeumhomemtãoimportante.RainyTarnell,crupiêdoperíododiurno,atrevera-seacomentar:
—Achoquevocêestásefazendodeantiquada...demoçaséria...Issojápassoudemoda,querida!Gomo se ir para a cama e abrir as pernas para um desconhecido de Houston fosse apenas uma
questãodemoda...Omesmoquesaberquenãosedeveusarsapatosbrancosnoinverno...O trabalho era horrível, mas era um trabalho, e Jorja não podia dar-se ao luxo de ficar
desempregada.Osalárioerabomparaumamãedivorciadadeumpaiqueserecusavaapagarpensãoàfilha.Eserviatambémparairpagando,aospoucos,asdívidasqueAlanhaviafeitoemseunomeantesdesumir de casa. Jorja precisava desesperadamente de cada dólar que ganhava.Além do salário, haviatambémasgorjetas,àsvezesbemgordas.Principalmentequandoumdosfreguesesganhavanopôquerounosdados.
Na véspera deNatal, como sempre, o cassino estava poucomovimentado, e as gorjetas andavamcurtas.DodiadeAçãodeGraçasatéoNatalhaviapoucagenteemLasVegas.De26dedezembroemdiante, então sim, as coisas começavam a melhorar. Os caça-níqueis estavammudos. Alguns crupiêsdormitavam,debruçadossobreasmesasvazias.
—Claroquetenhoqueestardemauhumor...—Jorjasuspirou.—Estoucomdornospés,dornascostas,enfrentoumimbecilquepensaqueestouàvendacomoumagarrafadeuísque,brigocomRainyTarnellenemtenhoumputodeumtostão.
As quatro horas, quando acabava seu turno, correu para o vestiário, bateu o ponto, tirou omaio,vestiu-seecorreuparaocarro,comoseestivessecompetindoporumamedalhaolímpica.Nemotempocolaborava para imbuí-la do espírito natalino. Em Las Vegas havia Natais gelados, com o ventoqueimandoorostoegelandoosossos,eNataisquentes,comsol,shortecamiseta.NaqueleanooNatalestavamorno,nemquentenemfrio.
Seuvelhocarropegoulogoàterceiratentativa,eventoraroque,emoutrascircunstâncias,bastariaparafazê-lamelhorardehumor.Oruídodomotor,noentanto,lembrou-lheoautomóvelrecém-saídodalojaqueAlanlevaraembora,quinzemesesatrás,quandoaabandonarasemdinheiro,comMareieeummontededívidas.
AlanRykoff.Acoisaquemaisairritavaeraotrabalhodegar-çonete;emsegundolugar,vinhaAlan.Quandoodivórciofoihomologadoelavoltaraausarseunomedesolteira,Monatella,masnãoconseguiuapagar,comigualfacilidade,aslembrançasdosofrimentoqueAlanRykoffcausaraaelaeaMareie.
Pormaisqueseesforçasseparaesquecê-lo,tinha-opresenteacadainstante.Omiseráveljádeveriater embarcado para Acapul-co, com aquela imbecil loura, a tal de “Pimentinha” Carrafield. Nem selembroudequeeraNataleMareieesperavaumpresente.ComoéqueseexplicaaumameninadeseteanosqueopaiseesqueceudelhecomprarumpresentedeNatal?Equenemvaiaparecerparavê-la?
Apesar das dívidas queAlandeixara, Jorja decidira recusar a pensão, num impulsomomentâneo.Quando resolveu pedir-lhe que se responsabilizasse ao menos pelas despesas de educação da filha,ouviu-odeclarar,comamaiorsem-cerimônia,quenãoerapaideMareiee,portanto,nãolhecabiapagarnada.Filhodaputa!Jorjacasaraaosdezenoveanos;Alantinhaentãovinteequatro,eelajamaisotraíra,nem uma única vez... Alan sabia disso, claro! O que queria era “cortar despesas inúteis” comosempre dizia; não podia gastar com a menina porque precisava de muito dinheiro para viver comogostava,comroupascaras,mulherescaras, carroscaros... coisasmais importantesqueesposae filha.ParaevitarqueMareieacabasseenvolvidanaquela imundície, Jorjaacabouporabrirmão tambémdesuaúnicaeúltimaexigência.
Então... era como seAlan estivessemorto e enterrado.Nãohaviamotivopara continuar a pensarnele,porém,aindaassim,passandopelocruzamentodaAvenidaMarylandcomaRuaDesertInn,Jorjalembrava que, quando se envolvera com ele, era jovem demais para casar e ingênua demais paraperceberqueaquelapeledecordeiroescondiaumlobofaminto.Naingenuidadedeseusdezenoveanos,achavaAlan très sofisticadoecharmoso.Aospoucos,porém,começouadescobrirque seuniraaumsujeitobobo,vaidoso,preguiçosoedesavergonhadamentemulherengo.
Mesmo insatisfeita,ainda tentara salvarocasamento.Planejara fériasemfamília, três semanasdeférias,nailusãodequetodososproblemasseresolveriamseAlanpassassealgumtempocomMareieeaconhecessemelhor.Ele trabalhava como crupiê numcassino, e Jorja era garçonete emoutro salão dejogos; como seus horários eramdesencontrados, praticamente não se viam. Se os três pudessem ficaralgunsdiasjuntos,longedosproblemas,sóostrês,viajandodecarro,talvezaindapudessemconstruirumverdadeirolar.
Infelizmente, mas como seria fácil de prever, a tentativa fracassara. Depois que voltaram a LasVegas, Alan estava pior do que antes. Simplesmente não resistia a qualquer rabo-de-saia quelheaparecessepela frente.Foi comoseaviagem tivesseacabadodeenlouquecê-lo...Eraumamania,umaobsessão,umdesespero.Trêsmesesdepoisdasférias,emoutubrodaqueleano,elesumiudecasa.Edaviagemsobrouapenasumaboalembrança:oencontrocomaquelalindadoutoraloira,queviajavadeStanfordparaBoston... “Minhasprimeiras férias!”,disseraela.Ginger...GingerWeiss. Issomesmo:onomedelaeraGingerWeiss.
A doutora Weiss nunca poderia imaginar que provocara um terremoto na vida de Jorja. Jovem,bonita,parecendotãosozinhanomundo,e,aomesmotempo,tãosegura,forteedecidida,serviu-lhedemodelodesdeomomentoemqueseencontraram.Jorjasempresesentirapredestinadaamorrerdevelhacomogarçonete,incapazdeconseguirqualquercoisamelhorparasieparaafilha...Sempreacharaquenãoserviaparanada.QuandoAlan
fugiu,foialembrançadeGingerquelhedeuforçasparairàluta.FaziaonzemesesqueestavamatriculadanaUniversidadedeLasVegascomoalunaatentadoscursos
de administração de empresas. Sua vida era uma correria eterna, do bar para casa, de casa para auniversidade,cuidandodeMareie,dascompras,dalimpeza,daroupaparalavar...Sóquandoacabassede pagar as dívidas que Alan deixara teria condições e dinheiro para abrir seu próprio negócio ecomeçaraviver.Umaboutique.Oplanoestavapronto,polido,livredetudoquepudesseparecerdelírio.Umbomplano,simpleserealista:ofuturodeMareieestariaassegurado,suavidamelhoraria,enadanomundoafariaabrirmãodafelicidade.
PenaqueJorjanuncamaisviuadra.Weissparaagradecer-lhe...nãopeloquehaviafeito,porque,naverdade,nãofizeranada,masporelaserexatamentecomoera.
Na esquina deRuaPawnee, Jorja dobrou à esquerda e paroudiante da casa deKaraPersaghian.Mareiecorreuparaencontrá-lanacalçadaesaltou-lheaopescoço,gritando:
—Mamãechegou!Pelaprimeiraveznaqueledia,Jorjaconseguiuesquecerouniformedegarçonete,otexano,abriga
comocrupiê,omotordocarroqueviviarateando.Mareieeraaúnicapessoanomundocapazdefazê-larecuperar a fé e a esperança, principalmente nos momentos em que todas as saídas lhe pareciambloqueadas.
—Vocêsedivertiubastante?—ameninaperguntou.—Muito,querida.Evocêestácheirandoaamendoim.—Karafezbolinhos.Tambémmedivertimuito...Mamãe,vocêsabeporqueoselefantespreferem
vivernaAmérica?—-Mareieriu.—Porqueaquitemummontedeorquestraseelesadoramdançar!—Maisrisadas.—Nãoéengraçado?
Jorjasabiadosriscosdeser“mae-coruja”,massabiatambémqueMareieeramuitobonita.Morena,decabelosescuros,tinhaolhosazuiscomoocéudoverão,comoosolhosdeAlan.Derepente,ameninafitou-a,espantada:
—Ei!Vocêsabequediaéhoje?—Claro...JáéquasevésperadeNatal.—Sófaltaescurecer.TiaKaradissequeeupossolevarunsbolinhosparacomeremcasa.Papai
Noelsaiudopolonorteeestábempertinhodaschaminésdascasasdooutroladodomundo,ondejáénoite. TiaKara disse que eume comporteimal durante o ano, e por isso vou ganhar só um colar decarvão...Masémentiradela,nãoé,mamãe?
—Brincadeiradela—Jorjariu.— Não,senhora!Nãoenão!Nãoestoubrincando.—KaraPer-saghianaproximou-sedaporta,
muito séria, com seu infalível avental preso à cintura. — Você vai ganhar um colar de carvão e,talvez,umpardebrincosdecarvãoparacombinar.
Mareie riu, feliz, sem olhar para a baby-sitter que adorava desde quando a conhecera. Karaaproximou-se levandoocasacodamenina,umlivrodedesenhosparacolorireumpratodebolinhos.Jorjaentregouocasacoeolivroàfilhaeapanhouopratocomumolhardegratidãoeterna.Iadespedir-se,quandoKarapediu:
— Será que eu poderia falar ummomentinho com você? Só nós duas?—Piscou o olho paraMareie.
— Claro...—Jorjaacomodounocarroagarotaeoprato,evoltou-se.—Oquehouve?OqueMareieandoufazendo?
—Nadadegrave.Masaconteceuumacoisaestranhaeachoquevocêprecisasaber.Mareieestavafalandosobreospresentesquequerganhar.Edissequesóquerumacoisa,otalde“MédicoInfantil”.
— Eaprimeiravezqueelaexigeumpresente...Nãoentendoporque inventouessahistóriademédico.
—Nãopassaumdiasemqueelafaledo“MédicoInfantil”.Vocêjáprovidenciou?Jorjariu,espiandopelaportaparatercertezadequeMareienãopodiaouvi-la:—Ah,fiquesossegada.PapaiNoeljáandaporaícomumlindo“MédicoInfantil”notrenó.—Ótimo.Elaficariamuitotristesenãoganhasseopresentequeestáesperando.Oqueaconteceu
hojedeveteralgumacoisaavercomisso.Mareiejáestevedoentealgumavez?Doençaséria?—Séria?Não,graçasaDeus!Elaémuitosaudável.
—Estevehospitalizada?—Nunca.Porquê?Karafranziuassobrancelhas.—Bem...Hojeestávamosconversandoeela,comosempre,falavado“MédicoInfantil”...Disse
quequeriasermédica,parapodertratardesimesmaquandoficassedoente.Dissequenãoqueriamaisquenenhummédicotocassenela,porcausa“daquelesmédicos”...“Quais?”,perguntei.“Aquelesquememaltrataramtanto”,respondeu.Entãoeupergunteioqueexatamenteelaestavaquerendodizer,eMareiefechouacara.Atépenseiquenãofosseresponder.Depoisdealgumtempo,contou,numavozmuitoséria,quase aflita, que, umavez, osmédicos a amarraramnumacamadehospital e lhederam injeções, e aespetaramcomagulhas,ejogaramluzesmuitofortesemseusolhos,efizeram“ummontedemaldades”comela.Dissequeeram“unssujeitosmuitomaus”,eque,porisso,elaqueriacrescerlogoparapodersermédicaecurarasimesma.
—Mas...elanuncaesteveemhospitalnenhum...—Jorjabalançouacabeçasementender.—Porqueteriainventadoumahistóriatão...estranha?
— Aindanãoétudo.Quandoelamedisseisso,eufiqueipreocupada.Penseiquetalveztivesseacontecidoalgumacoisaparecida,queelapodiamesmoterestadodoente.Eacheiqueseriabomvocêmedizeroquehouve.Afinal,ameninapassaquasetodasastardescomigoe,seilá...Euprecisosaberoquefazernocasodeumarecaída,oudeumataque.Vocêsabecomoeumepreocupocomascrianças...
Karasuspirou,sempreencarandoJorjacomolhostensosdepreocupação,eprosseguiu:— Então eu comecei a fazer perguntas sobre a tal doença. Sempressionar, é claro, commuita
calma,semdeixarqueelaperce-besse todoomeu interesse...De repente, a coitadinha explodiu em lágrimas.Não, não é forçade
expressão:elaexplodiumesmo.Estávamosnacozinha, eu fazendoosbolinhos, eMareieolhando.Derepente, ela começou a chorar e a tremer como vara verde. Tentei acalmá-la, coloquei-a no colo, fizcarinho...Nadaadiantou.Quantomaiseumeesforçava,maiselachoravaetremia.Atéquesaltoudemeucolo e fugiu... Fui encontrá-la na sala, encolhida num canto, atrás da cadeira de balanço... Pareciaquequeriaseesconderdealguém,dealgumacoisaperigosa.
—MeuDeus...—Jorjamurmurou,perplexa.—Leveimaisdecincominutosparaconvencê-laasairdocantoeparardechorar.Sócomeçoua
seacalmarquandomefezpro-rpeterque,caso“aquelesmédicos”voltassemparabuscá-la,eutrancariaaporta e não os deixaria entrar...— Kara suspirou novamente.— Foi muito estranho. Ela estava empânicol
Nocarro,acaminhodecasa,Jorjadisseparaafilha:—Bonitahistóriavocêinventouhoje...Karamecontoutudo.—Quehistória?—Mareielevantouosolhos,intrigadaeséria.—Aquelahistóriasobreosmédicos.—Oh...—Amarradanacamadohospital...Comoéquevocêfoiinventarumacoisadessas?—Eunãoinventei—protestouamenina.—Everdade.—Claroquenãoé!—E,mamãe,éverdade,sim...—Avozmallhesaíadagarganta.—Atéhojevocêsóestevenumhospital,namaternidadeondenasceu.Etenhocertezadequenão
se lembra de nada— Jorja suspirou.—Você se lembra do que a gente falou sobre isso de inventarhistórias?OqueaconteceucomoPatoDonaldquandoelecomeçouainventarhistórias?
—AFadaBoaapareceuedissequeelenãopodiairnafestadamarmota.
—Exatamente.—Emuitofeioinventarcoisas—Mareieconcordou.—Nin-guémgostadegentequeinventacoisas.Nemosesquilos,nemasmarmotas.—Claro—Jorjanãopôdedeixarderir.—Ninguémgosta...nemosesquilos.No sinal vermelho, Jorja parou o carro e olhou para a filha, que se mantinha rígida no assento,
fitandooespaçoasuafrente.— Opiorde tudoé inventarcoisassóparapreocuparopaiouamãe—disseMareiesempre
muitoséria.—...ouqualqueroutrapessoaquegostedevocê—completouamãe.—Kara,porexemplo,ficou
muitopreocupadacomahistóriaquevocêinventou.—Maseunãoqueriaqueelaficassepreocupada!—Não?Sóqueriasefazerdegentegrande?Porqueinventoutudoaquilo?Vocênuncaestevenum
hospital!—Estive,sim.—Ah,é?Equando?—Nãoconsigomelembrar.—Lembrar?!—Asvezesparecequevoumelembrar...maslogoesqueçooutravez.Ateimosiadameninacomeçavarealmenteairritá-la.Jorjafranziuatestaeinsistiu:—Poiseuquerosaberdetudo,eagoramesmo.Ondeficaessehospital?—Nãosei...Nuncamelembrodetudo...Quandoparecequevoumelembrardetudo...euficocom
medo.—Comoagora?—Agora,não.Masàtarde,quandotiaKaraperguntou,eumelembrei...efiqueicommedo...Osinalmudou,eJorjacalou-se,precisavaencontrarummododefazerameninaentenderqueestava
confundindorealidadeefantasia.Ah,pobresdasmãesquepensamquesabemtudosobreosfilhos!Nãopassava uma semana semMareie inventar uma novidade: gestos, atitudes, histórias e, principalmente,perguntasqueadeixavamsemresposta.Pareciaquetodasascriançasdomundo
conheciamumlivroinalcançávelaosadultos,ondehaviamilharesdeperguntasimpossíveisdeserrespondidas, uma para cada dia da semana. Como se acabasse de consultar o tal livro etivesseencontradoaperguntadodia,Mareielevantouosolhosparaamãe:
—PorqueéquePapaiNoelprefereaqueles“aleijadinhos”?—Quealeijadinhos}\—Jorjaarregalouosolhos.~Osanõesqueandamcomele.OsfilhosdeleedaMamãeNoel...Porquenasceramaleijados?—Emprimeirolugar,osanõesnãosãofilhosdePapaiNoel;apenastrabalhamparaele.—Seráqueganhambem?Erecebemgorjetas?—Não,querida.Osanõesnãorecebemnemsalárionemgorjetas.—Masentão...comoéquecompramcomida?—PapaiNoeldátudoparaeles:casa,comida,roupalavada...Comcerteza,nopróximoNatalMareiejánãoacreditariaemPapai Noel. Tantas perguntas! Quanto mais ela perguntava, mais Jorja sentia que a filha estava
crescendo,eachavaissoumapena.Elaviviaosúltimosmesesdefantasia,osúltimosmesesmágicosdavida.
—OsanõezinhossãocomoafamíliadePapaiNoel—explicou.—Trabalhamporquegostamdoquefazem,eadoramandarporaínaépocadoNatal.
— Então... Papai Noel adotou os anões? Será que ele eMamãeNoel não podiam ter filhos?Coitados!
—Nãoénadadisso...elesnãoprecisamdefilhos,porquejátêmosanõesparaamar.Obrigada,meuDeus,portermedadoMareie...Deus,obrigada,obrigadaporela...Penaqueopreço
detamanhaalegriativessesidoamaraquelecafajestedoAlanRykoff.Aleidascompensações...Entrou na esquina do Los Huevos, o condomínio ondemorava, e estacionou o carro na garagem
número quatro. LosHuevos: os ovos. Cinco anos depois de ter-semudado para aquele prédio, Jorjaaindanãoconseguiaentenderporquealguémbatizariaassimumedifício.
Malocarroestacionou,Mareiecorreuparaaentradadoprédio,carregandoolivrodecolorireoprato de bolinhos. Já não parecia preocupada commédicos nem com anões adotados. Jorja seguiu-a,pensando se seria o caso de voltar ao assunto do hospital e obrigá-la a falar mais. Decidiu adiar aconversa;afinal,eravésperadeNatal,tinhamumferiadopelafrente,enadajustificariaestragarafestadamenina.
Aprimeiravista,pelomenos,elaparecia terentendidoqueamaenãoestavasatisfeitacomtantasfantasias...Verdadequeaindanãoserenderaquantoàhistóriadosmédicos,porémacabariaesquecendotudo aquilo.De que valeria insistir para fazê-la esquecer um assunto que, talvez, já estivessemesmoesquecido?Bobagem...MareieteriaumbomNatal,eissoeraaúnicacoisaverdadeiramenteimportanteparaJorja.Osmédicosnãovoltariamaperturbar-lheapazfamiliar.
5.LAGUNABEACH,CALIFÓRNIA
DominikCorvaisisreleuobilheteanônimomaisdecemvezes:Osonâmbulodeveráprocurarnopassadoaorigemdeseuproblema.E láqueestásepultadoo
segredo.Além de não trazer endereço do remetente, o envelope estava tão amassado que era impossível
decifrarocarimbodacidadeondeforapostonocorreio.Dom pagou a conta do desjejum no Cottage, voltou para o carro, sentou-se e novamente releu o
bilhete.A seu lado, o primeiro exemplar doCrepúsculo jazia esquecido sobre o assento. Num gestoautomático ele enfiou amão no bolso da jaqueta e apanhou dois comprimidos de calmante. Estava apontode engoli-los a seco,masparou, amão juntoaos lábios.Não.Paradescobriroque significavaaquelebilhetetinhaquemanterasidéiasemordem.E,pelaprimeiravezemmuitassemanas,conseguiuresistiràtentaçãodefugiraosproblemas.Oscomprimidosvoltaramparaobolsodajaqueta.
Como ainda precisava comprar alguns presentes, dirigiu-se ao Shopping Center de Costa Mesa.Andoudelojaemloja,escolhendooquequeria,e,enquantoesperavaospacotes,invariavelmentereliaobilhete.OautorseriaParker?Talvezoamigoquisesseassustá-lo,dar-lheumasacudidaparaobrigá-loaesqueceroscomprimidos.BemqueParkerseriacapazdetalloucura,comaquelassuasidéiasdechoqueterapêutico!Não...eraabsurdo...Pormaisqueadorasselancesteatraisenãoperdessechancedefazeropapeldepsicoterapeutaamador,elenãochegariaatanto.Preferiairdiretoaoassunto,àsvezesatédiretodemais! Bem, se não escrevera o bilhete, com certeza teria mil idéias sobre o autor. Juntos, talvezconseguissemdescobriralgumacoisaearmarumanovaestratégiaparaenfrentarofuturo.
DevoltaaLaguna,amenosdeumquarteirãodacasadoamigo,Domteveoutraidéia,muitoestranha,tãoestranhaque,parapoderpensar,foiobrigadoaestacionarocarrojuntoaomeio-fio.Tirouobilhetedobolsoecorreuosdedospelopapel,sentindoumcalafriopelascostas.Noespelhoretrovisorviuaimagemdeseusprópriosolhos,cheiosdehorror.Eseelemesmotivesseescritoobilheteduranteuma
dascrisesdesonambulis-mo?Quaseimpossível...Comoteriasevestidodormindoesaídodecasaparaprocurarumacaixadecorreioeremeteroenvelope?Comoteriavoltadoparacasa,trocadoderoupaesedeitadodenovosemdespertar?Impossível...Ounão?Dequalquermodo,sefizeratudoaquiloparamandarum recado a simesmo... estavamuitopiordoque imaginava!Assustado, enxugouna calça asmãosúmidasdesuor.
Apenastrêspessoas,noplaneta,sabiamdascrisesdesonambu-lismo:opróprioDom,ParkerFaineeodr.Cobletz.Senãopodiaserele,seParkerjáestavaeliminado...teriasidoodr.Cobletz?Claroquenão!Masentão...quem?l
Domligouomotor,manobrouocarroe,emvezdeprocurarParker,voltouparacasa.Dezminutosdepois, no escritório, sentou-se diante do computador e tirou do bolso o bilhete amassado.Digitou otextoeviu-oaparecernomonitor,embrilhantesletrasverdes.Aseguir,acionouaimpressoraeesperoupela primeira cópia, ouvindo omatraquear dos tipos. Conforme a programação que usava sempre, aimpressoraproduziuduasvias,cadaumacomumtipodeletra.Comumcódigoacessório,Dominstruiuamáquinaparafazermaisduascópiasnosdoisoutrostipospossíveis,emarcoucadacópiacomonomedotipousado:PrestigeElite,Artisan10,Courrier10,LetterGothic.Entãoapanhouasquatrocópiasecolocou-as sobre a mesa, ao lado do bilhete original, esperançoso de comprovar que o bilhete foraimpressonumtipodiferenteeque,portanto,nãoeraeleoautor.Nãodeucerto.Umadascópias,notipoCourrier 10, parecia irmã gêmea do bilhete. Claro que isso não eliminava a hipótese de qualqueroutrapessoateremcasaounoescritórioumcomputadoridênticoaoseueumaimpressoraprogramadacom omesmo tipo.Quantas impressoras comCourrier 10 podiam existir em todo o país?Milhares?Milhões?
Domcomparouopapeldascópiascomodobilhete:nadadeexcepcional.Obilheteforaescritoempapelcomum,vendidoàsresmasemqualquerpapelariadebairrodoscinqüentaEstadosdopaís.Aindaassim, ele ergueu a folha contra a luz procurando alguma possível marca de água. Não encontrounenhuma. Aquele papel comum e semmarca bem podia ter saído do estoque de sua impressora. Asalternativas continuavam sendo as mesmas: Parker, o dr. Cobletz ou o próprio Dom. Quem maispoderiasaber?
Alémdisso,oquesignificavaaquelebilhete?Quesegredopoderiaestarsepultadoemseupassado?Algumtraumadeinfância?Algumaexperiênciareprimida,soterradaemseuinconsciente,buscandoumasaídaatravésdosonambulismo?
Ainda sentado diante do computador, olhando para o nada cada vez mais tenso, lembrou-se docalmantenobolsodajaqueta,masresistiuàtentação.Sentiaqueocercoasuavoltasefechavamaisemais,porém,igualmente,sentiaquesópoderiasesalvarselutassecomtodasasforças,comtodaasuacapacidadederaciocínio,comtodosossentidosmobilizados.Precisavaconcentrar-seepensarmuitoatéentenderoqueestavaacontecendo...Aospoucos,conseguiuacalmar-see,outravez,resistiuàtentaçãode,atravésdosremédios,refugiar-sedenovoemsuatocadecoelho.
Pelaprimeiravezemváriassemanascomeçavaasentir-seempazconsigomesmo.Sabiaqueestavaem dificuldades e não podia contar com a ajuda de ninguém. Estava só... mas ainda não perderacompletamenteacapacidadedepensar.Aindahaveriaderetomarasrédeasdeseuprópriodestino.
Pensativo, como bilhete namão, levantou-se e deu alguns passos pela casa, até aproximar-se dajanela.Láfora,juntoaopor-taozinhodeentrada,viuacaixadecorrespondência,embutidanumapequenacolunade tijolos,brilhandosoba luzazuladadopostedarua.Raramente lembrava-sedeabriraquelacaixa, porque raramente recebia correspondência em casa. Quandomuito, encontrava ali anúncios deeletrodomésticoseumououtropedidodeajudadealgumaassociaçãodecaridadedobairro.Olhandoacaixadelonge,Domlembrou-sedequenãoaabriajáhaviatemposesaiu.
A rua estava calma, soprava uma brisa fria carregada do cheiro do mar. A luz da lâmpada demercúrio,Domabriuacaixadecorrespondênciaerecolheuquatrocatálogos,seiscartõesdeNatal...eumenvelopebranco,comum,semendereçoounomedoremetente.Curiosoeassustado,correudevoltaparacasaefoiatéoescritório,rasgandooenvelopepelocaminho.Encontrouumaúnicafolhadepapelondeleu:
ALua.Umdiscursodemilpalavrasnãooteriaassustadomais.Parecia-lheque,derepente,ochãoseabria
sobseuspéseelecomeçavaacair,acair...comoAlice,noPaísdasMaravilhas,mergulhandonatocadoCoelho Branco, cada vezmais fundo, em direção a outromundo, de onde nem a lógica nem a razãopoderiamarrancá-lo.
—“ALua”.Nãoerapossível!Ninguémsabiaquetiveraaquelesonho,incompreensíveleassustador,queofizeradespertarnummardesuorfrio,repetindo:“ALua”,“ALua”...Nemqueescre-
vera as mesmas palavras centanas de vezes durante uma crise de sonambulismo. Não contara aninguém,nemaParker,nemaodr.Cobletz,commedodequeachassemqueeleestavapiorando,queoscomprimidos não estavam surtindo efeito.Aindamais: não entendia o que as duas pequenas palavraspodiamquererdizer,maselaslhedavammedo!Oquepoderiahaverem“ALua”parafazê-loespiarporsobreoombro,apavorado,paracertificar-sedequenãohavianinguémporperto?Oqueoimpediradecontar o sonho a alguém? Simples: o medo de que o dr. Cobletz suspendesse o tratamento com oscomprimidos;omedodeenlouquecersenãotomasseosremédios.Simples.
“ALua”.Merda!Ninguémsabiadosonho.Ninguém...alémdelemesmo.Domgirouoenvelopeentreosdedos,trêmulo.Foientãoqueviuamarcadocarimbo.Desfazia-seo
mistério:oenvelopeforapostadoemNovaYork.EstadodeNovaYork,nodia18dedezembro,quarta-feiradasemanaanterior.
Elequaseriualto.Então,aindanãoestavacompletamentelouco!Nãomandaracartasparasimesmo.Nãoteriasidopossível!Nãohaviaamenorsombradedúvidadeque,nodia18dedezembro,estavaemLagunaBeach,aquasecincomilquilômetrosdedistânciadaagênciadoscorreiosondeaqueleenvelopeforaentregue!E,comtodaacerteza,tambémooutro,odobilhetesobreopassado.
Masentão... quemosenviara?Eporquê?Quem,emNovaYork,poderia saberde suascrisesdesonambulismo...dosonho...de“ALua”queescreveranocomputador?
Milharesdeperguntas,enenhumaresposta.Eopioréqueelenãosabiaporondecomeçaradecifrartamanho enigma.Encontrava-senuma situaçãomuito estranha.Será que a lógicao ajudaria a resolvertudoaquilo?
Passaradoismesespensandoapenasnascrisesdesonambulismo,comoseandardormindopelacasafosseacoisamaisterrívelquepudesseaconteceraumhomem...aele,pelomenos.Derepente,começavaaperceberqueopioraindaestavaporaconte-
cer.Erapossívelexplicareentenderosonambulismo,masoquehaveríaatrásdetudoaquilo?Lembrou-se da primeira mensagem que encontrara no computador: “Estou com medo”. Do que
poderiatertantomedo?Oque...ouquemoassustavatantoapontodelevá-loaesconder-sepeloscantos,apontodefazê-lopregarasjanelaseerguerbarricadasdiantedasportas?
Nao...OsonambulismonadatinhaavercomstresslAansiedadenadatinhaavercomapublicaçãodoCrepúsculo... Nada disso! A explicação era outra.Mais complicada.Muito mais estranha. O quepoderiaser?Oqueseriaaindamaisterríveldoqueomedo?
Algumacoisaqueeleviaquandodormia,equeeraincapazdeentenderquandoestavaacordado.
6.NEWHAVENCOUNTY,CONNECTICUT
0céujánaopareciatãoameaçadorcomoantesdeescurecer,masaluzaindanãosurgira.Algumasestrelas,aquieali,brilhavamnaescuridão.
Sentadonaneve,nopontomaisaltodeumacolina,encostadonobarranco,meioescondidoentreospinheiros,JackTwistesperavaapassagemdeumcarroblindado.Jáestavatrabalhandooutravez,menosdetrêssemanasdepoisdeterpostoasmãosemmaisdetrêsmilhõesdedólarespertencentesàMáfia.Usavabotas, luvas, jaquetabranca,gorrodelãenfiadoatéasorelhaseamarradosoboqueixo.Poucoabaixo, a sudoeste, avistava as luzes de uma construção, porém estava mergulhado na escuridão,apenas sentindo as ondas de vapor que lhe saíam do nariz. A nordeste, estendiam-se quilômetros decamposgeladoseescuros,demarcadosapenasporalgumasrarasárvoresenegrecidasdefrio.Dooutrolado havia algumas fábricas, lojas, bairros residenciais. Jack não podia vê-los,mas pressentia-os nobrilhoquedivisavaaolonge,nohorizonte.
Derepenteapareceramosfaróis.Jackapanhouobinóculodelentessensíveisaraiosinfravermelhose focalizou o veículo que se aproximava pela rodovia secundária. Apesar do estrabismo no olhoesquerdo, tinha excelente visão; com a ajuda do binóculo, logo constatou que não se tratava do carroblindado, e, portanto, não lhe interessava.Depositou o binóculo no chão coberto de neve e continuouesperando.Entãovoltou-lheàmentealembrançadeoutranoitedeespera,maisquente,maisúmida,naselvadaAméricaCentral.Decomumentreasduasnoiteshaviaapenasobinóculo.Agoraesperavaumcarro blindado que pretendia assaltar. No passado esperava as tropas inimigas, que cada vezmaisfechavamocercoaseuregimento.
Apenasvintesoldados,aeliteda tropaespecial,compunhamo regimentocomandadopelo tenenteRafe Eikhorn; Jack era o subcomandante. Haviam penetrado em território hostil, mas, até aquelemomento,o inimigonãoderasinaisde terpercebidoa invasãodesuas linhas.Sefossemdescobertos,poderiam tentarconvencerosguerrilheirosdequeestavamemmissãode reconhecimentoe sehaviamperdidonaselva.Difícilseriaexplicar-lhesporqueseusuniformesnãoexibiamasdivisasdoexércitoregulareporquenãoportavamidentificaçãooficial.
A missão tinha um único objetivo: destruir o campo de “reeducação” — que nome cínico! —intitulado Instituto da Fraternidade Universal e libertar os índios miskito que o Exército do Povomantinhaconfinados.Duassemanasantes,doisvalentespadrescatólicoshaviamconseguidoescapardopaís,levandomilequinhentosíndios.Ospadresdisseramqueosíndiosseriammassacradoseenterradosemvalacomum,amenosquefossemresgatadosimediatamente.
Osmiskitosorgulhavam-sedesuasraízestradicionaisedaculturadeseusantepassadoserecusavamabaratafilosofiacoletivis-tadoslíderespolíticosqueacabavamdeassumiropodernopaís.Maisdiamenos dia seriammortos, em nome da lealdade ao próprio passado.Genocídio.Massacre.Os novosgovernantesnãopareciamdispostosaesperarmuito.Precisavameliminartodososfocosderesistênciaparafirmar-senopoder.
Obviamente, o Exército americano, não designaria vinte de seus melhores soldados apenas parasalvarumbandodeíndiosrebeldes.Nomundointeirohaviaditadoresdetodosostipos,unsdedireita,outros de esquerda, e sempre haveria rebeldes, mais ou menos tradicionalistas, mais ou menos deesquerda ou de direita.Os ditadores viviammandandomatar gente, e osEstadosUnidos não podiamestar presentes aomesmo tempoem todosos lugares lutandopara impedir queosmais fracos fossemassassinadospelosmaisfortes.
Averdadeeraquealémdosmiskitos,havianaqueleInstitutodaFraternidadeUniversalonzehomensque valia a pena salvar. Talvez porque haviam sido valentes até o último momento, denunciando asatrocidadesdonovo regime...Talvez,éclaro,porquepossuíam informaçõesqueogovernoamericanoconsideravadegrandevaliaparaadeposiçãodogovernoinimigoqueacabavadeimpor-seaopovo.NoquediziarespeitoaWashington,nãopareciahaverdúvidasdequeaquelesonzehomensvaliamoriscodavidadeseusmelhoressoldados.PorissoéqueJackTwistláestava.
O regimento conseguiu chegar até o instituto, um verdadeiro campo de concentração, cercado dearamefarpadocomaltas torresdeguarda.Doladodeforadacerca,umprédiodeconcreto,comdoisandares,alojavaaadministraçãodocampo,ealgumasvelhasbarracasremendadasabrigavamastropasdaguarda.
Poucodepoisdemeia-noite,oregimentoamericanocercouprédioebarracas,eabriufogo.Apósoprimeiroataque,começaramoscombatescorpo-a-corpo.Meiahoradepoisdoúltimotiro,osíndioseosonze homens mais felizes que Jack já vira andavam em fila indiana através da selva, em direção àfronteira.
Doissoldadosmorrerametrêsestavamferidos.OcomandanteRafeEikhornpuxavaalongafilaquesearrastavapelaselva.Jacketrêsoutrossoldadosfechavamocortejo,cobrindoaretaguardaelevandoos arquivos secretos do instituto — registros de interrogatórios, tortura e assassinatos de índios ecamponeses.Sodeixa-
ramoinstitutodepoisdoúltimoprisioneiroquandoacolunadeRafeEikhornjáestavaamaisdetrêsquilômetrosdedistância.
Jackeostrêssoldadosforamrápidos,masnemassimconseguiramalcançaracoluna.Estavamaindaa vários quilômetros da fronteira de Honduras quando, antes do amanhecer, foram interceptados porhelicópteros inimigos, que desciam do céu como um enxame de vespas negras, deixando cairguerrilheiros e bombas por todos os lados. Os índios e os soldados que acompanhavam Rafeconseguiram escapar com os outros prisioneiros libertados, porém Jack e seus três homens foramcapturadoselevadosparaoutrodosmuitosinstitutosdefraternidadeuniversalquehavianopaís—naverdade,paraopiordetodosquesequereraregis-‘tradooficialmente.Seriadanosoparaaimagemdonovogovernose,derepente,ospovosdomundotomassemconhecimentodequeonovoparaísooperárioabrigava uma pocilga como aquele centro de reeducação, onde, em nome da liberdade, pessoaserammutiladas, torturadasemortas.Namelhor traduçãodaficçãodeGeorgeOrwell,ocampoparaoqualJackforalevadonãotinhanome,e,comonãotinhanome,nãoexistia.
Osprisioneirostambémnãotinhamnome,nemascelastinhamnúmero.Jackeoutrostrêssoldadosexemplares do exército americano sofreram torturas físicas e psicológicas, foram humilhados edegradados, passaram fome e frio, viram-se obrigados a conviver dia e noite com ameaças de novastorturas ou de execuções simuladas.Umdelesmorreu e outro enlouqueceu; apenas Jack e seumelhoramigo,OscarWeston,conseguirammanteravidaeasanidadementalduranteosonzemesesemeioemquepermanecerampresos.
Oitoanosdepois,sentadonaneve,comascostasapoiadasnumbarrancoemConnecticut,àesperadeumcarroblindado,Jacksentiacheiroseouviaruídosquenãofaziampartedaquelanoitegelada.Passosdebotasnumcorredordeconcreto.Ofedordosbaldescheiosdefezeseurina.Osuivosdemedodosprisioneirosqueostorturadoresiambuscarparaoutrasessãodeinterrogatório.
Jackfechouosolhoserespiroufundo,enchendoospulmõescomoarlimpoegeladodeConnecticut.Raramentepensavanaquelesdiasdehorror.Paraele,opiorocorreradepoisquefugiradelá,depoisquesoubera o que havia acontecido com sua Jenny. 0 inferno em que vivera na América Central nãoconseguiradestruí-lo,masoqueomundofizeracomJennydeixara-oarrasado.Outrosfaróissurgiramno
horizonte.Jackmuniu-sedobinóculo:eraocarroblindadoqueseaproximava.Orelógiomarcava9:38.Pontual, como todas as noites da semana.Apesar do feriado do dia seguinte, amelhor companhia detransportedevaloresdopaísjamaisseatrasava...
Jack ajoelhou-se e abriu a valise de couro que estava a seu lado no chão. Continha um rádio,sintonizadonafreqüênciadoaparelhodocarroblindado.Omotoristacomunicava-secomumdospostosdeassistênciainstaladosaolongodocaminho:
—Três-zero-umnaescuta—dissealguém.—Rena—omotoristarespondeu.—Rodolfo.—Rede.0postofizeracontatochamandoonúmerodocarroeomotoristaresponderacomasenhaadequada
confirmandoquetudoestavabemcomocarro301.Umasenhaparacadadiadasemana.Jackdesligouorádio,fechouavaliseevoltou-separaverocarroblindadopassarapoucosmetros
deseupostodeobservação.Seuplanoestavapronto.Ocarro301erapontualíssimo,eelenãoprecisariavoltar àquela colina até a noite do assalto,marcado, em princípio, para o sábado, dia 11 de janeiro.Faltava-lheapenasacertarosúltimosdetalhes.
Emgeral, Jack gostava tanto de planejar quanto de agir.Naquela noite, contudo, voltando para ocarroquedeixaraestacionadonumaruatranqüila,ondenãochamariaaatençãodeninguém,iacabisbaixoepensativo.Talvezcomeçasseaperdertambémacapacidadedesedivertircomaesperadaexecuçãodeumplanocriminoso.Estavamuitomudado...enãoconseguiaentenderarazão.
Aoaproximar-sedocarro,anoitejánãoestavatãoescura.Eleolhouparacimaeviualuabrilhante,amarelada, imensa como se tivesse crescido muito em sua viagem pelo espaço e ainda estivessecrescendo.Parouderepente,osolhosfixosnela,oqueixoparacima,semconseguirmover-se.Sentiuumcalafrionaespinha,umaespéciedearrepionosossos...
—ALua—murmurou.Comosomdaprópriavoz,oarrepioalastrou-sepelapele,portodoocorpo.Eraprecisofugirdali...
rápido,rápido!AntesdesercorroídopelaluzácidaquepareciapingardaLua.Algumacoisacomeçavaaamolecerdentrodele...Eraprecisofugir!
O medo passou tão repentinamente como surgira. Jack não conseguia entender o que haviaacontecido.OqueteriaaLuaavercomaquilo?ALua...amesmavelhaLuadesempre,dascançõesdeamoredospoetas.Muitoestranho.Continuouaandarnadireçãodocarro,masnãoesqueciaaLuae,meiosemquerer,aindavirou-separaolhá-la,testafranzida.
Nocarro,dirigindoparaNewHaven,afinal,conseguiuparardepensarnaLua.Jenny,comosempre,ocupava-o inteiro,coraçãoecérebro...NoNatal,então,eraaindamais tristepensarqueelaestavanohospital,emcomairreversível.
Mais tarde,da janeladoapartamento,olhandoacidade iluminada,comumagarrafadecervejanamão,Jackconcluíaque,daRua261aoParkRow,deBensonhurstaLittleNeck,nãoexistianacidadealguémmaissolitáriodoqueelenaquelavésperadeNatal.
7.DIADENATAL
ElkoCounty,NevadaSandySarver acordou logo que o dia nasceu, clareando o tm-ler.Omundo parecia ainda não ter
despertado,comoseotempotambémestivessesuspenso.Sequisesse,elapoderiavirar-separaoladoe
continuardormindo,poisestavadefériaseaindatinhaoitodiasdefolgapelafrente.ErnieeFayeBlockhaviamfechadoomoteleviajadoparaMilwaukee,
afimdepassaroNatalcomosnetos.Orestaurantetambémestariafechado,pelomenosduranteoNatal.MasSandysabiaquenãoconseguiriadormiroutravez.Estavaacordada,bemacordada,eespreguiçou-secomoumagata.PensouqueseriabomacordarNed,beijá-lo,fazê-lomontarnela,masNederaapenasumasombranassombrasdoquarto.Emboraestivesseardendodevontade,resolveudeixá-lodormirmaisumpouco.Teriamuitotempoparafazeramoràtarde.Saiudacamasemfazerruído,foiatéobanheiroeabriuochuveiro.Achouprudentecomeçarobanhocomáguamornaeconcluí-locomumaduchagelada.
DuranteanosSandyhabituara-seà idéiadequeera frígidaenão tinha interesseporsexo;bastavaver-senuanoespelhoparacorardevergonha.Derepente,semmaisnemmenos,tudocomeçouamudar...Derepente,seucorpocomeçouaaquecer-seeosexopassouaparecer...interessante!Ditoassimpareciabobagem. Qualquer um sabe que sexo é interessante, mas até pouco tempo atrás, para ela, sexo eraobrigação.Derepente...ocorpoacordou:deliciosasurpresaemistérioindecifrável.
Depoisdobanho,voltounuaparaoquartoevestiuumablusadelãeacalçajeans.Entãofoiatéaminúsculacozinhado trailerparaprepararumsucode laranja,porémmudoude idéia.Preferia sairedirigirumpouco.DeixouumbilheteparaNed,vestiuocasacoforradodelãdecarneiroecorreuparaacamioneta.Dirigirera suasegundanovapaixãonavida,amaior felicidadedomundodepoisde fazeramor. Outra estranha mudança. Até pouco tempo atrás, Sandy não só detestava dirigir, como achavaumtormentoviajaremqualquerveículo.Ederepente...
Nãohaviamistério algumementender sua antiga aversão a sexo.A culpa era de seupai,HortonPurney, homemcalado,mesquinho e terrivelmente perigoso. Sandy não chegou a conhecer amãe, quemorreudepartoquandoelanascera.Masopai...conhecera-omuitobem,bemdemais.MoravacomelenumcasebreemruínasnosarredoresdeBarstow,noslimitesdodesertodaCalifórnia.Suasprimeiraslembranças da infância eram lembranças do pai, usando e abusando dela na cama.Até o dia em queSandyconseguiufugirdecasa,aosquatorzeanos,seupaiserviu-sedelaoquantoquis,comoseelanãopassassedeumbrinquedoerótico.
Seu problema com relação a qualquer veículomotorizado também estava relacionado com o pai.Hortonresolveramontarumaoficinadeconsertodemotocicletasnovelhogalpãoquehavianosfundosdacasa. Jamaisganharaum tostãocomonegócio,mas,umavezacada seismeses,obrigavaSandyaviajarcomele,duashorasemeiadepesadelo,atéLasVegas,ondeconheciaumsujeitochamadoSamsonCherrik. Cherrik tinha um caderninho com nomes e telefones de tarados que gostavam de alugargarotinhas.ECherrikadoravaverSandy.DepoisdealgumassemanasemLasVegas,voltavamparacasa,decarro,eseupaitinhaosbolsoscheiosdedinheiro.ParaSandy,aviagemaLasVegasconstituíaumtormento,porqueelasabiaperfeitamenteoqueaesperavalá.Noentanto,aviagemdevoltaerapiordoquequalquerpesadelo,porquesignificavavoltarparaacasasujaemalcheirosa...eparaacamaimundaonde a esperava a fome insaciável daquele porco chamadoHortonPurney.Para a frente oupara trás,sentia-sepresaaumaestradaquesópodialevá-laàdesgraça...Comotempo,omedocontaminoutodasaslembranças:oventodaestrada,ocheirodepoeira,oroncodomotor,ochiadodospneusnoasfalto.Eamalditaestrada!
Sentirprazernacama,comomarido,eracomoummilagre.Pareciaimpossívelacreditarqueumdiapoderiaesqueceradordopassado,ovenenoquecontaminavatodasassuasalegrias, transformandooprazeremdoreempecado.Atéque,doismesesatrás,noverão,tudosimplesmentemudou!Econtinuavamudando.Eracomorenascer,limpa,nova,rompendoascadeiasumaauma.Sentia-sedignaderespeito,pelaprimeiraveznavida...Sentia-selivre!
Entrou na camioneta e deu a partida. O trailer estava estacionado num lote de terra próximo a
Beowawe,umacidadetãope-quenaquenãoexistia,aoladodeumaestradaqueeraquaseumapicada.Sandyenveredouporelae
dobrouemdireçãoaonorte.PassandoporBeowawe,logochegariaàRodoviaOitenta,eentãopoderiairpara leste, até Elko, ou para oeste, na direção de Battle Mountain. Acabou decidindo-se pelo sul,entrandoporumaestradinhaesburacadaquenãocriouproblemaalgumnemàcamionetade traçãonasquatro rodas, nem à risonhamotorista que a dirigia em alta velocidade.Emquinzeminutos, chegou aumentroncamentoeescolheucontinuaremdireçãoaosul,entrandocadavezmaisnapaisagemdesertaedesolada.Comumaguinadanadireção,saiudaestradaeentrou,àdireita,numaestreitapicadaapenasmarcadasobreaterranuapelosulcodepoucoseraròspneus.
Haviaalgunsvestígiosdeneveacumuladadelongeemlonge.Nohorizonte,asmontanhasbrilhavam,muitobrancas,masnaplaníciehaviapoucaneveparaaépocadeNatal.Cáelá,via-seumaárvoreaindabranca,ouumapequenaelevaçãodeterramantendoaindaumpoucodeneve,ouaindaumarbustosecoguardandorestosdeneveentreosgalhos.Noconjunto,porém,apaisagemparecianua,secaemarrom.Ospneuslevantavamumanuvemdepoeira.
Sandy seguiu em frente, depois fez uma volta, rodou um pouco para o norte, virou à esquerda e,afinal,chegouaumlugarconhecido,aoqualnãoplanejarair.Faziajáalgumtempoque,aosairdecarrosem destino, acabava chegando àquele lugar.Nunca tomava omesmo caminho.Cada viagem era umasurpresa, e todas acabavam exatamente ali. Era difícil explicar, mas havia naquela paisagem algumacoisaqueaacalmava.Talvezfossemascolinas,ouaspedrasquepareciamaproximarasmontanhas,ouagrama—nemsabia,masachavaoconjuntomuitoagradávelàvista.Paradizeraverdade,o lugaremnadadiferiadecentenasdeoutrospedaçosdeterrapelasredondezas.MaseraaliqueSandysesentiaempaz.
Eladesligouomotoredesceudacamioneta.Deualgunspassosaesmo,asmãosmetidasnosbolsosdajaquetadelãdecarnei
ro, esquecida do frio. Por caminhos complicados, acabara aproximando-se da Rodovia Oitenta.Algunspoucosquilômetrosadiante,viaoscaminhõesquetrafegavam,escutavaoroncodosmotores.Masera feriado, e havia poucomovimento na estrada. Do outro lado estavam oMotel Tranqüilidade e orestaurante,masSandyapenascorreuosolhosnaqueladireção.Oqueaatraíaestavaàfrente,talveznaterra, talveznoar,masali,eraondeelasesentiaemcasa.Ali,ondeapaznasciadaspedras.Comoocalorqueochão irradiaà tardinha,depoisdeumdiadesolmuitoquente.Nãoestavapreocupadaemdescobrir por quegostava tantodaquela lugar.Bastava-lhe sentir a belezaquepareciabrotar de cadagalhosecoedecadatorrãodeterra.Ninguémprecisatentarentenderporqueachabelooocaso,ouporqueprefererosasacravosoujasmins.
NaquelamanhãdeNatal,SandyaindanãosabiaqueestavapisandoamesmaterraemdireçãoàqualErnieBlock forapraticamentearrastado,nodia10dedezembro,aovoltardeElko, semcompreendercomo ou por quê. Também não sabia que Ernie vivera ali uma espécie de transe, exaltação emedo,emoçõescompletamentediferentesdasqueelaexperimentava.Aindapassariamsemanas,atédescobrirque aquele lugar exercia uma atração estranha, e muito forte, sobre várias outras pessoas, genteamiga,queelaaindanãoconhecia.
Chicago,IllinoisFoiamanhãdeNatalmaisatribuladadavidadopadreStefanWycazik,aquelepolonêsincansável,
párocodeSantaBernardet-te,salvadordepadresemconflito.Amedidaquepassavamashoras,amanhãcomplicou-se, até se transformar no mais fantástico Natal de quantos havia tido ou teria. Depois damissa,recebeuosparoquianosquequeriamcumprimentá-loeoferecer-lhecestasdefrutasoupratinhosdebolo,efoiatéoHospitalUniversitárioparavisitarWintonTolk,opatrulheiroferidoduranteoassalto
ao bar no centro da cidade. Tolk fora operado e passara a tarde e a noite na Unidade de TerapiaIntensiva;demanhã,twnstcriranwioparaumdosquartosanexosàUTI,porquejásuperaraafasecrítica.
QuandoopadreWycazikchegou,encontrouRaynellaTolk,amulherdopatrulheiro,sentadaaoladodacama.Eraumamulatabonita,depelacordechocolateecabelosbemcuidados.
—SenhoraTolk?SouStefanWycazik—apresentou-se.—Mas...Ovelhopárocosorriueprocuroutranqüilizá-la:—Acalme-se.Nãoestouaquiparadaraextrema-unçãoaseumarido.—Aindabem...—murmurouWinton.—Nãotenhoamenorintençãodemorrer.Conscienteeatento,opatrulheiroapresentavaexcelenteaparência.Estavaquasesentadonacama,as
costas apoiadas no estrado erguido; tinha o peito envolto em bandagens, vários eletrodos colados aotóraxeumcateterpresoàagulhaespetadaemsuamão.Comcertezaaindaestavarecebendoglicoseeantibióticos,maspareciaencontrar-seemfrancarecuperação.
OpadreWycazikficouparadojuntoaospésdacama,girandoobarreteentreasmãos.Derepente,dando-secontadoquefazia,jogouobarretesobreumacadeirapróxima.
— SenhorTolk,seachaqueestáemcondiçõesdefalar,gostariadelhefazeralgumasperguntassobreoquehouveontem—disse,e,notandoosolharesintrigadosdocasal,tentouexplicar-semelhor:—BrendanCronin, o rapaz que acompanhou vocês no patrulhamento durante a semana toda, é...meufuncionário.
—Esseéumhomemqueeuqueriaver!—Raynellaexclamou,orostoiluminando-se.— Elemesalvouavida—Tolksuspirou.—Fezuma loucura!Umacoisaquenuncadevia ter
feito...Massouobrigadoaadmitirque,seBrendannãotivesseagidocomolouco,eunãoestariaaqui,agora.
—OsenhorCroninentrounobarsemsabersealgumassaltanteaindaestavaescondidoporlá—explicouRaynella.—Correuoriscodeserassassinado!
— Nossos regulamentos proíbemque qualquer policial faça o que ele fez. Se a situação fosseinvertida... querodizer, se ele estivesse emmeu lugar, eunãopoderia entrar nobar—opatrulhei-roinformou.—Osenhorentende,nãoé?EunãodariaaBrendanumamedalhaporbravura...masdevo-lheavida.
O pároco franziu as sobrancelhas. Já sabia de tudo aquilo desde a véspera, depois de uma longaconversacomochefedeTolk,seuvelhoamigo.WintonTolkeraosegundohomem,emapenasalgumashoras,queelogiavaacoragemdeBrendanechamava-odelouco.—Engraçado...Brendansemprefoiumdemeusmelhores...funcionários.Eleatendeuosenhor?Prestou-lheosprimeirossocorros?
— Achoque sim,masnãopossoafirmar—Winton respirou fundo.—Só seique,de repente,recupereiaconsciência...eeleestavameiodebruçadosobremeupeito,chamandomeunome...Maseuestavamuitoferido...quaseinconsciente.
—Eummilagremeumaridoestarvivo—murmurouRaynel-la,estremecendo.— E mesmo... — O policial sorriu carinhosamente para a esposa e voltou-se para o padre
Wycazik. — Na verdade, ninguém acreditava que eu conseguisse sobreviver. Parece que perdimuitosangue.
—Brendanaplicou-lheumtorniqueteparaestancarahemorragia?—Nãosei.Comojádisse,euestavaquaseinconsciente.O padre calou-se, tentando encontrar um modo de perguntar o que queria saber sem expor os
verdadeirosmotivosdesuavisita.—Euseiquevocêestavaquaseinconsciente...masseráquechegouapercebersehaviaalguma
coisa...diferente...ouestranha...nasmãosdeBrendan?—Comoassim?Oqueosenhorquerdizer?—Eletocouseusferimentos,nãotocou?— Nãosei.Achoquesim...—Wintoncalou-seporum instante,procurando lembrar-se...Sim!
Claro!Elemetomouopulsoedepoisprocuroudescobrirdeondesaíaosangue.—Equandoeleotocou...Vocêsentiualgumacoisa?Algumacoisa...diferente?—Naoestouentendendo...0velhosacerdotebalançouacabeçaesorriu:—Naosepreocupe.Oqueimportaéquevocêestábem.—Consultouorelógioefingiusurpresa.
—Deusdocéu!Estouatrasadíssimoparaumcompromissomuito importante!—E,antesqueosdoistivessem tempo de perguntar-lhe o que fora fazer ali, acenou-lhes com uma bênção rápida e saiu doquarto.
0padreWycazikandavacomosargento instrutorde recrutas:passos firmes, cabeçaerguida,peitoestufado,barrigaencolhida.Quandotinhapressa,então,avançavacomoumtanquedeguerra.Ninguémesperariaverumpadreandardaquelejeito.
AosairdoquartodeTolk,elemarchoupelocorredor,empurroumecanicamenteasduasportasdevaivémqueapareceramasuafrenteeavançoupelaalacentraldaUTI,ondeTolkestiverainternadonavéspera.Mal viu a primeira enfermeira, pediu-lhe— ou ordenou-lhe— que chamasse o médico deplantão,dr.RoyceAlbright.RogandoaDeusqueoperdoassepormentirumpoucoelevasseemcontasuaboasintenções,apresentou-secomoconfessoreguiaespiritualdafamíliaTolk;dissequeRaynellaoencarregaradeinformar-sesobretodososdetalhesdasituaçãodomarido;comoelerealmenteestava,quetratamentorecebia,quetipodeferimentossofrerá.
0dr.Albrighttinhaumrostoextremamenteengraçadoeumavozincrivelmenteséria,oquetornavadifícilodiálogo;entretanto,mostrou-sedispostoaresponderaqualquerperguntaqueafamíliadesejassefazer.Não estava encarregado do caso,mas lera todos os relatórios ao chegar pelamanhã, porque oquadroparecia-lhemuitointeressante.
—DigaàsenhoraTolkquetodospodemdormirtranqüilos.0patrulheiroestáserecuperandobem,muitobem.Recebeuduasbalasnotórax,disparadasquaseàqueima-roupa,calibre38.Atéontem,nuncavininguémlevardoistirosde38notóraxesair
daUTIemmenosdevinteequatrohoras.OsenhorTolkéumhomemdesorte.—Asbalasnãoatingiramocoração,nemoutroórgãovital.Eisso?—Sim,masnãoésó—Albrightfranziuassobrancelhas.—Ostirosnãoatingiramsequeruma
veiaouartériaimportante.Osenhorsabequeumabala38éumverdadeiropetardo,nãosabe?Destróiostecidosqueencontrapelafrente,trituraostecidoschamados“moles”,epoderebentaratéosossosmaisresistentes. No caso de Tolk, a bala lesou veias e artérias, porém não causou um só rompimentosignificativo.Purasorte.
—Entãoatrajetóriadasbalasfoiinterrompida...poralgumOSSO?—Desviada,talvez.Nãoháossoqueconsigapararumabaladealtocalibre.Osprojéteisforam
localizadosemtecidosmoles.Eaíestáoutracoisacuriosa...Nãohásinaldefratura.Muitasorte.OpadreWycazikbalançouacabeça,concordando,eperguntou:— E como estavam os projéteis quando foram extraídos?Eram realmente de tão alto calibre?
Apresentavamalgumdefeito...defabricação, talvez?Umdefeitoexplicariaporqueduasbalas trintaeoitonãomataramopatrulheiroTolk...nemchegaramaferi-lomaisquetrêstiroscalibrevinteedois.
Omédicofezumacareta,quetornouseurostoaindamaisengraçado.
— Nãosei...Epossível,pelomenosemtese.Paradescobrir isso,osenhorprecisaperguntaràpolíciatécnica.OuaodoutorSonneford,ocirurgiãoqueextraiuosprojéteis.
—OuvidizerqueTolkperdeumuitosangue.—AindanãoencontreiodoutorSonneford,mastenhocertezadequehouveumerronorelatórioda
cirurgia.Orelatóriodizqueopatrulheirorecebeumaisdequatrolitrosdesangueemtransfusãoenquantopermaneceunocentrocirúrgico.Eclaroquenãopodeser!
—Eporquenão?—SeTolktivesseperdidomaisdequatrolitrosdesangueantesdeentraremcirurgia,nemteria
sidoprecisooperá-lo...Porqueelejáestariasemcirculação.Estariamorto.Frioeduro.LasVegas,NevadaMaryePeteMonatella,paisdeJorja,chegaramaoapartamentodafilhaàsseishorasdamanha,os
olhos inchadosde sono, decididos aocuparo lugarque lhes cabia, pordireito, ao ladoda árvoredeNatal,nomomentoemqueMareieacordasseparaabrirospresentes.
DaalturadeJorja,Maryjáforaumamulherdecorpoperfeito;agora,envelhecida,pareciapesada,gorda,desleixada.Peteeramaisbaixoqueaesposa;tinhapeitolargoepernascurtas,econseguiasumirdequalquerambientesemdarumpasso.EraohomemmaistransparenteeinvisívelqueJorjaconhecia.Osdoischegaramcarregadosdepresentesparaanetaedecríticasparaafilha.Semprequeiamvisitá-la, punham-se a desfiar um rosário de cansativas reprovações e impraticáveis conselhos. Nem bementrara,MaryjácomentavaqueJorjaprecisavalimparaspásdoexaustor.Depois,colocandoospacotesjuntoàárvore,exclamou:
— Que falta de imaginação! Por que não comprou fitasmais coloridas?Criança adora pacotebonito,commuitasfitas,detodasascores.
Em matéria de crítica, Pete não ficava atrás; ao arrumar a bandeja de doces, mostrou-seescandalizado:
—Docesdepadaria...?!Vocêteveacoragemdenãofazerbolinhosparasuafilha?!VerdadeirosbolinhosdeNatal...
—Papai,nãotenhotempoparaisso...Trabalhomuito,vouàuniversidadee...— Nao venhame dizer que é difícil ser mãe divorciada— interrompeu-a o velho.— Estou
cansadodesaberqueédifícil.Eulhedissequeeradifícil...Masestamosfalandodecoisassérias,detradições que não podem ser esquecidas! O que é um Natal sem bolinhos feitos em casa?! Estamosdiscutindoprincípios!
—Eissomesmo—Maryconcordou.—Princípios!JorjaaindanãosedeixaraenvolverpeloespíritodoNatal,e,nopassoemqueiaacarruagem,nunca
chegaria lá. Com pai e mae falando sem parar, dizendo sempre asmesmas coisas, no eterno tom dereprimenda...nememmilanoschegarialá!QuemasalvoufoiMareie.
Às seis e meia em ponto, a menina apareceu à porta do quarto, um segundo depois de Jorja tercolocadooperunoforno.Aindaestavadecamisola,ospezinhosnoschinelos,lindacomoumaboneca.
—SeráquePapaiNoeltrouxeo“MédicoInfantil”queeupedi?—Issonãosei,mastrouxeummontedecoisas—respondeuPete.—Venhasóver.OsolhosdeMareiebrilharamaoavistar apilhadepacotesembaixodaárvore, e suacontagiante
alegriateveodomdeinterromperossermõesdosavós.Durantealgunsminutos,oapartamentoencheu-sederisoseexpressõesdefelicidade.
Agarotahaviaabertoametadedospacotesquandooclimadealegriaemfamíliacomeçouamudar—apenasumarápidaamostradatempestadequedesabariamaistarde.Comavozangustiada,osolhoscheiosde lágrimas,Mareie reclamouquePapaiNoelesquecerao“Médico Infantil”.Colocoude lado
umaenormeboneca,semaomenostirá-ladacaixa,eatirou-sesobreosembrulhos,procurandooúnicoquerealmenteainteressava.Haviafrenesioudesesperonosgestoscomquerasgavaospapéis,arrancavaasfitasedescartavaosbrinquedos.Jorjalogopercebeuquealgumacoisanãoiabem.MaryePeteaindaprecisaramdeváriosminutos,mas,porfim,tambémnotaramecomeçaramapedirànetaqueexaminassemelhor o conteúdo de cada caixa, não jogasse as coisas para trás, pensasse que os brinquedos eramfrágeis...Nãoconseguiramnada.
Jorjanãohaviadeixadoo“Médico Infantil” juntoàárvore;preferiraescondê-lonoarmário,parafazerumasurpresaàfilha,eagoraarrependia-seamargamentedaidéia.Diantedostrêsúltimospacotes,todos pequenos demais para conter o que ela procuravaMareie começou a tremer dos pés à cabeça.Mas...peloamordeDeus!Oqueesse“MédicoInfantil”poderiaterdetãoimpor-
tante?QualqueroutrobrinquedoqueMareieganharaedeixarade ladoeramuitomaiscaro,muitomaisbonito.Porqueelaestavatãoobcecadapelo“MédicoInfantil”?
Depois de identificar todos os brinquedos, quando já não havia junto à árvore um único pacotefechado,Mareiepôs-seachorar,desesperada:
—Naoveio!PapaiNoelesqueceu!Eleesqueceu!Considerandoaenormequantidadedepresentesqueseespalhavampelochão,aquelaslágrimaspareciamaindamaisestranhas.MaryePeteolhavamparaanetasemsaberseeraocasodebrigarcomelaoucomJorja,queacriavatãomal.
Jorja escolheuo caminhomais fácil para impedir que oNatal virasse guerra antesmesmode serfesta: correu a buscar o brinquedo escondido. Quando voltou, com o pacote nas mãos, Mareiepraticamentesaltousobreela.
—Mas...oqueestáacontecendocomessamenina?!—Maryarregalouosolhos.—Oqueessetalde“MédicoInfantil”podeterdetãoespecial?—Petevirou-separaafilha.Mareiearrancouasfitascomumgestobrusco,rasgouopapeldoembrulho,esóquandosecertificou
dequetinhanasmãososonhadobrinquedofoiquecomeçouaseacalmar:—PapaiNoelnãoesqueceu...—murmurou.—NemtodosospresenteséPapaiNoelquemdá—comentouJorja,aproximando-sedafilha.—
Porqueéquevocênãodáumaespiadinhanocartão?—Parecendodesinteressada,ameninaobedeceuesorriusementusiasmo.
—E...dopapai...Jorja sentiu o olhar deMary e Pete,mas não teve coragem de virar-se para encará-los.Os dois
sabiamqueAlan estava emAca-pulco, com a tal “Pimentinha”, e que jamais se daria ao trabalho decomprarumpresenteparaMareie,muitomenosdemandá-loentregarcomumcartão.EJorjasabiaqueeles não concordavam com as artimanhas de que lançavamão para iludir a filha.Mais tarde, quandoestavacuidandodoperu,Maryaproximou-sedela.
— Por que fez aquilo?—perguntou baixinho.—Por que disse aMareie que aquele rato lhemandouopresentequeelamaisqueria?
Antesderesponder,Jorjavirouoperu,regou-ocomomolhoerecolocouaassadeiranoforno.—MareiemereceterumNatalfeliz,comotodasasmeninas.QueculpaelatemseAlanéumrato?—Elanãotemculpa.Masnãosedevementirparaascrianças.Averdadeéaverdade—Mary
insistiu.—Elasótemseteanos,mamãe.Averdade,nocasodela,étristedemais.—MaiscedooumaistardeMareievaidescobrirqueméAlan...Vocêsabeoqueseupaiouviu
dizersobreamulherqueestávivendocomele?Aturdida com a pergunta, ansiosa para mudar de assunto, Jorja espiou o peru mais uma vez e
exclamou:
—Tomaraquenãofiquemuitoseco!Amanobranãodeucerto.Marydisparouainformação:—Elatrabalhaemdoiscassinoscomocallgirl.Callgirl...garotadeprograma...prostituta!Opai
de Mareie está vivendo com uma prostituta! O que aconteceu com ele?! — Sem esperar resposta,pronunciouseuveredito:—Emelhorparavocêsduasqueeleasesqueça.SabeDeusquedoençasdeveter,andandocomumaprostituta.
Pelaterceiravez,Jorjaabriuofornoparaexaminaroperu.—JálhepediparanãofalaremAlan—resmungou.—Penseiquevocêgostariadesaberqueméamulherque...—Poisbem,agorajásei.Quetalencerraroassunto?—Mas...minhafilha...jápensouseeleapareceraquiderepenteedisserquequerlevarMareie
para Acapulco, ou para Disneylân-dia, ou sei lá para onde...? A pobre inocente com aquele paidepravado...
— Oque você está dizendo é absurdo.Alan não quer nem lembrar queMareie existe!PorqueMareieéaprovavivadasresponsabilidadesqueeledeveriaassumirenãoquerassumir!
—Masese...—Chega,mamãe!Quemerda!Nao foi um grito, porque as duas continuavam a falar em voz baixa, mas havia tanto rancor nas
palavras de Jorja que o efeito foi imediato.Mary calou-se, caminhou até a geladeira, abriu a porta eexaminouoconteúdo.
—Vocêfeznhoque!—comentou.—Sim,fiz,comminhasprópriasmãos.0 comentário não foi feito com a intenção de alimentar a discussão, mas, considerando os
“princípios”dePete,talvezparecesseumaprovocação.Jorjamordeuoslábioserespiroufundoparanãochorar.Marycontinuavaparadadiantedorefrigeradoraberto.
—Asaladatambémestápronta...Eeuquepenseiquevocêfosseprecisardeajuda...Qualoquê...Vocêresolveutudo,jápreparouojantar...
Semsaberoquefazer,Maryfechouorefrigeradoreolhouemvoltaàprocuradealgumaoutracoisapara elogiar.Aover seus olhosmarejados de lágrimas, Jorja correu para ela de braços abertos.Nãohaviaoquedizer,e,sehouvesse,nãosaberiamcomodizer,porissoabraçaram-seemsilêncio.Minutosdepois,Marysacudiuacabeça:
—Nãoseiporquesouassimcomvocê.Minhamãeeraassim,eamãedelatambém.Eeujureique,comvocê,euseriadiferente!
—Euamovocê...dojeitinhoquevocêé.—Achoqueoproblemaéquevocêéminhaúnicafilha.Seeutivessetidomaisfilhos...doisou
três...achoqueseriamaisfácil.—Aculpaéminha.Tenhoandadotensa,preocupada...— Claro que você está preocupada. — Mary abraçou-a com mais força. — Aquele rato
desaparece,deixaMareie sozinha,obrigavocêa trabalhardedia e estudar ànoite...Você tem todoodireitodeestartensa...Maseumeorgulhotantodevocê!Eprecisotermuitacoragemparaenfrentaravidacomovocêavemenfrentando.
OsgritosdeMareieinterromperamocarinhosodiálogo.Oqueseráqueelainventouagora?,Jorjapensou.Aproximou-sedaportadasalaeviuPetetentandoconvenceranetaabrincarcomumabonecaquelhedera.
— Olhe só— dizia o velho.—Ela chora quando você aperta a barriga, ri quando você faz
cócegasnascostas...—Nãoquerosaberdessadrogadeboneca!—Mareiegritououtravez,comaseringadeplástico
apontadaparaoavô.—Oqueeuqueroédaroutrainjeção!—Masjátomeimaisdevinteinjeçõeshoje...—Petegemeu.—Estoucansado...—Euprecisopraticar...—suplicouamenina,lançando-lheumolharaflito.—Seeunãocomeçar
aaprenderagora,nuncavouconseguirserminhaprópriamédica...Porfavor...Petevirou-separaafilhaefezumacaretadeirritação.Maryfranziuassobrancelhas:—Oqueéqueelatemcomesse“MédicoInfantil”?!—Ah...Eutambémgostariadesaber...—suspirouJorja.—Muitoséria,Mareieaplicouainjeçãonobraçodoavô.Jorjaviuquesuatestabrilhavadesuor.—Eutambémgostariadesaber...—repetiu.Boston,MassacbusettsFoiopiorNataldavidadeGingerWeiss.Apesardeserjudeu,seupaijamaisdeixaradecelebraroNatal,porquediziaque“paznaterraaos
homensdeboavontade”nãopoderiafazermalaninguém.Mesmodepoisdesuamorte,GingercontinuarasentindoqueoNataleramaisqueumsimplesferiado,eraumdiadepazeharmoniaentreoshomens.Atéaqueleano,oNataljamaisadeprimira.
GeorgeeRita fizeramopossíveleo impossívelparaqueelanãose sentissedeslocada,masnãoconseguiramdesfazer-lheaimpressãodequeseestavaintrometendonaintimidadedeumacomemoraçãofamiliar.OstrêsfilhosdocasalhaviamchegadoaoMiranteparapassaralgunsdiasdeférias,eosnetosenchiamacasaderuídoserisadas.TodososHannaby,domaisvelhoaomaismoço,esforçavam-separaincluí-lanosritostradicionaisdafami-
lia, como reunir-se para fazer pipocana cozinhaoubater deporta emporta pela vizinhançaparadesejarfelizNatal.
NamanhãdeNatal,láestavaela,vendoascriançasatacaremfuriosamenteamontanhadepresentesque as esperava junto à árvore enfeitada de bolas, velas e biscoitos. Como todos os adultos, estavasentadanochão,abrindopacoteseensinandoascriançasamanusearemosnovosbrinquedos.Duranteduasoutrêshoras,chegouaesquecerosproblemasedeixou-seenvolverpelaalegriadafesta.
Ahoradoalmoço,porém—umalmoço farto,mas simplese leve, espéciede“aperitivo”paraograndejantar—,aalegriajáhaviasumido,eGingervoltavaasentir-seforadelugar.Quantomaisouviaasrisadaseasconversassobre“osvelhostempos”,maisselembravadostemposemquesuavidaeraumaestradaclara,semobstáculosintransponíveisesemtropeçosinimagináveis.
Depoisdoalmoço,dissequeestavacansadae refugiou-senoquarto.Apaisagemqueavistavadajanelaacalmou-aumpouco,masnãoafezsentir-semelhor.Se,pelomenos,pudessetercertezadequePabloJackson lhe telefonarianamanhãseguinte...e lhediriaqueestudaraseucaso,pesquisaraoutroscasossemelhantesdebloqueiosdememória...eestavaprontoparahipnotizá-laoutravez!
ParasurpresadeGinger,nemGeorgenemRitapareceramespantadoscomavisitaquehaviafeitoaPablo.Mostraram-sepreocupados,éclaro,porqueelasaírasozinhaefizeram-naprometerque,nofuturo,pediriaaRita,aomotoristaouaqualqueroutroempregadodacasaquealevasseaondequisesseir.Nãodisseramumapalavrasobreaidéiadetentaroutrocaminhodecura...aindaqueachassemmuitoestranhoaquelecaminhodahipnosepraticadaporummágico.
Por mais bela que fosse a paisagem, Ginger acabou cansando-se de ficar em pé junto à janela.Aproximou-se da cama e surpreendeu-se ao ver dois livros colocados na mesa-de-cabeceira. Umdeles era um romance de Tim Powers, autor que ela já conhecia; o outro, uma cópia ainda nãoencadernadade...talvezumromance...
Crepúsculo na Babilônia. Quem os teria deixado ali? Seu quarto vivia cheio de livros, todostrazidos da biblioteca de George e Rita, porque, nas últimas semanas, Ginger não faziapraticamentecoisaalgumasenãoler.MastinhacertezadequeolivrodeTimPowersnãoforaretiradodabibliotecajuntoaosalão,ejamaisouvirafalaremCrepúsculonaBabilônia.
OromancedePowerspareciaótimo:tratavadevagabundosviajandopelopaís,duranteaRevoluçãoAmericana,fazendosuaprópriaguerraparticularcontraossoldadosingleses...Jacobadoravaromanceshistóricos.Enquantofolheavaolivro,Gingerviuumpapelcoladoàcapadooutrovolume.Examinou-ocomatençãoereconheceuaassinaturadeumaamigadeRita,quefaziarese-‘nhasparaoGlobe.Semprequelhecaíanasmãosumlivro interessante,elaomandavaparaRita,mesmoantesdolançamentonaslivrarias.Sabendodisso,Gingerconcluiuqueoslivroshaviamacabadodechegar,eRitaoslargaraaliporsaberquenãoteriatempodelerduranteasfestas.
DeixandodeladooromancedePowers,GingerapanhouCrepúsculonaBabilônia.Nãoconheciaoautor. Dominick Corvai-sis, mas achou interessante o pequeno resumo da história, impressa nasobrecapa. Correu os olhos pela primeira página, voltou ao primeiro parágrafo para reler commaiscuidado... e não pôde mais largar o livro. Ainda estava sentada na cama; para acomodar-se melhor,levantou-se e caminhou até uma das poltronas junto à lareira. No breve trajeto, e só então, viu afotografiadoautornacontracapa.Sentiuapelearrepiar-se.Tremeudospésàcabeça...Porummomento,teveaimpressãodequeaquelafotografia,comoasluvasouooftalmoscópio,desencadearianovacrise.Tentou jogaro livro longe, enãopôde.Tentou andarpara apoltrona, e tambémnãoconseguiu.Entãofechouosolhos,respiroufundo,uma,duas,trêsvezes,esperandoqueapulsaçãovoltasseaonormal.
Quandoolhounovamenteafotografia,orostoestampadonacontracapaaindaaperturbava,masnãotantocomodaprimeiravezqueovira.Tinhacertezadequeconheciaaquelehomem...
o rosto não lhe era estranho... conhecera-o em circunstâncias... desagradáveis,mas não conseguialembrar quando ou onde. A biografia do autor, logo abaixo da fotografia, dizia que havia vivido emPortland, Oregon, e atualmentemorava em Laguna Beach, Califórnia... lugares onde ela jamais haviapostoospés.Ondepo-deriamter-seconhecido?DominickCorvaisis,pareciatercercade35anos...Umhomematraente,parecidocomAnthonyPer-kinsquando jovem.Taoatraentequeparecia inacreditávelelatê-loesquecido...
Areaçãoqueorostodaquelehomemprovocaraeraestranha,masemoutrostemposGingernãoseteriapreocupadomuito.Nosúltimosdoismeses,porém,aprendeuarespeitartodosossinais,pormaisinsignificantesqueparecessemàprimeiravista.
Sentou-se,fixouosolhosnorostodeDominickCorvaisis,econcentrou-seomaisquepôde,tentandolembrar.Porfim,comoseadivinhassequeoCrepúsculodaBabilôniaprovocariamudançasprofundasemsuavida,recomeçoualer.
Chicago,Illinois0padreStefanWycaziksaiudoHospitalUniversitário,entrounocarroerumouparaoprédioonde
funcionavaoDepartamentodeInvestigaçõesCientíficasdaPolíciadeChicago.EradiadeNatal,porémosempregadosdaprefeituratrabalhavamduro,limpandoanevedascalçadas.
NolaboratóriodoDIChaviaapenasdoisfuncionáriosdeplantão,asvelhassalasdovelhoprédiodesertascomoumatumbaegípciaescondidasobtoneladasdeareiaepedra.
Em circunstâncias normais, a polícia jamais concordaria em responder às perguntas do padreWycazik. Mas, em primeiro lugar, para o sacerdote, aquelas não eram circunstâncias normais;em segundo lugar, metade da força pública de Chicago era composta de policiais católicos, o quesignificavaqueopadreWycazikpodiacontarcomasolidariedadede,pelomenos,algumasdezenasdefuncionários. Vários deles haviam facilitado seu acesso pelos corredores tumulares do DIC até a
presençadodr.MurphyAimes.Gordo e careca, o dr. Aimes tinha um bigode ralo que lhe pendia dos cantos da boca. O padre
Wycazikjáhaviafaladocomelepelotelefone,antesdeirvisitaropatrulheiroTolknohospital,eporisso era aguardado no laboratório. Os dois homens sentaram-se, um frente ao outro, junto a um dosbalcões da sala principal do laboratório, sobre o qual estavam arrumados, à espera, uma pasta dedocumentoseváriosoutrosobjetos.Odr.Aimesfoioprimeiroafalar:
—Antesdemaisnada,gostariadedizer-lhequejamaisconcordariaemfalarcomosenhorsobreoincidente que envolveu o patrulheiro Tolk, se houvesse a mais remota possibilidade de que o casochegasse a julgamento. Como os dois assaltantes foram mortos e não há a quem acusar, podemosconversar.
—Compreendoerespeitosuaposição.Elheagradeçomuitoofavordemereceber.OsolhosdeAimesbrilhavamdecuriosidade.—Aindanãoconseguientenderexatamenteoquehádetãointeressantenessecaso—disse.—
Nemporqueosenhorparecetãopreocupado.—Parasersincero,eutambémaindanãoconseguientender.—Replicouopároco,balançandoacabeça.Nãodisseraumaúnicapalavraclarasobreocasonemaosamigosaquempediraajudaparaentrar
emcontatocomalguémdapolícia,e tambémnão tinha intençãodesermuitoexplícitocomaqueledr.Aimes.Tudo por uma única razão: se dissesse a qualquer umdeles o que, em sua opinião, tornava ocasotãointeressante,pensariamqueestavaloucoedesistiriamdeajudá-lo.
—Bem...—Aimesdeudeombros,conformadoemnãoversatisfeitasuacuriosidade.—Osenhorperguntousobreasbalas.
—Abriuumenvelopeplásticoeesvaziou-onapalmadamão,exibindodoispequenosfragmentosdechumbo.—AquiestãoasbalasqueforamextraídasdotóraxdopatrulheiroTolk.
—Essesfragmentosjáforamexaminados,não?—Opadreapanhouumdeleseaproximou-odosolhos.—Creioque isso é procedimento rotineiro.Eopesodeles era... normal, parao calibre... quedeveriamter?
—Seosenhorestáperguntandoseosprojéteisestãoreduzidosafragmentostãopequenosporquebateramemalgumaparede, a resposta énão.Na verdade, esses projéteis devem ter batido em algumosso,eéestranhoqueosfragmentosnãosejamaindamenores.Mas,paratodososefeitos,essespedaçosdechumboestãonormais.
—Oqueeuqueriasaberéseopesodessechumboéopesonormaldochumbodeumabaladecalibretrintaeoito.Poderiaterhavidoalgumdefeitodefabricaçãonessasbalas,porexemplo?
—Oh,não,claroquenão.Estãonormais.Nãohádúvida.— Essas balas então são grandes... capazes de causar terríveis ferimentos a um homem —
comentouopárocopensativo.—Equantoàarma?Aimesapanhououtroenvelopeplástico,maiorqueoprimeiro,eretirouumrevólver.Orevólverdo
qualsaíramasbalasqueferiramTolk.—Tambémfoiexaminado?—perguntouStefan.—Testedebalística,tiros?—Tudo.Procedimentorotineiro.— Enãohánadade... estranhonessaarma?Nadaquepudesse ter feitoo tironão sair... como
deveria sair? Nada que pudesse ter feito com que o projétil fosse lançado a baixa velocidade, porexemplo?
— Eumaperguntabemestranha...Dequalquermodo,a respostaénão.Eumaótimaarma,emperfeitoestado.
OpadreWycazikrecolocouosfragmentosdechumbonoenvelopeelevantouosolhos:—Eoscartuchos?Poderiamtermenospólvoraqueonormal?Poderiamestarmalcarregados?—EstátentandodescobrirporquedoistirosdetrintaeoitonãoacabaramcomopatrulheiroTolk?
—perguntouAimes,osolhosmuitoabertos.Ovelhosacerdotefezquesimcomacabeça,econtinuoucomointerrogatório.—-Sobrarambalasnotambordorevólver?—Duas.Eohomemtinhaaindamaismuniçãonosbolsosdocasaco.Maisumadúziadebalas.—Osenhorchegouaexaminarasbalasqueficaramnotambor?—Paraquê?—Aimesarregalouaindamaisosolhos.—Poderiaabrirumdessescartuchosagora?—Sim...masporquê?Oqueosenhorestáprocurando?OpárocodeSantaBernardettesuspirouebalançouacabeça:—Temtodaarazãodeficarintrigado,eeugostariamuitodeagradecer-lheaatençãoqueestáme
dando,masaindanãopossolhedizernada.Comoosmédicos,osadvogadoseospoliciais,ospadressãoresponsáveisporsegredosque,àsvezes,nãodevemrevelaraninguém.Sópossoprometer-lheque,casoascircunstânciasmepermitamdarasexplicaçõesqueosenhortemodireitodeesperar,voltareiaquielhecontareitudo.
Aimesfranziuassobrancelhaseencarouovelho,comoqueavaliandoosriscos.Stefannãofugiuaoolhar;ooutrolevantou-seeapanhouumterceiroenvelope,quecontinhaoscartuchosnão-disparados:
—Espereaqui—disse.Vinteminutosdepois,voltoucomumapequenabandejabrancae,sobreela,asduasbalasabertase
desmontadas.—Eaquiqueaagulhaentra—explicou,apontandoumapequenapeçaarredondadacomumfuro
minúsculoaocentro—epassaparaocompartimentoondeficaarmazenadaapólvora.Atéesseponto,tudoperfeito.Naoutraextremidadedocartuchoestáacápsulacomabuchaeochumbo,envoltonessaespéciedecapadecobre.Todoequalquer tipodeprojétil apresentaessas ranhurasemvolta,ondeécolocadaumagraxaquefacilitasuapassagempelocanodaarma.Deumlado,aentradadaagulha;deoutro,acápsula.Entreumaextremidadeeoutraficaapólvora,noquecostumamoschamarde“câmaradecombustão”.Aquiestáomaterialqueextraídacâmaradecombustãodessabala.Estávendoessesflocosminúsculos, cinzentos?E nitrocelulose,material altamente combustível que se inflama ao ser atingidopela
faísca da entrada da agulha. Quando a nitrocelulose explode, a cápsula é expelida para fora docartucho. A câmara de combustão estava cheia de nitrocelulose. Para evitar voltar ao laboratório,abritambémasegundabala.Nãoháamenorsombradedúvida.Asduasestãoperfeitas.OhomemqueferiuopatrulheiroTolkestavacarregadocomexcelentemuniçãoRemington,emperfeitoestado.Tolkéumhomemdesorte.Muitasorte...
NewYork,NewYorkJackTwistpassouoNatalnaclínicaaoladodeJenny.Nosferiadoseraaindamaistristepassaras
tardescomaesposa,porémseriamuitopiorpensarqueelaestarialásozinha.‘EmboraJennytivessepassadoemcomaprofundamaisdedoisterçosdesuavidadecasados,Jack
aindaaamavacomoantigamente.Faziamaisdeoitoanosquenãoaouviafalarnemaviasorrir.Jánãopodiabeijá-lo,mas,paraele,aindaeracomosenaquelacamaestivesseJennyMaeAlexander,sualindanoiva.
Na prisão do ditador latino-americano, Jack mantivera-se vivo graças à certeza de que Jenny oesperava em casa, sentia saudade, preocupava-se com ele e rezava todas as noites para que Deus
o levasse de volta. Ao longo do calvário de fome e torturas, era essa certeza que o impedia deenlouquecer,acertezadeque,maisdiamenosdiareencontrariaoabraçodeJenny,sentiriaseucalor,ou-viriaseuriso.Umfiodeesperança,muitotênue,queoseparavadamorteedaloucura.
Dosquatrosoldadosqueforamcapturados,apenasJackeOscarWestonsobreviverameconseguiramvoltarparacasa.Afugatambémforainacreditável.Passaramquaseumanoàesperadequealguémosresgatasse, certos de que seu país jamais os deixaria entregues à sanha daqueles animais. As vezes,chegavamacon-jeturarsobrea formade resgate:algumcomandodeelite iriabuscá-losouogovernoamericano optaria pelos canais diplomáticos? Mesmo depois de onze meses de espera, aindaesperavam,porémcomeçavaa serarriscadodemaiscontinuar lá.Estavammuitomagrose fisicamentedebilitados; haviam sofrido surtos freqüen-tes de incontáveis febres tropicais, nenhum deles tratadoconvenientemente.Esperarmaisseriasuicídio.
Haviaumaúnicapossibilidadedefugir,nosrarosdiasemqueeramretiradosdacelaelevadosaotribunaldeJustiçadoPovo,oqueocorriamaisoumenosumavezpormês.Otribunalfuncionavanumprédioclaroelimpo,nocentrodacapital,ealiogovernoditatorialosexibiaàimprensainternacionalparaprovaraomundoquetratavabemtodososprisioneiros.Antesdesairdacela,JackeOscareramobrigadosatomarbanho,barbear-seetrocarderoupa.Notribunal,algemavam-lhesasmãosporbaixodamesaeoscolocavamfrenteàscâmarasdetelevisão,pararesponderàsperguntasdosjornalistas.Elesrespondiam a todas com palavrões e obscenidades, o que não alterava nada, porque os tapes erameditadosesuasvozessubstituídaspelasvozesdeagentestreinadosparafalarexcelenteinglês.
Depoisdissoeramentrevistadospelos jornalistasatravésdeumcircuito internode televisão—oqueconstituíaoutroblefe,poisosjornalistasficavamfechadosnumasalaàparteeouviamasrespostasdosagentessentadosaosmicrofones,foradoalcancedascâmaras.
Nosprimeirosdiasdodécimoprimeiromêsdeprisão,JackeOscarcomeçaramaplanejarafuga,sabendoquedeviamaproveitarosmomentosquepassavamforadocampo.Jánão tinhamosmúsculosfortes e o excelente preparo físico de antes, e suas únicas armas eram os estiletes que conseguiramfabricarafiandoossosderatonaspedrasdacela.Afiadoscomofacasefinoscomoagulhas,osestileteseram, contudo,miseravelmente precários para enfrentar o armamento da guarda que os vigiava dia enoite.Aindaassim,JackeOscarresolveramarriscar.
Parasurpresadeambos,afugafoiumsucesso.Depoisdechegaràprisãooficial,foramentreguesàvigilânciadeumúnicoguardaqueos levoupara tomarbanho.Oguardadeixoua armanocoldre eocoldre fechado, provavelmente porque os banheiros ficavam na área central da prisão, o pontomaisprotegido de todo o complexo carcerário.Além disso o guarda imaginava que Jack eOscar estavamfracos demais para tentar qualquer coisa. A surpresa foi o grande aliado dos dois prisioneiros quesaltaramsobreoguardaeomataramagolpesdeestilete,semfazeromenorruído.
JackeOscarconfiscaramaarmaeamuniçãodomortoedispararampeloscorredores,arricando-seaservistoserecapturados.Porsortenãohavianaprisãooficialomesmorígidoesquemadesegurançados camposde reeducação, demodoque logo conseguiramchegar aopiso inferior, deonde seguiramparaoalmo-xarifado;láencontraramasrampasdedescargaeasaídaparaarua.
Seteouoitocaixasacabavamdeserdeixadasjuntoàentrada,tiradasdeumcaminhãoestacionadofrente a uma das saídas.Omotorista discutia com outro homem, ambos sacudindo folhas e folhas depapel, um no nariz do outro. Não haviamais ninguém por perto. Sempre discutindo, os dois homensencaminharam-separaoescritórioenvidraçado,dooutroladodoalmoxarifado;JackeOscarenfiaram-seno caminhão ainda carregadode caixas a serementregues.Empoucosminutos, omotorista voltou,resmungandopalavrões,entrounacabinedocaminhão,bateuaportacomraivaepartiurumoàcidade.Logodepoissoaramosalarmesdaprisão.
Dezminutoseváriosquarteirõesmaistarde,ocaminhãoparou.Omotoristaabriuaportatraseiraeapanhouumadasváriascaixasqueaindalevava,semsuspeitarqueJackeOscarestavamamenosdeumpalmo de distância, escondidos atrás dos volumes. Com a caixa nos braços, o homem dirigiu-se aoprédioemfrenteaoqualhaviaestacionado.Nessemomentoosdoisfugitivosdeixaramocaminhão.
Estavamnumbairroquenãoconheciam,deruasimundasecasasvelhas.Aliencontraramhomensemulheresquasemaltrapilhos,gentemiseráveledesvalidaquenãolhesnegouajuda;alisentiram-seentreirmãos de infortúnio. Quando caiu a noite, abastecidos com a pouca comida que puderam conseguir,partiramnadireçãodaselva.Pelocaminhoroubaramumafoicedeuma
fazenda, algumasmaçãs, umavental de couro, sacosde aniagemquepoderíam servir deproteçãoparaospésquandoconsumissemassandáliasqueusavamnaprisão,eumcavalo.Antesdeamanhecer,chegaramàselva,deixaramocavaloeprosseguiramapé.Estavamexaustosefamintos,armadosapenascoma foiceque roubarameo revólverquehaviam tiradodoguarda; sem instrumentospelosquais seorientar,guiando-sepelosolepelasestrelas,rumaramparaonorte,nadireçãodafronteira,maisdecemquilômetrosadiante.
Fora como viajar num pesadelo. Jenny era o único pensamento capaz de dar-lhe forças paracontinuar, e Jack pensava nela, sonhava com ela, alimentava-se dela. Sete dias depois, quando afinalchegaram a território aliado, descobriu que devia a vida aos dois únicos bens que lhe restavam nomundo:otreinamentomilitar,queoensinaraasobreviver,eJenny,queoensinaraanãoperderafé.Pelaprimeiravezemmuitosmeses,sentiuqueopiorhaviapassado.Masestavaenganado.
Agora,sentadoàcabeceiradeJenny,ouvindoascançõesdeNatalquevinhamdogravador,sentia-senaufragar de tristeza. O Natal trazia-lhe lembrança de outros Natais, um deles passado na prisão,sonhandocomJenny...Semsaberqueela,jáemcoma,estavacomoquemorta,perdidaparasempre.
FelizNatal.Chicago,IllinoisO padreWycazik avançava pelo corredor do Hospital Infantil São José.Muita gente visitava os
pacientesepelosalto-falantes filtrava-seosomdecançõesnatalinas.Erammães,pais, irmãos, irmãs,avôs e avósdas criançasdoentes, todos carregadosdepresentes e depratinhos cheiosdedoces e deesperanças. Por algunsmomentos, todos esqueciam as dores e as aflições, e entregavam-se à sinceraalegriadoNatal.Mesmojuntoàscabeceirasdosdoentesmaisgraveshaviarostossorridenteserisos.
Aoredordeumacama,porém,pareciahaveraindamaisalegriadoqueemqualqueroutrocantodohospital: era a cama de uma menina de dez anos, Emmeline Halbourg. Quando o padre Wycazik seapresentou, os pais de Emmy saudaram-no com um sorriso de pura felicidade, duas irmãs dameninariramparaeleeosavóseostiosdesmancharam-seemmesuras,certosdequesetratavadocapelãodohospital.
BrendamjálhedisseraqueEmmyestavabem,masovelhopárocomalpodiaacreditarnoqueestavavendo.Apequenaenfermapareciaterrenascido!Duassemanasantes,peloquediziaBrendan,elaestavaàmorte.E agora seusolhosbrilhavam, as faces retomavamo rosado suavede antes, osdedos jánãoapresentavamsinaldeinchaço,eelamovia-selivrementenacama.Jánãopareciadoente...naverdade,pareciaperfeitamentecuradal
Para surpresadas surpresas,Emmy levantou-sedacamacomaajudadeumpardemuletasedeualgunspassos,sobosrisosfelizesdafamília.Avelhacadeiraderodaspareciaaposentadaparasempre.
— Bem... jávouindo—disseopadreWycazik.—SópasseiparalhetrazerosvotosdeFelizNataldeumamigoseu,BrendanCronin.
— O“Bolota”!—Emmyriu.—Eleémaravilhoso...Foihorrívelquandodisseramqueelenãoestavamaistrabalhandoaqui.Todosficamoscomsaudade...
—Nãochegueiaconheceresse“Bolota”—comentouamãedamenina—,mas,peloquedizemascrianças,eleeramelhorqueumatoneladaderemédios.
— O“Bolota”ficousóumasemananohospital—Emmyexplicou.—Mastemvindovisitaragente.Euatéestavaesperandoqueaparecessehoje...parapoderlhedarumbeijoenorme.
—BrendanfoipassaroNatalcomafamília.—Quebom!ÉassimquedeveseroNatal,nãoé?Cadaumcomsuafamília,bemcontente,etodos
seamandounsaosoutros.— É...—OpadreWycazikbalançoua cabeça,pensandoquenenhumdosgrandesdoutoresda
Igrejaseriacapazdesermaisclarooumaispreciso.—EexatamenteassimqueoNataldeveser.SepudessefalarcomEmmyemparticular,gostariadeinterrogá-Iasobreatardedodia11dedezembro,quandoBrendanlhepenteavaoscabeloseelaolhavaaneve
atrás da janela.Queria saber sobre asmarcas nas palmas dasmãos do jovem sacerdote. Emmy foi aprimeirapessoaavê-las,antesmesmoqueBrendanreparassenelas.Naquelatarde,pelaprimeiravez,asmarcasapareceram.QueriasaberseEmmysentiraalgumacoisadeespecialquandoBrendantocou-lheoscabelos.Maseraimpossívelabordaroassuntocomtantosadultosemvolta,eopadreWycaziksabiaqueeraaindamuitocedoparacomeçaradarexplicações.
LasVegas,NevadaPassadoocomeçodifícil,oNataltranscorriatranqüilonoapartamentodeJorjaMonatella.Marye
Petepararamdecriticar tudoa todomomento, relaxaramedeixaram-se levarpela alegriadeMareie.QuantoaJorja,fez-lhebemsentirqueosamava.Ojantarfoiservidodezminutosdepoisdameia-noite,umatrasomaisdoquenormal.Mareiepareciamaistranqüilaemrelaçãoao“MédicoInfantil”e,exausta,davasinaisdeestarmaisinteressadaemdormirdoqueemcomer.Haviarisosemvoltadamesae,juntoàparede,aárvorebrilhavadeluzescoloridas.
Atempestadeaproximou-sederepenteeveioforte,devastadora.— Vocêestá comendodemais...—Petedisseàneta,brincando.—Jácomeumaisdoquenós
todosjuntos!—Claroquenão!—Claroquesim!Secomermaisumacolherada,achoquevaiexplodir.Mareieergueuacolhercheiadebolo,exibiu-aparaquetodosavissem,eaproximou-adaboca.—Não!—Oavôcobriuosolhoscomosenãoquisesseveraexplosão.—Nãofaçaisso...A menina abocanhou o bolo, mastigou e engoliu. Então olhou em volta, com ar de triunfo, e
perguntou:—Estãovendo?Nãoexplodi.—Entãovaiexplodirnapróximagarfada...—garantiuPete.—Claro...Senãoexplodir,vamoster
quelevarvocêparaohospital.Marciedeixoucairacolher.—Paraohospitaleunãovou—disse,séria,osolhosmuitoabertos.— Claro que vai! Teremos que levar você para que o médico esvazie sua barriga antes da
explosão...—Não...Jorjapercebeuqueavozdafilhasoavadiferente;elajánãoestavaachandograçanabrincadeirae
começavaaparecerassustadadeverdade.Claroquenãotinhamedodeexplodir...eraaidéiadeirparaohospitalqueafaziatremerdemedo.
—Não...não!—ameninarepetiu.Vai...—Ovelhocontinuavaarir,semperceberaalteraçãonorostodaneta.
—Papai...achoque...—Jorjaaindatentouinterferir,masPetenemaouviu.— Vamosprecisar de umcaminhão, porque você estará tão gorda que não haverá de caber na
ambulância...—prosseguiuoavô.Mareiefechouosolhosesacudiuacabeça.—Não!—gritou.—Nãovoudeixarqueaquelesmédicos...toquememmim.Nãovoudeixar!—Querida,vovôestábrincando—disseJorja,procurandoacalmá-la.—Nãodeixequeelesmelevem,mamãe...Elesvão-memachucar...comodaoutravez!Maryarregalouosolhoseperguntouparaafilha:—Masquandofoiqueelaestevenumhospital?!—Nunca.Nãoseiporque...^—Claroquejáestive!Claro!Everdade...—Mareieinterrompeu.—Elesmeamarraramnacama
emeencheramdeagulhas,eeufiqueicommedoe...nãoquero!Nãovoudeixarqueseaproximem...Não\PensandonahistóriaqueKaraPersaghianlhecontaranavéspera,Jorjalevantou-seeaproximou-se
damenina.—Meubem,vocênuncaesteve...Euestive,sim!Agorajanãoeraapenasumgrito,eraumgemidodepuroterror.MareiejogouacolherparacimaePeteencolheu-separanãoseratingido.—Mareie!—Jorjagritou.Ameninasaltoudacadeira,lívida:— Vousermédicaquandocrescerparapodercuidardeminhasdoenças!Enãovoudeixarque
ninguémmeespetecomaquelasagulhas...—Olhosmuitoabertos,elanempercebiaaslágrimasquelheescorriampelorosto.
Jorjaestendeuamãoparaacalmá-lacomumafago,masagarotasaltouparatráscomosederepentevissealguémameaçando-a.Nãoamãe,masalguémdequemtinhamedoeaquemsóelavia.Avisãotalvezfossefrutodesuaimaginação,porémomedoerareal,quasepalpável.Mareieestavapálida,oslábiosarroxea-dos...prestesadesmaiardemedo!
—Porfavor,querida...falecomigo...Soueu!Emamãe...Delonge,ameninatentavacobrirorostocomasmãosparaimpedirqueatocassem.Derepente,Jorjasentiucheirodeurinae,assustada,viuamanchaescura
juntoaossapatosdafilha,espalhando-sepelotapete.—Mareie...Pareciaqueagarotaqueriagritar,masavoznãosaía.—O...oqueéisso?!—Marylevantou-se.—MeuDeus!Eunãosei...Comosolhosaindafixosemalgumacoisaquesóelavia,Mareiecomeçouagemerbaixinho.NovaYork,NovaYorkOgravadorcontinuavaatocarascançõesdeNatal,eJennyTwistláestava,imóveledistante.Jack
Twistjádesistiradelhefalar,depoisdehorasdemonólogotristeeinútil.Sentado,emsilêncio,voltavaàslembrançasdaAméricaCentral.
AoregressarparaosEstadosUnidos,descobriraqueoresgatedosonzeprisioneirosdoInstitutodaFraternidadeUniversalhaviasidoapresentadoàopiniãopúblicacomoumato terrorista,umseqüestroemmassa,levadoacaboporalgunsdissidentesin-
teressados em fomentar a guerra na região. Não apenas o próprio Jack, como também os outrosmilitares envolvidos na operação de resgate haviam sido pintados como agentes do crime organizadoocultos sob o uniforme do Exército. Mais que quaisquer outros, os que eram prisioneiros foram
transformadosemalvosdiretosdairadaoposição.Empânico,oCongressoacabaravotando leiqueproibiaatividadesmilitaresnaAméricaCentral,
incluídaaoperaçãoderesgatedosquatrosoldadospresos.Dizia-sequeseriapossívellibertá-lospeloscanaisdiplomáticosdisponíveis.
Porissoesperaramtanto!Tinhamsidoabandonadospelopaísquedeveriaagradecer-lhesacoragemeadedicação.De início,Jacknãoacreditounoque todos lhediziam.Mais tarde,quando jáera inútiltentarfugiraosfatos,ochoquefoiterrível.Osegundopiorchoquedesuavida.
Devoltaàpátria,viviaassediadoporjornalistashostisefoiintimadoadeporperanteumacomissãodedeputados,paraesclarecerdetalhesdeseuenvolvimentono“seqüestro”.Atéentão,aindaimaginavaquepoderiarestabeleceraverdade,queteriapelomenosumachancedeapresentarsuaversãodosfatos.Logopercebeuqueninguémestavainteressadonaverdade,muitomenosnoquetivesseadizersobreosfatos.Seudepoimentofoimontadocomoumshowdetelevisão,comoumaoportunidadevaliosaparaquealgunspolíticosdiscursassememnomeda liberdadeedemaismeiadúziadevalores tidos ehavidoscomo“americanos”,namelhortradiçãodomalfadadosenadorJoeMacCarthy.
Empoucosmeses,todosoesqueceram;àmedidaqueganhavapesoeserestabeleciadoshorroresdaprisão,deixavadeser reconhecidonas ruascomo“ocriminosodeguerraqueapareceuna televisão”.Masadoreacertezadetersidotraídojamaisoabandonaram.
Tudo isso compunha o quadro do segundomaior choque de sua vida, pois omaior de todos foidescobriroqueaconteceraaJennyduranteseucativeironaAméricaCentral.Umassalto,contaram-lhe.Umhomemassaltara-aàentradadoprédioonde
morava, nomomento em que voltava do trabalho. Encostara-lhe uma arma na cabeça, arrastara-aparaoapartamento,violentara-a,batera-lhecomacoronhadaarmanacabeçaedeixara-acaída,certodeque estava morta. Ao voltar da América Central Jack encontrara-a num hospital público, em comaprofundaeirreversível.Malcuidada,maltratada,suja.
O assaltante havia sido identificado pelo depoimento de algumas testemunhas e pelas impressõesdigitaisquedeixarano apartamento.Chamava-seNormamHazzurt e estava em liberdade condicional,depois de adiar o julgamento graças à habilidade do advogado que contratara. Jack dispensou asformalidades jurídicas e investigou por conta própria até dar-se por satisfeito. Hazzurt era mesmo oculpado, mas nunca seria condenado. Havia excesso de detalhes técnicos no processo, e o mesmoadvogadoqueolibertaraumavezacabariaporabsolvê-lonovamente.
Assim,aomesmotempoqueenfrentavaa imprensaeospolíticos,Jackfaziaplanosparaofuturo.Tinhaduastarefasprioritárias:antesdequalqueroutracoisa,precisavamatarNorman9Hazzurt,esemlevantar suspeitas.Depois, devia arranjar dinheiro para tirar Jennydaquele hospital e instalá-la numaclínica particular. Precisava de muito dinheiro e só conhecia um modo de obtê-lo: o roubo. Comosoldado da tropa de elite, fora treinado no uso de todos os tipos de armas, entendia de explosivos,era perito em artes marciais e técnicas de sobrevivência. Seu país o abandonara, mas, por estranhaironia,deviaaoExércitoaexcepcionalhabilidadequepossuíaparasobreviveremsituaçõesadversase,melhorque tudo, parapodervingar-se.OpróprioExércitoo treinara em técnicasdeburlar a lei semjamaisserapanhado.
NormanHazzurtmorreu“acidentalmente’5naexplosãodeumdepósitodegás,doismesesdepoisdavoltadeJack.Duassemanasmaistarde,atransferênciadeJennyparaumaclínicaprivadafoifinanciadapeloassaltoaumbanco,planejadoeexecutadocomaprecisãodeumaoperaçãomilitar.
LongedesatisfazerJack,amortedeHazzurt,deixara-oaindamaisdeprimido.Matarumhomemnaguerraeradiferentedeeli-
minaralguémasangue-frio.EJacknãosabiamatarsenãoemlegítimadefesa.
Roubareradiferente...eraexcitante,terrivelmenteexcitante.Apósoassaltoaobanco,Jacksentia-seexaltado,emocionado,excitado.Talvezaliestivesseoremédioparaseusmales.Ocrime,afinal,dera-lhenovamotivaçãoparaviver.Eassimhaviasidosempre...atéalgumtempoatrás.
Naquelemomento,sentadoàcabeceiradeJenny,JackTwistperguntava-seoquemais lherestariafazerparacontinuarvivendo,diaapósdia...Alémdominguadoprazerderoubar,restava-lheJenny,enãohaviamais nada, nem ninguém. Já não precisava preocupar-se com o futuro da esposa, porque o quepossuíaeramaisdoquesuficienteparamantê-labem-cuidadaebem-assisti-da;tinhamaisdinheirodoqueconseguiriagastar.Viviaapenasemfunçãodaspoucashorasquepassavaali,aoladodacamadela,olhandoseurostosereno,tocando-lheamão...erezandoparaqueacontecesseummilagre.
Outraestranhaironia...Umhomemcomoele,individualista,determinado,auto-suficiente,reduzidoàúnicaesperançadeummilagre...
De repente, enquanto Jack ruminava seus pensamentos, Jenny produziu um som, um gemido, umacessodetosse,talvezumpi-garro.Respiroufundo,umaouduasvezes,esuspiroudeleve,umsuspirolongo,arrastado.Numinstantedeloucura,Jacksaltoudapoltrona,aproximou-sedacama,esperandovê-ladeolhosabertos,conscientepelaprimeiravezemmaisdeoitoanos.Omilagre...Omilagrepoderiaacontecernoinstantemesmoemqueelepensava...MasosolhosdeJennycontinuavamfechados,suafaceausentecomosempre.Jacktocou-lheorosto,tateouopescoçoàprocuradealgumsinaldevida.Nãoeraummilagre. O que aconteceu foi comum, normal, inevitável e quase vulgar: Jenny Twist acabava demorrer.
Chicago,IllinoisNaquele dia deNatal, havia poucosmédicos de plantão noHos-pitai Infantil São José,mas dois
deles,umresidentechamadoJar-vileuminternodenomeKlinet,morriamdevontadedeconversarcomo padreWycazik sobre a surpreendente recuperação deEmmelineHalbourg. Por fim, o jovemKlinetconduziu o sacerdote até uma das salas de consulta onde deixara o dossiê sanitário da menina e osresultadosdosexamesradiológicos.
— Faz cinco semanas que começamos a usar uma droga sintética recentemente liberada —informou.
Odr.Jarvilcostumavafalarpoucoeemgeralmantinhaosolhosbaixos,masestavamuitoexcitadoaoentrarnasaladeexames.OcasodeEmmelineHalbourgparecia-lheextremamenteinteressante.Eradifícilacreditarqueelahaviamelhoradotanto!
—EssadrogatemapresentadobonsresultadosemafecçõesósseascomoaqueEmmyapresenta—disse.—Emalgunscasos,obteve-seaumentodonúmerodeosteócitosnormais;emoutros,foipossíveldeteroprocessodedeterioraçãodoperiósteo.Nãosabemosexatamenteporquê,mastêm-seobservadocasosemqueadrogaestimuloua fixaçãodocálcio intercelular.NocasodeEmmy,emqueadoençaatacou a medula óssea, a substância alterou as características químicas da cavidade medular e doscanais de Havers, criando um meio ambiente desfavorável à proliferação de microorganismos e, aomesmo tempo, estimulante para o crescimento das células hematopoéticas... as células que produzemglóbulosvermelhos...edastaxasdehemoglobina.
—MasnãoháregistroderesultadostãorápidoscomonocasodeEmmy—acrescentouKlinet.— Essadroganão tempropriedadescurativas—Jarvil continuou.—Oqueela fazé, apenas,
retardaroavançodadoençaou,namelhordashipóteses,detê-lo.Sejacomofor,nãoécapazdeinduziraregeneraçãoóssea.Claroque,emcertamedida,podeocorreraregeneraçãodedeterminadasáreasqueaindanãoestejamseriamentecomprometidas.OcasodeEmmyéúnico.—Omédicoapanhoualgumasdas chapas radiológicas e ergueu-as contra a luz. — Os ossos da paciente estão seregenerando...recompondo-se.
—Ecomespantosarapidez.—Klinetpassouamãopeloscabelos,comoseogestopudessetornarmaiscompreensívelofenômeno.
JarvilentregouaopadreWycazikasériedechapasfeitasaolongodeseissemanas,ondeamelhoraaparecia,muitovisível,atéaosolhosdeumleigo.
—Emmytomouadrogadurantetrêssemanassemqualquerresultado—prosseguiuKlinet.—Derepente,háquinzedias,aschapascomeçaramamostrarquenãosóadoençaentravaemregressãocomoosossosafetadosestavamseregenerando.
Ocronogramaeraperfeito.Duassemanasatrás,osanéisavermelhadosapareciampelaprimeiraveznaspalmasdasmãosdeBrendanCronin.MasopadreWycaziknãodissepalavrasobreacoincidência.
Jarvil mostrou-lhe um grande dossiê de chapas radiológicas e testes químicos que provavam àexaustão que os canais de Har-vers dos ossos de Emmy estavam praticamente normais, funcionandoperfeitamente,cumprindoopapeldealimentarenutrirostecidosósseos.Apontou-lhe,numachapamaisantiga,umaregiãoesbranquiçada,emqueointeriordeumossoapareciacompletamentebloqueadocomairrigaçãosanguíneainterrompida.Emoutrachapa,maisrecente,amesmaregiãoapareciadesobstruída.
—Nãoháregistrodenenhumcasoemqueessadrogatenhadissolvidoumaplacacomoessa—disse.—Hácasos emquepequenas regiõesobstruídas foramdesbloqueadasmas eram regiõesmuitopequenas, e adesobstrução foi simples conseqüênciada estabilizaçãodadoença.Nuncaocorreunadacomooquevemosaqui...É...étudomuitoestranho.
—Seesseprocessoderegeneraçãoósseacontinuar—Klinetacrescentou—,Emmyestarácuradaemmenosdetrêsmeses.Eissoéum...fenômeno!
—Completamentecurada...—reforçouJarvil,balançandoacabeça.OpadreWycazikmantinhaosolhosbaixos,comoseexaminasseaschapas,semvontadedeencarar
osmédicos, sem coragemde dizer-lhes que nem suas habilidades profissionais nem a tal droga eramresponsáveispelacuradeEmmelineHalbourg.Osdoispareciamtãoeufóricosqueeleresolveuesperarumpoucoantesdeexpressar sua séria suspeitadequehaviaoutropoder envolvidonaquelacura.Umpodermaismisteriosoquequalquerdrogacomqueamodernamedicinapudessesonhar.
Milwaukee,WisconsinOdiadeNatalfoicomoumbálsamoparaErnieeFayeBlock,aoladodeLucy,Frankedascrianças.
Aofimdatarde,quandosaíramsozinhosparadarumpasseioatéocentrodacidade,sentiam-semelhordoquenunca.
A tarde estava perfeita para um passeio: fria, mas seca e sem vento. Fazia quatro dias que nãonevava, e as ruas estavam limpas e desimpedidas. A medida que o tempo passava o ar pareciabrilhar,iluminadopelostonsalaranjadosdocrepúsculo.
Bem agasalhados, Faye e Ernie saíram de braços dados, conversando e rindo, relembrando osacontecimentosdodiaecomentandoosenfeitesdeNatalquebrilhavamnasportasdascasasvizinhas.Osanos corriam,mas, para Faye, era como se ela e Ernie ainda fossem jovens, com a vida pela frente,cheiosdesonhos.
Desde o momento em que chegaram a Milwaukee, no dia 15 de dezembro, as coisas haviammelhorado,eFayetinhacertezadeque,dalipordiante,tudocomeçariaaajustar-se.Ernieestavabem:andavaoutravezcompassosfirmesesorriacomoantes,bem-humorado.ClaroqueacompanhiadeLucy,dogenroedosnetosajudavamuito,masaverdadeéqueascrisesdemedopareciamsuperadasparasempre.
Assessõesdeterapiacomodr.Fontelaine—Erniejátiveraseis—tambémcolaboravamparaosgrandesprogressosqueFayeobservava.Ernieaindatinhamedodoescuro,masjánãoentravaempânicocomoquandohaviamsaídodeNevada.Naopiniãodomédico, eramais fácil trataruma fobiadoque
muitasoutrasperturbaçõespsicológicas.Asdescobertasmaisrecentesnessaáreapareciam indicar que, na grande maioria dos casos de fobia, a doença resumia-se aos sintomas,
dispensandoumalongaterapiaparadesenterrarostraumas,asvezesmuitoantigos,queseescondiamnosubconscientedopaciente.Jánãoseconsideravanecessário—nempossíveloudesejável—descobriracausadeumafobiaantesdecomeçaracurá-la.Astécnicasmaismodernasconsistiamemensinaraopacienteosrecursosparadiminuirasensibilidade.
Assim,aospoucos,emmesesoumesmoemsemanas,afobiapodiasercontroladamesmosemestarcuradaeavidadopacientevoltavaaonormal.Apenasum terçodospacientesnão respondia t a essaterapia.Nesses casos erapreciso recorrer às terapias tradicionaisou aousodedrogasbloqueadoras,capazesdeinterferirnumacrisedepânico.Ernie,contudo,faziaprogressostãograndesqueoprópriodr.Fontelaine,otimistapornatureza,estavaencantado.
Faye,porsuavez,procuravapesquisaroassuntoaomáximo.Num dos muitos livros que lera, descobriu que poderia ajudar o marido se conseguisse fazê-lo
encarar as crises a partir de outro ponto de vista, como se ele fosse personagem de uma historiaengraçadaouseucasofosseapenasumentrevários.Aospoucos,
Ernie começou a se divertir com as histórias que ela lhe contava sobre vítimas das fobias maisestranhas,emcomparaçãocomasquaisseumedodeescuropareciabrincadeiradecriança.Fayein-$
ventava personagens pterófobas, que morriam de medo de penas, ictiófobas horrorizadas com apossibilidadedeencontrarempeixes,pediófobasapavoradascombonecosoufantoches.Ernieriumuitodoscoitófobos, felizcomsuaprosaicanictofobia. Imagine só... termedode sexo!Masassustou-seaosaber que existem pessoas que sofrem de autofobia... o incontrolável medo de si mesmo. Que coisaterrível!
Naquelemomento, andandoaocrepúsculo,Faye falavae falava, tentando fazê-loesquecer anoiteque se aproximava. Contava-lhe sobre John Cheever, autor consagrado, vencedor do maior prêmioliteráriodopaís,equesofriadegefirofobia,omedoirracionaldepontesaltas.Ernieouviacomatenção,masnãosees-
quedadanoite.Àmedidaqueassombrascresciamsobreacalçada,seusdedoscrispavam-sesobreobraçodeFaye,esónãoaferiamporquenãoconseguiamvenceroobstáculodasgrossasroupasdelãqueelausava.
Setequarteirõesadiante,jánãohaviapossibilidadedevoltaremparacasaantesdocairdanoite.Océu estava negro, ao longe, junto ao horizonte. As sombras cobriam tudo. As lâmpadas de mercúrioacendiam-senarua,criandoparaErnierarasilhasderelativapazemmetrosemetrosdeangústia.Seusolhosbrilhavamassustados,eelerespiravacadavezmaisrápido.
—Lembre-sedoqueomédicodisse...controlearespiração—recomendouFaye,apertando-lheamão.
Ernierespondeucomumrápidoacenodecabeçaetentouinspirarlentamente,contandoossegundos.—Vocêachaquepodemosvoltar?—perguntou-lheamulher,examinandoocéujácompletamente
escuro.—Sim...Achoquesim—elerespondeu,osdentescerrados.Deramumprimeiropassoparaforadaáreailuminadajuntoaoposte.Ernieresfolegava,oarescapando-lhecomoumassobioporentreosdentes.Estavamtentandooutradastécnicasterapêuticasdodr.Fonte-laine,chamadade“choque”,segundoa
qualopacientedeviaserencorajadoaenfrentaroprópriomedoeconfrontá-loomaiortempopossível,até vencê-lo. O choque baseava-se na idéia de que os ataques de pânico são autocontidos, porque afisiologia humana não é capaz de funcionar durantemuito tempo nos níveis de alto desgaste a que o
pânico a obriga.Háummomento emqueo corpo já não consegueproduzir a adrenalina necessária àfuga,eopróprioorganismoseobrigaaadaptar-seàsituaçãoameaçadora.Podeserumapazduradoura,eentão o paciente é considerado curado. Pode ser apenas uma trégua, e nesse caso torna-se necessáriorepetirassessõesdeterapiadechoque.
Utilizada sem assistênciamédica, a técnica poderia representar grave ameaça à saúdemental dopaciente;porissoodr.Fon-telainepreferiausá-lanumaversãomodificada,queenvolvia
trêsestágiosdeconfrontaçãocomoelementogeradordascrisesdemedo.Ernietentavaultrapassaroprimeirodessesestágios:ajudadoporFaye,deviapermanecernoescuro
durantequinzeminutos,tendoàvistaalgumaáreailuminada.Assim,caminhavampelacalçada,deposteemposte,parandoemcadaáreadeluzafimdequeelereunisseacoragemnecessáriaparaenfrentaranovaetapa.
Dentrodeumaouduassemanas,Erniecomeçariaotrabalhorelativoaosegundoestágiodaterapia.Fayeo levariadecarroatéuma regiãoonde jánãovissemas luzesda ruaeandaria a seu lado tantotempoquantoelesuportasse.Então,comumalanterna,lhedariaaoportunidadedeserefazer.Oterceiroestágio, por fim, consistiria em andar sozinho no escuro, sem lanternas e sem luz de qualquer tipo.Algumassemanasdetratamentoe,comtodaacerteza,Ernieestariacurado.
Masencontrava-seaindanoprimeiroestágio,longedesesentirlivredomedodoescuro.Depoisdepercorrer seis dos sete quarteirões que o separavam de casa, Ernie resfolegava como um cavalo decorrida, suava frio e sonhava com a segurança de seu quarto iluminado. Mas já havia andado seisquarteirões!Nadamau...Assim,comtodaacerteza,logoestariaperfeitamentebem.
Aochegarememcasa,enquantoLucyaajudavaatirarocasaco,Fayetentavaconvencer-sedequeErniemelhorara e, em dois ou trêsmeses, estaria curado, exatamente como o dr. Fontelaine previra.Talvez,porém, fosse issoquemais apreocupava: amelhoraera fácildemais, rápidademaispara serverdadeira—e,sobretudo,paraserduradoura.Pormaisqueseesforçasseparanãoperderootimismo,Fayepressentiaquealgumacoisanãoestavacerta.Algumacoisaaindaestavaerrada...emuitoerrada.
Boston,MassachusettsAfilhadodePicassoemágicodefamainternacional,PabloJack-son,era,comonãopoderiadeixar
deser,umadasestrelasdohigh-societydeBoston.Nãobastasseisso,duranteaSegundaGuerraMundialprestararelevantesserviçosàsforçasdaResistênciafran-
cesaeàInteligênciabritânica.Comasnotíciasdesuarecentecolaboraçãocomapolícia,voltavaàevidência,erecebiasempremaisconvitesdoquepodiaaceitar.
Naquele ano resolveu passar o Natal numa recepção fechadís-sima, para apenas vinte e doisconvidados, em casa do sr. e sra. Ira Hergensheimer, em Brookline. Uma casa magnífica emestilocolonialgeorgiano,eleganteeacolhedoracomoocasalquelávivia,gentequeenriqueceracomomercado imobiliário durante os anos 50. Um bar fora montado na biblioteca, e numerosos garçonscirculavampelassalascombandejasdecanapêsetaçasdechampanhe.Nohall,umquartetodecordastocava música suave, tornando o ambiente ainda mais agradável para que os convidados pudessemconversar.
Pablo estava ali exatamente porque queria conversar, mas tinha em vista um interlocutor muitoespecial:seuvelhoamigoAle-xanderChristophson,ex-embaixadoramericanonaInglaterra,ex-senadorpelo Estado deMassachusetts, e ex-diretor daCIA, aposentado fazia uma década. Christophson tinhasetentae seisanos,mas,comoPablo, tambémforapoupadopelo tempo.Alto,elegante,o rosto finoeclássicodosbostonianosdeboaetradicionalestirpe,aindaeraomesmohomeminteligenteebrilhantedos anos de juventude e apenas o leve tremor da mão direita traía a única doença que os anos lhetrouxeram,omaldeParkinson.
Meia hora antes do jantar, Pablo conseguiu arrastarAlex para longe do grupo que o cercava e olevou até o escritório particular de Ira Hergensheimer. Depois de trancar a porta, aproximou-se daspoltronasdecourojuntoàlareira,comduastaçasdechampanhe.
—Precisodeumconselho—disse,paracomeçaraconversa.—Vocêdevesaberqueosvelhosadoramdarconselhos—replicouAlex,sorrindo.—Achoque
assimnossentimosrecompensadospornãodarmaisexemplos...Masnãoacreditoquevocêprecisedeconselhos.Comcertezajáresolveuaquestãoeestáapenastestandosuahipótese.
Ignorandoocomentário,Pablodespejou:— Ontem fui procurado por uma jovem. Uma jovem extremamente bonita, elegante, muito
inteligente, habituada a resolver os próprios problemas... mas que acaba de encontrar-se frente afrentecomumproblemabemestranho.Ajovemprecisadeajuda.
—Fantástico!—Alexergueuassobrancelhas.—Aosoitentaeumanosvocêandaàsvoltascomjovensqueprecisamdeajuda?!Efoielaquemoprocurou.Estouimpressionado,humilhadoe...mortodeinveja.
—Ora,velholibertino...Naoénadadisso...Nãosetratadeumaaventura...Estoufalandodeumamoça com problemas muito sérios. — Sem mencionar nomes ou detalhes que pudessem identificarGinger,Pablorelatouoqueelalhecontarasobreascrisesdemedo,edescreveuasessãodehipnose.—Nãotenhodúvidasdequeamoçaestavaapontodeentraremcoma...comaauto-induzida.Erazoávelimaginarquepoderiachegaraosuicídio.Etudoissoparafugirasminhasperguntas...Nãoprecisodizerque não voltei a hipnotizá-la depois do que aconteceu,mas prometi a ela que iria pesquisar e ver seencontravaalgumcasosemelhante.Eoquetenhofeitodeontemparahoje.Estamosaqui,conversando,exatamenteporqueencontreiumareferênciamuitointeressantenumdeseuslivros.Sim,euseiquevocêfalava de um caso de bloqueio psicológico imposto à força, como parte de um processo de lavagemcerebral;obloqueiodamoçadequeestoufalandoécriaçãodela;masnãotenhodúvidasdequeoscasossãosemelhantes.
AlexChristophsonescreveravários livros, inspiradosemsuaexperiência,nosanosdeserviçonacontra-espionagem, durante a Segunda Guerra Mundial, e, mais tarde, nas primeiras escaramuças daguerra fria.Dois desses livros tratavamquase exclusivamente demétodos de lavagem cerebral, e umdeles descrevia uma técnica chamada “bloqueio deAzrael”, nome escolhido em referência a um dosanjos que anunciam a morte. Esse “bloqueio de Azrael” podia deixar vestígios, um processoespantosamentesemelhanteaoqueestavaacontecendoaGingerWeiss:vestígiosdememóriassitiadas,sinaismuitosemelhantesàquedadeumabar-
reira que parecia cercar na memória lembrança de algum acontecimento traumático ocorrido nopassado.
Em silêncio, ouvindo ao longe os acordes damúsica suave que vinha do hall, Alex curvou-se ecolocouataçadechampanhesobreamesa.Pabloviusuamãotremer.
—Denadaadiantapedir-lhequeesqueçaisso,nãoé?—Alexrecostou-seoutravezàpoltrona.—Seriainútil,eusei...maséoúnicobomconselhoque
possolhedar.Pabloestavasurpresocomaseriedadedoamigo.—Ora...Eudisseàmoçaqueiapesquisar...prometiajudá-la.—Estouaposentadoháoitoanosemeufarojánãoéomesmo...Massintoquevocêvaisemeter
emcomplicaçõesqueaindapãopodemosavaliar.Esqueçaamoçaenãovolteavê-la.Nãoinsistaemajudá-la.
—Mas...euprometi!
—Eutinhacertezadequenãoadiantarianada,masacheiquedeveriatentar...—Alexcruzouosbraços.—Estábem.Vou-lhedizeroqueseisobreobloqueiodeAzrael...Emprimeirolugar,nãoéumatécnicamuitousadanoOcidente,masosrussosaconsideramutilíssima.Imaginemos,porexemplo,umagenterussodenomeIvan,comtrintaanosdeserviçosprestadosàKGB.EclaroqueIvansabemuitascoisas, tem informações registradas namemória que, se caíssememmãos inimigas, empoucosmesesdestruiríamacomplicadarededeespionagemrussamontadanoOcidente.OssuperioresdeIvanjánãoconseguemdormir,commedodequeelevenhaaserpresoeinterrogado.
— Tantoquanto sei, comousodedeterminadasdrogas eo empregode técnicasdehipnose, épossívelarrancaraverdadedequalquerpessoa,mesmoqueelanãoqueirafalar.
—Exatamente.OssuperioresdeIvansabemqueseforpreso,eleacabaráfalando,aindaquenãosejatorturado.Porisso,mantémumexércitodeagentesmaisjovens,todosmuitobemtreinados,massemos anos de serviço e as toneladas de informações que Ivan tem armazenadas na cabeça.De qualquermodo,àsvezes,aindaénecessáriorecorreraIvan,sejaporqueamissãoexige
alguémmaisexperiente,sejaporqualqueroutrarazão.ApartirdomomentoemqueIvanentraemação,começaacresceroriscodequesejapresoeinterrogado.
Pablopensouporumsegundo,antesdecomentar:—Umriscoqueéprecisocorrer.— Atécertoponto,sim.MassuponhaqueIvansabedeumaouduascoisasquedemodoalgum
poderíamserreveladasaoinimigo,comolocalizaçãodedepósitosdearmamentoouplanosdeguerra.Serevelados, taissegredos levariamàdestruiçãoseupaís,epor issoIvanprecisaesquecê-los.Eapenasumapequenapartedoqueháemsuamemória, tãopequenaquepodeser suprimida semdanificar suacompetência profissional. Assim, caso Ivan seja preso, poderá ser interrogado sem que ninguémdesconfiedequeestáescondendoalgumacoisa.Poderáfalarsobreumainfinidadedeassuntoseváriosoutrossegredos...Masnãofalará,emhipótesealguma,sobreossegredosbloqueadosemsuamemória.
—Eaissochamam“bloqueiodeAzrael”...— Ivan recebe um determinado tipo de tratamento. Drogas, hipnose... que o fazem esquecer
determinadostemas.E,assim,podeexecutarasmissõesparaasquaissejanecessário.Alexconcordoucomumgestodecabeçaeresolveudarumexemplo:—Suponhamosque,anosatrás,Ivantenhasidoumdosagentesenvolvidosnumatentadocontrao
papaJoãoPauloII.Comoempregodedeterminadas técnicas,épossível fazê-loesquecer tudoqueserefere ao atentado. Tais informações voltam ao inconsciente e ficam trancadas lá, fora do alcance dequalquersorodaverdadeedequalquertécnicadeinterrogatório,sejamestasdepersuasãooudetorturafísica. Porém há mais. Na mesma hipótese de Ivan ser preso e interrogado, suponhamos que seuscaptores,atémesmoporacaso,comecemasuspeitardaexistênciadeumbloqueioinduzido.Eevidenteque se atirarãoaoassuntocom redobradaatenção,porque sabemqueoqueestápor trásdobloqueioserá,semdúvida,ainformaçãomaisimportantequeopobreIvanpoderáfornecer.Eaquiquecomeçaaverdadeira
utilidadedobloqueiodeAzrael.QuandoIvanforinterrogadosobreosassuntosquefoiinduzidoaesquecer,seuinconscienteoforçaráaentraremcomaprofunda,profundaobastanteparanãoouviravozdoinquisidor.Emsituaçãodeextremapressão,poderáauto-induzir-seamorrer.Talvezomelhornomeparaessatécnicaseja“gatilhodeAzrael”,poiséaprópriavítimaqueacionaomecanismodacomaouatédamorte.
Fascinado,Pabloarregalouosolhos.—Mas...oinstintodesobrevivêncianãoéforteobastanteparasuperarobloqueio?—perguntou.
—Acho impossívelque,mesmosobpressão intensa, Ivanprefiramorrera revelaros segredos.Acho
quenãohálembrançaquenãovolteseoindivíduoestivercorrendoriscodevida!—Poisachaerrado...—Aluzsuavequebrilhavaaoladodapoltrona,orostodeAlexparecia
tornar-secinzento.—Hádrogasmoderníssimasque,aliadasanovastécnicasdehipnose,podemfazercom que Ivan prefira morrer. As ciências de controle da mente estão muito avançadas e envolvemfenômenosassustadores.Asupressãodoinstintodesobrevivência,omaisfortequeohomempossuiparaaprópriapreservação,éapenasumdessesfenômenos.Ivanpodeserprogramadoparaautodes-truir-se.
Ovelhomágicoprocurou,semencontrar,umúltimogoledechampanheemsuataça.—ApobremoçapareceterinventadoporsuacontaalgumacoisacomoobloqueiodeAzrael,para
fugirdealgumalembrançaqueaassustamuito—comentou.— Errado.—Alex balançou a cabeça,muito sério.—Ninguém é capaz de inventar por sua
própriacontaobloqueiodeAzrael.—Masnãoháoutraexplicação!Vocênãoaviu...Elafoisumindo,comoseescapasseporentre
meusdedos!Seucoraçãoquaseparou!Elachegouapararderespirar...Vocêtemalgumaidéiadecomoissopodesertratado?Háalgumapossibilidadededesativarumbloqueiodesse,semmatá-la?
Alexlevantou-sedapoltrona,enfiouasmãosnosbolsosecaminhouatéajanela.—Vocêaindanãoentendeuporqueeulhepediqueesquecesseesseassunto—disse.—Não...
Não é possível imaginar que alguémpossa auto-induzir-se a umbloqueio deAzrael.Amente humanajamaisseriacapazdeforçar-seàmorteapenaspelomedodedescobriralgumaverdadeassustadora.ObloqueiodeAzraelsempreéinduzidoporagenteexterno.NãohábloqueiodeAzraelsemagenteexterno.Na hipótese de que você tenha encontrado alguém que guarda segredos protegidos pelo bloqueio deAzrael,podetercertezadequehámaisgenteinteressadaem
seusilêncio.—Estásugerindoqueelasofreuumalavagemcerebral?Masissoéridículo!Elanãoéespiã.—Tenhocertezadequenãoé.—Tambémnãoérussa...Eporquealguémlhefariaumalavagemcerebral?Eumamoçacomum,
normal...Nãohárazãoparaalguémtermedodela!Aindajuntoàjanela,Alexvirou-sedefrenteparaoamigo:—Eapenasumaidéia,umahipótesequepoderiaocorreraqualquerum—disse.—Mas...ese
ela tivesse testemunhado alguma coisa? Se, por mero acidente, tivesse visto algo que alguémnão desejasse que visse? Algo muito importante, talvez secreto... Nesse caso, poderia ter sofrido alavagemcerebral.
Semacharoquedizer,Pabloarregalouosolhosebalançouacabeça.—Mas...Oqueelateriavistodetãoimportanteparasertratadacomo...umaespiã?!—perguntou
por fim e, como o amigo se limitasse a dar de ombros, sem resposta, continuou:— E quem estariainteressadoemfazê-laesquecer...sejaláoquefor?!
DessavezAlexsoubeexatamentecomoreplicar:— Os russos, a CIA, o serviço secreto israelense, o M-16 inglês. E mais uma dúzia de
organizaçõescapazesdemanipularastécnicasdecontrolemental.—Achoqueelanuncaviajouparaoexterior.Nessecaso,tería-mosapenasaCIA.—Nãonecessariamente.Todasasorganizaçõesqueciteitêmagentesqueoperamemnossopaís.
Alémdisso, não são apenas essesgruposque conhecemas técnicasde controlemental.Hágruposdefanáticos religiosos, grupos políticos marginais, centenas talvez... Você sabe que essas idéias seespalham com facilidade, e as drogas estão aí, ao alcance de ummédico, por exemplo.De qualquermodo,seelaseenvolveucomgentecapazdelançarmãodemétodosdebloqueiopsicológicoparafazê-laesqueceroquesabe,nãoésegurotentarajudá-laalembrar-se.Nãoéseguronemparaelanempara
você.—Nãoachoque...—Poisachoquevocêdeviaachar.— Ascrisesdemedo,as fugas,osperíodosde inconsciência,omedo invencíveldeumparde
luvaspretas,decapacetes...Issopareceindicarqueabarreirapsicológicanãoétãosólidacomovocêdescreveu. E possível que ela própria esteja conseguindo vencer o bloqueio? É possível que essesmaníacostivessemfeitoumtrabalhodeamador?Umtrabalhoimperfeito,comfalhas?E...porquê?
Alexvoltouàpoltrona,sentou-seeinclinou-separaafrente,osolhosmuitosériosfitosnorostodePablo.
—Poisaíestá,exatamente,oquemaismepreocupa—disse.—Nãoacreditoqueumabarreiramental, sólida o bastante para resistir durante todos esses meses, comece, de repente, a romper-seespontaneamente. O bloqueio não funciona assim... E é evidente que sua amiga se envolveu comprofissionais.Assimsendo,osproblemasqueestáenfrentando...ascrises,omedo...sópodemsignificarumacoisa...
—Sim...?—murmurouPablo,ansioso.—QueaslembrançasreprimidaspelobloqueiodeAzraelsãodetalnatureza,tãoassustadoras,tão
explosivas,quenada,nemmesmoamaisavançadatecnologiadecontrolemental,conseguemantê-lasadistânciadoconsciente.Existealgoterrívelocultona
memória de sua amiga... algo grande demais, tão grande que está forçando o caminho para aconsciência. Esses objetos... as luvas, o oftalmoscópio, o capacete... estão funcionando como detona-dores de crises porque, provavelmente, fazemparte das lembranças reprimidas.Quando ela os vê, aslembranças chegambempróximas do consciente. Logo, porém, aciona-se o bloqueio e as lembrançasvoltamadesaparecernoinconsciente.
OcoraçãodePablobatiarápido.—Nessecaso,talvezsejapossívelhipnotizá-la,fazê-laregredirederrubarobloqueiodeAzrael,
que,aliás,jáestádandosinaisdeestafa.Tendocuidado,épossívelfazê-lalembrareevitarocomaauto-induzido...
Deumsalto,Alexlevantou-sedapoltronaepostou-sediantedoamigo,odedoemriste.—Vocênãoestáentendendo!Eperigosodemais!Vocêestásemetendocomgentemuitoperigosa.
Se ajudar sua amiga a se lembrar, fará com que os inimigos dela se transformem em seus inimigostambém.Vocêsserãodoisaconhecerosegredoqueelesqueremesconder!
—Elaétãojovem...Eestácomavidaarruinada...—Vocênãopodeajudá-la.Estámuitovelhoeéumsó.—Vocêpensaassimporquenãoaconhece,porquenãosabequeméelaeoquefaz.Vou-lhecontar
tudoparaque...—Nãoquerosaber!—Alexgritou.—Elaémédica—Pabloinsistiu.—Estáconcluindooperíododeresidência.Ouestava...depois
dequatorzeanosde trabalho,estudoededicação.Eagoraestáperdendotudooqueconseguiu!Eumatragédia!
—Emminhaopinião,nadadissointeressa.Oqueinteressaépensarqueelatalvezdescubraquelembrarpodeserpiordoquenãolembrar.Asmemóriasqueelaaindamantémreprimidaspodemser...devastadoras!
— Épossível...—Pabloconcordou.—Masnãocabeanósdecidir isso.Avidadelaestáemjogo...Porquenegar-lheachancederesolver?
Alexnãomoveuummúsculo:
— Se sua amiga não for destruída pela verdade, acabará assassinada pelos homens que lheimplantaramobloqueio.Atémesurpreendemuitoquejánãoatenhamassassinado.Quemquerqueestejaportrásdisso,nossosserviçossecretosouserviçosestrangeiros,vocêsabequeháumaspectonoqualtodosconcordam...paraeles,opessoalcivilédescartável,completamentedescartável.Nãoentendoporquesederamaotrabalhodeimplantarumbloqueioemsuaamiga,quandopoderiamter-selivradodelacomumabala.Balassãomaissimplesemaisbaratas.Imaginoquetenhamqueridolhedarumasegundachance. Mas não se iluda, meu amigo... ela não terá uma terceira chance! Quando souberem que obloqueiodeAzraelestásendobombardeado,elesamatarão.
—Talvezsim.Talveznão—replicouPablo.—Vocêprecisaconhecê-la.Elaéfantástica!Cheiadeforçaevontadedeviver...fortecomoumrochedo...Desdecedoaprendeualutarparaconseguiroquequer.Eagora...Paraelaavidaestáinsuportável!Nãoseiseelamesmanãoescolherialutar,emarenaaberta,olhonoolhodoinimigo...emvezdeesconder-seatrásdoesquecimentode...sejaláoquefor!
— E você? Acho bom esclarecer que, em minha opinião, se eles decidiremmatar, você é osegundoda lista.Talvez,mesmo,oprimeiro, jáque,nocasodesuaamiga,aindapodemcontarcomobloqueio.Jápensounisso?
—Aosoitentaeumanos,avidacomeçaaficarmuitomonótona...—Pabloriu.—Vocêachaqueeudeixariapassarumaaventuracomoessa?!VoguelagalèrelVouarriscar.
—Estácometendoumerrograve.—Epossível,meuamigo...épossível.Porqueserá,então,quemesintotãobem?ChicagoIllinoisOdr.BennetSonneford,queoperaraWintonTolknodia seguinte ao incidentedobar, conduziuo
padreWycazikatéseues-critoriodomestico,uniâsaladeparedescobertascompeixesempalhados:umgigantescoalbacora,
umsalmão,algumastrutas—maisdetrintaolhosdevidroespiavamosdoishomens,semvê-los.Deumlado,umaestantecheiade troféus, taçasdouradaseprateadas,muitasmedalhas.Omédicosentou-seàescrivaninhadecarvalho,exatamentesoboalbacora,eindicouaopadreumadacadeiras.
Ohospitalforneceraapenasotelefonedoconsultóriododr.Sonneford,masovelhopároconãosossegouenquantonãodescobriuoendereçodesuaresidência.
Semprevalendo-sedaajudadeváriosamigosnaempresatelefônica,éclaro.Eagoraláestavasehtadoàfrentedomédico,àsseteemeiadanoitedeNatal,noúltimoparágrafodospedidosdedesculpaspelainterrupção.Logoatacouoassuntoprincipal:
—BrendantrabalhacomigonaparóquiadeSantaBernardette.jÉumexcelentecolaborador,eeunãogostariadevê-lometidoemcomplicações.Sonneford,quetinhaalgumacoisadepeixe,nopálidorostodeolhossalientesebocalarga,admirou-
se.—Complicações?—Apanhouumapequenachavedefenda,escolhidadentreváriasnumacaixa
deferramentas,baixouosolhoseconcentrou-senoconsertodeumcarreteidepescariaqueestavasobreamesa.—Quetipodecomplicações?
—Obstruçãodotrabalhodeagentesdalei.—Issoéridículo.—Sonnefordcuidadosamenteretiroudoisminúsculosparafusosdocarretei.—
Se ele não tivesse socorrido o patrulheiro, não estaríamos conversando, porque o patrulheiro estariamorto.Tolkrecebeuquatrolitrosemeiodesangue.
—Émesmo?Entãonãohouveenganonopreenchimentodorelatóriodacirurgia.—Não,nãohouve.—Omédicoabriraocarreteieexaminava-ocommuitaatenção.—Umadulto
temsetentamililitrosdesangueporquilogramadepesocorporal.Tolkéumhomemcorpulento,pesacem
quilos.Eprevisívelquetivessesetelitrosdesanguenasveias.Assim,quandoordeneiquelhedessemsangue,aoini-
ciaracirurgia,haviasobreamesaapenasquarentaporcentodopatrulheiroTolk.—Trocouachavede fenda por um alicate. —• E ele recebera um litro de sangue na ambulância, antes de chegar aohospital.
—Estádizendoque,antesdesersocorrido,opatrulheirochegouaperdersetentaecincoporcentodosanguequetinha?Mas...épossívelperdertantosangueesobreviver?
—Não—Sonnefordrespondeu,semlevantarosolhos.OpadreWycaziksentiuumaondadeprazercorrer-lhepelascostas.— As balas alojaram-se nos tecidos moles e não atingiram órgãos vitais. Poderiam ter sido
desviadaspelascostelas?Poralgumoutroosso?Sonnefordcontinuavaaconsertarocarretei,masparouelevantouacabeça:— Se aquelas duas balas tivessem atingido algum osso, teriam produzido estilhaçamento dos
tecidos ósseos. Não vi nada disso. Por outro lado, se não tivessem encontrado tecido duro pelafrente,teriamvaradootórax,eabertodoisorifíciosdesaída.Eumesmoencontreiasbalasalojadasemtecidomuscular.
Stefanparou,comoqueàespera.—Porqueseráquetenhoasensaçãodequehámaisalgumacoisasobreaqualosenhorestáenão
estáquerendofalar?—perguntou.—Eporqueseráquetenhoasensaçãodequeosenhornãofoisinceroaoexporosmotivosqueo
trouxeramaqui?—Touchél—OpadreWycazikbaixouacabeça.Sonnefordsuspirouedevolveuàcaixaaspequenasferramentas.—Tudobem.Pelaanálisedosorifíciosdeentradadasbalas,tenhoabsolutacertezadequeuma
delas atingiu o tórax deTolk e alcançou a parte inferior do osso esterno, que deveria ter partido.Osfragmentosdoosso atingido teriam se espalhadopor todosos lados e necessariamente acabariamporatingirórgãos,veiasouartériasvitais.Aparentemente,nãofoiissoqueanconteceu.
—Porque“aparentemente”?Ouaconteceu,ounãoaconteceu.—Euseiqueabalaatingiuoesterno,porquenãohácomoentrarporondeelaentrouechegaraté
ondeeuaencontreisematingiroesterno.Noentanto,euaencontreialojadaemtecidomuscular,naparteposterior do tórax...A única explicação possível é que a bala... ora, que a bala...atravessou o osso.Claroqueseiqueissoéimpossível.Mastambémseiqueexamineioorifíciodeentrada,vioesternoamilímetrosdaferida,intato,eencontreiabalaatrásdoesterno.Nãopossoimaginarcomoelachegoulá.Omesmoaconteceucomasegundabala.Eladeveteratingidoumacostela.Masacostelatambémestavaintata.Umabaladecalibretrintaeoitoémaisdoquesuficienteparadestruirumacostela.
—Osenhorpodeterseenganado—disseopadre,assumindoaposturadeadvogadododiabo.—Abalapodeterpassadoentreduascostelas...
— Não.—Omédico levantou a cabeça, porémnão olhou paraStefan; parecia cada vezmaisconfuso. — Não cometo erros desse tipo. Além de tudo o que lhe disse, há outro detalhe aindamaisintrigante.Nãohouvedanoalgumaostecidosqueficamentreopontoemqueabalaentroueopontoonde a encontrei. Isso é absolutamente impossível de entender. Não há amenor possibilidade de umprojétildisparadoporarmadefogoatravessartecidomuscularhumanosemdanificá-lo.
—Talvez...umpequenomilagre...—Não...Umgrandemilagre.—Seapenasumaartériaeumaveiaforamatingidase,aindaassim,semgravidade...comofoique
Tolkperdeutantosangue?—Nãosei.Osferimentosqueencontreinãopodemserresponsáveispelavastahemorragia.O médico calou-se e baixou a cabeça. Parecia assustado! Mas por que estaria assustado? Se
testemunharaummilagre,teriaantesrazõesparasentir-seeufórico!—Doutor,seiquenãoéfácil,paraumcientistacomoosenhor,admitirqueexistemcoisasquesua
ciêncianãoécapazdeexplicar.Coisasque,naverdade,parecemapontarnadireçãoopostaà razão científica.De qualquermodo, é importante que o senhorme conte tudo que viu. Tenho a
impressãodequehámaisalgumacoisa.Oquê?ComofoiqueTolkperdeutantosanguesesuasferidaseramtãoinsignificantes?
Sonneford acomodou-se na cadeira por trás da escrivaninha, as costasmuito retas, todo o corpotenso.
—EmcasoscomoodeTolk—começou—,oprocedimentocirúrgicoderotinaésimples.Depoisdedar início à transfusãode sangue, localizeiosprojéteis atravésde chapas radiográficasdo tóraxerealizei as incisões necessárias para removê-los.Durante o processo, encontrei umpequeno ponto derompimento na artéria mesentérica superior e outro numa das veias intercostais superiores. Eu tinhacertezadequehaviaoutrasveiasouartériasatingidas,masnãoconseguilocalizá-lasdeimediato.Entãoresol-vipinçar e suturarosdoisvasosqueencontrara e sódepoisprocuraroutros eventuaisdanos.Ecoisarápida...apenasalgunsminutos...Sutureiprimeiroaartéria,porqueahemorragiaeramaiornaqueleponto.Então...
—Sim...?—murmurouopadreWycazik,ansioso.— Voltei à veia intercostal. A pinça estava exatamente onde eu a colocara... mas a ferida
desaparecera.— Desaparecera...—opároco repetiu.Era o fato deque tanto precisava.A coisa estranha, o
fenômenoinexplicável,arevelação!—Issomesmo...—Sonneford,afinal,levantouosolhos,cheiosdemedo.Medodedescobrirque
presenciaraummilagre.—Aveiacicatrizou!Euseiquehaviaumrompimento...Euvi,minhaassistenteviu,minhas enfermeiras viram! Retirei a pinça, e o sangue fluiu normalmente, sem vazamento algum.Mais tarde,quandoextraíasbalas, foicomoseo tecidomuscularestivessese regenerando...bemali,diantedenossosolhos!
—Oquequerdizer“foicomose...”?Omédicohesitouporummomento;pareciaconfuso.—Nada—disseafinal.—Ostecidosestavamseregenerando...seiqueédifícilacreditar,maseu
vi.Nãohácomoprovarisso,maseuseiqueumadasbalasestourouoesternodeTolk,outrarebentou-lheumacostela,edezenasdefragmentospontiagudosofurarampor todosos lados.Tolk
perdeusangueporcausadessasdezenas, talvezcentenasdepequenosferimentos,váriosdelesmortais.Mas, entre o momento em que foi ferido e o momento em que chegou à mesa de cirurgia, seusferimentos...cicatrizaram.Osossosseregeneraram.Tantoaartériamesentéricasuperiorquantoaveiaintercostal foramseveramenteatingidas,e,noentanto,estavamemprocessodecicatrizaçãoquandoasexaminei.Ahemorragiaintensadòsprimeirosminutosdeveterocorridoemfunçãodessesferimentos,oqueexplicariaagrandeperdadesangue...inicial.Depois,aospoucos,osferimentosforamsumindo.
«-Eoqueéquesuaassistenteeasenfermeiraspensamdisso?—Eengraçado...Nemchegamosafalarmuitosobreocaso.Naomepergunteporquê...Achoque
éporquenãoacreditamosemmilagres.—Oquenãodeixadeserumpoucotriste...—Stefancomentou.Comosolhosmuitoabertos,asombradomedotornando-os
aindamaisparecidoscomosolhosdopeixenaparede,Sonne-fordaindaresistia:—Supondo...vejabem...supondoqueDeusexiste—perguntou—,porqueElesepreocupariaem
salvaravidadessepatrulheiro?—Tolkéumbomhomem.— E daí? Todos os dias vejo morrer meia dúzia de “bons homens”, “boas mulheres”, “boas
crianças”...PorqueDeussepreocupariaemsalvaressehomememespecial?Ovelhosacerdotelevantou-seeaproximouacadeiradaescrivaninha.—Foifrancocomigo,doutor,eeutambémvouserfrancocomosenhor.Pressintoqueháalguma
coisamuito forte por trás desses acontecimentos.Uma força, uma presença sobre-humana que não serelacionadiretamentecomopatrulheiroTolk,esimcomBrendan,ohomemqueosocorreunobar.
—Eháoutrasevidências?—Sonnefordpiscou,surpreso.—Há,pelomenos,maisumaevidência.—E,semcitarno-mes,opadreWycazikcontou-lhesobrearecuperaçãodeEmmyHalbourg.Todavia,nemdepoisde
ouvir a narrativa do que po-deria ser outro “milagre”, omédicomostrou-semais tranqüilo oumenosamedrontado.
— Talvez eunão esteja entendendobemoque sepassa como senhor,mas achoque temboasrazõesparasentir-sefeliz.Afinaldecontas,osenhorteveaoportunidadeúnicaeinestimáveldeveraprópriamãodeDeusemação.Porqueestáassustado?
Sonnefordpigarreouantesderesponder:— Meuspaiseramluteranos; fuieducadocomoluterano,massouateuhávinteecincoanos.E
agora...—Ah,sim...Entendo.Feliz da vida, Stefan sentiu que havia fisgadomais uma alma para a glória deDeus. Não podia
suspeitarque,antesdofimdanoite,aalegriadaquelemomentosetransformariaemamargadecepção.Reno,NevadaZebediahLomackjamaisimaginouquesuavidapudesseterminaremsuicídionodiadeNatal,mas
pareciaterchegadoaofimdalinha,eaidéiadeacabarcomtudonãolhesaíadacabeça.Carregouaespingarda,colocou-asobreamesa,nomeiodacozinhaimunda,eprometeuasimesmo
quedariafimàprópriavidase,atéameia-noite,nãoconseguisselivrar-sedamaldiçãoqueoperseguia.ALua.ALua o fascinava, dominava e obcecava desde o verão retrasado, embora, nos primeiros
tempos,tudoparecessenormaleinocente.Pelosfinsdeagostodaqueleano,eleatégostavadepararnaportadosfundos,comumagarrafadecervejanamão,eficarolhandoaLuaeasestrelas.Emmeadosdesetembrocomprouumtelescópioealgunslivrosdeastronomia.
Elemesmosesurpreendiacomtãorepentinointeressepelosastros.Emcinqüentaanosdevidacomojogadorprofissional,jamaisseinteressaraporqualquercoisaaforaosnaipesdebaralho.TrabalhavaemReno,LakeTahoe,LasVegas,àsvezesemalgumacidademenor,comoElkoouBullheadCity,fazendosempreaúnicacoisaquesabia: jogarpôquercomturistas.Eraumjogadordeexcepcionalhabilidade,apaixonadopelascartasmaisdoquepormulheres,comidaoubebida.Nemmesmoodinheirolhepareciaimportante:via-otão-somentecomoaconseqüência,maisoumenosóbvia,desuapaixãopelojogo.Paraserfeliz,Zebprecisavasódeumbaralho,umparceiroeumpanoverde.
Atéquecomprouotelescópioeenlouqueceu.Nocomeço,durantedoisou trêsmeses, limitou-seadarrápidasespiadelasnocéu,comproumais
alguns livros e pensou que havia encontrado um hobby interessante. No Natal anterior começou aconcentrar-senaLua,efoientãoquetudopiorou.Aconteceu-lheumacoisamuitoestranha.Aospoucos,ohobbydo telescópio tornava-secadavezmais fascinante,e logoeleestavacancelando temporadasde
trabalhonoscassinossóparaobservarmaisaLua.Emfevereiro,jánãoconseguiadesgrudaroolhodalentedotelescópiodesdeomomentoemqueaLuasurgianohorizonteatévê-ladesaparecer.Emabriltinhamaisdecemlivrosdeastronomiaesaíadecasaapenasduasoutrêsvezesporsemanaparairaocassino.Emjunhoabibliotecacontavamaisdequinhentos títulos,eZebpassavaacolar fotosdaLuapelasparedes.Jánãojogavacartaeviviadodinheiroqueeconomizavaparaavelhice.Daípordiante,ointeressepelaLuadeixoudesersimpleshobbyetransformou-seemobsessão.
Emsetembro,milequinhentoslivrosdeastronomiaempilhavam-sepelacasa.Duranteodia,Zebliasem parar ou, quando não estava lendo, ficava de olhos fixos nas fotografias coladas pelas paredes,incapaz de entender e de evitar o fascínio que a Lua exercia sobre ele.As crateras, as planícies, osacidentesdosatéliteeramtãofamiliaresparaelequantooscincocômodosdesuacasa.NasnoitesdeLuacheiaficavaolhandopelotelescópioaténãoseagüentarmaisempé.
AntesqueaobsessãopelaLuaodominasse,ZebLomackeraumhomemrelativamentebemcuidadoeatéelegante.Mas,comopassardotempo,foideixandodeladoosexercíciosfísicoseco-
meçou a alimentar-se de enlatados e refeições compradas prontas, porque já não conseguia fazerqualquercoisaquenãoestivesserelacionadaàLua.
Era terrível, porque, aomesmo tempo que o fascinava, a Lua assustava-omuito. Zeb passava dacuriosidadeàestranheza,daestranhezaaomedo,edomedoaopânico.Vivianervosoetentavaacalmar-se comendo sem parar, conseqüentemente engordou, tornou-se flácido, ficou indolente, mas não seimportavanemumpoucocomasmudançasfísicasqueotransformavamemoutrohomem.
NocomeçodeoutubrosópensavanaLua,sonhavacomaLua,enãohaviaummetrodeparedeemsua casa que não estivesse coberto de fotografias da Lua. Em junho, Zeb comprou cinqüen-ta cópiasenormesdeumafotografiaquemostravadetalhesdasuperfícielunar;comonãohaviamaisespaçoparaelasnasparedes,pregou-asnoteto,espalhou-aspelochão,colou-asàsvidraças.Asvezes,deitava-senochão da sala, de onde havia retirado osmóveis, e, como se estivesse num planetário, passava horasolhandoosposterscoloridos.Eramhorasdegrandeprazeredeinexplicávelterror.
Na noite deNatal, Zeb lá estava, estendido no chão, commeia centena dedoses da Lua sobre acabeça,quandoviuumnomeescritoatintasobreumadasfotos.Erasualetra,maselenãotinhaamenorlembrançade terescritoqualquercoisa.Dominick...Quemseria?Equando teria escrito?Continuouapercorrercomosolhosasérieinfindáveldecrateraseplanícies,atédepararcomoutronomeescritonumpôster: Ginger... Encontrou ainda um Faye e um Ernie. Ansioso, rolou pelo chão à procura deoutrosnomes,porémnãoencontroumaisnenhum.
Tinha certezadequenão conhecianinguémcomqualquer umdaquelesnomes.Haviadois ou trêsErniesnocassino,masnãoeramseusamigose,aindaquefossem,nãohaveriarazãoparaescreverseusnomes pelas paredes. Quanto mais pensava, mais se desesperava, porque começava a sentir que, naverdade,sabiaquemeramaquelaspessoas,sabiaquetodoshaviamtidoumpapelim-
portantíssimoemsuavidae,piorquetudo,sabiaquesuaprópriavidadependiadequeselembrassedeles.
Algumacoisa emseu íntimocomeçoua inchar comoumbalão. IntuitivamenteZebpressentiuque,quandoobalãoatingisseolimitemáximo,estouraria...eentãoeleentenderiatudoquesepassava.Tudo:osnomes,aobsessãopelaLua,omedoquesentiaquandoolhavapelotelescópio.Comobalão,quenãoparavadecrescer,cresciatambémomedo.Zebsentiuocorpoinundadodesuorgelado,trêmulodospésàcabeça.
De repente, as lembrançaspassarama ser a grande e terrível ameaçaquepesava sobre suavida.Não!Nãoquerialembrar-sedenada!Comosempreacontecia,aansiedadeprovocou-lhemuitafome,eelecorreuparaacozinhaàprocuradoquecomer.Nãoencontrounadasobreamesa,nemnageladeira.
Pelochão,espalhavam-selatasvazias,caixasdeleitetambémvaziaseembalagensdeovos,umadelascomumvelhoovopodreaindagrudado.Zebtentoulembrar-sedequandosaírapelaúltimavezparairaosupermercado.Nãotinhaidéia...tantopodiatersidoalgunsdiasantescomomesesatrás.Eraimpossíveldescobrir,porqueemseumundoalucinado,povoadodecraterasprateadasedesertas,nãohaviatempo.Desdequandonãocomia?Nãosabia...Lembrava-sevagamentedeterabertoumalatadepudim,masissotambémpoderiatersidohorasatrásoudiasantes.
Aoperceberasituaçãoaquesuavidasereduzira,Zebassustou-setantoque,pelaprimeiravezemsemanas, conseguiu pensar com alguma clareza. Olhou em volta e, também pela primeira vez, viu aimundície acumulada pelo chão: lixo pelos cantos; latas enferrujadas, algumas com doce, outras comgorduraazeda,todascheirandomal;caixasdecereais;dezenasdeembalagensdeleite;papéissujosdedoce; e baratas.As baratas passeavam entre a sujeira, subiam pelas paredes, andavampelas gavetas,corriamemvoltadapia.
—MeuDeus...—elegemeubaixinho,quasenumsoluço.—Oqueestáacontecendocomigo?!Oh,Deus...oqueéqueestáacontecendo?!
Numgestoautomático,levouamãoaorostoeestremeceuaoperceber que estava barbudo. Seria capaz de jurar que se barbeava todos os dias, como sempre.
Apavorado, correuparaobanheiroàprocuradeumespelhoe,quandoseviu refletidonocristal em-poeirado,nãosereconheceu.Estavasujocomoummendigo;oscabeloscaindopelatestaepelopescoço,emplastradosderestosdecomida,gorduraesujeira;orostopálidoeinchado,osolhosalucinadoscomoosdeumanimal.Efedia.Seucorpofedia...Porcertohaviadias,ouatésemanas,quenãotomavabanho.
Estava doente... Só podia estar muito doente... Não sabia o que se passava naquela casa. Sabiaapenasqueprecisavachegaratéotelefoneepedirsocorro.Enoentantopermaneceuimóvel,commedode que, se alguém o encontrasse naquele estado, concluísse que ele havia mesmo enlouquecido e olevasseparaohospício.Comohaviamfeitocomseupai.
QuandoZeb tinhaoito anos, seupai sofreráumacrise terrível, pusera-se agritar que tirassemosbichosdepertodesuacama,limpassemasparedes,tirassemosbichos...Osmédicosolevaram,diziam,paracurarabebedeira,masnuncao trouxeramdevolta.Deliriumtremens, fora o diagnóstico.Desdeaquela época,Zeb tinhamedode ir pararnumhospício...E seriaomínimoquepoderia acontecer, sealguém visse as condições em que vivia. Ele precisava defender-se. Então carregou a espingarda ecolocou-asobreamesadacozinha,propondoasimesmoumdesafio:
—PonhafogonesseslivrossobreaLua,arranquetodasessasfotosedêumjeitonacasa.Depoistomeumbanhoefaçaabarba.Quandoestiverlimpo,talvezconsigaentenderoqueestáacontecendo.Sóentão,vábuscarsocorro.
A espingarda fazia parte do desafio. Por sorte, daquela vez, a fome fizera-o despertar do transeprovocadopelaLua,masZebpressentia que não teria outra chance de escapar.E se não conseguisseresistiraocantodaslunaressereiasqueositiavam,aúnicafugapossívelseriaamorte.Nessecaso,láestavaaespingarda.Bastariametê-lanaboca,puxarogatilhoeestourarosmiolos:estaria livreparasempre.
Melhor morrer que continuar a viver daquele jeito. Melhor morrer que ser trancado numa cela,enfiadonumacamisa-de-força,comoseupai.
Semlevantarosolhosdochãoparanãoverasfotografiasnasparedes,Zebvoltouàsalaecomeçouareuniroslivros,algunsencapadoscomfotosrecortadasderevistasoujornais.Apanhou-os,colocou-osdebaixodobraço,saiuparaopátiocobertodeneveecaminhounadireçãodachurrasqueiradetijolos.Tremendo de frio, jogou a primeira leva de livros sobre o carvão e voltou para apanhar outros, semcoragemdelevantaracabeçaparaocéu.EranoitedeLuacheia.
Aos poucos, à medida que o trabalho avançava penosamente, crescia-lhe o desejo de voltar aoestudo da Lua, aos livros, ao telescópio. Desejo desesperado, alucinante, como o que atormenta umviciadoemheroína,ocorpointeiroimplorando...maisemais...Zebconseguiuresistir.
Indo e vindo, da sala à churrasqueira, parecia-lhe que, aos poucos, aproximava-se omomento delembrar-se daquela gente:Do-minick,Ginger, Faye, Ernie... O instinto dizia-lhe que seria possívelentenderacausadofascínioperversoqueaLuaexerciasobreele,seconseguisse lembrarquemeramaquelasquatropessoas.Concentrava-senosnomes,lutandoparanãopensarnaLua.Chegouapensarqueestavaprestesavencerabatalha...
A churrasqueira já estava cheia de livros, duzentos ou trezentos volumes prontos para seremqueimados.Zebacendeuumfósforoeinclinou-separaatearfogoàprimeirapágina.Entãocompreendeutudo.Achurrasqueiraestavavazia.Eledeixoucairacaixadefósforosecorreuparaacozinha,osolhosesbugalhados,ocoraçãoadivinhandooqueoesperava.Sim...oslivrosláestavam,úmidos,respingadosdeneveesujosdecarvão.Começaraalevá-losparafora,masderepente,emalgummomento,semquetivessepercebido,aLuahipnotizara-ooutravez,tomaracontadeseussentidoseobrigara-oacarregaroslivrosparadentrodecasa.
Seuprimeiroimpulsofoichorar.Aslágrimasescorriam-lhepelorosto,poremZebnãoerahomemdeseentregarsemluta.De
dentes cerrados, lívido, tornou a empilhar alguns livros, voltou-se e caminhou, mais uma vez nadireçãodachurrasqueira.Eracomoseestivessenoinferno,condenado,atéaconsumaçãodostempos,arepetircadaumdosgestosdeumritualfrenéticoeinútil.
Naterceiraouquartaviagem,descobriuqueiaevinha,masnãodeixavaoslivrosnachurrasqueira.Levava-osdenovoparadentro.ALuaobrigava-oaguardarparasempreseusobjetosdeculto.
Cabisbaixo, os olhos semicerrados, Zeb parou de repente, quase à soleira da porta. A neveacumulada sobre o chão tinha um brilho prateado, sobrenatural. Ele ergueu a cabeça, fitou o céusemnuvens,emurmurou:
—ALua...Apartirdessemomento,foicomosejáestivessemorto.LagunaBeach,CalifórniaParaDominickCorvaisisodiadeNataleraumdiacomoqualqueroutro.Semmulhernemfilhos,
semjamaistertidofamília,semvontadedecomerperusozinhoemcasa,viaadatatranscorreremtotalnormalidade.Algunsamigos,entreosquaisParkerFaine,sempreoconvidavamparaaceia,masDomraramente aceitava tais convites: não queria sentir-se intruso. Além do mais, Dom pertencia a umacategoria bem diferenciada de seres humanos: os que se sentem bem acompanhados em sua própriacompanhia.Comacasacheiadebonslivros,nuncasesentiriasolitárioemdiaalgum...
NaqueleNatal,contudo,nãoconseguiaconcentrar-seemnada.Sópensava,alternadamente,emduascoisas: no bilhete que havia recebido e nos calmantes que queria tomar, porémnãodevia.Apesar domedodeumarecaída,desdeavésperadeixaraderecorreraosremédios.Estavaresolvidoaenfrentaroque o futuro lhe reservasse sem o amparo de qualquermuleta química.Mas nem por isso a vontadediminuía.Aocontrário,eratãointensaque,acertaaltura,Domcorreuaobanheiro,despejouoconteúdodosvidrinhosnaprivadaepuxouadescarga.Nãoconfiava
maisemsuacapacidadederesistir.Àmedidaqueashoraspassavam,aansiedadecresciaaníveisquaseinsuportáveis,muitopróximosdospicosaquechegaraantesdotratamento.
Assetehorasdanoite,DomchegouàcasadeParker,elogorecebeuumcopocomabebidaqueopróprioanfitriãopreparara:batidadegemadacomcanela.Parkerfizeraabarbaecortaraoscabelos...Fantástica homenagem ao grande dia da cristandade! Reformado por fora, continuava, no entanto, o
mesmoterrívelirreverentedesempre.—MasqueNatal!Nuncavitantapazeamorjuntos!—exclamoucomironia.—Meuamadoirmão
só falouumasquarentaoucinqüentavezessobrea invejaquesentedemeusucesso...Essadeveseramelhor marca que ele consegue, em anos! Efeito da santidade do dia!... E Carla, minha meia-irmã,chamouDoreendeputasóumavez...EDoreen,alémdesercunhadadela,começouaconversadizendoqueCarla pertence “à Idade daPedra, tem a cabeça cheia demerda”...Que dia, amigo!Puro amor efraternidade...Nemumúnicosopapoaolongodeumatardeinteiradeconvivênciafamiliar!OmaridodeCarla, por exemplo, apesar de ter ficado bêbado como um gambá... o que já é uma das mais carastradiçõesdafamília...nãorolouescadasabaixonenhumavez...esórepetiuacenaemqueimitaBetteMidler...deixever...umasdezessetevezes!
Domseguiu-oatéoconjuntoestofadojuntoàvaranda,sentou-seedisse:— Voufazerumalongaviagem.VoudeaviãoatéPortlande láalugoumcarro.Querorefazero
percurso de Portland até Reno, atravessar Nevada e metade de Utah pela Rodovia Oitenta. DepoispretendoiraMountainview.
Parkerpermaneciaempé,ouvindo-osemmoverummúsculo;eraevidente,porém,quea idéia lhepareciamagnífica:
—Sim...Masporquê?Teveoutracrisedesonambulismo?Aconteceumaisalgumacoisaevocêdescobriuqueessaviagempodedecifraromistério?
—Nãotivenenhumacrise,masestouesperandoumarecaída.Talvez aconteça hoje à noite... porque joguei fora aquelesmalditos comprimidos.Nãome faziam
bem.Euestavaficandodependente...viciado,essaéapalavra.Masnãodissenadaaninguém,porqueacheiqueficarviciadoemtranqüilizanteseramenosterrívelqueconvivercomasloucurasqueeufaziaduranteascrises.Masagoraascoisasmudaram.Vejaisso.—Mostrouaoamigoosdoisenvelopesquehaviarecebido.—Nãoestouficandolouco.Hárealmentealgumacoisa.Estechegouprimeiro.—Commãotrêmula,estendeu-lheoenvelopemaisamassado.
Parkerabriu-o,leuamensagemeficouperplexo.Domcontinuou:— Estavaemminhacaixapostal.Apanheiontem.Semremetente.Eesteoutro foicolocadoem
casa,nacaixadecorrespondência.Antes de entregar o segundo envelope, Dom contou ao amigo o que escrevera no computador e
relatou-lheosconstantessonhoscomaLua;falouinclusivedanoiteemqueacordararepetindo:“ALua”,“aLua”...
— Mas... seestádizendoqueeusouaprimeirapessoaaquemvocêconta isso...comoalguémpodeterescritoessebilhete?—Parkerperguntou,cadavezmaisintrigado.
— Nãosei.Masseja láquemfor,estábeminformadosobreminhascrisesdesonambulismo.EpossívelquetenhadesconfiadodealgumacoisaporcausadaconsultaaodoutorCobletz.
—Querdizerque...alguémpodeestarseguindovocê?— E o que parece... De qualquermodo, é tudomuito estranho. Seja quem for, pode saber do
sonambulismo, mas não sabe que eu escrevi “A Lua” uma porção de vezes, nem que sonhei isso ouaquilo.Noentanto,nãohádúvidadequeapessoasabequetenhoalgumproblemacomaLua.Mascomoestariaapardisso...?
Parkersentou-sedevagar,osolhosfixosnorostodoamigo.—Vocêprecisaencontraressapessoa...—declarou.— NovaYorké tãogrande...Difícil começarpor lá...—Domsuspirou,calando-seporalguns
momentos.—Quantomaisre-leiooprimeirobilhete,oquefalasobreosegredodetudoestarnopassado,maismeconvençodequevocêpodeterrazão.(imuitoprovávelqueminhaatualcrise
depersonalidadeestejarelacionadacomasmudançasdecomportamentoqueaconteceramlogodepoisdaviagemdePortlandaMountainview.Aidéiaérepetiraviagem,dormirnosmesmosmotéis,comernosmesmos restaurantes, tentar reproduzir tudo exatamente como aconteceu... Talvez sirva para avivar aslembranças,paraativarminhamemória.
—Mas,setivesseocorridoalgumacoisatãoimportante,comoéquevocêiriaesquecer...?— Epossívelqueeunão tenhaesquecidoespontaneamente.Podeserquealguémme induziu a
esquecer.Parkerpiscou,comoseaidéialheparecesseespantosademais,eaatacouporoutroflanco:— Esejaquemforesse filhodaputa...porque lhemandariabilhetes?Querodizer...vocêestá
construindoumahipóteseemquehávocê,deumlado,eeles,nocampooposto.Oautordessesbilhetesédotimedelesl
—Talvezestejaarrependido...Ounãoconcordecomtudoquefizeramcomigo...Seéquealguémfezalgumacoisacomigo.
—Oquê?Oquealguémpoderiaterfeitocomvocê?...Dombaixouosolhos,girandoocopoentreosdedos:—Nãosei...Sóseiqueoautordessesbilhetesestáquerendomemostrarquemeusproblemasnão
sãopsicológicos,queháalgumaoutracoisaportrásdosonambulismo.Imaginoque,talvez...eleestejaquerendomeajudaradescobriraverdade.
—Eporqueelenãolhetelefonaecontatudodeumavez?— Porque talvez tenhamedo deme contar. Pode ser um dos cabeças de uma conspiração, ou
membrodeumgrupoquenãoteminteresseemqueaverdadesejadescoberta,seilá...Seelemetelefonaeosoutrosdescobrem...estáperdido.Váriasvezes,comoseogestooajudasseaentender,Parkerpassouamãopelacabeçaepeloqueixo.
— Você fala como se uma sociedade secreta o perseguisse.CIA,Máfia,KGB, o diabo... todomundoquerendoacabarcomvocê.Estámesmopensandoem...lavagemcerebral?
—Chamecomoquiser.Sejaláoqueforqueeuesqueci,nãoteriasumidodeminhamemóriasemajuda externa. Devo ter descoberto algum segredo. Digamos que esse segredo foi apagado de minhamemória.Maseratãoforte, tão...chocante,digamosassim,que,mesmoapagadodamemória,continuapresentenoinconsciente,lutandoparaviràtonaatravésdascrisesdesonambulismoedocomputador.Eisso...Eagoraesseconspiradorarrependidosepõeamemandarbilhetescompistascifradas.
Parkerleuereleuosbilhetes,bebeuumlongogoledocoquetelebalançouacabeça:—Eumamerda...mascomeçoaacharquevocêpodeestarcerto.Enãogostonadadaidéia.Não
queroquevocêestejacerto,entende?Prefiroacreditarquesóestáimaginandooroteirodeumnovolivroe apareceu aqui para testá-lo.E inventou essa loucura toda parame impressionar.Mas... não consigopensaremoutraexplicação...
Percebendo que apertava o copo com força capaz de rebentá-lo,Dom colocou-o sobre amesa eenxugounacalçaamãoúmidadesuor.
—Nemeu—murmurou.—Porquenãoháoutraexplicaçãopossível.Poruminstanteficaramambosquietos,pensativos.EentãoParkerrompeuosilêncio:—Equalpoderiatersidoo...segredoquevocêdescobriunaquelaestrada?—Nãofaçoamenoridéia.—Jálhepassoupelacabeçaahipótesedequesejaalgumacoisa...tãoterrível,tãoperigosa...que
talvezfossemelhoresquecerparasempre?—Já...Ah,seeupudesseesquecer...Senãoestivesseenlouquecendo,senãoandassepelacasa,
noitesafio,pregandoasjanelasoumearmandoparaenfrentarinimigosinvisíveis...Seessaslembranças
estivessemmesmosoterradasparasempre...—DerepenteDomparoudesuspirarebateucomopunhocerrado no braço do sofá.—Droga! Como está não pode ficar! Tenho que saber o que aconteceu...porque, se não descobrir, vou acabar enlouquecendo de verdade. Sim, eu sei que essas frases sãomelodramáticas.Mas, do jeito que as coisas estão evoluindo, logo as crises de sonambulismovão setransformaremmaniadeperseguição.Osmonstrosquemeassustamquandoestoudormindocomeçarãoaaparecertambémàluzdodia...Atéqueeunãosuportemais,metaumabalanoouvidoevádiretoparaoinferno.
—Deusdocéu...—Estoufalandosério.—Eusei,eporissomesmoéquedigo...Deusdocéu!Reno,NevadaUmanuvemfezcomqueZebLomackdespertasse.SemobrilhopálidodaLua,conseguiuteralguns
segundosdelucidez,suficientesparadar-secontadequeestavaemmangasdecamisa,tremendodefrio.Não fosse a nuvem, já não duvidava que ficaria ali, parado, boquiaberto, olhos fixos no céu, até oamanhecer.Depois, enlouquecido, entraria em casa, deitaria no chão e perma-neceria em cultomudo,rendidoàmagiadafaceredondadavelhadeusalunar...atémorrerdefomeoudefrio.
Semiconsciente,soltouumuivodemedoecorreuparadentrodecasa.Escorregounanevedopátio,deslizououtravezaoaproximar-sedaporta,tropeçounodegraudaentrada,mas,meioempé,meiodequatro,conseguiuentrare,assim,escapardoencantonefastodaluzqueoperseguia.Se,pelomenos,asparedes não estivessem forradas de mil outras luas... Zeb ainda tentou resistir e de olhos cerradoscomeçou a arrancar as fotos coladas por toda parte. Não adiantava fechar os olhos. Havia luasperceptíveis ao tatode seusdedosdesesperados,quasevisíveisna escuridão.Que loucura...As fotosganhavamtexturaevolume.Arrancá-laseracomocorrerosdedospelascraterasqueconheciatãobem,pelasplaníciesarenosas,pelossulcosressequidos.Menosterrívelseriaabrirosolhos.Zebrendeu-see,erguendoacabeça,fitouafaceimplacáveldadeusa.
Louco.Comoopai.Loucodeamarrar.Acozinha...amesa...eaespingarda...Chicago,IllinoisFilho de bravos poloneses, “infalível braço direito do cardeal”, o padre Wycazik não estava
habituadoaofracassoenãosabiaoquefazerdasmãos,dospésedosargumentos.—ComoéquevocêmedizqueaindanãoacreditaemDeus,depoisdetudoquelhecontei?!—
esbravejou.—Sintomuito—murmurouBrendanCronin,baixandoacabeçahumildemente.—Depoisdetudo
queosenhormecontou,Deusmeparecetãoimpossívelquantoontemàtarde,porexemplo.EstavamsentadosnumquartodacasadospaisdeBrendan,nobairroirlandêsdeBridgeport,ondeo
jovem cura se recolhera, emobediência às instruções do padreWycazik, logo após o tiroteio no bar.Angustiado,semsabermaisoquedizer,Brendanencolhia-senacamadecasalcobertaporumavelhacolcha amarelada. Stefan andava de um lado para outro, tentando consumir a energia da raiva empassadascadavezmaislargasebarulhentas.
—Vejasócomosãoascoisas...—disse—,conseguimeiaconversãodeumateuprofesso,umcientista...apenascomocasodarecuperaçãodopatrulheiro.Eaíestávocê,oagentedeDeus,cadavezmaisdescrente...
—FicofelizpelodoutorSonneford—declarouBrendancomumsorrisotriste.—Mas,paramim,aféqueeleacabadedescobrirestáperdidaparasempre.
Brendanrecusava-seademonstraremoçãoemfacedosmilagresdequeforapartícipeprivilegiado,
masessenãoeraoúnicomotivoda irritaçãodopadreWycazik.Oqueconsideravamaisgrave era aindiferençacomqueooutroencaravaaterrívelperdaquesofrerá.Senãoquisessemesmoreencontraraféperdida,ocasoestariaencerrado.Brendanpareciamenospreocupadoqueemseuúltimoencontro.Naverdade, mostrava-se cada vez mais conformado, tranqüilo, pacificado. Como podia sentir-se tão àvontadeemsuanovacondiçãodeateu?
—FoivocêquecurouEmmy—Stefaninsistia.—FoivocêquesalvouavidadeTolk.Você,eosestigmasqueDeuspôsemsuasmãos.Brendanabriuasmãoseexaminou-asatento.—Seiqueforamminhasmãos—murmurou.—MasnãofoiDeusquemedeuopoderdecurar.—NãofoiDeus?!Equemmaispoderiatersido?!—Nãosei,edariaqualquercoisaparaacreditarqueDeusmeescolheuparaessamissão.Masnão
acredito.—Droga!—Ofilhodebravospolonesesperderaapaciência.—OquevocêquerqueDeusfaça
paraconvencê-lo?Queapareçanumacarruagemdefogo,comtodaasuacortedeanjos,eoco-rpe“santomilagreiro”?Vocêprecisasermaishumilde!
Ojovempadresorriuereplicoucalmamente:—Seiquetudoqueaconteceutemumaexplicaçãoracionalesimples.Sintoqueexisteoutraforça
portrásdesseseventos.EnãoacreditoquesejaaforçadeDeus.—Equeforça,poderiaser?—Stefancruzouosbraçosemdesafio.—Nãosei...Umaforçatremendamentepoderosa.Umacoisamaravilhosa,magnífica,quenãotem
nada a ver comDeus. O senhor disse que asmarcas emminhasmãos eram estigmas. Então por queapareceramcomosimplesrodelasavermelhadas?PorqueDeusnãoprovidenciouestigmasemformadecruz,depeixe...dequalquersímbolotradicionalmentecristão?
OpadreWycazikergueuosolhos,rogandoaoscéusquenãolhefaltassecalmaepaciêncianaquelemomentotãograve.Oprimeiropensamentoquelheocorreufoimenosquebanal;deu-secontadeque,nos primeiros tempos da crise de fé,BrendanCro-nin desolara-se a ponto de emagrecer umpouco e,agora,jánãopareciatristenemdesesperado—aocontrário,estavaroliçocomoumleitão,apeledeseurostorecuperavaacorrosadadosmelhoresdiaseseusolhosbrilhavamde...santidade!
—Sente-semuitobem,nãoé?—Stefanperguntou.—Sim...Masnãoseiporquê.—Suaalmaestáempaz.—Está.—Emboravocêaindanãotenhareencontradoafé.—E,emboraeuaindanãotenhareencontradoafé.Achoqueaexplicaçãopodeestarnumsonho
quetiveontem.—Outravezaquelahistóriadasluvaspretas?—Não,não...Ontemsonheiqueestavaandandonumlugardepuraluz,umalindaluzdourada,tão
brilhantequeeunãoconseguiavernadaaoredor.Aindaassimeraumaluzsuave,quenãomeferiaosolhos.Suavozadquiriuumtomdereverência.—Euiaandando,andando,semsaberquemeranemparaonde ia, mas certo de que me aproximava cada vez mais de uma coisa ou de um lugar de incrívelimportância... e indescritível beleza. Não se tratava apenas de uma aproximação. Era como se euestivessesendochamado,emsilêncio,porumsentimento...umaforçanascidadedentrodemimquemeconduzia.Meucoraçãobateesintoumpoucodemedo.Nãoéummedoruim.Easensaçãodequeoqueestáacontecendoéimportante...Continuoandandopelaregiãodeluz,nadireçãodealgumacoisaquenãoconsigover,masseiqueestálá.
ComoquearrastadopelavozdeBrendan,opadreWycazikaproximou-seesentou-seaseuladonacama:
—Eumsonhodecaracterísticasnitidamenteespirituais.Deusestáchamandovocê.Elequerquevocêvolteàfé,aosdeveresdesacerdote.
—Nãoháamenorindicaçãodapresençadivina.Euviviaalgumoutrotipodeiluminação,muitodiferentedetudooquejásentiemCristo.Acordeiquatrovezesduranteanoite,eminhasmãossempremostravamasmarcas avermelhadas.Euvoltava adormir, e o sonho recomeçava.Algumacoisamuitoimportanteestáacontecendo,esoupartedela.Masnãoénadaqueeupossaexplicar.Nadaqueminhaeducação,minhaexperiênciadevida,minhaantigafépossamentender.
Ovelhopárocorespiroufundo,pensandoqueatalluzdouradapodiamuitobemserobradodemônioe não deDeus. E se o demônio tivesse percebido que a fé de Brendan Cronin vacilava... se tivesseforjadoa luzdouradaparaseduziropobre infelizearrastá-loparaocaminhodomal?Pelosim,pelonão,semestratégiadefinidaparaenfrentarodiaboempessoa,opadreWyca-zikresolveuganhartempo:
—Bem...AchaquechegouahoradeentraremcontatocomLeeKellog,nossosuperioremIllinois,epedir-lheautorizaçãoparaencaminharvocêaopsiquiatradaOrdem?
—Não.Nãocreioqueissoadiante.Oqueeugostariadefazer,seosenhornãoseopuser,évoltarparameuquartonacasaparoquialedartempoaotempo...esperarparaveroqueacontece.Eevidenteque,comojánãotenhofé,nãopossoouvirconfissõesnemcelebrarmissa.Maspossoajudá-locomosfichários,oudarumamãoaopessoaldacozinha.
—Claro!—Obomcurarespiroualiviado.PoruminstantetemeraqueBrendanCroninanunciassesuadecisãodeabandonarabatina.—Temosmuitoquefazer juntos.Sóháaindaumaperguntaqueeugostariaquevocêrespondesse...Aindaacreditaquereencontraráafé?
— NãomesintoalienadodeDeus,apenasvazio.Comotempo,épossívelqueeuvolteafazerparteda IgrejadeCristo,comoosenhorestáconvencidodequeacabaráacontecendo.Aindaacreditoquepodereivoltar,sónãoseiquandonemcomo.
Embora decepcionado pela indiferença deBrendan frente aosmilagres deEmmy eTolk, o padreWycazikestavasatisfeitocomapossibilidadedemantê-loaoalcancedeseusconselhos.
Brendan acompanhou o pároco até a porta, e os dois despediram-se com um abraço tão afetuosoquantonumadespedidaentrepaiefilho.Juntoaopequenoportãoquedavaparaacalçada,ojovempadrecomentou:
—Aindanãoseiporquê,massintoqueestamosàsvésperasdeumafantásticaaventura.—Adescoberta...ouredescoberta...daféésempreumafantásticaaventura—respondeuStefan,
comacertezadeterpespe-gadoumbelomurronoqueixododemônio.Depois,comobompescadordealmas,partiu.
Reno,NevadaGemendo, lutando para respirar, resistindo o quanto podia ao efeito narcotizante da Lua, Zeb
pisoteouasbaratasquecorriampelochãodacozinha,chegouatéamesa,apanhouaespingardaeenfiouocanodaarmanaboca.Entãopercebeuqueseusbraçoseramcurtosdemaisparaalcançarogatilho.Odesejodeolharparaasluasqueochamavamdotetoedasparedeseratãoavassa-ladorqueZebsentia-secomosealguémopuxassepeloscabelosparaobrigá-loaergueracabeça.Quandofechavaosolhos,eracomosealguminimigoinvisívelquisessearrancar-lheaspálpebras.Sóomedodeserinternadonumhospício,comoopai,dava-lheforçaspararesistiraofascíniodemoníacodaLua.
Ainda sem abrir os olhos, Zeb deixou-se cair na cadeira, arrancou sapato e meia, segurou aespingardacomasduasmãos,voltouacolocarocanodaarmaentreoslábioseencostouodedodopéno gatilho gelado.A luz fantasmagórica daLua parecia penetrar-lhe a pele e correr-lhe nas veias, no
sangue...UmaatraçãotãopoderosaqueZebnãoresistiumais:abriuosolhoseviuascentenasdeluascoladasàsparedes.
—Não!—gritou,batendocomalínguanocanodaespingarda.Noinstanteemquemergulhavamaisfundonaquele transealucinado,pressionandoodedosobreo
gatilho,abolhaimpenetrávelqueguardaamaisrecônditamemóriarebentou...Zeblembrou-sedetudo:doverãoretrasado,deDominick,Ginger,Faye,Ernie,dojovempadre,dosoutros,daRodovia80,doMotelTranqüilidade...Deus!Omotele...aLua!
NinguémjamaissaberáseZebapertouogatilhosemquerer,numincontrolávelespasmodemedo,ouse,aocontrário,foiohorrordalembrançaqueofezmatar-se.Dequalquermodo,aespingardadisparoucomestrondo,aexplosãoarrancou-lheaparteposteriordocrânioepôsfimaseuterror.
Boston,MassachusettsGinger passou a tarde do dia deNatal lendoCrepúsculonaBabilônia; às sete da noite, hora de
descerereunir-seàfamíliaHan-nabyparaoaperitivoeojantar,lastimoudeixarolivro.Nãoapenasporqueatramadoromanceera
fascinante, mas, talvez principalmente, por causa da foto do autor. Dominick Corvaisis olhava-a dacontracapa, moreno, olhos sérios e profundos, e, por estranho que fosse, dava-lhe medo. Não podiadeixardepensarquejáoconheciadealgumlugar.
Ojantaremfamília,comosfilhosenetosdosHannaby,teriasidoagradávelseelanãoquisessetantovoltar ao quarto e retomar a leitura. As dez da noite, quando percebeu que poderia despedir-se semofenderninguém,desejouboanoite,felicidadesesaúdeatodos,ecorreuparaolivro.Astrêsequarentaecincodamadrugada,comomenornúmeropossíveldeinterrupçõesparaexaminarafotodacontracapa,terminoudedevoraroCrepúsculo.
Acasamergulhadanosilênciodanoite,oMiranteparecendovazio,Gingerdeixou-seficarcomolivronocolo,semtirarosolhosdorostotãofamiliardeDominickCorvaisis...Amedidaqueotempopassava,sentiacadavezmaisforteumestranhotipodecomunicaçãocomaquelerosto,convencendo-sede que realmente o conhecia. Mais do que isso, descobria que, de algum modo inimaginável eincompreensível, aquele homem tinha algo a ver com a recente reviravolta que ocorria em sua vida.Ainda que a certeza parecesse frágil, delirante, alimentada por uma intuição que poderia estar tãodistorcida como tudo o mais em sua vida psicológica, era uma certeza que crescia de instante eminstante,atéfazê-lasaltardapoltronaedecidir-seaagir.
Saiudoquartonapontadospésedesceuparaacozinha,atravessandometrosdecorredoresescurosesilenciosos.Nacozinha,depoisde fecharaportaeacendera luz,aproximou-sedo telefone, ligouepediuoserviçodeinformaçõesdeLagunaBeach.
EraumadamanhãnaCalifórnia,horaimprópriaparaacordarumescritor.Mas,seatelefonistapelomenos lhedesseumnúmeropara ligardemanhã,Gingerpoderiadormirmelhor.Nem isso conseguiu.Decepcionada, porém não surpresa, ouviu da telefonista a informação de que o telefone deDominickCorvai-
sisnãoconstavadalista.Silenciosacomosaíra,voltouparaoquarto,decididaaescreverumacartaàquele Corvaisis da contracapa doCrepúsculo. Remeteria a carta à editora pelo serviço de entregarápida,comumpedidoparaquefosseenviadaaodestinatáriocomamáximaurgênciapossível.Porquenão? Talvez não desse em nada, talvez fosse um gesto precipitado e irracional. Talvez DominickCorvaisisnãotivessecoisaalgumaavercomseusproblemasenãodesseatençãoàcarta,ouajulgasselouca varrida.Mas havia uma chance, uma nummilhão, de que seu instinto estivesse certo... e, nessecaso, conseguiria encontrar a ponta dameada. Probabilidademais do que suficiente para justificar oriscodebancaraidiota.
LagunaBeach,CalifórniaAindasemsaberqueumdosprimeirosexemplaresdeseulivroestabeleceracontadoentreeleeuma
mulher cuja vida se despedaçava em Boston, Dom ficou na casa de Parker Faine até meia-noite,analisandoaspossíveiscaracterísticasdaconspiraçãoqueimaginavaterdescoberto.Nenhumdosdoisdispunhadeinformaçõessuficientesparatraçarumperfildosconspiradores,masosimplesfatodepoderfalarsobreoassuntoeencontrarumamigocomquemtrocaridéiasjábastavaparaDomsentir-semaisseguro.
Ambos concordavam pelomenos num detalhe:Dom não deveria viajar a Portland e dar início àodisséia enquanto não descobrisse que reação teria seu organismo e como evoluiriam as crises desonambulismo a partir domomento em que suspendesse o tratamento. Era possível que as crises nãovoltassem,e,nessecaso,elepoderiaviajarsemapreocupaçãodeperderocontrolenumquartodehoteldeumacidadedistante.Dequalquermodo,sehouvesserecaída,antesdeviajarprecisavaencontrarumjeitodeprevenirgrandesdesastres.Alémdisso,aguardandoalgunsdias,poderiareceberoutrosbilhetesdeseumisteriosocorrespondente,talvezcomalgumainformaçãonovaque,entreoutrascoisas,tornasseaviagemdesnecessária.Quemsabeumaindicaçãomais
precisa, por exemplo, sobre o local onde encontrar paisagens ou situações que o ajudassem alembrar-se.
Ameia-noite,Dom levantou-separa sair.Parkerestava tão intrigadocomoqueouviraduranteashorasdeconversa,queficouanimadoedespertocomoseodiaestivesseapenascomeçando.
—Temcertezadequedevedormiremcasa?—perguntou,jánaporta.Domandouumpoucopelavaranda,olhandoosarabescosdesenhadosnochãodeladrilhospelaluz
amareladadeumalumináriameioescondidaentreasfolhagens.Parou,levantandoosolhosparaoamigo:—Jáfalamossobreisso.Nãotenhocertezadenada,masachoqueéomelhorquetenhoafazer.—Prometequemetelefona,seprecisardealgumacoisa?—Prometo.—Etomeaquelasprecauçõesdequefalamos.FoioqueDomfezaochegaremcasa.Tirouorevólverdapenteadeiraetrancou-oachavenumadas
gavetasdoescritório;depoisescondeuachavesobumpacotedesorvetenaúltimaprateleiradofreezer.Melhorsersurpreendidoporumladrãodoquecorreroriscodemetercincobalasemalguémduranteosono.Desceuàgaragemevoltoucomtrêsmetrosdecorda,cortadosdeumcarretei.Escovouosdentes,vestiuopijamae,prontoparadeitar-se,amarroufirmementeumadaspontasdacordaaopulsodireito,demodoque,parasesoltar,seriaobrigadoadesatarumasériedenósmuitocomplicados.Aoutrapontada corda foi atada, também com firmeza, à cabeceira da cama.Comos trinta centímetros de cada nósobrava-lhecordasuficienteparamovimentar-selivrementesobreocolchão,masnãoparaafastar-sedacama.
Nasoutrasnoitesemqueandarapelacasa,haviaconseguidoexecutar tarefasbastantecomplexas,que exigiam boa dose de concentração,mas nenhuma tão difícil como desatar nós, o que demandavaextremahabilidademanual,mesmodeumapessoadesperta.Casoquisessesairdacama,teriaquelivrar-se da corda, e esperava que, não o conseguindo, acabasse acordando antes. Era trocar um risco pelooutro. Se a casa pegasse fogo, ou se a região fosse sacudida por um terremoto, morreria antes deconseguirsairdacama,sufocadopelafumaçaousoterradoporumaavalanchedetijolosetelhas.Masnãohaviaescolha.
Nomomentoemqueseenfiousoboscobertoreseapagoualâmpadadecabeceira,orelógiodigitalaoladodacamamarcava0:58.Deitadodecostas,olhosnoteto,imaginandooquepoderiateracontecidonoverãodedoisanosantes,esperouosonochegar.
Adoispassosdacama,otelefonecontinuavamudo.Seseunomeconstassedalistatelefônica,Domteriarecebidoumtelefonemanaqueleexatoinstante.UmchamadointerurbanodeBostondeumamulherjovem,bonitaeassustada.Umchamadoqueteriaalteradoradicalmenteocursodosacontecimentosdassemanasvindourasequepoderiatersalvadováriasvidas.
Milwaukee,WisconsinNoquartodehóspedesdacasadesuaúnicafilha,àluzdalâmpadadecabeceiraacesadurantetodaa
noiteporcausadanictofo-biadeErnie,FayeBlockfitavaomarido,quemurmuravacomorostoenfiadonotravesseiro.AcabavadeacordarcomosgritosdeErniee,apoiadanocotovelo,acabeçainclinada,procuravaentenderoqueeledizia.Eraamesmapalavra,repetidaerepetida,abafadapelotravesseiro.Ernie parecia assustado, e Faye, cada vezmais nervosa, aproximou-se aindamais.De repente, Ernievirou-seeelapôdeouvir,emboranãocompreendesse:
—ALua...aLua...aLua...LasVegas,NevadaJorjalevouMareieparasuacamaporquenãoachavasegurodeixá-lasozinhadepoisdodiaagitado
quetivera.Malpôdedormir,poisMareiepassouanoiteatormentadaporpesadelosqueafaziamsaltaredarpontapésesocosnoar,comosequisesse livrar-sedealguémqueaprendia.Falavademédicoseinjeções. Jorja imaginouqueaquilopoderia estar acontecendo jádesdealgum tempo, semque tivessepercebido.
Osquartosdeambaseramseparadosporumarmárioduploqueabriaparaosdoislados:naverdade,apenas algumas roupas penduradas delimitavam os aposentos. No entanto, quando a menina falavaduranteosono,nãoconseguiaouvi-la.Agora,tendo-aaseulado,sentiaarrepiosàquelavozabafadaeaflita.Assimqueamanhecesse,levariaafilhaaomédico.NãofossediadeNatal,teriaprocuradoajudanaquelamanhãmesmo.
Depoisdoberreiroporcausadabrincadeiradeirparaohospital,depoisdesairdamesacorrendo,empânico,depoisdopipinacalça,Mareiedemoraramaisdedezminutosparaseacalmar.Resistiraatodososargumentos,esperneara,gritara,derasocosepontapés,atéque,afinal,concordaraemtomarumbanho e trocar de roupa. Mas já estava diferente, igual a um pequeno zumbi, olhos ausentes, rostoapático.Pareciaqueomedo,aodeixá-la,tivesselevadoaenergiaeainteligênciaqueamantinhamviva.
Aqueleestadopersistiraporquaseumahora,duranteaqualJorjatentaralocalizarodr.Besancourt,pediatraquecuidavadeMareienasrarasocasiõesemqueadoecia.MaryePetecontinuavamàvoltadaneta,tentandoarrancar-lheumsorrisoou,àfaltadecoisamelhor,umasimplespalavra,porémameninacontinuavamuda... E Jorja, telefone namão, lembrava-se dos artigos de jornal que havia lido sobreautismo infantil. Não conseguia lembrar-se se o autismo era um mal congênito ou se, ao contrário,podiaacontecerderepentecomqualquercriançasaudávelenormal.Assim,semmaisnemmenos,umameninadeseteanosdecidefechar-separaomundoexterior,escaparparaoutradimensão,paradentrodesimesma...eparasempre.Jorjasentia-seàbeiradaloucura.
Aospoucos,contudo,Mareievoltaraaonormal.Passaraaresponderàsperguntasdosavós,emboracomfrasescurtaseumavoztãovaziaedistantequantonomomentodosgritos.Puseraodedonaboca,hábito já abandonado aos dois anos de idade, e voltara à sala para brincar com os presentes novos.Brincouo
resto da tarde, sem parecer divertir-se, e seu rostinho estava tenso como nunca. Jorja continuavapreocupada,mas tranqüilizava-se ao notar que a filha não semostravamuito interessada no “MédicoInfantil”.
Asquatroemeia,Mareiepareciatervoltadoaonormal.Conversavaeriacomosempre,apontodeJorjaimaginarqueaagitaçãodahoradoalmoçonãopassaradeumrompantedemauhumor.
Asaída,longedosouvidosdaneta,Marycomentara:—Elaestátentandonosdizerquesesentepoucoamadaeconfusa,enãoentendeporqueopaifoi
embora.Ameninaprecisadecarinho,sóisso.Jorja sabia que não era “só isso”. Claro que Mareie sentia falta do pai, claro que se sentia
abandonada por ele, claro que vivia dúzias de conflitos mal resolvidos. Porém havia outra coisa...estranha,perturbadora,irracional.Eeraessa“outracoisa”queaassustava.
Pouco depois da saída dos avós, Mareie voltara a brincar com as seringas e o estetoscópio,mostrando a mesma intensidade frenética da primeira hora. Na hora de deitar-se carregara todosos apetrechos para o lado da cama e, naquele instante, adormecida, continuava falando de médicos,enfermeiraseinjeções.
Mesmo queMareie estivesse calada e calma, Jorja demoraria a dormir. Preocupações são maiseficientesquecaféparatirarosono.Acordada,tratoudeprestaratençãoeverseentendiaoqueameninadizia.Jápassavadasduasdamanhã,quandoMareieafinalparoudefalardemédicoseinjeções.Depoisde um último salto na cama e alguns pontapés distribuídos a esmo, ela parou de repente, rígida,absolutamenterígida,ascostassobreocolchão.
—ALua...—murmurouassustada.Calou-seporuminstantee,quandovoltouafalar,jánãohaviasómedoemsuavoz.Haviapânico,terror.—ALua,aLua...
Chicago,IllinoisSacerdote em retiro de provação, BrendanCronin dormia confortavelmente instalado sob lençóis
quenteseumapesadacolchaderetalhos,sorrindodealgumacoisaquelheaconteciaemsonho.Soprandoforteporentreosgalhosdograndepinheirojuntoàjanela,oventoassobiavanastelhaseentravapelasfrestasdajanelacomooalentoritmadodeumrespiradormecânico.Perdidoemsonhos,ojovempadredevetersentidoapulsaçãodovento,poiscomeçouafalarbaixinho,quasequecantarolando,noritmosuaveemquesebalançavamascortinas:
—ALua...aLua...aLua...LagunaBeach,Califórnia—ALua!ALua!DominickCorvaisisacordouaosomdosprópriosgritos,assustadocomadorlancinantequesentia
no pulso direito. Estava de quatro no chão, ao lado da cama,mergulhado na escuridão, lutando paradesvencilhar-sedealgumacoisaquelheprendiaamão.Aospoucos,porém,lembrou-sedacordacomqueseamarraraàcabeceira.
Arespiraçãoaindaacelerada,ocoraçãodisparado,tateouàprocuradalâmpadadecabeceira.Aluzrepentinaofuscou-lheosolhoseeleprecisoudealguns segundosparadar-secontadeque,dormindo,conseguira desfazer um dos quatro nós e já começava a desatar o segundo quando, afinal, desistira.Então,empânico,comosemprenascrisesdesonambulismo,começaraapuxaretorcereestiraracorda,tentandosoltar-se.Comoumcãopresopelapata.
Levantou-se,afastouoslençóisesentou-senacama.Tinhacertezadequehaviasonhado,emboranãose lembrasse de nada.Ainda assim, adivinhava que era um novo pesadelo, diferente do outro, que oacompanhava, pontual fazia já ummês.Nunca sonhara com aLua.Era outro pesadelo, tão assustadorquanto o primeiro, mas por outros motivos. Ainda tinha nos ouvidos o eco dos gritos que o haviamacordado.Seusprópriosgritos,assustados,aterrorizados.ALua\ALua.\Estremeceue levouamãoàcabeçadolorida.
Oquepodiasignificar“aLua”?...Boston,MassachusettsGingersentou-senacama,costasretas,ouvindooecodeumgrito.Aseulado,Lavinia,aempregada
dosHannaby,dizia:—Desculpe,doutoraWeiss.Eunãoqueriaassustá-la.Asenhorateveumpesadelo.—Pesadelo?—Gingerolhouemvoltasementender,semselembrardenada.—Sim,edospiores—assegurou-lheamoça.—Pelosgritos,devetersidoterrível.Euestava
passandopelohallquandoouviasenhorachorandoalto.Chegueiameafastarumpouco,maspercebiqueeraumsonhoruim.Entãoasenhoracomeçouagritartantoetãoaltoqueresolvivoltarparaacordá-la.
—Gritando...Euestavagritando}—Gingerperguntou,confusa.—Eoqueeudizia?— Repetiasempreamesmacoisa—Lavinia respondeu.—“ALua,aLua,aLua...”Eparecia
muitoamedrontada.—Nãomelembrodenada.— Era sempre “a Lua”.Mas com voz tão assustada que cheguei a pensar que alguém estava
matandoasenhora.
SEGUNDAPARTE
TEMPODE
DESCOBERTA
Corageméresistênciaaomedo,controledomedo—nãoausênciadomedo.MarkTwainQualosentidodavida?Qualoobjetivoquepermaneceocultoatrásdenossaluta?Deondeviemos,paraondevamos?Sempre as mesmas eternas perguntas soam e ecoam Através dos dias, ao longo das noites de
solidão.Aspiramosàluz,esplêndidaluzQuenostraráarevelaçãoDosentidodosonhodohomem.LivrodasLamentaçõesUmamigopodeserconsideradoaobra-primadaNatureza.RalphWaldoEmerson
QUATRO__________________
26dedezembro—11dejaneiro
1.BOSTON,MASSACHUSETTS
Entre 27 de dezembro e 5 de janeiro, GingerWeiss esteve sete vezes no apartamento de PabloJackson. Em seis dessas visitas submeteu-se a sessões de hipnose, cuidadosamente orientadas pelomágico,paraoperíodoemque,segundoele,poderialocalizar-seobloqueiodeAzrael.
Gingerparecia-lhecadavezmaisbonita,mais inteligente,decididaeatraente.Aospoucos,Pabloreconhecianelaasqualidadesquegostariadeencontrarnafilhaqueteriasehouvesselevadooutrotipodevida.Gingerinspirava-lhecarinho,afeto,sentimentospaternaisatéentãodesconhecidosparaele.
Pablo contou-lhe quase tudo que ouvira de Alexander Chris-tophson na festa de Natal dosHergensheimer. De início, ela resistiu à idéia de que alguém a tivesse induzido a esquecer parte dopassado:
—Nãoépossível.Essascoisasnãoacontecemcomgentecomoeu.NãopassodeumaíarmishtehdoBrooklinenuncativenadaavercomespiõeseintrigasinternacionais.
DetudoqueouviradeAlexChristophson,Pabloomitiuapenasoqueovelhoespiãoaposentadolhedisserasobreosriscosdeenvolver-senocaso.Tinhacertezadeque,seGingersoubesse
da opinião de Alex, seria a primeira a desejar afastar-se, com medo de envolvê-lo em seusproblemas. Um pouco para evitar-lhes constrangimentos, um pouco para não perder a oportunidadedeacompanharocasoatéofim,Pablonaolhefalousobreessapartedoassunto.
Naprimeiravisita,dia27dedezembro,antesdedar inícioàsessãodehipnose,elepreparouumalmoçoleveparaosdois.Sentadaàmesa,Gingeraindaresistia:
—Maseununcativenempertodeumainstalaçãomilitar,nuncameerjvolviemqualquertipodepesquisa secreta, nunca falei com qualquer pessoa, homem ou mulher, que pudesse ter relaçãocomserviçosdeespionagem.Issoéridículo!
—Vocêpodetervistoalgumacoisa,talvezlongedequalqueráreadesegurançamáxima.Podeteracontecidoemqualquerlugarondevocêestavanormalmente...sóquenahoraerrada.
— Mas... seelesme fizerampassar por uma lavagem cerebral, o processo deve ter demoradoalgumtempo.Euteriapermanecidopresadurantealgunsdias,pelomenos.Estoucertaatéaqui?
—Creioquesim.— E comopoderia ter acontecido?—Ginger abriuosbraços.—Estábem, concordoque, ao
longodoprocesso,nãoseriadifícilmefazeresquecertambémquandoouondeeuteriavistooquenãodeviaver.Mashaveriaumafalhaemmeupassado,doisoutrêsdiasesquecidos!
— Não necessariamente. Seria fácil implantar uma lembrança falsa para encobrir os dias quefossemapagados.Vocêjamaisdes-cobriria.
—Deusdocéu!Everdade?Epossívelfazer...isso?!—Esperolocalizaresseblocodelembrançasfalsasimplantadoartificialmenteemseupassado.—
Pabloacaboudemastigarecontinuou:—Podeserumtrabalhodemorado,porqueprecisamosregredirpasso a passo,mas tenho certeza de que vou reconhecê-lo no instante em que você começar a falar.Lembrançasverdadeirassãocheiasdedetalhes.Pode-seimplantarumblocodegran-
desacontecimentos,masnãoasubstânciaeorealismodelembrançasautênticas.Oquevocêdeveterregistradonamemóriaécomoumroteirodecinema,umaorientaçãogeral,emgrandes linhas.Quandoencontramosalgoassim, semdensidade, semdetalhes, chegaremosaoperíodocuja lembrança real foiapagada.
Gingerarregalouosolhos.— Sim!— exclamou.— Entendo perfeitamente. Quando eu começar a falar como papagaio,
chegaremosaomomentoemquea coisa aconteceu...Equandoeuvoltar a falarnormalmente, teremosencontradooúltimodiaencobertopelobloqueio.Mas...équaseimpossívelacreditarquealguémpossater feito isso comigo! De qualquer modo, se for mesmo verdade, então todos os sintomas que tenhomanifestado...ascrises,asfugas,osperíodosdeinconsciência...sãoapenasumareaçãonormal.Sãoaslembrançasverdadeiras lutandoparachegaraoníveldaconsciência.Nessecaso,eunão terianenhumproblemapsicológico,epoderiavoltaratrabalhar!Tudoqueprecisamosfazeréfacilitarocaminhoparaqueeurealmentemelembre...Eentãoestareilivrepararecomeçaraviver!
Carinhosamente,ovelhomágicotomou-lheamão.—Tambémtenhoesperançasdequeissoaconteça—disse—,masnãovaiserfácil.Nãoesqueça
que, cada vez que nos aproximarmos do bloqueio, você está correndo sério risco de vida.Vou tomartodasasprecauçõespossíveis,mas,aindaassim,oriscoéimenso.
AsduassessõesiniciaisdehipnoseprofundacomeçaramnamesmapoltronaemqueGingersentara-se ao procurar Pablo pela primeira vez. Uma teve lugar no dia 27 de dezembro, a outra ocorreu nodomingo,dia29;ambasduraramquatrohoras.Pabloafezregredirnopassado,diaadia,ao longodequasenovemeses,porémnãoencontrounadadignodeinteresseespecial.
Nomesmodomingo,Gingersugeriu-lhequea interrogassesobreDominickCorvaisis,oautorcujafotografiaaimpressionaratanto.Omágicohipnotizou-a,repetiu-lhe,maisumavez,queque-
riamuitoconhecerseupassadoeperguntou-lhesealgumdiaconheceraalguémchamadoDominickCorvaisis.Elanãovacilou.
—Sim—disseemvozbaixa.Pablo insistiu no assunto, cuidadoso e atento, mas não estava conseguindo arrancar-lhe nenhuma
informaçãoatéqueumretalhodelembrançaaflorouàsuperfície.—Elejogousalemmeurosto—Gingercontou.—DominickCorvaisisjogousalemseurosto?!Eporquê?
—Nãosei...Nãomelembro...—Quandofoiisso?Elarespiroufundo,franziuassobrancelhase,àmedidaquePabloinsistia,foiafundandonapoltrona
atéque,comodaprimeiravez,começouadarsinaisdepulsaçãoirregularerespiraçãocadavezmaislenta.Comodaprimeiravez,estavaentrandoemcoma.Jáprevenido,omágicoconvenceu-adequenãovoltariaainterrogá-lasobreaqueleassuntoeeladevolveuàpulsaçãooritmonormal.
NãohaviadúvidadequeGingerconheciaDominickCorvaisis.Maisdoqueisso!Nãohaviadúvidadequealembrançadeleerapartedoblocoquelheforaroubado.
Nas duas sessões seguintes, na segunda-feira, dia 30, e na quarta, dia deAnoNovo, Pablo a fezregredir mais oito meses, até o final do mês de julho, dois anos atrás; contudo, não descobriu nadaestranhoouirregular.Naquinta-feira,2dejaneiro,Gingerpediu-lhequeainterrogassesobreopesadelodanoiteanterior,quenãoconseguiarecordar.Eraaquartavez,desdeoNatal,queacordavagritando“ALua!ALua!”,eosgritoseramtãoaltosedesesperadosquedespertavamtodososmoradoresdoMirante.
—Achoqueessesonhoestárelacionadocomotalperíodoqueestamosprocurando—disse.—Sevocêmehipnotizar,talvezagentedescubraalgumacoisa.
Pablo contentou-a,masGinger recusou-se a falar sobre o assunto e outra vez deu sinais de estarentrandoemcoma.Osonho,comoonomedeDominickCorvaisis,faziadispararos
mecanismosdobloqueiodeAzrael,provadequetambémenvolviaelementosdamemóriasuprimida.Na sexta-feira não houve sessão de hipnose. Pablo pediu tempo para ler alguns artigos sobre
bloqueios de memória e decidir-se pelo melhor método a seguir para a continuação dotratamento.Sentadonoescritórioaoladodogravadorcomasfitasdetodasassessõesdosprimeirosdiasdo ano, dedicou-se a ouvir novamente o que Ginger lhe dissera. Procurava um sinal, qualquermudançadeentonação,algumapalavraquesoasseestranhaoudeslocada.
Não encontrou nada de excepcional,mas notou que a voz deGinger tornava-se ligeiramentemaisansiosa, àmedida que se aproximava do dia 31 de agosto, no ano retrasado. Ao longo da sessão, amudançapassaradespercebida,masagora, comapossibilidadedeouviroconjuntodas lembrançaseselecionarostrechosmaisimportantesparaescutá-losváriasvezes,oprocessodeansiedadecrescentetornava-se perfeitamente identificável. Pablo começou a perceber que se aproximava do período queGingerforaforçadaaesquecer.Assim,nasextasessãoderegressãohipnótica,dia4dejaneiro,elenãosesurpeendeucomoqueviu.
Como sempre, Ginger estava sentada na poltrona junto à varanda, os cabelos muito loiroscontrastandocomanevequecaíaláfora.Tudotranscorrianormalmente,atéqueelachegouaomêsdejulho de dois anos antes. Nesse ponto, retesou-se na poltrona, a testa franzida, a voz tensa e quaseinaudível.PablonãotinhaamenordúvidadequeseaproximavamdoperíodoencobertopelobloqueiodeAzrael.
Naviagemaopassado,Ginger rememorouosmesesde intensaatividadede residênciamédicanoMemorial até o encontro com George Hannaby na segunda-feira, dia 30 de julho, mais de dezessetemesesatrás.Aslembrançascontinuavamvividas,claras,cheiasdedetalhes.Aindanavéspera,domingo,29,elaarrumavaonovoapartamento.Nosdias28,27,26,25,24compraramóveis,eletrodomésticoseobjetosparaacasa.Nodia18dejulhochegaraocaminhãodemudançascomoqueelahavialevadopa-
ra Paio Alto, Califórnia, e mais o que havia comprado lá durante os dois anos do curso deespecializaçãoemcirurgiacardiovascu-lar.Nodia17,elamesmachegaraaBoston,viajandodecarro,ealugaraumquartonumhotelpróximoeBeaconHill.
—Vocêviajou...decarro?Deumladoaoutrodopaís?—Pa-blosurpreendeu-se.— Eram as primeiras férias de minha vida. Gosto de dirigir... e achei que seria interessante
conhecertodaessaregião...—Suavozestavatãoassustadacomoserelatasseumajornadaaoinferno.Pablo insistiu na regressão pelos dias de viagem até amanhã de 10 de julho, terça-feira.Ginger
passaraanoitenummotel,emNevada.—Comosechamavaolugar?—perguntouomágico.—...T...Tranqüi...lidade...—elagaguejou.—Descreva-o.Mãos crispadas nos braços da poltrona, assustada, Ginger obedeceu, fazendo um esforço sobre-
humano.Eraevidentequealgumacoisaaaterrorizava.—EntãovocêpassouanoitenoMotelTranqüilidade.Eranovedejulho,segunda-feira—disse
Pablo,tentandocontrolaraprópriaansiedade.—Agorapresteatenção...Hojeénovedejulho,segunda-feira,evocêestáseaproximandodoMotelTranqüilidade.Quehorassão?
Ginger estremeceu, engoliu em seco e não respondeu. Pablo insistiu várias vezes até ouvi-larespondernumsussurro:
—Nãochegueinasegunda-feira...S...sexta...— Nasexta-feiraanterior?!—Elesaltounapoltrona.—Vocêpassouváriasnoites,deseisde
julho,sexta-feira,atéodianove,segunda-feira,nummoteldeestrada,numfim-de-mundo?!—PablonaodespregavaosolhosdorostodeGinger.Aliestavaoperíodoquepareciaperdidoparasempre.—Eporquê?
—Porqueeraumlugartranqüilo—respondeunumavozduraeinexpressiva.—Afinal,euestavadeférias...queriadescansar.Omoteleraperfeitoparadescansar.
Ovelhomágicorespiroufundo,recostou-senapoltronae,en-quanto seus olhos vagavam pela neve que se acumulava no parapeito da janela, escolheu
cuidadosamenteaspalavrasdaperguntaseguinte:—Vocêdissequeomotelnãotinhapiscinaequeosquartoserammuitosimples.Nãomeparece
umlugarconvidativoparaumaestadiatãolonga.Porquevocêquispassarquatrodiaslá?—Paradescansar,jádisse.Dormirasesta...Lerdoisoutrêslivros,vertelevisão.Eótimaporque
elestêmumaantenaparabólica.—Avoztornava-secadavezmaisimpessoal,comoseGin-gerestivesselendoumscriptespecialmentepreparadoparaaqueletipodeinterrogatório.—Depoisdedoisanosdemuitotrabalhoem*Stanford,euprecisavadealgunsdiasdedescanso.
—Equelivrosvocêleunomotel?—Nãomelembro.—Tudobem...Vocêestáemseuquartonomotel,lendo.Entendeu?Vocêestálendo.Olheparao
livroquetemnasmãosediga-mequaléotítulo.—Eu...Não...Olivronãotemtítulo.—Todolivrotemtítulo.—Estenãotem.—Porquenãoexiste,nãoé?Namesmavozfria,quecontrastavacomospunhoscerradoseasgotasdesuorbrilhandonatesta,ela
respondeu:—E...Nãoexiste...Descansei,dormiasesta.Lidoisoutrêslivros.Vitelevisão...Atelevisãoé
ótimaporqueelestêmumaantenaparabólica.—Eoquevocêviunatelevisão?—Noticiários.Filmes.—Quefilmes?—Não...nãomelembro...—Gingerestremeceuoutravez.
Pablosabiaqueelanãoselembravasimplesmenteporquenãovira filmenenhum.Hospedara-sede fatonoMotelTranqüilida-de,poisdescrevera-oem todosos
detalhes,mas lánão leranenhum livro,nemassistira a filmesna televisão.Alguém interferira emsuamemóriaeinstruíra-aparafalardaquelamaneiraepara
fornecer respostas imprecisas.Ali estavam as falsas lembranças, arquitetadas e implantadas paraencobrirosfatosverdadeirosqueelatestemunharanomotel.Nemomaishábilespecialistaemlavagemcerebralseriacapazdecriarumateiadeacontecimentosfalsoscapazderesistirauminterrogatóriobemconduzido,deli-beradamenteorientadoembuscadealgumbloqueioartificialdememória.
—Ondevocêjantavaquandoestavalá?—Pabloperguntou.— No restaurante domotel. E pequeno e não tem um cardápio variado,mas a comida é bem
razoável—respondeu,avozneutra.—Eoquevocêcomeu?—Nãosei...nãomelembro.— Masvocêacaboudedizerque“acomidaébem razoável”...Se lembra isso,devia lembrar
tambémoquecomeu...—Ora...éumlugarpequenoenãotemumcardápiovariado,mas...QuantomaisPabloapressionava,maisviaatensãocrescer-lhenasmãosenorosto.Avozmantinha-
se fria, monótona, sem inflexão, repetindo sempre asmesmas respostas programadas, porém o corpopareciaprestesaexplodirdeansiedade.
Não seria difícil fazê-la esquecer para sempre as falsas lembranças que lhe haviam sidoimplantadas.Bastariaordenarqueasesquecesse,eelaasesqueceria.Depois,bastariaordenar-lhequese lembrasse do que realmente acontecera no Motel Tranqüilidade, e ela se lembraria de tudo. Noentanto, entre uma etapa e outra, havia os gatilhos programados pelo bloqueio deAzrael. Um dessesgatilhos poderia induzi-la a coma profunda antes de dar-lhe tempo para falar. Seria preciso ir muitodevagar, tateando com cuidado, à procura de eventuais brechas ou falhas no bloqueio, para poderaproximar-sedaverdadeemrelativasegurança.Obalançododiaseriamaisdoquelucrativosefossepossívelprecisarquantashorashaviamsidoroubadasdavidadadra.Weiss.
—Vamosvoltarparaodiaseisdejulho,sexta-feira,doisanosatrás.Vocêestápreenchendoafichadeentradanomotel.Quehorassão?—Pabloperguntou.— Aindanãosãooitodanoite.—Avozvoltaraaonormal, indicandoqueas lembrançaseram
autênticas.—Aindafaltavaumahoraparaescurecer,maseuestavaexausta.Sóqueriajantar,tomarumbanhoedormir.—EladescreveuErnieeFaye,queareceberamnaportaria,eatéselembroudeseusnomes.
— Depois de preencher a ficha de entrada, você jantou no restaurante do motel. Descreva orestaurante.
Atédeterminadomomento,adescriçãojorroufácil,ricaemdetalhes;depoisGingerreassumiuavozfria e metálica, confirmando a suspeita de que a lavagem cerebral cobria o período de tempocompreendido entre algummomento durante o jantar naquela sexta-feira e o instante em que saíra domotel na terça-feira seguinte. Pablo reconduziu-a ao pequeno restaurante, tentando localizar o exatomomentoemquecomeçavaobloqueio:
—Diga-meoqueaconteceuapartirdomomentoemqueentrounorestaurante.Querosabertudo,minutoaminuto.
Gingerlevantou-se.Descontraída,voltandoacabeçaparaosladoscomoalguémqueacabadeentrarnum restaurante e procura lugar para sentar-se. Pablo também levantou-se e seguiu-a, impedindo-a detropeçarnosmóveisqueelanãovia.Seusmovimentosnãorevelavamomenorsinaldetensão,indicando
queaslembrançaseramnãosóautênticas,mastambémagradáveis.—Demoreiumpoucoporquefuiaoquartolavarasmãos,passarumaescovanoscabelosetrocar
deblusa.Jáestáquaseescurecendo.Apaisagemestátodaavermelhada,eorestaurantetambém.Voumesentarali,pertodajanela.—Pabloguiou-apelasalaatéumdossofáscobertosdealmofadasclaras,eviu-aaspirarumcheiroquesóelasentia.—Quedelícia!Cebola,cheiro-verde...Batatasfritas!
—Orestauranteestácheio?Semabrirosolhos,elavoltouacabeçaparaadireitaeparaaesquerda.—Não.Ocozinheiroestáatrásdobalcão.Agarçoneteatendeosfregueses.Trêshomenscomjeito
decaminhoneirosocupamtrêsmesasdiferentes.Naquelamesa,hámaistrêshomens...Naoutra,opadregordo...Lánofundo,
ummoço alto—Ginger apontava com o dedo enquanto falava.—Ao todo, onze pessoas, contandocomigo.
—Estábem.Vásentaràmesaquevocêescolheu.Elase levantoudenovo, sorriuparaalguém,contornouumobstáculo, talvezumamesaquesóela
via,e,derepente,recuou,assustada.—Oh!—exclamou,virando-separatrás.—Oqueaconteceu?Semresponder,Gingerpiscou,passouamãonorosto,sorriuedisseparaumapessoaquetambém
estiveranorestaurantedoMotelTranqüilidadenaqueledistantedia6dejulho:—Nãofoinada!Tudobem...Jálimpei.Estávendo?—Ergueuacabeçaparamostrarorostoà
invisívelcriaturaqueselevantavadeumacadeiraasuafrente.—Jáquederrubouosaleiro,temtodoodireitodejogarumpoucodesalporcimadoombro...Meupaifaziaissoparaafastarmau-olhado...Elecostumava jogar três pitadas... Se estivesse sentado aí onde você está, eu ficaria soterrada sob umasalina.—Sempresorrindo,afastou-seemdireçãoà“mesajuntoàjanela”.
—Espere—Pablochamou-a.—Comoéessehomemquejogousalporcimadoombro?— E jovem.Temtrintaedois, trintae trêsanos...Ummetroeoitenta,maisoumenos...Magro,
cabelosescuros,olhosescuros.Simpático,atraente...Parecetímido,doce...OhomemdacontracapadoCrepúsculonaBabilônia:Domi-nickCorvaisis.GingercontinuouandandopelasalaePabloconduziu-anovamenteparaosofá.Elasentou-seeolhou
paraolado,comoseexaminasseapaisagem,sorrindoàluzdosolquesepunhanasplaníciesdeNevada.Depoissorriuparaagarçonete,disseduasoutrêscoisassobreabelezadopoenteepediuumacerveja.Quandorecebeuagarrafa,executoutodososgestosnecessáriosparaservir-se,apanharocopoelevá-loaoslábios.
Asalaestavamergulhadaemsilêncio.Àsvezes,Gingervoltavaacabeçaparaoslados,comoqueavaliandodetalhesdoinvisívelrestaurante.Pablonãoaapressou.Sabiaqueestavammuitopróximosdomomentocrucialemqueamemóriaautênticacederialugaràmemóriaforjada.Estavammuitopróximos,portanto, domomento em que ocorrera, naquele restaurante, alguma coisa queGinger não deveria terpresenciado.
Naquelediadopassado,osolescondia-senohorizonte.Agar-çonetevoltaraparaanotaropedidodojantar:sopadelegumesetortadecarne.
Derepente,Gingerestremeceunosofáeperguntou,franzindoassobrancelhas:—Mas...oqueéisso?!—Oquevocêestávendo?—Semquerer,Pabloolhouparaajanela.Gingerlevantou-se,preocupada,falandocomalguémquesóelavia:—Nãoseioqueéisso...—Deslizouparaolado,quasecaiu,apoiou-senaparede.—Gevaltl
Pareceumterremoto!Ochãoestátremendo...Tudoestátremendo!Minhacervejacaiudamesa!Mas...oqueestáacontecendo?Eessesom?!—Jáhaviamedoemsuavoz,muitomedo.—Aporta!—Gingergritou e virou-se como se quisesse fugir.Chegou a dar alguns passos emdireção à porta, e parou derepente,lívida,osolhosesbugalhados,ocorpooscilandoparaafrenteeparatrás.
Pablo aproximou-se com duas rápidas passadas, mas, antes que pudesse segurá-la, ela caiu dejoelhossobreotapete,acabeçainclinada,osbraçoscruzadossobreopeito.
—Oquehouve?—perguntouomágicotentandomanteravozcalma.—Nada.—Outravez,avozneutra.Mudançainstantânea.—Oqueéessesom?—Quesom?—PeloamordeDeus!OqueestáacontecendonoMotelTranquilidade?!Orostoexprimiahorror,masavozerafriaemetálica:—Estoujantando.—Mentira!Essalembrançafoiimplantadaemvocê.—Estoujantando—elarepetiu.Pablofezmaisumatentativaedesistiu:oriscoeragrandedemais.Haviamchegadoaomomentoem
quecomeçavaaagirobloqueiodeAzrael.Gingersóselembravarealmentedoqueocorreraapartirdamanhã de terça-feira, quando apanhara o carro para seguir viagem em direção a Salt LakeCity. Aospoucos,talvezfossepossívelromperobloqueio,masoquehaviamconseguidojáeramuitoparaumsódiadecolheita.
Agoratinhamporondecomeçar.Sabiamquenaquelanoitedesexta-feira,6dejulho,doisanosantes,Ginger vira alguma coisa que não deveria ter visto. Como testemunha desse...acontecimento, transformara-se em terrível ameaça para alguém. Alguém que durante vários diasmantivera-a prisioneira no Motel Tranqüilidade e impusera-lhe uma lavagem cerebral, feita porprofissionaismuito competentes, para impedir que ela revelasse o que vira. Trabalharamdurante trêsdias:sábado,domingoesegunda-feira.Naterça-feira,elesalibertaram,jáesquecidadoquevira.
Eles...Masquempoderiasereles,essesdesconhecidostãoinfinitamentepoderosos?EoqueGingerteriavisto?
2.PORTLAND,OREGON
Nodomingo,dia5dejaneiro,DominickCorvaisistomouumaviãoparaPortlandeinstalou-senumhotelbempróximodacasaondehaviamorado.Choviamuitoefaziafrio.
Dom passou a tarde no quarto, sentado diante da janela, ora contemplando a paisagem, oraexaminandomapasdasestradasquecortavamaregião.Porváriasvezesconseguiureconstituirasetapasdaviagemquefizeranoverãoretrasadoequesepreparavapararepetirapartirdodiaseguinte.
ComodisseraaParkerFainenodiadeNatal,estavaconvenci-do de que, emdeterminado ponto daquèla viagem, esbarrara em alguma coisa proibida. Pormais
paranóico que pudesse parecer, estava convencido também de que alguém o submetera alavagemcerebralparafazê-loesqueceroquevira.Eraaúnicaconclusãopossível,depoisdoquediziamosbilhetesmisteriososdeseucorrespondenteanônimo.
Doisdiasantes, receberauma terceiramensagem,numenvelopepostadoemNovaYorkequeeleagora esvaziava sobre a mesa. Dessa vez o envelope não continha nenhum bilhete, apenasduasfotografias.
Aprimeirafotonãooimpressionou,porémprovocou-lheestranhatensão.Domtinhacertezadequenão conhecia aquele homem, um padre jovem, gorducho, de cabelos ruivos, olhos verdes e narizsardento.Sentadojuntoaumapequenaescrivaninha,comumamalaaoladodacadeira,opadreolhavadiretamenteparaacâmara;seurostoredondoeratãoinexpressivoquantoorostodeumcadáver.
A segunda foto causou-lhe surpresa e emoção muito maiores, que persistiam mesmo depois dacentésimavezqueaexaminava.Mostravaumamulherjovem,queDomtinhaaimpressãodeconhecerdealgum lugar, mas não se lembrava de onde. Olhando para aquele rosto, sentia o mesmomedo que oatormentavaaodespertardospesadelosousairdascrisesdesonambulismo.Amoçadevia tervinteeseis ou vinte e sete anos. Era loira, de olhos azuis e excepcionalmente bonita — ou melhor, seriaexcepcionalmentebonitasenãotivesseorostotãovazioeausentecomoodopadre.Afotofocalizava-adacinturaparacima,deitadanumacamaestreita,comolençolpuxadoatéoqueixo.Elaestavaamarradaàcama,eemseubraçovia-seumaseringacomagulhaintra-venosa.Pareciapequena,fraca,indefesaeoprimida.
Desdeoprimeiromomento,aquelafotografiarecordava-lheopesadelodoshomensgritandopertodeleeobrigando-oa inclinar-se sobreumapia.Àsvezes,opesadelocomeçavanumacamaparecida,envolta numa névoa amarelada que o impedia de ver.Quantomais olhava para amoçamaisDom seconvenciadeque,em
algum lugar do planeta, havia uma foto igual àquela, onde ele próprio aparecia amarrado a umacama,comumaagulhaespetadanaveiadobraço,orostovaziocomoodeumzumbi.
Aoverasduasfotografias,nasexta-feiraemqueDomasrecebera,ParkerFainecomentara:— Cortoo saco se estiver errado,mas sou capazde apostarque essamoça está sob efeitode
drogas,sendosubmetidaaumprocessoquímicodelavagemcerebral,provavelmentecomovocêtambémfoi.Deusdocéu...Essahistóriaestáficandocadavezmaismisteriosa.Otipodahistóriaqueninguémpodecontarparaapolícia,porquenãosesabedequeladoapolíciaestá.Esevocêtivermetidoaspatasemalgumprojetosecretodogoverno?Pelomenosrestaoconsolodesaberquevocênãofoioúnicoaveroquenãodevia.Opadreco e agarota tambémestavampor lá.Quem fez esse trabalho emvocêsestavamuitointeressadoemesconderseusegredo.Equesegredo,parajustificartantotranstorno!
Sentadodiantedajaneladeseuquartodehotel,Domseguravaumafotoemcadamão,ladoalado,examinandoorauma,oraoutra.
—Quemsãovocês?—perguntouemvozalta.—Comosechamam?Oquenosteráacontecidoporessaestrada?
Ao longe, nos limites da noite de Portland, brilhou um relâmpago, prenunciando tempestade. Emminutosachuvacomeçouacair,pesada,batendocomocascosdecavalonasparedesdohotel,sacudindoasvidraças.
Horasmaistarde,Domamarrou-seàcama,usandooequipamentoquejápassaraporconsiderávelmelhoriadesdeoNatal.Emprimeirolugar,descobriraque,paraevitarescoriaçõesnospulsos,bastavaenvolvê-loscomgaze.Depoissubstituiraobarbanteporumfiodenáilontorcido,maisfino,porémmuitomais resistente, do tipo usado pelos alpinistas em grandes escaladas.Decidira adotar o fio de náilonporquenanoitede28dedezembroconseguirasoltar-se,roendoobarbantequeoprendiaàcama.Ofiodealpinistaeratãoresistentequantoumcabodeaçoemuitomaisfácildetransportar.
NaprimeiranoiteemPortland,Domacordoutrêsvezes,debatendo-separaselivrardosnós,suando,ofegante,comocoraçãodisparado,egritando:
—ALua!ALua!
3.LASVEGAS,NEVADA
UmdiadepoisdoNatal,JorjaMonatellalevouMareieaoconsultóriododr.LouisBesancourt,ondeocorreuumacenaterrível,queosdeixousemfala,umfrenteaooutro.Jáquandoseaproximavadasaladeespera,Mareiecomeçouachorar; logopassouaosgritosmais lancinantes, esperneoueesbravejoucomonuncafizera:
—Não!Médico,não!Elevaimemachucar!NaolEmgeralameninaeratranqüilaemuitobemcomportada.Emsuasrarascrisesdemauhumoroude
desobediência, bastavam-lhe uma ou duas palmadinhas no traseiro para se acalmar. Jorja tentou esseúltimo recurso e arrependeu-se: pela primeira vez na vida, as palmadas tiveram efeito oposto aoesperado,esófizeramaumentarosberros,ospontapéseaslágrimas.
FoiprecisopedirajudaaumaenfermeiraparaarrastarMareieatéasaladeconsultas.Oprópriodr.Besancourt, sempre tão simpático e paciente, só conseguiu apavorar aindamais a garota.Quando eleapanhou o oftalmoscópio para examiná-la,Mareie urinou na calça, como no dia de Natal. E depois,exatamente como naquele dia, o descontrole absoluto cedeu lugar àmesma calma ausente, que fizeraJorjapensaremautismo.Muitopálida,ainda trêmula,ameninaparouderepente,osbraçoscaídosaolongodocorpo.
Então o dr. Besancourt pôde proceder ao exame, que não lhe permitiu diagnosticar qualqueranormalidade, emboranãohouvessedúvidadeque algumacoisanão iabem.Omédico falou sobre apossibilidadedeumdistúrbioneurológicooucerebral,aventouahipótesedeproblemaspsicológicos,epediuumalon-
gasériedeexames,paraosquaisserianecessário internarMareienoHospitalSunriseporalgunsdias.
Acenadoconsultóriofoiapenasumaamostradoqueacontecerianohospital.Asimplesapariçãodeummédico ou enfermeira bastava paramergulhar amenina no pânicomais irracional e absoluto.Dopânico,elaevoluíaparaahisteria,atéque,fisicamenteexausta,caíanaquelaespéciedetransecatatônicodoquallevavahorasparaserecuperar.
Jorja pediu uma semana de licença no cassino e praticamente mudou para o hospital durante osquatrodiasdeexames.Quandopodia,dormianumacamaadicionalinstaladanoquarto,edormiapouco:mesmosoboefeitodefortessedativosameninapassavaasnoitesaosgritos,debatendo-sesemparar.
—ALua!—exclamava.—ALua!Noquartodia,Jorjaestavaapontodepedirsocorroaomédico,quandoMareiesimplesmentevoltou
aonormal.Mostrou-secontrariadaporestarnohospitalepediuparavoltarparacasa,masnaogritounemagiucomose todososdemôniosaperseguissem.Continuavapálida,nervosae tensa,porémpelaprimeiravezemdiascomeucomgrandeapetite.
Mais tarde, enquanto Mareie almoçava, depois de passar pelo último exame previsto, o dr.BesancourtchamouJorjaparaumaconversaparticular:
—Nãoencontramosnada—informou,osolhosgentisdesemprebrilhandonorostoredondo.—Todos os exames foram negativos. Mareie não tem nenhum tumor cerebral nem qualquer lesão oudisfunçãodoaparelhoneurológico.
—GraçasaDeus!— Vou encaminhá-la para um psicólogo infantil, Ted Coverly, que saberá como ajudá-la. De
qualquermodo...tenhoumpalpite.Eengraçado,masachoquejácuramosMareie,semsaber.•—Como?!Oqueestáquerendodizer?—Jorjaestavaperplexa.
— Uma das hipóteses de diagnóstico era que ela tivesse desenvolvido um tipo de fobia. Ossintomassãotípicos...medoirracional,crisespânicas...Umdosmétodosutilizadosparaeliminar
fobias é o que chamamos de “choque terapêutico”.Durante algum tempo o paciente é exposto aofatorquedesencadeiaascrisesdepânicoatéqueafobiaseesgoteporsimesma.Éumaterapiaviolentaeextremamenteagressiva,queeujamaisrecomendariaaumacriança.Masépossívelque,semquerer,atenhamosinduzidoaum“choqueterapêutico”pelosimplesfatodemantê-lainternadanohospitaldurantequatrodias.
—Eporqueeladesenvolveuessafobia?Comoéquefoiocorrerumacoisatão...esquisita?—Jorja franziu as sobrancelhas. — Mareie nunca esteve hospitalizada, nunca passou pornenhuma experiência desagradável commédicos ou hospitais. Na verdade, ela nunca ficou realmentedoente!
Odr.Besancourtbalançouacabeçaeafastou-separadarpassagemaumamacaempurradaporduasenfermeiras.
— Sabemospoucacoisasobreaorigemdasfobias—explicou.—Sabemos,porexemplo,quenão é necessário ser sobrevivente de um desastre de avião para ter medo de voar. As fobiassão...inesperadas.MesmoqueMareieestejacurada,semprepoderárestaralgumvestígiodemedo,comoqualvaleráapenaopsicólogotrabalhar.Fiquetraqüila.TedCoverlysaberáoquefazercomsuafilha.
Naquelamesmatarde,dia30dedezembro,segunda-feira,Mareierecebeualtaevoltouparacasa.Parecia totalmentecurada, rindocomosempre,alegree tagarela.Malentrouemcasa,correupara suapilhadepresentesebrincouumpoucocomo“MédicoInfantil”,quelogotrocouporumaboneca.
Poucodepoisosavósforamvisitá-la.EnquantoMareieestavahospitalizada,Jorjaconseguiramantê-losadistância,explicandoqueasvisitaspoderiamretardararecuperaçãodamenina;emcasa,porém,como ela pareciamuito bem, todos se tranqüilizaram.Durante o jantar, sorridente e tranqüila,Mareiegarantiuaestabilidadeeapazdomésticas.
Jorjaaindadeixouafilhadormiremsuacamanastrêsnoitesseguintes,temendoqueospesadelosvoltassemaatormentá-la.Contudo,apenasduasvezesemtrêsnoitesacordoucomogrito
de“ALua!”—naverdade,maisumgemidoqueumgrito.Numadessasnoites,Jorjaresolveucontra-atacare,namanhãseguinte,perguntouàfilhasesonharacomaLua.
— SonhodeLua?—Mareiesacudiuoscachos louros.—NãosonheicomaLua...sonheicomcavalos.Seráquealgumdiavocêmecompraumcavalodeverdade?
—Podeser...Quandotivermosumacasagrande.—C/aro!—Ameninariualto.—Comoéqueeuiaterumcavalonoapartamento?!Osvizinhos
iamreclamar...Naquinta-feiraMareie teveaprimeiraconsultacomodr.Co-verlyegostoudele.Seaindasentia
medodemédicosconseguiudisfarçarmuitobemereagiucomtotalnormalidade.Foiaprimeiranoite,desdeavoltadohospital,emquedormiunooutroquarto,comaúnicacompanhiadoursodepelúcia.Trêsvezes,aolongodanoite,Jorjalevantou-separavê-laeapenasumavezouviu-amurmuraraladainhaconhecida:“Lua...Lua...Lua”.Estranhaeassustadoraladainha,porqueMareiepareciaemitirumgemido,quepodiasertantodedorcomodeprazer.
Nasexta-feira,comtrêsdiasdefériasescolarespela frente,JorjadeixouMareieaoscuidadosdeKaraPersaghianefoitrabalhar.Sentiu-sequasealiviadaporvoltaràbarulheiraeàfumaçadocassino.Cigarros,fedordecervejaazeda,mauhálito...qualquercoisaeramelhorquecheirodedesinfetantedehospital.
No fim da tarde, quando foi buscar a filha,Mareie exibiu-lhe, orgulhosa, a produção de um diainteirodedesenhos:dezenasdeluas,detodosostamanhosecoresimagináveis.
Namanhã de domingo, dia 5 de janeiro, quando se dirigia à cozinha para preparar o café, Jorjaencontrou Mareie instalada à mesa da sala. Ainda de pijama, a menina estava descolando todas asfotografiasdeseuálbumdebebêeempilhando-ascuidadosamente.
—Vouguardarasfotosnessacaixadesapatosporqueprecisodoálbumparafazerumacoleçãodeluas.
—PorqueestátãointeressadanaLua?—Porqueébonita—Mareierespondeu,colandoaprimeiradacoleção.Colou-aeparou,olhos
muitofixos,fascinada,comoqueemtranse.Omesmoolharcomquefitavao“MédicoInfantil”.Com um arrepio de medo, Jorja lembrou que a fobia aos médicos começara daquele jeito, em
aparente calma, quase sem que ela percebesse. E se Mareie tivesse apenas trocado de fobia?Seu primeiro impulso foi correr para o telefone e ligar para o dr. Co-verly,mesmo sabendo que eradomingo e dificilmente o encontraria.Antes de ligar, porém, pensoumelhor e concluiu que estava seassustandoà-toa.Afinaldecontas,MareienãopareciatermedodaLua,sóestava...fascinada.ALuaeraoutradassuaspaixõesfulminantesepassageiras.Qualquermãedeumagarotinhadeseteanosconhecebemessesrepentesdeentusiasmo,tãofugazesquantoenvolventes.
Pelosim,pelonão,decidiucontartudoaopsicólogoquandolevasseMareieaoconsultórioparaasegundasessão,naterça-feiraseguinte.
Vinteminutosdepoisdameia-noitedesegunda-feira,Jorjafoiverseafilhadormiabemeencontrou-aacordada,sentadajuntoàjanela,noquartoescuro,olhandoparaocéu.
—Oqueaconteceu?—Nada.Venhaver—respondeuameninasemviraracabeça.Jorjaaproximou-sedajanelaeperguntou:—Oquevocêestávendo?— A Lua... — Mareie nem piscava, o rostinho erguido para o céu, onde brilhava o quarto
crescente.—ALua...
4.BOSTON,MASSACHUSETTS
A segunda-feira, dia 6 de janeiro, amanheceu gelada. O forte vento do mar castigava a cidade,obrigandoaspessoasaandardepressa,onarizescondidosobocachecol,acabeçabaixa,osombros
curvados.Àluzcinzentadoinverno,astorresdeaçoevidrodocentrocomercialpareciamfeitasdegelo, e as aristocráticas construçõesdaBostonantigaperdiama tradicional elegânciaparamostrar-sesimplesmentevelhas.Asárvores,desfolhadas,erguiamparaocéuosgalhoscobertosdeneve.
Herbert,mordomoefaz-tudodosHannaby,dirigiaocarro,levandoGingerparaasétimasessãocomPablo Jackson.Oventodanoite anterior derrubarapostes e fios elétricos, desligandoos semáforos etransformandoemcaosabsolutoo trânsitodocentrodacidade.Por fim,comcincominutosdeatraso,chegaramàRuaNewbury.
Logoapósasrevelaçõesdasessãodosábado,Gingerlevantaraahipótesedeentraremcontatocomos proprietários do Motel Tranqüilidade, em Nevada, para tentar descobrir alguma coisa sobre osacontecimentosdaquelanoitede6dejulho.Dasduasuma:ouosproprietáriosdomoteleramcúmplicesdogrupoqueasubmeteraàlavagemcerebral,oueramvítimas,comoelaprópria.
Semdeixá-laacabardefalar,Pabloforalogodizendoqueeraperigosodemais.Nahipótesedeosproprietáriosdomotelfazerempartedealgumaorganizaçãocriminosa,irláseriaomesmoqueenfiaracabeçaemtocadeurso.
—Vocêprecisaserpaciente.Antesdetentarqualquercontatocomquemquerqueseja,devereunirtodasasinformaçõespossíveis.
Umasegundaidéiaseriapedirproteçãoàpolíciaeexigirumainvestigaçãoespecial.Pablo,todavia,convencera-adequeelesnãopoderiamfazernadasemqueGingerapresentassealgumaprovadetersidovítimadelavagemcerebral.Alémdisso,ocrime,fossequalfosse,ocorreraemáreaestranhaàjurisdiçãoda polícia estadual deMassachusetts. Seria necessário procurar os federais ou a polícia estadual deNevada.Eseumdelesfosseoagenteespecialencarregadodalavagemcerebral—oculpado,enãoosalvador?
Frustrada,masincapazdeencontrarqualquerfalhanosargumentosdomágico,Gingerconformara-seemcontinuarcomassessõesderegressãohipnótica.Pablodissera-lhequequeriatero
domingo livre para ouvir a gravação da sessão do sábado, e que, na segunda-feira demanhã, iavisitarumamigonohospital.
—Seforconvenienteparavocê,venhameveràumahora,nasegunda-feira.Poderemoscontinuarasondarseubloqueiocomtodaacalmadomundo.
Na segunda demanhã, ele telefonara informando que seu amigo estava bemmelhor e queGingerpoderiavisitá-lomaiscedo,àsonzehoras,sequisesse.
—Sequiser,venhaàsonzeepreparamosoalmoçojuntos.Naquele momento, saindo do elevador e dirigindo-se rapidamente para o apartamento de Pablo,
Ginger decidiu fazer tudo exatamente como ele sugerira, “com amaior calma domundo”. Assim, aodepararcomaportaaberta,entroutranqüilamenteechamouomágico.Emalgumlugardacasaalguémresmungoueumobjetocaiunochão.
—Pablo?—Semobterresposta,elaatravessouasalaetornouachamá-lo:—Pablo,ondevocêestá?
Silêncio.Umadasportasdabibliotecaestavaaberta.Gingerentroueencontrouoamigoestendidonotapete,
juntoàescrivaninha.Aindaestavacomacapadechuvaeasgalochas,sinaldequeacabaradechegardohospital.
Ela correu e ajoelhou-se a seu lado, inventariando as possibilidades de acidente cardiovascular,trombose, hemorragia cerebral, embolia, ataque cardíaco.Emnenhummomentoocorreu-lhequePablotivesselevadoumtiro,atéqueovirousobreotapeteeviuosanguejorrando-lhedopeito.
Ovelhomoveuosolhosdeumladoparaoutro,quase inconsciente,esóconseguiubalbuciarumapalavra,avozmuitofraca:
—Fuja...Até entãoGinger agiamovida pelomesmo impulso: ao vê-lo caído, correra para ajudá-lo, como
amigaecomomédica.Mas,derepente,aoouvi-lodizerquefugisse,foicomoseumadúziadesirenesdisparassememsuacabeça.Nãoouviratiros...Umaarmacomsilenciador.Umassassinoprofissional...Perigo!
Ocoraçãoaospulos,levantou-seevoltou-separaasaída.Oassassinoesperava-aaoladodaporta:alto,ombros largos, impermeáveldegola levantadaecintoamarrado,pistolae silenciadorempunho.Era um homem forte,mas, para surpresa deGinger parecia bemmenos ameaçador do que imaginara.Tinhacercadetrintaanos,umrostosimpáticoeunsolhosazuisqueirradiavaminocência.Quandofalou,surpreendeu-aaindamais:
—MeuDeus...Nadadissodeveriateracontecido...Eusóestavacopiandoasfitas...Eusóqueriacopiar.—Ohomemapontavaparaaescrivaninha,ondeseencontravamogravadoredezenasdefitasespalhadas.Registrosdassessõesdehipnose.
—Deixe-mechamarumaambulância—Gingerpediu,aslágrimasescorrendopelorosto,edeuumpassoemdireçãoaotelefone,masohomemameaçou-acomorevólver.
— Ogravador é especial, extra-rápido...— lamentou-se ele.—Maisumpoucoe tudoestariapronto!Oqueéqueeleveiofazeremcasa,umahoraantesdoquedevia?!
Semdizernada,Gingerapanhouumaalmofadaecolocou-asobacabeçadePabloparaimpedirqueeleseengasgassecomosanguequeescorriaparaagarganta.Ohomemcontinuavaalamuriar-se:
—Elechegouemsilêncio...comoumfantasma!Nemovientrar...Gingerlembrou-sedoandareleganteeelásticodoamigo,comosecadapassofosseaaberturadeum
atodemágica...Nochão,Pablotossiuefechouosolhos.Nãohaveriaesperançadesalvação,amenosqueelefosseatendidocomurgência.Cirurgiadeemergência...etudoqueelapodiafazererapassar-lheamãopeloscabelos.
—Porfavor,deixe-mechamarumaambulância...—pediumaisumavez.—Eporqueeleestavaarmado?!—esbravejouohomem.—Oqueumvelhodeoitentaeumanos
poderiafazercomumrevólver?!Surpresa,Gingerolhouparaochãoe»viuaarmacaídaapou-coscentímetrosdamãodePablo...Entãocompreendeutudo.Pablo sabia que estava em perigo... Sabia que era perigoso ajudá-la... E ela, como uma idiota,
obrigara-o a atendê-la... Sem imaginar que qualquer tentativa de quebrar o bloqueio em suamemóriapoderíachamaraatençãodegentepoderosa,deassassinoscomoaquelequealiestava,dearmanamão.Alguémaseguia,talveznãodiaenoite,masseguia-a,observavaseusmovimentos,conheciaaspessoascom quem falava. No instante em que aparecera pela primeira vez no apartamento de Pablo, Gingercondenara-o à morte. E ele sabia! Claro... Se não soubesse, não andaria armado. A culpa é minha,pensou,aflita.
—Seesseidiotanãoestivessearmado...—continuouohomem.—Senãotivessefaladoemchamarapolícia...euteriasaídosematirarnele.Eunãoqueriaferirovelho...Merda!—Então,peloamordeDeus,deixe-mechamarumaambulância!Sevocênãoqueriaferi-lo,então
vamosajudá-lo...Ohomembalançouacabeça,olhandoparaPablo:—Nãoadianta...Eleestámorto.Foicomosealguémaesmurrassenopeito.Gingertomouopulsodoamigo,tocou-lheacarótidaà
procuradealgumsinaldevida.Nemprecisava:bastavaverobrilhodevidroemseusolhosparadosparatercertezadoqueohomemdissera.
—Não...—elagemeubaixinho.—Oh,não,não...Pareciaimpossívelqueoconhecessefaziaapenasduassemanas.Eracomosejáfossemamigoshámuitotempo...Gingerofereceu-lhetodooseuafetodeórfã,eeleo
aceitarasemreservas.Eagoraestavamorto!— Sinto muito... — O assassino balançava a cabeça de um lado para outro.— Sinto, sinto
mesmo... Se ele não tivesse aparecido aí com o revólver eu já teria saído. E agora? Matei umhomem...E...evocêmeviu...podemereconhecer...
Lutando contra o desespero, certa de que não tinha tempo para lágrimas, Ginger levantou-se eencarou-o.Eledisparouafalar,quasequepensandoemvoz,alta:
—Tenhoquedarumjeitoemvocê.Tenhoquereviraracasainteira, arrancar umas gavetas, rebentar a fechadura, roubar alguma coisa de valor... assim vão
pensar que vocês dois chegaram juntos e encontraram um ladrão aqui. E vai dar certo... Agora
nãoprecisomais copiar as fitas.Vou levá-las.Emelhorqueninguémmaisouçaessas fitas.—OlhouparaGinger e fez umarremedode sorriso.—Sintomuito,mas tinha que ser assim.Parte da culpa éminha,porqueeunãopoderiaterdeixadoqueovelhomesurpreendesse...Masoqueestáfeito...—Deuumpassoemdireçãoaela.—Seráqueacenavaiparecermaisconvincenteseeuviolentarvocê?Querodizer, será que a polícia não vai estranhar que um ladrão se limite a dar um tiro numa mulher tãobonita?.Qualquerladrãopensarialogoemviolentarvocê...—Aproximou-semais,eGingercomeçouarecuar.—Mas será que eu consigo... sabendo que terei que matá-la depois?— Ele praticamente aencurralaracontraaestantedelivros.—Acredite,moça...eunãogostonadadoqueestáacontecendo.Achohorrível...
Umassassinosedentodesangueseriamilvezesmenosassustadorqueaqueledesgraçadobabandodesculpasearrependimentos.Ummonstro!Ummonstrocapazdecometerdoishomicídioseumestupro,lastimando-se de ser obrigado a tantos crimes... arrependendo-se mesmo antes de matar, violentar,roubar...eaindaassim,roubando,violentando,matando...
—Porfavor.Tireacapa—ordenouohomem.—Juroquenãocontonadaaninguém...Voudizerquenãovivocê,quenãopossoreconhecê-lo...
Porfavor,medeixeirembora!—Ah,seeupudesse,moça...Tireacapa.Devagar,tentandoganhartempo,elacomeçouadesabotoaracapa.Estavatrêmula,eaindaexagerou
otremorpararetardaraomáximoatarefa.Porfim,semalternativa,tirouacapa.O homem deumais um passo, segurando a arma a alguns centímetros damão deGinger. Parecia
menostenso,osdedosquasesoltosàvoltadocabo,oindicadorlongedogatilho.—Porfavor...nãomemachuque...—Quantomaisassustadaelasemostrava,maisocriminosose
descontraía.Derepente,talvezsurgisseabrechaqueesperavaparapoderfugir.—Eunãoqueromachucarvocê...—disseele,comoseaidéiadegostardoquefaziaoofendesse
terrivelmente.—Tambémnãoqueriamachucarovelho.Aculpafoidele.Prometoquenãovaidoernada.Prometo.
Sempre segurando a arma namão direita, o assassino tocou-lhe os seios com a esquerda.Gingerfechou os olhos e permaneceu imóvel, na esperança de que ele relaxasse a guarda, àmedida que seexcitasse.Apesardesuadúvidaquantoapossuí-laantesdematá-la,ohomemdeixava-selevarporumtipodeprazerviolentoeperverso.Apesardosolhosazuisedavozmacia,transpiravamaldadeportodososporos.
—Lindo...pequenino,masfirme...—Eleenfiouamãoporbaixodamalha,apanhouumadasalçasdo sutiã e puxou-a até rebentá-la. Sem querer,Ginger gemeu de dor.—Está doendo?Desculpe, voutomarmaiscuidado.—Rebentouaoutraalçaearrancou-lheosutiã.
Gingersentiuamãoúmidaegeladatocaremsuapelenua.Já não tinha para onde fugir, as costas coladas à estante. O homem estava a sua frente, a arma
apontada; mesmo assim, ela tentou avançar, mas o cano do revólver encostou-lhe no peito, fechandoqualquerpossibilidadedefuga.Sedesseumpasso,seriafuziladasempiedade.
Ascaríciascontinuavam,misturadascommurmúriosdedesculpaselamentos;emvozcadavezmaisroucaomonstrorepetiasemprequedetestavaestuprarumajovemtãosimpática,epareciaesperarqueelaoperdoassepelopecadodematá-la.
Semtercomofugir,enojadacomacascatadepalavrasqueohomemvomitava,Gingersentiu-sederepenteàbeiradeumacriseagudadeclaustrofobia.Melhorseriafazê-lopuxarogatilhoeacabarlogocomaquelepesadelo.Elamoviaacabeçadeumladoparaoutro,tentandoescapardohálitodecervejavelhaqueprocuravasuaboca,implorandoqueocriminosoadeixasseir.
Aindamaisexcitadopelomedoqueviaemseusolhos,ohomemtornou-semaisousadonascarícias:—Ah...achoquevouconseguir,boneca...Vocêvaiver...Aíestá.Venha, toqueemmim.—Colou-se a seu corpo, esfregando-se com frenesi.Por incrível que
fosse,pareciaconvencidodequeasimplesexibiçãodeseupêniseretobastariaparapersuadi-laaentrarnaquelejogoperverso.
Estava condenado a desapontar-se.Para agarrar-se a ela foi obrigado a baixar a arma.Embaladopelaexcitação,certodequeavítimaestavaasuamercê,esqueceu-sedemanterorevólverapontado.EraasenhaqueGingeresperavaparaentraremação.Numgestolento,quetantopoderiaserdemedocomodepaixão,elagirouacabeça,aproximouoslábiosdopescoçodohomem,exatamenteporcimadopomo-de-adão, e mordeu-o com toda a força. Ao mesmo tempo, ergueu o joelho e golpeou-o nostestículos, agarrando o braço que segurava a arma. O assassino soltou um berro de dor e recuou,horrorizado.
Ginger ainda sentia nos lábios o gosto de sangue da primeiramordida e já se preparava para asegunda.Semdartempoparaqueomonstroserecuperasse,avançouparaele,segurouobraçoarmadoecravou-lheosdentesnopulso.Elejánãosabiasegritavadedoroudesusto.Umajovemtãobonita,tãodelicada...Comopoderiaimaginar...?Asegundamordidaobrigou-oalargarorevólver.Gingerabaixou-se para apanhá-lo e, nesse instante, o homem aplicou-lhe um soco violento no meio das costas.Caídasobreosjoelhos,orostotocandoochão,elamalconseguiaverourespirarporcausadador,tãofortequelhecausavanáuseas.Chegouapensarquehaviafraturadoacolunavertebralejamaispoderialevantar-se.Ainda ofegante, porém com a visãomais clara, percebeu que o criminoso se aproximavaparapegaraarma,eatirou-senaspernasdele.Ohomemaindaagitouosbraços,nadesesperadatentativademanteroequilíbrio,masacabouestatelando-sesobreumadasmesasdecanto,derrubouoabajurerolousobreocadáverdePabloJackson.
Umdecadaladodasala,ambosmalpodendorespirar,petrificadosdesusto,caçaecaçadorfitaram-seporuminstante.Deitadosdelado,encolhidoscomofetos,lutavamparafazeroarchegaraospulmões.Gingerviuosolhosdohomem,fixos,arregalados,
cheiosdemedodemorrer.Amordidadopescoçonãoorasuficienteparamatá-lo,poisnãoatingiraaveiajugularouaartériacarótida.Seusdenteshaviamtocadoumacamadasuperficialdecartilagemeumapequena porção de tecidos moles, sessionando apenas alguns centímetros de vasos periféricos. Dequalquermodo, talvezohomemnaosoubessedenadadissoeestivessecertodeque iamorrer.Adordevia ser terrível.Ginger viu-o levar amão ao pescoço ferido e olhar os dedos cobertos de sangue.Ocaçadorestavacommedodemorrer...eissopoderíatorná-loinofensivocomoumbebêouperigosocomoumleão.
Osdoisviram,aomesmo tempo,queaarmacontinuavacaídaaochão,maispróximadelequedeGinger. O sangue pingando sobre o tapete, arrastando-se sobre o punho ferido, o homem começouengatinharemdireçãoaorevólver.
Gingernãoteveescolha:levantou-seecorreu.Saiu da biblioteca e voltou à sala,meio encolhida, sempodermovimentar pernas ou braços com
liberdadeporcausadadorqueaindaacegava,pensandoemescapardoapartamentopelaportadafrente.Derepentelembrou-sedequenãoconseguiríachegaràrua,porquesóhaviadoiscaminhos:oelevador,que não teria tempo de esperar, e a escada, onde omonstro a agarraria.Diante disso, girou sobre oscalcanhares, disparou pela sala, empurrou a porta de vaivém que separava a copa da cozinha,saltou sobreumadasgavetas junto ao fogãoe apanhouumcutelode açougueiro.Percebeuqueestavagemendo.Uma espécie de silvo, baixo e tenso, escapava-lhe dos lábios por entre os dentes cerrados.Respiroufundo,obrigou-seasilenciarosilvoeconseguiucontrolar-se.
Ohomemaindanãoapareceranacozinha.Umoudoissegundosmaistarde,Gingerpercebeuqueeraumasorteelenãoteraparecido,porqueocutelonãoserviríadenadafrenteaarmadefogo,àdistânciade quase doismetros. Furiosa coma própria imprevidência, voltou para junto da porta e encostou-seàparede.Ascostasaindadoíam,masopiorjáhaviapassado.Ocoraçãobatiafuriosocontraascostelascoladasàparede,eGin-gerpensouqueohomempoderiaouvi-lodaoutrasala,comosefosseumtambor.
Esperou, o cutelo abaixado, pronto para erguer-se em arco e atingir as costas domonstro, se eleentrassederepente,emfúria,sedentodevingança,certodequeestavamorrendo.Mas...eseeleentrassedevagar,comcuidado,empurrandopalmoapalmoaportadevaivém?AsituaçãosecomplicariaparaGinger.Cadasegundoquepassavamaisaaproximavadasegundahipótese.
Amenos que amordida fossemais profunda do que ela imaginava.Nesse caso, o homem talvezcontinuasse estirado na biblioteca, empapando de sangue o tapete chinês.Ginger pediu aDeus que odeixasseporlá.Maserainútililudir-se.Oassassinoestavavivo.Eseaproximava.
Elapensouemgritarechamaraatençãodealgumvizinho,quetalvezligasseparaapolícia.Masapolícia não chegaria a tempo de salvá-la. Antes de fugir o homem tinha que matá-la. Gritar eradesperdíciodeenergia.
Gingercolava-seàparede,querendofundir-senela.Aportadevaivémpareciaenfeitiçá-la,comosefosse uma cobra armando o bote sobre a presa. Ela já não suportava a tensão.Onde diabos estava omaldito?!
Passaram-secincosegundos,dez,vinte.Oqueomonstroestariafazendo?Acadainstante,pareciamaisazedoogostodesanguenabocaeanáuseavoltavaacrescer.Comtempoparapensar.Gingerdava-secontadohorrordasituação,daselvageriadeseusgestos,deseusprópriospensamentos.Selvagem...apalavraeraexatamenteessa...selvagemcomoumaferaacuada,prontaparamatar.Aimagemdocuteloentrandonacarnedohomemafezestremecer.Não!Nãoeraumaassassina...eramédica!Juraralivraraspessoasdador,dadoença,dosofrimento.Precisavaparardepensaremmatá-lo.Eraperigoso,confusoeirritante.
Masondeestavaele?Decidiunãoesperarmais.Osminutosdeesperaafrouxavam-lheosinstintosdedefesa,deixavam-na
maisvulnerável...Teriamesmoqueagircomoumafera,sequisessesalvarapele.Esperarerafacilitarascoisasparaoassassino.Comcuidado,apoiouamãonaporta,esentiuapresençado
criminoso a poucos centímetros de distância, do outro lado da porta, esperando que ela fizesse oprimeiromovimento.
Gingerparou,eretevearespiração,atentaatodososruídos.Silêncio.Encostouoouvidoàporta.Silêncioabsoluto.Namão,úmidadesuor,ocabodocutelopareciaescorregadio,pegajoso.Semruído,empurrouaportaapenasosuficienteparaespiar.Ohomemnãoestavaali,comopensara,masdooutrolado da sala, junto à entrada do hall.Acabava de voltar do corredor externo, a arma empunho. Semdúvida,saíraparaexaminaroelevadoreaescada;nãoaencontroueretornouaoapartamento.Entrouetrancouaporta,paraimpedi-ladesair.Jásabia,claro,queelacontinuavaalidentro.
Omonstro levouamãomordidaàgargantamordida.Respiravacomdificuldade,mas jánãodavasinaisdepânico;pareciaterdescobertoque,sesobreviveraatéentão,nãoestavaàbeiradamorte.
Nomeiodasala,ocriminosoolhouparaoladodosquartos.Nãoviuninguémevirou-separaaportadacozinha.Gingersentiucomoseeleestivessevendo-aatravésdabrecha,masohomemestavamuitolonge para perceber que a porta não estava completamente fechada. Obrigado a escolher entre umcaminhoeoutro,optoupelosquartoselásefoi,passosfirmesedecididos.
Oplanodeesperá-lojuntoàportadacozinha,comocuteloprontoparaatacá-lo,jánãofuncionaria.Ele era um profissional, habituado à violência. Apesar de ter perdido o primeiro round, colhido de
surpresa pela fúria do ataque de Ginger, já se recuperara do susto e da dor. Quando retornasse dosquartos,estariaaindamaisseguro.Jamaisentrariaafoitamentenacozinha.
Então...aúnicasaídaeraescapardoapartamento.Erápido.Sem vislumbrar amenor chance de alcançar a portra da sala antes que o assassino concluísse a
primeirafasedesuabusca,Ginger largouocutelosobreapiae,emsilêncio,aproximou-sedajanela.Afastouascortinaseviuasaídadeemergência,bemasuafrente.
Devagar,girouotrincoeabriuajanela.Asdobradiçasressequidassoltaramumguinchoagudo,eopaineldevidrobateuruidosamentenaparede,impelidocomforçapelaaçãodagravidade,Gingertevecertezadequeohomemescutaraobarulho,poisouvia-ocorrernadireçãodacozinha.
Rápida,saltouparaopatamardeferrodaescadaecomeçouadescer.Oventofriopenetrava-lheacarneatéosossos.Haviagelonosdegraus,agudaspontasdeáguacongeladagrudavam-seaocorrimão.Dequalquermodo,mesmocomo riscode escorregar e espatifar-sena calçada, só lhe restavamduasalternativas:correrouofereceranucaaostiros.Eladerrapouváriasvezes,semconseguirfirmar-senocorrimão,porqueasagulhasdegelocortavamcomoaço.
Aquatrodegrausdoandardebaixo,ouviuavozdohomem,quepulavaajanelaeganhavaaescada.Doisdegrausantesdealcançaropatamardeferro,elaescorregoudenovoecaiu,sentindoreavivar-seadornascostas.Ainda tentouagarrar-seaocorrimão,massóconseguiudesprenderalgumasagulhasdegelo,quebrilharamporuminstantecontraocéuesepartiramaotocarochão.
O vento encobriu o ruído sibilante do primeiro tiro, abafado pelo silenciador, mas Ginger viuestilhaçosdeferrosaltaremacentímetrosdesuacabeça.Ocriminosoerraraporpouco.Elaolhouparacima,atempodevê-lofazermira...eescorregarpelaescadaabaixo.Viu-otentaragarrar-seaocorrimão,semconseguirequilibrar-se.Eviu-oaproximar-se,aostrambolhões,dopatamarondeelaestava.Antesde chegar lá, porém, o homem firmou um pé no gradil e parou, com uma perna para fora, entre osferrosdocorrimão,aoutracontraaparede,eumadasmãosenfiadanoespaçoentredoisdegraus:amãodaarma.Porisso,esóporisso,nãopôdecontinuaratirando.
Gingerprecisavaapenasdaquelesdoisoutrêssegundosparalevantar-seefugir.Levantou-secomopôde, virou-separa dar umaúltimaolhadanadireçãodohomem,que também já se erguia... e viuosbotõesdoimpermeáveldele.Botõesdemetalpolido... impressoscomafiguradeumleãorampante,aconhecidaima-
gemheráldicadaCasaRealinglesa.Maserambotõescomuns,dosqueseencontramemmilharesdejaquetasesportivas,casacosdelã,abrigosdeinverno.Ginger,porém,nãovianadaalémdeles,comoseunicamenteosbotõesexistissemasuavolta.Aescada,aarma,oassassino,atéoventoqueafaziatremerdefriodesapareceram.Osbotõeseramagrandeameaça...aúnicaameaça.
—Nao...—disse,tentandolutarcontraomedo.Osbotões.—Não...Não!—Osbotões.Quemomentoseriapiorparaterumacrise?!E,noentanto,acriseveio,violenta,incontrolável.A
primeira, emmaisde três semanas, trazendoomesmomedopânicodasoutrasvezes.Ummedoqueafazia sentir-se derrotada, pequena, frágil, incapaz de lutar. Era preciso fugir...mas, ao redor tudo eraescuridão.
Gingerfechouosolhosparanãoverosbotõesedisparouescadaabaixo,percebendovagamentequepodia escorregar, quebrar a pernaoupartir a espinha.E então, quandonãopudessemais semover, ohomemseaproximaria,colariaumcanofrioderevólverasuatestaelheexplodiriaacabeça.
Fez-seatreva.Frio.Quandoomundovoltouaaparecer—ouquandoGingerretornouaomundo—,elaestavaencolhida
sobre um amontoado de folhas secas, neve e sombras, junto aos degraus de uma casa, a qualquer
distânciadaRuaNewburyedoapartamentodePa-blo.Ascostasdoíam-lhemuito,eadoralastrava-sepeloladodireitodocorpo.Apalmadamãoesquerdaardia,queimadadefrio.Ofrioparalisava-a,vindodo chão onde estava sentada e da parede onde apoiava as costas. O vento assobiava a sua volta,chiandoegemendocomosesoprasseumaenormegargantahumana.
Nãosabiacomonemquandochegaraali,massabiaquecorriaoriscodeapanharumapneumonia.Por onde andaria o assassino? Ainda podia estar por perto, a sua procura... Talvez ela ainda fosseobrigadaafugir.Decidiuesperarumminuto.
Que milagre a fizera descer a escada sem ver onde pisava? Como conseguira correr pelas ruasgeladas sem quebrar uma perna ou o pescoço? Ocorria-lhe apenas uma explicação: fugira como umbicho, aproveitando-se da irracionalidade, guiadamais pelo instinto que pela inteligência. Os bichossempresabemondepisam.
Como aves de rapina, vento e frio continuavam a cercá-la, cada vezmais perto. Era como estarenterradaviva...numsarcófagodeneveefolhasmortas.Estavanahoraderetornaràvida.
Asuavolta,viuumpequenoquintaldesertoeumafileiradecasas,tambémsemninguémàvista.Ochãocobertodeneve,algumasárvoresdesfolhadas...nadamuitoameaçador.Tremendo,olhosenevoadosdelágrimas,Gingersubiualgunsdegrauseandoupelavarandadetijolosquelevavadofundodacasaàentrada.Queriadescobrirondeestava,encontrarummododevoltaraoapartamentodePablo,acharumtelefone,chamarapolícia...Masnãoconseguiufazernenhumadessascoisas.Aochegaràcalçada,viuduaslâmpadasacesas,apesardodia,porqueomecanismofo-toelétricoqueasativavaforaconfundidopelocinzentodamanhã.Lâmpadasamareladas,cordeâmbarcomopequenaschamasdevela...
Lâmpadas amareladas... cor de âmbar... Novamente Ginger sentiu que não conseguia respirar, ocoraçãoestavaapontodeexplodir,batendocadavezmaisforte.Omedo!Outravez...omedol
Não... outra vez, não!Mas sim... e lá estava outra vez a névoa que a impedia de ver... a fuga, omedo...onada.
Aindamaisfrio.Mãosepésduros,insensíveis.DeviaestardevoltaàRuaNewbury.Conseguiraesconder-sesobumcaminhãoestacionado,atrásda
caixade câmbiooudo tanquedeóleo.Esticoua cabeçae espioupara fora.Viu apenasospneusdoscarrosparadosdooutroladodacalçada.
Escondendo-se...sempreescondendo-se.Cadavezqueretornavadeumacriseestavaescondidaemalgumlugar,comosealguémoualgoterrívelaperseguisse.Hoje,claro,poderiaestarseescondendodoassassinodePablo.Mas, e nas outras vezes?Oque lhedava a sensaçãodeque alguémaperseguia?Mesmoali,naquele
instante, persistia a impressão de que haviamais alguém em seu encalço;mais alguém... alémdoassassino. Uma coisa qualquer, uma imagem... talvez uma lembrança, lutando para vir à tona. UmalembrançadoqueviraemNevada.Algumalembrança...
—Ei,moça...Ginger virou-se na direção da voz, que parecia vir da traseira do caminhão. Viu o rosto de um
homemapoiadonasmãosenos joelhos,acabeçameioenfiadasoboveículo.NãoeraoassassinodePablo.
—Oqueéquehácomvocê?Não era o assassino, que devia ter sumido ao perder as esperanças de encontrá-la. Era um rosto
desconhecido...Melhorassim,‘mesmoquefossedesconhecido.—Oqueestáfazendoaí?—eleperguntou.Gingerfechouosolhosparanãorecomeçarachorar.Oquepoderiampensaraspessoasqueaviam
correndo como louca pelas ruas... ou encolhida embaixo de um caminhão?Que fim levara seu amor-próprio?
Semresponder,arrastou-senadireçãodorostoeaceitouamãoqueohomemestendeuparaajudá-laasairdali.Nacalçada,viuqueocaminhãopertenciaàCompanhiadeMudançasMayflo-weretinhaasportasescancaradas.Viutambémqueohomemerajovememulato,eusavaumuniformedeinvernocomologotipodaMayflowerestampadonopeito.
—Oquehouve?Estácommedo?Enquantooouvia,Gingeravistouumguardadebraçosabertosnocruzamentodeduasruas,menosde
meioquarteirãoadiante,dirigindootráfego.Correuparaele,esquecidadomulato,queaindaachamou.Todoocorpodoía-lhecomosejánãotivesseossosoumúsculos,masapenasequimoses,luxaçõese
fraturas.Eraincrívelqueaindapudessecorrer.Assarjetasestavamcheiasdeneve,porémacalçadaeoasfaltonãoestavamescorregadios,protegidosporcamadasdeprodutosantiderrapantes.Desviandodedoiscarros
queseaproximavamdocruzamento,Gingeraindaencontrouforçasparagritaraoguarda:—Houveumcrime!Assassinato...Umhomemestámorto!Osenhorprecisavircomigo!Então,quandooguardadeuumpassoemsuadireção,assobrancelhasfranzidasnorostocoradode
irlandês,Gingerviuosbotõesdapesadatúnicadelãqueoprotegiadovento...Erambotõesdiferentesdaquelesqueluziamnoimpermeáveldoassassino.Nãoostentavamleõesrampantes,masoutraimagem,talvezumbrasão...Bastaram-lhe,contudo,paradescobrirquevirabotõesemalgummomento,emalgumcasaco... no Motel Tranqüi-lidade! Havia uma lembrança querendo acordar... Uma lembrança muitotênue,porémsuficienteparadispararogatilhocontraobloqueiodeAzrael.
Antes de perder-se do mundo real, mergulhando em seu inferno particular de névoa amarelada,Gingerouviuaprópriavoz,gritandodedesesperoehorror.
Maisfrio,impossível.Naquelamanhã,pelomenosparaadra.GingerWeiss,Bostoneraacidademaisfriadoplaneta.Frio
nacarne,frionaalma.Ao despertar da crise, estava sentada no chão sobre o gelo. Tinha as mãos congeladas, os pés
dormenteseoslábiosdoloridos.Comosempre,estavaescondida,dessaveznumestreitocorredorentreacercavivacuidadosamentepodadaeaparededetijolos,numaestradalateraldoex-HotelAgassiz.OprédioondePablomorava.Ondeeleforaassassinado.Ondecomeçaraopesadelodamanha.Voltaraaopontodepartida.
Ouviu passos. Semmover ummúsculo, avistou umpar de botas de couro atadas até ametade dacanela e a calça azul-escura do uniforme da polícia de trânsito. Era ele... o guarda ao qual pedirasocorro.Commedodeoutracrise,fechouosolhoscomforça.
A lavagem cerebral talvez tivesse efeitos colaterais. Talvez deixasse seqüelas incuráveis,provocasse lesões irreversíveis ao tecido cerebral, ou causasse problemas psicológicos...Nao era deestranhar
que a estrutura psicológica normal acabasse cedendo à gigantesca pressão das lembrançasregistradas e logo sufocadas para sempre. Um processo violento, incrivelmente agressivo. Ainda queencontrasseoutroespecialistaemhipnosedispostoaajudá-la,comoPabloaajudara,talveznãohouvessepossibilidadedecura.Talvezobloqueiofosseindestrutível.Nessecaso,estariacondenadaàloucura.Sesofrerátrêscrisesdefuganumaúnicamanhã,oquepoderiaevitarquesofresseoutrastrêsnumatarde,ounumahora?
As botas de couro continuavam rangendo sobre a neve, para lá e para cá. Ginger viu o guardaaproximar-semaiseabriratou-ceiradearbustos:
*—Oquehouve,moça?Oqueeraquevocêestavagritandosobreumassassinato?Esetivesseoutracriseenuncamaisvoltasse?—Vamos...nãochore...—Oguardainclinou-seeestendeu-lheamãoparaajudá-laalevantar-se.
—Senãomedisseroquehouve,nãopossoajudá-la.GingernãoseriaGinger,nemseriaafilhadeJacobWeiss,senãoreagissecomesperançaaumgesto
deatençãoafetuosoesincero.Respiroufundoeabriuosolhos, fixosnadireçãodosbotõesda túnica.Nada aconteceu: simples botões... O que não significava grande coisa, já que também lhe pareciaminofensivos o oftalmoscópio, as luvas pretas e todos os outros objetos que tiveram o poder dedesencadearumacrise.
—MataramPablo.PabloJacksonfoiassassinadoporeles.Aspalavrassoaramcomoumasentençadedanaçãoeterna.Aquele6dejaneiroseriaparasempreum
diadeluto.Pablotinhamorridoporquetentaraajudá-la.Odiamaisfriodesuavida.
5.ACAMINHO
Namanhãdesegunda-feira,dia6dejaneiro,dirigindoumcarroalugado,DomCorvaisisvisitava,pelasegundavez,aregiãoonde
morava, em Portland, procurava o homem que havia sido, mais de dezoito meses atrás, quandopartira para Mountainview, Utah. A chuva pesada cessara pouco antes de o dia clarear. O céu,ainda coberto de nuvens, era o mais cinzento que ele já vira, sombrio como o de uma paisagemdevastada.
Dirigiupelocampusdauniversidade,estacionandosemprequealgumrecantolhepareciafamiliar,tentandoreencontraroestadodeespíritoemquedeixaraacidade.Paroudepoisàfrentedoprédioondehaviamorado,demorou-sebomtempoolhandoparasuaantigajanelaeconvenceu-sedequejamaisseriacapazderedesco-briratimidezdoDomCorvaisisqueseescondianatocadocoelho,comodiziaParker.Conseguiareveraquelesdias,conseguiapensaremsuasreações,masaslembrançasnãoeramvivas.Nãosesentiacomoantes;tinhaaimpressãodereviverumtempoquenãofaziapartedeseupassadopessoal.Talvezfosseumbomsinal:sinaldequejamaisvoltariaaseraqueleDomdatocadecoelho.
Já não duvidava de que alguma coisa se passara naquele verão, o verão damudança. Talvez naestrada,duranteaviagem.Etampoucoduvidavadequealembrançalheforaroubada,oquecriava,aomesmotempo,umdilema,umacontradiçãoeummistério.Omistérioconsistiaemque,fossequalfosseoacontecimento fantástico daquele verão, o resultado havia sido positivo.Mas como explicar que umaexperiênciadehorrorresultassenumamudançaparamelhor?Oresultadoerabom...porémosretalhosdas lembranças povoavam seus pesadelos. Como era possível que aquela loucura fosse, ao mesmotempo,belaeterrível?
Aresposta,serespostahouvesse,nãoestavaemPortland,masemalgumlugardaestrada.Domligouocarro,engrenouamarchaepartiurumoaodesconhecido.
OcaminhomaiscurtodePortlandaMountainviewcomeçavanaRodovia80emdireçãoaonorte.Mas,comofizeradezoitomesesantes,Domoptouporoutrarotaerumouparaosul,tomandoaRodovia5. Planejara uma parada em Reno, pensando em pesquisar material para alguns contos sobre jogo ejogadores,eaRodovia5eraoúnicocaminho.
Já repetia todosospassos,dirigindodevagar, como fizera antes,porquechoveramuitonoanodaprimeiraviagemeaestradatinhatrechosdifíceis.Comodaprimeiravez,parouemEugeneparaalmoçar.
Sempreàprocuradequalquerdetalhequeoajudassealembrar-se,iaparandoemtodasaspequenascidadespelasquaispassava.Nãoviunadaestranhoouintrigante,enãoaconteceunadaatéGrandPass,aondechegoupoucoantesdasseisdatarde,rigorosamenteconformeocronograma.
Hospedou-se no mesmo hotel escolhido na primeira viagem; lembrando-se até do número doapartamentoqueficavajuntoàsbarulhentasmáquinasderefrigerante.Oapartamento10estavavago,eDom conseguiu que o gerente o deixasse ficar lá, explicando que tinha “motivos sentimentais” paraescolhê-lo.
Jantou nomesmo restaurante onde jantara no passado, bem em frente ao hotel, do outro lado daestrada.Andavaembuscadeumsatori,uma iluminaçãozen,uma revelaçãodeverdadesprofundas, eacabavademãosvazias,àsescuras,comoantes.
Passaraodiacomosolhospregadosaoespelhoretrovisorparasabersealguémoseguia.Duranteojantar,voltaemeiaespiavaporcimadoombro,paraoslados,tentandodescobrirumrostosuspeito.Serealmente havia alguém atrás dele; era o mestre dos disfarces. As nove da noite, sem querer usar otelefonedoquarto,foiatéumpostotelefônicoe,usandoocartãodecrédito,pediuumaligaçãoparaumacabine pública em Laguna Beach. Conforme o combinado, Parker estava à espera, com um relatóriocompletosobreacorrepondênciaque recolheradacaixapostaldoamigonaquelamanhã.Dificilmente
umdos telefonesestariasendovigiado,mas,depoisdereceberas fotografias,Domdecidira,eParkerconcordara,queaotratardoassuntodossonhoscautelaeparanóiaseriamsinônimos.
—Contas—disseParker.—Epropaganda.Nadadebilhetesestranhosoufotografias.Comovãoascoisasporaí?
— Tudonormalatéagora.—Domviuaprópria imagemrefletidanovidrodacabine.—Tiveproblemasparadormiranoitepassada.
—Masvocêchegou...asairparaumacaminhada?—Nemconseguidesmancharosnós.Mastivepesadelos.ALua,outravez.Temcertezadequenão
foiseguidoatéaí?—Tenho.Sóseelesconheceremosegredodainvisibilidade—Parkerrespondeu.—Achoque
vocêpodeligarparacáamanhãànoite.Enãoprecisasepreocuparcomotelefone.—Estamosfalandocomodoismalucos.— Paramimémuitodivertido—Parker riu.—Parece filmedemocinhoebandido,políciae
ladrão,espiões...Semprefuibomnessascoisas.Façaoquetemquefazer,amigo.E,seprecisardeajuda,gritequeeuvoucorrendo.
—Eusei.Domvoltou aohotel, oventoúmido e friobatendo-lheno rosto.ComoemPortland, acordou três
vezesduranteanoite,sempresaindodepesadelosquenãoconseguialembrar,sempregritandodemedo,falandosobreaLua.
Namanhãdeterça-feira,dia7dejaneiro,Domlevantou-secedoetomouaRodovia80paraReno.Choviamuito e fazia frio. Continuou a chover durante quase toda a viagem e, quando ele chegou àsSierras,comevaanevar.Parounumpostodebeiradeestrada,comproucorrentesantiderrapantesparaospneusemandoucolocá-lasantesdeseguirviagem.
Noverãoretrasado,levaramaisdedezhorasparairdeGrant’sPassaReno;aorepetiroitinerário,aviagemacabousendoaindamaisdemorada.DepoisdepreencherafichadeentradanoHotelHarrah’s,omesmodeantes,telefonouparaParkerFainedeumacabineeentrounumbarparaumlancherápido.Estava tão cansado que só queria folhear o jornal para distrair-se umpouco e ir logo dormir.Estavasentado na cama, de cuecas, às oito e meia da noite, jornal aberto, quando leu a notícia sobreZebediahLomack:
HOMEMDALUADEIXAHERANÇADEMEIOMILHÃODEDÓLARESRENO—ZebediahHaroldLomack,50anos,cujosuicídionodiadeNatal levouàdescobertade
umaestranhaobsessãopela imagemdaLua,deixouumaherançaestimadaemmaisdemeiomilhãodedólares. Segundo documentos apresentados por EleanorWolsey, irmã domorto e sua executora testa-mentária,osbensestãorepresentadosporaçõesdefundosdeinvestimentoeletrasdoTesouroNacional.Acasamodestaonde tLomackvivia,naEstradadeWassValley,número1420,foiavaliadaemapenastrintaecincomildólares.
Jogador profissional, Lomack teria enriquecido nas mesas de pôquer. “Ele era um dos melhoresjogadores de pôquer que conheci”, declarou SidneyGarfork, oSierra Sid, de Reno, também jogadorprofissionalecampeãomundialdepôquer,títuloqueconseguiunacompetiçãodoCassinoFerradura,emLasVegas.“Elejogavadesdecriança”,SierraSidcontinua,“porvocação.Comohácriançasquenascemparaoesporte, a ciênciaoua arte,Lomacknasceuparao jogo”.AindanaspalavrasdeGarforkedeoutros amigos de Lomack, o suicida teria deixado um patrimôniomais valioso, não fosse sua paixãopelosdados.“Perdeumuitonasmesasdedados”,declarouumdeles,“eboaparte,éclaro,oimpostoderendalevou”.
Conforme noticiamos na noite deNatal, alertados por vizinhos que ouviram um tiro, policiais deReno invadiram a casa de Lomack, encontraram-nomorto na cozinha, cercado de lixo. As primeirasinvestigações,realizadasnolocal,revelarammilharesdefotosdaLuacoladaspelasparedes,pelotetoeaténosmóveis.
Anotíciacontinuava,dandoaimpressãodetersidooprincipalassuntodacidadenasduassemanasanteriores.Dom leu e re-leu amatéria, cada vezmais fascinado e ansioso.Não podia ser... Não erapossívelqueaobsessãodotalZebediahLomacktivesse
algoavercomseuspesadelos.Coincidência...nadamais!Porémomedocrescia.Omesmomedoqueoatormentavanospesadelos.Ummedofeitodeterror,queofaziaacordaraosberros,suandofrio.Ummedoqueofaziaperambularduranteosono,armandobarricadasepregandojanelas.
Domcontinuoucomojornaldiantedosolhosatéàsnoveequinze;eentãoresolveuiratéacasadeLomack.Vestiu-se,tirouocarrodoestacionamentoeinformou-sesobreomelhorcaminhoatéaEstradade Wass Valley. Raramente nevava em Reno. A noite estava seca e as estradas desimpedidas. Nocaminho, parou num supermercado e comprou uma lanterna. Pouco depois das dez horas, chegava aonúmero1420daEstradadeWassValley.
A casa eramodesta, como dizia o jornal. Poucomaior que um bangalô, num terreno de doismilmetrosquadrados.Haviarestosdeneveacumuladanascalhasenosgalhosdospinheirosmaisaltos.Asjanelasestavamescuras.
Peloquedizia o jornal, a irmãdeZebediah chegaradaFlórida três dias depois do suicídioparacuidardo funeral, realizadonodia30, e continuavanacidadepara resolverosproblemas relativosàherança.Estavahospedadanumhotel,porqueacasadeZebparecia-lhe“deprimentedemais”.
Domeracidadãorespeitadordaleienãolheagradavaaidéiadeinvadiracasadeninguém.Masnão tinha escolha. O instinto dizia-lhe que Eleanor Wolsey não o deixaria entrar lá, ainda que lheimplorasse.Segundoojornal,elaestava“cansadadaperseguiçãodessesmaníacos”enãopermitiríaqueacasadeseuirmãofosseinvadida“porhordasdecuriosospervertidos”.Diantedisso,Domcontornouaconstrução,experimentandoasfechadurasdeportasejanelasatédescobrirqueajaneladacozinhanãoestavatrancada.Empurrou-a,saltousobreopertorilepulouparadentro.
Cobrindoa lanternacomamãoparanãochamara atençãodequempassassepela rua,passeouofachodeluzpelasparedesepeloteto:tudolimpo.OjornaldiziaqueairmãdeLomackestavalimpandoacasaparavendê-la.Comcerteza,começarapelaco-
zinha:nãohavialixo,asprateleirasestavamvazias,ochãobrilhava.Oarcheiravaatintafrescaedesinfetante,enãohaviaumaúnicaLuaàvista.
E se Eleanor tivesse terminado a faxina? E se já não existisse nem rastro das luas de ZebediahLomack?
Foiapenasuminstantedepreocupação,pois,acompanhandoaluzdalanterna,Domlogochegouàsalaprincipal,ondeviucentenasde imagenscoladaspelasparedes.Eracomoentrarnumacavernaoumergulharnoespaçosideral,cheiodeLuasimpossíveis,craterassobrecrateras,umasaoladoeporcimadasoutras. Incapazdeorientar-seali, semsaberondeacabavaochãoe começavamasparedes,Domsentiu uma vertigem, a boca seca, e continuou andando pelo corredor.MaisLuas por todos os lados:algumas coloridas, outras em branco-e-preto; grandes e pequenas; muitas aplicadas sobre fotos maisantigas, pregadas com cola, com fita adesiva, com etiquetas. A mesma decoração enlouquecidacontinuava pelos quartos, como se a Lua fosse uma espécie de fungo em reprodução incontrolável,cobrindotudo.
Ojornaldiziaqueninguém,alémdeLomack,estiveranaquelacasadurantepelomenosumanoantesdosuicídiodoproprietário.Deviaserverdade...Quemquerquevisseaquilochamariaumaambulânciae
faria internar o homem!Os vizinhos comentavam sobre a transformação de Lomack,mais taciturno acada dia, mais trancado em casa. Ao que tudo indicava, a fascinação pela Lua começara no verãoretrasado...OmesmoverãoemqueavidadeDomtambémmudara.
Acadasegundoquepassava,Domficavamaisansioso.Eraimpossívelentenderqualforçaestranhafaria um homem criar um cenário assim... Entretanto, de algum modo assustador,alucinante,incompreensível,conseguiaentendê-lo...entenderoqueLomackfizera,oquetentaradizer...
Ofachodeluzcontinuavaacorrerpelasparedesempapeladas,eDomsentiaasgotasdesuorgeladoescorrendo-lhedanucaedescendopelomeiodascostas.AsluasdepapelnãoofascinavamtantocomocertamentehaviamfascinadoLomack,maso
instintodizia-lhequeoimpulsoquelevaraosuicidaarecortarecolarluaspelasparedesdacasaeraomesmoqueofaziasonharcomaLua...eacordargritando.
Os dois haviam vivido a mesma experiência, e essa experiência tinha algo a ver com a Lua,personagemousímbolo.Noverãodoanoretrasado,osdoishaviamestadonomesmolugaraomesmotempo,talvezjuntos.Olugarerrado,nahoraerrada.ELo-mackenlouquecerasobopesodaslembrançasproibidas.
E Dom? Também acabaria louco? Examinando as paredes do quarto principal, ocorreu-lhe derepente uma possibilidade nova: e se Lomack não tivesse sematado num acesso de depressão ou dedesespero?Eseotivessemimpelidoaenfiarocanodaespingardanabocaepuxarogatilho...porque,finalmente, conseguira lembrar-se de tudo? E se a lembrança fosse aindamais assustadora do que omistério? E se as crises de sonambulismo e os pesadelos fossem nada... face à verdade sobre o queaconteceraduranteaviagemdePortlandaMountainview?
As luas pareciam ganhar vida própria. Era cada vezmais difícil respirar... Como se as imagenscomeçassemaencarnaromaleseaproximassemcadavezmais,fechandoocerco...
Dom correu pelo quarto, aproximou-se da porta, tropeçou numa pilha de livros e caiu ajoelhado,zonzo,comonospesadelos.Nãoconseguiamover-se.Aospoucos,acalmou-se,voltouànormalidade...esurpreendeu-se, de olhos arregalados, frente ao nome Dominick, escrito a caneta sobre uma dasincontáveisfotos.Nãooviraaoentrar,porquenãodirigiraalanternaparaaquelelado.MasagoraaluzamareladaincidiadiretamentesobreopôsterondeLomackescrevera...seunome!Equemmaispoderiatê-loescrito?
Peloqueselembrava,nuncaencontraraLomackemqualquersituação,eseriaperdadetempotentarconvencer-sedequesetratavadeoutroDominick.Levantou-se,aproximou-sedopôstereexaminou-o.Depoiscorreuosolhoseofachodeluzpelasfotospróximas.Quatrodelastinhamnomesescritospelamesmamão,comamesmacaneta:Dominick,Ginger,Faye,Ernie.Nãoeram
apenas dois os infelizes, Lomack e ele. Havia pelo menos outras três pessoas, que Dom naoimaginavaquemfossem.
OtalErnieseriaopadredafotografiaquereceberapelocorreio?Equemseriaaloiraamarradaàcama?GingerouFaye?
Amedidaquealuzdalanternaiadeumaoutronome,Domsentiaqueaquelasmemóriassoterradascomeçavamamover-se...Ummovimentoaindaimperceptível,muitofraco,masumprimeirosinaldequeumapartede seupassadonãoestavamortapara sempre.Podiavoltar...Talvezele se lembrasse...Aoprimeiroesforçoparalocalizaralembrança,contudo,aondaquaseinvisívelsedesfez,comoosinaldeummonstromarinhoquemergulhassenasprofundezas.
DesdeomomentoemqueentraranacasadeLomack,Domsabiaqueseaproximavadealgumacoisaimportante e assustadora. Sentiu medo, mas vendo a lembrança escapar-lhe como areia por entre osdedos,depoisdetê-lasentidotãoperto,ficoudesesperado.
—Por que não consigome lembrar?!— gritou para as paredes, embora conhecesse a resposta.Alguémoinduziraaesquecer.Alguéminvadiraoterritóriodesuaslembrançasedelávarreraoquenãodesejavaverrevelado.Aindaassimelecontinuavaagritar.—Porquê}\Euquero,precisomelembrar...—ErgueuopunhocerradoparaafotoondeLomackescreveraseunome,osolhosbrilhandodefúria.—Malditos! Filhos da puta... Malditos! Vou me lembrar, custe o que custar! Vou me lembrarl Vouarrancarissotudo!
Não tocara o pôster, apenas o ameaçara de longe com o punho e gritara. Era impossível,inimaginável... não podia estar acontecendo... mas foi como se o gesto arrancasse a fota da parede.Astirasdefitaadesivadesprenderam-secomoruídosecodeumzí-perabrindo-se...Ocartazsoltou-sedaparedeeflutuouemsuadireção.Domrecuou,tropeçououtraveznapilhadelivroseporpouconãocaiudecostas.Conseguiuergueralanternaeviuqueopôsterestavaparadonoar...parado...aummetrode sua cabeça.Ondulandocomouma folha aovento, para frente epara atrás, e seunome,na letradeLomack,tremulandocomolegendainscritanumabandeiradesfraldada.
Estoulouco,pensou.Massabiaquenãoeraverdade.Sabiaqueopapelestavaali,apoucospassos,suspensonoar.Malconseguiarespirar;sentiaoardenso,carregadodemilagres.
Opôsteraproximou-se.Ofeixede luz tremeu, refletidonopapelespelhado.Durantesegundos,ouhoras,Domficouparado,deolhosesbugalhados...eviuasoutrasfotografiasdesprenderem-sedaparede,girarempela sala... emordem, comcalma, comocavalinhosdeumcarrossel.Estava cercadode luas,umas cheias, outras crescentes, algumasmuito ampliadas, expondo crateras e planícies... Permaneceuimóvel, sentindo-secomooaprendizde feiticeiro,capazdedarvidaaumavassoura,masnão fazê-laretomaracondiçãodevassoura.
Oscilavadasurpresaaomedo,domedoaodeslumbramento.Nãosesentiaameaçado.Naverdade,considerava-se testemunhadeumespetáculoúnico,maravilhoso.Era impossívelexplicaroqueestavaacontecendo,maselenãotinhamedo,comoseoinstintolhedissessequenãohaviaoquetemer.Opoderquedavavidaacadapôstererabenigno.
Deslumbrado,Domolhouemvolta,viuasfotosemsuadançacalma,elegante...eriu.Foiumerro.Numsegundo,tudomudou.Oscartazesjánãodançavamserenamente.Voavamsobresuacabeça,comoumalegiãodemorcegosenlouquecidos.Batiam-lhenorosto,noscabelos,nopeito,nascostas.Aindanãoeramseresvivos,masagiamcomoinimigos.
Domtentouproteger-secomamão,ergueualanternanadireçãodotetoeviuasfotosagitandoasasas,golpeandoasparedes,colidindoumascontraasoutras.Cadavezmaisassustado,procurouaporta,maseradifícilacharasaídanaquelepandemôniodefolhasdepapelvoandoemtodasasdireções.Luasaladas,emfúria.Nãohaviaportaoujanelaporondeescapar.
Ozumbidoaumentava.Nocorredor,nasoutraspeçasdacasa,oscartazes libertavam-sedascolasqueosprendiam,mergulhavamnoar,arrastadospelamesmaforçainvencíveleincontrolá-
vel,aproximavam-seciasala.Aluzrefletia-senopapelbrilhante.Osrecortesflutuavamnoar,comofolhas arrastadaspeloventoquentedeum incêndio.As fotosmenores coladas antes e escondidasporváriascamadasdenovasfotos,soltavam-setambémevoavam.Umadelascolou-seaoslábiosdeDom,queacuspiuparalonge,apavorado.
Outravez,oinstintosoprou-lheumaidéia.Aquelebaléenlouquecidopoderiaajudá-loalembrar-se.Nãosabiaporquê,nãoconseguiaadivinharquemestariaportrásdaquilo,maseraquasecomolernasfolhas de papel que o cercavam. Bastava deixar-se levar, mergulhar fundo naquelemar de luas paraencontrararespostaquebuscavaeredescobriroquedescobriraumavez,doisverõesantes,naRodovia80.Eraummergulhoarriscado,umsaltonoescuro,queofascinavaeamendrontavaaomesmotempo.
— Não!—gritouuma, duasvezes, cobrindoosouvidos comasmãos, fechandoosolhos com
força.—Parem!Parem...Parem,já!—Egritoumais,atéfaltar-lheavoz.Comosurgiu,acirandadefotosparouderepente,umaúltimanotasuspensaemplenasinfonia.Dom
nãoesperavaserobedecidocomtantapresteza,porqueainda levariaalgumtempo,paradescobrirqueeraelepróprioomágicodaqueleespetáculo.
Tirouasmãosdacabeçaeabriuosolhos.Vacilante,estendeuobraçoeapanhouumdoscartazesparadosemplenoarasuafrente.Tocouosdoisladosdopapel.Nadadeespecial,nemcomopapel,nemcomailustração,eaindaassimláestava,suspenso.
— Como?!—perguntouemvozalta, imaginando, talvez,que luascapazesde flutuarnoquartotambémpudessemfalar.—Eporquê?
Como se fossemuma só, as luas despencaram e caíram a seus pés.Como se o encanto estivessequebrado.Simplespapéisvelhoseamontoadosnochão.
Assustado, à beira de umcolapso,Domcorreu para a porta.As luas continuavamno chão, comofolhassecasnooutono.Eleparouàportae,comalanterna,examinouocorredor.Nãosobravaumaúnicaluacolada.Asparedesestavamcompletamente
limpas. Dom voltou ao quarto, ajoelhou-se entre os recortes, curvou-se, aproximou a lanterna ecomeçouaremexernospapéis,commãostrêmulas,àprocuradequalquerexplicaçãoparaoepisódio.
Nãosabiaoquepensarnemoquesentir,porquejamaislheocorreranadaparecido.Quaseriu,masantesdoprimeiroesboçoderisosentiumedo.Omesmomedofriodesempre.Sabiaqueestiveradiantedealgoterrível,diantedomal...omalalémdequalquerpalavra.Omalemsi.Aomesmotempo,sabiaquetestemunharaummilagrequetangenciavaobemmaispuro.Obemeomal.Talvezosdois,ligadosnamesmaentidade.Talvezoutracoisa,quenãoerabemnemmal,apenas...outracoisa,queexistiaalémdoslimitesdaspalavras.
Outracertezacomeçavaabrotar:oquequerqueaconteceranoverãoretrasado,eramilvezesmaisinacreditáveldoqueumserhumanopoderiaimaginar.
Ainda estavamexendo nos recortes, quando percebeu os sinais nas palmas dasmãos.Dois anéisavermelhados,umemcadapalma.Doisanéisdepeleinchada.Doisanéisperfeitos,comoqueriscadosacompasso.
EnquantoDomolhava,boquiaberto,osanéissumiram.Eraterça-feira,dia7dejaneiro.
6.CHICAGO,ILLINOIS
Opadre StefanWycasik dormia em seu quarto, no segundo andar da casa paroquial da Igreja deSanta Bernardette, quando acordou de repente, ouvindo batidas de tambor. Ou batidas de um enormecoração,àsquaisalguémhouvesseacrescentadoumterceirotempo:tum-tum-tum...tum-tum-tum...
Aindasemi-adormecido,estendeuobraço,acendeualâmpadadecabeceira,ofuscou-secomaluzeespiouorelógio.Eramduashorasdamadrugada,quinta-feira,horáriomuitoimprovávelparaumdesfilemilitar.
Tum-tum-tum...tum-tum-tum...Acadatrêsbatidas,umapausadetrêssegundos...Acadênciaperfeitaeimutável,semprerepetida,
lembravaumpistãodegigantescomotor.OpadreWycazikafastouascobertase,mesmodescalço,foiatéajanela.Espiouopátioqueseparavaaigrejadacasaparoquialeviuapenasasárvoresdegalhosnus,cobertasdeneve,iluminadaspelalâmpadaacimadaportadasacristia.
As batidas continuavam,mais altas, e a pausa eramais breve, talvez de dois segundos. O velho
párocovestiuumroupãosobreopijama.Asbatidas,cadavezmaisfortes,começavamaassustá-lo.Acadapancada,asparedesestremeciameaportavibravanosbatentes.
.Correuparaohalldoandarsuperior,tateounoescuroàprocuradointerruptore,afinal,conseguiuacenderaluz.Dooutrolado,àdireita,outraportaabriu-seeapareceuopadreMichaelGerrano,tambémcuradaigreja,lutandocomumadasmangasdoroupão.
—Oqueéisso?—perguntou—Nãosei.A batida seguinte foi duas vezes mais forte que as anteriores, e a casa inteira vibrou, como se
estivessesendoatacadaportrêsgigantescosmartelos.Aluzpiscou.Agora,apausaentreduassériesdebatidaseradeapenasumsegundo,eacadanovapancadaasluzespiscavameochãoestremecia.
OsdoissacerdotesperceberamqueoruídovinhadoquartodeBrendanCronin.Ecorreramparalá.Inacreditável...Brendandormiaasonosolto.ApesardosestrondosquelembravamaStefanodisparodemorteirosqueouviranaguerradoVietnã,BrendanCronincontinuvamergulhadonosonodosjustos.Naverdade,apesardapenumbra,erapossívelperceberqueestavasorrindo.
As janelasbatiam.Ascortinas saltavamnasargolas.Sobreapenteadeira,umaescovadecabelospulava para cima e para baixo, e algumas moedas retiniam, chocando-se umas contra as outras.Obreviáriodeslizavadeumladoaoutro.Naparede,ocrucifixooscilava,penduradoaoprego.
OpadreGerranogritoualgumacoisaqueStefannãopôdeouvir,porquejánãohaviapausaentreasbatidas. A cada nova série de pancadas, o ruído tornava-semais próximo, vindo de algumamáquinadescomunalmentegrande.Mas...comoerapossível?Osompareciaemanaraomesmotempodetodasasdireçõescomoseamáquinativessepeçasespalhadaspelasparedesdacasa...
Quando afinal o breviário caiu da penteadeira e as moedas espalharam-se pelo chão, o padreGerranocorreuparaohallficouparadodiantedaporta,osolhosarregalados,prontoparafugir.
Stefanaproximou-sedacama,inclinou-sesobreBrendanechamou-o.Nãoconseguiufazê-loacordar.Então,agarrou-opelosombrosesacudiu-ocomforça.
Brendanabriuosolhos.Eoruídodesapareceu.Orepentinosilêncioeraaindamaisespantosoqueasbatidas.OpadreWyca-ziksoltouosombrosdeBrendaneolhouaoredor,semacreditar.
—Euestavatãoperto...—Brendanmurmurou,comoseaindasonhasse.—Quepenaqueosenhormeacordou.Euestavatãoperto...
O velho pároco puxou as cobertas da cama e examinou-lhe as mãos. Ali estavam os anéisavermelhados,umemcadapalma.
Nãoconseguiuafastarosolhos,porqueeraaprimeiravezemsuavidaquetestemunhavaaapariçãodossinais.Oqueseriaaquilo?,pensou.
Aindaofegante,opadreGerranoaproximou-seetambémviuosanéis.—Quemarcassãoessas?—quissaber.Semresponder,StefanlevantouacabeçaeperguntouaBrendan:—Queruídoeraaquele?Deondevinha?—Estavammechamando—suspirouojovem,comvozsonolentaeexcitadaaomesmotempo.—
Estavammechamandodevolta.—Quemestavachamando?Brendan sentou-se na cama e encostou-se à cabeceira. Seus olhos muito verdes retomaram a
expressãohabitual.—Tambémouviram?—Claroquesim...Acasainteiravibrava,boidivertido.()queera?—Umchamado.Elesmechamavam...eeuia.
—Masquemochamava?!—Naosei...Elesmechamavamdevolta.—Devolta...p,mondc}\—Paraaluz.Aluzdouradadosonhoquelhecontei.Cadavezmaissurpreso,poisnãoestavatãofamiliarizadocommilagrescomoseusdoisconfrades,opadreGerranoperguntou:—Doqueestãofalando?Podemmedizeroqueestáacontecendo?Ninguémlhedeuatenção.StefancontinuavadeolhosfixosemBrendan:—Essaluzdourada...Oqueera?Deus...chamando-odevoltaàIgreja,àfé?— Não...Eraalgumacoisa...quemechamavadevolta.Quemsabedapróximavezeuconsigo
chegarmaispertoedescobriroqueé.—Dapróximavez...?Achaqueosonhopoderáserepetir?Achaquevoltaráaserchamado?—Ah,sim!Claroquesim.Eraquinta-feira,dia9dejaneiro.
7.LASVEGAS,NEVADA
Natardedesexta-feira,JorjaMonatellatrabalhavanocassino,quandofoiinformadadequeseuex-marido,AlanRykoff,suicidara-se.Anotíciachegoupelotelefone.“Pimentinha”Carrafieldligou,eJorjaatendeunasaladejogotapandoumadasorelhasparaouviroqueaoutradizia.Ofatochocou-a,masnãolhecausoutristeza.Alannãomerecialágrimas,sempreforaegoísta,cruel,insensível.Talvezinspirassepiedade,nãosofrimento.
—Alanmeteuumabalanosmioloshámenosdeduashoras—contou-lhe“Pimentinha”,cheiadetato.—Acasaestácheiadepoliciais.Vocêtemquevirpara
cá.—Apolíciaprecisademim?—Jorjaperguntou.—Eporquê?—Nâo,nãoéapolícia.Euéqueprecisoquevocêvenhaapanharascoisasdele.Querolimpara
casa.—Maseunãoqueroascoisasdele.—Vocêtemobrigaçãodevirbuscaressascoisas.— Escuteaqui—Jorjarespiroufundo—,nossaseparaçãofoidifícil,eodivórciofoiamargo.
Nãotenhoomenorinteresseem...— Alanredigiuumtestamentoháumasemanaenomeouvocêsuaexecutora testamentária.Você
precisavirporqueéseudever,eporqueeuqueromelivrardessasporcarias.Alan morava no apartamento de “Pimentinha” Carrafield num condomínio luxuoso, chamado O
Pináculo,naAvenidaFlamingo.Monólitodeconcretobrancoejanelasmarrons,oPináculopareciaaindamaisaltodoquerealmenteera,porqueseerguiaemplenodeserto.Porissotambémdavaaimpressãodeser um monumento, o maior monumento funerário do planeta. Era cercado de gramados irrigadosartificialmente e de canteiros de flores trocadas todas as semanas. O vento frio e lúgubre dodesertosacudiaaspobresfloresdeestufaecobriadepoeiraoluxuosohalldeentrada.
Umcarrofunerárioeduasviaturasdapolíciaestavamparadosjuntoàentradadoprédio,masnãosevia nenhumpolicial.Uma jovemocupava umdos sofás do vestíbulo, cemmetros adiante da portaria.Além dela, havia um porteiro de calça cinzenta e paletó azul, provavelmente encarregado também dasegurança.Ambospareciamdeslocadosnaquelecenáriodepisosdemármore,lustresdecristal,tapetes
persas, sofás de veludo e poltronas de espaldar alto, projetado para dar a impressão de classe eelegância,equenãodavaimpressãodenada.
QuandoJorjapediuaoporteiroqueaanunciasse,amulherlevantou-sedosofáeaproximou-se.—SenhoraRykoff,sou“Pimentinha”Carrafield.Desculpe...Voltouausarseunomedesolteira?—Sim.Monatella.Como o prédio ondemorava, “Pimentinha” também fora projetada para dar a impressão de uma
elegância de Quinta Avenida, e os resultados eram ainda mais desastrosos. O cabelo loiro, solto eexageradamentecrespo,pareciaapenasdesgrenhado.Mulherescomoela,quepassamodiadeitando-seemmuitascamas,certamenteadotavamaqueleestilodecabeloporquenãotinhamtempodepentear-seacadameiahora.Suablusadesedavermelhapoderiaatésereleganteseelaabotoassealgumascasaseescondessealgunspalmosdebusto.Acalçacompridaeradebomcorte,masfaltavamdoisnúmerosparadiscretamente acomodar o volume do traseiro. Mesmo o caro relógio de mostrador incrustado dediamantes faria melhor efeito se fosse usado sem as pulseiras e os quatro anéis faiscantes que lhecobriamosdedos.
— Nãoconsegui ficarnoapartamento—confessouamoça,convidandoJorjaasentar-seaseulado.—Sóentroládepoisquelevaremocorpo.—Estremeceucomoseestivessecomfrio.—Podemosconversar aqui, desde que falemos em voz baixa.Mas, se você está pensando em fazer uma cena deciúme,suboenão lhecontonada.Opessoalnãosabedemeutrabalhoefaçoquestãoabsolutadequecontinuemsemsaber.Nunca tratodenegóciosemcasa.Façoquestãodeatenderosclientesemhotéisounosescritóriosdeles.
—Nãovoufazercenanenhuma.Primeiro,porquenãosoudissoe,segundo,porquenãomesintocomoumainfelizviúvasofredora—Jorjadeclarou.—HámuitotempoqueAlannãosignificanadaparamim.Mesmosabendoqueeleestámorto,nãoconsigosentirnada.Euoameihámuitosanos,tivemosumafilhalinda,eachoquedeveriasentiralgumacoisa.Masnãosinto.Fiquesossegada...nãofareicenas.
—Ótimo!—Porpouco,“Pimentinha”nãosaltouebateupalmas.—Opessoaldaquiégentemuitofina.Seouviremfalarquemeunamoradosesuicidou,vãometratarcomfrieza.Gentefinanãogostadesuicídio.Esedescobriremqualquercoisasobre
meutrabalho,então...acabamfazendocomqueeumemude.Eeunaoquerosairdaqui!Jorjaexaminouogenerosodecote,osdedoscobertosdediamantes,acalçacoladaaocorpo.—Eoquevocêimaginaqueelespensamquevocêfazparaviver?—perguntou.—Quevivede
rendas?Queéherdeiradeumafortuna?Semperceberaironia,amoçasorriu:—E...Comovocêdescobriu?Pagoascontasdocondomínioemdinheirovivo,nãousocheque,e
todospensamqueminhafamíliatemmuitodinheiro.Jorja achoumelhor não informar que ricas herdeiras não costumam pagar contas com dezenas de
notasdecemdólares.Mudoudeassunto:— SeráquevocêpoderiamecontaroquehouvecomAlan?Ele tinhaalgumproblema?Nunca
imagineiquefossecapazdesesuicidar.Vigiandooporteiroparacertificar-sedequeelenãopoderiaouvir,“Pimentinha”balançouacabeça
edesabafou:—Masnemeu!Nuncapoderiaimaginar...Eraumhomemtão...viril!Foiporissoqueoconvidei
paramorarcomigoe tomarcontademim.Comomeugerente,entende?Era tãoforte...Pelomenosatéalgunsmesesatrás.Derepentecomeçouaagircomoum...covarde,seilá.Pareciaassustado!Ficoutãomedrosoeesquisitoqueeujáestavapensandoemdespedi-loearranjaroutrogerente.MasnuncapenseiquefossecapazdefazerissocomigolImagine...umsuicídiologoemmeuapartamento!
—E...Hágentequenãotemamenorconsideraçãopelosoutros...—Jorjaviuosolhosdaoutraapertarem-secomoosolhosdeumacobra,mas,antesdedar-lhetempopararevidarogolpe,continuou:—Aindanãoentendibem...Alanestavatrabalhandocomoseugigolô?
—Escuteaqui...—“Pimentinha”empinouobusto.—Nãoprecisodegigolôporquenãosouputa.Putavaiparaacamaporcinqüentadólares, trepacomoprimeiroqueaparece,vivecheiadedoençasvenéreasemorrenamiséria.Eutrabalhoparagentedeclasse,soucallgirlfichadanosmelhoreshotéisda cidade, e só no ano passado consegui economizar duzentos mil dólares. Que tal? Tenho dinheiroaplicado...PutanãoinvestenaBolsadeValores...Não,Alannãoerameugigolô.Erameugerente.Naverdade,trabalhavatambémparaalgumasamigasminhas.Concordei,porque,nocomeço,verdadesejadita,nãohaviaoutrocomoele.
Intrigadaesurpresacomasegurançadamoça,Jorjaperguntou:—MasAlanrecebiaalgum...prolaborepelosserviçosde“gerência”queprestavaavocêesuas
amigas?—Não...—“Pimentinha”sorriu,radiantecomoesforçodeJorjaparaencontrarpalavrasquenão
a ofendessem. — Essa era a melhor parte dos negócios. Alan ganhava dinheiro por causa de seufantásticotinocomercial.Tinhamuitoscontatos,arranjavaexcelentesencontrosparanósecobravaumataxadosclientes.Nósnãolhepagavamosnada.TudooqueAlanqueriadagenteera...sexo.Nuncaviumhomem como ele. Era insaciável! Nos últimos meses, então, era incrível! Foi assim com você,querida,enquantoestiveramcasados?
AntesqueJorjaainterrompesse,enojadapelaviolênciacomqueelainvadiasuaprivacidade,aoutraprosseguiu:
—Nasúltimassemanas,porexemplo,elepassavadiasenoitescomereção...DiasenoiteslAtépensei em mandá-lo embora. Alan parecia louco... Trepava sem parar e, quando não agüentavamais,ligavaovídeoeficavavendofilmespornográficos.
MalditoAlan!Senãotivesseinventadodenomeá-laexecutoradotestamento,Jorjanãoestariaali,ouvindoaqueleshorrores...EpensarqueeleaindaaobrigavaainventarumahistóriadecenteparacontaraMareie...Quantoa“Pimentinha”Carrafield,oquepensar?Qualquerhomem,atémesmoAlan,mereciaumpouco de respeito,merecia umaou duas lágrimas damulher comquemvivera durantemeses.Umcoraçãoderéptil...frio...avarento...
Aportadeumdoselevadoresabriu-se,eváriospoliciaisuniformizadossaíram,empurrandoamacaondejaziaumcadávernumenormesacoplástico.Asduasmulhereslevantaram-se.En-
quantoamacaeraempurradaparafora,osegundoelevadorchegouaotérreo,trazendodoispoliciaisuniformizados e alguns investigadores à paisana.Um investigador aproximou-se de “Pimentinha” parafazer-lhealgumasperguntas.Jorjaficouparada,olhandoparaamacaquetransportavaocorpodeseuex-marido. Viu-a chegar à porta, as rodas rangendo sobre o piso de mármore, e aproximar-se do carrofunerário, onde os policiais depositaram o grande saco plástico. Nada sentia além de umavagaimpressãodemelancolia:aestranhasensaçãodoquepoderiatersidoenãofoi.
Livredoinvestigador,“Pimentinha”dirigiu-separaumdoselevadores,abriuaportaefezumsinalaJorjaparaqueaseguisse:
—Vamosatémeuapartamento.Narua,alguémfechouaportatraseiradocarrofunerário.No elevador, em voz baixa, e já no enorme living do apartamento, em tom normal, “Pimentinha”
continuavaa fornecerdetalhesda intensaatividadesexualdeAlan. Jánãohaviadúvidasdeque,pelomenosapartirdedeterminadomomento,osexopassaraaserseuprincipalinteressenavidae,nosdoisúltimosmeses,transformara-seemverdadeiraobsessão.
Jorja não queria ouvir mais nada, porém era impossível fazer a outra calar a boca. Nas últimassemanas,Alandedicara-seexclusivamenteasexo,embora,naopiniãode“Pimentinha”parecessecadavezmaisdesesperadoemenossatisfeito.Passavahorasehorasnacama,comelaoucomqualqueroutrade suas “patroas”, às vezes com várias juntas, experimentando todo tipo de perversão. Mostrava-sefascinadocomosmaisestranhosequipamentosdeestimulaçãoerótica:drogas, aparelhos, camisas-de-vênusespeciais,anéisparausarnopênis,vibradores,ungüentosàbasedecocaína,algemas...
De repente, Jorja não pôde mais suportar; ainda tinha na lembrança a imagem do saco plásticopuxadoparadentrodocarrofunerário.
—Parecomisso!—gritou.—Oqueestáquerendofazer?SeráquenãopercebequeAlanestámorto?
“Pimentinha”deudeombros:—Acheiqueseriabomvocêsaberdetudo...porqueelegastoumuitodinheironessasbrincadeiras.
Ecomovocêvaiterquecuidardotestamento,acheiquedevialhecontartudo.A“expressãodosúltimosdesejosevontadesdeAlanArthurRykoff”,deixadaporelesobaguarda
de“Pimentinha”Carra-field,foraregistradanumformuláriosimples,disponívelemqualquerpapelaria.Jorjaleu-asentadanumacarapoltronadeveludoazul,aoladodeumamesalaqueadadepreto,àluzdeummoderno abajur de aço escovado. Alan não apenas a nomeava sua executora testamentária, comodeixavatodososseusbensparaMareie...umafilhacujapaternidadechegaraapôremdúvida!
Sentadaemoutracarapoltrona,juntoàparedeenvidraçada,“Pimentinha”observava-a.—Nãopensequesobroumuitacoisa—disse.—Alangastavacomolouco.Masdeixouocarro,
algumasjóias...Aoverqueotestamentoforaregistradoemcartóriofaziaapenasquatrodias,Jorjaestremeceu.—Alantalvezjáestivessepensandoemsematarquandofezessetestamento—murmurou.—Se
não,duvidoquesepreocupasseconosco.—Podeser...—Masvocênãopercebeuquehaviaalgumacoisadeerradocomele?Nãoviuqueeleestavacom
problemas?!—JálhedissequeAlanandavamuitoestranho...hámaisdedoismeses.—Deveterpioradonasúltimassemanas...Quandoelecontouquehaviafeitoumtestamentoelhe
pediuparaguardá-lonocofre,vocênãodesconfioudenada?Nãohavianadadeestranhonele?Algumgesto, algumacoisaquepossa ter dito... e que a fizessedesconfiar deque ele estavapensandoem sematar?
—Nãosoupsiquiatra,querida...Amoçalevantou-se,irritada.—Ascoisasdeleestãonoquarto.Sequiser,possochamarumdesseshospitaisdecaridadeemandarlevarasroupas.Mastrate
decarregaroquelheinteressar...asjóias,osdocumentosdocarro...Voulevá-laatéoquarto.Jorjaseguiu-a, tentandodescobrirqueparceladeculpa lhecaberíanadegradaçãodeAlan.Oque
podería ter feitoparaajudá-lo?Ofatodequeele tivessese lembradodeMareie,nosúltimosdiasdevida, era idiota, patético, inútil... mas comovia-a. Para não chorar, tentou pensar no telefonema querecebera pouco antes do Natal. A frieza, a arrogância, o egoísmo doentio de sempre talvez jáescondessem alguma coisa que ela não conseguiu perceber. Talvez, já naquele dia, Alan estivessecomeçandoadescobrirquenãopodiacontarcommaisninguémnomundo,anãosercomelaeMareie.
Ameiocaminhodocorredor,“Pimentinha”paroueempurrouumaportaàdireita.—Masquemerda!—exclamou.—Penseiqueapolíciaialimparessanojeira!Jorjaacompanhouoolhardaoutra,antesdeperceberqueestavamdiantedobanheiroondeAlanse
matara.Haviasangueportodasasparedes,dochãoaoteto:naportadoboxe,napia,nastoalhas,nalata
delixo,naprivada.Aparedeatrásdovasoexibiaumaenormemanchadesangueseco,qualumborrãodo teste de Rorschach. Como se Alan quisesse transmitir uma mensagem cifrada, que só seriacompreendidaporquemsoubesseoquantoeleestavasofrendo.
—Alansematoucomdoistiros—informouamoça,acrescentandodetalhesqueJorjapreferiríanãoouvir:—Oprimeirotirofoinostestículos.Estranho,nãoé?Ooutrofoidisparadodentrodabocaearrebentouosmiolos.
Oaraindacheiravaasangue.— Ospoliciaispoderiampelomenosterpassadoumpaninhoaí...—“Pimentinha”balançavaa
cabeça,imaginandotalvezque,emlugardearmas,ospoliciaisdevessemcarregarbaldeseesfregões.—Afaxineirasóvemàssegundas,eduvidoquequeirameteramãonessaimundície.
Nauseada,Jorjafechouosolhoserecuoualgunspassos.—Vocêestábem?—aoutraperguntou.Sempoderfalar,Jorjalevouamãoaoslábios,correuparaooutrobanheiro,nofundodocorredor,e
debruçou-sesobreapia.—Ah,entãovocêaindagostadele...—comentou“Pimentinha”,postando-seaseulado.—Não...—Ora,masclaroquegosta!Sintomuito...—Amoçaestendeuamãodeunhasvermelhaseanéis
debrilhanteetocou-lheoombro.—Eudeveriateradivinhado...Jorjatevevontadedegritar:“Suaputaidiota!Eunãogostomaisdele,maseleeraumserhumano!
Comovocêpode ser tão fria?Oqueháde errado comvocê?!Seráquenão temcoração?!”Masnãogritoue,afastando-se,limitou-seadizer:
—Tudobem.OndeestãoascoisasdeAlan?Queroresolvertudoesairlogodaqui.Amoçaapontou-lheumaporta,aoladodobanheiro:—Estãoali,nasgavetasdebaixodapenteadeiraenoladoesquerdodoguarda-roupa.Háalgumas
coisastambémnoarmáriodobanheiro.—Aproximou-seeabriuaúltimagavetadapenteadeira.De repente, o quarto começou a girar. Jorja deu um passo à frente, para certificar-se de que não
estavasendovítimadealucinação,ebaixouoolhar:metadedagavetacontinhalivrossobreaLua.—Oqueaconteceu?—“Pimentinha”arregalouosolhos.Zonza, apavorada, Jorja fechou e abriu os olhos novamente para verificar se o abajur sobre a
penteadeiraeramesmooquetemiaquefosse.Percebendovagamentesuainteção,“Pimentinha”acendeua lâmpada dentro do globo esbranquiçado. Sim... era um globo como qualquer um desses globosterrestres usados na escola, só que reproduzia os acidentes geográficos da Lua! Crateras, planícies...cadaumcomonomeindicado.
Aluzdoabajurrevelou,juntoàjanela,outroobjetoassustador:umgrandetelescópiomontadosobreumtripé.Umtelescópiocomotantosquesevêemnasvitrinesdaslojas,masquepareciarepresentaradesgraça.
—AíestãoascoisasdeAlan—disse“Pimentinha”.—Há...háquantotempoeleseinteressavaporastronomia?—Háunsdoismeses.ComoMareie...Ameninamorriademedodemédicos.Alannãoconseguiacontrolarodesejosexual.
Casosdiferentes,sim,massempreaidéiadeumaobsessãoalucinante.Mareiepareciaestarcurada.Alannãotiveraamesmasorte.Sozinho,semninguémparaajudá-lo,acabara“matando”oprópriosexoparalivrar-sedeseudomínio.Umabalanosmiolos...eapaz!
Jorja estremecia, incapaz de deter os pensamentos. Eram pai e filha! Que terrível coincidênciaadoeceremambosnamesmaépoca...Mas,eaLua?!Seriatambémumacoincidência?Pormaisdeseis
mesesAlannãotiveranotíciasdeMareie;falaracomafilhapelaúltimavezemsetembro,muitoantesdeMareiecomeçarainteressar-sepelaLua.Aobsessãosurgiranelesaomesmotempo!
— Você sabe seAlan tinha pesadelos?— Jorja perguntou.—Algum tipo de sonho estranho,relacionadocom...aLua?
—Comoéquevocêadivinhou?ElesonhavacomaLua,sim,masdepoisnãoconseguiaselembrardenada.Essessonhoscomeçaramemoutubro,sebemmelembro.Porquê?
—Erampesadelos?Amoçafezumtrejeitodedúvida.—Não...achoquenão.Asvezes,elefalavaduranteosonho.Asvezespareciaassustado.Masem
geralsorria.Derepente,oestômagopesava-lheumatonelada.Jorjaolhounovamenteparaogloboaceso.Oque
poderiaestaracontecendo?!Omesmosonho,emduaspessoas,separadasporquilômetrosdedistância?Seriapossível?Como?Porquê?!
—Vocêestábem?—“Pimentinha”perguntou.SeumaobsessãolevaraAlanaosuicídio,oqueaconteceriacomMareie?8.SÁBADO,11DEJANEIROBoston,MassachusettsOserviçofúnebreemmemóriadePabloJacksonrealizou-seàsonzehorasdamanhãdesábado,dia
11dejaneiro,napequenacapeladocemitérioondeseriaenterrado.Ocorposófoiliberadopelapolícianaquinta-feira,eosfuneraistiveramqueseradiadosparacincodiasapósamorte.
Terminadaaúltimaoração,ospresentesaproximaram-sedacova,noladodaqualesperavaocaixãocomos restosdePablo.Aneve fora removidadeparteda área,paradar lugar aosmaisde trezentosamigosqueacompanhavamosepultamento.Haviagentedetodotipo,rica,epobre,famosaeanônima.Ali estavam personalidades públicas da cidade, desconhecidos habitantes dos subúrbios, mágicos eartistas.
Depéao ladodacova,GingerWeissapoiava-senobraçodeRitaHannaby.Desdesegunda-feira,praticamentenãocomianemdormia.Estavapálida,nervosaemuitocansada.
AprincípioGeorgeeRitaopuseram-seasuaidéiadecompareceraosfunerais,preocupadoscomoquepudesseacontecernaquelacircunstânciaparticularmentedolorosaecomovente.Todavia,esperandoqueelapudesse identificar entreospresenteso assassinodePablo, apolíciapedira-lheque fosse aoenterro.Gingernãocontaraaverdadeaospoliciaisedeixaraqueacreditassemnahipótesemaisóbvia:assaltoseguidodeassassinato.Emcasosassim,dissera-lheumdosinspetores,ocriminosoàsvezeséarrastadoparaoenterrodavítima,obedecendoaumimpulsocegoe incontrolável.Ginger,noentanto,sabiaqueoassassinodePablonãoeraumcriminosocomum;elejamaiscorreriaoriscodeserpreso,deixando-searrastarporqualquerimpulso“cego”.
Ginger choroumuito durante as orações e, ao sair da capela emdireção à sepultura, sentiu a dorapertando-lhe o coração como mão de ferro. Contudo, manteve-se controlada, sem querer chamar aatenção sobre si e transformar aquelemomento solene num espetáculo de lágrimas e desespero. Nãoestavaaliapenasporque
apolícialhepedira.Tinhaoutracoisaemvista,umplanoqueexigiacontroleabsoluto,semsombrade pânico. Porque tinha certeza de queAlexander Christophson, ex-embaixador naGrã-Bretanha, ex-senadordaRepública,ex-diretordaCIA,nãodeixariadecompareceraoenterrodeseuvelhoequeridoamigo,eprecisavadesesperadamentefalarcomele.Pabloprocurara-onanoitedeNatalparaconsultá-losobreseucaso.EouviradeleadescriçãominuciosadobloqueiodeAzrael.Gingertinhasóumapergunta
afazer-lhe,emuitomedodeouviraresposta.Reconhecera-onacapela,poisjáotinhavistomuitasvezesemfotosdaimprensaeentrevistasdatelevisão.Eraumhomeminconfundível,alto,magro,decabeleirabranca. Naquele instante, postava-se do outro lado da sepultura, junto ao caixão, como semontasseguarda.Olhara-aváriasvezes,masnãoderamostrasdeconhecê-la.
Terminada a cerimônia, formaram-se grupos ao redor do túmulo; alguns queriam fazer umaúltimaoração, outros apenas se despediam. Alexander virou-se e, a passos rápidos, dirigiu-se para oestacionamento.
—Precisofalarcomaquelehomem—GingersussurrouparaRita.Voltojá.Surpresa, Rita ainda tentou detê-la, porém Ginger correu e alcançou Christophson antes do
estacionamento.Chamou-o,apresentou-seeviu-oarregalarosolhos,atônito.—Nãohánadaqueeupossafazerporvocê—disseChristophson,semlhedartempoparafalar.—Porfavor...—elapediu,tocando-lheobraço—...naomeculpepeloqueaconteceuaPablo...—Eporquevocêsepreocupariapeloqueeupudessepensar?Comlicença...—Espere,peloamordeDeus.Christophsoncorreuosolhospelaspessoasquesedispersavam.Pareciatemerqueovissemcomela
e imaginassemque estava ajudando-a comoPablo a ajudara.Balançava a cabeça ligeiramente, de umladoparaoutro.Omovimentopoderiaindicarintensa
preocupação,mas,naverdade,eraprovocadopelomaldePar-kinson.— Se a questão de suas culpas lhe tira o sono, sossegue—disse por fim.—Pablo conhecia
exatamente o terreno em que estava pisando e aceitou todos os riscos que suas atitudes pudessenimplicar.Foiagentedoprópriodestino.
—Então...elesabia...—Gingermurmurou.—Eraissoqueeuprecisavasaber.—Poisseeumesmolhedissequeeraperigoso!—Christoph-sonpareciasurpreso.—Osenhorlhedisse...queeraperigosoV.—Claro!Considerandoasdificuldadesdeumprocessodelavagemcerebral,pareceu-meevidente
que você testemunhara algum acontecimento terrivelmente importante... e perigoso. Eumesmo disse aPablo que o caso não era trabalho de amador. E disse que, se eles... fossem quem fossem...desconfiassemdequePabloestavaajudandovocêadesmontarobloqueiodeAzrael,amboscorreriamriscodevida.—Christophsonfranziuassobrancelhas,olhou-abemnosolhoseperguntou:—Elenãolhecontousobrenossaconversa?
— Sim...Contou tudo...menosapossibilidadedeserassassinado.—Gingerpassouamãonosolhos,tentandoconteraslágrimas.—Nãomedisseumapalavrasobreisso.
Christophsontirouamãodobolsoetocou-lheobraçocomcarinho:—Nessecaso,ninguémpoderáacusá-laporsuamorte.—Maseuseiqueaculpaéminha!—Não,nãoé.—Eleabriuocasaco,apanhouumlençonobolsodopaletóeofereceu-oaGinger.
—Pabloteveumavidalongaefeliz,cheiadealegriaseemoções.Suamortefoidramáticaeviolenta,masrápida,oquetambéméumabênção.
—Pabloeratão...maravilhoso...— Era...Eagoracomeçoaentenderporqueresolveufazeroqueestavafazendo.Eledisseque
vocêeraumamulhermaravilhosa.Vejoque,comosempre,estavaabsolutamentecerto.Pelaprimeiravez,emdias,Gingerrecomeçavaaacreditarque,talvezalgumdia,voltariaasorrir.— Obrigada—murmuroue,apósbrevepausa,perguntoubaixinho,maisparasiprópriadoque
paraAlexander.—Eagora?Oqueéqueeuvoufazer?—Nãopossoajudá-la—elerespondeu,rápido.—Estouafastadodosserviçossecretosháquase
umadécada.Jánãoseioquefazem,quemsãoouonde trabalham.Nãotenho idéiadequempossaserresponsabilizadopeloquefizeramavocê.
— Nemestou lhepedindoquemeajude.Seiquenãopossopedirajudaaninguém,porquenãopossoandarporaíarriscandoavidadosoutros.Maspenseique talvezosenhor tivessealguma idéiasobreoqueeupossafazer...parameajudaramimmesma.
—Váàpolícia.Eleslásãopagosparaajudar.— Não... — Ginger balançou a cabeça. — A polícia é lenta demais, perde muito tempo
preenchendo formulários e fazendo relatórios. Meus problemas exigem soluções urgentes. Além domais,nãoseisepoderiaconfiarnapolícia.QuandovolteiaoapartamentodePablo,nasegunda-feira,nãoencontrei as fitas de nossas sessões de hipnose e resolvi não falar delas a ninguém. Isso é crime:“omissãovoluntáriadeprovasrelevantes”.DisseàpolíciaquePabloeeuéramosamigosequeíamossairparaalmoçarquandooassaltantechegou.Fizcomqueacreditassemquese tratavadeumsimplesassalto.Estouenlouquecendo,eusei,masnãoconfionapolícia.
—Entãoprocureoutromágicoepeçaquehipnotizevocêeafaçaregredir...—Não.Seriamuitoarriscado.—Etudoquepossoaconselhar—Christophsonvoltouaescondernosbolsosasmãostrêmulas.
—Sintomuito.—Nãosinta.Obrigada.— Doutora...— continuou ele, suspirando— tente entenderminha posição. Estive na guerra,
ganheimedalhas.Maistardefizoquepudeparaserumbomembaixador.ComosenadorecomodiretordaCIA,enfrenteicrisesehouvemomentosemque
corri, conscientemente,graves riscosdevida.Não tenhomedodecorrer riscos.Masestouvelho,comsetentaeseisanos,emesintoaindamaisvelhodoqueisso.Souumhomemdoente,hipertenso,comproblemascardíacos.Alémdissotenhoumaesposaqueamoequesealgumacoisameacontecer,seráaúnicapessoaasofrer.Eficarásozinha.Minhamulhernãosabeviversó.
—Oh,porfavor!Osenhornãomedeveexplicações.—Derepente,Gingerpercebeuquehaviamtrocado de papel. Antes, ela pedia que Alexander a absolvesse; naquela momento, ele pedia-lhedesculpas.Jacob,seupai,viviadizendoqueohomeméhomempelacapacidadedeperdoar;queduaspessoascapazesdedare receberperdãoestarão ligadasparasempreporumlaçomuito forte.Gingerlembrou-sedissoaosentirqueChristophsontornavamaislevesuacargadeculpasporqueela,emtroca,podiacompreendê-loeperdoá-lo.
TalvezAlexandersentisseamesmacoisa,apesardecontinuarjustificando-se,jánãofalavacomoseestivessediantedeumaameaçaaserafastadaaqualquerpreço.
— Naverdade, tenhomedodemeenvolveremseucasomenosporqueme interessavivermaisalgumtempoemaisporquesouumvelhocovarde.—Semparardefalar,tiroudobolsoumamini-agendae caneta. Começou a escrever, amão trêmula.— Fiz várias coisas na vida das quais não possomeorgulhar.Algumasemnomedodever.Enecessárioqueexistagovernoeénecessárioquealguémfaçaoserviço de espionagem, mas nem um nem outro são serviços limpos. Quando eu trabalhava para ogoverno,nãoacreditavaemDeus.Nememcéuou inferno.Agora jánão tenho tantacerteza.Asvezespensoquepodehaverinferno...eque,deummodooudeoutro,acabaremospagandopornossospecados.Eessaidéiaéquemedeixaloucodemedodemorrer.
Arrancouapequenafolhadaagenda,dobrou-aeentregou-aaGinger,depoisdevirar-sedemodoquealgumespiãoocasionalnãopudessevê-lo.
—AíestáotelefonedalojadeantigüidadesdemeuirmãoPhilip,emGreenwich,Connecticut.Vocênãodeve ligarparaminhacasaporque, sealguémnosviuaqui,
com certezameu telefone estará sob escuta. Não voumover uma palha para ajudá-la, nem queromeenvolvercomseusproblemas.Mas tenhoanosdeexperiêncianum territórioondevocêestá sozinhaesemapoio.Sederepenteprecisartrocaridéias,pedirconselhos,ligueparaPhilip.Voufalarcomeleecombinaralgumtipodecódigosecretoparaquesecomuniqueimediatamentecomigo.Semprequeelemederumsinal,ligareideumacabineparaaloja,anotareionúmeroquevocêtiverindicadoeentrareiemcontatocomvocêomaisdepressapossível.Estoulheoferecendoapenasalgunsanosdeexperiênciaemassuntossórdidos.Sóisso.
—Osenhornãoprecisameoferecernada.—Eusei.Boasorte.—Christophsongirousobreoscalcanhareseafastou-se,arranhandoaneve
secacomassolasdasbotas.Gingervoltouparajuntodasepultura,ondeencontrouRita,quandooscoveiroscomeçaramajogar
terrasobreocaixão.—Oqueaconteceu?—Ritaperguntou.— Conto-lhe tudoemcasa.—Arrancouumarosadeumadascoroasqueseriamcolocadasno
túmulo, beijou-a e lançou-a sobre o ataúde. — Alav ha-sholen. Que seu sono seja breve antes dedespertarparaummundomelhor.Baruchha-Shem.
Aoafastar-se,acompanhandoospassosdeRita,aindaouviaoruídosecodostorrõesdeterracaindosobreamadeiradocaixão.
ElkoCounty,NevadaNaquinta-feira,declarando-sesatisfeitocomosprogressosdotratamento,odr.Fontelainedeualtaa
ErnieBlock.—Foiacuramaisrápidaquejávi—afirmou.—Oslobos-do-marsãomaisfortesqueocomum
dosmortais.Nosábado,onzedejaneiro,apenasquatrosemanasdepoisdeteremchegadoaMilwaukee,Erniee
Fayevoltaramparacasa.VoaramatéRenoelátomaramoutroavião,deumalinhaestadual,paraElko.As onze emeia damanhã estavam no aeroporto da pequena cidade, onde Sandy Sarver os esperava.Acenando-lhes
do pequeno terminal de desembarque, sob o sol pálido da manhã de inverno, ela parecia outramulher.Erguiaacabeçacomsegurançae,pelaprimeiravezdesdequechegaraaomotel,pintaraosolhoseoslábios.Jánãoroíaasunhas,eseuscabelos,emgeralsemvida,brilhavamaosol.QuandoFayeeErnie a elogiaram pela mudança, Sandy corou como uma adolescente. Disse que nada daquilo tinhaimportância,masdeusinaisdeestarmaravilhada.
Nãomudaraapenasnaaparência.Ernienãoselembravadealgumdiatê-laouvidodizermaisquemeiadúziadepalavras,emvozquaseinaudíveledeolhosbaixos.Agora,andandopeloestacionamentoemdireçãoaocarro,elanãoparavadetagarelaredeperguntarsobreLucy,Frankeascrianças.Nadasabia sobre a fobia deErnie e acreditava queo casal se demorara emMilwaukee só para ficarmaistempocomosnetos.
Semprefalando,colocouabagagemnocarro,acomodou-seaovolanteerumouparaaRodovia80.Dirigiacomumasegurança jamais reveladaeparecia transpiraralegriapor todososporos.Diantedanovamudança,FayeeErnietrocaramolharessurpresosesorrisosdegenuínasatisfação.
Derepente,aconteceuumacoisaestranha.Amenosdeumquilômetrodomotel,Ernieesqueceu-sedametamorfosedeSandy,tomadooutravezpelasensaçãoquetiverananoitede10dedezembro,quandovoltavadeElkocomascomprasqueFayeencomendara:asensaçãodequeaquelelugarochamava.Asensaçãodequejáestiveraalie,exatamenteali,algumacoisaocorrera.Comodaoutravez,o lugaroatraíacomoumtalismãque,numsonho,tivesseopoderdearrastá-loemdireçãoaodesconhecido.
Mau sinal. Sem nenhuma razão objetiva, sentia que a atração que aquele local exercia sobre elerelacionava-se,dealgummodo,comseusproblemasdemedodoescuro.Comoomédicolhedisseraqueestava curado da nictofobia, seria razoável imaginar que os outros sintomas também desaparecessem.Mausinal.Ernienãopodianempensarnapossibilidadedeumarecaída.
FayeconversavacomSandy,contando-lhesobreascriançaseos presentes de Natal. Ernie, porém, já não a ouvia. Sentia-se possuído por estranho entusiasmo
místico,comoseestivesseprestesapresenciaralgofantástico,enorme,de transcendental importância.Algoqueoenchiademedo.
SubitamenteSandydiminuiuavelocidadeparaquarentaquilômetrosporhora,menosdametadedamédiaquemantiveraatéali.Surpreso,Ernievoltou-separaperguntar-lheporqueiatãodevagar,porém,antesqueabrisseaboca,elavoltouapisarfundonoaceleradoreriualto,outravezatentaaoqueFayelhecontava.Umaexpressãomuitoestranhaestampara-seemseurostonaquelebreveespaçodetempo,eErnie captou-a.ComoerapossívelqueSandye ele experimentassemamesma fascinação irracional eincompreensívelporumpedaçodeterracomum,emtudoidênticoàpaisagemqueoscercava?
—Eótimoestardevolta...—Fayesorriu,quandoocarroentrouàesquerda,saindodarodoviaemdireçãoaoestacionamentodomotel.
ErniecontinuavadeolhosfixosnorostodeSandy,àprocuradealgumsinalindicativodequeotallugar tambémaatraía.Masamoçanãoparecianemassustadanemansiosa, e sorria.Eledevia ter-seenganado:Sandydiminuiraamarchaporacaso.
Quanto mais se aproximavam da entrada do motel, mais Ernie se angustiava. Sentia arrepios naespinha, gotas de suor gelado corriam-lhe pelas costas.Espiou o relógio, não porque quisesse ver ashoras,masporqueprecisava saber quanto tempo lhe restava antes do anoitecer: poucomais de cincohoras.
Eseoproblemafosseoutro?Senãofosseumsimplescasodemedodoescuro?Seexistissealgumtipo especial de escuridão capaz de enlouquecê-lo? E se tivesse conseguido vencer a fobiaemMilwaukee,porquenãoeraanoitedeláqueoassustava?Setivessemedo,apenas,dasnoitesdodeserto de Nevada? Exisitiriam fobias assim, com causas específicas e localizadas? Claro quenão.Ernietornouaespiarorelógio.
Sandyestacionouocarrojuntoàentradadomotele,quandoErnieeFayedesceramparadescarregarabagagem,aproximou-seeabraçou-os:—Eótimoquevocêsestejamdevolta.Sentimuitafaltadosdois!AgoravouajudarNed,porquejá
estamosatrasadosparaoalmoço.ErnieeFayepararamboquiabertos,vendo-aafastar-se.—Oquevocêimaginaquepossateracontecidoaquidurantenossaausência?—Fayeperguntou.—Nãofaçoidéia.—Quandoavi,penseiqueSandyestivessegrávida.Masnãodeveserisso,porqueelanosteria
contado.Ealgumaoutracoisa...Oquê?Erniepegouduasdasquatromalasecolocou-asnochão.Tornouaespiarorelógio:estavamcinco
minutosmaispertodoanoitecer.—Ora...—Fayesuspirou.—Sejaláoquefor,elaparecefeliz,eeuficofelizporela.—Eutambém.—Tirouasoutrasduasmalasdocarro.—“Eutambém”...—Fayeimitou-o—Nãosefaçadeinsensível.Euseiquevocêsepreocupava
comSandytantoquantocomofuturodeLucy.Evimuitobemquevocêpercebeutodaessamudança...equeseucoraçãodemanteigaderreteu.
—Eissoporacasoédoença?—ErnieseguiuFayeemdireçãoàentradadacasa,carregandoas
duasmalasmaiores.—Deveser...liquefaçãocardíaca...Ernieriualto,esquecidoporummomentodaangústiaquecresciasempre.Fayesabiafazê-lorirpor
nada,nosmomentosemqueelemaisprecisavadescontrair.Queriaentraremcasa,abraçá-lae levá-laparaacama.Nadamelhorparaacalmá-loeinfundir-lhecoragem.Precisavavenceromedoqueinchavanopeitocomoumbonecodemolaprontoasaltarnoprimeirosusto.
Faye colocou a bolsa no degrau da entrada e abaixou-se para apanhar a chave. Quando Erniecomeçaraamelhorar,decidiramnãocontratarumgerentee,simplesmente,manterfechadoomotelpelotempoemqueestivessemfora.Agora,voltando,tinhammuito
trabalhopelafrente.Eraprecisolimparosquartos,arejarosarmários,ligaracalefação,tiraropóque se acumulava sobre os móveis. Mas todo o trabalho poderia esperar um pouco, até que Erniepossuísseaesposaemsuavelhacama.
Fayeabriuaportaeentrou,despreocupada,felizporestaremcasa.Nãopercebeuque,naqueleexatomomento,umanuvemencobriaosolbrilhantedodeserto.Ernieperdeuofôlegoeparou,semsaberoquefazer, os olhos arregalados. Pouco a pouco, baixou a cabeça e consultou o relógio. Depois, devagar,virou-separaopoente,paraoladoondeosolacabariaescondendo-semaiscedooumaistarde.
—Vaidartudocerto—murmurou—Estoucurado...Acaminho:deRenoaElkoCountyDepois da experiência na casa de Lomack, na terça-feira, com a ciranda de luas dançando a sua
volta, Dominick Corvaisis ainda ficou em Reno por alguns dias. Por ocasião da primeira viagem,demorara-selápesquisandomaterialparaoscontossobrejogadores.Paramanterocronograma,passouaquarta,aquintaeasexta-feirasna“maiorpequenacidadedomundo”.Visitoucassinos,observandoosrostosdosjogadores.Viucasaisjovens,velhosaposentados,belasmulheres,senhorasmadurasdecalçajusta e blusões largos, bronzeados cowboys cheirando a esterco, fazendeiros ricos e perfumados,secretárias,caminhoneiros,executivos,ex-presidiários,ex-policiais.Gentedetodasasclassessociais,atraídaspelafebredojogoorganizado:aindústriamaisdemocratizantedoplaneta.
Como da primeira vez, jogou pouco, apenas para sentir o que era um cassino da ótica dos quepassavam horas sentados junto ao pano verde. Depois do delírio dos pôsters voadores, já não tinhadúvidas de que alguma coisa acontecera emReno.Ali passara por uma experiência quemudara parasempre a sua vida, e ali acabaria por encontrar a chave que libertaria sua memória. Ouvia risadas,conversas,lamentossobreaimponderabilidadedojogoeajustiçadasorte,gritosdosqueganhavamumafortunaem
poucosminutos.Epermaneciafrioealerta,misturadoaosjogadores,masdistantedetodos,sempreàprocuradealgumsinalqueofizesselembrar...umfragmentodopassado.
Nãodescobriunada.TelefonoutodasasnoitesparaParkerFai-ne,emLagunaBeach,esperandoqueseucorrespondenteanônimosemanifestassenovamente.Mastambémnãorecebeuumúnicobilhete.
Anoite,enquantoosononãovinha,remoíaaexperiênciadacasadeLomack.Queriaencontrarumaexplicaçãoparaosanéisavermelhadosqueapareceramemsuasmãosedepoissumiramdomesmomodomisterioso.Enãoachavaexplicaçãoplausível.
Amedidaqueosdiaspassavam,diminuíaanecessidadedoscomprimidos,mascresciaaansiedadequevinhacomospesadelos.ALua,sempreaLua.Etodasasnoiteslutavacomascordasqueoprendiamàcama.
No sábado, continuava certo de que a explicação para os pesadelos e para as crises desonambulismo estava em Reno, porém decidiu manter o plano inicial e viajar até Moutainview. Sechegasselásemdescobrirnada,voltariaeficariaemReno,pelotempoquedesejasse.
Noverãoretrasado,saíradoHotelHarrah’sàsdezemeiadamanhãdodia6dejulho,sexta-feiradepois de um lanche rápido. Quase dois anos depois, no sábado 11 de janeiro, reproduziu omesmocronograma e às dez e quarenta chegava à Rodovia 80. Tomou o rumo do nordeste, em direção deWinnemucca,acidadeonde,emeraspassadas,ButchCassidyeSundanceKidroubaramumbanco.
Avastaextensãodeterradesabitadacontinuavaamesma, idênticaàdaqueletempo.Arodovia,aslinhas de telégrafo e os fios de energia elétrica—por vezes únicos sinais visíveis de civilização—seguiamotraçadodavelhatrilhadotempodasdiligências.Domviadesfiaremdiantedeseusolhosasinfindáveisplaníciesvarridaspelovento,osleitossecosdelagoserios,asestranhasesculturasfeitasdelavasolidificadae,aolonge,muitoaolonge,asmontanhas.Aolongodarodovia,estendia-seocoloridomag-
níficodasterrascalcárias,doamarelo-escuroaocinza.Maisaonorte,orioHumboldtnãopassavadeumriscoesverdeadonaplanície,sorvidopelasedeinsaciáveldaterra.Delongeemlonge,juntoàsmargensdoleitodoriooudealgumdeseusafluentes,surgiaumamanchaverdedeterrafértil,gramaearvores, alguns salgueiros e choupos. Onde havia água erguia-se um vilarejo, e todos eles pareciamperdidosentresi,distantesdacivilização.
Domsentia-seencolhernavastidãodoOesteamericanomasapaisagem,daquelavez,transmitia-lheuma estranha impressão de mistério, de infinitude, como se escondesse algo mais... ilimitadaspossibilidades. Era fácil acreditar que já passara por ali— amais simples e pura verdade— e aliviveraexperiênciasaterrori-zantes,oque,comcerteza,nãopassavadeumacriseagudadeauto-sugestão.
ÀsduasequarentaecincoparouparaabastecerecomerumsanduícheemWinnemucca,cidadedeapenascincomilhabitantes,amaiorquehavianumaáreadevinteecincomilquilômetrosquadrados.AliaRodovia80dobravaparaolesteecomeçavaasubir,norumodeGreatBasin.Umaneldemontanhasfechava o horizonte em todas as direções, algumas com as encostas cobertas de neve.Ainda se viamarbustossecosetufosdegramasopradospelovento,masodesertoficavaparatrás.
Quandoosolseescondiaportrásdasmontanhas,Domsaiudaestradaemanobrouparachegaraoestacionamento doMotel Tranqüilidade. Ao sair do carro o vento soprava frio. O deserto, de algummodo,fizera-oimaginarqueoverãoseriaeterno.Porémnãoestavanodeserto,enasregiõesmaisaltasjáerainverno.Voltouaocarro,apanhouumsuéterevestiu-o.Passouamãopeloscabelos,voltou-separacaminharatéaportariadomotel...eparouderepente,assustado.
Haviachegadoaofimdaviagem.Dealgummodoinexplicávelsabiaqueolugareraaquele.Foraaliqueumacoisamuitoestranhaacontecera.
Noverão retrasado,pararanaqueleestacionamentonanoitede6de julho, sexta-feira.Gostaradolocal,isolado,perdidonumce-
náriomajestoso e imponente. Certo de que escreveria sobre aquela paisagem, resolvera ficar nomotelpordoisoutrêsdias,paraconhecermelhorosarredoresecriarumaboahistória.Naterça-feira,dia10dejulho,seguiraparaMountainview,Utah.
Domolhoulentamenteaoredor,observandoosdetalhesdapaisagemquemergulhavanaescuridão,tentandolembrar-se.Amedidaqueolhava,convencia-sedequealiocorreraofatomais importantedesuavida.Ofatoqueotransformaraparasempreequenuncavoltariaarepetir-se.
Aoladodomotel,viuorestaurantecomasamplasjanelasen-vidraçadaseasletrasemneonazul;noamplo estacionamento havia*três caminhões.Lambris demetal, pintados de verde-escuro, revestiam aparedelateraldomotel,protegendo-odovento.Naalaàesquerdasituavam-seosdezquartosdeportasverdes.Entreasduasalas,erguia-seumaconsruçãodedoisandares;notérreo,arecepçãodomotel;nopisosuperior,aresidênciadosproprietários.Aalaleste,emformade“L”,abrigavaseisquartosnosetormaiorequatronomenor.
DomvoltouascostasparaomoteleencarouapaisagemescurapontilhadapelosfaróisdosveículosquepercorriamaRodovia80.Maisalém,avastidãointermináveldaplanícieestendia-seemdireçãoaosul.Nocéu,muitoaolonge,juntoaohorizonte,aindabrilhavaumanesgaalaranjada.
Cadavezmaisassustado,Domcontornouomotel,eencontrou-senovamentediantedorestaurante.Dirigiu-separaaentrada,arrastadoporumpoderquesóconheciadesonhos.Quandotocouamaçaneta,ocoraçãopareciaprestesasaltar-lhedopeito.TinhaquefugirlComgrandeesforço,porém,controlou-se,abriuaportaeentrou.
Olugareraamplo,limpoeiluminado.Osmaisdeliciososaromaspairavamnoar:cebolas,batatasfritas,presunto,carne.Semprecommedo,masdecididoalutarenquantopudesse,eleseaproximoudeuma das mesas. No centro da toalha, viu um açu-careiro, vidros de catchup, mostarda e molho depimenta,umsaleiroeumcinzeiro.Apanhouosaleiro,semsaberporquê.Ede
repentelembrou-sedequeocuparaaquelamesmamesanoverãoretrasado,quandochegaraaomotel.Deixaracairumpoucodesalsobreamesae,quasesemperceber,jogaraumapitadaparatrás,porcimadoombro.Eosalatingiraorostodamoçaqueseaproximavaàssuascostas.
Oquepoderiahaverdeimportanteemtãobananalincidente?Domnãosabia,mastinhacertezadequeexistiaumaresposta.Talvez...porcausadamoça?Quemeraela?Umadesconhecida.Pormaisquetentasse,nãoconseguialembrar-sedesuaaparência.
Ocoraçãoaindabatiadescompassado,acelerado,comoselhedissessequeestavaàsportasdeumadescoberta devastadora. Ele deixou o saleiro sobre a mesa e, de olhos arregalados, sem entender aemoçãoquemalodeixavarespirar,caminhouatéajanelaenvidraçada.Naquelamesasentara-seamoça.
—Desejaalgumacoisa?Dom viu a garçonete aproximar-se, notou seu suéter amarelo, percebeu que ela lhe dizia alguma
coisa,masnãoconseguiuresponder.Acadasegundo,aumentavaacertezadequepoderiarecordar-se.Aindanãosabiaquelembrançaestavaali,aoalcancedamão,porémsentiaqueahoraseaproximava.Amoçasentara-seàquelamesa...eeralinda...iluminadapelaluzdeourovelhodosolpoente.
—Osenhorestábem?Amoçapediraojantar,eDomcontinuaracomendo.Osolescondera-se,anoitecaíra,e...Não\A lembrança esteve a um palmo da tona,muito próxima da superfície, quase conseguiu romper a
membrana que a separava da luz, chegou quase à consciência, fugiu novamente para as profundezasnegrasondevivia,acossadapelomedo.ComoseDomestivesseaumpassodeencararafacemonstruosadosenhordosinfernos,jánãoquerialembrar-se!
Virou-se, deu as costas à garçonete e correu. Sabia que havia gente olhando, sabia que estavafazendopapeldelouco,masnadaimportava.Tinhaquefugir...parafora,paralonge.Passoupe-
Iaporta,empurrou-acomforçaeviu-sedevoltaaoestacionamento,frenteafrentecomocéuescuro,multicorquasenegro.
Omedodopassado.Omedodofuturo.Omedo,principalmente,denãosaberporqueestavacommedo.
Chicago,IllinoisBrendanCroninadiouoquetinhaadizerparadepoisdojantar,quandoopadreWycazik,debarriga
cheiaeanteaperspectivadeumcálicedeconhaque,atingiaopontoculminantedebomhumordiário.Atéentão,dedicou-seacomer:repetiuasbatatas,avagemeopresunto,permitindo-seatéumafatiaextradepãofeitoemcasa.
Voltara-lheoapetite,masafécontinuavadistante.Deinício,depoisdedescobrirquenaoacreditavaemDeus, vivera dias domais negrodesespero, o coração comoumvazio grande e pesadodentro dopeito.Ultimamente,porém,nãosesentiadesesperado,eovazio,apesardeaindaexistir,pesavacadavez
menos.Começavaadescobrirquealgumdiavoltariaaviverumanovavida,cheiadesignificadoevalor,semnadaavercomaIgreja.ParaBrendanCronin,cujosprazerestemporaisjamaishaviamsuperadoaalegriaespiritualdaSantaMissa,simplespossibilidadedeumavidaforadaigrejaeramaisdoqueumaautênticarevolução.
Ofatodeque,desdeoNatal,tivesseevoluídodoateísmoparaumagnosticismoqualificadotalvezexplicasseo fimdodesespero.Desdeháalgum tempoexaminavaapossibilidadedeexistirumpodersuperior,diferentedeDeuseigualmentesobrenatural.
Terminadaarefeição,opadreGerranovoltouaoquarto,pararetomara leituradoúltimolivrodeJamesBlaylock,cujashistóriasfantásticas,compersonagensaindamaisfantásticas,agradavamtambémaBrendan,maspareciaminsuportavelmenteinacreditáveisaorealismoindestrutíveldopadreWycazik.
—Blaylockescrevebem,mas,quandoacabodelerumdeseuscontos,ficocomasensaçãodequenadadoqueexisteéoquepareceser...edetestoessasensação—resmungouovelhocura.
— Épossívelquenadadoqueexistesejaexatamenteoquepareceser...—comentouBrendan,seguindo-oatéoescritório.
Stefanbalançouacabeça semdeixar-secovencer eporummomento, à luzdaescada, seucabeloprateadobrilhoucomoaço.
— Nadadisso.Quando leioparamedistrair, prefiro livrosqueme façammergulhar fundo, decabeça,narealidadedavida.
Brendansoltouumagargalhadaereplicou:— Se existe céu, eu gostaria de chegar lá com o senhor só para vê-lo encontrar-se comWalt
Disney.Seriamaravilhosoassistiraumadiscussãoentreosdois...Disneydefendendoodireitohumanoàfantasia, e o senhor tentando convencê-lo de que melhor seria produzir desenhos animados compersonagensdeDostoiévs-ki,emvezdeperdertempocomMickeyMouse.
Opárocosorriu,serviudoiscálicesdeconhaque,acomodou-senumapoltronaefezsinalparaqueBrendantambémsesentasse.
Eraahoraperfeitaparacontar-lhesuadecisão.—Seosenhornãotivernadaaopor—começou—,gostariadefazerumaviagem.Poderiapartir
nasegunda-feira.PrecisoiraNevada.—Nevada?—StefanpronunciouonomedoEstadocomosefosseodealgumpovoadoperdido
naselva.—PorqueNevada?—Eparaláquemechamam.Ontemànoite,osonhorepetiu-se.Viapenasumaluzmuitobrilhante,
masadivinheiqueolugaréElkoCounty,Nevada.SeiqueprecisovoltarláparadescobriroquecurouEmmyeressuscitouWinton.
—Voltar?Masvocêjáestevelá?—Noverãoretrasado.AntesdevirparaSantaBernardette.DeRoma,aodeixaropostoaoladodeMonsenhorOrbella,BrendanforaparaSanFranciscoentregarumaencomendadeseuorientador.Passaraduassemanas
comobispoJohnSantefiore,velhoamigodeOrbella.Obispotrabalhavanumlivrosobreahistóriadaseleiçõesdospapas;omonsenhorenviara-lheimportantematerialdepesquisaeencarregaraBrendanderesponderaqualquerperguntaqueoconfradetivesse.Otempovoara.Foram
diasde trabalhoeautênticoprazer intelectual,nacompanhiadeJohnSantefiore,homemdehumorfinoeinteligente.
Missãocumprida,Brendandecidiratirarduassemanasdefériasantesdeapresentar-seemChicago,suacidadenatal.PassaraalgunsdiasemCarmel,napenínsuladeMonterey,alugaraumcarroeiniciaralongaviagem,deumladoaoutrodopaís.
OpadreWycaziksegurouocálicecomasduasmãoseinclinou-se.—Lembro-medequevocêestevecomobispoSantefiore,mashaviameesquecidodaviagemde
carro—declarou.—FoinessaviagemquevocêpassouporElkoCounty,Nevada?—Foi.FiqueihospedadonoMotelTranqüilidade.Tinhaidéiadepassarsóumanoite,maseratão
agradáveleapaisagemtãobonita,queacabeimedemorandoumpoucomais.Agoraprecisovoltar.—Mas...Porquê?Oqueaconteceulá?Brendandeudeombroserespondeu:—Nada.Descansei,dormi,liumoudoislivros,vitelevisão.Atelevisãoeraótimaporqueomotel
tinhaantenaparabólica.Ovelhocurarecostou-senapoltrona,sobrancelhasfranzidas.—Estranho...—disse.—Porummomentotiveaimpressãodequesuavozmudou.Pareceufria...
comoserepetisseumdiscursodecorado.—Euestavafalandosobreomotel.— Mas... senãohouvenadadeespecialemElkoCounty,oquevai fazer lá?Oqueacontecerá
quandochegar?—Nãosei.Masalgomedizquevãoacontecercoisas...inacreditáveis.OpadreWycazikperdeu apaciência e foi direto ao assuntoque sempre lhe interessavamaisque
qualqueroutro:—VocêacreditaqueDeus...oestáchamando?—Achoquenão,maspodeser.Querosairdaquicomsuapermissãoesuabênção...Mas,setiver
queirsempermissãonembênção...assimserá.Precisoir.Esquecendo-sedoshábitosquecultivavaapósojantar,Stefanvirouocálicedeconhaqueequaseo
esvazioudeumgolesó.—Achoquevocêdevemesmoir—disse.—Masnãosozinho.—Osenhor...gostariadeviajarcomigo?—Mesmoquequisesse,nãopoderiadeixaraparóquia.Mastalvezsejainteressantequevocêleve
alguémpara testemunhar...oquequerqueaconteça.Umpadreque tenha tidocontatocommilagresouapariçõessobrenaturais.
— Refere-se a um desses fanáticos que recebem autorização do cardeal para andar por aíinvestigandoimagensdesantasquechoramoucrucifixosquesangram?
Semsealterar,opadreWycazikfezquesimcomacabeça.— Acertou em cheio. Um padre que conheça o processo de autenticação de aparições. O
monsenhorJanney,daarquidiocese,temmuitaprática.Brendanrespiroufundoeconcluiuqueteriadesacrificarafédeseusuperiorparapoderviajarem
paz.—Nãohánadademilagrosonoqueaconteceucomigo—declarou.—Nãofuiagentedamãode
Deus.NãoénecessáriodaressetrabalhoamonsenhorJanney.Garanto-lhequeoqueaconteceulánãofoiobradeDeus,nemveículodemanifestaçãodavontadedivina.
—EporqueinsisteempensarqueDeustemsemprequeseróbvioesemimaginação?—Ovelhojásaboreavaavitóriadeseusargumentos.
—Estouenvolvidoemfenômenospsíquicos.—Bobagem!Fenômenospsíquicossóservemparaexplicaraospobresdescrentesascoisasque
nãoconseguementenderporquemostramapresençadeDeus.Pensebem!Abraocoração...edescobriráque Deus o chama de volta a Seu santo abrigo. Tenho certeza de que você será testemunha de umaapariçãodivina.UmanovavisitaçãodoAltíssimo!
—EporqueoAltíssimonãomevisitaaquimesmo?PorquemefazviajaratéNevada?—Talvezparatestarsuafé...ousuaobediência.—OpadreWycazikcorrigiu-se:—Parafazervocêmesmodescobrirquedesejareencontraraféperdida.—EporqueNevada?PorquenãonaFlóridaounoTexas?ouemIstambul...—“Sãotortuosososcaminhosdosenhor”...—EporqueDeusteriatantotrabalho,apenasparasalvaraalmadeumpobrecomoeu?—ParaEle,quefezaterraeocéu,nãoétrabalhoalgumapareceremNevada.EDeussabequea
salvaçãodeumaalmaétãoimportantequantoasalvaçãodeummilhãodealmas.—Entãoporquepermitiuqueeuperdesseafé?—Parafazê-lorefletireamadurecer.TalvezDeusaindavenhaaprecisardevocêeofazpassarpor
essaprovaçãoparaquevocêsaiadelafortalecido.Brendansorriue,balançandoacabeça,comentou:—Osenhorsempreencontraumaresposta,nãoé?—Deusmedeucabeçaboaelínguarápida...—replicou,encostando-senapoltrona,satisfeito.Todos conheciam sua reputação de salvador de padres tresmalhados e sabiam que ele jamais
desistia. De qualquer modo, Brendan não queria viajar para Nevada com monsenhor Janney noscalcanhares.
De sua poltrona, Stefan olhava-o comcarinho,mas com firme e evidente determinação de não sedeixarenvolveremargumentossimplórios.Seusolhosbrilhavam,antecipandooprazerdedestruirtodasasfalsasverdadesdojovemconfrade.
Brendansuspirou...Tinhaumlongoserãopelafrente!ElkoCounty,NevadaDomsaiucorrendodorestaurante,parouporummomentonafrentedarecepçãoeentrou.Encontrou
umacenaque,àprimeiravista,pareciabrigademaridoemulher.Erabemmaisgrave.Ohomem,decalçabegeesuétermarrom,estavaparadonomeiodasala.Maisaltoemusculosoque
Dom,pareciafeitodeumtroncodeárvore.Ocabelogrisalhoeaslinhasmarcadasdorostoindicavamquejápassavadoscinqüenta,masestavaconservadoeemboaforma.
Tremiadospésàcabeça,comonumacessoderaiva.Asuafrente,amulherpareciaesperaransiosaqueoacessopassasse.Eraloira,deolhosazuis,maisjovemdoqueele.Domaproximou-seepercebeuquenãosetratavadeumacessoderaiva:ohomemtremiademedo!
—Acalme-se—dizia-lheamulher.—Controlearespiração.Elepareciasufocado,acabeçacaídasobreopeito,osombroscurvados,osolhosbaixos.— Inspiredevagar...Umavez... outra...Lembre-sedoqueodr.Fontelaine falou.Quandovocê
estivermelhor,sairemosparadarumavolta.—Não!—gritoubalançandoacabeçacomforça,deumladoparaoutro.—Vamos,sim,claro.—Amulhertocou-lheobraçocomcarinho.—Vamossairumpouco,evocê
veráqueaescuridãoaquiéigualàdeMilwaukee.Acalme-se,Ernie...ErnielOnomefezDomestremecer,lembrando-sedospôstersemReno.UmdosnomesqueLomack
escrevera,alémdoseu,eraErnie!—Precisodeumquarto—Domaproximou-sedamulher.—Lotaçãoesgotada.—Viosinal,ládaestrada...Penseiquetivessemvagas...—Sim,sim...estábem...Masnãoagora!Váatéorestaurante,dêumavoltaevenhamaistarde.
Porfavorl
Nessemomento,ohomemberrou,horrorizado:—Aporta!Fecheessaportaantesqueaescuridãoentre!— Não!— a mulher respondeu, a voz firme, mas os olhos cada vez mais assustados.— A
escuridãonãovailhefazermal.Enãovaientraraqui.—Ela...estáchegando...—ohomemgemeu.Domviuderepentequetodasasluzesdasalaestavamacesasapontodoofuscaremavista:lâmpadassobreamesa,noteto,nosabajuresdohastelonga.—Oh,peloamordeDeus!—exclamouamulher.—Fecheessaporta!Domobedeceueentrounasala.—Nào...Porfavor,saiuefecheaporta...Ernieolhava,alucinado,paraorostodooutroeparaajanelaenvidraçada:~Elaestáaí...—gemia.—Bemaí,doladodefora...Vaiquebrarosvidros...vaientrar...Dom fechou os olhos para não ver aquele rosto transtornado de ,medo. O mesmo medo que o
enlouquecianascrisesdeso-nambulismoqueolevavamapregarjanelaseesconder-seemarmários.Asuafrente,amulhercomeçavaadescontrolar-se.— Por favor!Saia!Meumaridoénictófobo...Sofredecrisesagudasdemedodoescuro, e eu
precisocuidardele!Ernie...eFaye!—Estábem,Faye...Masachoquetambémpossoajudá-lo.Elafitou-ointrigadaegaguejou!—Eu...jáoconheço?—Nãosei.MeunomeéDominickCorvaisis.—Nuncaouviessenome.—Fayevirou-seecorreuparaimpedirqueErniefugisseparaoquarto.—Tenhoquesubir...parafecharascortinas...Tenho...—Nãofuja\Vocêprecisaenfrentaressemedoparapodercontrola-lo...—Segurou-opelobraço,
masnãoconseguiudetê-lo.Comumsalto,Domplantou-seàfrentedaescada,colocouasmãosnosombrosdeErnieedeteve-o.—Vocêtemtidopesadelos—disse.—Quandoacordanãoconsegueselembrardenada...mas
nospesadelosvocêvê...aLua!Fayetapouabocaparanãogritar.Ernielevantouacabeçaeengoliuemseco.—Comoéquevocêsabe?!—Porqueeutambémtenhotidopesadelos...hámaisdeummês.—Domrespondeu,sério.Tdoasasnoites.Eseideumhomemquesofreutantocomosmesmos
pesadelosqueacabousesuicidando.ErnieeFayenãotiravamosolhosdeseurosto.—Emoutubro—elecontinuou~comeceiasolrertlesoinimbulismo.Saíadacamaemeescondia
pelos armários, ou reunia umverdadeiro arsenal à volta da cama parame proteger.Umanoite, tenteipregara janeladoquarto.Estáentendendo?Tenhomedodealgumacoisaquevemdaescuridão...Soucapa/, de apostar que temosmedo damesma coisal Não só da escuridão, mas de alguma coisa queaconteceuláforanoverãoretrasado...numiimdesemanadoverãoretrasado!
—Nãoentendo...—Ernievoltouacabeçanadireçãodajanela,maslogofechouosolhos.—Vamossubirparavocêfecharascortinaseacalmar-se—Domafastou-separadeixá-lospassar
e seguiu-os. — Vou-lhes contar o que sei. O mais importante, porém, já aconteceu: nós nosencontramos!Enãoestamossozinhos...nemvocês,nemeu!GraçasaDeus!
NewHavenCounty,ConnecticutComoumrelógio.OsassaltosplanejadosporJackTwistfuncionavamcomoumrelógio.Ocasodo
carroblindadonão fugiuà regra.Anoiteestavanublada, semestrelas, sem luar.Nãonevava,masumvento frio e úmido soprava do sudoeste. O carro da transportadora de valores atravessava o campodeserto,vindodenordesteemdireçãoaobarrancodeonde JackoobservaranavésperadeNatal,osfaróiscortandoaneblinacerrada.Noscamposcobertosdeneve,aestradaescuradesenrolava-secomoumafitadecetimnegro.
Vestidonumtrajebrancodeesquiador,ocapuzerguidosobreacabeça,ocorpoimóvelsobreaneve,Jackvia-oaproximar-sedobarranco.Dooutroladodaestrada,nomesmopontoondeestiveradetocaia,seu companheiroChadZepp também esperava.O terceiromembro do grupo,Branch Pollard, tomavaposiçãoencostadoaobarranco,comumpesadofuzil.
Ocaminhãoestavaaduzentosmetros,easluzesdaslâmpadasdecarroceria,refratadaspelaneblina,cortavamaescuridão.Derepente,ocanodofuzilbrilhoualgunscantímetrosacimadobarranco.Umtiroecoounovazioeospneusrangeramnoasfaltomolhado.
Aqueleera,talvez,omelhorfuzildecombatejamaisfabricado.Podiaacertaroalvoàdistânciadequase um quilômetro, atravessar o tronco de uma árvore ou furar com seus projéteis uma parede deconcreto,matandoquemseescondessedooutrolado.Naquelanoite,contudo,oplanodeJacknãopreviaamortedeninguém.Comoauxíliodamira telescópica,Pollardacertaracomprecisãooalvo:opneudireitodocarroblindado.
Oveículodesgovernou-seederrapou.Jacklevantou-seecorreu.Saltouumaravinaedeslizouatéaestrada,postando-seàfrentedocarro,grandecomoumtanquedeguerra.Noúltimomomento,quandojápareciacondenadoaespatifar-senoacostamentodaestrada,omotoristaconseguiucontrolaroveículoeparouamenosdemeiometrodeJack.
Na cabine, os guardas aflitos tentavam contato pelo rádio. Perda de tempo.Nomomento em quePollardatirou,ChadZepp,aindaescondidonaneve,acionouumtransmissormovidoaba-teriacriandoumcampodeinterferênciaestáticaquetornavaimpossívelqualquercomunicaçãonaquelafreqüência.
OventolevantavaondasdenévoabrancaeJacksentia-senu,alinomeiodaestrada,osolhosaindaofuscados pelos faróis, esperando o melhor momento para alvejar a grade do motor. Seu fuzil, defabricação inglesa, projetado a pedidodas forças encarregadas de combater o terrorismo, possuía umcalibre suficiente para lançar cápsulas blindadas de gás lacrimogêneo com alto impacto, capazes deatravessarqualquerporta, janelaoubarricada.Nomomento emque Jackacionouogatilho, oprojétilvarouagradedocarro,alojando-senocompartimentodomotor,eacabinefoiinvadidaporumaondadevaporamarelo,quesubiapeloscanaisdeventilação.
Osguardasdaempresatinhaminstruçõesclarasparanãoaban-donaroveículo,consideradooabrigomaisseguroemhorascríticas,porcausadalatariablindadae
dosvidrosàprovadebalas.Pararespirar,dependiamdoscanaisdeventilaçãoporondeentravaogásdabombae,assim,acabaramforçadosasair,tossindo,espirrandoepraticamentecegospelaslágrimas.Omotoristaaindasacouorevólveretentoufazermira,porémJackdesarmou-ocomumpontapé,agarrou-opelocasacoearrastou-oparaafrentedocarro,ondeoalgemouaumdosferrosdacarroceria.
Depoisdeatirarnopneu,BranchPollarddeixouseupostoeaproximou-sedogrupo.Naqueleexatoinstante,dooutroladodacarroceria,algemavaoguarda.
Os dois homens piscavam e piscavam, procurando ver os rostos dos assaltantes. Outra perda detempo:ostrêsusavammáscaras.
Livres dos guardas, Jack e Pollard correram para a traseira do carro, apressados, embora nãohouvesse riscode serem surpreendidospor algumeventualmotorista quepassasse.Atéqueo serviço
estivesseconcluído,nãoaparecerianinguém,porquedoisoutrosmembrosdogrupohaviambloqueadoaestradacomdois caminhões roubados, equipadoscomaparelhosde sinalizaçãodapolícia rodoviária.Agora, num cenário impressionante de luzes coloridas, cavaletes e bandeiras de sinalização,encarregavam-sededesviaroescasso trânsitodohorário, informandoaosmotoristasqueocorreraumgraveacidentepoucosquilômetrosadiante.
Comoumrelógio.QuandoJackePollardchegaramàtraseiradocaminhão,encontraramZeppapostos.Aluzdeuma
lanternaquefixaraàportadeaço,eletrabalhavaparaabrirocompartimentodecarga,fechadoasegredocomo um cofre. Estavam equipados com explosivos, mas, tratando-se de um carro de transporte devalorestãoprotegidocomoaquele,haviaoriscodefundirtodoomecanismoaoexplodirafechadura.Oidealeraabrirocofredestravandoafechadura.
Os carros mais antigos tinham cofres que operavam com duas chaves simultâneas; outros tinhamfechaduradesegredo;masaqueleeraequipadocomumtipodecofrequesópodiaseraberto
com uma sequência de números digitados numminiterminal de computador, poucomaior que ummaçodecigarros,instaladonacabine.Paraativaromecanismoetrancarocofre,bastavaoguardafecharasportastraseirasedigitarosegundodeumasériedetrêsnúmerospreviamenteprogramados.Paraabri-lo,eraprecisodigitaros trêsnúmerosnaordemcorreta,numcódigo trocadodiariamenteeconhecidoapenaspelomotorista.
Há mil combinações possíveis de seqüências de três algarismos escolhidos entre dez. Cadacombinação exigiria de quatro a cinco segundos para ser testada, sem falar no tempo necessáriopara descobrir sua validade. No total, necessitariam de uma hora e quinze nainutos para todas ascombinações.Arriscadodemais.
ChadZeppretirouatampadafechadura.Asdezteclasnumeradascontinuavamintactas,mas,sematampa,erapossívelexaminarmelhoromecanismo.PenduradaaoombrodeZepp,estavaumapastadeexecutivoe,dentrodela,umcomputadorportátil,capazdeanalisareabrirqualquercofrecontroladoporcircuitoseletrônicos.EraumaparelhodeusoreservadoaosserviçosdeinformaçãodoExército,oquetornavacrimedeferalosimplesfatodeumcidadãocomumpossuí-lo.Paracomprarseuaparelho,JackviajaraàCidadedoMéxicoepagaravinteecincomildólaresaumtraficantedearmas,oqualmantinhacontatoul-tra-secretocomumdosengenheirosdaempresafabricantedocomputador.
Zepp abriu amala e ligou o aparelho, apoiando-se demodo que Jack e Pollard pudessem ver opequenomonitor,aindaescuro.Ocomputadoroperavacomtrêscabosretráteis,umdosquaisJackretiroudo compartimento onde estava guardado; parecia um termômetro demercúrio, ligado ao aparelho pormetro e meio de fio. Jack aproximou-se da fechadura e examinou detidamente os fios que seemaranhavam,sobasteclasnumeradas.Tomouo“termômetro”einseriu-oentreduasteclas,juntoàbasedadonúmeroum.Omonitorpermaneceuescuro.Tentouentãoatecladois,tambémsemresultado.Eatrês.Aotocarabasedobotãoquatro,contudo,apalavraLIGADOapareceunomonitor,
seguidadeváriosnúmerosqueindicavamaintensidadedacorrenteelétricadocontato.Sabiam, agora, que o segundo algarismo da seqüência de três, programada pela segurança para
aqueledia,eraquatro.Depoisdeguardarnocofreossacoscontendodinheiroechequesrecolhidosnoúltimopontoemquepararam,oguardaapertaraateclaquatroetrancaraocofre.Ocontatopermaneceriaacionadoatéquetodoocódigofossedigitadonomonitor,esóentãoseriapossívelabrirocofre.
Sem conhecer nenhum dos três algarismos, Jack precisaria encontrar uma combinação, entre milpossíveis.Tendojádescobertoosegundodessestrêsalgarismos,aprobabilidadededescobrirosoutrosdoiscresciamparaumaemcem.
Indiferente ao vento que continuava a soprar forte, tirou outro dos instrumentos ligados ao
computador:umcabosemelhanteaoprimeiro,comumapontafinaparecidacomumpinceldeaquarelade uma única cerda, que brilhava, resistente e flexível.Com a “cerda” luminosa, Jack foi tocando oscontatosàbasedosbotões,atéqueomonitormostrouodiagramadeumconjuntodecircuitosintegrados.
A “cerda” era a extremidade de um equipamento laser de leitura de circuitos integrados, primosofisticadodeoutrosistemadeleitura,usadonossupermercadosparadecodificarospreçosimpressosno conhecido código de barras. No caso do computador de Jack, a programação fora feita paradecodificarcircuitosligadosemostrá-losnomonitor,emdiagrama.Omonitorpermaneciaescuroatéa“cerda” tocar todos os pontos interligados pelo circuito. Nesse momento, processadas todas asinformaçõesnecessárias,oaparelhoreproduziafielmenteocircuito.
Jackrepetiuaoperaçãotrêsvezes,colocandoa“cerda”emcontatocomtrêspontosdiferentes,atéocomputador armazenar informações suficientes para reestruturar e reproduzir orga-nizadamente asinformaçõesparciaisquechegavamasuamemória.Odiagramabrilhounominúsculomonitor.Depoisdetrêssegundosdeanálisedeprobabilidades,ocomputador traçoucírculosde luzverdeàvoltadedoispequenospontosdodiagrama, indicandoquealihaviamáximaprobabilidadedecorrenteacionada.Aseguir, apareceu no vídeo a imagem do miniteclado, superposta ao diagrama que acabava de serdesenhado.Umdoscírculoscobriaateclaquatro.
—Aíestá—disseJack.—Númeroquatro.—Querqueeuajude?—Pollardperguntou.—Naoénecessário.Jackguardoua“cerda”deleituraópticaepuxouumterceirocaboqueapresentavanaextremidade
livre uma espécie de teia esponjosa, de material impossível de determinar, que os fabricantesidentificavamcomumapequenaetiquetaondeselia“cabodeIntervenção”.Jackcolocousuapontaemcontatocomabasedateclaquatro,movendo-adevagarparaafrenteeparatrás,atéqueocomputadordeusinaleapalavraINTERVENÇÃObrilhounovídeo.EnquantoJackmantinhaocaboemcontatocomos fios do terminal da fechadura, Chad Zepp segurava o aparelho e Pollard usava o teclado paratransmitir instruções.Apalavra INTERVENÇÃOapagou-se e surgiuumanova informação:SISTEMASOB CONTROLE. A partir desse momento, o computador podia enviar instruções diretamente aomicrocircuito que guardava o código do cofre. Pollard continuou a digitar instruções ao teclado doaparelho,queastransformavaemseqüênciasdetrêsnúmeroscomoalgarismoquatronaposiçãocentral,à velocidade de uma combinação a cada seis centésimos de segundo. Nove segundos depois, ocomputadordescobriaqueacombinaçãocinco-quatro-cincoabriaocofre.Quatroestalidosdelin-güetasdeaçodeslizando...eocofre,conformeoprevisto,escancarou-se.
Jack guardou o “cabo de intervenção” e desligou o sistema. Haviam-se passado apenas quatrominutosdesdeomomentoemqueotirodefuzilfuraraopneudianteirodocarroblindado,rompendoatranqüilidadedanoite.
Comoumrelógio.EnquantoZepppenduravaaoombroaalçadecourodapastaqueguardavaocomputador,Pollardentravanocofre.Bastavaapanharecarregarodinheiro.Zeppriadepurafelicidade.Assobiando,Pollardpuxavaosmalotesdelona.Jackcontinuavacomo
sempre,nosúltimostempos:decoraçãofrioeoco.Algunspequenosflocosdenevevoaramcomaneblina.A mudança que Jack vinha descobrindo em si mesmo desde algumas semanas parecia ter-se
completado.Asensaçãodevingar-sedomundooudasociedadejánãooemocionava.Sentia-sesemraiz,solto,desgarradoesemsentido,comooflocodenevearrastadopeloventoqueviaflutuaraoacaso.
ElkoCounty,Nevada
Para ter certeza de que poderiam falar em paz, Faye acendeu o luminoso de LOTAÇÃOESGOTADA.
Sentadosàvoltadamesadacozinhadoapartamento,noandarsuperiordomotel,comasjanelasbemfechadas,osBlocktomavamcaféeouviam,quasesempoderrespirar,oqueDomlhescontava.
Apenasumavezfranziramassobrancelhas,nãoacreditandonorelato.FoiquandoDomlhescontoudacirandaderecortesdeLuanacasadeLomack,emReno.Maselefalavacomtantasegurança,comtaisdetalhes,comapeledosbraçostãoarrepiadaque,deumpontoemdiante,suaemoçãopassouacontagiá-los.
As duas fotos recebidas pelo correio pouco antes de Dom viajar também os deixaram muitoimpressionados.Examinaram atentamente o rosto do padre sentado junto àmesa e afirmaramque nãohaviadúvidasdequeafotoforatiradanumdosquartosdomotel.Aoutrafoto,daloiradeitadacomaagulha intravenosa espetada no braço, não mostrava detalhes do ambiente, mas Faye reconheceu aestampa da colcha, cuja ponta aparecia a um canto.Era uma das colchas usadas nomotel até poucosmesesantes.
ParasurpresadeDom,osBlocktinhamumafotoamostrar.Ernielembrou-sedetê-larecebidonumenvelopebranco,aos10dedezembro,cincodiasantesdepartiremparaMilwaukee.Faye
levantou-se, foi apanhá-la na gaveta do balcão da recepção, colocou-a sobre a mesa, e os trêsaproximaram-se atentos. Três pessoas, certamente pai, mãe e filha, parados diante do quarto número9,vestidosdeshortecamiseta,calçandosandálias.
—Sabemquemsão?—PerguntouDom.—Não.—Fayerespondeuporelaepelomarido.—Mastenhoaimpressãodequedeveriamelembrar...—Er-niebalançouacabeça.—Hásol...Elesestãovestindoroupadeverão...Assim,érazoávelsuporqueafotofoitiradano
verão retrasado...—Dompensou emvoz alta.—Naquele fimde semana, eles estavamaqui.Devemfazerpartedoqueaconteceu.Devemservítimas,comonós.‘Enossocorrespondenteanônimoquerquepensemosneles...quenoslembremos...
— Seja láquemforqueestámandandoessas fotos,deve ter sidoumdosqueapagaramnossaslembranças.Nessecaso...porquenosfarialembrar,depoisdetantotrabalhoparanosfazeresquecer?
Domergueuosombrosereplicou:—Talveznãoestivessedeacordocomoquefizeramconosco.Talveztenhasidoobrigadoaagir
contravontade...Talvezandedeconsciênciapesada.Sejacomofor,éevidentequetemmedodeaparecereidentificar-se.Masestátentandonosalcançarporviasindiretas.
Derepente,Fayesaltoudacadeiraedirigiu-separaaescada.— Passamoscincosemanasforadecasa!—exlamou.—Hátoneladasdecorrespondênciaque
aindanãoexaminamos...Talvezhajamaisfotos!Ouvindoospassosdaesposapelaescadaabaixo,Ernieexplicou:— Sandy, a garçonete do restaurante, separa a correspondência e paga as contas. Nossa
correspondência pessoal é deixada na caixa. Chegamos hoje e passamos o dia arrumando o motel.Esquecemosdeveracaixa!
Fayevoltoucomdoisenvelopesbrancos.Excitados,abriramoprimeiroeláestava:outrafoto,dessavezmostrandoumhomemdeitadodecostascomagulhaintravenosanobraço.Comcerca
de cinqüenta anos, começando a perder os cabelos, seria um tipo simpático em circunstânciasnormais.Naquelasitução,porém,encaravaacâmaracomolhosvazios,comoumzumbi.
—MeuDeus!—Fayemurmurou—ECalvin!—Sim...—Ernieconfirmou.—CalSharkle!Ecaminhoneiro.VivedefretesdeChicagoparaSan
Francisco.— Semprequepassaporaqui,vemcomernorestaurante.Asvezes,quandoestámuitocansado,
tomaumquartoparapassaranoite.Eumaexcelentepessoa!—Eletrabalhaparaalgumaempresa?—Domperguntou.—Não.Calédonodocaminhão.—Poderiamentraremcontatocomele?— Ora...—Erniepassouamãopelacabeça.—Todososhóspedespreenchemumafichacom
endereço.AchoqueelemoraemChicago.—Depoispodemosverificarasfichas.Vamosveroconteúdodooutroenvelope.Fayeabriuosegundoenvelopeeláestavaoutrafoto,comoutrohomemdeitadonumadascamasdo
MotelTranqüilidadecomagulhaintravenosanobraço.Seurosto tambémeravazio,ausenteeosolhoslembravamosmortos-vivosdos filmesde terror.Esse,porém,os três reconheceram instantaneamente:eraDom.
LasVegas,NevadaQuando chegou sua hora de ir para a cama,Mareie ainda estava sentada àmesinha do quarto, às
voltascomacoleçãodeluas.Jorjaobservava-adelongeeviu-acolorirumdosrecortes.Novidade...No espaço de uma semana, desde que iniciara a coleção, a menina enchera o álbum. Como não
dispunha demuitas fontes para arranjar recortes, desenhava luas para preencher os vazios do álbum,usandomoldesdetodosostiposetamanhos:tampinhasdegarrafa,moedas,pires,vasos,copos,latas.Eosmaisdiversosmateriais:embalagemdebala,sacosdesupermercado,envelopes,papeldeembrulho.Nãopassavamuitotempoocupadacomo
álbum,masJorjacomeçavaaperceberque,diaadia,otempodedesenharluasaumentava.Naopiniãododr.TedCoverly,opsicólogoquetratavadela,Mareienãoteriaconseguidosuperar
completamente a ansiedade em relação aos médicos. A diferença agora era que a expressava pelapreocupaçãocompulsivacomoálbum.
Quando Jorja observou que Mareie não lhe dava a impressão de ter medo da Lua, o médicorespondeu:
— Bem, há váriasmaneiras demanifestar ansiedade.A fobia é uma dessasmanifestações.Háoutras,como,porexemplo,asobsessões.
Pormaisqueelefalasse,porém,Jorjanãoconseguiaacalmar-se.Nementender.— A terapia temesseobjetivo—diziaCoverly—Existeprecisamentepara fazercomqueas
pessoasentendam.Nãosepreocupe...Maselacontinuavacadavezmaispreocupada.Tinhadeestar,porqueAlansuicidara-senavéspera,
eelaaindanãocontaranadaàfilha.Aosairdoapartamentode“Pimentinha”Carrafield,telefonaraaodr.Coverlyparapedir-lheconselho.OmédiconãoacreditavaqueAlan tambémandasse tendopesadeloscomaLua;disseraqueprecisavadetempoparapensar,masachavaque,enquantoisso,pelomenosatésegunda-feira,seriaconvenientepouparMareiedenovasemoções.
—Venhacomela—recomendara-lhe.—VamosfalarjuntoscomMareie.Jorjatemiaque,apesardaindiferençadeAlan,ameninasofresseterrivelmentecomamortedopai.
ParadajuntoaoquartodeMareie,vendo-apintarumadesuasluas,sentiu,derepente,oquantosuafilhaerafrágilevulnerável.Tinhasóseteanos,estavanasegundasérie,maltocavacomapontadospésnochão quando se sentava nas cadeiras da sala. Era um milagre que continuasse viva... quando tantoshomens fortes, demúsculos poderosos,morriam a todo instante.Como seria fácil, para um anjomau,arrebatar-lheaquelacriança!Jorjasentiaocoraçãodoerdeansiedadeeamor.
—Éhoradedormir,querida...—disseafinal.—Vávestiropijamaeescovarosdentes.
Mareieergueuoolharcomosenãoavisse.Oucomosenãoareconhecesse.Numinstante,porém,osolhosclarearameelasorriu,umsorrisodederreterpedras.
—Oi,mamãe...Estoucolorindoumasluas...—Masjáéhoradedormir.—Sómaisumpouquinho...—Mareiepareciatranqüilaecalma,porémseguravaolápiscomtanta
forçaqueasjuntasdosdedosestavamesbranquiçadas.—Queropintarmaisalgumas.Jorja pensou em saltar sobre o maldito álbum, rasgá-lo, fazê-lo em pedaços.Mas o dr. Coverly
disseraquenãoeraaconselháveldiscutircomameninasobre“suas” luas,nemproibi-ladedesenhar,porqueissoatornariaaindamaistensaeansiosa.Jorjanãoficoumuitoconvencida,porémcontrolou-se.
—Amanhãvocêcontinuaadesenhar.Aindarelutante,Mareiefechouoálbum,guardouoslápisefoiparaobanheiroescovarosdentes.Sozinhanoquarto,Jorjaestavaapontodedesmaiardecansaço.Trabalharacomosempre,tratarado
enterro de Alan, encomendara flores e acertara os detalhes do funeral, marcado para segunda-feira.Lembrara-se até de telefonar para o pai de Alan, em Miami, comunicando-lhe a morte do filho.Estavaexausta.Quasesempensar,aproximou-sedamesinhaeabriuoálbum.
Vermelho.Asluasestavampintadasdevermelho,tantoasqueMareierecortaradejornaiserevistas,comoasdeprópriopunho.Erammaisdecinqüenta,todaspintadasdevermelho.Aansiedadedameninaevidenciava-se no cuidado que tivera para não deixar o lápis ultrapassar os contornos.De desenho adesenho,olápiseraaplicadocadavezcommaisforça.Algumasluasforampintadasmaisdeumavezeestavamtãovermelhasquepareciamúmidas.
Opior era a cor.Vermelho, semprevermelho.Como seMareiemergulhasse aospoucosnummarescuro,pressentindosangue.
ElkoCounty,NevadaFayedesceraparaapanharolivroderegistrodehóspedesdoverãoretrasado.Aovoltar,colocou-o
sobreamesa,àfrentedeDom,eabriunasfolhasdosdias6e7dejulho,sexta-feiraesábado.— Como pensamos— disse. — Naquela sexta-feira a rodovia foi interditada por causa do
vazamento de um gás tóxico. Uma carga de produtos químicos era transportada para Shenkfield,uma instalação militar perto dali, a sudoeste. Tivemos que fechar o motel até a terça-feira seguinte,quandolimparamaárea.
—Shenkfieldéumabasemilitarondesãotestadasarmasquímicasebiológicas.Foiumacidentemuitofeio—Ernieacrescentou.
Fayecontinuouafalar,masnumavozestranha,fria,comoserepetisseumdiscursodecorado:— Aestradafoibloqueadaetivemosqueevacuaraáreaderisco.Nossoshóspedessaíramnos
próprioscarros.—Orostosemexpressão,ausente.NedeSandySarverforamautorizadosavoltarparaseutrailer,pertodeBeowawe,porqueacidadeestavaforadaáreasobquarentena.
—Mas...—Domarregalouosolhos,confusoeatônito.—Nãomelembrodenadadisso!EeuestavaaquilLembroquelimuito,continueiminhaspesquisassobrearegiãoparaumasériedecontos...Massãolembrançastãotênuesque,comcerteza,devemserfalsas.Dequalquermodo,euestavaaqui!Bemaqui,eemnenhumoutrolugar.Efoiaquiquealgumacoisaaconteceu.Apontouafotosobreamesa:—Essaéaprova.
Quando Faye voltou a falar, a voz soava ainda mais estranha, e Dom observou que seus olhosestavamparados,comosenãovissemosrostosaoredor.
—Atéliberaremaárea,ErnieeeuficamosemcasadeElroyeNancyJamison,umcasalamigo.Uma fazenda nas montanhas, a dezesseis quilômetros daqui. Foi um grande vazamento. O Exércitotrabalhoumaisdetrêsdiasparalimpartudo.Nãonosdeixaramvoltarantesdaterça-feira.
—Oquehácomvocê?—Domperguntou-lhe.—Oquê?—Fayeestremeceu.— Você está esquisita, falando de um modo estranho! Como um papagaio, repetindo frases
decoradas.—Mas...como?!—Elapareciasinceramentesurpresa.—Oquevocêachaque...—Suavozestavamuitoestranha—confirmouErnie,franzindoatesta.Semvida.—Maseusóestavacontandooqueaconteceu...—Fayeinclinou-sesobreamesaemostroucomo
dedoapáginadolivroderegistro.—Aquiestá.Tínhamosonzequartosocupadosquandoarodoviafoiinterditada.Masninguémpagouahospedagem,porquetodosforamobrigadosasair.Foramevacuados.
—Aíestáseunome—disseErnie,olhandoparaDom.—Vocêéosétimodalista.DomviusuaassinaturaaoladodoendereçoemMountainview,Utah,paraondesemudaranaquela
época.Lembrava-sedeterseregistradonomotel,masnãodepegarocarroeseguirviagemnamesmanoiteporcausadeumaordemdeevacuaçãodaárea.
—Vocêschegaramaveroacidente?—perguntou.— Não — Ernie respondeu. — Aconteceu a alguns quilômetros daqui. Os especialistas de
Shenkfieldtemiamqueosprodutosquímicosfossemlevadospeloventoedecidiramevacuarumagrandeáreaemtornodolocaldoacidente.
Comum calafrio,Dompercebeu queErnie falava nomesmo tommonocórdico e inexpressivo deFaye.Virou-separaelaeviu-aestupefata.
— Foiassimquevocêfalou—disse,apontandoparaErnie.—Vocêsdoisforamprogramadospararepetirsempreamesmahistória.
—Você...achaqueovazamentonãoaconteceu?—elaindagou.— Maséclaroqueaconteceu—Ernievirou-separaDom.—Chegamosaguardar recortesde
jornalsobreoassunto.OElkoSentinelafaloumuitosobreovazamento,masachoquejánãotemososrecortes.Atéhojeaspessoasaindacomentamoacidente,commedodoquepoderiateracontecidoseaordemdeevacuaçãodaáreanãochegasseatempo.Não,não...nempensequeinventamosessahistória!
—Sequiser,pergunteaElroyeNancyJamison—Fayecontinuou.—Vieramnosvisitarnaquelanoite.Quando chegou a ordem de evacuação, os dois se ofereceram para nos hospedar até podermosvoltarparacasa.
Domsorriu,masnãosedeuporvencido.— Odepoimentodelesvaletantoquantoodevocês...ouomeu.Seestavamaquiu,entãoviram
tambémoquevimos.Eforamobrigados,comonós,aesquecer tudo.Vãodizerquese lembramdeterlevadovocêsparacasaporqueissoéoqueforamprogramadosparalembrar.Soucapazdeapostarqueforammantidosaquinomotel,comonós,sofrendoomesmoprocessodelavagemcerebralquesofremos.
—Alguémestáelouquecendo...—Fayesuspirou.—Talvezsejaeu...— Mas, querida!—Ernie abriu os braços.—Eclaro que o vazamento aconteceu! Lemos os
jornais!Dompensounumapossibilidadequeofaziaarrepiar-sedacabeçaaospés:— Ese todosnós,queestávamosaquinaquelanoite, tivéssemossido...contaminados?Poruma
dessasarmastestadasemShenkfield...porumadessas“coisas”químicasoubiológicas?EseoExércitoe o governomontaram uma encenação para evitar pressões de opinião pública, críticas da imprensa,milhõesdedólaresdeindenizações...eadivulgaçãodealgumanotíciaenvolvendoasegurançanacional?E se resolveram interditar a rodovia e divulgar que todos foram evacuados em segurança quando,na verdade, houve gente que não foi evacuada? Poderiam ter usado o motel como uma espécie dehospital... Poderiam ter tratado de fazer com que esquecéssemos o que vimos, reprogramando
nossamemóriademodoquejamaisvoltássemosapensarnoqueaconteceu...Em silêncio, os três entreolharam-se, assustados.Não porque a explicação parecesse possível ou
razoável,masporque,pelaprimeiravez,ocorria-lhesummododeexplicarosproblemaspsicológicosqueestavamenfrentando...easestranhasfotosdepessoasdrogadas.
Umsegundodeperplexidade,eErnieeFayecomeçaramapensar.Ohomemfoioprimeiroafalar:—Nessecaso,serialógicoquenoslembrássemosdaevacuaçãoedovazamento.Comofizeram
com Faye, comigo, comNed e Sandy, com os Jamison. Por que não fariam omesmo com você, porexemplo? Por que teriam corrido o risco de programar-nos para termos lembranças diferentes?Lembrançasquenadatêmavercomaevacuaçãoecomovazamento?Nãofazsentidoeparecearriscadodemais...Oqueestoutentandodizeréqueofatodetermoslembrançasdiferenteséaprovadefinitivadequeounósdois,ouapenasvocê,outodospassamosmesmoporumalavagemcerebral.
—Nãosei—Domrespiroufundo.—Emaisummistérioparadecifrar.—Outrapergunta.Sefomoscontaminadosporalgumaarmaquímicaoubiológica,porqueteriam
permitidoquevoltássemosàvidanormal, trêsdiasmais tarde?—Erniecontinuou.—Nãohaveriaoriscodeespalharmosaepidemiaentreapopulação?
— Não, se o agente da contaminação fosse químico e não biológico.Umdesses produtos quepodemserneutralizadosporumantídoto—Domrespondeu.—Dessasdrogasquevãoperdendooefeitoàmedidaqueotempopassa.
—Nãofazsentido—Fayebalançouacabeça.—Shenkfieldéumabasedeexperiênciasdearmasde guerra. Gases que matam, gases que enlouquecem... essas coisas terríveis que o homem andainventando.Setivéssemossidocontaminadosporumadessasdrogas,jáestaríamosmortos,ouàbeiradamorte...ouàbeiradaloucura.
—Podeserumadrogadeaçãolenta—Domponderou.—Dessasquecausamcâncer,leucemia.Levamanosatéprovocaramorte.
Outrapossibilidadeassustadoraqueaindanãolhesocorrera.Emsilêncio,ouviramorelógiodarashoras,oventosoprarentreasfrestasdasjanelas,pensandono
tipodedesgraçaquepoderiaestargerminandoemsuasveias.Porfim,Erniefalou:— Epossívelqueestejamoscontaminadosecondenados...Masalgumacoisamedizquenãoé
essaaexplicaçãofinal.Deummodooudeoutro,Shenkfieldéumabasemilitar...Elestestamarmaslá!Eparaqueserviriaumaarmaqueleveanosparaacabarcomoinimigo?!
—Paranada—disseDom.—EcomoseencaixariaaíaexperiênciaestranhíssimadacasadeLomackemReno?—Nãotenhoidéia,são...possibilidades—declarouDom.—Dequalquermodo,agorasabemos
que estivemos juntos numa área evacuada pelo Exército sob pretexto de um vazamento de substânciatóxica. Seja isso verdade ou não, a teoria da lavagem cerebral é menos absurda. Antes de saber dovazamento,eunãoconseguientendercomoalguémpoderiaternosdetido,contranossavontade,duranteotempo necessário para fazer a lavagem cerebral. Mas o período de quarentena explica tudo... eserviu, inclusive,paramanter a imprensaeos curiosos adistância.Assim, já começamosadescobrircontraquemestamoslutando:oExércitodosEstadosUnidos,provavelmenteemconluiocomogoverno,mastalvezsozinho.Sãoelesqueestãotentandoesconderoqueaconteceuaqui,algumaexperiênciaquefizeramenãodeveriamterfeito.Nãosei,amigos...aidéiadeenfrentarinimigostãopoderososecruéismefazgelaratéosossos.
—Nós,daMarinha,sempredesconfiamosdoExército—disseErnie—,maselesnãosãoassimtãomaus.Nãopodemoscomeçaradelirar,imaginandoquefomosvítimasdeumcomplôdedireita.EssetipodeparanóiarendemilhõesemHollywood,porémnavidarealascoisassãomaissutis.SeoExército
eogovernoestãomesmoportrásdoquenosaconteceu,talvezseusmotivosnãosejamimorais.Talveztenhamatéagidodomodomaisacertado,consideradasascircunstâncias.
—Nãoestouinteressadanosmotivosdeles—Fayereplicou.—Mas temos de saber o que houve, porque se não essa nictofo-bia vai deixar você louco, e o
sonambulismodeDomagravarácadavezmais...Oquefaremosentão?“Semprepoderemosdarumtironaboca,comoLomack”,eraumadasrespostaspossíveis.Domdebruçou-sesobreolivroderegistrodehóspedese,quatrolinhasacimadeseunome,viuuma
assinaturaqueofezestremecer:GingerWeiss.—Ginger...—murmurou.—OquartonomeescritonasfotosdacasadeLomack...Alémdesse,apareciatambémonomedeCalSharkle,ocaminhoneiroamigodosBlock,ohomemde
olhos de zumbi que figurava numa das fotos enviadas pelo correio. Registrara-se comohóspedeimediatamenteantesdeGinger.OsprimeirosregistrosdodiacorrespondiamàfamíliaRykoff,marido,mulherefilha,deLasVegas.Dompodiajurarqueeramostrêsdafototiradaemfrenteaoquartonúmero9.OnomedeZebediahLomacknãoconstavano livro,quemsabenãosehospedaranomotel,apenasestavajantandonorestauranteemmeioàviagemdeElkoaReno,ouvice-versa.Umdosoutrosnomespodiaserodopadredaoutrafoto,que,nessecaso,nãodeclararasuacondiçãodeeclesiástico.
—Vamosentraremcontatocomessaspessoas—Domdeclarou,muitoagitado.—Amanhãcedocomeçaremosatelefonarparaversealguémselembradealgumacoisasobreaquelasemanadejulho.
Chicago,IllinoisFirme em sua decisão, Brendan acabou conseguindo permissão do padre para viajar sozinho.No
domingo,àsdezedezdanoite,jáestavadeitadonoquartoescuro,observandoopálidoreflexodaLuanogeloqueseformavadoladodeforadasvidraças.Deviaserumreflexo,porqueaLuanasciadooutroladodacasa,visíveldoescritóriodopadreWycazik,enãopodiabrilharali,amenosquemudassedetrajetória,oqueeraimpossível.Esperandoosonochegar,Brendanconcentrou-senasestranhasfigurasquesecruzavamerefletiamnasuperfíciegelada.
—ALua!—ouviu-semurmurar,surpreso.—ALua!Aospoucos,percebeuqueumaformanítidasedelineavaà frenteda janela.Nocomeço,apenaso
brilho o atraía. Depois a fascinação tornou-se mais intensa, como se antecipasse um grandeacontecimento,echamava-ocomocantodesereias.Sementenderporquê,Brendanafastouascobertaseestendeu o braço na direção da janela, distante demais para poder alcançá-la.O contorno dos dedosapareceu, muito visível, contra o brilho prateado da vidraça. Ele queria chegar à luz. Não à luzesbranquiçadaquevianajanela,masàdouradaqueiluminavaseussonhos.
—ALua—repetiu.Sentiuocoraçãobateraceleradoepôs-seatremer.Derepente,ogelocomeçouaderreter,apartirdoscaixilhosdemadeiraemdireçãoaocentro,como
seumacaldaaçucaradaescorressepelovidro,atéformarumcírculoperfeito.ALua.Eraumsinal.Masdeondevinha?Oquesignificava?BrendansabiaquenanoitedeNatal,quando
dormiraemcasadospaisemBridgeport,sonharacomaLua,poisacordaraafamília inteiracomseusgritos assustados. Mas não conseguia recordar qualquer detalhe do sonho. Desde aquela noite,porém, tantoquantopodia lembrar,nãovoltaraasonharcomaLua.Apareciasempreummesmolugarmisterioso, inundado de luz dourada, para o qual se sentia chamado, como se lá o esperasseumafantásticadescoberta.
Noquarto,aindacomamãoestendidaparaajanela,viuocírculoesbranquiçadotornando-secadavezmaisbrilhante...iridescente...atétransformar-seempuraprata,cintilandocontraovidro.
Ocoraçãoaospulos,certodequeseaproximavaomomentodarevelação,Brendanmanteveamão
apontadaparaajanelaesaltoudesustoaoverqueocírculodeprataemitiaumfeixedeluzemdireçãoàcama.Umfachocomoodeumalanterna,muitoclaro.Osolhosarregalados,tentandoentendercomoumpedaçodegelocoladoàvidraçapodiaemitirluz,percebeuquealuzseavermelhava.
Ascobertaspesavam-lhecomochumbo,eamão,aindaestendida,pareciamolhadadesangue.AgoraelesabiaqueestiverafrenteaumaLuaescarlate,banhadoemsualuzvermelhacomosangue.
Queriaentenderoquevia,descobrirapossível relaçãoentreaqueleestranhobrilhoescarlateeadeslumbranteluzdouradadossonhos,massentia-searrastadoparaodesconhecidoqueoesperavaalémdofeixede luz...e tremiademedo.Cadavezmais intensa,a luzacaboupor transformaroquartonuminfernodefogo,caloresombrasrubras.Omedocrescentefazia-osuarfrio.
Rápido,escondeuamãosobascobertas.A luzvermelha imediatamentevoltouao tomprateadoelogo,emsegundos,aobrilhocomumdeumafinacamadadegelocoladaaovidroeiluminadaporumaprosaicaluadejaneiro.
Devoltaàescuridão,Brendansentou-senacamaeacendeualâmpadadecabeceira.Empapadodesuor,tremendocomoumacriançaassustada,correuparaajanela.Ocírculodegeloláestava:umaLuacheia,coladaàvidraça.
Poderia ter sidoumsonho,umaalucinação...Masnão:aLuacongeladaestavaali,palpável, real,escarlate.
Assustado, ele tocouovidro comapontadosdedos.Nadade anormal, alémdavibração friadoventonoturno.Surpreso, viuqueos anéis reapareceramnaspalmasde suasmãos... e sumiamnaqueleinstante,enquantoosexaminava.
Voltouparapertodacamaeficouparadopormuitotempo,encostadoàcabeceira,osolhosabertos,semcoragemdesedeitarparadormir.
ElkoCounty,NevadaErnieparouaoladodabanheira,tentandolembrar-sedoqueaconteceranamadrugadadosábado,14
dedezembro,quandocederaaoimpulsodeabrirajanelaesofreráaquelaalucinaçãoaterradora.DomCorvaisisestavajuntoàpia,eFayeespiava,paradaàporta.
Alâmpadadotetobrilhavanopisodelajotas,nastorneirascro-madas e no canodo chuveiro, cobrindode reflexos coloridos a cortina plástica da banheira.Aos
poucos,Ernielembrou-se.— Umaluz...vimatéaquiporcausada luz.Estavanoaugedeumacrisedenictofobiaeainda
tentavaevitarqueFayepercebesse.Nãoconseguiadormir.Então,saídacamaevimparacá.Fecheiaportae...foicomoserenascesse,nomomentoemqueacendialuz.
Contouqueajanelapareciaatraí-loeque,derepente,elesentiraumanecessidadedesesperadadefugir.
— Edifícil de explicar... semmais nemmenos,minha cabeça começou a girar, as idéiasmaisabsurdas dando voltas e voltas... Entrei em pânico e pensei que eraminha única chance de fugir. Euprecisavaescaparporaquelajanela,chegaràscolinas,procurarsocorroemalgumacasa,pedirajuda...
— Ajuda?—Domperguntou.—Porqueprecisavadeajuda?Eporqueprecisavafugirdesuaprópriacasa?
Erniebalançouacabeça:—Nãofaçoamenoridéia.—Lembroucomosesentiraestranho,comumasensaçãodeurgênciae,
ao mesmo tempo, de deslumbramento.— Cheguei a abrir a janela... E teria saltado, se não tivesseaparecidoaquelehomem...Bemali,sobreotelhado.
—Quemera?—Domointerrompeu.— Pareceloucura.Eraummotociclistadecapacetebranco,comovisorbaixadosobreorosto.
Usavaluvaspretas.Chegouaenfiaramãopelajanela,comosequisessemepegar.Tenteiescapar,acabeiescorregandoecaí.
—Foiquandoeuentrei—Fayeacrescentou.—Levantei-me—continuouErnie—,volteiàjanelaeolheiparafora,nadireçãodotelhado.Não
havianinguém.Devetersidoumaalucinação.—Emcasosagudosdefobia,quandoodoenteviveemestadodepermanenteansiedade,écomum
haveralucinaçõesdessetipo—informouFaye.Dommantinha os olhos fixos na janela, como se esperasse que a verdade lhe fosse revelada por
algumaapariçãonovidrofosco.—Nãoachoquetenhasidoumaalucinação—declarou.—Achoquevocêpassou,digamos,por
umacrisedelembranças.Algumacoisadaquiloquefoiapagadodesuamemória,partedoquevocêviunoverãoretrasado,tentavavoltaràtona.Porummomento,nodiacatorzededezembro,vocêquaseselembroudoquerealmenteacontecera,dosdiasemqueforamesmoaprisionadoemsuaprópriacasa,daocasiãoemquetentaraescaparpelajaneladobanheiro.
— Ehaveriaumhomemno telhado?Oqueestaria fazendo lávestidodemotociclista?Emuitoestranho...
— Podia ser umguarda numdesses trajes de laboratório usados pelo pessoal que trabalha emambientecontaminado,ecomcapaceteàprovadear.
—Ambientecontaminado...—Ernierepetiu—Issocomprovariaaidéiadovazamentodegás.—Talvez.Aindanãopodemostercertezadenada.— E quanto a mim? — Faye perguntou de repente. — Se nós todos passamos pela mesma
experiência, como você está dizendo, por que você, Ernie e Lomack foram afetados... e eu não?Nãotenhopesadelos,nemproblemaspsicológicos...
Dombalançouacabeça.— Não sei...Mas não tenho dúvidas de que precisamos encontrar resposta para essa emuitas
outrasperguntas,sequisermosalgumdiavoltaravivercomogentenormal.DeConnecticutaNovaYorkDepois de tirar o dinheiro do carro blindado, Jack e os companheiros viajaram apenas dez
quilômetrosaoencontrodoscaminhõesquebloqueavamaestrada.Todosreunidos,dirigiram-seaumagaragemalugadacomdocumentosfalsos,ondehaviamdeixadoseuscarros.Agaragemlocalizava-senumbairrocujasleisdezoneamentopermitiamainstalaçãodepequenaslojasaoladodasresidências.Erauma área feia, de casas velhas, lâmpadas queimadas nos postes, vitrines vazias e cãesmagros pelassarjetas.
Esvaziaramosmalotesnochãosujodeóleoegraxa,econta-ram o dinheiro, dividindo-o em cinco pilhas, cada uma com cerca de trezentos e cinqüenta mil
dólaresemnotasvelhaseusadas,quejamaispoderiaamseridentificadas.Jacknãosentiaemoçãonemalegria,sóvazio.
Emcincominutos,cadaumdoshomenstomavaseurumo,dispersando-se.Anevecomeçouacair,aindaleve,sematrapalharavisibilidade.VoltandoparaManhattan,acadaminutoJackpercebiaquealgomuitoestranhoocorria.Jánãosesentiavazio.Nãosesurpreenderiaseoinvadisseumarepentinaondadetristezaoudesespero,poisfaziaapenasdezessetediasqueJennyhaviamorrido.Masnãoeratristezaou desespero «a emoção que crescia em §eu íntimo. Era culpai Os trezentos e cinqüentamil dólaresquelevavanoporta-malaspesavam-lhenaconsciênciacomoumatoneladadeculpas.Emoitoanosdeatividades criminosas,planejadas e executadas sem falhamuitasdelasmaisousadas e rendosasqueoassaltoaocarroblindado,nuncasentiraomenorvestígiodeculpa.Atéaquelemomento,alimentara-sedo
prazerdavingança.Masissoforanopassado.NanoitedeManhattan,varridadeventofrio,começavaasesentirumladrãozinhobarato.Aculpa
grudava-senelequalumamortalha.Porváriasvezestentouconcentrar-seereencontrarosentimentodeexaltaçãoqueo invadiaaoconcluirum trabalho. Inútil.Amortalhadeculpaera jáumasegundapele,desenvolvidadurantemeses...Desdeoassaltoàjoalheria,emoutubro,elecomeçaraasentir-secadavezmais desiludido. As mudanças talvez tivessem começado naquela época. No entanto, quantomaispensava,maisseconvenciadequeosproblemasseoriginarammuitoantes...
Qualforaoúltimotrabalhoadar-lherealalegria?OassaltoaMcAllister,emMarinCounty,aonortedeSanFrancisco!Noverãoretrasado.
Raramenteaceitavatrabalharemcidadesdistantes,poisnãoqueriaafastar-sedeJenny.MasBranchPollard,umdeseuscúmplicesnorecenteassaltoaocarroblindado,passavafériasnaCalifórniaelá,àbeiradoPacífico,descobriraqueAvrilMcAllistereraum
perfeito cordeiro para ser tosquiado: um industrial corn duzentosmilhões de dólares à espera doladrão certo.Morava numa vasta propriedade emMarin County, protegido pormuros de pedra e umcomplexo sistema de segurança eletrônico— sem falar nos cachorros. A partir de contatos os maisvariados, Branch descobrira que McAllister colecionava selos e moedas raras, objetos fáceis denegociar. Não bastasse isso, costumava visitar Las Vegas três vezes por semana; quase sempre, ládeixavaumquartodemilhãodedólares,mas eventualmentevoltavapara casa carregadodedinheiro.Quando ganhava, guardava o dinheiro em casa para fugir ao imposto de renda, Branch precisava daexperiência e dahabilidadede Jack, e este andavaquerendomudarde cenário.Bastava encontrar umterceirohomem.
O plano funcionara como relógio. Entraram namansão sem amenor dificuldade. Equipados comaparelhosdeescutaeletrônicacapazesdeamplificaroestalidodecadanúmerodecombinaçãodocofre,transformaramaoperaçãoembrincadeiradecriança.Porviadasdúvidas,contudo,levaramumconjuntodeferramentasdearrombamentoecargasdeexplosivoplástico.0problemafoiqueMcAllisternãotinhacofre, mas caixa-forte. E parecia confiar tanto nela que nem se dera ao trabalho de escondê-la oudisfarçá-la.Mal entraram, viram a porta de açomaciço, ocupando toda a parede da sala de jogos.Oaparelho de escuta eletrônico ensurdeceu com sua espessura. O explosivo plástico, que faria voarqualquer cofre, mal conseguiu descascar a pintura daquelemonstro. O conjunto de ferramentas viroupiada...
Acabaramsaindodamansãosemmoedasnemselos,carregandoapenasalgumaspeçasdabaixeladeprata,umacoleçãode livros,aspoucas jóiasqueasra.McAllisterdeixaraforadacaixa-forteeumasbugigangas,quevenderamparatrêsreceptadoresporapenassessentamildólares.Nãoquefossepouco,masficavalongedoqueesperavamconseguiremalderaparacobriroscustosoperacionaisecompensarosriscos.
Apesar de tudo, Jack divertira-semuito.Depois que saíramdamansão, ele eBranch deramboasrisadasdoretumbantefracasso.
PassaramaindadoisdiasdescansandonaCalifórniaatéque,numrepente,JackresolverairaReno,comseusvintemildólares,tentarasortenopanoverde.Umdiadepoisderegistrar-senohotel,osvintemildólaresrenderam-lhemagníficoscentoesetemil.Outravez,riramuito.Dispostoaencompridarasférias,decidiravoltardecarroparaNovaYork.
Mais de dezoitomeses depois, retornando de Connecticut, descobrira que o fracassado assalto àmansão McAllister fora o último trabalho a lhe dar alegria. Depois daquele dia, cada vez mais seafastava da amoralidade vazia dos primeiros tempos. Percorrera um longo caminho até que, por fim,voltavaaserumhomemcapazdesentirculpa.Eaculparealizavaomilagredetorná-lohumano.
Mas... por quê? Por que teria mudado tanto? Por que, de repente, aquela culpa estranha esurpreendente?!Não tinha respostas. Sabia apenas que já não se via comoumbandidomelancólico eromântico,encarregadodevingar-sedomundoquetantoomaltrataraequedestruirasuaamada.
Nãopassavadeumladrãovulgar.Duranteoitoanosiludira-seasimesmo!Derepente,via-sefrentea frente com seu verdadeiro rosto, um rosto que o assustava. Descobrira-se vivendo uma vida semsentido.
Continuou dirigindo pelas ruas de Manhattan, sem rumo certo, sem vontade de voltar para oapartamento.ChegouàQuintaAvenida,próximoàCatedraldeSt.Patricke,sementenderomotivo,pisounofreioeestacionouocarroemlocalproibido.Desceu,abriuoporta-malaseapanhoumeiadúziademaçosdenotasdevintedólares.
Eraloucuradeixarocarroalicommaisdeumterçodemilhãodedólaresroubados,alémdapastacomocomputdoreasarmas.Umguardapoderiaaparecerparamultá-lo,desconfiardequalquercoisaerevistaroveículo;nessecaso,Jackestariacondenadoaacabarseusdiasnumaprisãofederal.Masissojá não importava. Sentia-se como ummorto-vivo.Como Jenny... que ainda respirava quando já haviamorrido.
Jackempurrouumadasimensasportasdebronzedacatedral,entroueaproximou-sedanaveondemeia dúzia de pessoas rezavam ajoelhadas e um homem acendia uma vela votiva, indiferentes aoadiantadodahora.
Parouummomento,admirandooricopúlpitodemadeirajuntoaoaltarprincipal.Localizouacaixadeesmolasecaminhouparaela.Então,tirouodinheirodedentrodocasaco,rasgouastirasdepapelqueprendiam osmaços e enfiou as notas de vinte dólares na caixa de esmolas como se jogasse lixo nalixeira.
Devoltaàcalçada,parouderepente,ofuscadopelabelezadacidadequeserecortavacontraocéuescuro.HaviaalgodenovonaQuintaAvenida.Comosflocosdenevebrilhandoàluzdospostesoudosfaróisdoscarros,NovaYorkpareceu-lhedeslumbrante.EraassimqueaviaantesdeembarcarparaaAméricaCentral:bela,cheiadeencantos,ricadeatrativoseoportunidades.Depoisquevoltaradaqueleinferno,passaraaodiaracidade,porqueodiavaoshomensquenelaviviam.
Retornouaocarroetomouorumooeste,seguindopelaAvenidadasAméricas,passoupeloCentralPark,entrouàdireita,outravezàdireita,evoltouàQuintaAvenidanapistasul,semsaberaocertoseudestino. Então aproximou-se da Igreja Presbiteriana. Como antes, estacionou em local proibido, tiroualgumdinheiro do porta-malas e entrou no templo.Não viu caixa de esmolas, como na catedral,masencontrouumjovemassistentedopastore,semseimpressionarcomseusolhosarregaladosdeespanto,entregou-lhemaços emaços de notas de dez e vinte dólares. Como o jovem continuasse à espera dealguma explicação, Jack resolveu dizer que o dinheiro lhe queimava as mãos porque o ganhara noscassinosdeAtlanticCity.
Comessasduasparadasgastaratrintamildólares—menosdeumdécimodeseuquinhãonoassalto,muitopoucoparaexpiarsuaculpa.Naverdade,sentia-secadavezmaisculpado.Osmalotesdedinheironoporta-malasgemiam-lheaosouvidoscomoocoraçãoocultosoboassoalho,nocontodeEdgarAlanPoe,tes-
temunhaeternadeumcrimesemexpiação.Estavatãoansiosoparalivrar-sedaqueledinheirocomoonarradordocontoparasilenciarocoraçãodesuavítimaesquartejada.
Ainda sobravam-lhe trezentos e trintamil dólares. Para alguns habitantes deNovaYork, oNatalchegariacommaisdeduassemanasdeatraso.
ElkoCounty,NevadaNoverãoretrasado,Domhospedara-senoquarto20;lembravabem,porqueeraoúltimodaalaleste.
Agora,esperavaqueoambienteconhecidolheestimulasseamemória,fazendo-orecordar-sedealgumacoisa: suaesperançacontagiouErnieBlock,que,dominandoomedodoescuro,decidiuacompanhá-loatéoquarto;noentanto,realizouopercursodeolhosfechados,firmementeapoiadonobraçodaesposa.
Fayeacendeuasluzesefechouascortinasantesqueosdoishomensentrassemnoaposento.Erniesóabriuosolhosquandoouviuoruídodaportasendofechada.Domestavaapreensivo.Rodeouacamadecasal,osolhosfixosnacabeceira,esforçando-separarecordar.Quandoestiveradeitadoali,drogadoeindefeso?
—Acolchanãoéamesma—disseFaye.A foto recebida pelo correiomostrava uma ponta de colcha em tecido estampado de flores,mas
sobreacamavia-seumacolchalistradadeazulemarrom.—Osmóveisnãoforamtrocados;acamaéamesma—Erniecompletou.A cabeceira da cama era estofada em tecidomarrom, ligeiramente desbotado e gasto nos cantos.
Sobreasmesinhaslateraisbrilhavamduasluminárias,cujabaselembravalanternasdesinalização:umapequenagradede ferrobatido, encobrindoduas lâminasdevidro foscocordeâmbar.Cada lumináriacontinhalâmpadas;umamaior,protegidapelacúpuladetecidotambémcordeâmbar,queforneciaquasetodaaluz,eoutrabemmaisfracanaformadeumachamadevela,quefaziaabasedevidrofoscobrilharcomoumlampião.
Aospoucos,osdetalhesdoquartotornavam-sefamiliares.Domsentia-secomoqueentrandonumacavernapovoadade fantasmasameaçadores, invisíveis,escondidosentreas sombrasdopassado.Nãosãofantasmas,pensou,maslembrançasocultasdentrodemim...
—Lembra-sedealgumacoisa?—perguntouErnie.— Quero ir até o banheiro— Dom limitou-se a responder. Simples e funcional, o pequeno
banheirotinhaumchuveiro,pisodelajotas,umarmáriorevestidodefórmicaeumapia.Nãoera,porém,a pia que figurava nos pesadelos deDom; ao invés de ralo, tinha ummoderno dreno que escondia oorifícionegrodocano.
—Nãoéessapia—murmurouele.—Aoutraéantiga,comumfuronocentroeumatampadeborrachapresanumacorren-tinhaquesaidoladodatorneiradeáguafria.
—Reformamososbanheiros—Ernieinformou.—Trocamosapiavelhaháunsoitoounovemeses—acrescentouFaye.—Tambémtrocamosorevestimentodosarmários,masmantivemosamesmacor.Dombalançouacabeça,decepcionado.Tinhacertezadequetudovoltariatãologoreconhecessea
pia.Sabia que algumacoisa terrível lhe acontecera naquele banheiro e, a partir da lembrançadapia,esperavaqueoutrasaflorassem.Apoiou-senelamasnadasentiualémdocontatofriodaporcelananasmãos.
—Eentão?— Nãomelembrodenada—disseDom.—Massintoqueháalgumacoisaaqui.Se tivermos
paciência,épossívelqueessequartomedesperteamemória.Voudormiredar tempoaotempo.Podeser?
—Claro—Fayesorriu.—Oquartoétodoseu.—Tenhoopressentimentodequeestavaiserapiornoitedeminhavida.LagunaBeach,CalifórniaApesardeserumdosmaisrespeitadosartistasamericanosvi-vos, com suas telas disputadas a peso de ouro pelosmais importantesmuseus e colecionadores,
apesar de ter elaborado retratos de personalidades tão importantes como o presidente dos EstadosUnidos,ParkerFainenãoeranemtãovelhonemtãosérioquenãoseentusiasmassecomaintrigaarmada
aoredordeseumelhoramigo.Alémdapercepçãoedadisciplinadosadultos,todograndeartistaprecisade um pouco da inocência, do deslumbramento e do senso de humor das crianças. Para Faine,acompanharDom,aindaqueadistância,eracomoparticipardeumagrandebrincadeiraque,derepente,podiavirarumaaventuradeverdade.
Toda manhã, ao apanhar a correspondência, tentava convencer-se de que não o preocupava apossibilidade de ser seguido. Ainda assim, olhava de um lado para outro, à procura de policiaisoubandidos,fossequemfossequepudesseestarobservandoseuspassos.Ànoite,aosairdecasaparaesperar a chamada deDom, dava voltas e voltas, sem tirar os olhos do espelho retrovisor, sempre àprocuradealguém.Nuncaviunada.
Pouco antes das nove da noite de sábado, depois de usar de mil artifícios para despistar algumeventualperseguidorinvisível,Parkerchegouaumadascabinespúblicaspróximasàestaçãoferroviária.Choviamuito,eaáguaescorrendopelasparedestransparentesdacabinedistorciaasimagensdomundoexterior,escondiaseurostodosolhosque,poracaso,oobservassem.Parkersentia-sepersonagemdeumromancedeespionagem,comoimpermeáveldegolalevantadaeochapéudeabascaídaspingandoágua,enfiadonumacabinedetelefonepúblico.Eestavaadorandoabrincadeira.
Asnoveemponto,otelefonetocou.EraDom.—Conformeoprevisto,jáestounoMotelTranqüilidade.Nãohádúvidadequetudoaconteceuaqui.Domcontou-lhetudo:desdeanictofobiadeErnieatéasfotosenviadasaosBlock,falandoalíngua
maiscifradaeincompreensívelaouvidosestranhosqueconseguiu.Serdiscretotornara-sevital.Seomotelforacenáriodoqueelenãoselembravadetervistonoverãoretrasado,ostelefonemascertamenteeramvigiados.Sealgum
indiscretoouvissefalardasfotos,porexemplo,descobririaquehaviaumtraidoremseupróprio time.Passariaainvestigar,acabariadescobrindoe,então...adeusbilhetes,pistasoufotos.
— Também temos novidades por aqui— disse Parker.— Sua editora, uma tal de senhoritaWycombe, deixou recado na secretária-eletrônica.OCrepúsculo está em segunda edição e já vendeumaisdecemmilexemplares.
—OCrepúsculol—Domgritou.—Tinhameesquecido!DesdealoucuradospôstersnacasadeLomack,nãopensoemnadaaforaoverãoretrasado.
—EssataldeWycombedizquetemoutrasnovidadeseesperaquevocêlhetelefoneomaisrápidopossível.
—Voutelefonar.Vocêtemvistoalgumasfotointeressante?—Eraocódigocombinado,parasabersehaviamchegadomaisenvelopescomfotos.
—Não.Nemfotos,nembilhetes.—Parkersorriuparaoreflexobrilhantedosfaróisquepassavamnaparedemolhada.—Masrecebemosumacarta,comendereçoenomedoremetente,claro...Você,quejáidentificoutrêspersonagensdahistóriadeLomack,estariainteressadoemidentificaraquarta?
—Ginger?Esquecidecontarqueonomedelaestánoregistrodomotel.GingerWeiss,deBoston.Vouligarparaelaamanhãcedo.
— Ora!Mas você estragou o show!De qualquermodo, será que também já sabe que ela lhemandouumacarta?Foienviadaàeditoradeseu livro,comcarimbododiavintee seisdedezembro.Acartaandouporlá,rolandodemãoemmão,eafinalchegouàcaixapostal.Eladizqueleuolivro,viusua fotografia na contracapa e ficou encantadapor seusbelos olhos castanhos.Diz tambémque temaimpressãodeconhecervocêdealgumlugar...dequevocêfazpartedasdesgraçasqueaatormentamháalgunsmeses.
—Acartaestáaícomvocê?—Domperguntouansioso.Parkerriueleuacarta,semdeixardeolharemvolta,examinandoarua.
—Precisofalarcomela—Domgritou,noinstanteemqueoamigoterminoualeitura.—VouligarparaBostonagoramesmo!Atéamanhã,nomesmolocal,mesmohorário.
—Jáquevocêmeligadomotel,ondeostelefonespodemestarvigiados,naoentendoporqueeutenhoquetomarchuvatodasasnoitesparaprocurarcabinestelefônicaspelasesquinas.
—Certo.Telefonoparasuacasa.Tomecuidado.—Vocêtambém.—Parkerdesligou,satisfeitopornãotermaisquesairdecasaànoite,mas,ao
mesmotempo,sentindoqueabrincadeiradeespionagemcomeçavaaperderagraça.Saiudacabine,baixouacabeçaparaenfrentarachuvaeovento,esuspiroudesapontado,aoverque
ninguémoesperavanaescuridãocomumaarmaapontadaparasuabarriga.Boston,MassachusettsEnterradodemanhã,PabloJacksonaindaacompanhouGin-gerdurantea tardeeanoite,comoum
fantasnasorridente,eleganteebondoso,queinsistiaemnãodeixá-lasozinha.Sentada em seu quarto noMirante, ela tentou ler, mas não conseguiu concentrar-se. Ora eram as
lembrançasdomágicoqueinsistiamemdançar-lhediantedosolhos,oraeraapreocupaçãocomoquefazernodiaseguinte.
Poucodepoisdameia-noite,quandojásepreparavaparadeitar-se,RitaHannabyapareceuàportadoquarto;disse-lhequeDomi-nickCorvaisisestavaaotelefoneequeelapoderiaatenderaochamadonoescritório,aoladodoquartodeGeorge.Gingersaltouparaorobeatiradoàpoltrona,vestiu-oedisparoupelocorredor.
O escritório, ainda aquecido e mergulhado em penumbra, pareceu-lhe mais aconchegante do quenunca, comasparedes revestidasdemadeira escura,o tapete chinês estampadoemverdeebege, eomagníficolustredecristal.Georgeesperava-a,comolhosdequemacabavadeserarrancadodacama,ondejáestavadesdeasnoveemeia,tentandodormirlogoparachegarcedoaohospital.
—Oh...Desculpe!—Nãosepreocupe—elesorriu.—Nãoeraissoquevocêestavaesperando?—Aindanãosei...—Venha—Ritachamouomarido.—Vamosdeixá-laempazparafalarcomele.—Não,porfavor!—Gingerdeteve-acomumgesto.—Queroquevocêsfiquem.—Correupara
otelefoneesentou-se.—Alô?— GingerWeiss?—Umavoz forte,masagradável.—Amelhor idéiaquevocêpodia ter era
escreverparamim.Claroquevocênãoestálouca...E,seestiver,nãoéaúnica.Háváriaspessoascomproblemassemelhantesaosseus.
Gingerquisresponder,masavoznãosaiu,presaàgarganta.Tossiu,piscou,respiroufundoantesdeconseguirfalar:
—Desculpe,éque...Desculpe,nãosoudechorar,mas...— Chore à vontade. Enquanto isso vou-lhe contar sobremeusproblemas.Virei sonâmbulo de
repente.Esobremeuspesadelos...sonhocomaLuaeacordoaosberros.— A Lua...— ela repetiu baixinho, um calafrio gelando-lhe o corpo.— Também tenho tido
pesadelos,masnãomelembrodenada.OsamigoscomquemestoumorandoéquemedisseramquefalosobreaLua.E,também,quegrito...
Domcontou-lhesobreLomack,osuicidadeReno,obcecadocomaLua.Gingersentiuqueumpunhonegroefortesefechavasobreseucoração.Ummedonovo,cadavezmaior.
— Fomos submetidos a... lavagem cerebral— gritou de repente.—Nossos problemas são aconseqüência desse processo! Vimos alguma coisa que... não deveriamos ter visto! E agoraessaslembrançasqueremviràtona!
Por um instante, fez-se silêncio do outro lado da linha. Até que, quase sem poder falar, Domrespondeu:
—Tambémtiveessaidéia...masvocêparecetercertezadeque...—Eutenhocerteza!Passeipormuitassessõesdehipnose.Fizregressãohipnóticaeassimrevivi
algunsmomentosbempróximosdesseepisódioqueesquecemos...Issoaconteceudepoisdacarta que lhe escrevi! Tenho provas de que fomos submetidos a um bloqueio cerebral... Nossas
lembrançasforamlavadas...—Lembrançasdealgoquevimosnoverãoretrasado—Dompensouemvozalta.—Isso!Noverãoretrasado,noMotelTranqüilidade,emNevada.—Edeondeestouligando.—Vocêestá...noMotelTranqüilidade?—Sim.Eachoquevocêtambémdevevirparacá.Temosmuitooqueconversar,masnãopodemos
confiarnostelefones.Alguémpodeestarnosvigiando.—Mas...quem?Oqueelesquerem?Oquefizeramconosco...eporquê?—Nossaúnicachanceétentarlembrar.Eprecisamosestarjuntos.Gingerlevantou-sedeumsaltoedecidiu:—Estareiaí...amanhãmesmo!Omaiscedopossível!Rita fez menção de protestar e George franziu as sobrancelhas, balançando a cabeça. Ainda ao
telefone,Gingerdespediu-sedeDom:—Telefonologoquesouberaquehoraspodereichegar.Atéamanhã.Aindanãoacabaradedesligarotelefone,eGeorgecomeçavaalevantarobjeções:—Vocênãoestáemcondiçõesdeviajar!—Esesofrerumacrisenoavião?—Ritadeuumpassoemdireçãoàescrivaninha.—Esequiser
fugir...doavião?!—Nãohaveráproblemanenhum.—Querida...Vocêsofreutrêscrisesseguidasnasegunda-feira...Jáesqueceu?Elarespiroufundo,sentou-senumapoltronaeretrucou:—Vocêssempreforam,sãoeserãoduaspessoasmaravilhosas.Achoquenuncapodereiretribuir
o que fizeram por mim. Eu os amo muito... Mas já estou aqui há cinco semanas... cinco semanasangustiantes...reduzidaàcondiçãomiseráveldenãosa-
beroquefazerdavida.Nãopossocontinuarassim!PrecisoiraNevada.Nãotenhooutrasaída.NovaYork,NovaYorkDois quarteirões adiante da Igreja Presbiteriana, Jack estacionou o carro pela terceira vez, agora
diante da Igreja Episcopal de Santo Tomás. Parado ameio caminho do altar, ergueu o olhar para asimagensdepedraquepareciamchamá-lodelonge,envoltasempenumbra!Santos,apóstolos,aVirgemMaria, Jesus Cristo... Como numa revelação, descobriu que as religiões existem para permitir aoshomensaexpiaçãodesuasculpaseparaperdoá-losporseremmenosdoquegostariamdeser. Infelizespéciehumanacondenadaanuncaatingiraperfeiçãocomaqual,aindaassim,nãodeixadesonhar.Parasuportar a própria impotência é preciso acreditar firmemente que Deus ama essa pobre humanidade,apesardasimperfeiçõesedasmisérias.
Mas nem essa revelação conseguiu que Jack se sentisse absolvido de seus pecados. Nem arevelação,nemosvintemildólaresquedeixounacaixadeesmolas.
Devoltaaocarro, seguiuadiante,decididoadesfazer-sede todooprodutodoroubo,nãoporqueesperasselibertaçãodeseutormento,grandedemaisparaserpurgadonumasónoite,massimplesmenteporquejánãoqueriaodinheiro,enãofaziasentidojogá-loàlixeira.Eraprecisodistribuí-lodealgum
modo...emcentenasecentenasdeesmolas.Parou ainda em várias outras igrejas, algumas abertas, outras fechadas. Naquelas em que não
conseguiaentrar,deixavaummaloterecheadojuntoàporta.NamissãodoExércitodaSalvação,entregouquarentamildólaresao“oficial”deplantão.
NaRuaBayard,jáchegandoaoBairroChinês,viuumavidraçapintadacomcaracteresorientais,nosegundoandardeumprédio;najanelaaolado, iluminada, leuatradução:AliançaContraaOpressãodas Minorias Chinesas. No andar térreo, havia uma farmácia artesanal, especializada em remédiosnaturais.Jackestacionou,aproximou-sedafarmáciafechadaetocouváriasvezes
a campainha, até que um velho espiou pelo postigo gradeado. Em resposta às perguntas de Jack,informou-lhe que a Aliança dedicava-se ao resgate de famílias de perseguidos políticos na China enoVietnã,encarregando-setambémdeconseguirtrabalhoeacomodaçõesparaosrefugiados.Semdizerpalavra,Jackenfioutrêsmaçosdedinheiropelasgrades:vintemildólares.Aturdido,ochinêsesqueceuopouco inglêsque conhecia e, por instantes, perdeu-se emagradecimentos incompreensíveis.Depois,recompondo-se,abriuaportaesaiu,indiferenteaoventogelado.
—Amigo—disse—,nãoavaliaoquantoessedinheirovaiajudar.Sãocentenasdecrianças,develhos...
—Amigo...—Jackrepetiu,comosenãoconhecesseapalavra.Umasimplespalavra,eumapertodemãofirmeobastanteparaoperaromilagrededevolvê-loàcomunidadehumana.
Nocarro,pisoufundonoacelerador,maslogofoiobrigadoaparar,poisaslágrimasturbavam-lheavisão,escorriam-lhepelorosto,quaseoassustavam.Asprimeiraslágrimas,emtantosanos...
Chorava de culpa, sim, mas também por estar confuso e amedrontado. Chorava de alegria porretornar à companhia humana, depois de quase umadécada de exílio. Só agora, desde que voltara daAméricaCentral,via-seafinalcomogentedecarneeosso,capazdeolhareperceberopróximo;capazatédeabrir-seeoferecerajuda.Etinhamuitoparaoferecer...
Dequelhehaviamservidoosanosdedegredoeamargura?Oódioferemaisquemodeiadoqueméodiado.Eédaalienaçãoquenasceasolidão.
Emoitoanos,lembrava-sedeterchoradoalgumasvezesporJennyeraramenteporsipróprio.Masaquelas eram as primeiras e verdadeiras lágrimas de expiação capazes de lavá-lo das manchas dopassado,dosressentimentos,detodasasdores.
Aindanãoentendiabemoquesepassava,nãopercebiadireitoamudançatãorepentinaeradical.Sentiaapenasquecomeçavaaseroutrohomemeesperavamuitassurpresasnesseprocesso.Gostariadeadivinharatéondeolevariaaquelaestradae,sobretudo,sehaviamesmoumaestradaconduzindo-o...
UmanoitefrianoBairroChinês.EJackTwistvoltavaateresperanças,quesopravamsobresuavidacomoumventoquentedeverão,fazendodançaraspásdegrandesmoinhos.
ElkoCounty,NevadaNedeSandySarverconseguiamcuidarsozinhosdorestaurantenãosóporqueestavamacostumados
a trabalharduro,mas tambémporqueocardápioeramuitosimpleseNed tinhagrandeexperiênciadecozinha; desde os tempos doExército, sabia usarmil e um truques para preparar tudo rapidamente, acontentoecomomenordispêndiodeenergiapossível.Dequalquermodo,umadasvantagensdaqueleemprego era a possibilidadededormirematémais tarde, porqueErnie eFayepreferiam fazer o des-jejumdoshóspedeseservi-lonosquartos.
Sábado à tarde, enquanto preparava sanduíches e fritava batatas, Ned não desviava os olhos deSandy.Ainda não conseguira habituar-se àsmudanças que estavamocorrendo. Ela engordaramais decincoquilos,ganharacurvasmuitofemininase,comosenãobastasse,jánãosearrastavaentreasmesas,encolhidaecabisbaixa.Não,Sandyagorasaltitava,sorridente,cabeçaerguida,bonitacomonunca.Ned
sabia não ser o único a apreciar aquela transformação.Os caminhoneiros viravam a cabeça ao vê-lapassareacompanhavam-nacomoolhar,sorrindo-lhesemprequeseaproximava.
Antes,Sandynãocostumavapararnasmesasparaconversar.Agora, semperdersuagraça tímida,detinha-separaexplicarumououtroitemdocardápioeriadosgracejosdosfregueses.Semprecomumbrilhonovonosolhos.
Pelaprimeiravezemoitoanosdecasamento,Nedtevemedodeperdê-la.Sabiaqueelaoamava,porémpormaisquetentassenãoconseguiatirardacabeçaaidéiadequetantasmudançasdeaparênciaecomportamentoacabariamporfazê-lainteressar-seporoutrohomem.Eessaerasuamaiorpreocupação.
Demanhã,aovê-lasairparairaoaeroportobuscarErnieeFaye,Nedsurpreendera-sepensandoquetalvezelanuncamaisvoltasseparacasa.EseresolvesseseguirestradaadianteatéencontrarumlugarmelhorqueNevada,ouumhomemmelhorqueele,maisbonito,maisrico,maisinteligente?Nedsabiaquenãoestavasendojustocomamulher,sabiaqueelajamaisotrairia.Mas,então,porquetinhatantomedo?SeráquejánãosesentiaàalturadeSandy?
Asnoveemeia,quandoasmesasestavampraticamentevazias,osBlockapareceramcomotalrapazaltoemorenoquesaíracorrendodorestaurante.Aovê-los,NedtentouadivinharseaquelehomemeraamigodeErnie...EseErniesabiaqueelenãoregulavabemdacabeça.Delonge,teveaimpressãodeque Ernie mal se agüentava nas pernas; quando acenou, respondendo-lhe ao cumprimento, pareciatrêmulo,pálidocomoumdefunto.
Fayesentou-seaoladodomarido,defrenteparaoestranho,apreocupaçãoestampadanosolhos.Otalsujeitomorenotambémsemostravatenso.Oqueestariaacontecendo?Intrigado,Nedesqueceu-seporalgunsintantesdeSandyedomedodeperdê-la.Masoreceiovoltouaovê-laaproximar-sedamesaparaanotar os pedidos. A distância e o ruído do óleo na frigideira não lhe permitia ouvi-los, mas Nedpercebeu que o forasteiro olhava muito para sua mulher e que Sandy inclinava-se para ele comidêntico interesse. E quemal havia nisso?Bobagem sentir ciúme...Mas o estranho era bonitão,maisjovemdoqueNed,poucomaisvelhodoqueSandy,bemvestido...
Nãosougrandecoisa,meditavaNed.Nembonitonemfeio,maisfeiodoquebonito...Testaalta,paranãodizer“cabeloralo”,“grandesentradas”oucoisaqueovalha...Noplanetasóexisteumhomemsexycom essas entradas, e ele se chama Jack Nichol-son... Ned suspirou. Não gostava de seus olhosacinzentados, muito claros, brilhantes na juventude e agora foscos e aguados. Não gostava de suainabilidadeparaganhardinheiro.Nãogostavadeterquarentaedoisanos,dezmaisqueSandy.
Cadavezmaisamargurado,viuaesposaafastar-sedamesadosBlockedirigir-separaobalcão.Detestafranzida,elaergueuosolhoseperguntou:
—Aquehorasvamosfechar?Dezoudezemeia?—Asdez.Jánãoháninguém.Nãoprecisamosdeixarorestauranteabertoatétarde.Sandy deu-lhe as costas e voltou àmesa de Faye,Ernie e do estranho.Ned respirou fundo,mais
preocupado que antes. Havia apenas três razões para explicar a estabilidade de seu casamento. Emprimeirolugar,eledavaàesposaumavidabemrazoável,porqueerabomcozinheiro,ebonscozinheirossão cada vezmais raros. Em segundo lugar, tinha um dom especial para consertar coisas quebradas:torradeiraselétricas,panelas,rádios,gravadores...atépássarosdeasaquebrada.Certavezencontraramuma ave ferida, conversou com ela até acalmá-la, levou-a para casa, aplicou-lhe uma tala na asa e,depois de curá-la, soltou-a. Era seu grande talento,muito útil. Em terceiro lugar, amava Sandy comojamaisamaraqualquermulher,decorpo,coraçãoealma.
Enquantopreparavaojantardostrês,Nednãotiravaosolhosdaesposaesurpreendeu-seaovê-lafechar todas as janelas, ajudada por Faye. Algo estava errado. De volta à mesa, lá estavaSandyconversandooutravezcomodeconhecido.Nãopossoperdê-la,pensou.Eimpossível...Eusouo
homemdospequenosegrandesconsertos...Euaajudeiasetransformaremcisne...Quandoaconheceranorestauranteondeambostrabalhavam,emTucson,Sandyeracaladacomoum
poste,feia,tímidaeencolhida.Trabalhavacomomuladecargaeaindaseofereciaparaajudarasoutrasgarçonetes, mas não falava com ninguém, homem ou mulher, como se fosse muda, surda ou doente.Pareciaumameninaassustada,apesardeseusvinteetrêsanos,enãoseabriacomninguém,talvezporpuromedo.Avidaforamuitoduracomela...ferindo,esfolando,deixando-aemcacos...Eforagraçasaseu talento para consertos que Ned se interessara por Sandy. Como sempre, com infinita paciência,pusera-seatrabalhar,passoapasso,etapaaetapa,sutilmente.
Novemesesdepoisestavamcasados,masNedsabiaqueoconsertoapenascomeçara.Suamulherera o ser humanomais infeliz e sofrido que conhecia e, não poucas vezes, semimorto de frustração edesespero, ele chegara a imaginar que,mesmo sen ao o consertador não conseguiria dar vida àquelabonecaquebrada.Talvezmorresseantesdevê-lasorrir.
Após seis anos de casados, Sandy começava amelhorar,muito lentamente.Apesar de inteligente,sempre fora emocionalmente mutilada. Para ela, não havia nada mais defícil do que dar e recebercarinho...ENedensinava-lheessaliçãocomapaciênciadeumprofessordeprimeirasletras.AprimeiraindicaçãoseguradequeobtinhabonsresultadossurgiuquandoSandycomeçouadespertarparaavidasexual.Umdesabrocharqueseiniciaraemagosto...noverãoretrasado.
*Sandypareciaexperiente,masfaziaamorcomoumamáquina,semalegrianemprazer.Nednuncahaviavistoumamulhertãosilenciosanacama.Comcerteza,pensava,éalgumtraumadeinfância.Muitasemuitasvezestentarafazê-lafalarsobreopassado,atédescobrirque,sehaviaalgumacoisacapazdeafastá-la para sempre, era perguntar-lhe sobre a infância. A partir daí não tocaramais no assunto. Edifícilfazerumconsertosemsabermuitobemoqueestáquebrado...
Aospoucos,noverãoretrasado,Sandypassaraairparaacamacomalgumaalegria.Aprincípioerauma diferença quase imperceptível, sem nada de dramático ou repentino: alguns instantes dedescontração, o corpo umpoucomais solto, às vezes um suspiro, um sorriso... Eventualmente,Ned aouviadizerseunome,deolhosfechados.
Fora despertando aos poucos. No Natal, quatro meses depois dos primeiros sinais, ela já nãopermanecianocolchãocomoumabonecainflável.Queriaacompanhá-lo,esforçava-separaencontraroritmoquemaisosaproximava,partiaembuscadoprazer,queaindateimavaemnãochegar.
Libertava-sedevagar,bemdevagar.Atéqueemabril,diasete...umanoitequeNednuncaesqueceriaemmilanos...teveoprimeiroorgasmo.Depoischoroudepurafelicidade,agarradaaomarido,tãograta,apaixonadaefelizqueNedtambémchoroucomoumbebê.Eleimaginavaque,apartirdoorgasmo,seriamaisfácilfazê-lafalardopassado,evoltouàsperguntas.
—Opassadoéopassado—disse-lheSandymuitoséria.—Dequeadiantariaficarmosrevirandoesselixo?Tenhomedodecomeçarafalare...voltarasercomoantes.
Passouaprimavera,passouoverão.Nooutono,elajádavasinaisdeplenaeintegralsatisfação.NoNatal, fazia menos de três semanas, Ned percebeu outros progressos. Sandy levantava a cabeça,endireitava as costas, olhava a vida com novos olhos, com novo orgulho, com mais respeito por simesma.
Agoragostavadefazeramore,outranovidade,gostavadedirigir.Nosprimeirostempos,malachavacoragemparadizerquequeriaguiaracamionetaatéorestaurante,semprecomomaridoaolado.Depoiscomeçouaquererandarsozinha.Asvezes,dajaneladotrailer,Nedvia-aexperimentarasasas,comomedo e a alegria de um passarinho que, após anos de gaiola, vê o mundo abrir-se à frente. Nessesmomentos,contenteporvê-lavoar,sentiaocoraçãoapertado,umfrionapele,ummedoincompreensível.
QuandochegouoAno-novo,omedojáerapânicoeperseguia-ovinteequatrohoraspordia.Atéque
eleentendeu: tinhamedodequeSandyvoassedoninhoparasempre.Eagoraaqueleestranhopareciapoderosoobastanteparaarrebatá-la.
—Estouexagerando—resmungou,colocandoosbifesnachapa.—Eclaroqueestouexagerando!Mas,aindaassimcontinuavapreocupado.QuandoacaboudeprepararopedidodamesadeErnieeFaye,orestauranteestavadeserto.Sandy
levouabandeja.Fayelevantou-se,trancouaportadeentradaeacendeuoavisoluminosodeFechado,visíveldaestrada...Estranho:nãoeramnemdezdanoite!
Balcãoarrumado,chapadesligadaepratoslimpos,Nedaproximou-sedamesaparadarumaolhadanoamigodeErnieedescobrirqueplanosestariafazendo.ViuSandycomumacervejaabertaàfrentee,maisestranhoqueisso,outracervejaoesperavaaoladodela,diantedacadeiravazia.
— Sente-se e não reclameda cerveja—ordenou-lheSandy, levantandoos olhos.—VocêvaiprecisardemaismeiadúziaparaouviroqueErnieeFayetêmanoscontar.
O homem chamava-se Dominick Corvaisis e a história dele era mesmo tão estranha que NedesqueceuoperigoimagináriodeSandyfugircomele.QuandoCorvaisisterminou,ErnieeFayecontaramtudoquesabiam.
—Masnósfomosrealmenteevacuados—Nedcomentou.—Nãoépossívelquetenhamosficadopresosnomotelportrêsdias...porqueeumelembroperfeitamentedeteraproveitadoaquelafolgaparadescansar,lerevertelevisão.
— Achoqueessaéaversãoque lhepuseramnacabeça—replicouDom.—Vocêsreceberamalgumavisitaduranteaquelesdias?Alguémquepossaprovarquevocêsestavamlá?
— Raramenteaparecealguémno trailer.Não,achoqueninguémpoderiaprovarqueestávamoslá...
— Oque eles querem saber é se houve algumamudança emnossa vida—Sandy explicou aomarido.—■Sealgumacoisadiferenteestáacontecendoconosco...
Semfalar,elefitou-anosolhos.Semumapalavra,dizia-lhequedependeriadelacontar-lhesounão.Domtentouajudar:
—Vocêsestavamaquinaquelanoite.Sejaláoqueforqueaconteceu,começouenquantoeuestavajantando.Vocêsdoistambémtestemunharame,comotodosnós,foraminduzidosaesquecer.
Que idéia horrível, Ned pensou, sentindo um calafrio. Como é que gente desconhecida pode nosensinaroquedevemosrecordareoquedevemosesquecer?Calado,examinouasfotosespalhadasporFayesobreamesa,especialmenteaquemostravaDomcomardezumbi.
Fayevirou-separaSandyecomentou:—Ernieeeuconhecemosvocêháalgumtempo,enãosomoscegos.Emaisdoqueevidenteque
vocêpareceoutrapessoadeunstemposparacá.Nãoqueroserindiscreta,nemmemeteremsuavida,massehouvealgumamudançaquepossaestarrelacionadacomoqueacabadeouvir,émuitoimportantequenosconte.
Porbaixodamesa,SandyapertouamãodeNede fitou-ocomolhosbrilhantesdeamor.Depois,pensouuminstante,tomouumgoledecervejaecomeçou:
—Passeitodaaminhavidaachandoqueeunãoeragente.Eimportantequevocêssaibamdetudo,para entenderem o que aconteceu comigo. Precisam saber como foi horrível minha infância paraentenderemcomofoimaravilhosoeuvoltaramerespeitarcomopessoa.Foimaisdoqueummilagre!Nedfoiaprimeirapessoaquemetratoucomcarinho,meajudouemedeuachancedeseralguém.—Elaapertou os dedos do marido. — Ned me conheceu há nove anos, e foi o primeiro homem que merespeitou.Casou-secomigo,mesmosabendoqueeueraumamulherdoentepordentroeatormentada...comosemeucoraçãovivesseamarradonumacordaduraecheiadenós.Passouseteanossededicandoa
melibertardessacorda.Elepensaqueeunãoseioquantotevedelutar,maseusei...Parouuminstante,emocionada,tomoumaisumgoledecervejaecontinuou:—Oqueeuqueriadizeréque...Bem,euachoque,sejaláoqueforqueaconteceuporaqui,foi
muitoimportanteparamimemeajudouaveromundocomoutrosolhos,eamimmesma...Mas,seNednãoestivesseameu ladohá tantosanos,meajudandoaviver, eu talveznemestivessemaisaquiparaver...nãoseioquê...
Nedengoliuemseco,agargantaapertada,osolhosmarejadosdelágrimas.Sandysorriu-lhe,fixouosolhosnocopodecervejae,docomeçoaofim,contouocalvárioquehaviasidosuainfância.Nãoentrouemdetalhesquantoaosataquessexuaisquesofriadopai,masfaloumuitosobreotempoemqueelealevavaaumbordeldecriançasemLasVegas.Navozcalma, semdramatizarnada,ohorrordaquelascenas parecia ainda mais avassa,-lador. Em volta da mesa, todos a ouviam em respeitoso esolidáriosilêncio.Acadapalavra,maissentidofaziaoqueeladisseranoinício;quehaviaacontecidomaisdoqueummilagreemsuavida...
Quandoterminou,Nedabraçou-acalado,estreitando-acontraopeito.Sandyeraumamulherforte,amulhermaisespecialecorajosadomundo.Eoqueacabava
dedizertornava-aaindamaisespecialaosolhosdomarido.Pormais tristequefossesuahistória,Nedsabiaque,maisdiamenosdia,ela teriadefalar...esó
falariaquandosesentissemaisfortequeseupassado.Nedlevantou-se,foiatéageladeiraevoltoucommaiscincogarrafasdecerveja.Quandosesentou
novamente,Domrompeuosilêncioque,apósorelatodeSandy,instalara-seaoredordamesa.— Issomuda tudo— começou.—Quero dizer... Todos nós, até agora, tínhamos razões para
acreditarqueaexperiênciapelaqualpassamosfoiterrívelesócausouefeitosnegativos,comominhascrisesdesonambulismoouanictofobiadeErnie.Claroque,emcertosentido,eutambémrecebialgumefeitopositivo:conseguisairdocasuloemquevivia.MasSandysórecebeuefeitospositivos!Todosnósestamospassandoporumafasetenebrosa,eSandyestáfelizpelaprimeiraveznavida.Comoamesmacausapodedesencadearefeitostãodiferentes?Vocênãosenteummínimodemedo...quandodorme,porexemplo?
—Não—Sandyrespondeu.Desdequeentraranorestaurante,Erniemantinha-seencolhidonacadeira,silenciosoecabisbaixo.
Derepente,porém,ergueuacabeça,recostou-seconfortavelmenteerelaxou.—Nãohádúvidasdequeomedoestápresenteemtodosnós,menosemSandy,talvez—declarou,
voltando-seemseguidaparaaesposa:—Lembra-sedaquelelugar,juntoàrodovia,apoucosquilômetrosdaqui?Olugarondeconteique
estive.Eestranho,mastenhocertezaabsolutadequealgumacoisaaconteceulá...umacoisaqueépartedaslembrançasquenosforamtiradas.Masaverdadeéquesentiláalgoquenãofoiapenasmedo.Meucoração disparou, fiquei emocionado... um tipo de sensação que não eraapenas desagradável.Haviamedo,sim...masoutrasemoções,também.
—Talvezsejaolugarparaondeeusempreacaboindoquandosaiocomacamioneta—disseSandy.—Écomoseeufosseatraídaparalá.—Euvi!—Ernieremexeu-senacadeira.—Hojecedo,quandovoltavamosdoaeroporto,percebi
quevocêdiminuiuamarcha.Eacheiqueestavasentindoamesmacoisaqueeu.—Eoqueéquevocêsentelá?—FayeperguntouaSandy.Comumsorrisonovoeluminosodançando-lhenorosto,elarespondeu:—Paz.Simplesecompletapaz.Edifícilexplicar,masécomoseaspedras,asárvores,apoeira...
tudoaliirradiasseharmonia,tranquilidade...— Não...Naoépazoqueeusinto lá—Erniesuspirou.—Medosemdúvida,umaespéciede
ansiedade. A sensação de que vai acontecer alguma coisa terrível. Uma coisa que desejodesesperadamentever,masque,aomesmotempo,medeixamortodemedo.
—Poiseunãosintomedonenhum—declarouamoça.—Esefôssemosatélá?—Nedperguntou.—Paraveroqueacontececomosoutros?—Vamosamanhãcedo—disseDom—,quandoestiverdiaclaro.—Háoutracoisaquemeintriga—Fayefranziuatesta.—Cadaumdevocêsestásofrendoum
tipo de alteração de comportamento. A de Sandy parece ser para melhor. Mas o coitado do senhorLomack se suicidou, Ernie passa por crises de fobia aguda, Dom tem pesadelos e crises desonambulismo, GingerWeiss apresenta graves problemas psicológicos... E eu? E Ned? Por que nãotemosproblemassemelhantes?
—Talvezporqueopessoalencarregadodalavagemcerebralsededicoumaisavocês...—sugeriuDom.
Todoscalaram-se,semsaberoquedizer.Nedfoioprimeiroarecuperar-se.—Esevocêtentassereconstituirtodososseuspassosnaquelanoite?—sugeriu,virando-separa
Dom.—Desdeomomentodachegadaatéopontoemqueaslembrançasforamapagadas.Pareceque,pelomenosatécertoponto,vocêselembradoqueacon-
teceu aqui no restaurante. Hoje mesmo, quando saiu correndo, estava a ponto de se lembrar dealgumacoisa...eporissofugiu.
—É...—Domconcordou.—Chegueibempertodeumalembrança,masveioomedoedispareiportaaforacomolouco.Estavaalucinadodemedo.Ummedovisceral,instintivo,in-controlável...Achoquevoltará,seeurepetiroesforço.
—Aindaassim,valeapenacorrerorisco—Nedinsistiu.—Eagoraestamosaquiparaajudá-lo—disseFaye.Ned percebeu que seria preciso insistir muito para animar Dom a repetir a experiência, o que
significavaqueoterrordomomentodachegadatalvezsuperasseoqueeledizia.Dom,porém,levantou-secomagarrafadecervejanamãoefoiatéaportadeentrada;voltou-se,parouebebeuumlongogole.Depois,lentamente,correuosolhosaoredor,comoquetentandorememorarquaispessoasestavamnasmesasnaquelanoite,6dejulho,doanoretrasado.
—Haviatrêsouquatrohomensjuntoaobalcão—começou.—Masnãolembroquemeram.—Afastou-sedaporta,passoupelosquatrocompanheiros,aproximou-sedamesaqueocuparanopassadoepuxou uma cadeira.—Eume sentei aqui. Sandy veio atender. Tomei uma cerveja enquanto olhava ocardápio.Pediumsanduíchedeovosepresunto,batatasfritasesaladaderepolho.Estavacolocandosalnasbatatasquandoosaleiromeescapoudamãoederramousobreatoalha.Pegueiumpoucodesalejogueiparatrás,porcimadoombroesquerdo.Umabobagem.Acabeijogandomaisdoquequeriaeosalatingiu...GingerWeiss!Eraela!Agoraestoulembrando...Sim\Amoçaqueestavaatrásdemimeacabouatingidapelosaleraaloiradafoto!
Emsilêncio,FayeapontouafotodeGingersobreamesa.Domcontinuoufalando:— Muito bonita...Rostinho de boneca,mas um ar sofisticado e inteligente.Umamisturamuito
atraente.Eunãoconseguiatirarosolhosdela.Ned debruçou-se para examinar a foto. Podiamesmo ser bonita... se não estivesse tão pálida, de
olhosparadosevazios,comomorta.Numavozcadavezmaisdistante,comoseviessedopassado,Domprosseguiu:—Elaestásentadanamesadocanto,pertodajanela,olhandoparafora.Osolsepõecomouma
boladefogo,etodoorestauranteestábanhadodeluzavermelhada.Parecequeháumincêndioláfora,mas é sóo crepúsculo.GingerWeiss émuitobonita... temcabelos luminosos...Não consigoparar deolhar para ela...Voupedir outra cerveja.—Levou a garrafa aos lábios e bebeu.—Apaisagemestáinundadadevermelho...vaiescurecendo...jáéquasenoite...
Aflitos, os quatro acompanhavam a luta desesperada de Dom, rezando para que se lembrasse.Pequenos detalhes daquela noite surgiramnamemória deNed: o padre ruivo estava no restaurante, ocasalcomagarotinhatambém.
—Jáescureceu...econtinuoabeberminhacervejabemdevagar,paraficarolhandoparaGingerWeiss.—De repente,Dom retesou-se na cadeira, olhou para os lados, levou amão direita à orelha,comoque tentando localizar algum som.—Estou ouvindo uma coisa...Um ruído estranho.Ummotormuitodistante... cadavezmais forte.—Calou-see respirou fundo.—Nãoseidemaisnada.Algumacoisaaconteceu...masnãoconsigolembrar.
Quandoele faloudo ruído,Ned teveavagasensaçãodeque tambémouviraumbarulhoestranho,muito distante, vagamente assustador. Mas foi tudo. Era como se as palavras de Dom o fizessemaproximar-se de umpântano negro e perigoso, para o qual precisava olhar,mesmo não querendo.Dequalquermodo,pormaisquetentasse,jánãoconseguiavernada.Comocoraçãoaossaltos,insistiu:
— O ruído...Concentre-se nesse ruído.Tente se lembrar de onde vinha, se era agudo, grave...Talvezissoajudevocêaselembrardorestodacena.
Domlevantou-sedacadeira.—Umruído...comoumtrovãomuitodistante...queseaproximarapidamente.—Paradojuntoà
mesa,voltava-sedeumladoparaoutro,olhandoparaotetoeparaochão,comosequisesselocalizaraorigemdosom.De repente, Ned ouviu. Não no passado, mas no presente, ali, naquele instante, um só ruído,
constante, uniforme, cada vezmais próximo...Olhou em torno e percebeu que não estava imaginandocoisas:todosouviamomesmoruído.
Maisalto.Maisalto.Osomfaziavibraramesa,ochão,osseusprópriosossos.Ned ainda não atinava comnada do que ocorrera naquela noite,mas já tinha certeza de que tudo
começaracomaquele ruído.Afastouacadeirae levantou-se.Comosom,cresciaomedo.Vontadedefugir...decorrer.
Sàndy levantou-se também, o medo estampado no rosto. Ainda que a experiência a tivessetransformadoemoutramulher,melhoremaisfeliz,oruídoenchia-ademedo.Tocouobraçodomarido,procurandoapoio.
Ernie e Faye vagavam o olhar, tentando localizar a origem do barulho. Ainda não estavamassustados. Talvez lhes restassem apenas fragmentos de lembrança, desligados uns dos outros e doseventosdanoitede6dejulho.
Um segundo ruído, como um assobio muito forte, misturou-se ao trovão. Um som familiar edesagradávelaosouvidosdeNed.
Iaaconteceroutravez!Nãoimportaoqueocorreranaquelerestauranteenaquelanoite,hámaisdedezoitomeses,iaaconteceroutravez.Comoantes\Nedouviu-seberrar,apavorado:
—Não!NãolCorvaisisrecuoudoispassos,afastando-sedamesa,evirou-separaosoutros.Estavalívido.O ruído de trovão fazia vibrarem as vidraças do restaurante. Uma das persianas batia contra o
caixilhodemadeira.Ascortinasagitaram-sefuriosamentenasroldanasqueasprendiam.OsdedosdeSandy,pousadosnobraçodeNed,crisparam-sedeterror.ErnieeFayepuseram-sede
pé,tãoapavoradosquantoosoutros.
Oassobioaproximava-se,cadavezmaisestridente,fazendoco-roaotrovão,etransformando-senumzumbidomuitoagudo,comooproduzidoporumaserraelétrica
dealtarotação.—Mas...oqueéisso?!—Sandygritou.Esuavozperdeu-senoruídoqueestremeciaasparedes.AgarrafadecervejacaiudamesadeDomequebrou-se,espalhandocacoserestosdebebidapara
todososlados.Nedolhouparaumadasmesasaseuladoeviuqueosobjetossaltavamsobreatoalha,batendounsnosoutros;osvidrosdetemperos,oscopos,ocinzeiro,ospratosetalheres.Umcopocaiuerolousobreatoalha.Umsegundocopofoiaochão,seguidopelofrascodecatchup.Acenarepetia-seemtodasasoutrasmesas.Naparede,oenormerelógiocomologotipodeumafábricadecervejasoltou-sedoganchoeespatifou-senochão.
Exatamenteoqueaconteceranaquelanoitede julho.AtéaíNednão tinhadúvidas...masera tudo.Nãoconseguialembrar-sedoquepoderiateracontecidodepois.
— Pare com isso!— Ernie gritou com a convicção e autoridade de um oficial da Marinha,habituadoaserabedecido...esemomenorresultado.
Talvezfosseumterremoto.Masumterremotonãoexplicariaozumbidoestridentequesoavajuntocomotrovão,comoseviessedoestacionamento,emfrenteaorestaurante.
Ascadeirasdeslizavampeloassoalho,colidindoumascontraasoutras.Umacadeiraaproximou-sedeDom,fazendo-osaltar,assustado.Ochãoestremeceu.
Oruídoera insuportável,o trovãoroncavasobreo telhado...Eentão,comoumabomba,ograndevidrodajaneladafrenteexplodiu,arremessandocacosportodososlados.Fayegritou,cobrindoorostocom os braços dobrados. Ernie pulou para trás e quase caiu sobre uma cadeira derrubada. Sandyrefugiou-senosbraçosdeNed.
Seaspersianasnãoestivessemfechadas,oestragoteriasidoconsideravelmentemaior,porquetodososcacosdevidroteriamvoadoparadentrocomoumasaraivadadebalas.Aindaassim,avio-
lência da explosão fez as persianas voarem, arrancou uma das cortinas e jogou uma chuva deestilhaçossobreascostasdeNed.
Depoisdaexplosão,osilêncio.Umavezououtra,comovindodemuitolonge,ouvia-secairumpequenocacoaindapenduradoàs
persianas.No verão retrasado aconteceram outras coisas além do zumbido, porémNed não se lembrava de
maisnada.Dequalquermodo,naqueleinstante,nadamaisaconteceria.Porhora,voltavaareinarapaz.Domtinhaumpequenocortenorosto,comoumtalhodelâminadebarbear.Erniehaviaferidoatesta
eodorsodeumadasmãos, semmaiorgravidade.Nedexaminouo rostodeSandyeperguntou-lheseestavabem;vendo-asorriraliviada,correuaabriraportaefoiatéomeiodoestacionamentoprocurandoalgumindíciodoqueaconteceu.Encontrouapenasanoite,aescuridãosolene,profundaesilenciosadasplanícies.Nãohaviasinaisdefogooufumaça,nemqualquerindíciodeexplosão.Pelarodovia,delonge,trafegavamoscarroseoscaminhõesdetodasasnoites.
Emfrenteàrecepçãodomotelhaviacertaagitação.Aindaemtrajesdedormir,oshóspedesreuniam-se em grupos, olhando para os lados do restaurante, intrigados, querendo saber o que po-deria teracontecidolá.Masnãopareciamamedrontados.
O céu brilhava, pontilhado de estrelas. No ar gelado, soprava uma brisa leve... como um últimosuspiro.Nadaporalipoderiatercausadooruídodetrovãoouozumbidodeserraelétrica,ouotremordeterra,ouaexplosãodasvidraças.
DomCorvaisisapareceuàportadorestaurante,perguntando:—Masoqueaconteceu?
—Euiafazeramesmapergunta...—replicouNed.—Aconteceu...omesmonoverãoretrasado...—E...eusei.—Masfoisóocomeço.Droga!Naoconsigolembraroquehouvedepoisqueavidraçaexplodiu...—Nemeu.Domesfregouasmãos,aflito,eentãopercebeu,àluzazuladadoletreirodeneon,queasmarcasavermelhadashaviamvoltado.Mostrou-asaNed,queseinclinou
paraverosdoisnítidosanéis.—Mas...oquepodeteracontecido?—Dommurmurou.Sandyesperavaàentradadorestaurante.Nedcorreuparaelaeabraçou-acomforça.Sentiu-aestremecer juntoaopeito,masnaopercebeuoquantoelemesmo
estavaassustado,atéouvi-ladizer:—Querido,vocêestátremendo...O medo... Também para ele, afinal, chegara a hora do pavor. Ned também se envolvia em algo
grandioso,muito importante, terrivelmenteperigoso,que talvezacarretasseamortedeumdelesoudetodos...Ohomemdosconsertosimpossíveis,capazdefazerfuncionarqualquercoisavivaouinanimada,descobriaumaentidadecontraaqualnadapodiamsuasferramentas,nemsuainabalávelcapacidadedeamar.EseSandylhefosseroubada?Oquepoderiafazerpararepararosirremediáveisdanosdamorte?
Pelaprimeiravez,desdeodiaemqueaconheceraemTucson,Nedsentiu-seimpotenteparaprotegersuamulher.
Nohorizonte,aLuacomeçavaasurgir.
CINCO________
12-14dejaneiro
1.DOMINGO,12DEJANEIRO
Oarpesavacomochumboderretido.Nosonho,Domnãoconseguiarespirar.Algumacoisaestavaprestesaexplodir-lhenopeito.Tremia.
Estavamorrendo.Nãovianadaaoredor,osolhosperdidosnaescuridão.Doishomensaproximaram-sevestidosem
trajesdelaboratório,macacõesdeplásticobrancocobrindo-osdospésàcabeça,osrostosocultospelosalvoscapuzescomvisorestransparentesebrilhantes.
Um dos homens acercou-se da cama deDom e, como que desesperado, arrancou-lhe do braço aagulha intravenosa.Ooutroexaminouosgráficosdoeletroencefalógrafo;depoiscorreuparaacamaearrancou os eletrodos colados ao tórax de Dom. Juntos, os dois ergueram-no, fazendo-o sentar-se.Deram-lhealgumacoisaparabeber,masagargantacerradarecusou-seaengolir...Então,umdoshomenspuxou-lheacabeçaparatrás,enquantoooutrolhejogounabocaumlíquidoamargoenauseante.
Osdoisfalavamentresiatravésdosradiotransmissoresinstaladosnoscapacetes,masestavamtãopróximosqueDompodiaouvi-losatravésdosvisores.Umdelesmostrava-seaflito:
—Equantosprisioneirosforamenvenenados?—perguntou.—Ninguémsabecomprecisão—respondeuooutro.—Nomínimo,umadúzia.—Mas...equemteriamandadoenvenená-los...?—Ora...éfácil.Adivinhe.—OcoronelFalkirk...—resmungouoprimeiro.—Aquelefilhodaputa...—Vocêsabequejamaisconseguiremosprovarnadacontraele.Corterápido.Nobanheirodomotel.OsdoishomensmantinhamDomempésegurando-opelasaxilas.Tentavam
fazê-lovomitar.Empurravam-lheacabeçaparadentrodapia.OcoronelFalkirk,aquelefilhodaputa,tentara envenená-lo, e os dois mascarados queriam obrigá-lo a vomitar o veneno. Mas Dom nãoconseguia...Oestômagoqueimava-lhe,osuorcorria-lhepelatesta...Enãoconseguiavomitar.
—Precisamosdeumasondadelavagemestomacal—disseumdosmascarados.—Vocêsabequenãotemostempo...O outro pressionava-lhe a cabeça para dentro da pia. Dom já não conseguia respirar, o coração
pareciaapontoderebentar...Desmaiou,voltouasi,viuasalagirar...e,afinal,vomitou.Corterápido.De volta à cama, fraco como um bebê, Dom pelo menos já respirava melhor. Os homens de
uniformeslimparam-no,tiraram-lhearoupaeamarraram-nodenovo.Odadireitapreparouumainjeçãoe aplicou-a— com certeza alguma droga para neutralizar os efeitos remanescentes do veneno. O daesquerdainstalou-lhenobraçooequipamentointravenoso.Dommalconseguiamanterosolhosabertos.Oeletrocardiógrafoestavaligado.Enquantotrabalhavam,osdoishomenscontinuavamaconversar:
—Falkirkéumidiota.Nãoháamenorpossibilidadedeesconderoqueaconteceuaqui.—Eletemmedodequeobloqueiodememórianãosejasuficienteeque,derepente,algumdeles
selembredoqueviu.— E pode até estar certo...Mas como é que ele explicaria tantos cadáveres?!Assassinato em
massa! Isso atrairia centenas de repórteres... e a notícia se espalharia como poeira. Basta umalavagemcerebral!
—EporquenãotentarconvenceroimbecildoFalkirk?Euestoudoseulado,certo?
Asduasfigurasbrancasdesapareceramàmedidaquesuasvozessetornavamcadavezmaisfracasedistantes.Opesadeloeraoutro.Apavorado,Domtentoufugir,masospésnãodesgrudavamdochão.Eele precisava sair dali porque alguma coisa o perseguia. Uma ameaça sobre-humana... inumana...aproximando-secadavezmais.Nãohaviafugapossível.Sólherestavaencararofantasma.Domparoudesedebater,ergueuosolhosparaocéu,egritou:
-ALua!Acordou como somdos próprios gritos.Estava noMotelTran-qüilidade, noquarto 20, caído ao
lado da cama, tentando soltar-se da corda que o mantinha preso à cabeceira. Na mesinha, o relógiomarcavatrêshoraseseteminutosdamadrugada.
Como ele previra, o fato de dormir no mesmo quarto acelerara o processo das lembranças. Ospesadelostornaram-semuitomaisvividos,coerentesefartosemdetalhes.Jánãoeramapenasfantasiaselaboradas sobre uma realidade soterrada na memória, mas as próprias lembranças voltando à tona.Agoraeramfatosqueelecomeçavaarecordar.
Estivera realmente preso naquelemotel.Alguém o drogara e o fizera passar por um processo delavagem cerebral.Durante aqueles dias de calvário, um coronel chamado Falkirk tentara envenená-loparaimpedi-lodefalarsobreoquevira...
Falkirk estava certo, pensouDom.A lavagem cerebral não foi suficiente para nos fazer esquecertudo,parasempre.Talvezomelhorfosseterusadoveneno.
No domingo de manhã, Ernie comprou algumas folhas de compensado para vedar as janelas dorestaurante.Mediu os quadrados necessários, serrou-os e, coma ajuda deNed eDom, pregou-os nasjanelas.Aomeio-diaoserviçoestavapronto.Haviampensadoemchamarumvidraceiropara instalarnovos vidros, mas, afinal, preferiram o compensado, ponderando que os fenômenos da noite anteriorpoderiamrepetir-se.Atéquedescobrissemoqueaconteceraali,asjanelascontinuariambemvedadaseo restaurantenaoabririaparaninguém.Nãoqueriamquenadaatrapalhasse suaspesquisas sobreo tal“vazamentodesubstânciatóxica”.
Depoisdapartidadoúltimohóspede,chegadonavéspera,sóficariamnomotelErnie,Faye,Domequaisquer outras vítimas que fossem localizadas ou que decidissem ir a Elko County participar dasinvestigações.Ernienãosabiaquantosquartosseriamnecessáriose,porviadasdúvidas,decidiudeixarvagos todos os vinte. Daquele momento em diante, o motel era quartel-general e abrigo das tropasaliadas.Alipermaneceriamossoldados,atéofinaldaquelaguerracontrauminimigodesconhecido.
Concluídooconsertodasjanelas,entraramtodosnocarro,eFayeconduziu-osaolocalqueErnieeSandyconsideravamtãoespecial.Láchegando,descerameficaramparadosnoacostamentodarodovia,osolhosvoltadosparaosul.Tentavamestabeleceralgumtipodecomunicaçãocomopassadoeavistarofatorinvisívelquetalvezseescondesseali.
Osolstíciodeinvernoocorreratrêssemanasantes,eosolbrilhavapálido,distanteefrio.Emplenojaneiro, planícies, montanhas, arroios e pequenas formações rochosas tingiam-se de escuros tonsmarrons,cinzentosevermelhos,compoucasedistantesmanchasdenevebranca.Asvezes,quandoumadasnuvenspesadasaproximava-seeencobriaosol,apaisagemtornava-seaindamaissombria,semnadaperderemmajestadeegrandeza.
Faye queria ter alguma emoção especial e partilhá-la com Ernie e os outros, mas não sentiaabsolutamentenada.Oquesignificavaapenasqueseucérebroforalavadocommaiseficiênciaecuidadoquequalqueroutro.Easensaçãodetersidoviolentadanossegredosmaisíntimosfazia-aestremecerdefúria.Eraumamulherorgulhosa,segura,paraquemaidéiadesubmissãoaquem
querquefossesoavaquasecomopecadomortal.Ali,ondeseumarido talvezsentisseasemoçõesmaisviolentas,restava-lheapenasasensaçãodoventofrionoscabelos.
DomeNed não davam sinais de lembrar-se de nada. Sandy eErnie, entretanto, pareciam ler naspedrasdapaisagemdiferentesmensagenscifradas.SandysorriacomoaVirgemMarianomomentodaAnunciação.Ernie,muitopálido,osolhosesbugalha-dos,encolhia-secomoseestivesseàbeiradeumacrisefóbica.
—Vamoschegarmaisperto—sugeriuSandy.Juntos,os cinco saltaramagradedeproteção,deslizarampelobarrancoe andaramnadireçãoda
planície,cinqüentaoucemmetrosàfrente,pisandocautelosamentenomatodeespinhossecos.Emalgunspontos,omatomarromeespinhentocedia lugara tufosdecapimmacio,aindaverde, sinaldequealicomeçavamasférteispastagensdonorte.
Acercadeduzentosmetrosdaestrada,Ernieparounumpontoquenãopareciadiferentedequalqueroutrometroquadradoaoredor:
—Eaqui—disse,comasmãosenfiadasnosbolsosdocasaco.—E...—Sandysorriu.—Aquimesmo.Oscincoespalharam-sepelaárea,andandoaesmo,deumladoparaoutro.Nãofossemaspequenas
manchasdeneve,ouumaeoutraflordocampobrotandoforadeestação,apaisagemseriaamesmadoverãoretrasado.
Uminstantedepoisdeouviravozdaesposa,Nedestremeceu,surpreendidoporumaondademedo.Semdizerumapalavra,deuascostasaogrupoeafastou-se.Nadaali sugeria-lheapazdequeSandyfalara.Elacorreuatrásdomarido.
DepoisfoiavezdeDom.Nãosentiapaz...mastambémnãosentiapavor.Suaemoçãoaproximava-semais da que Ernie descrevera: medo, sim, mas temperado com a inexplicável sensação de estartestemunhandoumacontecimentofantástico,deslumbrante,divino,epifânico.
Fayeeraaúnicaanãodarsinaldequalquerlembrança.Paradodefrenteparaohorizonte,Domvirou-sedevagareperguntounummurmúrio:—Oqueaconteceu?Oquepodeteracontecidoaqui?Océujáestavafechado,osolencobertopelasnuvens.Ventavamuito.Fayeestremeceu.Crescianela,acadainstante,asensaçãodetersidoroubada.Quandochegassea
horadevingar-sedoshomensquelheroubarampartedaalma,osfitariabemnosolhoselhesperguntariacomopodiam ter perdidoos últimos resquícios dehumanidade, respeito e amor aopróximo!Naquelemomento,sabendoquepartesdeseupassadojánãolhepertenciam,descobriaquejamaisvoltariaaseramesmamulherdeantes.
Arrastadospelovento, tufosdecapimsecoestalavamnaspedras,provocandoumruídopavoroso,quefaziapensarnosesqueletosdospequenosanimaisdaplaníciederepentedespertadosdeseurepousoeterno.
Devoltaaomotel,noapartamentodosBlock,conversavamEr-nie,SandyeNedàvoltadamesadacozinha,enquantoFayepreparavacaféechocolatequente.
Dom,aotelefone,tentavafazercontatocomasoutrasoitopessoascujosnomesapareciamnalistadehóspedesdodia6dejulhodoanoretrasado.UmadelaseraGeraldSalcoe,deMonterey,Califórnia,queocuparadoisquartos,hospedando-secomamulhereasfilhas;deixararegistradooendereço,masnãootelefone.AtelefonistadaregiãodeMontereyinformouaDomqueonomenãoconstavadocatálogo.
Comumsuspiroderesignação,elepassouaonomeseguinte,CalSharkle,ocaminhoneiroamigodosBlock. Também não conseguiu nada, pois a telefonista de Evanston, subúrbio de Chicago, Illinois,informouqueaqueleaparelhoforadesligado.
— Podemosprocuraroutrolivromaisrecente,ondeCal tenhadeixadoonovonúmero—Erniepropôs.
Fayepousouumaxícaradecaféaoladodotelefoneefoiparaamesa.Naterceiratentativa,Domfez-lhessinalpositivo.EstavaligandopaiaAlanRykoff,emLasVegas.
Atendeu-oumavozdemulher.—SenhoraRykoff?—Domperguntou.Uminstantedehesitaçãonooutroladodalinha,eavozinformou:— Esse era meu nome de casada. Depois do divórcio voltei a usar meu nome de solteira,
Monatella.—Sim...Bem,eumechamoDominickCorvaisis.EstoutelefonandodoMotelTranqüilidade,em
ElkoCounty,Nevada.Asenhora,suafilhaeseuex-maridoestiveramhospedadosaquinomêsdejulho,hádoisanos,nãoéverdade?
—Sim,é...éverdade.—Precisamosmuitosaberseporacasoalgumdevocêsestáenfrentandoproblemas...psicológicos,
talvez...complicaçõesnervosas...Ahesitação,agora,eraquaseumaresposta,queJorjanãoconfirmou.—Oquesignificaisso?—esbravejou.—Umapiadademaugosto?Nãosabedoquehouvecom
Alan?— Por favor, acredite emmim.Não sei de nada sobre seumarido.Mas sei, com certeza, que
possivelmenteele,asenhoraesuafilhaforamafetadospor...umfenômenoqueocorreuaquidurantesuaestadia.Nessecaso,poderiamestarsofrendodedistúrbiospsicológicos...pesadelosquenãoconseguemrecordar...crisesnervosas...sonhoscom...aLua...
—Dooutroladodofio,osomdeumgritoabafado.Gritodesurpresaedemedo.Amulherpôs-seachorar.
—Aindanãoseioquepodeestarhavendocomasenhoraousuafamília—disseDom.—Maspossogarantir-lhequeopiorjápassou.Aconteçaoqueacontecer,daquiparaafrenteasenhorajánãoestásozinha.
Muito longe deElkoCounty, emManhattan, JackTwist passara a noite distribuindo dinheiro.Aovoltar do assalto ao carro blindado, emConnecticut, demorara horas procurando quem precisasse demuitodinheiroemerecesseganhá-lodepresente.Àscincohorasdamadrugada,afinal,conseguiulivrar-sedoúltimomaçodenotasroubadas.Àbeiradeumcolapsofísicoeemocional,voltouaoapartamentonaQuintaAvenida,caiunacamaedormiudeimediato.
Novamentesonhoucomarodoviadeserta,banhadapeloluar,ondeumdesconhecidooperseguia,orostoescondidoatrásdeumcapacete.Acordouempânico,àumada tarde,quandonopesadeloaLuacomeçavaatingir-sedevermelhointensocomosangue...Oquepoderiasignificaraquilo?
Saiudacama,tomouumbanhoebarbeou-se;depoisvestiu-se,comeualgumacoisaevoltouparaoquarto.Abriuaportaquecobria todaaparede, removeuo fundo falsode trêsouquatroprateleiras eretiroutudoqueláhavia.AsjóiasdoassaltodeoutubrohaviamsidovendidaseboapartedodinheirodaMáfia convertera-se em cheques que, por sua vez, foram parar em três contas numeradas em bancossuíços.Restavamapenascentoevinteecincomildólares,umareservaquesempremantinhaaoalcancedamãoparaaeventualidadedeprecisarfugirdopaís.
Passou boa parte do dinheiro para umamaleta: novemaços, e cada qual com cem notas de cemdólares.Deixou no armário vinte e cincomil dólares, quantiamais que suficiente para viver durantealgumtempo.Emboraestivessedispostoadistribuirumafatiaconsideráveldafortunaqueacumularaemanos de roubos, não tinha a intenção de doar todo o dinheiro do qual dependia sua sobrevivênciaimediata.Essetipodeesmolatalvezfizessebemàsalmasculpadas,masconstituíarematadaloucuraemrelação ao futuro.De qualquermodo, Jack tinha ainda onze cofres alugados em diferentes bancos da
cidade,nosquaisguardavamaisdeduzentosmildólares.EsuastrêscontasnaSuíçatotalizavammaisdequatromilhões...Nuncaprecisariadetantodinheiro,porissoplanejavadistribuirmetadedessafortunaao longodasduasou três semanas seguintes.Depois,poderiaparar edecidiroque fazerdavida.Sefosseocaso,semprepoderiadoaraindamaisalgunsmilharesdedólares.
Àstrêsemeiada tarde,partiuemdireçãoàcidade, levandoamaletacomdinheiro.Cadaumdosrostosquevia,rostoshostisatéavéspera,pareciasorrir-lhe,comapromessadasprimeirasluzesdeumanovaesperança.
AcozinhadosBlockcheiravaacaféechocolatequente.Poucodepois,quandoFayecomeçouaassarbolinhos, perfumou-se de canela e açúcar queimado. Dom continuava ao telefone e os outrospermaneciamreunidosàvoltadamesa.
DomconseguiufalarcomJimGestron,umfotógrafoquenaqueleverãoviajarapelaregiãoaserviçodeumarevista.DeinícioJimpareceuinteressado,masàmedidaqueseinteiravadosdetalhes,tornou-secadavezmenoscordial.Não,nãoestavasofrendodequalquer tipodedistúrbio,nem tinhapesadelos.Talvezfosseoutrocasodelavagemcerebralbem-sucedida.OfotógrafoouviuadescriçãodanictofobiadeErnie,dosonambulismodeDom,daobsessãopelaLuaeatémesmoodosuicídiodeLomack,comamesmaatençãoquedariaaopalavreadodeumdoidodehospício.FoioquedisseaDom,segundosantesdebaterotelefone.
Harriet Bellot, em Sacramento, também não apresentava problemas. Era solteira, tinha cinqüentaanos e lecionava numa escola de subúrbio. Apaixonada pelo Oeste americano, não perdia chance deviajar para lá nas férias. Falava e pensava como professora, muito segura da superioridade de suainteligênciaedesuaespantosaquantidadedeconhecimentos.Nãoesperouadescriçãodasegundasériedeproblemaspossíveisparapedirdesculpasedesligarotelefone.
—Estávendo?—Erniedirigiu-seàesposa.—Vocênãoéaúnicaquenãoselembradenadaeestábem.
— Estou bem...— ela resmungou.— Daria qualquer coisa para ter medo de escuro, ou sersonâmbula... Não há nada pior do que a sensação de ter sido mutilada. E pior do que setivessemamputadoumademinhasmãos...Elesamputaramtrêsdiasdeminhavida!
Talveztenharazão,pensouDom.Talvezospesadelos,ascrises,osmedossejammenosterríveisdoqueasensaçãodevazionocoração.Umocototal,negro,silencioso.Comoumafatiademortenaalma,pesandointerminavelmente.
QuandoDominickCorvaisis ligouparaa IgrejadeSantaBer-nardette, àsquatroevinte e seisdatarde de domingo, o padre Wycazik realizava com um grupo de paroquianos a primeira de muitasreuniõespreparatóriasdaquermessedeprimavera.
Asquatroemeia,opadreMichaelGerranoentrounasalacomanotíciadequeumprimodovelhocuraestavaligandodeElko,Nevada,àsuaprocura.Poucashorasantes,BrendanconseguiraumlugarnovooparaReno,aproveitandoumadesistênciadeúltimahora.Naqueleexatomomento,umdiaantesdadata prevista, estava num aviãomuito acima de qualquer cabine telefônica...Quemestaria ligando deNevada?!
Stefanincumbiuoconfradededarprosseguimentoàreuniãoecorreuaatender.Empoucosminutos,Dommaravilhava-secomasfantásticashistóricasdascurasmilagrosasqueovelhotinhaparalhecontar,eStefanarregalavaosolhos,aosaberdosestranhosfenômenosqueocorriamemNevada.
— Seráquepossoalimentar algumaesperançadequeas curasqueBrendanconseguiu sejam...digamos...deorigemdivina?—perguntouopadre,afinal.
—Parasersincero,apesardacuradameninaedopolicial,queosenhoracabadecontar...não.Não consigo ver a interferência de Deus em nada do que está acontecendo. Há, isso sim,
pessoas,provavelmentemal-intencionadas,movendooscordões.Somosapenasseusfantoches.—Achoquevocêestácerto...—Stefansuspirou.—MastenhoodireitodeesperarqueBrendan
foichamadoatestemunharumacontecimentoqueofarávoltarparaocaminhodeCristo.Dissonãoabromão!
Domriu.— Pelo que ouvi até agora, emesmo sem conhecê-lo, acho que o senhor nunca abremão da
esperançadeconquistarumaalmadesencaminhada...Soucapazdeapostarquetemmétodosprópriosparaisso.Comosenhor,nadade
conversamansa e de paciência.O senhorme parece um... estivador deDeus...músculos e coração aserviçodoSenhor.E,porfavor,nãomeinterpretemal...Estoufazendoumelogio!
— Sei que é um elogio... — Stefan também riu. — Vivo com a firme convicção de que asdificuldadesfortalecemafé.Umestivador...aimagemmepareceboa.
—VamostomarcontadeseupadreCronin.Seeleforparecidocomosenhor,seráumconfortotê-locomoaliado.
— Eu também sou seu aliado. Se achar que posso fazer alguma * coisa para ajudá-los nasinvestigações, basta me telefonar. Se houver a mais remota possibilidade de que ocorra ummilagre,nãovouperderoespetáculo,pornadadestemundo!
OnomeseguintenolivroderegistroeraodeBruceCable,deFiladélfia,quesehospedaranomotelcomaesposa.NenhumdosdoisenfrentavaproblemassemelhantesaosqueDomdescreveu.De início,atésemostraraminteressadosnosdetalhesdahistória,masaospoucostornaram-seesquivoseacabarampordesligarotelefone,comoosprimeirosdalista.
OúltimonomedapáginaeraodeThorntonWainwright,comendereçoetelefonedeNovaYork.Umasra.NeilKarpolyatendeuàligaçãoedeclarou,semrodeios,queaquelenúmerolhepertenciahámaisdequatorze anos e que jamais ouvira falar em Thornton Wainwright. Dom perguntou-lhe se morava noendereçoqueconstavadolivrodehóspedeseaouviurir:
—Claroquenãomoro!EseWainwrightlhedissequemoraaí...comeceaescolhermelhorseusamigos.Possolheassegurarqueninguémmoranesseendereço,emboramuitagentesonheemmudar-separalá...EoendereçodaBloomingdale’s,agrandelojadedepartamentos.
QuandoDomvoltouàmesacomanovidade,Sandyarregalouosolhos:— Ora, telefoneeendereço falsos?Seráqueele sóquis fazerumabrincadeiraou...háalguma
coisaportrásdisso?Jacktinhaumestojocheiodecédulasdeidentidade,carteirasdemotorista,certidõesdenascimento,
cartões de crédito, passaportes e até inscrições em bibliotecas públicas em nome de oito cidadãosdiferentes,umdosquaiseraThorntonBainsWainwright.Eescolhiaumnomeparacadaassalto.
Naquelatardededomingo,porém,trabalhavanoanonimato,distribuindomaiscemmildólarespelascaixasdeesmoladeManhattan,ouondequerqueencontrassealguémcomcarademerecerumpresente.
Omaior donativo do dia coube a ummarinheiro e sua namorada de domingo, cujo velho carro,amassadíssimo,estavaparadocomproblemasmecânicospertodoCentralPark,juntoàestátuadeSimónBolívar.
—Compreumcarronovo—disse-lheJack,enfiandomaçosemaçosdedinheironosbolsosdohomem.—E,seéesperto,nãoconteaninguémsobreessepresente.Nãodigaumapalavraaosjornais...porqueoimpostoderendacairiasobrevocêcomoabelhasnomel.Nãotentedescobrirquemsouenãoprecisaagradecer.Cuidebemdesuanamorada...porqueninguémsabequantotempodefelicidadeaindalheresta.
Emmenos de uma hora, Jack distribuiu os cemmil dólares tirados do compartimento secreto do
armário. Com boa parte ainda pela frente, comprou um buquê de rosas vermelhas e rumou para ocemitérioondeJennyforaenterradaduassemanasantes.Decidiraqueaesposadescansariaparasemprenum lugarbonito, commuitagrama, floresnaprimaverae colinasnevadasno inverno,bem longedoshorrorososcemitérioscinzentosesuper-povoadosdocentrodacidade.
Chegouaolugarpoucoantesdocrepúsculoedirigiu-seàpequenacruzbranca, idênticaatodasasoutrasmas inconfundível para ele, porquemarcavao lugar onde Jenny repousava.Depositou as rosassobreotúmulo,colocandonapaisagemesbranquiça-
daumúnico toquecolorido, e sentou-senaneve, indiferenteao frioe àumidade.Então,pôs-seaconversar coma esposa, como sempre fizera nohospital.Contou sobreo assalto ao carroblindado esobreospresentesqueandavadistribuindopelacidade.Concluíaorelato,quandoumvigiaseaproximouparaavisarqueerahoradefecharocemitério.
— Estoumudando—murmuroujádepé,olhospostosnapequenalápidecomonomedeJennyinscritoembronze, iluminadopela luzdifusadeumdospostes—,masaindanãoentendoporquê.Ebom,sinto-mebem...masnãodeixadeserestranho.
Oquedisseaseguirsurpreendeuatéasimesmo:— Sinto que vai acontecer alguma coisa muito importante. — Começava a pressentir que a
reconciliação com o mundo de seus semelhantes era apenas o primeiro passo de uma jornada queolevariaalugaresdistantes.—Vaiaconteceralgumacoisamuitoimportante...—repetiu.—Eéumapenaquevocêjánãoestejacomigo.
Desdecedo,enquantoconsertavamasjanelas,atempestadecomeçaraasearmarparaosladosdohorizonte.Horasmais tarde, quandoDom saiu para ir ao aeroporto deElko apanharGingerWeiss, omundojaziasobnuvenscinzentas.Impacientedemaisparaesperarnocarro,Domplantou-senapistadepouso,ocasacofechadoatéopescoço,eouviuoroncodopequenoaviãodedezlugaresantesmesmodevê-loatravessarasnuvensparapousar.
Motoresroncando,céucinzento,tudocontribuíaparacriarumclimadeguerrapróxima.Domsentiuque, de certo modo, estava mesmo arregimentando suas tropas. Apenas o inimigo continuava oculto,porémtornando-semaispróximoacadainstante.
Ginger foi o quarto rosto a aparecer na porta do avião. Apesar do casaco de viagem, largo edisforme, pareceu-lhe linda, com os cabelos ondulando ao vento como uma bandeira dourada.Domcorreuemsuadireção.Gingerdesceuaescada,pôsasmalasnochãoeergueuorosto.Esperaramuminstante,umfrenteaooutro,semdizerpalavra,comamesmaeidênticasensaçãodealí-
vio,alegria,prazeremedo.Então,obedecendoaumimpulsoirresistívelquesurpreendeuaambos,abraçaram-se como velhos amigos que durante anos não se viam. Dom estreitou-a contra o peito, eGinger pendurou-se a seu pescoço com força e emoção, cada qual ouvindo a pulsação acelerada docoraçãodooutro.Domaindatentouencontrararazãodetãoestranhaatitude,maslogodesistiu.Aqueleeramomentodesentir,nãodepensar,eeledeixou-selevarpelaemoção.
Nenhumdosdoisqueriaseparar-seequando,afinal,Gingerdeuumpassoatrásaindanãosabiamoquedizer.Elagaguejava,sememitirqualquersomarticulado,eDomdiziacoisassemnexo.Elaapanhouumadasmalas,Domencarregou-sedaoutrae,semfalar,indicou-lheocaminhodoestacionamento.
Afinal,nocarro,comoaquecimentoligado,Gingermurmurou:—Mas...oqueteráacontecido?!Aindaimpressionado,masnemumpoucoembaraçadopeloabraçoqueosunira,Dompigarreou.— Para dizer a verdade, não sei.Mas acho que vivemos algumagrande emoção juntos...Uma
emoçãoquecrioulaçosdeafetoeconfiançaentrenós.Nãodavaparasaberdissoaténosencontrar,oumelhor,nosreencontrarmos,emcarneeosso.
—Eutinhasentidoumaemoçãomuitoestranhaquandovisuafotonacontracapadolivro...Masagora, ao sair do avião e dar com os olhos em você... foi como se o conhecesse a anos!—Gingerbalançou a cabeça. — Não, foi mais do que isso. Foi como um conhecimento mais forte, como setivéssemosvividoexperiênciasqueninguémjamaisviveu,comosehouvesseentrenósumsegredo...quepoderiamudaromundo!Pareceloucura?
—Não...—Domrespiroufundo.—Nãopareceloucura...Evocêdescreveuexatamenteoqueeusenti...
—Foiassimtambémcomosoutros?— Não. Senti que éramos um grupo unido... que havia um laço de afeto entre todos, mas foi
diferente.Todoogrupopassoupelamesmaexperiênciaestranha,masvocêeeuvivemosexperiênciasaindamaisestranhas...quenosmarcarammaisfundoe
nosaproximaramumdooutro.Quantomaissepensa,maismistériosaparecem!Pormaisdemeiahoraficaramparadosnocarro,conversando.Carrosecaminhõesiamevinhama
seu redor, ovento soprava cadavezmais forte egelado,mas elesnempercebiam.Só tinhamolhos eouvidosumparaooutro.
Ginger falou-lhe das crises de fuga, dos períodos de inconsciência, das sessões de regressãohipnótica,dobloqueiodeAzrael.Contou-lhesobreoassassinatodePabloJacksonedesuafuga.Elanãomentia nem exagerava para ganhar simpatia ou piedade; ainda assim, Dom olhava-a cada vez maisfascinado.Umamulherpequenina,magra,frágil...efortecomoumleão,lutandopelaprópriavida!
Entãofoisuavezdeinformar-lheosacontecimentosdasúltimasvinteequatrohoras.Quandoelaoouviucontarosonhodavéspera,sobreasprimeiras lembrançasquecomeçavamaemergir,elasorriu,aliviada. Ali estava a prova de que Pablo tinha razão: as crises de medo, as fugas, os períodos deinconsciêncianadatinhamavercomproblemaspsicológicos.Eramcrisesdisparadasporobjetosque,dealgummodo,associavam-seaoperíodoemqueestiveranoMotelTranqüilidade,comohóspedeoucomoprisioneira.Asluvaspretaseocapacetecomvisorpintadoaassustavamporquelhelembravamfatosjávarridosdesuamemória...detalhesdotrajedelaboratóriousadopelopessoalencarregadodeatendê-laduranteotempoemquesofreráalavagemcerebral.Apiaafaziacorrerporque,comcerteza,receberaomesmo tratamento queDom. Fora envenenada pelo tal coronel Fal-kirk... e obrigaram-na a vomitar ovenenonumapia.Enquantopermaneceraamarradaàcama,submeteram-naafreqüentesexamesdefundodeolhopara avaliar a açãodas drogas que lheministravam... e daí o pavor queo oftalmoscópio lhecausava. Não... não estava enlouquecendo! Continuava a mesma, saudável como sempre... lutandodesesperadamenteparaselembrardopassado.
—EosbotõesdoimpermeáveldohomemquematouPablo?Eosbotõesdatúnicadoguarda?—perguntouderepente.—Porquemeassustaramtanto?—SabemosqueoExércitoparticipouda...operação.Verdadequeosuniformesmilitaresnãotêm
botõescomleõesrampantes.Maságuiasamericanaseleõesinglesessãomeioparecidos,vocêpodetê-losconfundido.Haviamilitaresnomotel.
—Vocêfalouemgentecomtrajedelaboratório,nãoemmilitaresfardados.—Epossívelquetenhamtiradootrajedelaboratóriodepoisdosprimeirosdiasevoltadoàfarda.— Resta apenas a lâmpada externa da casa da RuaNewbury...—Ginger suspirou.— Já lhe
contei...umalanternadeferrobatidocomvidrocordeâmbar.Umaluzcomum,semnadadeespecial...masmefezficarinconscienteporváriosminutos.
—Nosquartosdomotelhálumináriasparecidascomessaquevocêviu.Osabajuresdasmesas-de-cabeceirasãoexatamenteassim:ferrobatidoevidrocordeâmbar.
—Deusdocéu!Entãonãohádúvida!Cadaumademinhascrisesfoidisparadaporumobjetoque
vidurantealavagemcerebral.—Seaindativeralgumadúvida,istovaiconvencê-ladequenãoestamosloucos—disseDom,
mostrando-lheafotoondeelaaparênciadeitada,amarradaàcama.Gingerempalideceudesustoaover-seencolhidaentreoslençóis,olhosdezumbi.Depoisdesviouo
olharemurmurou:— Gevalt... E uma loucura! O que pode ter acontecido conosco para justificar tudo isso?l
Equipamento e pessoal médico, gente treinada, tempo, muito dinheiro... Uma verdadeiraconspiração...organizadaearriscadíssima!Oqueseráquedescobrimos...ouvimos?!
—Logovamossaber.—Seráqueconseguiremos?NãoesqueçaqueelesmataramPa-blo...Esemataramum,porquenão
liquidarmaisalguns?—Creioqueháduasfacçõesemluta.Ogrupodelesestádividido...—•Domregulouotermostato
doaquecimentodocarro.— De um lado, os “durões”, representados ou comandados pelo coronel Falkirk.De outro, os
“mocinhos”... ou, pelo menos, os “menos durões”, representados por quem nos temmandado fotos ebilhetes. Os mesmos que apareceram em meu sonho, à noite passada. Os “durões” decidiram nosenvenenarparatercertezadequejamaisfalaríamos.Eos“mocinhos”votarampelalavagemcerebral...pormétodosmenosviolentosquenospermiti-riamvoltaràvidanormal.Considerandoqueaquiestamos,érazoávelconcluirqueos“mocinhos”sãoamaioria.
—MasoassassinodePabloeradaturmados“durões’”.—ProvavelmenteaserviçodeFalkirk.OassassinatodeseuamigoprovaqueFalkirkaindanão
desistiudematarqualquerumqueponhaemriscoseusegredo.Eumaameaçaqueaindapesasobrenós.Dequalquermodo,os“mocinhos”estão tentandonosajudar...oqueaumentanossaschances.Não fazsentidonosescondermosnumatocadecoelhoporqueoinimigopareceperigoso...
— Você tem razão—Ginger levantou o queixo.— Precisamos descobrir tudo... porque nãoconseguiremos viver enquanto não soubermos o que realmente aconteceu. — Correu os olhospelo estacionamento.— Eles já devem saber que estamos nos reunindo aqui, que começamos a nosorganizar.Achaqueestãonosobservando?
—Épossívelqueestejamvigiandoomotel—respondeuDom.— Mas tenho certeza de que não fui seguido ao vir para o aeroporto. Não tirei os olhos do
retrovisor.—Nãoprecisariamsegui-lo,sejásoubessemparaondevocêia...equemiaencontrar...—...comosefôssemosduaspulguinhaspulandonapalmadamãodeumgigantequetudovêetudo
sabe?—Podeser...Masjuroqueessegiganteaindavaisecoçarmuito...antesdemeesmagar!Dom soltou um gargalhada. A imagem era perfeita para ela: loira, pequenina... e feroz!Mas não
serviaparaErnie,porexemplo,ovelholobo-do-mar,—Oqueéquevocêestápensando?—Gingerperguntou.•—Sou“duranaqueda”...Vouencher
essegigantedecoceirasedeixá-lopulandonumpésó...antesquemereduzaaumamanchinhadesangue.Aovê-larirdaprópriatragédia,cheiadecoragem,Domachou-aaindamaisbonita.Elaofascinaria
mesmoquenãopartilhassemsegredoalgum,mesmoquefossemestranhosumparaooutro.Umamulhermuitoespecial!
—Vamosnosreuniràstropas?—Claro!Estouloucaparaconhecerosrecrutas...Asoutras“pulgas”dobatalhão.Meia hora antes de o sol se pôr, as sombras estendiam-se sobre as planícies e o vento levantava
nuvensdepoeira.Antesdechegaraomotel,DomlevouGingerao“lugarespecial”quehaviamvisitado,o ponto que encantava Sandy e fazia Ernie tremer demedo. A geada brilhava sobre o capim seco ecrestadodefrio.Dommanteve-seadistância,asmãosmetidasnosbolsosdocasaco,emsilêncio.Nocaminho,disseraaGingerquenãolhecontarianadaantesdemostrar-lheolugar,paranãoinfluenciá-la.
Poucos passos a sua frente, ela andava, para a frente e para trás, como num desses shows detelevisão que exibem paranormais de fim de semana, à procura de qualquer sensação “diferente”.Derepente,quandoaprimeiraimpressãoaatingiucomoumraioesqueceu-sedetudo,deondeestava,datelevisão, de Dom... e só pensou em escapar das sombras, como se, entre o capim, aparecesse umdemônio.Ocoraçãodisparou,eelasentiuarespiraçãocadavezmaisacelerada.
—Estádentrodemim.Estádentrodemim.Ginger virou-se, tentando localizar a voz. Era a voz deDom,mas não era ele quem falava, pelo
menosnãonaquelemomento.Avozvinhadetrásdela...ondenãohavianadaalémdecapimsecoeumapequenamanchadenevebrilhandoàluzcinzenta.
—Oqueaconteceu?—Domaproximou-se.Nãopodiaser.Acabavadeouvirsuavoz...dooutrolado!Ouvira-ofalar,naverdade,comoseavoz
estivesse...dentrodela!Aospoucos,começavaaentender.Umalembrança.Umfragmentoderecordação...Ouviraavozde
Dom, as palavras que ele dissera naquela outra noite, dia 6 de julho do verão retrasado. Palavraspronunciadasnaquelemesmolocal,repetidasduasvezes,comangústiaesurpresa:“Estádentrodemim”.
Gingervirou-seecomeçouavoltarparaarodovia.Domseguiu-a,chamou-aduasoutrêsvezes,maseladisparouacorrer,comolouca,atéchegaraocarro.Malpodiafalar,tremiadospésàcabeçaecommuitoesforçoconseguiucontar-lheoqueouviu.
—“Estádentrodemim”...—elerepetiu,atestafranzida.—Temcertezadequeeulhedisseissonaquelanoite?
—Tenho.—Mas...quediabosignifica?—Nãosei,masmearrepia.UminstantedesilêncioeDomfechouosolhos:—E...édedararrepios.Anoite,nomotel,Gingersentia-senumdiadefesta.Apesardasdificuldades, todosmostravam-se
felizesporestarreunidos.Trabalharamjuntosnopreparodojantar,e,aospoucos,elasedeixoucontagiarpelasolidariedadequeosligava.
Cozinheiroprofissional,Nedencarregou-sedopratoprincipal;peitodefrangoassado,commolhode tomatee cremede leite.Aospoucos, impôs sua simpatia aGinger.Seria impossívelnãogostardealguémtãoafetuoso:cadagesto,cadapalavradenotavamseuamorpelaesposa.QuantoaSandy,aúnicabeneficiada pelos efeitos do “fenômeno de julho”, era uma moça meiga, com os olhos brilhantes defelicidade, da alegria de renascer.Tagarelando comoboas e velhas amigas,Ginger eSandy cuidaramdoslegumesedasalada.
Fayeencarregou-sedassobremesas:tortafriadechocolateecremedebananas.Gingerobservava-a,descobrindoacadainstantenovasesurpreendentessemelhançasentreelaeRitaHannaby.
Só eram diferentes nos detalhes superficiais; quanto ao essencial, contudo, poderiam ser irmãsgêmeas:eficientes,fortesecheiasdecalorhumano.
DomeErniecuidavamdejuntarasmesaspequenas,arrumandotoalhas,pratosetalheresparatodos.Aprincípioassustado,Ernieagorasemostravagentilecheiodeatenções.Eradifícilnãosecomovercomatragédiaqueeraparaeleomedodoescuro...Umhomemfortecomoumtouro,reduzidoàmiséria
dechorardemedo,comoumbebê.Detodos,apenasDomtocava-ademodoespecial.Amesmasensaçãodesolidariedadequealigava
aosoutrostambémosaproximava,porém,haviaalgomais.Opassado,semdúvida.Algumacoisamuitoespecial, que apenas os dois haviampartilhado.Mas não era só isso.Dom a atraía comohomem, nopresente, em carne e osso. Outra surpresa, porque Ginger jamais se sentira sexualmente atraída poralguémque não conhecesse bem.Assustada como rumo que tomavam seus sentimentos, ela tratou deconvencer-sedequeDomnãolhedavaamínimaimportância.Oqueerabobagem...ajulgarpelomodocomoaolhava.
Duranteojantar,continuaramadiscutiridéias,possibilidadeseplanosdeação,tentandoalinhavarosretalhosdelembrançasquecadaumtinhaaoferecer.ComoDom,Gingertambémnãoselembravadeterouvidofalarem“vazamentodesubstânciatóxica”,coisaqueosBlockeosSarverrecordavamcomdetalhes.Domafinalconseguiuconvencê-losdeque tambémo“vazamento”era falso.Comcertezaosdoiseocasalamigoqueosvisitavanaquelanoitehaviamficadonomotel.FayeeErniegarantiramqueosJamisonnãotinhampesadelos,sonhosoualteraçõesdecomportamento—sinaldequeobloqueiodememória, no casodeles, comonodeFaye, continuava intato.Dequalquermodo,maisdiamenosdia,serianecessárioprocurá-losparaconversarsobreoassunto.
Nãofoifácil,masDomtambémconseguiuconvencerNedeSandydequenãohaviampassadotrêsdiasdefolganotrailer,lendoevendotelevisão,porque,comoosoutros,estavamamar-
radosàscamas,comagulhasnobraço,tomandodrogasparaesquecer.—Nãoéestranho—Fayeperguntou—quecadaumdenósselembrededetalhesdiferentes?Não
seriamaisfácil,paraeles,fazer-nosacreditarnamesmamentira?—Nocasodevocês—Gingertentouexplicar—,quevivemaqui,eraimportantefazercomque
se lembrassem do “vazamento” e do bloqueio da rodovia, porque o assunto estaria nos jornais, aspessoas comentariam, e vocês acabariam sabendo de alguns detalhes do caso. Mas Dom e eu, queestávamosdepassageme,commuitaprobabilidade,jamaisnosencontraríamosouvolta-ríafnosafalardo assunto, nao precisavamos nos “lembrar” dessa história. Por isso, nao incluíram isso em nossamemória.
— Não seria mais seguro se todos soubéssemos das mesmas coisas? — perguntou Sandy,levantandoosolhosdeumpedaçodefrangoespetadonogarfo.
—Litudoqueencontreisobrelavagemcerebral—declarouGinger—,desdequePabloJacksondescobriuquefuivítimadeumbloqueiodememória.Peloqueentendi,aúnicaexplicaçãopossívelparao fato de termos lembranças diferentes é a maior facilidade em implantar um bloco completo delembrançasfalsas,semqualquerrelaçãocomarealidade.Elesnão tinhammuito tempopara implantaremnossamemóriapequenosdetalhesquedãoverossimilhançaàsmentiras,entende?Vocêpodementiraalguémedizer,porexemplo,quefoiaocinema.Seficarnisso,amentirapodepassarporverdade.Massetentarentraremdetalhes,comohora,local,dia,nomedocinema,dofilme,dosatores,correráoriscode entrar em contradição e ver suamentira desmascarada. Por essa razão, eles deram “tratamento deluxo”sóparavocês,quevivemporaqui.Domeeurecebemos“tratamentocomum”...
—Fazsentido...—Ernieconcordou.—Mas,afinal—Fayelevantouavoz—,houveounãohouveotalvazamento?Eobloqueioda
rodovia?—Achoquehouvealgumtipodecontaminação—Gingerde-claroucruzandoostalheres.—NosonhodeDom,quenaverdadenãoésonhomaslembrança,os
doishomensqueofazemvomitarusamessestrajesprópriosparaáreascontaminadas.Seovazamentofosseverdadeiro,serianormalqueossoldadosencarregadosdeevacuaraáreausassemessesuniformes
narua,aoarlivre,paraproteger-se.Sefossefalso,teriamvestidotaistrajesparadespistaraimprensa,por exemplo.Mas por que os usariam aqui, dentro domotel, onde só nós poderiamos vê-los?Minharespostaésimples:porqueeraabsolutamenteindispensável.
Ernieolhouemvolta,comosevisseumanesgadenoiteesgueirando-sepelasjanelasfechadascomcompensado,pigarreouebalançouacabeça.
— Ora... E que tipo de contaminação poderia ser?— comentou.—Você, que émédica, temalgumaidéia?Poderiasercontaminaçãoporgásouporalgumabactéria?OsjornaisfalavamemprodutosquímicosqueestariamsendoentreguesnabasedeShenkfield.
Ginger pensava no assunto muito antes da pergunta. E chegou a uma conclusão que a deixoupreocupada.
— Demodogeral,os trajesusadosemcasosdevazamentodesubstância tóxicasãovedados...Incluemumrespiradorqueimpedeainalaçãodesubstânciasvoláteis,eumaroupadetecidoespecialqueprotege o corpoda cabeça aos pés, impedindoque qualquer produto químico entre emcontato comapele. Em alguns casos, juntam-se os dois equipamentos. Dom descreveu um traje especial de tecidogrosso e impermeável, commangas e luvas numa só peça, e um pesado capacete à prova de ar, comrespiradorautônomo.Nós,médicos,conhecemosesse...éusadonoslaboratóriosdepesquisadeagentesbiológicos,comobactériasoumicróbios.
Fez-sesilêncioàvoltadamesa.Nedlevouaoslábiosocopodecervejaebebeucomoseestivesseprestesacomeçarocombateàsbactérias.
—Entãofomoscontaminadosporummicróbio...—disse.— Umdessesmicróbios “inventados”...Guerra bacteriológica—Fayepensou emvoz alta, os
olhosfixosnoprato.— Um desses “bichos” que eles criam em Shenkfield... — Er-nie completou.— Um desses
“bichos”nojentos...—Masnãoestamosdoentes.Nemmorremos—Sandyobservou,sorrindo.— Sóporque fomos atendidos e tratados a tempo—explicouGinger.—As armasbiológicas
testadas em todo omundo são criadas aomesmo tempoque se cria o antídoto, prevendo-se casos deacidente ou a possibilidade de que a experiência fuja ao controle do pesquisador. Se fomoscontaminados,tivemosasortedereceberoantídotoatempo...
—Aospoucosascoisasseesclarecem,nãoé?Logovamoslembrardetudoe...—Não—DominterrompeuodiscursoassustadodeErnie.—AteoriadeGingeréboa,masnão
explicaoqueaconteceuaquinaquelasexta-feira.Nãoexplicaoquevimos.Nãoexplicao“terremoto”norestaurante.Nãoexplicaaexplosãodasjanelas...nemadeontem,nemadoverãoretrasado.
—Enãoexplicaosfenômenosestranhos—Fayecompletou.—AsfotosdaLuadançandonacasadeLomack,as“milagrosas”curasdopadreCronin...
Osseisentreolharam-se,cadaqualesperandoqueooutroachasseummododeexplicar.Ninguémdissepalavra.
Amenos de quinhentos quilômetros a oeste doMotelTranqüi-lidade,BrendanCronin deitou-se eapagoualuz.Eramnovehorasdanoite,maseleaindaviviaohoráriodeChicago,ondejápassavadasonze.
Apesardocansaço,nãoconseguiadormir.Depoisdeacharummotelondepassaranoite,emReno,edejantarnumalanchonetepelocaminho,telefonaraparaopadreWycazik.Foiaprimeiravezqueouviupronunciar o nome deDominick Corvaisis, com notícias suficientes para tirar-lhe o sono. Não era oúnicoaterproblemas.Omistérioeramaiorecontinuavaacrescer.Chegou
apensaremtelefonarparaoMotelTranqüilidade,maspreferiuesperaratéamanhãseguinte.
Já estava deitado fazia quase uma hora, pensando no que acontecera duas noites antes na casaparoquial,quandoaloucurarecomeçou.Dessaveznãohavialuar,nemqualqueroutrafonteluminosa.Aluz brilhou de repente, por cima da cama, vindo de todos os lados, como se casa átomo de ar setransformassederepentenumpequenosol,aprincípiobemesbranquiçado,depoismaisbrilhanteacadasegundo,passandodobrancoaoprata...Bren-dansentiu-sedeitadoemcampoaberto,banhadodeluar.
Nãoeraamagníficaluzdouradaquelheapareciaemsonhos.Derepente,a luzesbranquiçadaquebrilhava na cabeceira da cama tornou-se vermelha, cada vezmais vermelha... e ficou suspensa no ar,comoumagigantescabolhadesangue.
Estádentrodemim,Brendanpensou,sementender.Eomedoabateu-sesobreelecomoumaondagelada.
Ocoraçãobatia,disparado,apontodeexplodir.Elemalrespirava.Naspalmasdasmãos,osanéisreapareceram,latejantescomovermesvivos.
2.SEGUNDA-FEIRA,13DEJANEIRO
Namanhãseguinte,quandosereuniramnacozinhaparaocafédamanhã,Domdescobriuque,comoprevia,anoiteforainfernalparatodos.
—Começamosanoslembrar—disse.—Ofatodeestarmosjuntos...ofatodefalarmosdenossaslembrançasestápressionandoosmecanismosdobloqueio.Aospoucosconseguiremosderrubá-lo.
Dom,Ginger,ErnieeNedtiveramsonhosmuitoreaise idênticosentresi,comocópiasdomesmofilme. Viram-se amarrados em camas do motel, atendidos por homens em trajes “vedados”, comoexplicara a dra. Weiss. Sandy sonhara com uma cena agradável, da qual, entretanto, não conseguialembrar-se.EFayedormiraumsonosemsonhos,atéacordar.
Ned despertara tão assustado que, ao chegar de Beowawe para o café, declarou que passaria apernoitarnumdosquartosvagos.
— Acordeicomumpesadeloenãoconseguidormirmais—disse.—Achoqueestamosmuitoisoladosnaqueletrailer.SeotalcoronelFalkirkcomeçaranosmatar,Sandyeeusomosalvosfáceis.
Domsorriu,solidáriocomsuaaflição,sabendoqueossonhoseramcompletanovidadeparaele.Aospoucos, ao longode semanas e semanas de suplício, aprendera a conviver comas crises demedo.Anovidade,nocasodeNed,eraumagravante.Semfalar,éclaro,queomedogeneralizadodeumeventualataquedasfor-ça$domal,chefiadasporFalkirk,erajustificado.Quantomaisseacercavamdaverdade,mais se expunham à ira do malévolo coronel. De qualquer modo, Dom pressentia que não seriamatacadosatéachegadadopadreCronin,deJorjaMonatellae, talvez,dealgumaoutravítima.Quandoestivessemreunidosnomesmolocal,entãosim,deveriamorganizar-separaaguerra.
Ned beliscava uma fatia de pão, sem apetite nem entusiasmo, falando do que vira em sonho.Primeiro,foramoshomensnotraje“vedado”...Depois,osmesmoshomensemtrajescomuns,sinaldequeoriscodecontágioforasuperado.UmdeleseraocoronelFalkirk,empessoa.
— Tinha uns cinqüenta anos — descreveu-o —, cabelos escuros, têmporas grisalhas, olhoscinzentosefrioscomoaço,narizfino,lábiosestreitos.
ComoFalkirktambémerapersonagemdeseuspesadelos,Er-nieconfirmouosdetalhescomacenosdecabeça.Osonho, idênticonosmenoresdetalhes,confirmavaoque todos jásabiam:asrecordaçõescomeçavamabrotar,aproximando-secadavezmaisdanoitede6dejulhodoverãoretrasado!
— Em meu sonho— disse Ernie—, alguém chamava Falkirk pelo primeiro nome... Leland.CoronelLelandFalkirk.
—DevetrabalharemShenkfield—acrescentouGinger.—Vamosdescobrir—prometeuDom,sorrindoparaela.Noseusonho,Gingervira-senoquartonúmero5,masnãoestavasozinha.— Haviaumamulherruivanacamahospitalar,ao ladodaminha—contou.—Aparentavauns
quarenta anos; tinha uma agulha intravenosa espetada no braço, eletrodos presos no tórax e omesmoolharvaziodasfotos.
—Eutambémnãoestavasozinho—Domlembrou-se.—Umhomemestavanacamaaolado.Erajovem,compoucomaisdevinteanos,pálido,bigodecrescidoeolhosdezumbi...
—Mas...oquesignificaisso?—Fayevirou-sedecostasparaapia.—Seráquehaviatantagenteaqui?Vintequartosocupadoscomzumbissubmetidosalavagemcerebral?!
—Olivrodarecepçãoregistraapenasonzehóspedes—Sandyobservou.— Comcerteza, havia gente na estrada, emviagem... gente que deve ter visto o que vimos—
Gingersuspirou.—OExércitodeveterprovidenciadoparaquetodossereunissemaqui,semexigirqueassinassemolivro...
—Mas...quantosseriam?—Fayearregalouosolhos.
—Talveznuncadescobriremos—respondeuDom.—Naverdade,nãoosconhecemos.Apenasficamosnomesmoquartocomalgunsdeles...dormindosoboefeitodedrogas.Talveznoslembremosdeumououtrorosto,masnãodescobriremosseusnomesouendereços.
Dequalquermodo, as lembranças começavamaaflorar.Maisdia,menosdia, averdadeacabariaaparecendo.ParaDom,jáeramaisdoquepodiaesperar.Quandorecuperassemplenamenteamemória,estariamlivresdospesadelos,dosonambulismo,domedo,evoltariamaviver.Amenosque,antesdisso,chegassemastropasdocoronelFalkirkeosaniquilassemcomartilhariapesada.
Na segunda-feira de manhã, enquanto o grupo se reunia para tomar o café da manhã no MotelTranqüilidade, JackTwist entrava numbanco daQuintaAvenida e, acompanhado de uma funcionária,dirigia-seaocompartimentodoscofresparticulares.
Amoça,muitoatraente,indicou-lheumdoscofres,ondeseliaonomedoproprietário:sr.Farnham,outraidentidadefalsa.Ambosintroduziramasduaspequenas
chavesnafechadura,removeramjuntosacaixademetal,eJackficousozinhonocubículoreservadoaosclientes. Levantou a tampa do cofre e arregalou os olhos, surpreso. Ali estava um cartão-postal quejamaisvira.Nãoerapossível...ninguém,noplaneta,sabiadaexistênciadaquelecofre!
Oscincoenvelopesbrancosláestavam,aparentementeintatos,cadaqualcomcincomildólaresemnotas de cemevinte.Aquele era o primeirodosonze cofres que alugava emdiferentes bancos e dosquaispretendiaretirarcentoesessentamildólares,quinzemildecadaum,paradoaraosnecessitados.Abriuosenvelopeseconferiuodinheiro:nãofaltavaumcentavo.
Adescobertanãootranqüilizou,porqueasimplespresençadocartão-postaleraprovasuficientedequealguémdescobrirapelomenosumadesuasidentidadessecretas.Apartirdaí,sualiberdadejánãovaliaumvintém.AlguémsabiaqueGregoryFarnhameraumnomefalso.
Umcartão-postal...Sempalavra,semendereço,ali,dentrodeumcofrequesóeleconhecia.MotelTranqüilidade...
No verão retrasado, depois do assalto à mansão de Avril McAl-lister em Marin County e daproveitosapassagemporReno,Jackalugaraumcarroeviajaraparaoleste.Passaraaprimeiranoitedeviagemnaquelemotel,juntoàRodovia80.Esquecera-sedofato,masbastou-lhepôrosolhosnopostalparareconhecerolugar.
Quempoderiasaberqueestiveralá?BranchPollard?Não,impossível.Jacktinhacertezadequenemlhe falara sobrea idéiadevoltardecarroaNovaYork.O terceirohomem,umrapazdeLosAngeleschamadoSalFinrow,contratadoespecialmenteparaoassaltoàmansãoMcAllister,tambémnãopoderiasaber;eJacknuncamaisoviradepoisdapartilhadosmagrosfrutosdaoperação.
Derepente,numlampejo,entendeuqueapresençadocartãosignificavaquetrêsdesuasidentidadessecretashaviamsidodescobertas.OcofreestavaalugadoemnomedeFarnham,masele
se registrara no motel como Thornton Wainwright. Prova de que alguém sabia que as duasidentidades correspondiam ao mesmo homem, Jack Twist, ou seja, Philippe Deon, o proprietáriodoapartamentodaQuintaAvenida.
Deusdocéu!Jacksentou-senabanquetadocubículo,assustado,tentandodeduzirquemteriaprovocadotamanho
estragoemsuavida.NãoeraninguémdapolíciaoudoFBI,porquequalquerumdessesoprenderíasempensar duas vezes; nem a polícia nem o FBI perderíam tempo e dinheiro brincando de gato e rato.Tambémnãopodiaserumdeseuscúmplices,porquenenhumdelesconheciadetalhesdafachadalegaldesua vida ou o endereço onde morava. Até ali, o esquema montado para mantê-los afastados doapartamentodaQuintaAvenidafuncionaraàperfeição.Alémdisso,seumdelesconseguissechegaraocofreporqueperderiatempocomcartões-postaisedeixariaosdólaresintatos?
Então...quemestavaatrásdele?Pensou naMáfia, no assalto ao armazém, comMort e Tommy Sung, dia 3 de dezembro. Seria a
Máfia? Talvez... porque essa, sim, tinha tempo, dinheiro e motivos de sobra para acabar com ele.Beminstruídossobreoquefazerecomoagir,osrapazesdequalquerdas“famílias”atingidaspeloroubopoderíam ter deixado o cartão junto ao dinheiro para avisar-lhe de que não lhes interessavam osdólares...quequeriammesmoeraesfolá-lovivo,comoexemploparaoutros“espertinhos”audaciosos.Ocartão podia ser idéia dos rapazes... Eles gostavam de levar suas vítimas ao desespero, tentandoadivinhardeondeviríaogolpequeosdestruiría.
Poroutro lado,aindaque tivessedescobertoas identidades secretas,porqueaMáfia sedariaaotrabalhodeviajarquilômetrosequilômetrosparacomprarumcartão-postaldeummotelemNevada?!Nãobastariadeixarumafotodoarmazémassaltado?Não...NãoeraaMáfia.Mas...quempoderíaser?
Guardouosvinteecincomildólaresnobolsodocasaco;jánãopodiapensaremdoarodinheirodoqualdependiapara fugir.Colocouopostalnacarteirae tocouacampainha,chamamdoa funcionária.Doisminutosdepoisestavanarua,respirandofundooarfriodejaneiro,tentandodescobrirsealguémoespreitava.Naoviuninguémquelheparecessesuspeito.
Parouum instante, àmargemdamultidãoqueandavaapressadapelas calçadas.Precisava sairdacidadeomaisrapidamentepossíveleesconder-seporalgumtempo.Contudo,pormaisfortequefosseoimpulso de fugir, decidiu pensar um pouco. Aprendera no Exército que não é seguro tomar qualquerdecisãoimportanteantesdeanalisarbemosmotivoseaspossíveisconseqüências.Alémdisso,tinhaqueencontrar resposta paramuitas perguntas, como, por exemplo: quem o perseguia?Como essa ‘pessoadescobriraasidentidadessecretas?Oquequeriacomele?
Fezsinalparaumtáxiquepassavaemandou-oseguiratéaesquinadeWallStreetcomWilliam,nocoração do centro financeiro da cidade. Naquela área, tinha outros seis cofres alugados em bancosdiferentes e começou a visitá-los.Dosquatro primeiros recolheu cemmil dólares e novos cartões doMotelTranqüi-lidade.
Antesdoquintocofre,resolveuparar.Jánãotinhabolsosondecolocardinheiro,nemdúvidasdequeos outros cofres, todos alugados sob diferentes identidades, haviam sido igualmente violados. Járecolheradinheirosuficienteparaviajar,esemprepoderiacontarcomosquatromilhõesdaSuíça...seodesconhecidoqueoperseguiaestivesseinteressadoemlimparoscofres.
Erahoradepensar noMotelTranqüilidade, emNevada.Havia algo estranhonas lembrançasquecomeçavamasurgir.
Ficara lá trêsdias, aproveitandoo sossegodo localpara ler edescansar.Naquelemomento,pelaprimeiravez, ocorria-lhe a idéiadeque jamais devia ter feito isso.Claroquenão!Estavanumcarroalugado, comoporta-malas recheadodedinheiro... e faziaduas semanasquenãovia Jenny!SaíradeRenocomafirmedecisãodeirlogoparacasa...Quesentidofaziamudardeidéia,nomeiodocaminho?
Umsegundotáxilevou-odevoltaaoapartamentodaQuintaAvenida,ondechegoupoucoantesdasonzedamanhã.Correu
aotelefone,ligouparaumapequenalocadoradeaviõescomaqualfizeranegóciosantes,erespiroualiviadoaoser informadodequepodiacontarcomumjatinhoprontoparadecolarno instanteemquechegasseaoaeroporto.
Retirouodinheirodeixadonocompartimentosecretodofundodoarmário.Somadoaoquetrouxerados cofres, dispunha de cento e cinqüenta mil dólares para começar a agir. Seguramente, uma somasuficienteparaenfrentarqualqueremergência.
Sempreapressado,mascomprecisãomilitar,apanhoutrêsmalas,abriu-assobreacamaeemcadaumacolocoualgumaspeçasderoupa,deixandoespaçosuficienteparaacomodarumrevólver,umfuzile
umasubmetralhadora,comasrespectivasmunições,alémdedoissilenciadoresqueretiroudoarmário.Acapacidadedesentir-seculpado—conquistarecenteedramáticaquenasúltimasvinteequatro
horasalteraraprofundamenteoquepensavasobreoshomenseomundo—nãooimpediadelutarpelavida.Qualquercidadão,pormaishonradoehonestoquesejaouestejadispostoaser,nãopodeperderoinstinto de sobrevivência. E poucos cidadãos honrados no planeta pode-riam orgulhar-se de ser tãoeficientesquantoJackTwistquandosetratavadedefenderaprópriapele.Alémdomais,depoisdeoitoanos de solidão, ele já começava a sonhar com uma vida normal. E não permitiria que ninguém lheroubasseaúltimachancedeserfeliz.
Em outra mala, acomodou o utilíssimo computador portátil usado no assalto ao carro blindado.Decidiulevarumbinóculodevisãonoturna,comadaptadorparafuzil,umadezenadeitensmenores,eumaparelhoprivativodapolíciaqueabriaqualquerfechadurasemcausaromenordanoaosegredo.
Emboraoarmamentoestivessedistribuídoentreas trêsmalas,nenhumadelasparecia levequandoJackasfechou.Sealgumcarregadorasestranhasse,tratariadeserdiscreto,masninguémseatreveriaainterrogaropassageirodeumjatoalugado...Umadasvantagensdeterdinheiroeraburlarasegurançaeevitaraslongasfilasdeespera.
Jackdesceucomasmalas,chamouumtáxierumouparaoaeroportoLaGuardia.Ojatinhoolevariaaté o aeroporto de Salt LakeCity,Utah, omaior na área de Elko,mais próximo da cidade do que oterminal de Reno. A companhia informara que estavam previstas tempestades de neve nas próximashoras,concentradasnaregiãodeReno—outrobommotivoparaescolherarotadeSaltLakeCity,ondepoderiaconseguirumaviãoqueolevasseaElko.Comisso,Jackteriatrêshorasdevantagem,chegandoaseudestinopoucoantesdeescurecer.
Perfeito.Eraimportantequeestivesseescuroparaexecutaroplanoqueacabavadeelaborar.Haviaumúnicosignificadopossívelparaoscartões-postais:alguémemNevada,informadodetodos
osdetalhesimportantesdesuavidacriminosa,decidiraconvidá-loparaumavisita... talveznopróprioMotel Tranqüilidade. Convite ou intimação, o postal constituía essencialmente um aviso, que seriaestupidezignorar.
Jack não sabia se estava sendo seguido até o aeroporto... e não se deu ao trabalho de tentardescobrir.Seestivessemvigiandootelefonedoapartamento,saberiamdetodososseuspassos.PartedosucessodoplanodependiaexatamentedequetodosovissempartireninguémovissechegaraElko.
Nasegunda-feirademanhã,depoisdocafé,DomeGingerforamvisitararedaçãodoúnicojornaldeElko,que,comoeraprevisível,funcionavanumacasatérreasituadaemruatranqüilae,comoqualqueroutrojornal,nãoimportaotamanho,proibiaoacessodopúblicoaosarquivos.
Ocupadocomoutrotipodetrabalho,Domaindanãotiveratempodehabituar-seàfamadeescritor,quejácresciaportodoopaís.Apalavra“escritor”soavapretensiosaepedanteaseusouvidos.
Aentradadojornal,arecepcionista,BrendaHennerling,nãooreconheceuatéqueGingerfalounoCrepúsculo,queacabavadeserlançado.
—Mas...é“olivrodomês”!—exclamouBrenda,arregalandoosolhos.—Vocêéoautor?Verdade,mesmo?!Acabeide receberovolumedoClubede leitura.
Gostomuitodeler.Puxa,éumahonraconhecerumautordesucesso.Quantomaisamoçafalava,maisDomseencolhia,relembrandoafrasedeRobertStevenson:“Oque
importaéahistória,ahistóriabemcontada,enãoquemaconta”.Pelosim,pelonão,foiafamado“autorde sucesso” que lhes abriu as portas do arquivo do Sentinela de Elko. Não passava de uma salapequena e sem janelas, duas mesas, duas máquinas de escrever, um projetor, um armário na qual secomprimiam caixas de microfilmes e seis estantes altas com as edições do jornal ainda nãomicrofilmadas.
— E eu que esqueci que você émesmoum“autor de sucesso”!—Ginger riu, quandoBrendaHennerlingosdeixouasós,depoisdemostar-lhescomodeviamoperaroprojetordemicrofilmes.
—Poiseutambémesqueci...Masissoébobagem.Nãosouum“autordesucesso”.—Seaindanãoé...vaiser,muitoembreve.Eumapena...queosproblemasquenosatormentam
nãolhepermitamsaborearapublicaçãodeseuprimeiroromance!—Realmente...—eleconcordou,perguntandoemseguida:—Evocê?Esuacarreira?— A situação já foi pior... Agora sei que voltarei a trabalhar algum dia, quando tudo estiver
resolvido—declarou,avozfirmeeseguraexprimindo,melhorqueaspalavras,suaconfiançanavida.—Masoprimeirolivro...éoprimeirolivro!Vocêestáperdendoummomentoquenuncaserepetirá.
Surpresa das surpresas,Dom sentiu o rosto quente, vermelho comopimentãomaduro.Parte peloselogiosaolivro,partepelareferênciaàfamado“autordesucesso”,masprincipalmentepelointeresseepela compreensão de Ginger. Mulher nenhuma, depois dos trinta anos, o fizera corar como umadolescente.
Calaram-se, aproximaram-se das estantes e começaram a procurar as edições de julho do verãoretrasado,queaindanãohaviam
sidomicrofilmadas.Gingerretirouosjornaisdeduassemanas,apartirdesábado,dia7dejulho.Oeventomisteriosoquetodoshaviampresenciadoedoqualninguémselembravaocorrerananoite
de sexta-feira, 6 de julho,masoSentinelado dia seguinte não trazia uma linha sobre tal “vazamentotóxico”eoconseqüentebloqueiodarodovia.Todasasmatériasseguiamoestilotípicodeumpequenojornal de interior, onde não acontecia nada de tão extraordinário que fizesse o redator correr para assalas de impressão e ordenar que parassem as máquinas para estampar nova manchete na primeirapágina.ComooSentinelanãocirculavaaosdomingos,asprimeirasmanchetescomeçaramaaparecernaedição de segunda-feira, dia 9 de julho. Segunda e terça, as manchetes diziam: VAZAMENTO DESUBSTÂNCIATÓXICAPROVOCAINTERDIÇÃODARODOVIA80.OEXÉRCITOINTERDITAAREGIÃO.
GÁSVENENOSOVAZOUDOCAMINHÃO?OEXÉRCITOEVACUAAÁREACONTAMINADA.ONDE ESTÁ A POPULAÇÃO? CAMPO DE TESTES DE SHENKFIELD: VERDADES EMENTIRAS! INTERDIÇÃODAESTRADAENTRANOQUARTODIA! E depois: CONCLUÍDAALIMPEZADAÁREACONTAMINADA.
DomeGinger experimentavamuma sensaçãoestranhaao tomar conhecimentode fatosque ambossupostamentepresenciaramedosquaisnãoselembravam.Noentanto,àmedidaquelia,Domdescobriuque a teoria de Ginger estava certa: era evidente que os técnicos encarregados da lavagem cerebralteriamprecisadodemaistempo,duasoutrêssemanas,paraimplantartodasaslembranças,inclusiveasreferentes ao “vazamento”. Assim, resolveram trabalhar de modo especial com os habitantes locaise limitaram-se a aplicar uma lavagem superficial nos forasteiros em trânsito. Para dispensar igualtratamento a todos, teria sido necessário interditar por mais tempo a rodovia, o que chamariamuitaatenção.
Naediçãodeterça-feira,11dejulho,ojornalcontinuava:REABERTAARODOVIA.INTERDIÇÃOLEVANTADA.POPULAÇÃOEVACUADAREAPARECE:NINGUÉMVIUNADA.
Em edições normais, o Sentinela circulava com apenas um caderno de trinta e duas páginas nomáximo. Durante aquela semana de julho, todo o espaço disponível destinava-se à cobertura do“vazamento”,poishavia repórteresvindosdeoutrascidadese,pelaprimeiravezemsuaexistência,opequenojornalviviadiasdeglória.DomeGingerliamatentamente,àprocuradeexplicaçõessobreopassadooudeidéiassobrecomoagirnofuturo.
Umaprimeirainformação,quesaltavadasentrelinhas,eraimportanteporquepermitiaavaliaratéque
pontooExércitoestavadispostoamentirparaencobriraverdade.Naquelanoiteautoridadesmilitaresinterditarammais de quinze quilômetros de estrada— sem notificar nem o delegado de Elko, nem apolíciaestadualdeNevada—eassumiramocontroledetodaaregião.A“quarentena”dequeFayeeErniefalavam.Procedimentoforaderotinaemuitoestranho.Duranteainterdição,todasasediçõesdoSentinela estamparam declarações indignadas do delegado local e das autoridades estaduais, queesbravejavamcontra a “intervenção indevidadas forças federais emnossa jurisdição”.Nemapolícialocal, nem a estadual foram chamadas a participar da operação de evacuação da área. Emmomentoalgum cogitou-se de consultar os dirigentes dali sobre como agir no caso de ocorrência de ventos outempestadesquepudessemcarregara“nuvem tóxica”paraoutras regiões.Em todasasnotícias ficavaevidentequeoExércitosereservaraosdireitosdeúnicaautoridadecomjurisdiçãosobreaáreaatingida.
Doisdiasdepoisdo“vazamento”,odelegadodeElkoCounty,FosterHanks,aindaselastimavaemdeclaraçãoexclusiva:“Éminhacidade...opovodaquimeelegeu...souresponsávelpelasegurançadaregião!EnãopossoconcordarcomessaditaduradoExército,queinsisteemnosdeixaràmargemdasdecisões. A menos que os comandantes militares sejam mais receptivos a nossas exigências e nosinformem exatamente o que está acontecendo, seremos obrigados a procurar a Justiça e exigir, peloscaminhoslegais,queodireitodoscidadãossejarespeitado”.
Nodiaseguinte,oSentinelainformavaqueohomemcumpriraaameça,mas,comoacrisejápareciasuperada,areclamaçãoqueapresentouaotribunaltornara-sesemefeito.
—Bomsinal...—Domcomentou,apontandoanotícia.—Nemtodasasautoridadesestãounidascontranós.Nossoinimigoé,apenas...
— ... oExército dosEstadosUnidos daAmérica...—completouGinger, rindo; não conseguiaimaginaruminimigomaistemível.
—Nós...contraoExército!—Domsuspirou.—Nãovaiserfácil...Deacordocomojornal,osmilitaresbloquearamaRodovia80,únicoacessoàáreasobquarentena,
e fechara também um trecho de oito quilômetros de uma ligação com a rodovia. Todas as aeronavescomerciais e civis foram proibidas de sobrevoar a região, patrulhada por helicópterosmilitares. Umgrande contingente de soldados fora mobilizado para o controle da área. A julgar pelas notícias, oExércitonãopouparapessoal, tempoedinheiroparabloquear todosos caminhosparao local.Haviagente que afirmava ter visto, à noite, soldados equipados com binóculos de lentes sensíveis e raiosinfravermelhospatrulhandoaplanície,àcatadeeventuaisinvasores.
—Ojornalfaladapossibilidadede“vazamentodeumgásqueatacariaostecidosnervosos’’—Ginger pensou em voz alta.— Essas são as substâncias tóxicas mais terríveis que existem... Aindaassim... tenho a impressão de que o Exército exagerou na segurança. Além disso, embora não sejaespecialistaemguerraquímica...nãopossoacreditarquequalquergás...sejaláqualforevazeoquantoquiser...representetamanhaameaça...Aáreaéextensademais!Ora...seoExércitoafirmaqueapenasumcilindrodegásfoidanificado...queperigopoderiahaver?Osgasessãovoláteis...tendemadispersar-senoar...Doisquilômetrosalémdolocaldoacidente,aconcentraçãodegástóxiconaatmosferajáseriapraticamenteinsignificante!Eaindamaisdispersoestariaatrêsquilômetrosdopontodevazamento...
—Oquenostrazdevoltaasuaidéiainicial:contaminaçãoporbactéria.—Épossível—Gingerconcordou.—Masnosfaltamelementosparatermoscerteza.Dequalquer
modo,oqueaconteceuaquifoimaisgravequeumsimplesvazamentodegás.Já no sábado, 7 de julho, um dia após a interdição da rodovia, um dos repórteres do Sentinela
observouqueossoldadosquetinhamacessoàregiãodequarentenausavamumdistintivoespecialnosuniformes,umcírculonegrocomumaestrelaverdenocentro.
“Convocamosequipesdosbatalhõesdedefesacivil”,diziaojornal,citandooporta-vozdocomando
militar. “São conhecidos como os homens daDERO, uma espécie de nome em código. São soldadosexcepcionalmentebemtreinados,comgrandeexperiênciadecombate,comsalvo-condutoparacircularemquaisquerinstalaçõesdoExército,mesmoasdesegurançamáxima.”
—Issodevesignificarqueosbrutamontessãopagosparaficardebocafechada—Domtraduziu.Oporta-vozcontinuava:“Sãotreinadosparacomporumatropadeelite,capazdeenfrentarqualquer
tipo de crise que possa abater-se sobre a população civil, como ataques terroristas a instalaçõesmilitares ou acidentes em bases de mísseis nucleares. Não que haja qualquer possibilidade deenvolvimentodeterroristasnacrisequeoraenfrentamos,ouproblemasrelacionadosariscodeexplosãonuclear.Mas,comoháumabasedaDEROlocalizadaemáreapróximadabasedeShenkfield,pareceu-nosinteressantechamá-losparaasseguraratranqüilidadedapopulação”.
Pormaisqueorepórter insistisse,oporta-vozrecusara-sea informara localizaçãodetalbasedaDERO:“Nãoestouautorizadoaforneceressetipodeinformaçãoàimprensa”,dissera.Eseoporta-voznãofalava,menosaindaoshomensdaDERO.
—Shmontsesl—Gingeresmurrouamesa.—Oquê?!—Essahistóriatoda...—Elaacomodou-senacadeiraecruzouosbraços.—Issoéshmontsesl—Masoquequerdizer?—Oh!Desculpe...Éumapalavraemídiche.Meupaiausavamuito.Significaalgumacoisaque
é...absurda,impossível,quenaomereceatenção.Conversafiada,digamos.Essahistóriadoporta-vozéshmontses do começo ao fim — concluiu, levando a mão ao pescoço para massagear os músculosdoloridos.—VocêquerqueeuacreditequeostaissoldadosdaDEROestavamnestefimdemundoporacaso?!
— Peloquedizo jornal,oExércitobloqueoua rodoviaeopessoaldaDEROapareceupoucodepoisdeumahora.Assim,senãoestavamporaqui...estariamvindoparacáporquesabiamoqueiaacontecer?!
—Eaúnicaexplicaçãorazoável.— Está querendodizer que oExército sabia que haveria umvazamento?!—Dom levantou os
olhosefranziuassobrancelhas.—Ah,jánemseioquepensar...Omáximoqueminhainteligênciaadmiteéqueexistaumabase
delesemUtah,ouaosuldoIdaho.Aindaassim,élongedemaisparaquechegassemaquiemapenasumahora,mesmoquesaíssemvoandosembagagem.Nãoépossívelqueestivessemcomandandoobloqueiouma hora depois do “vazamento”. Se quermesmo saber,minha resposta ésiml Os homens daDEROestavamaquiporquesabiamquealgumacoisaiaaconteceremElko.Nãoprecisavamsabercommuitaantecedência...Umaouduashorasjáseriamsuficientes.
— Nessecaso,o“vazamento”deixariadeserumacidente.TalvezatéapresençadoscarasdaDEROsejaumaprovadequenãohouvevazamentonenhum...Masentão...porqueoshomensandariamcom aqueles trajes “vedados”?—Dom pensava em voz alta, desanimado. Cada avanço rumo a umaexplicação acabava levando-os a umnovobeco sem saída.Mais umminuto e ele rasgaria a pilha dejornaisquecresciaasuafrente,comosecomissopudessedesmascararafarsaemquesesentiaafundarcadavezmais.
Gingerrefletiuporalgunsinstanteseexpressousuaopinião:—SóvejoumaexplicaçãoparaapresençadaDEROemElkonaquelasemana...OExércitonão
confiavanossoldadosregula-res.Talvezporqueocasofossegravedemais... talvezporquehouvesseaquialgumacoisaquenão
deviamver.PorissoconvocouopessoaldaDEROque,comovocêmesmodisse,deveganharparaficar
debocafechada.—Fazsentido.—Eusei.Mas,sefosseumsimplescasodevazamentodegás,nãoserianecessárioconvocá-los.
Quemalhaveriaempermitirqueossoldadosregularesvissemumcaminhãoquebradoeumcilindrodegáspartidoaomeio?
Emsilêncio,osdoisvoltaramadebruçar-sesobreosjornais.Elogoencontraramoutraprovadequeo Exército sabia que alguma coisa estranha estava para acontecer em Elko. Era razoavelmente fácilreconstituiraseqüênciadeacontecimentosdaquelanoitedejulho,atéomomentodoruídodetrovãoedozumbido estridente que rebentara as vidraças do restaurante do motel. Ainda não escureceracompletamente, pois o sol se põe mais tarde no verão. Com certeza passava de oito horas da noitequandooterremotocomeçara,comoruídodetrovãoeozumbido.
—Olheaqui—disseDom,assinalandocomodedoalgumaslinhasdotexto.—Umatestemunhaafirmaqueàsoitohorasdanoitearodoviajáestavabloqueada.
— Então você acha que a rodovia foi bloqueada cinco ou dez minutos antes de ocorrer o“vazamento”?—Gingerperguntou.
—Acho.Amenosquenósestejamosmuitoenganadosquantoàhoradopôr-do-sol.Semdizernada,voltaramàediçãodoSentinelade6dejulho,àprocuradeinformaçõesdacoluna
meteorológica:Temperaturaemelevaçãoduranteodia,pequenodeclínioànoite.Umidaderelativadoar,cercadevinteecincoporcento.Céuclaro,poucanebulosidade.Ventosdefracosamoderados.Pôr-do-solàsseteetrintaeum”.
—Seosolsepôsàsseteetrintaeum,àsseteequarentaecinco,digamos,jáestavaescuro.Noitefechada.Aindaqueestejamosenganadosquantoaotempodecorridoentreosoldesapare-
cer completamente eomomentoemquecomeçamosaouviro trovãoeo zumbido... a estrada foibloqueadaantes!
—Oqueprovaqueelessabiamquealgoestavaparaacontecer...—Gingerdeduziu.—Masnãofizeramnadaparaimpedirqueacontecesse—completouDom.— Oquesignificaque foiumprocesso,umaseqüênciadeeventossobreaqualoExércitonão
tinhacontrole.Domrespiroufundo.— Podeserquesim,podeserquenão—disse.—Epossívelqueosmilitares tenhamtentado
impedir, fazendo todo o possível... e não tenham conseguido. Trabalhamos com hipóteses que nãopodemosprovar.Precisamosdemaisinformações.
Gingerbaixouacabeçaeconcentrou-senaleitura.Aovirarumapáginadaediçãododia11dejulho,gritou,surpresaeassustada.Domvirou-se,rápido.
ApersonagemdossonhosdealgunshóspedesdoMotelTran-qüilidadealiestava,emuniformedeoficial do Exército, com boné e divisas: o coronel Leland Falkirk, exatamente como Ernie e Ned ohaviam visto. Cabelo escuro, têmporas grisalhas, olhos cinzentos e frios como aço, nariz fino, lábiosestreitos.Domleuemvozaltaalegendaqueacompanhavaafoto:
— “O coronel Leland Falkirk, comandante dos pelotões da DE-RO, encarregado demanter ainterdiçãodaáreaatingidapelovazamentodegástóxico,recusou-seaconcederentrevistasàimprensa.Afotoacima,obtidaporGregLunde,doSentinela,deixou-omuitoirritadoetornouaindamaislacônicassuasrespostas,jálimitadaspeloconhecido:‘Nadaadeclarar’.”
Umolhargeladocomoamorte,queDomjáconhecia.Nãodepesadelos,masdasnoitesquepassaranomotel,noverãoretrasado.Umolhardefera,deavederapina,dehomemacostumadoaconseguiroquequeria.Ohomemqueostivera,atodos,àsuamercêeoscondenaraàmorteporenvenenamento.
Semtirarosolhosdafoto,Gingermurmuroubaixinho:— Kayn ayn hore... Também é ídiche... Uma espécie de exorcismo... para afastar o mal —
explicouerepetiu:—Kaynaynhore...Elemerece.Domcontinuavaafitarafotografiacomoquehipnotizado:—Sim...merece.Dapáginaamareladadojornal,osolhosdeaçodocoronelFal-kirkpareciamdesafiá-lo.EnquantoDomeGingerexaminavamosarquivosdojornaldeElko,ErnieeFayeBlocktrabalhavam
no escritório do motel, tentando estabelecer contato com os demais hóspedes da noite em questão.Estavamjuntoaobalcão,umdecadalado,comumacafeteiraelétricaaoalcancedamão.
Ernie redigiaumtelegramaparaGeraldSalcoe,ohomemquealugaradoisquartosparaa família,esposa e duas filhas, no verão retrasado, que até então não fora localizado porque seu telefone emMonterey,Califórnia,nãoconstavadalista.FayetentavalocalizaroutrosregistrosdeCalSharkleparaencontrarseunovoendereço.
Concentrado no trabalho, Ernie pensava nas inúmeras vezes, ao longo dos trinta e um anos decasamento,emquehaviamestadoassim,umfrenteaooutro,alimesmo,ounacozinha,naquelacasaouem qualquer uma das tantas em que haviammorado. De repente, inesperadamente, sentiu saudade deoutrasnoites,osdoisrindojuntos,preocupando-sejuntos,fazendoplanosjuntos.AvidanãofariasentidosemFayeaseulado.Sealgumacoisalheacontecesse...porobraounãodomalditocoronelFalkirk...nãosaberiacomocontinuarvivendo.
Depoisde redigiro telegramaparaSalcoe, ligouparaaWesternUnioneditouo texto,pedindoàcompanhiadetelégrafosqueamensagemfosseentreguecomurgênciaaodestinatário.
Fayeencontroucincodatas, ao longodoanoanterior, emqueCalSharkle sehospedaranomotel,todascomomesmo telefonedeEvanston, Illinois,eomesmoendereçoque indicavananoitede6dejulho. Não parecia ter-se mudado. Faye ainda tentou localizá-lo, através da telefonista de Chicago,ligandosemresultado,paravários
centrosdeinformaçõesdediferentesbairrosdacidade:Whiting,Hammond,CalumetCity,Markham,Downer’s Grove, Oak Park, Oakbrook, Elmhurst, Des Plaines, RollingMeadows, Glencoe... Ou CalSharkledeixaraChicago,mudando-separalocalignorado,oudesapareceradasuperfíciedaTerra.
EnquantoFayeeErnietrabalhavamnoescritório,NedeSandyencarregavam-sedojantar,nacozinhadopiso superior.Anoite,depoisqueBrendanCroninchegassedeChicagoe JorjaMona-tella, comafilha, viesse de Las Vegas, seriam nove àmesa, e Ned não queria deixar nada para última hora. Navéspera, todos foramcontagiadospeloespíritode fraternidadeeamizadequeosaproximavacomosefossemumagrandefamília.Certosdeque,quantomaispróximoseunidosestivessemparaenfrentarosproblemas, maiores seriam suas chances, Ned e Sandy decidiram preparar um jantar especial, umaverdadeira festa de Ação de Graças. E lá estavam, assando um enorme peru, descascando batatas,assandomilho,temperandocenouras,recheandopimentõesefazendotortasparaasobremesa.
Descascando cebolas ou picando legumes, Ned tentava não pensar que, talvez, em lugar de umgrandejantarfestivo,poderiamestarpreparandoaúltimaceiadoscondenados.Cadavezqueaidéialheocorria,voltavaosolhosparaSandyevia-atranqüila,cantarolando.Comoimaginarquequalquercoisacapaz de fazê-la renascer, desabrochar, voltar à vida, pudesse levar alguém à desgraça? Estavaenlouquecendo...Eraimpossível!
Depois de três horas de pesquisa nos arquivos do Sentinela, Gin-ger e Dom almoçaram numrestaurantedaRuaIdahoevoltaramaoMotelTranqüilidadeàsduasemeiadatarde.FayeeErnieaindatrabalhavam no escritório, e a recepção estava impregnada de deliciosos perfumes que vinham dacozinha.
—Evocêsaindanãocheiraramoperu—comentouFaye.—Nedacabadecolocá-lonoforno.—Ojantarestámarcadoparaasoito—informouErnie—,masachoquenãoagüentaremosesperaratélá,comessecheironoar.Voumorrerdefome.—Oquedescobriramnojornal?—Fayeperguntou.AntesqueGingerpudesseresponder,aportaabriu-se,eentrouumhomemruivoegordo,meioempurradopeloventogelado.Tinhaocasacopenduradonobraçoe
usavacalçacinzentadelãesuéterazul-claro.Todosoreconheceram.Osmesmosolhosverdes,afaceredonda,ocabeloruivoeassardasdafoto.Dessavez,porém,opadreBrendanCroninparecia...vivo!
—Sejabem-vindo—disse-lheGinger,sorrindo.Eoutravez,comoaconteceracomDom,sentiu-searrastadaparaelecomose,depoisdemuitosanos,
revisseumvelhoequeridoamigo.Opassado,algumacoisanopassadotornava-osirmãos,unia-osparasempre.Algumacoisaquesóela,DomeopadreBrendanconheciameninguémmaispresenciara.Semseimportarcomoqueosoutrospudessempensar,correuparaeleeabraçou-o.
Comovido,osacerdoteretribuiuasaudaçãosemhesitar,abraçando-acomforça,eporuminstanteosdoispermaneceramjuntos,comoirmãeirmãoquenãosevissemháanos.GingersóseafastouaoouvirDomexclamar:
—PadreCronin!—Nãoprecisammechamarassim.Háalgumtemponãomereçonemquerosertratadodepadre.
MeunomeéBrendan.ErniegritouparaqueNedeSandyviessemsejuntaraelese,acompanhandoFaye,aproximou-sedo
recém-chegado.Brendancumprimentou-osumaum,sentindo-seligadoatodos,comosefossemparentespróximosouamigosmuitoqueridos.GingereDom,noentanto, inspiravam-lhealgomais,maisdoqueamizadefraternaoucalorhumano.Eracomoseumpoderimensamenteforteosatraísse.
QuaserepetindoasmesmaspalavrasqueGingerdisseraaochegar,comentou:—Ecomoseestivéssemosemfamília.Todossentimosamesmacoisa,nãoé?Comosetivéssemos
vividojuntososmomentosmais importantes de nossas vidas...Como se nos tivesse acontecido algo que nos transformou em
seresespeciais...parasempre.Pormais que insistisse em ser tratado deBrendan, envolvia-o uma aura espiritual.Havia em seu
cabeloruivo,nosolhosmuitoverdes,norostorechonchudo,nosorrisoamploeclaro,algumacoisaquefaziacomquetodosquisessemouvi-lo,aproximar-sedele,tocá-lo.
—Oquesintoaoladodevocêséaprovadefinitivadequeagibemquandoresolvivirparacá.Euprecisavaestarcomvocês.Algumacoisavaiacontecer...evainosmodificarparasempre...jácomeçouanosmodificar.Vocêssentemomesmoqueeu?Sentem?
SuavozprovocouemGingerumcalafriodemedoe,aomesmotempo,umafantásticasensaçãodeprazer.Comoquando,pelaprimeiravez,aindaestudante,entraranasaladecirurgiaevira,numtóraxaberto,amisteriosabelezadeumcoraçãohumano,rosado,pulsando,vivo!
—Fomoschamados...—Brendancontinuou.—Todosnós.Fomoschamadosparacá...—VejamlEraDom,osolhosarregalados,olhandoaspalmasdasprópriasmãos.Quandoasergueutodosviram
osanéisdepeleavermelhada,muitonítidos.Semdizernada,antesmesmodeexaminá-las,Brendansabiaqueomesmosinalapareciaemsuas
mãos.Mostrou-asaDom,osolhosfixosnorostodele.Seusolhares,atraindo-seumaooutro,criaramumcampomagnéticonasala.Navéspera,aofalarcomSte-fanWycazik,Domouvira-odizerqueBrendanpareciacertodenãohavernadadesobrenaturalnosacontecimentosqueestavamtransformandosuavida.
Mas ali, nomotel, Ginger sentia a sala cheia de força... uma força que talvez não fosse divina, nemsobrenatural...masqueerasuperioraqualquerpoderhumano,científicoouracional.
—Fomoschamados...—Brendanrepetia,àespera.Oquepoderiaser?Oqueestariaparaacontecerali,naquele instante?Gingerolhouemvolta,viu
ErniecomamãonoombrodeFaye,NedeSandydemãosdadas, juntoaodisplaydecartões-postais.Todosàespera...
— Vai acontecer alguma coisa... — disse ela em voz baixa. E antes que acabasse de falar,aconteceu.
Aslâmpadasacesaspiscaramuma,duasvezes...easalaencheu-sedeluz,maisclaradoqueantes,doqueemmomentoalgum.Umaluzesbranquiçada,leitosa,quenãovinhadaslâmpadas,masdetodososcantos,comosecadapequenoátomodearsemanifestassecomoenergia.Gingerreconheceu-a:eraaluzprateadaqueviaemseussonhos...luzdeluar,porémmaisforte,maisclara.
Devagar,girousobreoscalcanhares,olhandoemtornodasala,jásemquereridentificarafontedeluz,masprocurandolembrar-sedossonhos...embuscadasperdidaslembrançasdaquelanoitedeverão,tãodistanteeaomesmotempotãopróxima.
Aoladododisplaydepostais,Sandyergueuamão,querendotocaraluz.Nedvibrava,maravilhado.Faye apenas sorria, Ernie olhava para tudo com olhos de criança deslumbrada, rindo como um bebêfrenteaumfantásticobrinquedodeluzesesons.
—ALua...—sussurrou.—ALua...—Domrepetiu,ossinaisavermelhadosbrilhandonasmãoserguidas.Então,aLuacomeçouamudardecor.Umamudançarápida,quaseinstantânea:debranco-prateada
tornou-se vermelha. Vermelha e brilhante, como que encharcada de sangue. O deslumbramento viroumedo.Asquaselembrançasondetodosflutuavamtransformaram-seemhorror.
Gingercorreuparaaporta,masnãoconseguiuabri-la.Dooutrolado,portrásdeDomeBrendan,Sandyjánãosorria,agarradaaobraçodeNed,queolhavaparaoaltocomumesgardenojo.ErnieeFayeencostavam-se,apavorados,nobalcãodarecepção.
A luz vermelha inundava a sala de canto a canto... e ouviu-se um ruído como de um tamborlongínquo. Ginger estremeceu e saltou para trás às primeiras pancadas. Saltou outra vez quando aspancadasserepetiram,masnãosemoveuquandoasouviupelaterceiravez.Pulsava...comoumcoraçãobatendo, ritmado: três batidas, um silêncio... três batidas, um silêncio.Tum-tum-tum... Tum-tum-tum...Tum-tum-tum...
OmesmofenômenodacasaparoquialqueopadreWycazikrelataraaDom.Oruídoqueacordaraatodos,masnãoperturbaraosonodopadreCronin...
Voltavamaslembranças.Gingersabiaquejáviraaluzvermelhaeouviraaspancadas.Tudoaquiloaconteceraantes...nanoitede6dejulho.Haviasidoocomeço.
Tum-tum-tum...Tum-tum-tum...Tum-tum-tum...Asjanelasbatiam,asparedestremiam.Aluzavermelhadaeaslâmpadasdasalapiscavamaoritmo
daspulsações.Gingerialembrar.Estavamuitopróximadelembrar.Averdadeestavaaoalcancedamão,escondida
apenasporumacortinamuitoleve,transparente.Masomedofoimaior.Inesperada,repentina,aondadepânicosurgiu,cresceueescondeuaverdade.
Nãoialembrar.Iafugir,desataracorrerparalongedali,semsaberparaonde,semsaberquemeraouondeestava.Outracrise...aprimeiradesdeodiaemquePabloforaassassinado,faziajáumasemana.Ossintomasdesempre:dificuldadepararespirar,omundoemvoltasumindocomoenvoltoemneblinaocoraçãoaospulos.Eadesesperadaurgênciadeescapar.Decorrerparasalvaravida.Fugir!
Gingerdeuascostasàsalaeagarrou-seàmaçanetadaportacomose fosseumaâncoracapazdemantê-laàtona,semafundarnainconsciênciaenoesquecimento.Levantouosolhose,umpoucoacimapelaportaenvidraçada,aúnicaaresistiràexplosão,viuapaisagemdaplanície.Imensa,infindável...Omedo aumentou. Cresceu até quase o impossível. Talvez fosse preferível não ver, não lembrar, nãoexistir,fugirparasempre,mergulharparasemprenaescuridão.Maselaaindalutava.Agarradaàporta,lutavaparanão sedeixararrastar,paranãoafundarnomardeescuridãoque se fechavaao redor.Nasala,aluzavermelhadacomeçouasumireoruídodaspancadasfoisilenciandoaospoucos.
Ginger respirou fundo.Vencera a crise.Pelaprimeiravez, resistira aomedo.Talvezcomeçasseaaprenderacontrolar-semelhor.
Talvezosimplesfatodeestarali,dejánãoestarsozinhaepoderpensarnoqueacontecera,semomedodesentir-sesó,semasensaçãodeestarenlouquecendo...talvezalgumdessesfatores,ouumpoucodetodos,lhedesseforçaspararesistir.Talvezsuanovafamíliaaajudasse.Dequalquermodo,vencidaaprimeiracrise,seriamaisfácilenfrentaroutrasquepudessemsurgir.Omedodenuncapoderlembrar-seera,agora,umaameaçamaisseriadoqueomedodeoftalmoscópios,piasouluvaspretas.Porqueagorasabia:querialembrar,etinhadeconseguir!
Aindatrêmula,virou-sedenovoparaocentrodasala.Zonzo,Cronindirigia-separaosofá,aostropeções,muitopálido.Jánãoseviamosanéis,nemem
suasmãosnemnasdeDom.Ernierompeuosilêncio:—Foiamesmaluz,padre?—perguntou.—Amesmaqueosenhorviuemseuquarto?—Amesma.Easegundavezqueavejo.—Masosenhordissequeeraumavisão...agradável...—Domodocomofalou,parecialinda!—reforçouFaye.—Elinda...atéficarvermelha—Brendanexplicou.—Entãomefazestremecerdemedo.Mas
comoébelanocomeço!Eumesintofeliz,muitofeliz.Umaespéciedefelicidadequenuncasentiantes.Omedo da luz vermelha e o horror das pancadas quase fizeramGinger esquecer a primeira luz,
esbranquiçada,deslumbrante.Esfregandoasmãosnacalça,comosequisesseapagarosúltimosvestígiosdosanéis,Domrespirou
fundoedeclarou:—Oqueaconteceunaquelanoiteteveduaspartes,digamos...Comooprimeiroeosegundoatode
uma peça teatral. Um é bom, bonito; o outro é terrível e nos enche demedo. Queremos nos lembrarapenasdaparteboa,porqueaoutranosdeixaapavorados...
—...borradosdemedo!—Ernieajuntou.Aofundo,Sandyaindatremia.Ela,queatéaquelemomentopensaraapenasnoprimeiroato,naparte
boa...Ao fimdoenterrodeAlanRykoff, àsonzehorasdamanhãde segunda-feira, emLasVegas,o sol
começavaaatravessaraspesadasnuvensdechuvaqueseacumulavamdesdecedo.Delonge,viam-sepontos de luz solar sobre a cidade emesmo no cemitério já brilhavam os primeiros e tímidos raiosamarelados.Quando o caixão baixou à sepultura, uma ou outra flor pareciamais colorida, comoumapequenacintilaçãonassombrasdamanhã.
Juntoaotúmulo,alémdeJorjaedePaulRykoff,paidomorto,haviamaiscincopessoas.OspaisdeJorja não quiseram ir ao enterro. Egoísta, indiferente a tudo e a todos, Alan conseguira apenas umaminguadameiadúziadepessoasinteressadasemvê-lopartirdomundodosvivos.Parecidocomofilhoemmuitosaspectos,PaulRykoffculpavaaex-norapeladesgraçadeAlanedespedia-sedomortosemderramarumalágrima.
Jorja ainda não conseguira chorar, até deixar o cemitério, tomar o carro e dirigir quase um
quilômetro. Então, sim, afinal deixou rolarem as poucas lágrimas que guardava. Não por Alan, pelosofrimentodele,porsimesmaouporMareie,maspelossonhosqueacalentara,tantotempoantes,pelasesperançasmantidas,pelaspromessasdefelicidadetrocadas.JamaisdesejaraqueAlanmorresse...Mas,naqueleinstante,começavaadescobrirqueeramelhorassim.Melhorparaela,porrecomeçaraviver,emelhorparaMareie,quenãoseriaobrigadaaconvivercomumpaifrioeausente.Umpaimortoémelhorqueummaupai,pensou,semsesentirculpada.Sentia-se,issosim,tristecomonunca.
Navéspera,contaraaMareiequeAlanestavamorto,porémomitiuodetalhedosuicídio.Decidiradar-lheanotíciaàtarde,napresençadodr.Coverly,masemfunçãodaviagemcancelaraaconsultae,por conseguinte, antecipara a revelação.A tarde, naquelemesmo dia, ela e a filha embarcariam paraElko,aoencontrodeDominickCorvaisis,deGingerWeissedosoutros.
Mareie reagira semmuitas lágrimas. Aos sete anos, pareciamadura o suficiente para entender amorte,mas era aindamuito jovempara saber o que havia de irreversível e trágico por trás dela.Aoabandoná-lasemdespedir-se,Alan fizeraumgrandefavorà filha...pois,ao receberanotícia,Mareiesentiu-se como se tivesse perdido alguém que já não existia hámuito tempo.Ummorto pelo qual jáchorarabastante.
Outrodetalheajudara-aasuperara tristeza:oálbumdeluas.MenosdeumahoradepoisdesaberqueAlanestavamorto,Mareiesentou-seàmesadacozinha,osolhossecos,apontinhadalínguarosadaaparecendoentreosdentes,concentradíssimaempintarsuasluasvermelhas.Desdesexta-feiranãofaziaoutracoisasenãopintarluas,tarefaquelheocupoutambémofimdesemana.Namanhãdesegunda,tinhamaisdecinqüentaluaspintadas.
AobsessãodeMareiepreocupariaJorjamesmoqueelanãosoubessedeoutrosnamesmasituação,mesmoqueignorassequedoishomenscometeramsuicídiodepoisdesemanasdefixaçãodoentianaLua,colecionandofotosesonhandocomela.Nemsefossecegadeixariadeverqueafilhacadadiamaissedistanciavadarealidade,desligando-sedomundoreal,aproximando-sedaalienaçãototal,daloucuraoudainconsciência.
AlembrançadeMareie,comosempre,afezsecarasúltimaslágrimasquechorariaporAlan.Deupartidanocarro,voltouàestradaerumouparaacasadospais,ondeafilhaaesperava.Encontrou-anacozinha,diantedoálbum,colorindoluascomosempre.Àsuachegada,ameninamallevantouosolhos,sorriusementusiasmoevoltouaconcentrar-senosdesenhos.
Emfrenteàneta,dooutroladodamesa,Petefranziaassobrancelhas.Jorjafoiatéoquartodamãeparatrocarderoupaepreparar-separaaviagem.Maryseguiu-a.
—OqueestáesperandoparatiraresselivrodeMareie?—perguntou.—Preferequeeumesmameencarreguedisso?
— Mamãe... já lhe conteioqueodoutorCoverlydisse... se insistirmosem tirar-lheo livro,oresultadopodesermuitoperigoso.
—Bobagem!— O doutor Coverly disse que não devemos dar excessiva importância ao livro, nem deixar
Mareieperceberqueestamospreocupadas.Ele...—Bobagensemaisbobagens.QuantosfilhostemodoutorCoverly?—Nãosei.—Apostoquenãotemfilhos.Setivesse,nãodiriatamanhaasneira.Semovestidodoenterro,apenasdecalcinhaesutiã,Jorjasentia-setãovulnerávelcomonostempos
emqueamãeiaparaseuquartofiscalizarcadadetalhedaroupaqueelaescolhiaparasaircomalgumrapazquenuncaestava“àsuaaltura”.Marynãogostavadenenhumdeseusnamorados,eissosetornouumdosprincipaismotivosquelevaramJorjaacasarcomAlan.Casarasóparavingar-sedamãe...Que
loucura!Comolhecustaracaro...TudoporculpadeMary,porculpadaqueleamoropressivoesufocante.Comgestosrápidos,vestiuojeansqueestavasobreacama.
—Mareienãoquerdizerporquecolecionaessesrecortes—Maryinsistiu.— Ela não sabe. Se existe alguma razão,Mareie a conhece tanto quanto nós. E alguma coisa
compulsiva,inconsciente,escondida.—Amelhorsoluçãoétirar-lheaquelelivro.—Talvez...Maistarde.Umpassodecadavez...—Sedependessedemim,trataríamosdissoagora.Duasmalasdeviagemesperavamsobreacama,quaseprontas.Jorjaacomodoualgunsúltimositens,
fechou-as e levou-as para o carro. Pete dirigia; sentada a seu lado,Mary insistia sempre no mesmoassunto; no banco de trás, Jorja eMareie apenas ouviam.De casa ao aeroporto, amenina não dissepalavra,concentradaemfolhear,dafrenteparatrásedetrásparaafrente,oálbumdeluas.
Alguns quarteirões adiante de casa, Mary resolveu atacar por outro flanco e passou a falar darepentinaviagemaElko.Achavaa idéiaabsolutamente incompreensível,absurda,comorepetiuváriasvezes.Umaviãozinhopequeno?!Dozepassageiros?!Eraperigosoviajarporessascompanhiaspequenas,depoucosrecursos,comaviõesvelhosemalcuidados!Eparaqueprecisavair?OfatodehaverpessoasemElkocomproblemassemelhantesnãoqueriadizernada!Sóporquesehospedaramnomesmomotel,viviamsonhandocomluas?Loucura!
—NãogosteidoquevocêmecontousobreessetalCorvaisis.—Petevirou-separatrás,parandonosinalvermelho.—Nãoqueroqueseenvolvacomgentedessalaia.
—Mas...vocênemsabequeméele!—argumentouJorja.—Ah...conheçoessesescritores!Sãotodosiguais...Li,certavez,queNormanMailerpenduroua
mulherdoladodeforadajanelaesegurou-apeloscalcanhares.EHemingway?Sempremetidoembrigasderua...
—Papai...—Jorjasuspirou.—Hemingwaymorreu!— Ecomopoderiaestarvivo?Elecavouaprópriasepultura,comtantasbrigasebebedeirase
drogas.Gentequeescreveésempreassim...Naoquerominhafilhaenvolvidanessadegradação!—Umaviagemdesnecessária.Umerroquevailhecustarcaro.—Maryeraincansável.Ao despedirem-se no aeroporto,Mary e Pete disseram-lhe que a amavam, e Jorja respondeu do
mesmomodo.Incrível,inacreditável,maspuraverdade.Pormaisqueaatormentassem,Jorjaosamavaesabia que eles também nãomentiam sobre o afeto que lhe dedicavam. Era em nome desse amor queviviamcriticando-a.Queespantosomistério,arelaçãoentrepaisefilhos!Maisespantoso,talvez,queosegredodoMotelTranqüilidade.
OaviãoerabemmaisconfortáveldoqueMaryimaginava,comseisfileirasdeassentosestofadosdecadalado,todosequipadoscomfonesparaouvirmúsica.Opilotomanobravaoaparelhocomcarinho,comoseconduzisseumcarrinhodebebê.
Trintaminutosdepoisdadecolagem,Mareiefechouoálbumeacomodou-separadormir,embaladapelo ronco suave dos motores. Jorja mergulhou em pensamentos sobre o futuro: a universidade, aesperança de montar sua própria butique, o muito que ainda teria de trabalhar para chegar lá... e asolidão. Precisava de um homem, e não apenas sexualmente. Depois da separação, tivera algunsencontros,mastodosdistantesdacama.Sentia-sesó,sentiavontadedeterumhomememcasa,ànoite.Queriaum
companheiro,umparceirocomquepudessedividirossonhos,asvitóriaseosfracassos.AosomdaorquestradeMantovaniquelhechegavapelosfones,deixou-seembalarpelafantasia.Lá,
noMotelTranqüilidade,encontrariaumhomemmuitoespecial,queafariareviver.Lembrou-sedavoz
gentil de Dominick Corvaisis, e o homem de sua fantasia assumiu um rosto imaginário, que bempoderiaserodele.EseDomfosseo“homemdesuavida”,oquediriaPete?Umescritor,umdepravadoquebriga,bebe,tomadrogas...ependuramulherespeloscalcanharesdoaltodosarranha-céus...
O avião pousou suavemente. E pouco depois Jorja foi obrigada a fazer alterações drásticas nossonhosqueacalentaraduranteaviagem,poisbastouolharparaDominickCorvaisisparaperceberqueocoraçãodelejátinhadona.
Ásquatroetrinta,meiahoraantesdocrepúsculo,océuestavaencobertodenuvensescuras,comumdistantetoqueavermelhadosobreosmontesdeRuby,muitoaolonge.Umventofriosopravacomforça,gelandoosossos,provandoqueLasVegasficaraparatrás,comosefossepartedeoutromundo.
CorvaisiseGingerWeissesperavam-najuntoàpistadopequenoaeroporto.Assimqueoviu,Jorjasentiu-se como se, afinal, encontrasse sua verdadeira família. Alguma coisa parecida com o queCorvaisislhedisseraaotelefone,masquesóentendeuper-feitamenteaodesembarcardoavião.
AtéMareie parecia envolvida no clima de solidariedade que cercava o grupo, ainda reunido napista.Osolhosvermelhoseinchadosdesono,orostoescondidopelocachecol,ogorrodelãenfiadoatéasorelhas,ameninapareciadespertardeumtranse.SorriuparaGingererespondeuatudoqueelalhedissecomumentusiasmoqueJorjanãoviadesdeháalgunsdias.Ofereceu-separamostrar-lheoálbumdeluaseriu,feliz,quandoDominickpegou-anocoloparalevá-laatéocarro.
Foiótimotervindo,Jorjapensou.GraçasaDeus!Dominick ia à frente, comMareie nos braços, e as duasmulheres seguiam-no a alguns passos de
distância.—Talveznãoselembre—Jorjacomentou,sorrindo—,masvocêsocorreuMareienaquelasexta-
feiradejulho,antesdechegarmosaomotel.—Sim?—Gingerperguntou,surpresa.—Nãomelembro...—Calou-se,forçandoamemória,e,
ao fim de alguns instantes, exclamou: — Claro! Era você, seu ex-marido e Mareie. Sim, agora melembro...
—Estávamosparadosnarodovia,aunsdezquilômetrosdomotel.—Jorjacontinuou.—Avistaeratãobonitaqueresolvemostirarumasfotos.
—Euvinhadoleste.Vivocêslá.Vocêseguravaamáquina,seumaridoeMareieestavamdepénagradedeproteção,dandoascostasparaobarranco.
— EupediaAlanquenãosubisse,nemdeixasseameninasubir.Maseleerateimoso...quandoresolviaumacoisa,nãovoltavaatrás.
AntesqueJorjabatesseafoto,Mareieescorregaraecaíradecostas,rolandopelobarranco.JorjaeAlangritaramecorreramparaacudirafilha,quandoumavozdesconhecidaosdeteve:
—Nãotoquenela!Soumédica!EraGinger,descendoobarrancoaindamaisdepressaqueospaisdamenina.Mareieestavacaída,e
Gingerajoelhara-senochãoparaexaminar-lheacabeça.Assustada,agarotapusera-seachorar,dizendoqueapernadoíaeacabeçaestavabem.Gingerapalpara-lheapernadireita,depoisaoutra,esorrira:“Casogravedejoelhoesfolado.Comumpoucodemercurocromovocêestaráótima!”
Recordandooepisódio,Jorjadeclarouque,naocasião,andavaprecisandodeumbomexemplo.—- Quando vi você, jovem, bonita, elegante... e médica... médica dedicada... foi como uma
revelação! Sempre achei que eu nunca seria nada além de garçonete... Mais tarde, quando Alan meabandonou,lembrei-medevocê...eresolviquequeriasercomovocê.Querialutarcomovocêparafazerdemimmesmaoquebemdesejasse.Eoprimeiropassofoientrarnafaculdade.Vejaque,decertomodo,vocêmudouminhavida.
Jorja colocou a bagagem no carro. Ginger fechou o porta-malas, esperou que Dom acomodasse
Mareieeentregou-lheaschaves.—Ficomuitoorgulhosa,masnãoacredito—declarou.—Ninguémmudaavidadeninguém.Foi
vocêqueresolveulutar...eestávencendo.Oméritoétodoseu.—Nao,senhora,foioquevocêfezporMareienaqueledia.Oquemudouminhavidafoiveruma
mulhercomovocê.Porqueeuprecisavasódeumbomexemplo.Evocêapareceunahoraexata.—Nãomereçoisso!Nãodigabobagens...—Gingerdisfarçouoembaraçocomumagargalhada.—Nãoligue—disseDom,voltando-separaJorja.Elaéomelhorexemploparaqualquermulher.
Oqueestádizendosãoshmontses!—Shmontses}\—Gingerrepetiu,semprerindo.—Nós,escritores,temosumvícioprofissional:nuncaesquecemosumaboapalavra;podeserem
ídiche,emgrego,emchinês...NesteexatomomentoJorjadescobriuquenãopodiaincluirDominickemsuasfantasias,poiselesó
tinhaolhosparaGinger.Ea lindadoutorapareciaencantada...Masnemumnemoutrodava sinaisdeperceberqueestavamapaixonados.Talvezaindafossecedo.Comotempo...
PartiramnadireçãodeElko,rumoaoMotelTranqüilidade,menosdecinqüentaquilômetrosadiante.Pelo caminho,Ginger eDom foram contando a Jorja os últimos acontecimentos, e a cada fato o bomhumor da chegada diminuía. Enquanto o carro percorria a paisagem escura, Jorja via dissipar-serapidamenteaesperançadeencontrarnomotelohomemdesuavida;cadavezmaisparecia-lhequeseaproximavadeumaimensacovarasa,valacomumdossonhosdeváriosamigos.
Logo que chegou a Salt Lake City, Utah, Jack Twist tomou outro avião pilotado por um homemcalado,deenormebigodeescuro.Àsquatroecinqüentaetrês,minutosantesdeanoitecer,desembarcounopequenoaeroportodeElko.Conformeprevira,nãoencontroualinenhumalocadoradeautomóveisetomouumtáxi,pedindoaomotoristaqueolevasseaumrevendedordeveículosusados.Segundosantesdealojafechar,conseguiucomprar,pagandoavista,umpossantejipecomtraçãonasquatrorodas.
Até aquelemomento, não semostrarapreocupadocomapossibilidadedeque alguémo estivesseseguindo.Nãoesquecera,porém,queenfrentavagentepoderosa,derecursosquaseinfinitos,aquemnãoseriafácilenganar,principalmentenoslimitesdeumacidadepequenacomoElko.Assim,malseafastouda loja, pela primeira vez concentrou-se em observar os arredores. Sempre olhando pelo espelhoretrovisor,rodouváriosquilômetrosatétercertezadequenãohavianinguémemseuscalcanhares.
Naviagemdetáxidoaeroportoatéorevendedordecarros,viraumsupermercado,edirigiu-separalá.Parounumdoscantosmenosiluminadosdoestacionamento,desceueolhouemvolta,examinandoaruaescuraqueseestendiaasuafrente.Nãoviuninguém.Entrounosupermercado,meioofuscadopelomardelâmpadasfluorescentesepelosdisplaysdeneoncolorido,ebalançouacabeça,saudosodosbonstemposdapequenaconfeitariadaesquina,daproprietáriagorda,atrásdobalcão,vendendoàscriançasosbolinhosqueelamesmafazia,ougritandoparaomarido,comsotaqueestrangeiro,paraqueservisseumdossanduíchesqueeleinventava.Sentindocheirodedesinfetante,Jacksuspirou.Adeusconfeitariadaesquina;opaísestavainundadodesupermercados,lâmpadasfluorescentes,neon,desinfetante...
Comprou ummapa da região, uma lanterna, leite, carne desidratada, chocolate embarra, balas e,cedendoaumimpulsomórbidoeincontrolável,umpacotedehamwich.Otextoimpressonaembalagemdefinia o produto como “Sanduíche sintético, feito com pão de fôrma, temperos e pasta de carnedesidratadaevitaminada,especialmenteindicadoparaalpinistas,amantesdocampingeesportistasemgeral”. Num quadrado amarelo meio encoberto pela etiqueta do preço, o fabricante garantia: “Carneautêntica”!
Jack riu. Eram obrigados a declarar que se tratava de “carne autêntica” porque, olhando para oconteúdodopacotedeplástico,qualquerumjurariaqueatalpastanãoincluíaumgramasequerdecarne.
Hamwich... símbolodasverdadesnacionaispelasquais lutaranaAméricaCentral!SeJennyestivesseali,osdoishaveriamdedarboasrisadas!
Aosairdosupermercado,novamenteexaminouosarredoreseoutraveznãopercebeusinaldequealguémoseguisse.Voltouparaojipe,abriuumadasmalaseretirouumasacoladeplástico,comumadasarmas,umcartuchodebalas,maisumacaixadebalascalibre32eumsilenciador.Comgestosprecisos,transferiuascomprasdosupermercadoparaasacoladeplásticoedistribuiuasbalaspelosváriosbolsosdajaqueta.Entãoacomodou-seaovolante,carregouaarmaeacoplou-lheosilenciador;colocou-aentãosobre o banco e cobriu-a coma sacola. Sentindo-semais seguro, acendeu a lanterna para examinar omapaquecomprara.Minutosdepois,estavaprontoparaentraremcombate.
Oprimeiro passo era despistar qualquer ser vivoque por acaso estivesse no seu encalço, e paratantoJackrodoudurantemaisdecincominutospelasruasdeElko,usandotodosostruquesqueconhecia.Umdosmaiseficientesconsistiaemestacionaremlocaldepoucomovimentoeesperar.Ninguém,nemomaisespertopolicial,espiãooucontraventordaMáfia,conseguiriamanter-se,aomesmotempo,próximoobastanteparavê-loelongeobastanteparanãoservisto.Nãoapareceuvivalma.
O segundo passo era colocar em ação os recursos tecnológicos. Estacionou numa rua escura,deslocou-se para a parte traseira do Jipe e de uma das malas retirou o receptor de rádio usadopara varredura eletrônica. Pouco maior que dois maços de cigarros, o aparelho conseguia captarqualqueremissãoderádio,emfre-qüênciaalternadaoumodulada.Nahipótesepoucoprovável,masnãoimpossível,dequealguémhouvesseinstaladonojipeumequipamentodetransmissãoquelhepermitisseseguiroveículoadistância,oaparelhodeJackdetectariaafreqüênciadaemissãoefariadispararumsinaldealerta.Elepuxouaantenadorádioe
rodeouojipe,andandodevagar,osolhoseosouvidosatentos.Nada.Oveículoestavalimpo.Guardouoaparelhoevoltouaovolante.Ninguémoseguia,nemdeperto,nemdelonge.Observação
visual:“negativo”.Varredura:“negativo”.Eissosignificavaqueoinimigo,quesederaaotrabalhoderechear seus cofres secretos com cartões-postais doMotel Tranqüilidade, devia saber que ele iria aNevada. Devia conhecer suas habilidades, seus mil e um recursos... Por que o deixava progredirlivremente, dando-lhe tempopara umperfeito reconhecimento do terrenoondeo combate se travaria?Não havia explicação razoável, e Jack franziu as sobrancelhas, o instinto dizendo-lhe para tomarcuidado.
DesdequesaíradeNovaYork,tiveratempoparaanalisarasituaçãoechegaraaalgumasconclusõesquantoàidentidadedoinimigo.Agora,aovolantedojipe,chegandoàtocadaonça,ascoisaspareciam-lhecadavezmaisestranhas.
Item um: era inexplicável que ninguém o seguisse. Item dois: ele fora treinado para sempredesconfiar de fatos inexplicáveis. Pela simples e boa razão de que, quando uma situação pareceinexplicável, o mínimo que se pode dizer é que algum detalhe importante — geralmente o maisimportante— foi deixado de lado. E quando escapa o detalhe mais importante de uma situação decombatecomeça-seacombaternoescuro...Corre-seoriscodelevarumtiropelascostas.
Cadavezmaisalerta,Jacktomouorumonorte,saindodeEl-konadireçãodaRodovia51.Poucoadiante,dobrouàesquerda,saiudaestradaeseguiuporumatrilhaestreitaepedregosaqueiadarnosfundosdomotel.QuandoaLuasurgiu,desligouosfaróiseguiou-seapenaspelobranco-prateadodoluar.
Aoalcançar o topodeumacolina, viuobrilhode três ouquatro janelas iluminadas, perdidasnavasta escuridão da noite. Do outro lado, à sua frente, a Rodovia 80. Poucas luzes... OMotelTranqüilidade estava semmovimento,ou fechado.Dali emdiante, Jack seguiu apé, invisível esilenciosobichodanoite.
Deixouaprimeiraarmanojipeelevouasubmetralhadora.Naverdade,nãoachavaqueprecisaria
dela,pelomenosporenquanto.Fossequemfosseseuinimigo,nãooteriaatraídoparatãolongeapenasparamatá-lo. Se o quisessemorto, uma única bala emNovaYork despertariamenos atenção que umcadáverali,expostoaosoldeNevada.Pelosim,pelonão,asubmetralhadoraeracomoqueumaextensãodesuamãodireita.
Além da arma e de uma cartucheira carregada, Jack apanhou a sacola de comida, o microfonedirecionalportátileobinóculodevisãoinfravermelha.Colocouasluvasevestiuumcasacocomcapuz.
A caminhada lhe fez bem. O frio e o vento revigoraram-lhe as forças. Militar metódico, ele seprepararaparaandar.JásaíradeNovaYorkcomasbotasdecanoaltoesoladeborracha,pernei-rasejeans,suétergrossoe jaquetadecouroforrada.Os tripulantesdoaviãoarregalaramosolhosaovê-loaparecervestidodaquelemodo,mastrataram-nocomoseeleestivessedeterno,gravataechapéu.Claro!Mesmooshomensfeios,vesgos,vestidoscomoestivadoressiberianosmereciamtratamentodeprimeiraclassequandoeramricosobastanteparaalugarumjatoparticular...
Jack continuou andando. As vezes, as nuvens encobriam a Lua. As vezes, ela brilhava com todoesplendor,iluminandoasmanchasdenevequeseacumulavamnochãocomoossosdealgumagigantescacarcaçacaídadasmontanhas.Aterracrestada,aspedras,osarbustossecos,tudosetransfiguravaàluzprateada.AtéqueoutrasnuvensvoltavamaencobriraLua,eomundomergulhavadenovonaescuridãodensaepesada.
Porfim,Jackchegouaumpontoquelhepareceuperfeito.Umaelevaçãodeterreno,apoucomaisdequatrocentos metros dos fundos do motel. Sentou-se, colocou a submetralhadora e a sacola sobre osjoelhos.
Obinóculoentrouemação,amplificandoa luz localoitentaecincomilvezes,demodoque Jackenxergavatudonitidamentecomosefosseplenodia.Comoscotovelosapoiadosnosjoelhos,obinóculojunto ao rosto, virou-senadireçãodas janelas domotel. Primeira questão: guardas, vigias, segurançaexterna,armadaounão.Primeiraresposta:negativo.Nãohaviajanelasnosfundosdoprédio,nemcantosescurosondealguémpudesseesconder-se.Napartecentral, localizouoqueprovavelmenteeraacasadosproprietários.Ali,sim,havialuz.Masascortinasfechadasimpediam-nodeverointerior.
Jack deixou o binóculo de lado e apanhou omicrofone direcional, estranho e elegante como umaarmadeguerreiros espaciais.Atépoucos anos antes,microfonesdesse tipo tinhamalcancedepoucosmetros; o progresso recente tornava-os capazes de amplificar, a ponto de tornar plenamente audível,qualquer som emitido por uma fonte localizada à distância de quinhentosmetros oumais, no caso deperfeitascondiçõesdeoperação.Oaparelhoincluíadoisgrandesfonesdeouvido,queJackprendeuàcabeça.Direcionouomicrofoneparaumadasjanelas,acionouumbotãoelogocomeçouaouvirvozesanimadas.Masosomchegava-lhecommuitainterferência,porquehaviaascortinas,oventoforteeosquase quinhentos metros de distância. Balançando a cabeça, Jack levantou-se, apanhou a sacola e asubmetralhadoraeaproximou-sedomotel,escolhendooutropontodeescuta,duzentosmetrosà frente.Dessa vez, pôde ouvir tudo que se dizia no primeiro andar da parte central.Cinco vozes diferentes...talvez mais. Estavam jantando, elogiando o cozinheiro, alguém chamado Ned e sua auxiliar, Sandy.Falavamdeperu,dorecheirodepassas.
—Desgraçados...—resmungou.—Nãoéjantar...Estãotendoumbanquete!Comera bemno avião,mas, ainda condicionado ao fuso horário doLeste, seu estômagomarcava
onzedanoitee roncavade fome.Comcertezaprecisaria ficaralimuito tempoatédescobrir tudoquepudessesobreaquelaspessoas,enãopretendiaesperarfamintoenquantoosoutrosseempanturravam.
Com duas pedras, apoiadas uma na outra, Jack construiu um apoio para manter o microfonedirecionadoparaomoteleapanhouohamwich,“carneautêntica”.Foimorderecuspir: tinhagostode“autêntica”areiafritaembaconrançoso.Resolveuficar
comacarnedesidratadaeochocolate,quelhepareceríambemrazoáveissenãoouvisseosrasgadoselogiosdobanquete.
Três bocados mais tarde, já sabia que os comilões não eram os inimigos que estava tentandolocalizar.Estranho:todosfalavamcomosetivessemsidoatraídosparaomotel.Comoele.Aospoucos,asvozestornavam-sefamiliares...PareciaqueJackconheciaaquelaspessoasfaziamuitotempo...Tinhaasensaçãodequeoaguardavam...
Umamulher chamadaGinger e um homem de nomeDom falavam do que haviam descoberto nosarquivosdojornalSentinela.Não...“Vazamentotóxico”,“Bloqueiodarodovia”,“HomensdaDERO”...Osuficienteparatiraroapetitedequalquerum!Jackbalançavaacabeça,sementenderoquesignificariaaquilo,atéquederepenteparou.
—DERO!—perguntouasipróprio.—DERO!Mas...quemerdaéessa?!—ConheciaoshomensdaDERO.Claro!Verdadeirasferas,capazesdelutaratécomursosetranformá-losemsalsicha.Dizia-senosubmundodocrimeque,sealguémtivessequeescolherentresaltardajaneladodécimoquintoandare enfrentar umcara daDERO,omelhor seria pedir licença, entregar a alma aDeus... e saltar.Morterápida,indolor...
Aospoucos,JackpercebiaquesemeteraemalgomaioremaisperigosoqueaMáfia.Aindatinhamuitoadescobrirantesdeentendercomprecisãonoqueconsistiaaquelaloucura,porquetodasasvozescaptadas pareciam contar a mesma história... Todos queriam descobrir o que acontecera num fim desemanadejulho...doanoretrasado!Omesmofimdesemanaemqueele,Jack,tambémestiveranomotel.Trabalhavamjuntosparadescobrir...Maserammuitoingênuos!Nãopodiamcontinuarfalando.Jacktevevontadedegritar-lhesquecalassemaboca,pois,seestavaouvindotudo,oinimigotambémpodiaestaràescuta.
E os caras da DERO? Difícil de engolir. Mais difícil que meia dúzia de hamwichs de “carneautêntica”.
Nasala,asvozescontinuavamtagarelando,alheiasaoperigo.Jacklevantou-sedeumsalto,arrancouos fonesdacabeça,meteuoequipamentona sacoladenáilonedisparouacorrerpelanoite, rumoaoMotelTranqüilidade.
OapartamentodosBlocknãotinhasaladejantareacopaerapequenademaisparanovepessoas.Assimafastaramparaoscantosamobília,levaramparaláamesadacozinha,abrindo-anacapacidademáxima. Dom sentia-se em casa, uma casa que nunca tivera, jantando com a família que jamaisconhecera.
Paranãoterderepetiramesmahistóriaváriasvezes,GingereDomdecidiramesperarojantarparacontaraogrupoasnovidadesdoSentinela.E,aosomdecoposetalheres,contaramquenaquelasexta-feira à noite o Exército bloqueara a rodovia pelo menos alguns minutosantes do “vazamento”; issosignificava que os helicópteros carregados demembros daDEROhaviam partido de suas bases pelomenosmeiahoramaiscedo.ProvadequeoExércitosabiaqueiaacontecerum“acidente”.
Partindoopão,Domdizia:—SeFalkirkeseusamigosestavambempróximosepuderamassumirocontroledasituaçãologo
quetudocomeçou,éclaroqueoExércitosabiadetudo.—Enãofeznada?!—JorjalevantouosolhosdopratoemquecortavaoperuparaMareie.—Tudoindicaquenãopôdefazernada.— Umataquede terroristas...Assaltaramocaminhãoque transportavaogás, eoavisochegou
tardedemais...—arriscouErnie.— Pode ser. Mas um ataque de terroristas não justificaria o segredo absoluto que cercou a
operação — observou Dom, sem se convencer. — Deve ter sido outra coisa. Operações militares
secretas,porexemplo,àsquaissóoselementosdaDEROteriamacesso.Brendancomiacomoapetitedeseusmelhoresdiasdefé.Engoliuomilhoquemastigavaedisse:—OfatodeoExércitoestaràesperadealgum“acidente”explicaporquehaviatãopoucagente
na rodovia. A estrada foi bloqueada, para desviar o tráfego pesado, mesmo antes de alguma coisaacontecer.
— Os que estavam aqui viram o que não era para ver, foram presos e submetidos a lavagemcerebral.Nóseoutrosquenãoapareceramainda.Equetalveznuncaapareçam.
Por fim, Dom contou-lhes sobre a descoberta que fizeram quando, depois de muito procurar,resolveramexaminarasediçõesdojornalpublicadasnosdiasseguintesao“vazamento”.
—Háumlugarqueécitadoatodoomomento—informou.—ThunderHill.Achoquefoiláquetudoaconteceu.OExércitousouabasedeShenkfieldpara
desviaraatençãodoverdadeirolocalondeosproblemasocorreram.EsselocaléThunderHill.FayeeErnielevantaramacabeça,entreolharam-seeolharamaoredorsurpresos.— Thunder Hill fica aqui perto— disse Faye.—Uns dez, doze quilômetros a nordeste, nas
montanhas.OExérçitomantémumabase lá,umaespéciededepósitoouarquivosecreto.Documentos,fichasdepessoal...coisasassim.Oquesedizéqueláestãoguardadascópiasdetodososdocumentosmilitaressecretos.Assim,nocasodeguerranuclear,porexemplo,ospapéisestarãoprotegidos.
—Essedepósito,comoochamamos,jáexistiaquandomudamosparacá—acrescentouErnie.—Deve ter mais de vinte anos. Dizem os boatos que há outras coisas guardadas lá, além de simplesdocumentos.Dizemqueháestoquesdecomida,medicamentos,armas.Estoquesgigantescos,suficientespara manter o Exército abastecido por muito tempo, mesmo que as bases militares espalhadas pelomundosejambombardeadas.
—Aíestáumlugaronde...tudopodeacontecer—Jorjaestremeceu.—Tudo...—Nedrepetiu.—Eseriapossívelqueusassemessedepósitoparaoutrosfins?—Sandyperguntou.—Para...experiênciascomalgumanovaarma,porexemplo?—Epossível.Tambémpenseinisso—declarouDom.—Massenãohouvevazamentonarodovia,sealgumacoisaaconteceuemThunderHill,comoeporquefomosatingidos?Estávamosamaisdedezquilômetros
dedistância...Essapergunta,deGinger,tambémnãotinharesposta.Mareie,quenadadisseraduranteojantar,descansouogarfoaoladodopratoe,sorrindo,observou:—ThunderHillquerdizer“MorrodoTrovão”.Porquê?—Viva!Essaeusei!—exclamouFaye,batendopalmas.—ThunderHillficanumvaleentreduas
montanhas;éumaregiãodepastagens,cercadademorrosaltos.Quandoventaforte,oecoproduzruídointenso,quese repeteentreasmontanhasechegaaquicomosefosseumtrovão,dessesqueseouvemquandovaichover.Masmuitomaisforte,comoseestivessenascendodochão,nãodocéu.
—Puxa!—Ameninafezumacareta.—Euseriacapazdefazerpipinacalça.—Mareie!—Jorjatentoumanteradisciplina,apesardasrisadasgerais.—Maséverdade,mamãe!—protestouagarota;sempreséria.—Vocêselembradodiaemque
vovôevovóforamjantarconosco,eestavachovendo,ecaiuumraionaárvoredoquintal?E...bum\Umbarulhão!E eu fiz pipi na calça!—Olhou emvolta damesa, à vontade em sua nova família.—Foihorrível...
—Issojáfazmuitotempo—disseJorja,rindo.—Vocêerapequena...—Dom...—chamouErnie.—VocêaindanãonoscontouporqueachaqueolocaléThunderHill
enãoShenkfield.Oquedescobriunojornal?NoSentineladesexta-feira,dia13dejulho,umasemanadepoisdobloqueiodarodovia,trêsdias
depoisdareaberturadaestrada,haviaumaentrevistacomdoisfazendeiroslocais,NorvilBrusteJakeDirkson. Conforme Dom relatou, ambos falavam dos problemas que enfrentavam, acossados pelosburocratasdoMinistériodaAgricultura.
Conflitos entre fazendeiros e o ministério não eram raros. Metade do território de Nevada erapropriedade do Estado, não apenas as áreas desérticas,masmuitas dasmelhores áreas de pastagens,várias delas entregues aos fazendeiros sob arrendamento. Os fazendeiros acusavam o ministério dereservar para si asmelhores terras e oferecer-lhes as que não interessavam a ninguém; queixavam-setambém dos impostos e das altas taxas de arrendamento.Mas Brust eDirkson tinham novas queixas.Durante anos, diziam, haviam arrendado as terras próximas à base militar de Thunder Hill. Brustarrendavatrezentoshectares,aoesteeaosuldabase,eDirkson,duzentoshectares,aosul.Derepente,namanhã do dia 7 de julho, sábado, embora ainda tivessem direito a quatro anos de arrendamento, oministériotomara-lhesmaisdametadedasrespectivasterras.
—Justamentenamanhãseguinteaovazamentoeaobloqueiodaestrada—comentouFaye.— Brust eDirkson foram ver os rebanhos namanhã de sábado, como faziam sempre—Dom
continuou —, e descobriram que o gado fora afastado. Já havia até uma cerca de aramefarpadodelimitandoonovoperímetrodaáreadesegurança,emtornodeThunderHill.
Gingeracaboudecomer,afastouoprato,cruzouosbraçoseacrescentou:—Oministériolimitou-seainformaraBrusteDirksonqueoscontratosdearrendamentoforam
“denunciadosunilateralmente,semdireitoaindenização”.Eissoverbalmente,semqualquerdocumentoescrito.Pareceque, emgeral, quandoumcontratodesse é denunciado, os fazendeiros são informadosantecipadamente,comsessentadiasdeprazoparadesocuparaárea.
—Eissoélegal?—perguntouBrendan.—Aíéqueestá.—FezErnie,balançandoacabeça.—OproblemadeternegócioscomoEstado
éesse...nuncasesabeoqueéounãoélegal,porqueelesfazemasleisedecidem.Ecomojogarpôquercomumfantasma.
—Opessoaldeministérioandasempreporaqui,denarizempinadoepastinhaembaixodobraço.Mandamedesmandam.—Fayeabriuosbraçosnumgestodeimpotênciaecansaço.—Éoquedizojornal—Domconcordou.—Eémuitosuspeitoqueoministériotenhadecidido
retomarapossedas terras justamentenaocasiãodovazamentoedoproblemadarodovia.Muitomaissuspeito, porém, é o modo como o ministério agiu com os dois fazendeiros. Depois que amboscontrataramadvogadospara reivindicar seusdireitose foramaos jornais...oministériovoltouatráseconcordouemindenizá-los.
Desobrancelhasfranzidas,Ernieobservou:— Aí tem coisa...Nunca soube de um único caso em que oministério tenha voltado atrás em
questõesdeterrascomosfazendeiros.Oqueelesfazeméexatamenteocontrário...esperamqueavítimaosacioneecontamcomotempodoprocesso.Maisdia,menosdia,osfazendeirosacabamdesistindo...ou porque a ação já não interessa a ninguém ou porque já não têm dinheiro para continuar pagandoadvogados,custaseoutrascoisas.
—EqualfoiaindenizaçãoquepagaramaBrusteDirkson?—perguntouFaye.— Não foi divulgada — Ginger respondeu —, mas não deve ter sido pequena, porque os
fazendeirossederampormuitosatisfeitosenãofalarammaisnoassunto.
—Oministérioconseguiucomprá-los—Jorjacomentou.—Oministério...ouoExércitoportrásdele—disseDom.—Eevidenteque,paraoExército,quantomaistempooassuntocontinuassenasmanchetes,pior.
Porque,aqualquermomento,alguémpoderialigarosdoisfatos...aocupaçãodasterraseoproblemadarodovia...apesardadistânciaentreaestradaeThunderHill.
FoiavezdeJorjafranzirassobrancelhas.—Poisé...—murmurou.—Nãoéestranhoqueninguém,atéagora,tenhafeitoessaligação?Se
vocêsdois,tantotempodepois,perceberamqueaípoderiahavermaisdoqueumasimplescoincidência,porqueninguémmaisviu?
—Porumasimplesrazão—replicouGinger,virando-separaela. — Porque procuravamos uma ligação qualquer entre todos os acontecimentos que tivessem
ocorrido aqui. Para quem vive nesta cidade, aqueles dias foram atípicos. Ninguém pensava em outracoisa a não ser no vazamento.Além disso, parece que as disputas entre fazendeiros eministério sãomuitocomuns.UmadasediçõesdoSentinela traz atéumeditorial elogiando amudançade atitudedogoverno,fazendovotosdeque,dalipordiante,opagamentodeindenizaçãosetornasserotina,ecoisasassim.
—Peloquelemos—Domacrescentou,cruzandoosbraços—,epeloquevocêsdizem,aquelafoiaprimeiravezqueoministériopagouindenizaçãopelasterrasquequeriadevolta.Primeiraeúnicavez.Nãoacreditoqueessepagamentoindiqueumamudançadepolíticaemrelaçãoaosfazendeiros.Émuitacoincidência...—Calou-se,pensoudurantealgunsmomentoseexclamou:—Não!EclaroqueháligaçãoentreacrisequelevouaobloqueiodarodoviaeaquestãodasterraspróximasaThunderHill!
—HáoutromotivoparapensarquehouvealgumacoisaemThunderHill—acrescentouGinger.—Seo“problema” tivesseocorridoemShenkfield,nãohaverianecessidadedechamaropessoaldaDERO.HásoldadosemShenkfield,enãoépossívelquenãotenhamcondiçõesdedefenderouprotegerumabaseondevivemetrabalham.Quealtosegredomilitarexistirianumabaseondevivemetrabalham.Que alto segredo militar existiria numa base que não pudesse ser do conhecimento do serviço desegurançalocal?Porqueconvocarumatropadeelite,treinadaespecialmenteparacuidardadefesacivilem momentos de catástrofe? Não bastaria deixar a segurança entregue aos mesmos soldados que jáestavam envolvidos no assunto? Mas... se o problema foi em Thunder Hill, então sim... poderia terocorrido um problema mais sério, que os soldados comuns não deviam conhecer e que exigia aconvocaçãodepessoaltreinadopeloserviçosecreto,dostaisquenãoabremobico...
— Nessecaso—disseBrendanprecisamosnosconcentrar emThunderHill, se équeexistemrespostasparanossasperguntas.
—Epossível,até,quenadatenhaacontecidoemShenkfield.Quetudotenhasidoinventado,ou,talvez,“transferido”deThun-derHill.Paraqueninguémpensasse
emexaminarolocal.Ernietambémacabaradecomer.Asuafrente,opratoeostalheresestavamprontosparairparaa
pia,provadequearígidadisciplinadaMarinhaaindanãoforaesquecida.—Fazsentido—concordou.—VocêssabemquetrabalheinaMarinhaduranteanos.Algunsdeles
foramdedicadosaoserviçosecreto,eécomcertoconhecimentodecausaquecomeçoaacharqueDompodeterrazão.EbempossívelqueShenkfieldsejaapenasumacortinadefumaça.Muitobemelaborada.
—Mashácoisasquenãoentendo—disseNed,detestafranzida.—Porexemplo...arodoviafoibloqueada,masentreThun-derHilleolocaldobloqueioháváriosquilômetrosqueficaramforadaáreadequarentena.ComoépossívelquetenhaacontecidoalgumacoisaemThunderHill...equeessa“coisa”tenhanosafetadoaquinomotel...semcausaromenordanonaáreaentreomoteleodepósitomilitarnas
montanhas?—Boapergunta—afirmouDom.—Maisumaqueaindanãopodemosresponder.—Eháoutra—Nedcontinuou.—Peloquesabemos,odepósitodeThunderHillésubterrâneo.
Háaquelasenormesportasdeferronocaminhoeháaestradaqueasseparadopostodaguarda...Paraque precisam de tanta terra? Essa terra que tomaram dos fazendeiros, por exemplo... para queprecisariamdela?
—Nãofaçoidéia.—Domreplicou.—Mas,naquelasexta-feira,seisdejulho,oExércitotevedetomarmedidasdeemergência.Primeiro,decretouaquarentenaaquinomotel,amaisdedezquilômetrosdedistância,parafazeralavagemcerebraldastestemunhasoculares.Segundo,resolveuampliaraáreadesegurançaàvoltadodepósito,lánasmontanhas,ecriarumasegundazonadequarentena.Possoestarenganado, mas começo a achar que, se algum dia conseguirmos descobrir o que aconteceu...descobriremosemThunderHill.Precisamosnosaproximardaquelamontanha.
Silêncio.Ojantarestavaencerrado,masninguémpareciainte-ressadonasobremesa.Distraída,Mareiedesenhavapequenasluasamareladasnagorduradoprato.
Osoutros,àvoltadamesa,concentravam-senosprópriospensamentos.Haviamchegadoaoâmagodoproblema:comoenfrentar tal inimigo,ogovernodosEstadosUnidos,oExércitoamericano?ComoseaproximariamdeumamontanhafechadaporgigantescosportõesqueescondiamsegredosprotegidospeloEstado?
—Jásabemososuficienteparairaosjornais—disseJorja.—TemosossuicídiosdeZebediahLomackedeAlan.TemosoassassinatodePabloJackson.Temosospesadelosdevocês.Temosasfotos.Aimprensaadoraessetipodemistério.Podemosconvocarosjornalistasecomeçarafalar...contar-lhesoquenosestáacontecendoeoquepensamosquepodeteracontecido.Tería-mosaopiniãopúblicadenossolado.Nãoestaríamossozinhos.
— Não funciona— declarou Ernie, balançando a cabeça.— Se começarmos a pressionar oExército,nãoconseguiremosnada...anãoserdartempoaelespara inventaremoutrashistórias,outrasmentiras.OExércitonãoécomooCongresso,porexemplo,quereageàspressõesdaimprensa.Militarnão precisa de voto... Acho que devemos continuar como estamos, pesquisando, perguntando,investigandoporcontaprópria...dandoaoinimigoaimpressãodequenãosabemosdenadaquepossaameaçá-lo.Eganhartempoatédescobrirmosopontofracodeles.
— Equeninguémesqueça—preveniuGinger—queocoronelFalkirkquerianosmatar.Nadaindicaquepossa termudadode idéia.Parececlaroque foivotovencidoquando tudoaconteceu.Masagora, considerando-se que ele estava certo quanto à ineficácia da lavagem cerebral, talvez seussuperioresconcordemcomoholocausto.
— De qualquermodo—Sandy acrescentou—,mesmoque seja perigoso, acho que Jorja temrazão.Não há como entrar emThunderHill para descobrir o que existe lá. E um lugar de segurançamáxima...àprovaatédeataquesnucleares.
—AchoqueErnieestácerto—opinouDom,recostando-senacadeira.—Omelhorédartempoaotempoeinvestigar...Talvezdescubramosopontofracodo
inimigo.—Mas...eseelenãotiverpontofraco?—Sandyarregalouosolhos.—Desdeodiaemquenosmandaramparacasa,oplanodelescomeçouaruir—observouGinger.
—Cadadia,quandoacordamos,descobrimosumdetalhenovo...Oinimigocomeçaaperderaguerra.Estamosfurandoocerco...
— É...Mas eles têmmais tempopara recomporo cercodoquenóspara continuar furando—comentouNed,comumsuspirodesanimado.
—-Nadadepensamentonegativo—Ernieresmungou.Dooutroladodamesa,Brendansorriuseusorrisoluminoso,quasesobrenatural,edisse:— Ernie tem razão.Nada de pensamento negativo... porque é bobagem! Estamos destinados à
vitória.Vamosvencer.Emsuavozvibrava,outravez,acertezacalmadosiluminados,comoseDeuslhehouvesserevelado
ofuturo...umfuturoespecial,inevitável.Mas,emmomentoscomoaquele,acertezadavitórianãoserviaparareconfortarDom.Acertezaaindalhevinhacarregadademedoeansiedade.
—QuantossoldadosestãoreunidosemThunderHill?—Jor-japerguntou.Antes que Ginger ou Dom pudesse informar-lhes o que haviam descoberto no jornal, a porta do
corredorabriu-se.Apareceuumhomem,entretrintaequarentaanos,magro,deolharduro,cabeloescuroeombrosfortes,queosfitavadelado,comoolhovesgo.Aportadafrenteestavafechadaachaveeeraimpossívelsubiraescadasemfazerestalarolinóleoenceradodosdegraus;alémdisso,aportadasaladeestardoapartamentodosBlocktambémestavatrancada.Masohomemaliseencontrava,atentocomoumgato.
—PeloamordeDeus—disseele—,calemaboca.Sepensamqueestãosegurosaqui...vocêsestãodoidos!
Trinta quilômetros a sudoeste do Motel Tranqüilidade, no campo de provas da base militar deShenkfield, as instalações eram subterrâneas: laboratórios, escritórios da administração, centro decontrole de segurança, lanchonete, áreas de lazer e convivência, apartamentos dos oficiais. Ao solardentedoverãoàbeiradodeserto,enosrarosinvernosrigorososdaregião,eramaisfácileeconômicomanteroscontrolesemníveisconfortáveisdetemperaturaeumidadeemconstruçõessubterrâneas.MasnãoeraessaaprincipalrazãodeoExércitoobrigarseussoldadosaviverementerradoscomotoupeiras.A base ocupava-se de testes com armas químicas e biológicas que não podiam ser experimentadas acéuaberto,sobpenadetransformarapopulaçãocivilemcobaiasindefesasebarulhentas.
Pormaisqueotrabalhoosapaixonasse,pormaisqueolazerosfizessedescontrair-se,ostécnicosdeShenkfieldnuncaesqueciamqueviviamenterrados,metrosabaixodosolo.Tinhamduasrazõesparaisso: passavamos dias pensando nas janelas que não viam, e os aparelhos de ar condicionado nuncaparavamdezumbir.
Sozinho, sentado em frente à mesa de aço da sala que ocupava temporariamente, preocupado eansiosoàesperadeumtelefonemaquenãovinha,ocoronelLelandFalkirkpensavanoquantoodiavaaquelelugar.
O zumbido do ar condicionado nos ouvidos, dia e noite, dava-lhe dor de cabeça.Desde sábado,quandochegara,devoravaaspirinascomosefossembalas.Abriuovidro,tiroumaisdoiscomprimidosecolocou-ossobreamesa.Apanhouumcopo,encheu-odeáguanobebedourodemetal,porémnãousouaáguaparaengoliroscomprimidos:enfiouasaspirinasnabocaemastigou-asaseco.Ogostoamargodeu-lhenáuseas,maseleaindanãotocounocopo,nemcuspiuoremédio.Insistiu,venceuoenjooeasalivaácidadesceu-lhepelagarganta.
Amiserávelinfânciadeincertezasedoreseaadolescênciaaindamaisdesesperadaensinaram-lhequeavidaécruel,terrivelmenteinjusta;queosimbecistêmesperançasdesalvação,massóosmais
fortes têm chance.Desdemuito jovemobrigava-se a exercícios que lhe causavamdor emocional,mentaloufísica,porqueacreditavapiamentequeaautoflagelaçãootornariamaisresistentee,portanto,menosvulnerável.Osexercícios iamdemastigaraspirinassecasàpráticadosmais radicais testesdesobrevivência,quechamavade“passeioaoinferno”.Eramexcursõesdeduassemanasoumais,nasquaisseexpunhaariscosdevidaconstantes.Saltavadepára-quedasnaselva,sempossibilidadedecontatocom a civilização, desarmado e sem alimentos, vestido só com o uniforme. Nao tinha bússola, nem
fósforos,mas apenas o direito de usar as duasmãos e o que conseguisse inventar com elas.Ameta:regressarsãoesalvo.Passavaasfériasnesses“passeiosaoinferno”,esemprevoltavacertodequealutapelavidatornava-omaisforteeconfiante.
Opóácidodasaspirinasqueimava-lhealíngua.—Toque,maldito... toque...—disse,olhosno telefone,àesperadasnotíciasque lhepermitiriam
deixaraquelatocadebicho.UmcoroneldaDEROqueodiavagabinetes.AbasedeFalkirk,ondeestavaservindo,nãoeraem
Shenkfielf, e sim Grand Junc-tion, Colorado. Lá ele passava pouco tempo no escritório, preferindosempreaintensaatividadefísicadostreinamentostáticos.EmShenkfield,semjanelasesemar,sentia-seenterradovivonumcaixãodemuitassalaseintermináveiscorredores.
SetivessequalqueroutramissãoacumpriremNevada,escolheríaosalojamentosdeThunderHill,que, embora igualmente subterrâneos, eram mais claros e espaçosos... Nada de catacumbas escuras,asfixiantes,zumbindosemparar.
De qualquer modo, era impossível pensar em Thunder Hill. Tinha pelo menos duas razões paramanter os homens longe de lá: em primeiro lugar, claro, por causa do segredo. Se os fazendeirosencontrassem soldadosdaDEROna regiãodasmontanhas, ficariamcuriosos; eraprecisomantê-los adistância,custasseoquecustasse.Noverãoretrasado,elepróprioescolheraShenkfieldcomobasedeoperaçõesparanãoatrair atenção sobreThunderHill.Naquelemomento, comasnovas complicaçõesquesurgiram,era
aindamaisimportantepermanecerali,paraconfirmaroquedeclararaàimprensa.Emsegundolugar,tinhadeficaremShenkfieldporquenaoconfiavanopessoaldeThunderHill...emninguém,Viverláeraviver cercado de inimigos. E se todos em Thunder Hill estivessem contaminados? Se já nao fossemosmesmos?
As aspirinas perdiam o gosto, rolando na língua. Já não sentia náuseas, já nao precisava engolirgolfadasdesucogástricoquelhesubiamáboca.Erahoradetomarumgoledeágua.Quatrogoles,atéesvaziarocopo.
Leland Falkirk perguntou-se de repente se ultrapassara o limite entre dor e prazer, entre o usoconstrutivodadoreoprazerde‘sofrer.Perguntou-see,aomesmotempo,descobriuaresposta:sim,decerto modo, era masoquista. Um masoquista disciplinado e valente, que aprendia com a dor, quecontrolavaadorenãopermitiaqueoprazerodominasse...mas,semdúvida,ummasoquista.Deinício,obrigava-seasofrerparafortaleceravontade.Atéque,aospoucos,começouagostar...Adescobertaofezarregalarosolhos.
Pensou no futuro. Alguns anosmais, e seria um velho pervertido, obcecado, enfiando agulhas debambuporbaixodasunhaspelosimplesprazerdesentirosolhosarderemeocoraçãodisparar.Umaimagemgrotesca,sombria...eengraçada.Lelandriu.
Noanoanterior, aindanãoera capazde rir de simesmo.Ultimamente, porém,vinhadescobrindonovoseestranhostraçosdesuapersonalidadeedivertia-semuito.Sabia,porexemplo,quepodiaedeviamudarumpouco,tornar-semelhor,sermaisfeliz,semperderadurezaeainvulnerabilidadequetantolhecustaraalcançar.Eranovidade,estranhanovidadenumhomemcomoele,masnãochegavaasurpreendê-lo. Depois do que vira no verão retrasado, depois de tudo que lhe acontecera e considerando o queaindaocorriaemThunderHill,eradifícilimaginarqueavidacontinuariaamesma.
O telefone tocou. Falkirk atendeu, rápido, certo de que chegavam notícias sobre a situação emChicago.Masnão.EraCory
Henderson, de Monterey, Califórnia, que informava sobre a operação na casa dos Salcoe. Semnovidades.
Noverãoretrasado,GeraldSalcoehospedara-secomaesposaeduasfilhasnoMotelTranqüilidade,naquelanoite.Segundofontesegura,umadessasquatropessoasdavasinaisdeestarvencendoobloqueiodememória.
OsespecialistasdaCIA,quasesempreusadosemoperaçõesnoexterior,foramconvocadosparaomotel porque garantiam que os bloqueios eram seguros, à prova de falha; mas, nos últimos tempos,andavam perdendo o sono com os freqüentes relatórios sobre casos de pessoas que começavam alembrar-se. Tentavam explicar-se dizendo que a experiência vivida por aquelas pessoas era profundademaisparaser facilmente removidadamemória.Prometiam,porém,quecomoutrasessão,commaistrêsdiasdetratamento,conseguiriamosilêncioeterno.
Naqueleexatomomento,homensdaCIAedoFBI,emoperaçãoconjunta,mantinhamosSalcoeemcárcere privado, fazendo-os passar por um segundo programa de lavagem cerebral. Apesar de CoryHendersonjurarquetudoestavacorrendoconformeoprevisto,Lelandnãotinhamaisdúvidasdequeeratempo perdido.O segredo acabaria vazando. Era grande demais para permanecer enterrado por tantotempo.
Oproblemaeraquehaviagentedemaisenvolvidanaoperação:FBI,CIA,umacompanhiainteiradaDERO,opessoaldesegundoescalão.Muitocacique...epoucoíndio.
Leland, contudo, era bom soldado. Cabia-lhe o comando militar da operação, e ele cumpriria amissãoexatamentecomoseesperavaquefizesse.Aindaquelhecustasseavida.
DeMonterey,Hendersonperguntava:—Eopessoaldomotel?Quandoéquevocêvaiagir?As“testemunhas”.Assimeleschamavamoshomensemulheresquehaviampassadopela lavagem
cerebral em julho,noverão retrasado.Lelandgostavado termo.Alémdeóbvioecorreto, sugeriaumhalomístico, quase religioso.Lembrava-se de cultos religiosos que vira quando criança: os fanáticosrolavampelochão,
aosgritos,enquantoolíderesbravejava:“Vejam!Sejamtestemunhasdomilagre...SejamtestemunhasdoSenhor!”Ora...as“testemunhas”doMotelTranqüilidadehaviamvistoalgoespantoso,aterrorizante,inacreditável—muitomaisinacreditáveldoqueavisãodaquelelíderenlouquecidodealgunsfanáticos.
— Estamos a postos— Leland informou Henderson.— Podemos entrar em ação a qualquermomento.MasnãovouagirantesdeternotíciasdeChicago.FalodeCalvinSharkle.
—Queconfusão!Comopôdeacontecer?Bastavatê-lorecolhidoparaumsegundoprograma,comofizemoscomosSalcoe,aquinaCalifórnia!
— A confusão não é problema meu — replicou o coronel. — Cabe a vocês vigiar as“testemunhas”.Meudeveréagir.
— Não estou querendo culpá-lo, nem a seus homens— emendouHenderson, com um suspirodesanimado. — Mas a culpa também não é nossa. E gente demais para vigiar! Só para seguirastestemunhasquatrodiaspormêseouvirametadedasfitasgravadasnostelefonesdecadauma,pormês, e ouvir ametade das fitas gravadas nos telefones de cada uma, precisaríamos de vinte e cincoagentes em tempo integral. Temos vinte!E há também a questão da segurança.Apenas três de nossosagentesmaisgraduadospodemsaberporquedevemvigiaressepessoal.Eninguémgostadetrabalharnoescuro... Os rapazes ficam inseguros, acham que não confiamos neles e perdem o interesse. AtéqueaconteceoqueaconteceucomSharkle...obloqueiocomeçouaceder,enósnempercebemos!Mascomofomoscairnessa?!Comoacreditamosqueseriapossívelmanterobloqueioportempoindefinido?Sabequal foi nosso erro?Eu lhedigo... nãodeveriamos ter confiadonaqueles filhosdaputadaCIA.Lavagemcerebral...Besteira!
—Minhaopiniãofoisempreessa.Asoluçãoseriatãosimples!—Lelandrespiroufundo.
—Matá-los?Atodos?!Matartrintaeumcidadãosinocentessóporquetiveramoazardeestarnolugarerradonahoraerrada?
— Não cheguei a pensar seriamente emmatá-los.Queria dizer é que esse seria o únicomodoeficientederesolveroproblema.
OsilênciodeHendersonfoieloqüente.Comotodos,eletambémnãoacreditavanasexplicaçõesdeFalkirk.
—Vocêsvãoagirhojeànoite?—perguntou.— Talvez. Se recebermos notícias deChicago... se soubermos o que estão fazendo nomotel...
Aindaháalgumasquestõesparaseremesclarecidas.Osfenômenosparanormais,porexemplo.0quesão?Nósdoistemosalgumasidéias,nãoé?Precisamossercautelosos.Não,não...Nãovouagir,nemarriscara vida demeus homens antes de saber o que está realmente acontecendo comaquelas testemunhas—Lelandconcluiu,desligandootelefone.
Thunder Hill. A vida seria mais fácil, se pudesse acreditar que o segredo naquela montanharepresentava o futuro feliz que a humanidade esperava!Mas não...Nãopodia ser!No fundoda alma,algumacoisalhediziaquenãohaveriafuturoseosegredofossedivulgado.Arevelaçãoequivaliaaofimdomundo.
Quando Jack apareceu na improvisada sala de jantar, alguns levantaram-se para saltar sobre ele,outros apenas arregalaram os olhos, e Ernie quase virou amesa ao voltar-se num gesto brusco. Jackdeixara a submetralhadora na recepção para evitar que se assustassem demais. Mas a surpresa dachegada era necessária para fazê-los entender, de uma vez por todas, o risco que corriam. Mareie,desenhandoluasnoprato,foiaúnicaquenãoreagiu.
—Tudobem...Calma...Sentem-seeacalmem-se—disseJack,fitandoosrostosatônitos.—Souumdevocês.NaquelanoiteestivehospedadoaquisobonomedeThorntonWainwright.Eumnomefalso,porissovocêsnãomelocalizaram.Sobreisso,falaremosmaistarde.Agora...
Estouraram perguntas de todos os lados, os nove falando ao mesmo tempo. Jack ouviu apenaspedaçosdefrases—“nosmatademedo”,“comofoiqueabriu”...—atéquebateupalmasfortementeeelevouavoz:
—Nãopodemosfalaraqui—disse.—Estasalanãoésegura.Hámaisdeumahoraestouláfora,ouvindotudoquevocêsdiziam.Eseeupudeouvir,opessoalque
estáatrásdenóstambémpode.Nove pares de olhos arregalaram-se ao redor da mesa. Por fim Ernie franziu as sobrancelhas,
desconfiado:—Vocêestáquerendodizerqueháescutaporaqui?Escutaclandestina?Nãoacredito.Eumesmo
revisteitodooapartamentoenãoencontreinada.Tenhocertaexperiêncianoassunto...—VocêdeveserErnie—Jackvirou-separaele,avozfriaeduracomolâminaafiada,sabendo
queeraprecisomantê-losdeguardaaltaparaqueentendessemqueninguémestavabrincando.‘Tinhapouco tempo... suficienteparaumaúnica lição.—Estavafalandosobresuaexperiênciana
Marinha.Masnãodisseháquantotempoestáaposentado.Apostoquefazquasedezanos.Deláparacáascoisasmudarammuito.Nãoouviufalaremrevoluçãotecnológica?Merda!Aindapensaqueelestêmde entrar aqui para instalar microfones no pé do abajur?! Eu trouxe um amplificador de vozes, ummicrofoneespecial,eouvitudo.Comesteououtrorecursomaismoderno,elestambémpodemouvir;sóprecisamligarumpequenoamplificadoraotelefoneediscaronúmerodevocês.Nãoéimpossível...aocontrário, é facílimo!—Atravessou a sala, passouporErnie e aproximou-sedo telefone, ao ladodosofá.—Sabemcomoessaescutafunciona?Quandoelesligamseunúmero,umpequenoaparelho...umosciloscópioeletrônico,parasermaisexato...desligaacampainhadeseuaparelhoe,aomesmotempo,
acionaomicrofonequeestádentrodestapeça.—Apontouobocal.—Vocêsnãoouvemnada,otelefoneparecedesligado,comoagora,eeleslá,ouvindooquevocêsdizememqualquercômododacasaondehaja extensão telefônica. — Sorriu, irônico, indicando o aparelho sobre a mesinha. — Aí está seumicrofoneescondido!Vocêsmesmosocolocaramaíepagamascontasrigorosamenteemdia,paraqueelenãosejacortado.Nãohádúvidadequeelessabemtudoqueestáacontecendoporaqui.Devemterouvidoalongareuniãodehoje.Se
vocêsqueremmorrer,metamumabalanosmiolos.Vãoeconomizartempoemuniçãodoinimigo.Erápido*indolor...
Deucerto.Aironiaafastouqualquerdúvidaqueaindativessem.Jackolhouemtornoeperguntou.Háalgumasalasemjanelas,grandeobastanteparamontarmosnossoconselhodeguerra?Sehouver
telefone,bastadesligá-lodaparede.Fayefezquesimcomacabeça.Jacklembrava-sevagamentedela:aloiramadura,atraenteegentil
queofizerapreencherumafichanarecepçãodomotelnoverãoretrasado.Comcerteza,mulherdeErnie.—Orestaurante.Aoladodomotel—disseela.—Umrestaurante...semjanelas?—Jackestranhou.— As vidraças se quebraram — explicou Ernie. — Vedamos as janelas com folhas de
compensado.— Entãovamospara lá,discutir aestratégiaqueseguiremosdehojeemdiante.Equando tudo
estiver resolvido venho comer um pedaço desse peru de que vocês falaram tanto.Meu jantar foi umdesastre!
Jackvirou-seedesceu,semesperarresposta,sabendoquetodososeguiriam.Durante cincominutos, usando os recursos de seu palavreado de beira de cais, Ernie esbravejou
contraaquele“vesgofilhodaputa”,masaospoucos,semaomenosperceber,baixouavozeacrista.Vesgo, sim, e talvez até filho de alguma puta, porém sem dúvida um homem para se respeitar.
Diferentedetodososoutrosdogrupo.Tambémfora“chamado”,comoosdemais.Noentanto,chegoudesurpresa, atravessou duas portas trancadas... trazendo uma submetralhadora carregada! Mas antes desentiradmiração,Ernietremiadefúria,vendoofalsoThorntonWainwrightpenduraraarmanoombroeandar firme em direção à porta. A pergunta de Jack ainda ecoava-lhe nos ouvidos: “Você não ouviufalaremrevoluçãotecnológica?”Desgraçado!Ernieestavatãofurioso
queseesqueceudeapanharocasaco,comoosoutros;seguiuohomem,pisounocimentodaentradaeapressouopassoparaaproximar-sedele.Precisavalhedizerduasoutrêscoisinhasparacolocá-loemseudevidolugar!
—Oqueéquevocêestápensando?Podiaterfaladodamerdadomicrofonesemsertãogrosseiro!—Talvez...—Jacksorriucomocantodoslábios.—Maslevariamuitotempo.Nãovaliaapena.Ernieabriuabocaparareplicare...deu-secontadequeestavafora...ameiocaminhoentreomotele
o restaurante., vulnerável, exposto à escuridão. Os pulmões fecharam-se de repente, grudados comobalõesvazios.Nãoconseguiarespirar.Gemeubaixinho,desesperado,mortodemedoedevergonha.
Para sua surpresa, o recém-chegado amparou-o antes de perguntar o que estava acontecendo.Umabraçofortesegurou-o.Umbraçosolidário.
—Estamoschegando.Apóie-seemmim.Alémde humilhá-lo com a conversa de revolução tecnológica, se fazia de bom samaritano!Mais
furiosoainda,Ernieafastou-se,empurrandoparalongeobraçoqueoamparava.—Ouvitudo—revelouJack,semperderacalma.—Vocêsfalaramdeseusproblemasdemedo
deescuro.Nãoestoucompenadevocê,masnãovejonadaengraçadonumhomemassustado.Afobiadeveteralgoavercomoquenosaconteceu...nãoéculpasua.Todosnósprecisamosunsdosoutrospara
sairdessa.Apóie-seemmim,evamosatéorestaurante.Lá,comluzesacesas,discutiremosoassunto,estábem?
Quando o homem começou a falar, Erniemal conseguia aspirar. Quando acabou, o problema erainverso:seuspulmõesinchavam-sedear,elenãoconseguiaexpirar.Comoquearrastadoporumaforçaincontrolável,virou-separaadireçãosudesteemergulhouosolhosnaescuridãoimensa.Ederepente,comoseumapequenaluzcomeçasseabrilhar,percebeuquenãotinhamedodanoite...Oqueoenchiademedonãoeraanoite,nemaescuridão,masalembrançadealgumacoisaqueviraaliadiante
naquelamalditanoitede6dejulho,noverãoretrasado.Nãoconseguiatirarosolhosdaqueleponto,olugarespecialondeestiveramnavéspera,àprocuradepistas.Oestranholugaraoqualtodospareciamircomoquearrastados.
Fayeaproximara-seeErnieencolheu-seaseulado,aceitandoaajudaquelheoferecia.QuandoJacknovamentetentouampará-lo,eleoutravezoempurrou.
— Faça como quiser, marinheiro idiota — esbravejou o falso Thornton. — Você ainda nãoaprendeuapedirsocorro.Vaiaprender,maisdiamenosdia,porquetodosacabamaprendendo.Sequiser,fiqueaí,morrendodemedo...Vocêsósaiuporqueestavacomraiva,nãoporquetemcoragem.Poisquefiqueaí,comseumedo,efoda-se!Ousejamachoeandeatéorestaurante!
Ernieengoliuemseco.Ovesgooprovocava...queriaenfurecê-loatéquearaivavencesseomedoeofizesseandar.Dehomemparahomem...comonostemposdaMarinha!Eracomoselhedissesse:“Meodeie.Meodeie até criar coragem.Meodeie atévenceromedo.Guie-sepormimepeloódio.Evádevagar, um passo atrás do outro...” Estavamudando de tática.Nada de solidariedade fácil, nada deombroamigo.Agoraascoisaspareciammaissimples,eseErnienãoestivesseaindamuitopróximodopânico,ririadaqueleatrevido.Jackestavacerto:guiar-sepelaraivaeramaiseficazemenoshumilhante.Erniefechouosolhos,deixouaraivacresceratécegá-loeseguiuooutroemdireçãoaorestaurante.
—Estágeladoaqui!—Fayecorreuparaligaroaquecedor.Erniejogou-senumacadeira,pernasabertas,osbraçoscaídosaolongodocorpo,bufandocomoumtouro,ecomeçouaacalmar-se.ViuJackcaminharpelasala,
verificandoospainéisdecompensadoquecobriamasjanelas.Parasuasurpresa,descobriuquejánãoodiavaaquele“vesgofilhodaputa”,nemqueriaparti-loaomeio...apenasnãogostavadele.
Ohomemexaminouotelefonepúblicoinstaladojuntoàporta.Acionadoamoedas,eraimpossíveldesligá-lodaparede.Semdizerpalavra,levantouofone,e,comumsafanão,rebentouofio.
—Háoutrotelefoneatrásdobalcão—disseNed.—Desligue.Ned obedeceu em silêncio. Com a mesma segurança de quem está habituado a dar ordens e ser
obedecido,JackmandouBren-daneGingerarrumaremascadeirasaoredordeumadasmesasmaiores.Cadavezmaisinteressado,Ernieobservava-odelonge.Agoraovesgoexaminavaaportadafrente,
cujovidro,maisresistente,nãosequebraraduranteo“terremoto”danoitedesábado.Nãoforarecobertadecompensadoe,assim,constituíaoúnicopontotransparenteevulnerávelemtodoorestaurante.Semsevirar, Jackperguntousesobraraalgumcompensado.Domrespondeu-lhequesim.Sempredecostas,ooutrodisse-lhequeencarregasse“umdoshomens”debuscarumafolha,suficientepararevestiraporta.Dom fez sinal aBrendan, que pouco depois reaparecia comuma placa ligeiramentemais larga que aporta.Ovesgoencarregou-sedecolocá-lanolugar.
— Nãoestáperfeito,masserve—comentou.—Precisamossódeumanteparoquebloqueieasaídadosom.Ondevocêpegouocompensado?
—Nodepósito,atrásdorestaurante.—Brendanrespondeu.— Queroveressedepósito—decidiuJack,caminhandoparaos fundosdasala.Depassagem,
mandouSandyligaroaparelhodesom,escolheralgunsdiscosedeixarovolumealto.—Quantomaisbarulho,melhor—explicou,afastando-se.MasSandyjáobedecia,mesmoantesdaexplicação.
FoientãoqueErnieentendeuporqueovesgoofascinava.Porqueeraumsoldado!Dosmelhoresquejávira:rápidonasdecisões,precisoeclaronasordens,exatonosmovimentos.Não,nãoeraumsoldado,mas um oficial habituado a comandar. Um oficial de corporação de elite... Um “homem de ouro” doExército!Danadodebom!
—Merda...—murmurou,rindoparasimesmo.—Eleéigualzinhoamim,nosbonstempos...Oqueexplicavaporqueofizeraandaratéorestaurante.Porque,olhonoolho,ovesgotambémperceberaaverdade:eramambosdamesmaraça!—Souumabesta...—Ernieriuoutravez.—Umagrandebesta!QuandoJackvoltoudainspeçãoaodepósito,todosestavamacomodadosàvoltadamesaqueGinger
eBrendanhaviampreparado.Ele sorriu, rápido,maiscomosolhosquecomos lábios, eperguntouaErnie:
—Tudobem?—Claro,companheiro...—Erniebalançouacabeça.—Emuitoobrigado!Semresponder,ohomemaproximou-sedacabeceiradamesa,ondehaviaumacadeiraàsuaespera
e,aosomdeElvisPresley,começou:—MeunomeéJackTwistenãoseinadasobreoqueestáacontecendoconosco,alémdoqueouvi
hoje,sentadoláfora.Achoquealguémnosmeteunumaterrívelenrascada,masébomquevocêssaibamdesdejáqueessaéaprimeiravez,emoitoanos,quetenhoacertezadeestarentrandodoladocertodabriga.Estoucomos“mocinhos”pelaprimeiravez,emoitoanos...MeuDeus!Nãopodemimaginarcomoeuprecisavamudardelado!
OtenenteTomHorner,ordenançadocoronelFalkirk,tinhamãosimensas.Opequenogravadorquasedesaparecianasuapalmadireita,quandoeleentrounoescritóriosemjanelas.Comdedostãolargos,eradifícilimaginá-loligandoogravadorsemoauxíliodeumlápis.Maserahábilcomopoucos.Oaparelhoapareceuderepente,comosaídodamanga,foipostosobreamesaeligadosemproblemas.
Afitaforacopiadadomonitorque,faziameiahora,registravaasconversasdastestemunhasreunidasnomotel.Primeiro, adescobertadequeShenkfielderaapenasumacortinade fumaça.ThunderHill...Leland balançou a cabeça ao ouvir a referência ao depósito das montanhas. Nunca imaginou quedescobrissem.Muitoespertos...oqueostornavaaindamaisperigosos.
Afitarodava:“Nãopodemosfalaraqui.Estasalanãoésegura”.—ÉTwist—disseotenenteHorner,controlandoavozforteegravecomamesmahabilidadecom
que controlava as mãos. Desligou o gravador.— Sabíamos que ele estava a caminho. É um homemperigoso...Era previsível que fossemais cuidadoso que os outros, claro...mas chegou armado até osdentes!Parecequeveioparaumcombate!
Tantoquantosabiam,obloqueiodememóriadeJackTwistnãoapresentavasinaisdedeterioração.Elenão tinhapesadelos,nemcrisesdefugaou inconsciência,nemsonambulismo,nemfobia.Portanto,haviasóumaexplicaçãoparasuarepentinaapariçãoemElkoabordodeumjatinhofretado:o traidorqueenviaraasfotosparaoendereçodeCorvaisiseparaacasadosBlock.
LelandFalkirkestremeciadefuriaaolembrarquehaviaumtraidorenvolvidonaoperação.Umdeseushomens,talvezalguémemThunderHill.Aprimeiranotíciadesuasatividadessólhechegaracomasfitasda reuniãoentreDominickCorvaisis eosBlock,nanoitedo sábadoanterior.Pelaprimeiravez,ouvira falar das fotos enviadas, sem remetente, pelo correio. No segundo seguinte, iniciaram-se asinvestigações sobre todos os encarregados de Thunder Hill, mas ainda não possuíam resultadospalpáveis.
—Opiorestáporvir—comentouHorner,fazendoumacareta,enovamenteligouogravador.LelandouviuaaulaqueTwistdeuàstestemunhassobreescutaeletrônica;derepente,fez-sesilêncio.
Otenentedesligouoaparelho.—Estãoreunidosnorestaurante—disse.—Desligaramostelefones.Mantivecontatoporrádio
com os agentes do posto de observação junto à rodovia. Informaram que todos saíram do motel eentraramnorestaurante,mas,pelomenosatéagora,nossoshomensnãoconseguiramouvirpalavradoquedizem.Nossosamplificadoresestãocominterferência.
— Podemdesligarosamplificadores—resmungouLeland,esmurrandoamesa.—Twistéumprofissional.
—EelesjásabemsobreThunderHill.Precisamosagir.—EstouesperandonotíciasdeChicago.—Sharkleaindaestálá?Continuaentrincheiradoemcasa?—Sim,peloquedizemasúltimasnotícias.Temosdechegaratéeleparadescobrirseéverdade
queselembroudetudo.Seissoseconfirmar,seelecontouaalguémoqueviuaquinoverãoretrasado,seráumerroinvadiromotelparaprenderas“testemunhas”.Teremosdepensaremoutroplano.
MareiedormianocolodamãequandoJackTwistseapresentou.Jorjatambémestavaexausta,masapresençadaquelehomemfazia-aesquecerocansaçoeosono,eelaesperava,osolhosmuitoabertos.
Primeiro, Jack falou-lhes da prisão naAméricaCentral e do fim de sua carreiramilitar. Pareciacontarahistóriadistanteeimpessoaldeoutrohomem,doqual,entretanto,conheciabemasegurança,aslimitações e a força.Não se preocupava emganhar a solidariedade fácil dos ouvintes, nem temia serjulgado.
Contudo, ao falar de Jenny, a voz e o rosto alteraram-se, Jorja viu-o frágil e vulnerável comoqualquerhomeminfeliz,saudosoesó;umriodedoredeamor,correndosempre,malcontidoportrásdosolhosfrioseduros.Jennyeaquelehomemforamfelizeseamaram-semuito;houvenecessidadedemuitoamorparamantê-losunidos,apesardoslongosanosdecoma.Jorjatentouimaginaroquepoderiaserumcasamento como o deles... um casamento raro, especial.Mas o homem sentado à cabeceira damesa,contandoahistóriadesuaprópriavida,começavaaparecer-lheaindamaisraroemuitoespecial.Jorjaouvia-ocomcrescenteinteresse.
Jacknãofoimuitoprecisoquandosereferiuasuaprofissão.NemexplicoudireitoaprocedênciadodinheirocomquepagaraaclínicaondeJennyestiverainternada.Disseapenas,commuitafranqueza,queseutrabalhonãoeralegal,quejánãoseorgulhavadeleesentia-sefeliz,afinal,porestardevoltaàturmados“mocinhos”.
— Nuncamateininguém—informou—,excetoemcombate.GraçasaDeus!Ebomvocêsnãoconheceremmuitosdetalhes,porquepoderiamterproblemasnofuturo.
Osacontecimentosdejulho,noverãoretrasado,afetaram-lheavida,mas,comonocasodeSandy,mudaram-noparamelhor.— Pelo que entendi, você acaba de confessar, indiretamente, que ganhava a vida como ladrão
profissional—disseErnie;esperouqueJackrespondessee,comoestepermaneceucalado,continuou:— Estoupensando...Comcerteza, você falou sobre isso comopessoal quenos fez a lavagem
cerebral. Você nos contou sobre os cofres dos bancos onde guardava o dinheiro que provavelmenteroubava...dissequecadaumforaalugadosobidentidadefalsa...Eclaro,entãoque,pelomenosdesdejulhodoanoretrasado,oExércitoconheceanaturezadeseutrabalho.
jackouviaemsilêncio,semconfirmarnemdesmentir.Eosilêncioeramaisclaroqueumaconfissãocompleta.
— Ainda assim— Ernie prosseguiu—, eles apagaram de sua memória a lembrança do que
aconteceu aqui e o mandaram para casa... Por que diabos agiram assim? Bastaria um telefonemaanônimoparaapolíciadeNovaYork,porexemplo,evocêestariapreso.
— Talvez — sugeriu Jorja — não estivessem muito seguros quanto à eficácia do bloqueio.Deixaram-nos ir para ficar de olho em nós... e esperar. Caso fosse necessário, nos seqüestrariam emqualquer esquina para nos submeter a outras sessões de lavagem cerebral. Como poderiam seguir ouseqüestrarJackseeleestivessenaprisão?
—Perfeito—concordouJack,sorrindo-lhe.Acertounamosca.Jorjabaixouosolhos,fingiuqueacariciavaoscabelosdeMareieeescondeuoprazerquelhedavao
primeirosorrisodeJackTwist.Umsorrisoclaro,caloroso,franco.— Eles têmumsegredo—Jackcontinuou—,umsegredo tão importantequeosobrigouame
deixarlivre.— Ou não — observou Ginger. — Eles teriam condições de programar você para que se
regenerasse.—Condições,talvez.Tempo,não.— Com toda aquela gente precisando de tratamento rápido, claro que não tinham tempo para
pensarnasalvaçãodeminhaalma.Não...Comeceiameregenerarquandovolteiamesentirculpadopeloquefazia,porviveràmargemdalei.Achoqueessamu-
dançaaconteceu,dealgummodo,motivadapelaexperiênciaquetivemosaqui.Vimosalgumacoisaqueaindanãosabemosidentificar,masquefoimuitoimportante,muitoprofunda.Algoquemeobrigouareavaliarminhavidapassada.Algoquemeobrigouaverque,porterrívelquetenhasidoadordeperderJenny,nada,nemmesmoador,justificariaavidasemesperançaqueeulevava.
—Eisso!—Sandysorriu.—Eomesmoqueaconteceucomigo!Nadamaistinhaimportância...nemminhainfânciamiserável...depoisdoqueaconteceunaqueleverão.
Todosseentreolharam,calados.QueexperiênciaseriatãoprofundaapontodeconverterumhomemcomoJack,oudefazerreviveraalmadespedaçadadapobreSandy?Mistério.
Jack separou mais alguns discos e ligou outra vez o aparelho. Depois, fez muitas perguntas,começandoamontarumquadrocompletodasdescobertasoulembrançascomasquaispodiamoperaratéaquelemomento.
Cadavezmais,Jorjaadmiravasuacapacidadedeliderança.Quandoeleosescalouparaasváriastarefasqueocupariamosdiasseguintes,ninguémàvoltadamesacontestousuasdecisões.Eninguém,tampouco,pareciasentir-semanipulado.Não.Todosreconheciamneleolíderqueesperavam.
ParaJorja,Jackeraoutrotipodeexemplo,maisoumenoscomoGinger.Aseumodo,eraumpoucoohomemqueelagostariadeser.Oudeter.UmhomemcomoAlannuncapoderiatersido.
Porfim,chegaramaoproblemamais imediato:apossibilidadedeumataquedaDERO.Amedidaque se evidenciavam os sinais de que os bloqueios mentais começavam a ceder, crescia o risco deFalkirk ordenar o assalto aomotel. E o risco evidentemente seriamaior se continuassem reunidos.Apartir damanhã seguintemanteriam-se divididos em grupos, como Jack sugeriu.Quanto àquela noite,concordaram emque amaioria iria dormir, enquanto dois ou três seguiriamparaElko, de carro, sempararemnenhumlocalemespecial,atentosaqualquermovimentosus-
peito.Àsquatrodamanha,osdoisoutrêsseriamsubstituídosevoltariamaomotelparadescansar.—Prefirosairnoprimeirogrupo—disseJack.—Masprecisoandaratéolugarondedeixeio
jipe.Quemvaicomigo?— Eu—ofereceu-se Jorja,mas, lembrando-se da filha, emendou:—Querodizer... se alguém
tomarcontadeMareieatéamanhã.—Claro!Fayelevantou-se.—Eladormeconosco.
Brendanprontificou-setambémasaircomoprimeirogrupo.Jorjasorriu.Eracedo,ainda,parasentir-setãofrustradapornãoterJacksóparasi...C©motodostinhamtarefasprevistasparaamanhãseguinte,osegundogrupoincluiuapenasNede
Sandy.Osqueiamsaircombinaramencontrar-seàsquatrohorasemfrenteaosupermercado.—Sevocêschegaremantes—recomendouJack—,peloamordeDeusnãocompremhamwich.E
veneno.Agora,vamosnosmexer.—Sóuminstante,porfavor—pediuGinger,osbraçoscruzadossobreamesa.—Estouremoendo
umaidéiadesdehojeàtarde,quandoBrendanchegou,easmarcasavermelhadasapareceramnasmãosdeleenasdeDom...eouvimosaqueleruídoestranho...ealuz...Estoutentandoentenderoqueaconteceu.Achoquedescobri,pelomenos,partedaexplicação.
—Poisfale...—Jackacomodou-senacadeira.—Háumelementocomumemtodososnossossonhos—elacomeçou.—Pormaisdiferenteque
sejam,têmalgoavercomaLua.Tudobem.Osoutrosdetalhesquevemosemsonhos...osquartos,ascamas,osaparelhosmédicos,asagulhasintravenosas...nãosão,naverdade,irreais...Pertencemafatosqueefetivamentevivemos.Sãolembrançasquerendoviràtona.Apartirdaí,podemosconcluirqueaLuatambéméparteimportantedoquehouveconosco.Outralembrança,comoasluvasquemeassustavam.Atéaqui,tudoentendido?
—Perfeito—Domrespondeuportodos.—AsluasdeMareieforamseavermelhando.Jacknoscontouquetambémsonhoucomumalua
vermelha.Ninguémmais, até omomento, pelomenos, sonhou com luas vermelhas, porémo fato de amesmaimagemaparecernossonhosdeduaspessoaséprovadequeaLuavermelhafazpartedealgumacoisaquerealmenteaconteceu.Parasimplificar...achoquenaquelasexta-feira,diaseisdejulho,vimosalguma coisa que fez a Lua parecer vermelha. A luz que Brendan viu em seu quarto, e que todosvimosaquinomotelquandoelechegou,écomo...umarepetiçãodomesmofenômeno.Umaimagemquesurgeparanosajudaralembrar.
—Tudobem...—Jackcoçouacabeça.—Mas...supondoquealguémestejainteressadoemnosajudaralembrar...comofariaessasimagenssurgiremporaí,noar?Queluzéessa?Deondevem?
—Tambémtenhorespostaparaisso,masvamosporpartes.Paracomeçar,precisamosdescobriroqueaconteceuparaaLuaficarvermelha.
Ninguémtiravaosolhosdela.Assustadacomoqueiadizendo,Gingeragitou-senacadeira,ergueu-se,começouaandarpelorestaurante.
Ela acreditava na ciência. Acreditava que o universo era regido por leis lógicas e claras, nãohavendo mistério que resistisse ao assalto da inteligência humana. Mas, ao contrário da maioriadoscientistasedagrandemaioriadosmédicos,nãoviaporquedeixardeladoosfantásticospoderesdaimaginação,semprequefossemnecessáriosparaestimulara inteligênciaoualógica.Semisso, jamaisteriamontadoafábulaque,naqueleinstante,expunhaaoscompanheiros.
Umahipóteseestranha,queelanãoimaginavacomoseriarecebida.Porisso,andavadeumladoparaoutro,cruzandoedes-cruzandoosdedos.
—Os homens que tomaram conta de nós nos dois primeiros dias usavam trajes “vedados”, umaespéciedeproteçãodesenhadaespecificamentecontraoriscodecontaminaçãoporagentebio-
lógico.Comcerteza, pensavamque estivéssemos contaminadospor algum tipodebactéria.Nessecaso,poderiamostersidoexpostosaumanuvemdeagentetóxico.Umanuvemavermelhada...quetivesseencobertoaLua.
—Eteríamossidocontaminadosporumdesses...micróbios...—Jorjapensouemvozalta.
—Eissoexplicariaoqueaconteceuontem,juntoàrodovia.EumelembreideDom,naquelanoite,gritando que “está dentro de mim!” Faz sentido... se ele tivesse respirado uma nuvem de agentesbacteriológicos.AsmesmaspalavrasquelheocorreramemReno,quandoestavanomoteleviuatalluz.
—Eporquenãoestamosdoentes?—Brendanperguntou.— Porque fomos tratados com muita rapidez.— Dom ajudou Ginger.— Já discutimos essa
hipótese.Mas...a luzquevimoshojeeramuitobrilhante.Nãoparecia filtradaporumanuvemdegás,nemporagentesbacteriológicos...
—Eusei...—Gingercontinuavaacaminharpelorestaurante.— Preciso pensar mais e ver como se encaixam alguns pequenos detalhes, como os anéis
avermelhadosnasmãosdevocês,porexemplo.Masjáéumcomeço,umahipótesedetrabalhoquesópoderá ser descartada quando conseguirmos provar que não explica nada. Pelo menos minha teoriaexplicapartedosmistérios.
—Queparte?!—Nedarregalouosolhos.—OsmilagresqueBrendanfezemChicago;ospôsteresdacasadeLomackdançandoaoredorde
Dom; o terremoto que quebrou as vidraças do restaurante na noite de sábado, quando Dom tentavalembraroquehouvenoverãoretrasado.Etalvezexpliquealuzvermelhaquevimoshoje.
O último disco calou-se sem que ninguém percebesse. Que importância teria isso, se ali estavaGingerprometendoexplicar-lhesoinexplicável?
—Atéaqui,minhateoriaésimples—prosseguiuela.—Nãotemnadade...incríveloufantástico.Uma nuvem de agente tóxico. Nada de extraordinário. Mas, deste ponto em diante, vocês terão queembarcarnumaviagemdeimaginação.Atéagora,ten-
tamosacreditarquea luzquealgunshaviamvistoeque todosvimoshoje éum tipode fenômenosobrenatural. O padre Wyca-zik, amigo de Brendan, insiste em falar na “mão de Deus”. Mas nemBrendan,queépadre,parececonvencidodequehajaalgumacoisadesobrenaturalenvolvidanesses...mistérios.Minhaidéiaé...ora,ésimples!Talvezopoderquecrialuzeseruídos,fazvoaremfotosecuradoentes seja... mental! Alguma energia paranor-mal que Brendan e Dom possuem. Talvez a tenhamdesenvolvido...outalvezatenhamrecebido...porcausadoqueaconteceuaquinanoitedaLuavermelha.Tecnicamente,ahabilidadedemovercorpossólidoscomaforçadopensamentochama-setelecinese.Hápessoasquenascemcomessepoder...outrasodesenvolvemcomexercícios.Hácientistas, em todoomundo,pesquisandoe...
Osrostosvoltaram-separaDomeBrendan,unssorridentes,outrosmuitosérios.Maselesdois,osolhosarregalados,viraram-separaGinger.
—Mas...vocêenlouqueceu!—Domgritou.—Querlargaramedicinaeabrirumcircoparanosexibir?Eu?!Natelevisão?!
—Eeu?—Brendanperguntoubaixinho,semcoragemdesemexer.Séria,Gingerfezquenãocomacabeçaeprosseguiu:—Oqueestoudizendoéquevocêspodemterumaespéciedepodertelecinético.Inconsciente,é
claro.Nemvocêsmesmosoconhecem.Vejamososfatos.Você,Brendan,contouque,naprimeiravezqueosanéisapareceramemsuasmãos,vocêestavanohospital,penteandoocabelodeumameninadoente.Disse que estavamorto de pena damenina, indignado, revoltado contra o destino, frustrado por nãopoderajudá-la.Épossívelqueessafrustração,essaindignaçãotenhamdisparadoopoder...que,emseucaso,seriaumacertacapacidadedecurarferidas,regenerartecidos,estimularonascimentodecélulassadias.Masvocênãosabedenada.Nempoderiasaber!Omodocomodesenvolveuessepoderépartedo que foi apagado de sua memória. Os fatos são semelhantes à história do policial de quem vocêfalou...Horrorizadocomainjustiçadamortedeumhomembom,as-
sassinadonocumprimentododever,vocêconseguiuestancarahemorragiaesalvou-o.Semparardeandar,Gingerprosseguiu:—Evocê,Dom,nosdissequeandoupelacasadeLomack,cadavezmaisfrustradoporquenão
conseguiadescobrirnada,porqueomistériolhepareciacadavezmaisindecifrável,ederepentesentiuvontadedearrancarospôstersdaparede.Efoiexatamenteoqueaconteceu!Vocênãoosarrancoucomasmãos,mascomesse...poc/er.Elembra-sedequetudoparouquandovocêgritou“Parem!”?
Dom,Brendanealgunsoutros, àvoltadamesa,balançavamafirmativamentea cabeça,parecendoconvencidos.Sandy,porém,levantou-se,osolhosbrilhantes,edeclarou:
—Claroquefazsentido!Pensemnoqueaconteceuaquinorestaurante,nosábadopassado.Domtentavaselembrardoqueteriaacontecidonaquelasexta-feira.Eenquantotentava...acoisacomeçou.O“terremoto”,ossons...Semsaber,elereproduziuacenaquetentavalembrar.
—Estãovendo?—Gingerriu,feliz.—Bastacomeçarapensar,etudoseencaixa.—Mas...ealuz?Querdizerque...criamosaquelaluz?—Domfranziuassobrancelhas.—Nãoéimpossível.Chama-sepirocinese,oupiroginia,oufo-tocinese.Capacidadedeproduzir
luzoucalorcomopoderdasondascerebrais.—Luz?!— Sim, luz. Acho que, quando vocês dois se viram pela primeira vez, de certo modo
reconheceram-se.Umviuaauradooutro.Emalgumníveldoinconscienteprofundo,ambos“lembraram-se”doquehouve.Eumquisajudarooutro.Juntos,vocêscriaramaluzquetodosnósvimos.
— Espere!—Ernie ergueu amão, sério.—Vá comcalma. Sua teoria partiu da idéia de queteríamos sido contaminados por uma nuvem de bactérias, que encobriu a Lua e tornou-a vermelha.DaípulouparaessaidéiamalucadequeDomeBrendantêmpoderes
quearrancamcoisasdaparedeecuramdoentesefazemaparecerluzes...erebentamminhasjanelas.Oquealuzvermelhatemavercomisso?
Gingerfechouosolhos,respiroufundo.Aliestavaopontocrucialdateoria,apartemaisespantosaeinacreditável:
— Suponhamos que... o agente bacteriológico que nos contaminou tivesse um efeito colateral,capaz de provocar uma espécie de sintoma que ninguém havia detectado. Um sintoma que criou ospoderes de Dom e Brendan... O agente poderia, por exemplo, provocar forte alteração hormonal ougenética.Como poderia estimular a atividade de determinadas áreas corticais, cerebrais... sei lá!Umefeitocolateralquenãofoieliminadopelotratamentoaqueosdoisforamsubmetidos.
Avoltadamesa,silêncio.Unsolhavamparaoslados,outrosbaixavamacabeça,concentradosemdigeriroqueGingerdizia.Nãoocorriaaninguémqueelaestivesselouca.Não.Oqueosespantavaeraexatamenteocontrário:acoragemcomquesedeixaralevarpelarazão,partindodeumahipóteseinicial,perfeita-mentelógica,parachegaràconclusão,tambémlógica,emborainacreditável.
— Deusdocéu...—Domrespirou fundo.—Aindanãosei seentendoounãooquevocêestádizendo,mas...queidéiafantástica!Quehistóriamaravilhosa...paraumromance!Umvírus,criadopelaengenhariagenética,que,entreoutrosefeitos,aceleraaevoluçãodocérebrohumanoedáaoshomenspoderesespeciais!Eaprimeiravez,emmuitassemanas,quesintovontadedecorrerparaamáquinadeescrever.Aliás, ficacombinado... se sairmosvivosdestemotel,você recebeumaparceladosdireitosautoraisdolivroquevouescrever.
EmbalandoMareie,Jorjalevantouosolhoseperguntou:— Mas...porquenãopodeserverdade?Porque temosque transformara teoriaemroteirode
romance?Eseascoisastivessemacontecidobemassim...comoelacontou?— Posso pensar em, pelomenos, ummotivo— disse Jack Twist.— Por que apenas Dom e
Brendanconseguemcurargenteear-rançarpôsters...equebrarvidraças,setodosnósfomosexpostosaotalvírus?— Talvez não tenhamos todos sido contaminados, mas apenas eles. Ou talvez alguns de nós
sejamosresistentesaessetipodevírus—Gingerrespondeu.EFayecontinuou:—Outalvezesseefeitocolateraldovírusnãosemanifesteemtodososqueforamcontaminados.—Semdúvida.Epossível.—Gingervoltouaandarpelasala;aspossibilidadesdeexploraçãode
suaidéiaexcitavam-nademaisparapermitir-lhesentar-se.Neclpassouasmãospelocabelo,olhouemvolta,balançouacabeçaeperguntou:—SeráqueoExércitosabedesse...efeitocolateral?—Talvez—disseGinger.—Achoquenãosabemdenada—replicouErnie,cruzandoosbraços.—Peloquevocêsleram
noSentinela,a rodovia foibloqueadaantesde acontecero “acidente”,oqueprovaquenemacidentefoi...RestaahipótesedequeopróprioExércitotivessedeixadovazarumanuvemdegástóxico,comopropósitodeliberadodenoscontaminar.Issoéimpossível.Nãopossoacreditarquenosusassemcomocobaias de uma arma biológica tão... estranha.Mas, ainda que fosse possível, não seria lógico! Queinteresse teria oExército emcriar homens emulheres que nemmesmoelespoderiam controlar? Sim,amigos... E isso mesmo... se a teoria de Ginger está correta, esse vírus cria outra espécie dehumanidade...superioratudoqueconhecemos.Poderpsíquicogerapodermilitar,poderpolíticoepodereconômico.Assim,seoExércitosoubessequeessevíruscausariataltransformaçãonaspessoas,jamaiso testaria sem controle. O que quero dizer é que não escolheriam pessoas como nós, sem nada deexcepcional, que só estavam aqui por acaso. Nem pensar! Eles escolheriam a dedo! Meia dúzia degrandes empresários, ou o presidente da República, ou o diretor da CIA... qualquer grande figurão!ConcordocomDom...ateoriadenuvemdegásquecobreaLuadevermelhoenosdápoderparacurardoentesequebrarvidraçasémaravilhosaparaumromance,masnãoérazoável.Dequalquermodo,ogovernonãosabedessetalefeitocolateralquevocêsestãoinventando.
Dom e Brendan mexiam-se nas cadeiras, aflitos com os olhares de espanto, medo, admiração erespeito. Ginger, porém, sentiu que, ao menos para eles, o impossível começava a ganhar aresde possibilidade... a fantástica, maravilhosa, deslumbrante e assustadora possibilidade de algum diadescobrirqueeramúnicos.Sóosdois...frenteatodaahumanidade.
—Não!—Domlevantou-sedeumsaltoevoltouacairsobreacadeira,osjoelhosfrouxos.—Nãoenão! Issonãoépossível,não sou super-homem,não souextraterrestre,nem tenhopoderes...—Não!Sefosseassim...eusentiria.Eusentiría.!
— Jápenseinapossibilidadede tersidooveículodacuradeEmmy—disseBrendanemvozbaixaesuave.—Jápenseinapossibilidadedequealgumaforça...Deusouqualqueroutra...estivesseagindoatravésdemim,nocasodeEmmy,nocasodeTolk...Masnuncapenseiemsereumesmooagentedesses...milagres.Dequalquermodo,aindanãoentendo...atépoucotempoatrás,estávamosdescobrindoque a história do vazamento de gás tóxico era falsa, que não houve vazamento, que a história foiinventadaparaencobriraverdade.Eagora...
Jack,Jorja,FayeeNedfalaramaomesmotempo.Gingerpediusilêncio:— Calma, calma! E bobagem perdermos tempo discutindo se houve ou não houve vazamento,
porquenãopodemosprovarnada.Nãosabemossevazouumgás,seotalvírusexisteefoiliberadoporacidenteounão...Maspodemostestarasegundapartedeminhateoria.
—C...como?—Sandyarregalouosolhos.—PodemostestarospoderesdeDomeBrendan—propôsela,sorrindo.—Nãosabemoscomo
osconseguiram,maspodemosdescobrirseelesostêmounão.Sabia que era bobagem, pura perda de tempo. Porém, ao mesmo tempo, temia o que pudesse
acontecer.Esedessecerto?Oqueseriaavidadeumhomem,entrehomensdiferentes,oprimeiro,talvezoúltimo,desuaespécie?Quemolhariasemmedoparaalguémcapazdecriarluzes,arrancarfotos,Deussabe que mais? Como sentar-se com um amigo? Deitar-se com uma mulher? Como conviver com odeslumbramentodealgunse,certamente,comainvejademuitosoutros?!
Umdestino bem injusto o seu!Trinta e cinco anos de vida, escondido na toca de coelho, tímido,medroso. De repente, tudo mudou e, durante quinze meses, a vida pareceu entrar nos eixos... atécomeçaremas crisesde sonambulismo.Seo testedeGingerdesse certo, se conseguissemprovarquetinhapoderesquaseimpossíveisdedescreverouavaliar,voltariaàsolidãodeantes.Nãomaispormedooutimidez...masporquejánãohaverialugarparaelenomundodoshomenscomuns.
Oteste...DompediaaDeusquefosseumfracasso!EleeBrendansentaram-sefrenteafrente,umemcadacabeceiradamesa,JorjadeitaraMareienum
dosbancos,eameninacontinuavadormindo.Osseteadultosesperavam,sentadosaoredordamesa,masdistantes,deixandodoisoutrêsespaçosvagosjuntoaBrendaneDom.
AfrentedeDom,Gingercolocouumsaleiro.Otesteerasimples:bastavaqueeleconseguissemoverosaleirosemtocá-lo.
—Osaleironãoprecisadançar—explicouela.—Bastaque semovaumpoucoeminha teoriaestarácomprovada.
Naoutracabeceira,frenteaBrendan,colocouumvidrodemolhodepimenta.Domolhavaosaleirocom a mesma intensidade com que Brendan fitava o pequeno cilindro de vidro fosco. Por mais querepetissequenãoacreditavanainterferênciadivinaemnenhumdos“milagres”dequehaviaparticipado,era claro, para Dom, que o padre queria e esperava encontrar um sinal da mão de Deus. Queriareencontrar a fé perdida, queria voltar à sua paróquia.Mas, se aquela loucura queGinger arquitetaradessecerto,sefossepossívelprovarqueBrendancuravaosdoenteseera
capazdesalvarvidas...porobraegraçadeumabactéria...oqueaconteceriacomsuaféemDeus?!Osaleiro.Domfixouosolhoseconcentrou-seemnada.Nada,anãoserosaleiro.Atéparadescobrirquenão
eracapazdemovê-lo,sabiaqueprecisavatentar.Seopoderfossereal,nemGingernemninguémtinhaamenoridéiadecomocontrolá-lo.
—Mas—elaargumentou—,seopoderapareceemmomentosdemáximostress,éclaroquevocêmesmovaidescobrircomocontrolá-loquandoecomoquiser...Comoummúsico,porexemplo,quepodeusarseutalento.Comoumescritordiantedeumafolhadepapelembranco.
Ealiestavaosaleiro,imóvel.Domconcentrou-senoobjetoquevia:umcilindrodevidrofosco,comtampinhademetal,furinhos,
sal,comosefosseoúnicoobjetonasala.Fechouosolhos,tornouaabri-los,obrigando-seanãopensaremmaisnada...Osaleiro.Nãopensar...Osaleiro...Atésentirosdentesdoerem,cerradoscomviolência,ospulsosretesados.
Nada.Mudoudetática.Emvezdeatirar-seaosaleirocomosequisessefazê-loexplodir,resolveurelaxar,
descontrairasmãos,tentaraproximar-secomosequisessedescobrir-lheaalma,atérecriarumaimagemeapossar-sedele.Talvezocaminhofosseaempa-tia...Isso:empatiahomem-objeto.Nãopodiaordenaraosaleiroquesemovimentasse,mastalvezpudesseconvidá-loparaumpasseio,comosefossembonsevelhosamigos.Sóumpasso...
Debruçou-se para olhar mais de perto as cinco faces de vidro fosco, criando uma superfície
acessívelaqualquermão.Abasedevidromaisgrossoepesadopermitiaqueosaleirosemantivesseemequilíbrioestávelsobreatoalha.Atampademetal...
Nada.O saleiro continuava imóvel, comoummonumento eterno, imemorial,mais densoqueo ar,integradoàtoalha,formandopartedamesmamatéria,inseparável.
Amatériadomundo...emperpétuaagitação...osátomosquenãoparamnunca,sempreosmesmos,nohomemenovidro,girandounsporcimadosoutros,numa
ordemimpecável, incorruptível,doátomoaosplanetas...adançaeternadasestruturas,dasmenoresàsmaiores.Tãofácil...tãosimples...Osaleironãoerainerte.Osátomoscontinuavamagirar,comoantes,comodesdeocomeçodos tempos,nadaestavaparado.Masoshomensnadaviam.Paraquevissemeacreditassem, era preciso acelerar o ritmo da dança dos átomos. Tornar visível o invisível. Umpasso...sóumpassinho...
Dom sentiu-se livre, como se estivesse se libertando de peso e massa, integrado à natureza dasforçasessenciais,arquetípicas.
Eentãoosaleiroandou.Emsuaconcentração,Domesquecera-sedetodos.Maspercebeuquenãoestavasóaoouvirumgritoabafado,desurpresaesusto.
Osaleirocontinuavaasemover.Ergueu-sedamesaeflutuavabempróximoaorostodeDom,comose a gravidade não pudessemantê-lo colado à toalha. Continuou para cima, como um pequeno balãofosco,eparoumetroemeioacimadamesa.Láficou,àvistadetodos,poucoacimadalinhadevisão.
Na outra cabeceira, o vidro de molho de pimenta também flutuou até alcançar a altura onde oesperavaosaleiro.SóentãoBren-danconseguiutirarosolhosdovidrodemolhoevirou-separaDom.Foi um instante, e tornou a fixar-se no vidro, com medo de vê-lo espatifar-se como se seu olhar osustentassenoar.
OsolhosdeBrendanbrilhavamdeemoção,medo,deslumbramentoeamor.ChegaraàdescobertadafraternidadeprofundaqueoligavaaDom,àcertezadeque,apartirdaquelemomento,haviampartilhadoaexperiênciaúnicadeumpoderquasetãograndequantoodeDeus.
Dompareciaintrigado.Nãoacreditavaquefosseobrasuaoespantosovoodosaleiro.Nãosesentiaautordenada,responsávelpornada,veículodenada.Podertelecinético?Sim,talvez...Massimpleseóbviocomorespirarousentiropulsardocoração.
Brendanergueuasmãos:láestavamosanéisavermelhados.Dom curvou a cabeça e examinou as suas: osmesmos sinais, incompreensíveis, mas presentes e
vivos.—Éinacreditável—murmurouGinger.—Seráquevocêspodemfazê-losandarparaafrentee
paratrás,nummovimentohorizontal?—Podemerguerobjetosmaispesados?—Sandyperguntou.—Ealuz?—lembrouErnie.—Podemfazersurgiraquelaluzvermelha?Metódico,Domdecidiuirporpartes.Fazerosaleirogirarnoar.Malpensoueláestavaosaleiro,
dançando como uma bola de árvore de Natal. Na outra cabeceira, o vidro de molho de tomates oacompanhou.Devagar,saleiroevidrodemolhoaproximaram-seumdooutro:otalmovimentohorizontalqueGingerpedira,emboraDomnãotivesseconsciênciadeterordenadoaosaleiroqueandasseparaafrente. A voz de Ginger com certeza fora suficiente para que, inconscientemente, ele criasse a novapossibilidadedemovimento.Estranho...sabiaquecontrolavaosaleiro,masdesconheciacomo.
Osaleiroeovidrodemolhodepimentapararamnoar,aumpalmodedistânciaumdooutro,sempregirando; depois movimentaram-se para a frente, um à volta do outro, rodando em órbitas regulares,perfeitasesincronizadas.Apósuminstante,começaramagirarcadavezmaisdepressa,emórbitascadavezmaiscomplexas.
Maravilhados,todosriramebaterampalmas.DomolhouparaGingereviu-aradiante,orostocomoque iluminadode felicidade,mais bonita doquenunca.Ela sentiuoolhar, virou-separa ele, sorriu eacenou-lhe.JackTwisteErnieBlock,boquiabertos,seguiamadançadosvidrosiluminados,nãocomodois soldadosmaduros e endurecidos pela guerra,mas como dois garotos, pela primeira vez na vidadescobrindoamaravilhadosfogosdeartifício.Rindo,Fayeacompanhavaosvidroscomasmãos,comosequisessesubircomeleseentrarnobaile.Nedriadeorelhaaorelha,eSandychoravaasprimeiraslágrimasdealegria.
—Oh...—SandysorriuparaDom,orostolavadodelágrimas.—Nãoélindo?Seiláoqueosfazdançar,masélindo...Aliberdade!Omovimentodosvidrinhos...
soltos,livres...dançandoporaí,paraláeparacá...Domsentiaamesmaemoção,umaemoçãoque,poruminstante,ofezesqueceromedodasolidão,o
terror de se descobrir único, sem par e sem irmão. Sentia-se liberto, como os vidros que dançavam;transcendente,semcadeiaslimitandoopodereafelicidade.
Todos, na sala, deixavam-se levar pela exaltação de ver que a espécie se transformava, bem ali,diantedeseusolhos.Depoisdaquelanoite,omundojamaisvoltariaaseromesmo.
—Façamais!—Gingerpediu.Pelosalãodorestauranteossaleirosergueram-senoar...sete,oito,dez...umdecadamesa.Pararam
noespaçoelogo,comoqueseduzidos,giravamaoritmoeàvelocidadedoprimeiro.Depois,foramosvidrosdemolhodetomate.
Domcontinuavanãoentendendocomoaquilo tudopodiaaconteceresentiaqueBrendansabia tãopoucoquantoele.
Acaixademúsica,derepente,começouafuncionar.Umacançãoinexplicávelerepentina,comoobalédosvidros.
Fuieu?,pensouDom.OufoiBrendan?—MeuDeus!—Gingergritou.—Estou...achoquevou...plotzl—Plotz!—Domriu.—Oqueéisso?—Estourar,explodir....Estoutãoemocionadaqueachoquevouexplodir!Ossaleiros,osvidrosdemolho,eagoraaspequenasbandejasdelouçabrancavoavampeloar,cada
vezmaisrápidas,comumzumbidosempremaisagudo,atéqueascadeirassoltaram-sedochão.Masascadeirasnãoseergueramdevagar,comacalmaeaelegânciadosvidros:foramcomoque
atraídas para o teto, com violência, com força. Bateram no estuque, quebraram duas das luminárias,apagaram lâmpadas. Uma das luminárias despregou-se do teto e espatifou-se no chão, a algunscentímetrosdacadeiradeDom.Noteto,ascadeirasvibravam,batendoumasnasoutras
comomorcegos apinhados numa caverna.Os saleiros já não dançavamemharmonia e equilíbrio,mas voavam como projéteis enlouquecidos, estourando contra as cadeiras, o teto, as paredes. Um,voandobaixo,feriuoombrodeErnie.
Ofenômenofugiadecontrole.E,assimcomonãoimaginavamoquefizeraosobjetossemoverem,BrendaneDomtambémnãosabiamcomdetê-los.
Jáninguémriaouaplaudia.Estavamtodoscalados,assustados,querendoprotegerrostoseolhos.Ascadeiras,batendocontraoestuque,constituíamoutraameaça.ObarulhoacabouacordandoMareie,quesesentou,esfregouosolhos,começouachorarechamouamãe.
Jorjacorreuparaela,abraçou-aepuxou-aparabaixodeumadasmesas.Avolta,ogrupoabrigava-secomopodia.AscadeiraspesavamaindasobreascabeçasdeDomeBrendan,sentadosàmesamaior.
Domsentia-secomosealguémlhetivessejogadonocoloumagranadadeestopimaceso.Adireita,três ou quatro saleiros caíramao chão, espalhando cacos.DomolhouparaBrendan, sem saber o que
fazer: buscar abrigo ou tentar controlar o perigo que os ameaçava. De olhos arregalados, Brendantambémpareciaperdido.
Uma das luminárias que ainda resistia cedeu ao ataque das cadeiras, desprendeu-se e lá ficou,penduradapelosfios,criandosombrasquegiravampelasparedes.Outrosaleirocaiusobreamesa,bememfrentedeDom,eexplodiucomoumtiro,jogandosalemseurosto.
Dom, então, lembrou-se dos pôsteres deLomack: levantou asmãos para o teto, cerrou os punhosparaesconderosanéisavermelhadosegritou:
—Parem!Paremjá!Fez-se um instante de silêncio. As cadeiras pararam de bater, os saleiros, vidros de molho e
bandejas pararam de voar, suspensos no ar, onde estavam. E foi como se a casa desabasse: dozecadeirasemeiadúziadesaleiroscaíramjuntos,numsómovimento,co-
mosealguémhouvessedesligadooímãqueosmantinhanoar.Quandooúltimocacodevidroparouderetinireestalouoúltimopédecadeiraquebrada,Dome
Brendanestavamtãoapavoradoscomotodososoutros,queespiavamdelonge,emseusesconderijosporbaixodobalcãooudasmesas.Dompiscou,passouamãopelocabelo,viuBrendancobrirorostocomasmãosenotouoespantososilênciodosalão.AtéqueavozinhadeMareieeavozaindatrêmuladeJorja,tentandoacalmá-la,chamaram-nosdevoltaàrealidade.
Ernieaindaesfregavaoombro,masoferimentoerasuperficial.Nãohaviaoutros feridos,emboratodostremessemdospésàcabeça,tsemtirarosolhosdosrostosdeDomeBrendamesemacharoquedizer.OolharqueDomtemia.Merda!Exatamenteoolharqueadivinhava.
Gingereraaúnicaquenãopareciaassustada.Malsaiudoesconderijosobamesa,correuparaDomeabraçou-o,rindo.
—Oqueimportaéquenósdescobrimos!—exclamou.—Vocêstêmopoderdemoverobjetos.Eissoémaravilhoso!Comotempo,aospoucos,aprenderãoacontrolarisso.
— Não sei...—Dombalançoua cabeça, olhandoos cacosdevidro, as cadeirasquebradas, alumináriapenduradaporumfio.ViuJacklimpandoacamisasujademolhodetomate,JorjaconversandoemvozbaixacomMareie,quechoravabaixinho,FayeexaminandooombrodeErnieetirandocacosdoscabelos,Nedavaliandooriscodealumináriasoltar-seecairsobrealguém.—Nãoseicomocomeçou—murmurou.—Nãoseicomoacabou.Masseiquetodoscorremosumriscomuitograve.
—Averdadeéquevocêconseguiudescerascadeiras—disseGinger,semtiraramãodacinturadele,sentindoqueDomprecisavadesesperadamentedecontatohumano.—Vocêdescobriuummododefazeressacoisaparar.
— Mas...eseeunãoconseguissepará-la.Seaconteceroutravez?—Domestremeceu.—Vejacomoestáosalão!Alguémpoderiaterseferido!
—Nãohámortosnemferidos.Olhesó!—Mas...—Aprimeiravezésempredifícil.Dapróximaserámelhor.Brendanaproximou-seedisse:—Dêtempoaotempo.Domprecisahabituar-seàidéia.Quantoamim,seiquevoutentaroutra
vez.Daquiadoisoutrêsdias,depoisdepensarsobreoqueaconteceu.Saio,vouparaumlugarondenãohaja perigo de ferir ninguém, e tento outra vez. Acho que não será fácil aprender a controlar essa...energia. Vai dar trabalho, talvez demore muito tempo... Mas, quero tentar, e acho que consigo. Domacabarádescobrindoqueéaúnicaalternativapossível.
— Mas não quero esse maldito poder!— exclamou, sacudindo a cabeça.— Não quero serdiferentedetodomundo!
—Vocêjáé—Brendandeclarou,calmo.—Vocêeeu...
—Conversadepadre!—Claro.Mesmoestandoemcrise,aindasoupadre,aindaacreditoemdestinoepredestinação.A
vantagemquelevamossobrevocêséquesabemoscomoconciliarféelivrearbítrio,destinoeescolha.Sabemosqueohomeméfeitodessesdoismeteriais,igualmentenobres.
Incapazdeentendertamanhaanimaçãoebomhumor,Dommudoudeassunto:— Tudobem,doutora.Provamosmetadedesuateoria.Porsorte,provamostambémqueaoutra
metadeéfalsa.—Oquequerdizer?—Gingerfranziuatesta.—Querodizerque,duranteessa...loucura,descobriumacoisa.Quandoviosanéisapareceremem
minhas mãos, descobri, com absoluta certeza, que essa energia não é efeito colateral de nenhummicróbio.Agoraseiqueacausaéoutra,emboraaindanãosaibaqualé.Estousendoclaro?
—Nãosei.Oquequerdizercom“sei”?—Quesei...Seicomcerteza...sinto,nofundodemim.—Eeutambémsei—Brendanconfirmou,avozalegreedespreocupada.—Vocêacertouquando
sugeriuqueaenergiapode-riaestaremnós.Etambéméverdadequearecebemos,dealgummodo, naquela sexta-feira de julho, no verão retrasado.Mas não acertou quanto aomodo como a
recebemos. Comigo aconteceu o mesmo que Dom acaba de contar. No meio daquele caos, tambémdescobriquenãohámicróbioalgumenvolvidonessefenômeno.Nãoseiexplicaroqueaconteceu,masseiqueseráperdadetempoinsistirnaidéiadacontaminação.
DomentendeuentãopelomenospartedoalívioquepercebiaemBrendan,apesardosustopeloqualacabavam de passar. Por mais que declarasse não acreditar na interferência divina para explicar osfenômenosdequeeraagente,Brendanaindaacariciavaaesperançadereencontraraféperdida.Enadapoderiaserpior,paraele,doquedescobrirque,emlugardafé,haviaemseucoraçãoummicróbio...umsubproduto da engenharia genética... ou, pior ainda, uma arma criada pelo homem. Para ele, era umgrande alívio descartar a hipótese da nuvem de bactérias e deixar em seu lugar, por improvável quefosse,apossibilidadedaaçãodeDeus.
Dom também gostaria de encontrar o arrimo de uma fé sólida que o ajudasse a enfrentar a vida.Naquelemomento,porém,nãovianadaalémdemedoemorte,bocarrasabertas,prontasparaengoli-lo.Emcomparaçãocomoqueocorria,nadaeramasmudançasqueaconteceramemsuavida,aalteraçãodepersonalidade, em algummomento da viagem entre Portland eMountainview, no verão retrasado—coisasque lhepareceram tão importantes, nopassado.O tal poder...Domsentia-ovivo,dentrode si.UmparasitaqueacabariapordevorarovelhoDominickCorvaisis,assumiriaseucorpoesemostrariaaomundocomoumverdadeiromonstro,mascaradodeserhumano.
Que loucura!Talvez... sim, talvez loucura.Dequalquermodo,algoqueoassustavaepreocupava.Fitou os rostos de todos, que se aproximaram.Alguns desviavam o olhar, intimidados ou assustados.Outros,comoJackTwist,ErnieeJorja,nãobaixavamosolhos,masnãoconseguiamescondercertomal-estar.ApenasGingereBrendanpareciamosmesmosdeantes.
—Bem...—Jackfoioprimeiroafalar—,ninguémpodereclamardeumanoitesememoções...Mastemosmuitotrabalhopelafrente.Éhoradenosmexermos.
— Amanhã daremos outro passo adiante—disseGinger.—Edepois outro, e outro.Estamosprogredindo.
— Amanhã... — Brendan sorriu, os olhos brilhantes de emoção — será um dia de grandesrevelações.Eusei...eusinto.
Amanhã,pensouDom,poderemosestarmortos.Oudesejandotermorridohoje.AcabeçadocoronelLelandFalkirkrebentavadedor.Desdeoverãoretrasado,comonovohábito
de pensar em si, em sua vida, em seus problemas, começava a descobrir que, em certo sentido, atégostavaqueaaspirinanãoofizessesentir-semelhor.Comoseesperasseadordecabeçacomamesmaemoçãocomqueesperavaoutrasdores,antecipandooprazerperversodesentiratestalatejar.
O tenenteHorner já se fora, deixando-o sozinho no escritório sem janelas, enterrado no solo.Dequalquermodo,nãoesperavanovasnotíciasdeChicago.Sabiaoqueprecisavasaber, easnovidadeseramaspiorespossíveis.
CalvinSharklecontinuavaresistindoaocerco,entrincheiradoemcasa,emEvanston,eaexplosivasituaçãonãosealterariadurantepelomenosdozehoras.Falkirknãoarriscariaseushomensnainvasãodo Motel Tranqüilidade, antes de saber o que Sharkle poderia ter feito, contado ou dito. E odiavaesperar. O pior era que as testemunhas conseguiram esconder-se dos observadores. Nada lhe restavasenão esperar um dia inteiro. De qualquer modo, mesmo que a situação em Chicago permanecesseinalterada,ordenariaoataqueaomotelnodiaseguinte.
Outrasnotícias,tambémdeChicago,falavamdascurasmisteriosasdeEmmelineHalbourgeWintonTolk—casosquenemmédicosnempoliciaispodiamexplicar.O relatório sobreospassosdopadreWycazik,nodiadeNatal,incluindovisitasàmeninaeaopolicial,comumaparadanodepartamentodepolíciatécnicaeumaentrevistacomoperitoembalística,confirmava
asuspeitadequeosacerdoteconsideravaBrendanCroninresponsávelpelos“milagres”.Leland ouvira falar pela primeira vez dos poderes de Cronin na véspera, domingo, ao ouvir a
gravação do telefonema entre o padreWycazik e Dominick Corvaisis. A surpresa seria maior se osacontecimentosdosábadonãootivessemalertado.
Nosábado,LelandFalkirkouviuoencontrodeDomeosBlock,sempoderacreditar.AsfotosdaLuanacasadeLomackdesgrudando-sedasparedes...Oescritorfalandocomoumlouco,semconseguirseparar realidade e fantasia.Mais tarde, depois do jantar, Dom e os Block tentaram lembrar-se dosacontecimentosdejulho.E,outravez,aconteceualgoespantoso,confirmadopelosrelatóriosdosagentesde vigilância visual e pelas fitas gravadas. O chão tremeu no restaurante, ouviram-se ruídos...zumbidos...easvidraçasexplodiram.
Surpresa total, enãosóparaLelande seushomens:oscientistasenvolvidosnaoperação tambémestavam excitadíssimos. No dia seguinte, a descoberta de que Brendan Cromin era capaz de fazermilagres foi a gota d’água que faltava para enlouquecê-los. De início, eram fenômenos estranhos,curiosos,queespicaçavamaimaginaçãodetodos.MasLelandcomeçouapensar,oscientistastambém,elogochegaramaumaconclusãoqueosdeixavaaterrados.Daliemdiante,tudoerapossível.
—Enósquepensamosqueasituaçãoestavasobcontrole—Lelandsuspirou.—Fomosconvocadostardedemais,quandojánãohaviaoquefazer...
Seu único consolo era que, tanto quanto sabia, apenasCorvaisis e o padre davam sinas de teremsido...contaminados.“Contaminados”nãoeraumaboapalavra.“Possuídos”,sim,chegavamaispertodaverdade. Ou talvez não existisse um termo certo, porque o que lhes aconteceu jamais acontecera aqualqueroutroserhumano,nunca,emtempoalgum...
MesmoqueSharkleserendessenodiaseguinte,mesmoquenãotivessefaladocomninguém,Lelandnãosesentiriaseguro.
No motel estavam Brendan e Corvaisis... talvez mais alguém, talvez todos... contaminados,possuídos, o diabo que fosse! Poderiam oferecer resistência... poderiam ter-se transformado emsuperhomens...ouemqualquersupercoisadifícil—ouimpossível—deprender.
Acabeçadoía-lhecadavezmais.Relaxeedeixequeadorvenha,pensou.Deixequevenhaecresça,comovocêfazhátantotempo,seu
desgraçadofilhodaputa...Deixequeadortomecontadetudo.Maisumdiaoudois,atéquetudoesteja
explicado.Ouquevocêestejamorto.Umarespostaouamorte,qualqueruma,aquechegarprimeiro.Saiudoescritóriosemjanelas,atravessouaante-salasemjanelas,percorreuocorredorsemjanelas
echegouàsalasemjanelasocentrodecomunicações,ondetrabalhavamotenenteHornerosargentoFixx.—Informeaoshomensquenãosairemoshoje—disse.—Precisamosesperarmaisumdia,para
saberoqueaconteceemChicago.— Já ia procurá-lo, coronel — Horner levantou-se. — Temos novidades no motel. As
“testemunhas” acabamde sair do restaurante. JackTwist separou-se do grupo e voltou pouco depois,comumjipequeestavaescondidopertodarodovia.Ele,JorjaMona-tellaeopadresaíramparaElko.
—- O que vão fazer em Elko, a essa hora da noite?! — Leland sentiu um calafrio na espinha,descobrindo que, caso o ataque aomotel estivesse em curso, os três teriam conseguido escapar. Seuprimeiroerrograveforaconfiarcegamentenainformaçãodequetodosestavamreunidosnomotel.
HornerapontouFixx,quecontinuavasentado,osfonesnosouvidos,atentoaossonsdomotel.— Peloqueouvimos,osoutrosvãodormir—declarouosargento.Twist,Monatellaeopadre
saíram,comoumaespéciede“segurodevida”paraosqueficam.Adivinharamquenãopodemosatacá-losamenosqueestejamtodosreunidos.SópodetersidoidéiadeTwist...
—Merda—resmungouLeland,massageandoopescoço.—Tudobem.Nãofazdiferença.Amanhãospegamos.
—Eseelesseespalharemdesdecedo?—Queroquesejamseguidosvinteequatrohoraspordia.Umagenteparacadatestemunha.Atéaquelemomentonão foranecessário segui-los,porque trilhavamcaminhoconhecido;maisdia
menos dia, todos acabariam chegando aoMotel Tranqüilidade.Mas dali em diante era diferente. SeTwistqueriadividi-losemgruposimaginandoqueLelandnãoosencontraria...teriaumasurpresa.
—Nãoéfácilsegui-loaqui,emcampoaberto.Elespodemdesconfiar.—Quedesconfiem!Ebomsaberemqueestãosendoseguidos.Vamosmantê-lossobpressão,em
estado de tensão máxima. Talvez se assustem ao descobrir que podemos encontrá-los a qualquermomento, talvezcorramdevoltaaomotel,ondesesentemmaisseguros.Voltamparaaratoeira...eosapanhamosreunidos.
—Omelhor,mesmo,éapanhá-losnomotel—ponderouHor-ner,franzindoassobrancelhas.—Umaprisãoempúblicochamariaaatenção.
— Temosquepegá-los.Senãopudermosprendê-los, vamosmatá-los.—Leland apanhouumacadeiraesentou-se.—Queroverosdetalhesdoplanodevigilânciaparaamanhãedefinirosagentesencarregadosdesegui-los.Querotodosapostosantesdêosolnascer.
3.TERÇA-FEIRA,14DEJANEIRO
As sete emeia damanhã de terça-feira, atendendo ao pedido queBrendanCronin lhe fizera portelefonenavéspera, tardedanoite,opadreStefanWycazikpreparava-separa iraEvanston,Chicago.DeveriaprocurarCalvinSharkle,ocaminhoneiroquesehospedaranoMotelTranqüilidadeemjulhodoano retrasado e que, fazia semanas, parecia ter-se evaporado do planeta.Depois do que ocorrera emNevada, na noite anterior, não havia dúvida de que todas as vítimas precisavam ser localizadas aqualquercusto.Nacozinhadacasaparoquial,Stefanpunhacasacoechapéu.
Aindasentadoparaocafédamanha,depoisdecelebraraprimeiramissadodia,opadreGerranolevantouacabeça:
—OsenhordeveriamecontaroquesabesobreBrendan.Seaconteceralgumacoisa...—Nãovaiacontecernada—Wycazikrespondeudepressa.—Deusnãoperderiacincodécadas
me ensinando os segredos do mundo, se quisesse que eu morresse agora, justamente quandoestoupróximodeprestarumgrandeserviçoàIgreja.
—Ah...—fezooutro,balançandoacabeça.—Osenhorétão...—...segurodeminhafé?—completouovelhocura.—Claroquesou.ConfieemDeus,eElenão
lhefaltará.—Naverdade,euiadizer—continuouopadreGerrano—queosenhorétão...teimoso...— Grande atrevimento o seu— Stefan enrolou o cachecol no pescoço.—Um simples cura!
“Perdoai,Pai...Elesnãosabemoquedizem!”Ocuraperfeitodeveserhumildee trabalharcomoumamula, com energia de um cavalo dopado. Além, é claro, de ser submisso e respeitoso para com ossuperiores...
—Desdequeosuperiorimediatosejaumvelhinhopiedoso,sossegado,dedicadodecorpoealmaaodia-a-diadeseusparo-quianos—concluiuooutro.
Otelefonetocou.—Seforparamim,digaquejásaí.—OpadreWycazikcorreuparaaporta,calçandoasluvas,e
parou,porqueGerrano,cobrindoofone,sussurrou-lhequeWintonTolkqueriafalar.Edissequepareciahistérico,aosberros,àprocuradeBrendan.
Stefanvoltou,apanhouotelefoneeidentificou-se.—PeloamordeDeus—Tolkmalconseguiafalar—,osenhortemdeencontrarBrendanCronin.
Nãopossoesperar!—Brendanviajou.Seráquenãopossoajudá-lo?—Viajou...Oh,não...—Umapausa,eTolkcontinuou,falan-doaosarrancos:—Aconteceumacoisaestranha...acoisamaisestranhaquejávi!Etenhocerteza
dequeenvolveBrendan.—Precisamosconversar.Ondeestávocê?— Estou de serviço, no centro da cidade.Houve um tiroteio, agressão a faca. Foi horrível. E
então...Porfavor,osenhorprecisameajudaraencontrarBrendanporqueeleéaúnicapessoacapazdeexplicaroquehouve.
StefanconseguiuarrancarumendereçodeWinton,saiucorrendodacasaparoquial,dirigiucomoumloucoatéocentrodacidadeemenosdemeiahoradepoischegavaaumquarteirãodeprédioscinzentos,todos de seis andares, sujos e velhos. Foi obrigado a estacionar longe do número queTolk lhe dera,porquearuaestavatomadaporviaturasdapolícia,pelocarrodoInstitutoMédico-Legalepordezenasdeguardasque andavamdeum ladopara o outro com rádios colados à orelha.E foi a umdeles queStefanperguntou:
—Oquehouve?
—Confusãonoterceiroandar.NoapartamentodafamíliaMen-doza—respondeu-lheopolicial.Ovidrodaportadoprédioestavaquebrado,coladocomfita isolantepreta,eohallestavamuito
sujo.Aumcanto,duasmeninasbrincavamdeenterrocomumabonecavelhaeumacaixadesapatos.AoentrarnoapartamentodosMendoza,opadreWyca-zikviuosofábegeencharcadodesangue.Eratantosangueque,emalgunspontos,oassentopareciapintadodepreto.Haviasanguerespingadopelasparedesamarelo-claras, à volta de uma grande mancha central, marcando o ponto onde alguém forafuzilado.Quatrotiros,nomínimo,furaramoreboco,depoisdeatravessarocorpo.Ehaviamaissanguenoabajur,namesadocentro,naestantedelivros,nochão.Acenapareciamaischocanteporcausadocontrastecomoapartamentopobre,porémlimpoebemarrumado,maisdoquesepoderiaesperarnumprédiocomoaquele.Mesmoobrigadosavivernumcortiço,osMendozarejeitaramarendiçãocompletaelutaramparaconservaraomenososrestosdadignidadepassada.Asujeiradasruasedosaguãotermi-
navanaportadoapartamento,comosealivivesseoúltimodescendentedeumatriboemextinção,gentecivilizadaeordeira.Nãofosseosangue,asalaestariabrilhandodelimpa.
Stefantirouochapéueentrounaúnicapeçadoapartamento,divididaemtrêsporumbiombodeumladoeumpequenoapa-radordeoutro:para láoquarto,paracáacozinha.Haviaquaseumadúziadepoliciaisali:investigadores,guardasfardados,agentesdapolíciatécnica.Apenasdoisoutrêspareciamtrabalhar;osoutrosolhavamemvolta, semquerer sair, apesardenão teroque fazer, reunindo-se emgruposefalandoemvozbaixa,comoseestivessemnumenterro.
Umdosrarosdetetivesatarefadosestavasentadoàmesa,fazendoperguntasaumamulhermorenaderostocomum,compoucomenosdequarentaanos.Chamava-adesra.Mendozaeanotavacuidadosamenteo que ela dizia. A mulher parecia disposta a ajudá-lo, mas não tirava os olhos de um homem,provavelmenteomarido,queandavajuntoàcama,deumladoparaooutro,comumacriançanocolo,ummeninodemaisoumenosseisanos.Ohomemcarregava-onumbraçoecomooutroacariciava-lheoscabelos,tocava-lheorosto,assegurando-sedequeestavamesmoali,sãoesalvo.Osr.Mendozaolhavaofilhocomolhosdequemacabavadeveramortedeperto.
Umdospoliciaisaproximou-sedeStefan.—OsenhoréopadreWycazik?—perguntou.Apesardotomdevozdiscretoecalmo,amenção
donomefezcomqueascabeçassevoltassemnadireçãodeStefan.Mas...oqueteráacontecidoaqui?Ovelhocurarespiroufundo,tambémàespera.—Porfavor—pediuopolicial—Venhaporaqui.OpadreWycaziktirouasluvasesegui-oatéopequenoquarto,oúnicodoapartamento,ondeWinton
Tolkeoutropolicialesperavam,sentadosnabordadacama.Tolkestavacurvado,orostoescondidonasmãos,enãosemoveuquandoocolegaqueconduziaosacerdoteentrounoquarto.
—SouPaulArmes—declarouopolicialqueestavacomTolk.—Trabalhamosjuntosnopatrulhamento.Vousairagoraparavocêspoderemconversar.Stefan pegou uma cadeira e aproximou-a da cama, onde Tolk continuava imóvel. O quarto era
minúsculo,deixavapoucoespaçoentreacamaeacadeira;assim,aosentar-se,opadrequasetocavaosjoelhosdopatrulheiro.
—Muitobem—disse,tirandoocachecol.—Oqueaconteceu?Tolklevantouosolhos,eStefanassustou-se.Orostodopolicialexprimiaumamisturadeemoções
quaseimpossíveldedescrever.Estavaassustado,sim,masnãoempânico.Terrivelmenteagitado,àbeiradeumaexplosão—quetantopoderiaserdehorrorcomodedeslumbramento.
PeloamordeDeus...—Tolkpediu.—QueméBrendanCro-nin?—Elogo,comvoztrêmula:—Ou...oqueéele?!
Stefanvacilouuminstante,masacaboudecidindo-sepelaverdade:
—Eumpadre.—Nãofoioquenosdisseramnadelegacia...Comumsuspiro,ovelhopárocofezquesimcomacabeçaecontou-lheahistóriadacrisedeféde
Brendan.Falou-lhedotratamentoqueelemesmoinventaraparafazê-loconhecerdepertoumpoucodasgrandestragédiasdocotidiano.Porisso,acabaranarondadocentrodacidade.
—AcheiqueseriamelhorninguémsaberqueBrendanépadre,assimtodosotratariamcomoumcidadãoqualquer,eeleseriapoupadodedificuldadesaindamaiores.
—Umpadre...renegado...—Wintonfezumacaretadedesamparo.—Não.Apenasumpadreemcrise.Eleacabaráreencontrandosuaverdade.Opequenoquarto,limpíssimocomotodooapartamento,estavamergulhadoempenumbra,iluminado
apenas pela pequena lâmpada damesa-de-cabeceira.A luz incidia de lado no rosto deTolk, fazendobrilharemosgrandesolhosescuroseluminosos.
—OsenhorsabecomoBrendanmesalvou?Comoelefezaquele...milagre?—Porquepensaquefoiummilagre?—Doistirosàqueima-roupanotórax...etrêsdiasdepoiseuestavaemcasa.Trêsdias...Pormim,
teria voltado a trabalhar no dia seguinte. O médico falava de minhas condições físicas, dizia que acicatrizaçaorápidaaconteceuporqueeuestavaemforma...Sófalavanisso...Entãoentendiquetentavaexplicarasimesmooquemeacontecera...Atéaíeuaindapensavaqueerasorte...sorteminha,umaboaestrela, um anjo da guarda. Então, na semana passada, quando voltei a trabalhar... aconteceu isto.—Tolkabriuacamisadouniforme,ergueuacamisetaemostrouopeito.—Ascicatrizessumiram.
Stefanestremeceu.Estavabempróximodopolicial,masaindasedebruçouparavermelhor.Nada,praticamentenada,alémdeduaspequenasmarcas,umpoucomaisclarasqueapeleaoredor.Ossinaisdasuturaerammenoresqueosdeumarranhão,esósepodiavê-losbemdeperto.Dentrodedoisoutrêsdias,comapelenormalmentepigmentada,jánãoseverianada.
—Videzenasdecicatrizesdeferimentoàbala—declarouTolk,balançandoacabeça,indecisoentreomedoeaeuforia.—Eumacoisabemfeia,nuncadesaparece.Ninguémlevadoistirosnopeitoeficaassimcomoestou...Cicatrizesdebalanãosomemnunca.
—Oquedisseomédico?Tolkabotoouacamisacommãostrêmulas.—EstivecomodoutorSonnefordháumasemana,eascicatrizesaindaestavamaqui.Fazapenas
quatrodiasquecomeçaramasumir.Vejo-assumindo!Basta-meficarmeiahoradiantedoespelho.Opatrulheirocalou-seporuminstanteelogorecomeçou:—Tenhopensadonavisitaqueosenhorfezaohospital,nodiadeNatal...Quantomaispenso,mais
me convenço de que o senhor sabia de alguma coisa que não quis dizer... Perguntou sobre Brendan,lembra-se?Masháalgoqueprecisosaber...Brendancuroumaisalguém?Háoutroscasos?
—Sim,há.Umcasodiferentedoseu,mas...sim,háoutrocaso.Nãopossodizer-lhequemé—afirmou Stefan, respirando fundo.—De qualquermodo, você não ligou para a igreja por causa dascicatrizes.Oqueaconteceuaqui?Vocêestavaempânico...oapartamentoestácheiodepoliciais...Oqueaconteceu?
Opoliciallevantouosolhos,sorriu,baixouacabeça,cobriuorostocomamão,tornouasorrir,osolhosmarejadosdelágrimas.Respiroufundoalgumasvezesecomeçouacontar:
—Estávamosfazendoaronda,Pauleeu.Coisaderotina.Recebemosumchamadopelorádioeviemos para cá. Parecia um caso de bebedeira.Um rapaz fazendo arruaça.Não era só isso.Q rapazestavadrogado,comdrogapesada...Osenhorjáviuumdessesviciados?Parecemanimais.Opócomeocérebro,elesenlouquecem.Depoisquetudopassou,disseram-mequeodesgraçadosechamaErnestoeé
filho de uma irmã da senhora Mendoza. Mudou-se para cá na semana passada porque a mãe oexpulsoudecasa.OsMendozasãoboagente...Osenhorviusócomoacasaélimpaearrumada?
Stefanfezquesimcomacabeçaeesperou.—Genteboa—Wintoncontinuou—,dotipoqueajudaosparentes.Quandoosobrinhocomeçoua
dar trabalho, ofereceram-se para ficar com ele até que melhorasse. Mas esses viciados não têmsalvação...Agentemorretentandoajudá-losenãoconseguenada.EssetalErnestotemfichanapolíciadesde os sete anos: agressão, assalto a mão armada, roubo... Quando chegamos estava nu, os olhossaltandodorosto,berrandocomolouco.
Tolk olhou para a parede, cerrou as pálpebras querendo apagar da lembrança aquela visão depesadelo.Mascontinuouafalar:
—ErnestopegouHéctor,omeninoqueosenhorviunocolodopai.Jogou-onosofá,saltousobreeleeencostou-lheumanavalhadevintecentímetrosnopescoço.AsenhoraMendozaficoulouca.Queriapularsobreeleesalvarofilho,mastinhamedodequeErnestooferisse.Ernestoberravaebabavacomoumbicho.Entramosno apartamento de armas empunho, porqueo cara estava louco... e é impossívelargumentarcomgenteassim,
masnãopodíamosfazernadaporcausadanavalhanopescoçodogaroto...Omeninochoravaenemsemexia,coitado,detantomedo.ComeçamosafalarcomErnesto,devagar,comcalma,tentandoganhartempo... E então...Oh!Deus...—Winton baixou a cabeça, sacudido por um soluço.—Então... ele...degolouogaroto.Elecortoumesmo,deorelhaaorelha,umtalhosó,fundo,horrível...Quandolevantouanavalhaparacortardenovo,nósofuzilamos.Nãoseiquantostiroslevou.Grudounaparedeecaiuduro,porcimadomenino.Corremosatéosofá,puxamosocadáverdocara,eláestavaomenino...comamãonagarganta,comosequisessefecharocorte.Osangueborbulhavaentreseusdedoseelejánãovianada,obrancodosolhosaparecendo.
Opatrulheirocalou-se,outravezbaixouacabeçaecobriuorostocomasmãos,tentandoacalmar-separacontinuar.Levantou-se, foiatéa janela,afastouumapontadecortinaeespioupara fora,olhandosemverodiacinzentoetristecomotantosoutros.
O coração de Stefan batia forte. Não apenas pelo horror da história que acabava de ouvir, mastambémpelamaravilhaquecomeçavaaadivinhar.
Aindaparadojuntoàjanela,osolhosperdidosnamanhã,Tolkretomouanarrativa:—Nãoháoquefazerparaestancarumahemorragiacomoaquela.Nãoháprimeirossocorros,nem
procedimentodeemergência,nadaqueresolva.Opescoçoestavacortado...artérias,veias,nervos...Osangue jorrava como água da torneira. No pescoço, não é possível fazer torniquete, nem pressionarartérias,porqueosanguecorrecomaltapressão.Nãohaviaoquefazer,eomeninoestavamorrendo.Eumeajoelheiao ladodosofá...Umacriança, tãopequena, tãobonita...morrendoali,àminhafrente.Eusabiaquenãoiaadiantar,maspusamãonopescoçodele,comosequisesseestancarosangue,impedirqueavidacontinuasseaescapar,taparoburaco...efingirquenadaacontecera.Euestavaloucoderaiva,de dor, de desespero, porque não é justo que uma criançamorra daquele jeito, não é justo que umacriançamorra
nunca,emlugarnenhum...nãoéjustaamorte,nemavida,nemnada...Eentão...então...derepente...—...ocortecomeçouafechar—Stefancompletouemvozbaixa.Tolkvirou-separaele,devagar,
muito sério, e parou, a dois passos da cadeira, olhos nos olhos do velho pároco. Fez que sim com acabeçaeprosseguiu:
— Issomesmo...Omeninoestava lívido,encharcadodesangue,masocortecomeçoua fechar.Nem percebi o que acontecia, até que o garoto se mexeu, abriu os olhos, respirou fundo, uma, duasvezes...Entãoviqueosanguejánãojorravaentremeusdedos,comoantes.Tireiamão...eviqueocorte
se fechava.Omenino cerrou os olhos, e eu pensei que estava ficandomaluco, que èle tinhamorridomesmo,eeu...Comeceiagritar,etoquei-onopescoço,eelejánãoestavatãopálido...Afasteiamãoeolheiaferida... jánãohaviaferida.Haviaosinaldocorte,umsinalfeio,acarneaindainchada...masnãoferida.
Opolicialcalou-se, imóveldiantedacadeiradeStefan,edeixouaslágrimascorrerempelorosto.Erapossívelesconder,efaziasentidoesconderomedo,ohorror...masaalegriaeramaisfortequeele.Eraumaalegriaimpossível,inacreditável.Opatru-lheiroWintonTolk,aindamaisaltonacalçajustadouniforme,soluçoualto,semforçasnemvontadedeocultaraslágrimas.Stefanestendeu-lheasmãos,queopolicialseguroufirmemente,econtinuouasegurá-lasenquantodizia:
— PaulArmes,queestavacomigo,viutudo.Eospaisdomeninotambém.Edoispoliciaisquechegaramconosco.Quandoviqueocorteestavacicatrizando,acheiquedeviacontinuarcomasmãosnopescoçodeHéctor,paracompletaracicatrização.Efoioquefiz...concentrei-meemsalvaromenino.Tireidacabeçatudoquenãofosseapenaspensarqueeleiaficarbom,queoferimentocicatrizaria.EntãomelembreideBrendanedoquehouvecomigonoassaltoaobar,dascicatrizesquesumiamdemeupeito.Tenhocertezadequeháumaexplicaçãoparaasduascoisas...paraoqueBrendanfezcomigoeparaoqueeufizcomHéctor.Daíemdiantefoisimples...omeninorecuperouacor,
começouarespirarbeme,derepenteabriuosolhos,sorrindoparamim.—OPolicialriu,umrisoamploeclaro.—Osenhorprecisavatervistoaquelesorriso.Chamouamãe....Então,eudesmaiei.AsenhoraMendoza correu para o filho, levou-o para dentro, deu-lhe um banho, trocou suas roupas. Oapartamento ficou cheio de policiais porque a notícia se espalhou. Por sorte, a imprensa não tinhachegado.
OpadreWycaziksoltouasmãosdeTolk,recostou-senacadeiraerespiroufundo.—VocêtentouressuscitarErnesto?—perguntou.—Tentei.Apesardoqueelehaviafeito.Depoisquemerecuperei,meuprimeiropensamentofoi...
que eu devia tentar. Tentei, mas não deu certo. Talvez porque ele já estivesse morto. Quero dizer...completamentemorto.
—Poracasopercebeumarcasnaspalmasdesuasmãos?Anéisavermelhados?—Nãohavianadaemminhasmãos.Queanéissãoesses?—Nãosei.MasessesanéisapareceramnasmãosdeBrendannaqueledia,nobar,quandoeleo
salvou.Outralongapausa,atéqueTolkperguntou,emvozbaixa:—Brendanéalgumtipode...santo?—Não—respondeuStefan,sorrindo.—Brendanéumbompadre,masnãoésanto.—Então...comopôdemesalvar?—Aindanãosei.Mas,oquequerquetenhaacontecido,foiobradeDeus.Nãoseicomo,nempor
quê.—Ecomoteriapassadoparamim...opoderdecurar?—Nemmesmosabemossefoiissoqueaconteceu.TalvezvocêtenharecebidoagraçadeDeus,do
mesmomodocomoBrendan.Wintonbaixouacabeça,examinouaspalmasdasmãos,semsinaisdeanéis, lisascomosempre,e
pensouemvozalta:—Opoderdecuraraindaestáemmim...Sintoqueestáaqui.Enaoésóopoderdecurar.Hámais.—Oquequerdizer?Comoassim...“hámais”?—Aindanãosei—Tolkbalançouacabeça.—Sintoquepossofazermais...Comotempo,outros
poderes vão aparecer.Oumesmo esse, de curar, vai-se desenvolver.Oh!— exclamou de repente, os
olhosbrilhando,demedoefelicidade,esperançaehorror—OqueBrendan...fezdemim?!Stefanaprumouascostasnacadeiraerespondeurispidamente:—Tiredacabeçaaidéiadequepodehaveralgodemaunoqueaconteceuavocês.Sejaoquefor,
éumaforçadeluz,paraobem,nãoparaomal.Pensenomeninoquevocêsalvou.Pensenamãedele,emsuaemoção.Penseemvocê,nafelicidadedeserviraopróximo.Somospeõesnumjogo...MaioressãoospoderesdeDeus.QuandoDeusquiser,entenderemosessesmistérios,emuitosoutros...Eugostariadeverogaroto...—declarou,levantando-se.
—Tudobem.Desculpenãoacompanhá-lo.Aindanãotenhocoragemparasairdaquieenfrentarosrapazes.Sabe-seláoqueestarãopensando!Vá.Euficoaqui.Sepuder,porfavor,venhamedizercomoeleestá.
—Nãopossovoltar,porquetenhocompromissosmuitoimportantes.Masfiquetranqüilo,poisnãovamosnosperderdevista.Seprecisardealgumacoisa,telefoneparaacasaparoquialdaIgrejadeSantaBernardette.Lásaberãoondemeencontrar.
Stefan saiu, atravessou a sala ainda cheia de policiais, sentindo os olhares reverentes que oacompanhavam, e aproximou-se da mesa atrás do balcão da cozinha. Héctor estava no colo damãe,comendoumabarradechocolate.
Eraummeninofranzino,magro,detraçosfinosedelicados,muitoparecidocomamãe.Tinhaolhosbrilhanteseinteligentesefacesrosadas,sinalevidentedequerecuperara,também,osangueperdido—emmenostempoqueWinton.TalvezopoderdeWintonfossemaiorqueodeBrendan.
Stefanajoelhou-separaolhá-lodefrente:—Comosesente?—perguntou.—Ótimo.—Lembra-sedoqueaconteceu?Héctor passou a língua nos lábios, mais sujou-se que limpou o chocolate, e fez que não com a
cabeça.—Eochocolate?Estábom?—Querumpedaço?Podecomer...Masnãodeixecairnochão,senãomamãebriga.—Obrigado—respondeuovelho,rindo.—Comaseuchocolateenãofaçasujeira.—Levantou-
seeperguntouàsra.Mendo-za:—Temcertezadequeelenãoselembradenada?—Tenho.GraçasaDeus!—Asenhoraécatólica,nãoé?ConheceopadreNilo,daparóquiadeNossaSenhoradoSocorro?
—Amulherfezquesimcomacabeça.—Ótimo.Játelefonouparaele?—Não...Aindanãoconsigopensardireitoe...Antesqueelaterminassedefalar,opaideHéctorcorreuparaotelefone.Stefanseguiu-o,dizendo:—Issomesmo.Conteoqueaconteceu,peçaaopadreNiloquevenhavisitá-los.Digaqueestou
aqui, mas não posso esperá-lo; entrarei em contato com ele mais tarde. Diga que tenhomuito o queconversar,equeelevaiencontraraquiapenasumapequenapartedeumalongahistória.
EnquantoMendozatelefonava,ovelhopárocodirigiu-seaumdospoliciais:—Oferimentonopescoçodomeninofoifotografado?— Sim. Nós o fotografamos enquanto Tolk... estava com ele. Procedimento de rotina.— De
repente o policial riu, nervoso.—Mas que loucura! O que estou dizendo? Como se pode falar em“rotina”numcasocomoesse?!
— As fotossão importantesparaprovaroquehouve—observouStefan, respirando fundo.—Achoque,muitoembreve,nãorestaránemsinaldacicatriz.—Virou-seoutravezparaHéctoresorriu.—Agora,sejabonzinhoemedeixeexaminarseupescoço.
Omeninolargouochocolatesobreamesaelevantouoqueixo.Comamãotrêmula,opadretocouofinotraçorosadoque,comoTolkdissera,estendia-sedeumaorelhaàoutra.Sentiuapulsaçãofortedacorótida e estremeceu, com a sensação de que tocava o própriomistério da vida.A vida vencendo amorte, a vida eterna, para sempre, conforme a promessa de Deus. Fezmen-são de sair, mas um dospoliciaisaproximou-seeinterpelou:
—Oqueestáacontecendo?Ouviosenhordizerquevimosapenasumapartedeumalongahistória.Quehistóriaéessa?
Stefanparoueolhouao redor.Vinte rostosvoltavam-separa ele, ansiosos, aguardando seu relatocomose fosseuma revelação.Aqueleshomenscurtidospelocontatodiáriocomabrutalidadehumanaainda não haviam perdido a esperança de acreditar em algo melhor que eles mesmos, melhor que omundo.
—Algumacoisaestáacontecendo—disseopadre.—Aquietalvezemoutroslugarestambém.Uma coisa grandiosa... Essemenino que foi salvo hoje faz parte disso.Mas ainda sei pouco sobre oassunto.Nãopossodizer-lhes,comcerteza,quepresenciaramummilagre.Contudo,olhemparaHéctor,nocolodamãe,epensemnapromessadeDeus...“Nãohaverámorte,nemsofrimento,nemlágrimas,nemdor;poisoquefoi,nuncamaisserá.”Nofundodocoração,acreditoquenada,nuncamais,serácomoantes...— completou e, após uma pausa emocionada, declarou:—Agora preciso ir. Tenho negóciosurgentes.
Surpreendidoscomaquelepadre,capazdecitarumadasmaisconfortadoraspromessasdafécristãe,emseguida,falardenegóciosurgentes,oshomensafastaram-seedeixaram-nopassar.Talvezporquehaviam presenciado um verdadeiro milagre, operado bem ali, diante de seus olhos, pelas mãosconhecidasdopatru-lheiroTolk,algunspoliciaissorriramparaovelhopároco,outrosestenderam-lheamão, querendo tocá-lo, numa espécie de elevada camaradagem espiritual, Stefan também sentiuvontadedeabraçá-los,decomemorarcomelesaexperiênciaprofundaqueestavamvivendo.Emtodos,naquelemomento,renasciaaesperançadeumfuturoluminosoparaahumanidade.
EmBoston,àsdezhorasdamanhã,AlexanderChristophson,ex-senadoramericano,ex-embaixadoramericano na Inglaterra, ex-diretor da CIA, aposentado há uma década, lia o jornal, quando foiinterrompido pelo telefonema de seu irmão, Philip, antiquá-rio residente emGreenwich, Connecticut.Falarampouco,poismantinhamfreqüentecontatoenuncaficavamsemnotíciasumdooutro.Antesdesedespedir,Philipobservou:
—Oh...iameesquecendo.FaleicomDianahojedemanhã.Vocêselembradela?—Claroquesim—respondeuAlex.—Comovaiela?—Comosempre...umdiamelhor,outropior.Mandou-lhelembranças.—Quandoaencontrar,diga-lhequeagradeçoeretribuo.Philipfalouumpoucosobreumlivroqueestavalendo,eminutosdepoisambosdesligaram.DianaeraonomedecódigodeGingerWeiss.Aquelaconversasignificavaapenasqueelatelefonara
paraPhilipeprecisavafalarcomAlex.Umcodinomebemescolhido,pensouoex-senador.Naprimeiravezqueavira,nofuneraldePabloJackson,lembrara-sedeDiana,acorajosacaçadoraedeusadaLuadosromanosantigos.
Alex disse à esposa que ia até a livraria ver se encontrava o livro de que Philip lhe falara. Foimesmoecomprouolivro,mas,antesdevoltarparacasa,parounumacabinetelefônica.Ligounovamenteparaoirmãoepediu-lheonúmerodecontatoqueGingerdeixara.
—EladissequeéonúmerodeumacabinepúblicaemElko,Nevada—informouoantiquário.OtelefonetocoucincovezesantesdeAlexouviravozdeGinger.—Desculpe—disseela.—Demoreiporqueestavaesperandonocarro.Estámuitofrioparaficar
nacabine.—OqueestáfazendoemNevada?— SeentendibemoquevocêdissenodiadoenterrodePablo,vocênãopodequerer que eu
respondaessapergunta.—Temrazão.Quantomenoseusouber,melhor.Oquevocêquerdemim?Porquetelefonou?Omais resumidamente possível, Ginger contou-lhe que encontrara outras pessoas que, como ela,
tinham sido submetidas a lavagem cerebral. Em seguida perguntou ao único especialista em lavagemcerebralqueconhecia:
— Oque émais fácil: implantar umconjuntode lembranças falsasoupequenos fragmentosdementiranumconjuntodelembrançasautênticas?
— Quantomais completa amentira,mais fácil o implante. E quase impossível implantar umapequenamentiranumconjuntodelembrançasautênticas—Alexconfirmou.
— Foioquepensamos,mas éótimoouvir a confirmaçãodeumespecialista.Háoutra coisa...Precisodeumfavor.EmuitoimportantequenosconsigatodasasinformaçõespossíveissobreumcertocoronelLelandFalkirk,comandantedeumbatalhãodaDERO.E,também...
—• Calma!— Alex interrompeu.— Você sabe perfeitamente que eu não lhe prometi conseguirinformaçõessobrenadaeninguém.Expliqueibemque...
—Claro,eusei.Maspenseique,mesmonãoquerendoseenvolvercomnossosproblemas,talvezvocêconheçaalguémque...
—Nãoquero.Enãoconheçoninguém.Enãovoumecomprometercomisso.— Acha tão comprometedor assimo fato de conseguir algumas informações sobreFalkirk?—
Gingercontinuou,imperturbável.—Precisamossabercomquemestamoslidando.—DoutoraWeiss...sintomuito,mas...— Precisamos tambémde informaçõessobreThunderHill.Eumabasemilitar,umaespéciede
depósitodemunição...almoxa-rifado...seilá.Ficaaqui,emElkoCounty.—Doutora...Nãovoufazernadadisso!Nãovoupesquisarnada!SuasnegativasapenasreforçavamacertezadeGinger:elereclamariamuito,masacabariaajudando.—Nãoseesqueça—preveniu-o.—LelandFalkirkeThunderHill,emElkoCounty,Nevada.Não
precisaseexpor.Bastatelefonarparaumoudoisdeseusex-colegasdeSenado,porexemplo.E,quandotiver algo interessante, telefone para o doutor George Hannaby, aí em Boston, ou ao padre StefanWycazik,em
Chicago. — Deu-lhe os dois números de telefone. — São amigos e estão instruídos para nãomencionarseunomequandoeuligar.
—Jálhedissequeestouvelhoetenhomedodemorrer.— Mas disse também que temmedo de ir para o inferno por causa dasmaldades que fez, no
“estritocumprimentododever”.Ajudeagentee...contecomaabsolviçãoeterna.Nãoseesqueça!—ErepetiuosnúmerosdetelefonedeGeorgeHannabyedopadreWycazik.— QuandovocêforpresaeestiversendointerrogadapelaKGB, lembre-sededizerqueminha
respostafoi“não”.— Seriamaravilhososevocênosdessealguma informaçãonaspróximasseisouoitohoras—
Gingercontinuava,semsealterar.—Estamosinteressadosemqualquertipodeinformação.Porfavor.Muitoobrigada.—Desligou,
semdar-lhetempopararepetiro“não”previsto.Que pena... Umamulher tão bonita, inteligente, interessante sobmuitos aspectos, prejudicada por
aquela certeza inabalável de que sempre conseguiria o que desejava. Alex admirava
tamanhaautoconfiançanoshomens,masdetestava-anasmulheres,edesligouotelefonecomumacaretadedesagrado.Imagine...Pensarqueelevoltariaaseenvolvernumassuntoexplosivocomoaquele.Queesperasse sentada! Pelo sim, pelo não, talvez apenas por força do hábito, anotara os dois números.Guardouacanetanobolsointernodopaletóesaiudacabinedemonstrandocontrariedade.
Namanhãdeterça-feira,DomeErniesaíramcedo,nojipedeJack,parafazerumreconhecimentopréviodosarredoresdodepósitodeThunderHill.Jackficounomotelparadormirumpouco,depoisdeterpassadoanoiterodandoporElko,comBrendaneJorja.
Océunubladoencobriaotopodasmontanhaseprometianeve,aprimeiragrandenevascadoano.Entretanto, nemocéu ameaçador conseguia tiraro entusiasmodeDomeErnie, porque, pelaprimeiravez,estavamfazendoalgumacoisaconcreta.Finalmen-
teentravamemação,depoisdetantosdiasdeansiedadeefaltadeperspectiva.Alémdisso,haviamdormido muito bem, sem pesadelos. Dom sonhara com uma sala muito clara, iluminada por uma luzdouradaebrilhante—comcertezaamesmasalaqueaparecianossonhosdeBrendan.EErniedormiracomoumjustodesdeoinstanteemquesedeitara,sempensar,nemporumminuto,queanoiteentrariapelajanelaparaapanhá-lo.
Osoutrostambémtiveramumaexcelentenoitedesono.E,jánocafédamanhã,Gingerbrindou-oscomnovaidéialuminosa,segundoaqualospesadeloseascrisesdefuga,medoousonam-bulismonadatinhamavercomaverdadeiraexperiênciapelaqualpassaramemjulho,maseramsimplesseqüelasdalavagem cerebral. Como a pressão subconsciente diminuiramuito, agora que podiam falar livrementesobresuaslembranças,erarazoávelsuporquenãovoltariamaseratormentadosporpesadelosoucrises.
Quanto a Dom, tinha ainda outra razão para sentir-se tão leve e bem-humorado: ninguémmais oolhava como se fosse um extraterrestre. A razão parecia simples: como seus poderes te-lecinéticosrelacionavam-sedealgummodocomaexperiênciadejulho,qualquerumdeseuscompanheirospoderia,maisdia,menosdia,fazervoarsaleirosoucadeiras.Talvezasituaçãosecomplicassenovamente,casonenhumdosoutrosdesenvolvessetaispoderes,mas,pelomenosporora,Domsentia-segratoeseguro.
Cantarolando baixinho, Ernie dirigia, rumo ao norte, pela estrada estadual, deixando para trás omotel e a rodovia; era o mesmo caminho que Jack seguira na véspera, ao chegar pelos fundos. Apaisagem começava a alterar-se, cada vezmenos verde emais rochosa, exibindo, à flor da terra, asformaçõesdegranito.Amedidaqueaestradasubiapararegiõesdetemperaturasmaisfrias,avegetaçãotornava-semais escura e cerrada, comoque tentandoprotegero solodos rigoresdo clima.Pinheiros,cedros,umououtrorarotufodegramaerguiam-sepeloscampos.
Haviam percorrido pouco mais de cinco quilômetros quando pela primeira vez viram neveacumuladanoacostamento.Deiní-
cio,apenasumacamadafina,queseespessavaàmedidaqueavançavam.—Podenevarumasemanasemparar,queessaestradaestásempredesimpedida—Ernieexplicou
—,pelomenosatéThunderHill.Depoisdodepósito,porém,opessoaljánãosepreocupamuitocomalimpeza.
Passaramporalguns ranchos isoladose, adezesseisquilômetrosdopontodepartida, chegaramàentradadodepósito,àdireitadaestrada.
—Nãopassoporaquihámuitosanos—disseErnie.—Elesandaramreforçandoessaestrada.Tenholembrançadequeeramenor,menos...imponente.
Aalgunsmetrosdaestrada,umaplacainformavaqueolocalconstituía“áreadesegurança”.Apartirdali, começavauma alamedadepinheiros, de umverde tão escuroqueparecia preto à luz damanhã.Cincometros adiante, nova placa alertava que a passagem estava proibida. Reforçando o aviso, umafaixadeaçofixadanoasfaltoexibiafileirasdepregosaltosepontiagudos,comoclaroobjetivodefurar
os pneus de qualquer veículo que se atrevesse a desobedecer as instruções. Depois dos pregos, umacercadeteladeaço,pintadadevermelho,impediaoacessoàenormeguarita,fechadacomportadeaçoàprovadebalas.
Ernie diminuiu amarcha e passou frente à entrada do depósito, apontando para um dos lados dacerca.
—Veja,alinochão,antesda-casadaguarda...deveserumaespéciedesensoreletrônico...Comcerteza, eles têm câmaras de televisão espalhadas por todo canto... Só se pode entrar depois querecolhemafaixadepregoseabremoportão.Emesmodepoisdetodaessaoperação,podeapostarqueháguardasarmadosnaportaria.
A construção era protegida por uma alta cerca de arame farpado, junto à qual havia uma placaamarela.
— “Atenção! Cerca eletrificada” — Dom leu em voz alta, e nenhum dos dois fez qualquercomentário.
Acercarodeavatodooperímetrododepósito,atéalinhadeárvoresnocomeçodafloresta,masnãohaviavegetaçãonenhumanaáreaondeestavainstalada;decadaladodoarame,estendia-seumaespéciedeterradeninguém,commaisdecincometrosdelargura.
ObomhumordeDomapagou-secomovelasoprada.Estavacertodeencontrarpoucasegurançaàentradadodepósito.Afinaldecontas,mesmodepoisdepassarpelaguarita,oqueseavistavaàfrenteeraumvastogramado,jáqueaverdadeiraentradaparaodepósitodeThunderHillestavaprotegidapelasdescomunaisportasdeaço,commaisdedoismetrosdeespessura,naprópriaencostadamontanha.Comaproteçãodasduasportas,pareciadesnecessáriomantercontroletãorígidosobrequemseaproximava.Talvezfossedesnecessário...maseraexatamenteoqueforamontadoali,juntoàestrada.Issosignificavaque o segredo escondido por trás de todo aquele aparato era ainda mais importante do que haviamimaginado'eprevisto.Maisimportante,maisexplosivo,maisameaçadordoqueumataquenuclearcapazdevarreravidadasuperfícieterrestre.
— Afaixadepregosénovidade—informouErnie.—Oportãodeaçofoi reforçado.Acercaexisteháanos,masnãoeraeletrificada.
—NãohámenorchancedeentrarmosEmboranenhumdelesconfessasse,osdoistinhamesperançasdeaproximar-se,pelomenosdasduas
portasdeaçoe,espiarasterrasqueacabavamdeseranexadasàareadodepósito,glebaqueoministériocompraradeBrusteDirkson.Comsorte,talvezdescobrissemumaououtranovidadequeosajudasseaentendertamanhomistério.Domnãoimaginavaquepudessementrarnodepósitosubterrâneo,oqueseriapraticamenteimpossívelsemumsalvo-conduto.Dequalquermodo,olhandoparaThunderHillapartirdopontodevistasegurodesuacamanomotel,aidéianãolhepareceracompletamentedescabida.Ali,frenteàentrada,sim,eraloucuratotal.
Dompensouqueseuspoderestelecinéticospoderiamserúteisparaabrir-lhescaminho,masdescartouaidéiatãodepressacomoativera.Atéqueaprendesseacontrolarospoderes,nãovoltariaatestá-los.Tinhamedo.Pressentiaqueeram
muito fortes, capazes de causarmorte e destruição em larga escala, caso não conseguisse detê-los nomomentocerto.
— Ora...—Ernieergueuassobrancelhas—,nemvocênemeu imaginavamosquepudéssemosentrardançandopelaportadafrente,nãoé?Vamosaproveitaredarumaolhadanessacerca.—Pisounoaceleradore,aopassarosolhospeloespelhoretrovisor,assobioubaixinho.—Paraseugoverno...estãonosseguindo.
Domsaltounoassentoeolhouparatrás.Amenosdecemmetros,aproximava-seumcarroestranho,
derodasmuitomaislargasqueascomuns.Tinhasobreacabineumasériecompletadefaróisdemilha,osdocentromaioresqueoslaterais,naquelemomentoapagados.Afrentedomotor,umalargapálimpa-neve, também desligada, erguia-se um palmo acima da estrada. Não era impossível que o carropertencesse a algum fazendeiro da região,mas alguma coisa dizia aDomque era umveículomilitar.Naoseviaomotoristanemointeriordacabine,protegidospelosvidrosescuros.
—Mas,seestãonosseguindo—comentou,voltando-separaErnie—,porqueficamtãoàvista,aínomeiodaestrada?
— Estão atrás de nós desde o momento em que saímos domotel— disse Ernie.—Quandodiminuoamarcha,elesdiminuem;quandoacelero,elesaceleram.
—Seráquevãonosfazerparar?—Sequerembriga,quevenham.Masachoquesóqueremnosassustar.—Esperoquevocênãoosdeixezangados,sóparaprovarqueopessoaldaMarinhaémelhorde
brigaqueaturmadoExército...EuapostonaMarinha!Aestradatornava-secadavezmaisíngreme,océumaiscinzento,asárvorescadavezmaisescuras.
Eoestranhocarronãoseafastavadeles.AmãedeEmmycorreuaabriraportaaoprimeirotoquedecampainha,estremecendoàgolfadadear
gelado.— Desculpe vir sem telefonar — disse o padre Wycazik, entrando na sala. — Mas estão
acontecendocoisasmuitoestranhas,eeuprecisavasaberseEmmy...Parou de repente, no meio da frase, porque percebeu que a sra. Halbourg tinha os cabelos
despenteados,orostoaflito,osolhosarregalados.— C... como foi que o senhor descobriu?!— perguntou, a voz trêmula.— Não contamos a
ninguém...Comofoiqueosenhorsoube?!—Soube...oquê?Semresponder,amulhercorreuparaaescada,fazendoumsinalparaqueStefanaseguisse:—Venha...venhadepressa!Depois do que vira e soubera no apartamento dos Mendoza, o velho cura esperava encontrar
surpresas na casa deEmmyHalbourg,mas não estava preparado para o clima de catástrofe total queimperavaali.Notopodaescada,nohalldedistribuiçãodosquartos,opaidameninaesperavaamulher,segurandoamãodeumadasoutrasfilhas.Estavamdiantedeumaportaabertae,comosenãotivessemcoragem para entrar, olhavam estupefatos para o quarto, tentando decidir se o que viam era obra deDeus ou do demônio. De dentro do quarto vinha um som cadenciado, como o de um objeto sendoarrastado,parado,empurradoparatrás,parado,arrastadonovamente.EorisocristalinodeEmmy.
Osr.Halbourgvoltou-se,orostolívido.—GraçasaDeusqueosenhorestáaqui!—exclamou.—Nãosabemosoquefazer.Nãopodemos
pedir socorro, porquede repente issopassa e, quando aspessoas chegarem faremospapel de loucos.Agoraqueosenhorchegou,estoumaistranqüilo.
Noquarto,Stefanviuoque eranormal emquartosdemeninas em transiçãopara a adolescência:meiadúziadeursinhosdepelúcia;enormesfotosautografadasdecantoresdosquaisjamaisouvirafalar;um cabideiro com os mais estranhos tipos de chapéu; um par de patins; um gravador; uma flautaesquecida no estojo aberto.Outra das irmãs deEmmyestava de pé nomeio do quarto, paralisada desusto.
Pulandonacama,aindadepijama,Emmypareciaplenamentesaudável;sacudiaumtravesseiroeriasem parar. A sua frente, dois ursinhos de pelúcia dançavam, suspensos no ar. Era uma valsa, e elesgiravam,abraçados,comogentedecarneeosso.
Não eram os únicos bailarinos em ação. Pelo assoalho, um par de patins também dançava, o pédireito rodando junto à porta do banheiro, o esquerdo dando voltas ao redor do banquinho dapenteadeira.Nocabideiro,oschapéusagitavam-seaoritmodavalsa.Naestantedelivros,umursinhosolitáriosaltavaebatiapalmas.
Stefanentroue,desviando-sedosdançarinos,aproximou-sedacama.—Emmy?—chamou.—Oh!—ameninaexclamou,voltando-separaele.—Eopadreamigodo“Bolota”!Tudobem?
Istoaquinãoestálindo?Nãoé...umamaravilha?—Evocêqueestáfazendoisso?—Stefanfezumgestonadireçãodosursinhos.—Eu?!—Emmyfranziuassobrancelhas.—Não,claroquenão.Opárocopercebeu,noentanto,que,quandoagarotaolhouparaele, os ursinhos desequilibraram-se no ar e, embora não caíssem, perderam o ritmo. Percebeu
também que o fenômeno causara alguns estragos: um abajur quebrado jazia sobre o tapete, uma fotopendurada juntoàcabeceiradacamaestavarasgadaeoespelhodapenteadeiraexibia feia rachadura.Emmyacompanhou-lheoolhareexplicou:
— No começo eume assustei,mas agora está tudo calmo. E engraçado... os ursinhos não sãoengraçados?!
Enquanto amenina falava, a flauta ergueu-se do estojo e parou, flutuando à esquerda do casal debailarinos.Entãocomeçouatocar...nãonotasesparsasoudesafinadas,masumamúsicacompleta,suaveebonita.Emmypuloudealegria,exclamando:
—Minhamúsica!Éamúsicaqueeutocavasempre!—Evocêestátocandoagora—Stefandisse.—Não—replicouela,semtirarosolhosdaflauta—,nãotocoflautahámaisdeumano,desde
quemeusdedoscomeçaramadoer.Jáestouboa,masaindanãopegueinaflauta.— Você está tocando sem precisar dasmãos— insistiu o padre. A garota voltou-se devagar,
começandoaentender.—Eu...?—murmurou.Noinstanteemquedesviouaatenção,aflautadesafinoueosursinhospararamdedançar.Elatornou
aolhá-los,eobailerecomeçou.—Eu?—repetiu.—Eu...eu!Ovelho padre respirou fundo, imaginando o queEmmy sentia; então envolveu-o uma emoção tão
intensa e profunda que seus olhos se encheram de lágrimas. Haviamenos de ummês, aquelameninaestavaparalíticanumacama,semmexerasmãosouaspernas,sempodervestir-seoupentear-se,semteramenoresperançadevoltaràvidadeantes...semfuturo,àsportasdamorte.Eagorafaziaseusursinhosdançaremnoaretocavaflautaapenaspensandonamúsicaquequeriaouvir.
Stefantevevontadedecontar-lhequeaqueledomerapartedacurarealizadaporBrendan,mas,sefalasse qualquer coisa, teria de explicar por que o “Bolota” conseguia operar tais prodígios, e nãosaberianemcomocomeçar.Alémdomais,nãodispunhadetempoparacontar-lheopoucoquesabia.Jápassavadasnove,edeveriaestaremEvanston.Amedidaqueamanhãavançava,sentiaquenãopodiaperderum segundo.Naquelepasso, acabaria sendoobrigado a apanharumavião evoar paraNevadaantesdeacabarodia.AjulgarpeloqueaconteciacomTolkeEmmy,omelhordafestaestavamesmoemElkoCounty...eStefanWyca-zikqueriatomarpartenoespetáculo,aindaquefosseapenasumobservadormudoeassustado.
Lembrou-se das palavras de Tolk, no apartamento dos Mendo-za: “Há mais...” O patrulheirodescobriraporacasopartedeseuspoderes.TambémporacasoEmmydescobriraoutroaspectodos
mesmospoderes,o suficienteparaviraracasapeloavesso.Breve,comcerteza,haveriaursinhosdançandonoquartodosfilhosdeWintonTolk.
—Osenhormesmopodecuidardetudo?—OpaideEmmyenfiouacabeçapelaportaefitou-ocomolhosansiosos.
—Porfavor—pediuasra.Halbourg,aproximando-seportrásdomarido.—Queremosquesejafeitoomaisrapidamentepossível.
—Tudo...oquê?—perguntouopadre,intrigado.—Oquevocêsqueremque...—Oexorcismo,éclaro!—ocasalrespondeuaomesmotempo.EntãoforaparaissoqueamãedeEmmyoreceberacomtantanaturalidade,quasecomalívio.—Nempensar!—exclamouStefan.—Nãoháamenornecessidadedeexorcismo.Emmynãoestá
possuídapelodemônio...Queidéia!Deusdocéu...Nadadisso!Enquanto ele falava, um dos ursinhos que estavam na cadeira de balanço saltou para o chão e
caminhouemsuadireção,gingandonasperninhasredondasemacias.Winton dissera que precisava de tempo para aprender a controlar seus poderes. Emmy porém,
mostrava-secapazdefazeroquequizesse,senhoradesuasnovashabilidades.Stefannãopôdedeixardepensar que as crianças realmente se adaptam a quaisquer circunstâncias melhor que os adultos, porestranhaseinacreditáveisquesejamascircunstâncias...
Aindaassustados,semsaberoquepensar,ospaisdameninaentraramnoquartoeolharamemvolta,tentandodecidirseestavamdiantedeumpresentedeDeusoudodiabo.Opárocobalançouacabeça,preocupado.Erafáciladivinharoqueestavamsentindo.Emmypareciabem,osursinhoseramlindos,aflautasoavacomoummilagre...e,noentanto,tudoeraestranhodemais,incompreensível,assustador!
Pelaprimeiraveznavida,ootimismoinabaláveldoinabalávelfilhodepolonesesvia-sediantedeumbecosemsaída.
Depois de falar comAlexanderChristophson,Ginger acompanhou Faye até a fazenda de Elroy eNancyJamison,novale
Lemoille,avintequilômetrosdeElko,osmesmosJamisonquevisitaramosBlocknanoitede6dejulhodoanoretrasado.Claroquetambémpresenciaramosacontecimentosdaquelanoitee,portanto,nãohaviadúvidadequeforamsubmetidosàlavagemcerebralcomotodososoutros.Detudoqueocorrera,porém, restava-lhes apenas a lembrança falsa de terem voltado para casa levando Ernie e Faye paraalgunsdiasdefériasnafazenda.AmesmalembrançaqueosBlockguardavam...atépoucotempoantes.
AidéianãoeracontaraosJamisonoquedescobriram,mastentarsabernamedidadopossívelseocasal sofria algum tipo de perturbação psicológica. No caso de confirmar-se a hipótese, então sim,pretendiam explicar-lhes a verdade e convencê-los a mudar-se para o motel. Do contrário, não lhesdiriam.Tambémparaeles,comoparaAlexChristophson,aignorânciadosfatosconstituíaumsegurodevida.
Deacordocomaestratégiaque JackTwistdefinirananoite anterior, fariamumaúnicavisita aosJamison.Senãohouvessesinalaparentedequeobloqueiocomeçavaafraquejar,deixariamosdoisdelado,poisnãotinhamtempoaperder.AindaconformeaspalavrasdeJack,“nemodemônioempessoa”convenceríaalguémdequelheroubaramtrêsdiasdopassado.Elenãotinhadúvidasdequeosinimigosultimavamospreparativosdeataque.
A viagem, na caminhonete do motel, foi tranqüila e agradável. Com pouco mais de quinzequilômetrosdecomprimentoecincodelargura,ovaleavançavaatéosopédosmontesRuby.Apesardaneve,de longeem longeviam-secamposondeembrevecomeçariaa semeadurado trigoedacevadaque,quandochegasseaprimavera,cobriríamovaledeverde.
Asterrasdepastagensegadoconcentravam-senaregiãomaisalta,ondeseoriginaraapropriedadedosJamison.Aprincípio,ocasaldedicara-seàcriaçãodegado,mas,comaextraordináriavalorizaçãodasterrasdecidiramvenderboapartedafazenda.Agora,jábeirandoossessentaanos,cuidavamdeunsvintehectaressituadosnaregiãopróximaaosopédasmontanhas;tinhamapenastrêscavalosealgumasgalinhas.
Aosairdaestradaquecortavaovaleparatomarorumodaencosta,Fayecomentou:—Achoqueestãonosseguindo.Gingerolhoupeloespelho retrovisor à suadireita eviuumcarro semplacas, a algunsmetrosde
distância.—Serámesmo?—perguntou.—Sópodeser.Estãoatrásdenósdesdeopostodegasolina,nacidade.—Podesercoincidência...QuandoseaproximaramdaentradadapropriedadedosJami-son,Fayepassouparaoacostamentoe
diminuiuamarcha,esperandoareaçãodooutromotorista.Serealmenteaseguia,eleteriaqueparar;senão,ultrapassariaacaminhoneteecontinuariaseucaminho.Ocarroparou.
—Aíestásuacoincidência—Fayecomentou.—Elesnemsepreocupamemdisfarçar...— Eporquesepreocupariam?SeJackestácerto, jásabemtudoquesabemos,pelomenosaté
agora.Sabemqueestamosjuntos,organizandonossastropas...enãotêmmotivoparaseesconder.Talvezpensematéquenosintimidamcomessabrincadeiradegatoerato.
Elamanobrou,pisounoaceleradoredobrounaentradaquelevavaàcasadosJamison.Peloespelho,Gingerviuocarromanobrarparasegui-las.
—Ouvãonospegar,ousóqueremsaberondeestaremos,casodecidiremagarrar-nosatodosdeumavezsó.
Faziaaindamaisfrionaestradinha,ladeadadepinheirosantigosealtos,quemaldeixavampassaraluzfracadamanhã.
Sentadoaoladodomotorista,acaminhodaentradadodepósito,olhandosemveragramacrestadade frio e os vestígios de neve sobre a terra endurecida, o coronel Falkirk pensava no que poderiaacontecersevazasseosegredodeThunderHill.
Dopontodevistapolítico,ThunderHillfariaoescândalodeWatergateparecermerabisbilhoticederepórteresamadores.As
maisconfiáveiserespeitadasinstituiçõespolíticasdopaís,dasmaioresàsmenores,envolvidasnumgrandecircodementiras,falsidadesehistóriasmalcontadas...
Seosegredoformantido,pensava,provaremosaomundoquenossasdiferençasinternas...asbrigase o ciúme entreCIA,FBI, ServiçoSecreto doExército, ForçaAérea... sao superficiais.Mostraremosque,diantedeumverdadeiroperigo,deumaameaçareal,somospatriotasobastanteparaesquecerasdiferençaseuniresforços.Mas...seosegredovazar...nãosobrarápedrasobrepedra!Oescândaloserátãograndequeopovoamericanoperderáafénoshomensqueescolheuparagoverná-loenosistemadequetantonosorgulhamos.Verdadequepoucagentesabedetudo...nomáximomeiadúziadosmelhoresagentesdoFBI,doisoutrêsdaCIA.AmaiorpartedosagentesenvolvidosnaoperaçãonãofazidéiadoqueháemThunderHill...Porissoanotíciaaindanãotranspirou.Masoschefõessabem!OsdaCIA,doFBI,doEstado-MaiordoExército.Sem falarnoministrodaGuerra,nopresidente e emdoisde seusprincipaisassessores,novice-presidente...Todasessascabeçasvãorolarquandoalguémmaissouberdaverdade.
Acatástrofepolíticaseriaapenaspartedadevastaçãototal.Umacomissãonomeadapelopresidente,
trabalhando em sigilo, estudava, durante anos, as possíveis conseqüências de uma hipotética crisesemelhante à que brotaria em Thunder Hill se o segredo fosse divulgado. Eram físicos, biólogos,antropólogos,sociólogos,teólogos,economistas,educadoresecentenasdeoutrosespecialistasemtodasas áreas do conhecimento humano; seu primeiro relatório, altamente confidencial, tinha mais de milpáginas. Le-land conhecia-o de cor, porque trabalhara com a equipe, como especialista em estratégiamilitar,eredigiraalgumasconclusões.Orelatórioeramuitoclaro:naeventualidadedeumacrisetotaldevalores, o mundo jamais voltaria a ser o mesmo. As sociedades humanas e as culturas conhecidassofreriam mudanças radicais e definitivas. Independentemente da natureza da crise, considerando-seapenasaprofundidadedosvaloresafetados,
previam-semilhõesdemortes,emtodooplaneta,nosprimeirosdoisanos.Ao aproximar-se da gigantesca porta de aço encravada namontanha, o tenenteHorner diminuiu a
velocidade, mas não parou; entrou à direita e encaminhou-se para um pequeno estacionamento, ondehaviaalgunsveículos.
Comdezmetrosde altura e seisde largura, cadauma, asportasde açoerammuitopesadasparaabrir-se toda vez que alguém precisava entrar ou sair. Faziam um barulho que podia ser ouvido aquilômetros de distância e provocaravam um deslocamento de ar visível à volta da montanha. Alémdisso, demoravam cinco minutos para abrir-se totalmente. Para evitar esses inconvenientes, havia naencosta,àdireita,umaportaigualmenteinvulnerável,porémdedimensõesreduzidas,suficienteparadarpassagemaumhomemdecadavez.
Omaioremaisbemprotegidocofredomundo.Nãohavia lugarmelhordoqueThunderHillparaesconder o segredo da noite de 6 de julho.Naquela fortaleza inexpugnável ele estaria sepultado parasempre.
Leland e o tenenteHorner saltaramdo carro e dirigiram-separa a portamenor, quase tãopesadaquantoaprimeira,porémacionadaporummecanismomaissimples,emboratotalmenteseguro.Quatroalgarismos,digitadosnumpaineleletrônicojuntoàfechadura,abiraram-naquasesemruído.Osnúmeroseramtrocadosacadaduassemanas,eospoucosfuncionáriosquetinhamacessoaocódigodecoravam-nocomo parte da rotina de trabalho. Leland adiantou-se, digitou o código, e a porta deslizou sobre ostrilhos.
Alicomeçavaoprimeirodeváriostúneisquelevavamaocoraçãodamontanha:umtúneldequatrometrosdecomprimentoe trêsdediâmetro,profusamente iluminado.Ao final, umacurvaà esquerdaeoutraporta,idênticaàprimeira,quenãopodiaserabertaatéqueaentradaexternaestivessenovamentetrancada.Lelandtocouumterminaldecomputadorsensívelàtemperaturadamãoeouviuozumbidodaprimeiraportasefechandoasuascostas.
Noinstanteemqueafechaduraestalou,entraramemoperaçãoasduascâmarasdevídeoinstaladasnotetodotúnel,queacompanharamosdoishomensnadireçãodasegundaporta.Nãohaviaolhohumanoatrás das câmaras, nem diante dos monitores dos terminais. O sistema era operado eletronicamente,atravésdeumcomputadorprogramadoparapermitirexclusivamenteapassagemdopessoalautorizado.Uma precaução adicional, à prova de erro ou de traição, prevendo a hipótese de algum descuidoda guarda, doloso ou não. O sistema de segurança que controlava o acesso a Thunder Hill eraindependente,semligaçãocomocomputadorcentraldabasenemcomomundoexterno,oqueotornavavirtualmente invulnerável a qualquer equipamento eletrônico que fosse usado para acioná-lo, tanto dedentroquantodefora.
QuandoocarrodeLelandpassarapelaguarita,umdossoldadosdigitaraumcódigosecretoemseuterminaldecomputador.Comisso,acionaraosistemadesegurança,que“reconheceu”LelandeHornernoinstanteemqueascâmarascaptaramseusrostos.Enquantoosdoiscaminhavamparaasegundaporta,
asimagensiniciaiseramcomparadascomosregistrosholográficosarmazenadosnamemóriadosistemadesegurança,considerando-se,paraacomparação,quarentaedoisdetalhesdoqueixoà testadecadaum.Nãohaviadisfarceoumáscaraquepassasse incólumepelo examedas câmaras.Seumúnicodosquarentaedoisdetalhesregistradosnãocoincidisseexatamentecomaimagemcaptada,soariaumalarmeemtodaaáreasubterrâneadabase,otúnelseriabloqueado,osistemadearcondicionadoliberariaumgásquefariaadormeceropretensoinvasor.
Aportainternanãotinhafechadura,trancaoucódigonuméricoaserdigitado.Aesquerda,naparededotúnel,haviaapenasumaplacadevidro,quadrada,comdozecentímetrosde lado;Lelandcolocouapalma da mão esquerda sobre a placa, pressionou-a e esperou um segundo, talvez menos. A portacomeçouaabrir-sedevagar,depoisqueasimpressõesdigitaisdeixadasnovidro
foramcomparadasàimagemdascâmarasedadascomo“verdadeirasecoincidentes”.—Entradamaisdifícilsóadoparaíso—Hornersuspirou.—Enganoseu—disseLeland.—Aquiémaisdifícil.Osdoisentraramnum túnelnatural, apenas retocadopormãoshumanas.Nãoseviaaabóbadada
caverna,muitoalta,metrosacima,mergulhadanaescuridão,porqueaslumináriasforamrebaixadasatéaalturanormal,criandoailusãodeumsegundoteto.Commaisdesetemetrosdelargura,otúnelavançavacercadecentoecinqüentametros.Emalgunspontos,via-searochanatural,masdelongeemlongeerapossível perceber os pontos em que a passagem fora alargada a golpes de picareta ou explosões dedinamite.Haviaespaçosuficienteparacargaedescargadoscaminhõesquedeixavamossuprimentosàentradadosgrandeselevadoresencarregadosdetransportá-losparaospisossubterrâneos.
ApenasumguardavigiavaaentradadasalacujaportaLelandeHornerabriram.ConsiderandoqueThunder Hill estava distante de tudo, protegida pelos mais sofisticados equipamentos de segurança;considerandoqueninguémentravaalisempassarporinspeçãoeletrônicarigorosa,umúnicoguardaeramaisquesuficiente,naopiniãodeLeland.Provavelmente,oguardatinhaamesmaopinião,pois,comorevólvernocoldre,aspernascruzadaseumapastilhanaboca,liacomgostoumromancepolicial.
Vestiacasacodeinverno,poisasáreasintermediáriasdodepósitonãotinhamcalefação;apenasosescritórioseasáreasdeconvivênciaelazereramaquecidas.TodaaenergiaconsumidaemThunderHillvinhadeumapequenausinahidrelétrica construída àsmargensdeum rio subterrâneo.Aproduçãodeenergia era grande, mas não bastava para a calefação das cavernas, onde a temperatura jamaisultrapassava a marca dos doze graus centígrados, perfeitamente suportável para quem se vestisseapropriadamente
— Bom-dia,coronelLeland... tenenteHorner...—Oguardalevantou-se.—OssenhorespodementrarparafalarcomodoutorBennell.Jásabemondeencontrá-lo.
A esquerda, a três metros de distância, brilhava a superfície polida do revestimento interno dasgigantescasportasdeentrada.LelandeHornerderam-lhesascostas,dobraramàdireitaemergulharamnocoraçãodamontanha,rumoaoselevadores.
HaviaemThunderHillascensoreshidráulicosdetrêstamanhos,omaiordosquaiseraidênticoaosmodelosutilizadosparaotransportedeaviões.Alémdeequipamentoeprovisõesequivalentesamaisdedois bilhões de dólares— comida congelada, remédios, aparelhagem hospitalar, roupas, barracas decampanha, armamento leve, fuzis, morteiros, artilharia de campo, munição, veículos militares e vinteogivasnucleares—,ThunderHillaindacontavacomequipamentoaéreo.Emprimeirolugar,cinqüentaeoito helicópteros, trinta dos quais equipados com armamento antitanque, e oito de fabricação anglo-francesa, destinados a transporte em geral. Nenhuma aeronave convencional, mas vinte jatos defabricaçãoinglesa,dotadosdepropulsoresespeciais,quelhespermitiamdecolarepousarverticalmente,semnecessidadedepista.Nocasodeumataquenuclearlimitado,seguidodeinvasãodetropasinimigas,
tantohelicópterosdetransportecomoostransportadoresdejatospodiamserconduzidosdeelevadoratéopisodesaídaedecolaremqualquerdireção.
Porora,entretanto,nadapareciaexigirousodoequipamentoaéreodeThunderHill;assimLelandeHorner passaram direto pelos ascensores hidráulicos e entraram num dos três elevadores comunsreunidosaofundo.
Noterceiropisoinferiordocomplexo,oúltimododepósito,eramguardadosequipamentosmédicos,alimentos,armasemunição;assalascalafetadastinhamválvulasreguladorasdepressãoeportasàprovadeexplosão.Nosegundopiso,intermediário,ficavamosveículos,asaeronaveseopessoalresidenteemThunderHill.
LelandeHornersaíramdoelevadornosegundopiso,diretamentenumcompartimentodeparedesdepedra,muitobemiluminadoemseusquasequarentametrosdediâmetro.Serviadeante-salaparaquatrooutrassalasescavadasnarochaeque,por
suavez,abriam-separamaisumasériedeaposentos.Nasmalhasmaioresdessateiamergulhadanamontanhaguardavam-se,entreoutrascoisas,oequipamentoaéreo,osjipeseostanquesblindados.
Três das quatro salas que davampara a ante-sala diante do elevador não tinhamportas, pois nãohavia risco real de incêndioou explosão à altura daquele nível subterrâneo.Aquarta câmara, porém,estavafechada,ebemfechada,porquealisemantinhaosegredodanoitede6dejulho.
Apoucospassosdoelevador,Lelandparoueolhouparaaportaasuafrente.Nãotiveramtempodeconstruirumaportaigualàsdaentradadodepósito,masaquelaeraperfeita,comsuastorasdemadeiraeseusoitometrosdealturaporvintedelargura.Semprequeparavaali,Lelandlembrava-sedogigantescoportalconstruídopelosnativosnoprimeiroKingKong.Eestremecia,pensandonoqueaconteceria sesuafortalezafosseviolada.
—Aindaseassusta,nãoé?—perguntouHorner.—Vocênão?—Eutambém!Aesquerda,naporçãoinferiordaquelabarricada,haviaumapequenaporta,daalturadeumhomem,
quedavaacessoàcâmara;umguardaalipostadoexaminavaascredenciaisdosvisitantes.Asatividadesda“fortaleza”deLelandnadatinhamavercomarotinadeThunderHill,eaáreaeraproibidaanoventaporcentodopessoaldabase.
Ao redor da ante-sala dos elevadores, nos espaços de rocha entre as quatro aberturas quedavamacessoàsdemaiscâmarasinternas,haviaváriasdivisóriasconstruídasnocomeçodosanos60.Naquelaépoca,usavam-sedivisóriasparasepararescritórios,salasdetrabalhooulocaisdereuniãodosoficiais,engenheiros e superintendentes de projetos do Exército. Com o passar do tempo, as grandes câmarassubterrâneas foram cada vezmais subdivididas, até que uma verdadeira cidade enterrada começou asurgir,comquartos,lanchonetes,salõesdejogos,laboratórios,centrosdemanutençãodeequipamentos,salasdecomputadoresemuitosoutroscompartimentos,PessoaldoExércitooudoGoverno,
designado para prestar serviços junto à base, em períodos de um ou dois anos, ocupava asinstalações. Nas salas do segundo piso havia calefação, excelente iluminação, linhas telefônicasinternaseexternas,cozinhas,banheirosmodernosetodososconfortosdacivilização.Eramconstruídasapartir de painéis demetal revestidos de esmalte azul-claro, branco ou bege, com janelas pequenas eportasestreitas.Apesardenãoterrodas,lembravamtmilersdispostosemcírculo,comoseumatribodemodernos ciganos tivesse descoberto um modo novo de acampar e resistir às tempestades de neve,escondendo-sedentrodaterra,acemmetrosdasuperfície.
Lelandvirou-se,deuascostasàportaproibidaedirigiu-seaumdostmilers,noqualfuncionavaoescritóriododr.MilesBennellHorner,comosempre,acompanhava-o.
MilesBennelltransferira-separaThunderHillnoverãoretrasadoafimdeiniciaraanálisemetódicaecientíficadosacontecimentosdodia6dejulho.Desdeaquelaépoca,deixaraabaseapenastrêsvezes,esempreporpoucosdias.Oqueeradevertransformara-separaeleemmissão.Pareciaobcecado...oulouco.
Uma dúzia de oficiais estava na sala, alguns uniformizados, outros à paisana; alguns apenas depassagem,outrosconversandoemgrupos.Lelandpassouporelessemviraracabeça,imaginandoquemseriamaqueleshomenscapazesde trabalhardurantesemanasemesessemvera luzdosol.Recebiamumaajudadecustoconsiderável,atítulode“riscoadicional”,oque,paraLeland,aindanãoconstituíacompensaçãosuficientepara tamanhosacrifício.ThunderHillnãoera sufocantecomoShenkfield,masestavalongedeserconfortável.
Lelandsuspeitavaquecomeçavaasofrerdeclaustrofobia,poispassavadiasediascomasensaçãodeestarenterradovivo.Oquepoderiaserestimulanteparaummasoquistaassumidocomoele,revelava-sesimplesmenteinsuportável.Eraumtipodedorquenãocausavaprazernenhum.
Odr.MilesBennell tinhaaspectodoentio.ComotodosemThunderHill,perderacompletamenteotomrosadodapele,de-
poisdemeses longedo sol.Oscabelos escuros e encaracoladose abarbacrescida tornavam-ríoaindamaispálido.Aluzesbranquiçadadaslâmpadasfluorescentes,pareciaumfantasma.Cumprimentouosrecém-chegadoscomumacenodecabeça,masnãoselevantounemestendeu-lhesamão.
Leland achou melhor assim. Não era amigo de Bennell... ao contrário, odiava-o... Além disso,começava a suspeitar dele. Todos os cientistas envolvidos no projeto davam-lhe a impressão de nãoseremnormais,nemcompletamentehumanos.Seseuinstintoestivessecerto,quantomenoscontatofísicotivessecomeles,melhor.
Na voz fria que sempre intimidara os subalternos, reduzindo-os à mais miserável subserviência,Lelanddespejouseusermão:
— Das duas uma: ou o senhor foi negligente no controle da segurança desta unidade, o queconfiguracrimecontraasegurançanacional,oufoicúmplicedeumcrime.Nosegundocaso,éotraidorqueestamosprocurando.Agora,ouçacomatenção...Voudescobrirquemfoiofilhodaputaquemandouasfotografiasparaastestemunhas.Voutrabalharcommeushomens...Etenhacertezadequeosdetetoresde mentiras não aparecerão quebrados nos momentos mais importantes, nem os interrogatórios serãosuspensos de repente, semmaiores explicações.Quero saber quem fez JackTwist voltar para cá... Equandodescobrir,acabocomele...Oinfelizvaidesejarternascidomosca,parapassaravidacomendobostadecavalo...
— Boa frase de efeito...mas inteiramente desnecessária. Tambémquero descobrir onde está afalhadasegurança.
Lelandtevevontadedequebrar-lheacara.EraporissoqueodiavaMilesBennell:odesgraçadonãotinhamedodenada.
Calvin Sharklemorava na agradável Rua 0’Bannon, num bairro de classemédia de Evanston. OpadreWycazik precisou parar duas vezes para informar-se sobre a direção a seguir. Na esquina daRua0’BannoncomaAvenidaScott,adoisquarteirõesdacasadeSharkle,avistouomovimento:carrosdepolícia,ambulâncias,equipesdetelevisãocorrendodeumladoparaooutrocomsuascâ-
maras.Apesardofrioedoventoforte,umamultidãodecuriososespalhava-sepelacalçadaepelosjardinsdascasasvizinhas.
O tráfego estava engarrafado, e Stefan decidiu estacionar na própria avenida, onde não foi fácilencontrar uma vaga. Saiu do carro e, alguns quarteirões adiante, começou a abrir caminho entre amultidão.Amedidaquefaziaperguntaseouviaexplicaçõesmaisoumenosdesencontradas,percebiaque
todosestavamnervososeestranhamenteassustados.Naverdade,havianoarumafascinaçãoimpiedosapelatragédiaalheiaeummedoinstintivodequeamesmadoratingisseatodos.
Nãohaviadúvidadequeaconteceraumatragédia.UmhomemderostoredondoebigodesgrossosdiziaaStefan:
— Você não viu na televisão?! O tal Sharkle, o “Tubarão!”, é assim que o chamam. Homemperigoso...Estáentrincheiradoemcasadesdeontem.Jámatoudoisvizinhoseumpolicial,eestácomdoisrefénsládentro.Sequersaber,achoqueosdoisestãofodidos...
Terça-feira demanhã, Parker Faine foi de avião até San Francisco e lá tomou uma conexão paraMonterey.UmahoradevôoatéSanFrancisco,umahoradeesperanoaeroporto,trintaecincominutosdeviagematéMonterey.Verdadequeo tempocorrera,poisumadaspassageiras,mulher jovemebonita,reconheceu-o,dissequeadoravaseusquadrosemostrou-seencantadacomseucharme.
Em Monterey, na agência locadora de carros, havia apenas um automóvel disponível, umcalhambequeverde-vômitoqueconstituíaverdadeiraofensaaosensoestéticodeumpintor.MasParkerFainenãotinhatempoaperder.
Bom nas retas, o carro ameaçava empacar nas subidas. Devagar, Parker finalmente chegou aoendereço queDom lhe dera: a casa deGeraldSalcoe, o homemque se hospedara noMotelTranqüi-lidadecomamulhereduasfilhasnanoitede6dejulhoequepareciatersumidodafacedaterra.Acasaeraimponente,emestilocolonialsulino,mashorrivelmentedeslocadanacostadaCalifórnia;situava-senomeiodeumenormeterrenogramado,à
sombradepinheirosfrondosos,eeracercadadearbustostãorecortadosqueafamíliadeviapagarsaláriointegralparameiadúziadejardineiros;oscanteirosestavamfloridosdevermelhoepúrpura,emplenomêsdejaneiro.
Parker manobrou o calhambeque pela entrada majestosa e estacionou em frente aos degraus quelevavam à varanda de gradis de ferro trabalhado. Já era hora de haver alguma luz acesa,mas a casaestavaàsescuras,comascortinasfechadas.Pareciavazia.
Parkersaltoudocarro,subiuaescadaeandoupelavaranda,semprereclamandodofrioedovento.Aneblinadissipara-senaregiãodoaeroporto,masali,naregiãomaisaltadacidade,aindaerasuficienteparaimpedirqueosolaquecesseaterra.NonortedaCalifórniaoinvernoerasempreúmidoefrio,oquenãoaconteciaemLagunaBeach.Prevendoofrio,Parkervestiraumacalçadeveludogrosso,camisadeflanelaxadrez,suéterdelãazuleja-ponadaMarinhacomdivisaetudo.Indumentáriarefinadaeoriginal,complementadaporinacreditáveistêniscordeabóbora.Aotocaracampainha,Parkerolhouparaospésefezumacareta:estavafantasiadodemais.Tocouseisvezes,esperandotrintasegundosentreumsinaleoutro,eninguémapareceu.
Navéspera,umhomemchamado JackTwist lhe telefonara àsonzehorasdanoite, deumacabinepúblicaemElko,paradizerque tinhaum recadodeDominickCorvaisis:dentrodevinteminutos, eledevia esperar uma chamada em determinada cabine de Laguna Beach. Faine trabalhava num quadrofantástico, iniciado às três da tarde, mas nem o trabalho o impedira de saber o que Dom queria; aoperceber do que se tratava, imediatamente concordara em ir aMonterey.Andava pintandomuito, nosúltimos dias, só porque era a única atividade que o fazia parar de pensar emDome em seus amigosreunidosnummotelnofimdomundo.Depois, informadodequeDomfaziaflutuarsaleiros,aseubel-prazer,decidiuquenemaTerceiraGuerraMundialoimpe-diriadeiraMonterey.
Eagoraaliestava,derrotadoporumaportafechada!Não,nãoqueriavoltardemãosvazias.TinhadeencontrarosSalcoe,nem
quefossenofimdoarco-íris.Paracomeçar,qualquercasadasvizinhançasservia.Osarbustoseogramadodificultavamumpoucoacaminhadaatéacasaaolado,eFainevoltouao
carro verde-vômito.Deu a partida, pôs amão na alavanca do câmbio emais uma vez olhou para asjanelas cada casa... Então viu um levemovimento nas cortinas, como se alguém estivesse espiando efugisseparadentroaovê-lolevantaracabeça.Sorrindo,soltouobrequeepartiu,devagar,emdireçãoàsaída.Sentia-serenascer...agoraque,outravez,brincavadeespião.
Ernje eDomestacionaramo jipe ao fimda estrada vicinal, e o carro de vidros foscos parou emseguida,aduzentosmetrosdedistância.Comospneusenormeseosholofotesdesinalizaçãoporcimadacarroceria,pareciauminsetogigante,prontoparaenfiar-senaterraaoprimeirosinaldeinseticida.Nãoseviasinaldemotorista.
—Vocêachaqueelesquerembriga?—Domperguntou,saltandodojipe.—Sequisessem,játeriammostradoacara.—Erniesoltavabaforadasdearnofriodamanhã.—
Queremsóficardeolho.Pormim,quesedanem!Voltaramaojipe,eapanharamasarmas:umaespingardacarregadacombalasespeciaisdecalibre
32eumfuzilSpringfield.A idéiaeramostraraoshomensdocarro-insetoqueestavamprontosparaabriga.
Daliemdiante,amontanhasubiaemdireçãooeste,eaflorestacomeçavaaadensar-se.Nadireçãoleste,contudo,aterraeraplana,secaenua.Aindanãocomeçaraanevar,porémventavacadavezmaisforte.Domencolheu-senocasacode invernoquecompraraemReno, invejandooabrigodenáilondeErnie, fechado até o pescoço, e suas botas forradas de pele. Felizmente, todos esses itens estavamincluídos na lista de compras que Ginger e Faye ficaram encarregadas de fazer em Elko: omaterialnecessárioparaaoperaçãodaquelanoite,incluindoroupasdeinvernopara
Domeparaosquenãoestivessempreparadospara enfrentaro frio.Naquelemomento, todaviaoventoofaziatremer.
Amboscaminharamatéopontoemqueamontanhacomeçavaasubir,paracontinuaraoperaçãodereconhecimentodoterrenoàvoltadeThunderHill.Aaltacercaeletrificadaseguiaadiante,penetrandonafloresta;derepente,deixavadeacompanharaestrada,dobravaparalesteedesciaemdireçãoaovale.Alihaviaumacamadadenevede trintacentímetros,easbotasdeErnieafundavamquaseatéocano.Continuaram andando acompanhando a cerca até um local de onde podiam ver as portas de aço daentradadodepósito.
Nãohaviaguardasnemcães.Doladoopostodacerca,anevebrilhava,muitobranca,semsinaisdepegadas,antigasourecentes,oquesignificavaquealinãohaviarondaregulardevigias.
—Ninguémdeixariaumlugarcomoesseentregueaoanjodaguarda—disseErnie.—Ofatodenão haver patrulhas de guarda significa que a segurança é eletrônica. Com certeza há ummilhão deaparelhosdevigilânciadooutroladodacerca.
Domespiounadireçãodocarro-inseto,preocupadocomojipe.Viuumhomemdeuniformeescuro,asilhuetarecortadacontraaneve.Nãoestavapertodojipe,nempareciainteressadonele.Paradojuntoàestrada,observavaosmovimentosdeErnieeDom.
Aovê-lo,Erniesegurouaespingardaporbaixodobraçoelevouobinóculoaosolhos.—EdoExército—disse.—Pelomenos,usaumcasacomilitar.Estádeolhoemnós.—Aliparado...?Nãoéestranho?—Eimpossívelseguiralguémnumdescampadocomoestesemaparecer.Eocaraestáquerendo
servistomesmo.Eleeaarma.Paraavisardequenãoestápreocupadocomnossosfuzis.—Porquê?—Porqueeletemumasubmetralhadorabelga.Umaarmafantástica.Seiscentostirosporminuto.Setivesseassistidoaonoticiáriodetelevisão,navéspera,opa-dreWycazikteriaouvidofalarmuitodeCalvinSharkle,cujonomeestavanasmanchetesfaziavintee
quatrohoras.Maselenãovia televisãoháanos,porquedecidiraqueeraperdade tempo.Achavaqueaquelasversõessimplificadasdefatosdavidaembotavam,ainteligência.Sentia-seenojadocomosexoe a violência que a pequena tela mostrava. Considerava tudo aquilo moralmente repulsivo. PoderiatambémterlidosobreCalvinnasprimeiraspáginasdaediçãomatutinadoTribuneoudoSun-Times,massaíra tão apressado da casa paroquial que nem pensara em jornais. Sem outras fontes, recolhiafragmentosdahistóriadeumoudeoutro,cercadopelamultidãoqueseacotovelavajuntoaocordãodeiso-lamemo.
FaziamesesqueCalSharkleandavaagindodemodoestranho.Osolteirãosimpáticoeamistoso,doqualtodososvizinhosgostavamnaRua0’Bannon,transformara-sederepentenumhomempreocupado,sorumbático,caladão.Viviadizendoaquemquisesseouvirquepressentia“quealgumacoisaimportanteeterrívelestavaparaacontecer”.LialivrosesotéricosefalavamuitoemAr-magedom.Passavanoitesemclaro,atormentadoporpesadelos.
No dia 2 de dezembro, deixou de dirigir, vendeu o caminhão e passou a andar pela vizinhançaanunciandoque“ofimestavapróximo”.Falavaemvenderacasa,comprarumterrenonasmontanhaseconstruir um abrigo antiatômico, conforme uma planta que encontrara numa revista especializada emsobrevivênciapós-guerranuclear.
— Mas não vai dar tempo— confessou à irmã, NanGilchrist.—Vou ter que adaptarminhaprópriacasa.
Nãosabiaoqueestavaparaacontecer,nãoentendiaaorigemdomedoqueotorturava,masgarantiaquenãosetratavadeguerranuclear,invasãorussa,colapsoeconômiconemqualqueroutracoisaqueosgruposalarmistasvaticinavampelaspraças.
—Nãoseioqueé—disseaNan—,masseiqueéestranhoehorrível...equeestámuitopróximodeacontecer.
Airmãlevou-oaomédico,que,semencontrarnenhumdistúrbioorgânico,diagnosticou“criseagudadestress”.DepoisdoNatal,
Calvin já não parecia o mesmo. Na primeira semana de janeiro mandou desligar o telefone,explicando apenas que “não se sabe como eles poderão nos encontrar. Talvez possam entrar pelotelefone...”Masnãosabiaoqueresponderquandoalguémlheperguntavaquemeram“eles”.
Ninguém,naverdade,imaginaraqueCalpudesserepresentaralgumperigo.Eraumhomemcalmoeassimforadurantetodaavida.Apesardoqueandavadizendo,nadaindicavaquesetornariaviolento.
Até que, namanhãdodia anterior, oito emeia,Carl atravessou a rua e bateu à porta deEdwardWilkerson,seuvizinhoevelhoamigo,dequemseafastaranosúltimostempos.
— Nãopossoser tãoagoísta—disse-lhe.—Minhacasaestápreparadaparaoataque,eadevocêsévulnerável.Porisso,quando“eles”chegarem,sevocêsseassustaremequiseremirparalá,tudobem.Poderemosnosdefendermelhor.
QuandoWilkersonperguntou-lhequemeram“eles”,Calrespondeu:— Não sei que cara têm, nemque nomeusampara identificar sua espécie.Mas vêmpara nos
agredir.Talveznostransformememzumbis.CalSharklegarantiuque tinhaemcasamunição suficientepara resistir aumataquemaciçoeque
haviareforçadoportas,janelaseparedes.Assustadocomaconversasobrearmasemunição,Wilkersonesperouqueovizinhovoltassepara
casaetelefonouparaNanGilchrist.Elachegoumeiahoramaistardecomomarido,edisseaWilkersonque tentaria convencer o irmão a deixar-se levar até um hospital para exames.Mas, depois queNanentrou na casa de Sharkle, Wilkerson achou que seria mais seguro acompanhá-la e convocou outrovizinho,FrankKrelky,paraircomele.ImaginouqueNanabririaaporta,porémopróprioCalapareceuà
beira da histeria, armado com uma pistola semi-automática de cano longo, acusando os vizinhos deestaremtransformadosemzumbis.
— Vocês já estão transformados—gritou.—Oh!Deus!Eu deveria ter visto.Quando foi queaconteceu? Quando foi que vocês deixaram de ser humanos? Meu Deus... Agora vocês vieramnosbuscar!—Comumberrodeanimalassustado,abriufogocontraosvizinhos.OprimeirotiroatingiuopescoçodeKrelky,àqueima-roupa.Wilkersoncorreue,aoseratingidonaspernas,fingiu-sedemorto,oquelhesalvouavida.
Krelky foi levado para o InstitutoMédico-Legal eWilkerson estava no hospital, fora de perigo,prontoparafalaraosrepórteres.
Juntoaocordãodeisolamento,àentradadaRua0’Bannon,umjovemcontavaaopadreWycazikasúltimasnotíciasdamanhã.
—*MeunomeéRogerHasterwick,souespecialistaemmisturasalcoólicas—declarara—,masestoutemporariamentedesempregado.
Poderiaser,maisprosaicamente,umbarman recém-despedido,Stefan traduzira.Roger tinhaolhosbrilhantes, de pupilas dilatadas, o que podia indicar intoxicação por bebida, drogas, falta de sono oupsicopatia,outudoissojunto,massabiadasnovidadescomdetalhes.
—Daí—contava—,ospoliciaisbloquearamoquarteirão,tiraramaspessoasdascasasvizinhase tentaramentraremcontatocomo“Tubarão”.Maso telefoneestavadesligado.Apolíciacomeçouaberrarnomegafone,eohomemsefezdesurdo.Parecequeairmãdeleeocunhadoaindaestavamvivos,comoreféns,porissoapolícianãopôdeinvadiracasa.
—QueiraDeusqueestejamvivos—murmurouStefan,unindoasmãosgeladas,maisdemedoquedefrio.
—Claro,claro...—fezRoger,impacienteparacontinuarcontandooquesabia.—Afinal,comojáestavaescurecendoe logoserianoitefechada,apolíciachamouopessoaldoesquadrãoespecialparaentrar em ação e salvar os reféns. Jogaram bombas de gás lacrimogênio,mas tiveram problemas.Ospoliciaistropeçavampelojardim,porqueo“Tubarão”cobriuagramacomumarededearame.Umdelescaiu, quebrou a cabeça e teve concussão cerebral.Nãomorreu,mas ainda está inconsciente.Cal nãofoiatingidopelogásporqueestavademáscara,comosejásoubesseoqueapolíciafaria,eabriufogocontraoesquadrãoespecial.Matouumguardaeferiuoutro.Entãosubiuparaosótãoefechouaporta.Ninguémconseguetirá-lodelá,porquemandouinstalarumaportadeaçolánosótão.Asjanelastambémsãodeaço.O“Tuburão”eapolíciaestãoempatados.Queloucura!
Doismortosetrêsferidos,Stefanfezascontas.Hasterwickcontinuava:— Daí os policiais foram embora e resolveram esperar que escurecesse.Não aconteceu nada
durantetodaanoite.HojedemanhãCalabriuumafrestinhadajanelaecomeçouagritar.Parecialouco...diziaquealguémestavachegando...Depois fechoua janelaenãoapareceumais.Tomaraqueele façaalgumacoisalogo,porqueestámuitofrioeistoaquijáestáficandomeiochato.
—Oqueelegritava?—Stefanperguntou.Quando?—Hojedemanhã.— Ah, deixe ver... — A alguns passos, a multidão movimentou-se, seguindo uma onda de
informações novas que vinha do outro lado da rua. Aflito, sem querer perder qualquer detalhesórdido,Rogergritou,frenético,paraumhomemderostovermelhoechapéudecaçador:
—Oquehouve?Oquefoiagora?— Um cara aí tem um rádio e sintonizou a faixa do esquadrão especial. Parece que eles vão
invadiracasaemandaro“Tubarão”paraoespaço.Ohomemcorreuemdireçãoacasa,eHasterwickseguiu-o.
O padreWycazik foi empurrado de todos os lados, amultidão disparando em direção à esquina,tentando aproximar-se o mais possível da casa. Apenas dez ou doze pessoas ficaram onde estavam,paradasjuntoaocordãodeisolamento.Logoocorreriaumatragédia,haveriamaismortos,outrosferidos.Stefan sentia a ameaça no ar. Tinha que fazer alguma coisa... mas não conseguia pensar. Até aquelemomento, o “mistério” de Brendan parecera-lhe uma bênção divina, um dom, um presente... umapromessade felicidadeeterna,oprimeiroatodeumgrandeespetáculoqueDeuspreparavapara seusfilhos.Masaliestavaoreversodamedalha,oladoescurodomistério,atragédia!
Afinal,semsaberoquefazer,Stefanresolveuacompanharamultidão,queoutravezsereunia,umquarteirãoadiante,àvoltadeumcaminhãoazulcomumapaisagemdaCalifórniapintadanacarroceria.Odono,umgrandalhãopeludoebarbudo,sentadonacabine,abriraasportasdocaminhãoemexianosbotõesdorádio.Ospoliciaisultimavamosplanosdeataque.
AsequipesespeciaistomavamposiçãonoprimeiroandardacasadeSharkle.Usariamumapequenacargadeexplosivoplásticoparaarrebentaraportadeaço,oquelhespermitiriaentrarnosótão,masnãoabalariaosalicercesdacasa.Enquantoisso,umasegundaequipefariaexplodiraportadafrente,numataqueemcunha.Aestratégiaeraterrivelmenteperigosa,tantoparaosoficiaisquantoparaosreféns,masoesquadrãopareciaconvencidodequeseriaaindamaisperigosocontinuaresperando.
Aoouvirasvozesqueorádioreproduzia,fazendovibraroarfriodamanhãdejaneiro,Stefansentiude repente que precisava deter o ataque. Se o plano fosse levado adiante, haveria uma carnificina.Precisavapassarpelocordãodeisolamento,iratéacasa...efalarcomCalSharkle.Etinhaqueserlogo!
Voltouascostasaocaminhãoedisparouacorreremdireçãoàcasasitiada,umquarteirãoadiante.AindanãosabiaoquediriaaSharkleparaconvencê-loaentregar-se.Talvezobatido“Calvin,vocênãoestásozinho”servisse.Atéencontrá-lo,acabariadescobrindoalgumacoisa!
Suapartidarepentinadeuàmultidãoaimpressãodequeelesouberadealgumanovidade,eStefanjáestavaameiocaminhoquandoosprimeiroscuriosospassaramporele,correndoegritandocomoloucos,interrompendocompletamenteotrânsitodaAvenidaScott.Brequeschiavam,buzinasgritavam,ouvia-seoruídodoscarrosbatendounsnosoutros,latariaraspando.Opárocoacabouatropeladopelamultidão,foiempurradocomviolência,tropeçouecaiudejoelhosnacalçada;levantou-seecontinuoucorrendo.Oardamanhãparecia cadavezmais carregadode ameaças, comoumanimal enlouquecido, sedentodesangue,queseaproximasse.Stefanolhavaaoredor,horrorizado,ocoraçãobatendodisparado.Oinfernodeveserassim,pensou.Gentetres-loucadacorrendosemparar,semsaberparaonde,umamultidãoanosempurrarparaafrente,paraafrente...
Quando,afinal,seaproximoudacasadeSharkle,osprimeiroscuriososjáretrocediam,empurradospelos cavalos e cassetetes da polícia. Desesperado, o padreWycazik olhou para um lado e outro, àprocuradocomandantedopelotão,porqueprecisavafalarcomalguém.Foipuxadoparatrás,empurradoparaafrente,novamenteempurrado,gritouqueerasacerdoteeprecisavafalarcomooficial,masnãolhederam ouvidos. Alguém tirou-lhe o chapéu, outro empurrou-o e, de repente, lá estava ele, em pé nalinhadefogo,doispassosàfrentedamultidãodesafiandooscavalos.
Os policiais gritaram-lhe que saísse dali, ameaçaram-no com prisão e espancamento, tiraram oscassetetesdacinturaebaixaramosescudos.Maselenãoparavadegritar.Umdosguardasseaproximou,como se quisesse ouvi-lo melhor. O que poderia dizer-lhe? Que era padre, que sabia o que estavaacontecendocomSharkle,que sabia como fazê-lo render-se?Eramentira,masvalia apena tentar.Sótevetempoparacomeçar:abriuocasacoemostrouocolarinhobrancoaopolicial.
—Soupadre...Achoquesei...—Antesqueconcluísseafrase,ohomemempurrou-oparatrás,aos
gritos.Nomesmoinstante,duasexplosõessacudiramoar,aointervalodepoucossegundos.Alguns,namultidão, sabendo das notícias pelo rádio do caminhão azul, bateram palmas. Então uma terceiraexplosãofezochãoestremecer.Stefanlevouamãoaosouvidosparaseproteger.AcasadeSharklevooupelosares,pedaçosdemadeiraevidrojogadoscontraocéucinzento.Milhares,milhõesdepedaços,eumavastanuvemdepoeira.Dessavezamultidãogritou,aumasóvoz,medoehorrorestampadosemtodososrostos.Descobriamqueamorteeramaisdoqueumespetáculoemtecnicolor,distanteecontidonumatela.
—Eletinhaumabomba!—gritouumdospoliciais.—MeuDeus!Eleexplodiuacasa!—Virou-separaondeestavamasambulânciaseordenou:—Andem!Vão!
Aindatremendo,opadreWycakiktentouacompanharosenfermeiros,masumdosguardassegurou-opelobraço.
—Soupadre—disseele.—Podehaveralguémprecisandode...confortoespiritual.Eupreciso...—Podiaseropapaempessoa—retrucouopolicial.—Ninguémpodeseaproximar.Aindanão
sabemosseSharklemorreu.— Estão todosmortos— Stefanmurmurou, baixando a cabeça.—Todos: Sharkle, a irmã, o
cunhado,osguardasdoesquadrãoespecial...Quantosseriam?Talvezcinco,seis.Oudez?!*Andandosemrumo,acompanhandoamultidãoquesedispersava,ajeitandoocachecol,assustadoe
tonto,murmurando um “PadreNosso”, Stefan avistouRogerHasterwick, obarman desempregado, depupilasdilatadas.Correuatéele,agarrou-opelobraçoeperguntou:
—OquefoiqueSharkledissehojecedo?—C-como?—gaguejouorapaz.—Antesdesaircorrendo,vocêdissequeCalvinSharkleabriuumafrestanajanelaegritou...que
algumacoisaiaacontecer.Oqueeledisse?Quaisforamsuaspalavrasexatas?— Ah, sim?—Hasterwick sorriu.—Sim, sim...Uma loucura...Não sei seme lembro...—E
repetiu,palavraporpalavra,oqueSharkledissera.Palavraporpalavra,opadreWycazikfoidescobrindoqueSharklenãoestavalouco.Confuso,sim,
aturdidoeassustado...atormentadopeloterrívelstressprovocadopeladerrocadadobloqueiocerebral,perdido...masnãolouco.Orapazetodosqueoouviramsabiamapenasqueumhomemberravapalavrassemsentido,dentrodeumacasatransformadaemfortaleza.Masele,Stefan,sabiadosacontecimentosdeduas noites atrás, noMotel Tranqüi-lidade, dos saleiros voadores, das curas milagrosas de Emmy eTolk.PodiahaveralgumaverdadenaspalavrasdesatinadasdeSharkle...Mas...esehouvesse?!Ovelhopárocosentiuapelearrepiar-se.
— Ei, o senhor não pode acreditar nessa loucura!— Roger exclamou.— O cara era maluco...Explodiuaprópriacasa!...
Sem responder, Stefan correu para seu carro. Já antes de chegar aEvanston para o último ato datragédiadeSharkle,pressentiraqueprecisariavoarparaNevada.DepoisdefalarcomTolkeveroqueestavaacontecendocomEmmy,jánãohaviacomoesperar.
AgoraquesabiaoqueSharkledissera,anecessidadedeireraaindamaioremaisurgente.Jánãosetratavadecuriosidadetemperadademisticismo...StefantinhadeirparaElkoparaprotegerogrupodosamigosdeBrendan.Depoisdeumavidadelutasparasalvarconfradesemdificuldades,paranãoperderumasódesuasovelhas,mesmoasmaishumildes,erachegadaahoradecuidarnãoapenasdasalmas,mas também dos corpos pousados naquele motel. Calvin anunciava uma catástrofe que amdeaçavaatodos,almasecérebros!
Ovelhocuradeuapartidaeafastou-sedeEvanston.Nãotinhatempodevoltaràcasaparoquialefazerasmalas.Precisavacorrerparaoaeroporto,rezandoparaencontrarlugarnoprimeiroavião.
Meu Deus do céu, pensava. Que nova provação nos espera? O que nos enviastes, Senhor? Umpresente...ouumanovapraga,maiorquetodasaspragasdaBíblia?
Pisoufundonoaceleradoredisparoucomo...ummorcegofugindodoinferno!Ginger e Faye passaram boa parte da manhã com Elroy e Nancy Jamison, fazendo dezenas de
perguntas,apretextodequeamédicapudesseinformar-sesobreasterras,porquetinhaplanosdemudarparalá,pormotivosdesaúde.OsJamisonconheciammuitobemahistóriadaregiãoeadoravamfalarsobreoassunto,principalmentesobreabelezadovaleLemoille.
As duas não conseguiramdescobrir amenor falha dememória em seus anfitriões. Elroy eNancypareciamfelizes,semproblemaspsicológicos.Umalavagemcerebralperfeita, tãoperfeitaquantoadeFaye,comlembrançasfalsasimplantadasbemfundoem
seu inconsciente. Contar-lhes o que se passava no Motel Tranqüi-lidade seria inútil, além doagravantedecolocá-losemriscodevida.
—Sãoótimaspessoas—Gingercomentouaopartirem,aindaacenandoparaNancyJamison.—Muitosimpáticos.
—Sãoexcelentesamigos—disseFaye—,gentedeconfiança.Seriaótimotê-losconosco.Poroutrolado,ébomsaberqueestãolivresdessepesadelo.
Calaram-se,masasduassabiamquetinhamumúnicoassuntonacabeça:osocupantesdocarroqueaindaasesperavamnaentrada,juntoàcerca.Seráqueselimitariamasegui-lasdevoltaparacasa?ErnieeDom saíram armados para fazer o reconhecimento do terreno do depósito.Mas, partindo para umasimplesvisitadecortesia,nenhumadasduasimaginaraqueteriamproblemas.Gingersabiaatirar,porqueconheciaosperigosdeserbonitaeviversozinhanumacidadegrande.EFaye,boamulherdemarinheiro,eraquasecampeãdetiro.Fantásticashabilidades...paraquemdeixaraosrevólveresemcasa!
Derepente,Fayeestacionounamatadepinheiros.—Talvezeusejamelodramática,eissonãonosajude—disse,desabotoandoocasaco—,seos
desgraçadosapontaremumaarmaparanossascabeças.—Fezumacaretaetirouduasfacasdecozinhadedentrodocasaco.
—Comoconseguiuessasfacas?!—Gingerarregalouosolhos.—LavandoalouçadoalmoçodeNancy.NãopodiapedirqueElroymeemprestasseumrevólver.
Asfacassãoboas,afiadas,depontafina.Seformospresas,eelesnosenfiaremnaquelecarro,deixesuafacaescondida,atéterumachancedemetê-lasnascostasdeumdeles.Eucuidodooutro.
—Perfeito.Esperoque,algumdia,vocêconheçaRitaHannaby...—AesposadomédicoqueajudouvocêemBoston?—Issomesmo.VocêeRitasãomuitoparecidas.—Eu...eumadamadaaltasociedadedeBoston?!—Fayesorriu.—Masqueidéia!...Nãopode
haveramínimasemelhança...— São irmãsdealma.Ambassãoseguras, serenase jamaisperdemaelegância,não importaa
catástrofequeestejaacontecendo.Fayeescondeuasfacassobobancoantesderetrucar:—Quandoseémulherdemarinheiro,aprende-sealevaravidacomcalmaejamaisnadarcontraa
corrente.Casocontrário,acaba-seenlouquecendo.—VocêeRitasãobonitasefemininas,suavesedependentes...doladodefora.Maspordentro,
cadaumaaseumodo,sãoduasleoas.—Evocê?Umagatinhaporfora...umatigresapordentro!Fayedeuapartidaeemsegundosvoltavamàestrada,sobocéucinzento.Atempestadeestavacadavezmaispróxima.
O carro que as seguira continuava parado no acostamento; os dois homens que as vigiavam nãomoviamummúsculo.Gingeracenouparaeles,masnãoobteveresposta.
Ocarromanobrouecontinuouasegui-las.Miles Bennell levantou-se da poltrona, com ar entediado, e respondeu às perguntas, a voz ora
indiferente, ora divertida e irônica, porque era homem que jamais gritava nem se zangava, como ossoldadosqueFalkirkconheciabem.
LelandFalkirkodiava-o.Sentadojuntoaumavelhamesa,aumcantodasala,examinavaasfichasdearquivodecadaumdoscientistascivisquetrabalhavamnasalatrancadadosegundopavimento.Asalado segredo.Umadaspossibilidadesde encontrar o traidor seria descobrir qual deles teria estado emNovaYorknadataemqueasfotosforamenviadasaDominickCorvaisis.AsegurançadeThunderHilltrabalharadurantetodoodomingo...eorelatórioeradesencorajador.Mas,enquantootraidornãofossepreso,todoseramsuspeitos,mesmoosagentesdasegurançainterna.Lelandnãopodiamaisconfiaremninguém.NememBennell,nemnosoutroscientistasquetrabalhavamcomele.Precisavaagirsozinho.
Os problemas acumulavam-se. E como não se acumulariam se, nos últimosmeses, qualquer civilidiotaera“autorizado”aentrarThunderHill?!Agora jáeramtrintaesete!Trintaesetecientistasdasmaisdiversasespecialidades,convocadosporBennell!
Trintaeoito,incluindoopróprioBennell.Eraummilagreque,atéali,oassuntoaindanãohouvessechegadoaosjornais...Umbatalhãodeimbecis!Indisciplinados,semexperiênciamilitar... incapazesdeguardarsegredos...
Piordoqueisso:apenasBennellemaissetecientistaspermaneciamnabaseemtempointegral.Osoutros trinta tinhamfamíliae trabalhoemváriasuniversidadesdopaísesóvinhamparaThunderHillquandosuasagendaspermitiam,àsvezesparaficarumoudoisdias,nomáximoalgumassemanas,nuncamaisdeumoudoismeses.ErapraticamenteimpossíveldescobrirqualdelesestiveraemNovaYork,semumalongaecansativainvestigação.
Paracomplicaroproblema,dosoitopesquisadoresqueviviamemThunderHilltrêsforamaNovaYorkemdezembro,inclusiveopróprioBennell.Lelandtinha,pelomenos,trintaetrêssuspeitoscomquesepreocupar.
Nemopessoalmilitarencarregadodasegurançadoprojetoinspirava-lheconfiança,emboraomajorFugataeotenenteHelms,chefeesubchefedesegurança,estivessemoficialmenteapardoquesepassavanos laboratórios de Bennell. No domingo, depois de iniciar o interrogatório dos cientistas, Fugataapareceracomanotíciadequeodetetordementirasestavaquebradoeeraperdadetempotrabalharcomos resultadosobtidosatéali.Navéspera,depoisqueLeland requisitaraoutrodetetoremShenkfieldepusera-o em funcionamento, Fugata voltara com a mesma história: o aparelho quebrara durante otransporte.Doisdetetoresinutilizadosempoucosdias!
Alguém descobrira que os bloqueios começavam a ceder e resolvera aproveitar a oportunidade,enviando a algumas testemunhas os bilhetes cifrados e as fotos roubadas do arquivo.O filho da putaconseguira o que queria, pelomenos até ali... e sentia-se ameaçado. Para se livrar, sabotara os doisdetetoresdementiras.
Leland levantou a cabeça, deixou as fichas sobre a mesa e olhou para Bennell, que continuavaimpassíveldiantedeumadasjanelas.
—Quemsabeosenhorpoderiameajudar—disse.—Seforpossível,seráumprazer.—Ocientistavoltou-separaele.— Seupessoalconheceasmileduzentaspáginasdorelatóriodacomissão interdisciplinarque
trabalhousobreasconseqüên-ciasdeumaeventualcriseplanetária...Todossabemoquepodeacontecerse nosso segredo vazar. Haveria entre eles alguém tão irresponsável... a ponto de correr o risco de
divulgarnossosegredo?O dr.Bennell estremeceu, como se a simplesmenção daquela possibilidade fosse suficiente para
causar-lhe calafrios. Leland, porém, percebeu a ironia oculta, quase invisível, sob toneladas de boasintençõesaparentes.
— Como em todos os grupos, temos algumas ovelhas negras em nosso rebanho— explicouBennell. — Muitos cientistas, em todo o mundo, discordam das conclusões daquele relatório.Paramuitos,adivulgaçãopúblicadequalquergrandeameaçaquepesesobreaespéciehumanaseriaaúnica maneira de enfrentá-la com eficácia. Dizem que o relatório é autoritário e elitista em suasconclusões.
— Quantoamim, tenhocertezadequeas conclusões sãocorretas.Evocê,Horner?—Lelandvirou-separaotenente,sentadojuntoàporta.
— Concordo com o senhor, coronel. O público externo deve ser preparado aos poucos parareceberumanotíciacomo...essesegredo.Umlentoprocessodeeducaçãoquepode levaranos, talvezmaisdedez.Emesmoassim...
Lelandconcordoucomacabeçae,outravez,voltou-separaBennell:—Nãoesperograndecoisadenossaespécie,doutor.Umaopiniãopessimista,talvez,masbastante
realista.Ahumanidadenãoestáetalvezjamaisestejapreparadaparaumfatocomoesse.Haveriaocaospolítico e econômico, surgiriam levantes populares, amassamais ignorante despertaria e talvez fossedifícilcontrolá-la.Exatamentecomoorelatórioprevê.
— O senhor tem o direito de pensar o que quiser...— o cientista respondeu com um sorrisointencional,comoseelepróprio
completasse o sentido das palavras: “Mesmo que sua opinião me pareça imbecil, pretensiosa eautoritária”.
—Masosenhorconcordacomasconclusõesdorelatório?—insistiuocoronel.—Nãosepreocupecomigo.Nãofuieuquemandeiosbilheteseasfotosquetantoopreocupam.—Entãoesperoquenãocrieproblemascommeupessoal.Comoosenhorsabe,opentotalsódico
émaiseficientequequalquerdetetordementiras.Ochamado“sorodaverdade”.— Nãovoucriarproblemas—garantiuBennell, levantandoas sobrancelhas.—Mashágente
aqui, em minha equipe, que jamais se submeterá a um interrogatório desse tipo. Sãocientistasprofissionais.Pessoasquesãooquesãoevivemcomovivem,exclusivamentepeloquetêmnacabeça.Avidaintelectualé,paraeles,maisimportantequeavidamaterial.NãoacreditoqueumhomemcujoQIsejaduasvezessuperioraoQImédiodapopulaçãodopaísconcordeemreceberumainjeçãodeumadrogaquepoderáafetar-lheocérebro.
—Osenhorsabequeopentotalsódiconãoapresentaefeitoscolaterais.— Namaioriadoscasos, talvez.Dequalquermodo,algunsdoscientistascontratadosparaesse
projetonãoconcordarãoemsersubmetidosainterrogatóriosconduzidoscomousodedrogas...qualquerdroga.Aindaqueestejaemjogoasegurançanacional.
— Para seu governo, é bom saber que vou solicitar autorização especial para interrogar seupessoal. Todos... os que sabem do segredo e os que não sabem. Vou usar o soro da verdade emtodos,concordemounãocomaidéia.PedireiaogeneralAlvaradoautorizaçãoespecialparainiciarosinterrogatórios.
AlvaradoeraocomandantedeThunderHill,umburocratadecarreira,umsoldadoquenãogostavadecombates.Lelanddesprezava-o,comodesprezavaoscientistas.
—Seogeneralconcordar—continuou—,voucairemcimadeseuscientistas.Queiramounãoosoro.Eissoincluiosenhor.Entendeubem?
—Sim,claro.Entendiperfeitamente—disseBennell,semalteraravoz.Lelandesmurrouamesaeempurrouparalongeasfichasqueexaminara:—Estamosandandomuitodevagar!Precisoencontrarotraidorcomamáximaurgência.Nãoposso
esperarummês.Vamostratardeconsertaromalditodetetorecomeçarlogocomosinterrogatórios.—Levantou-se,andouatéaporta,masparouantesdesair,comumaperguntaatravessadanagarganta.Amesmaperguntaqueoperseguiadesdequereceberaosúltimosrelatórios:—Doutor,oquepensasobreoqueestáacontecendocomopadreecomCorvaisis?Opadrerealizacurasmilagrosas,eooutrofazvoarsaleiros.Qualésuaopinião?
Pelaprimeiravez,avozdeBennellsooualterada,tomadaporumaemoçãorepentinaeautêntica:— Está commedo, coronel?— perguntou, apoiando os cotovelos sobre amesa.—Acredito
firmementequeexisteumaexplicaçãoracionalparaoqueestáacontecendoaosdois.Osenhorsemprereagecommedo...enquantoeu,deminhaparte,sinto-mecomoumdosraroseleitoschamadosaassistiraomaiormomentodaevoluçãodenossaespécie.Dequalquermodo,sejaqualforaexplicaçãoparaoque está acontecendo, nossa única chance de descobrir é falar com eles. Chame Corvaisis e Cronin,conte-lhes a verdade e peça-lhes que nos ajudem a entender como receberam esses poderesextraordinários. Não podemos eliminá-los, pura e simplesmente, ou obrigá-los a novas sessões delavagemcerebral...antesdeobtermosasrespostasdoqueprecisamos.
—Sefizermoscontatocomas“testemunhas”elhescontarmososegredo...masnãoconseguirmosfazê-losesqueceroquehouve...nãohaverácomomanterosigilo.Todossaberãoquementimos.
— Talvez sim, talvez não— o cientista insistiu.—Mais dia menos dia, o público acabarádescobrindo.Seráqueosenhornãoentendeque,nomomento,nãohánada,nestabaseounoplaneta,maisimportantedoqueoqueestáacontecendoaDominick
CorvaisiseaopadreBrendan?!Nemahistóriaqueosenhorinventou...Nada?!Precisamosdeles,precisamosconheceressepoder...Maisimportantedoqueisso...precisamosdaraosdoisumachancededesenvolveremospoderes, para descobrirmos até ondepodem ir.Epor falar nisso... quando é queosenhorvaitrazê-losparacá?
—Atéofimdatardedehojeestarãoaqui.—Então,ànoitejáteremosfaladocomeles...—Sim.—Ocoroneldeumaisdoispassosrumoàsaída,ondeotenenteHorneroesperava.Parou
pela segunda vez:—Doutor... o senhor vai examiná-los... Será que terá condições de des-CQbrir sesofreram algum tipo de... metamorfose? Se ainda são... humanos? E se já estiverem... possuídos... eresistiremaodetetordementiraseanossasdrogas,oquefaremos?
— Aindanão sabemos—MilesBennell levantou-se,meteu asmãos nos bolsos do avental detrabalho e caminhou um pouco pela sala.—Estamos trabalhando com todas as hipóteses, desde querecebemososrelatórios,nodomingo.Aindanãosabemosquepoderessãoesses.Aspesquisassempreesbarram em mistérios... Mas temos razões para crer que não há perigo. Criamos testes médicos epsicológicosmuitoelaborados... eesperamosverificar, acimadequalquerdúvida, seeles... ainda sãohumanos! De início, é verdade, todos nos preocupamos com a possibilidade de contágio e com apossilidadedequeeles,realmente,tenhamsidopossuídos.Masjáfazmaisdeumanoqueabandonamosessa linha de pesquisa.Eu eminha equipe não temos dúvidas de que eles continuama ser humanos...apesardospoderesqueestãodesenvolvendo.
— Mas eu ainda não estou convencido. Corvaisis e Cronin são os primeiros a dar sinaisestranhos...Depois,comcerteza,aparecerãooutros.Nãoseiluda...Elessãomuitomaisfortesquenós,enãoterãodificuldadeemenganarosenhoreseuscientistas,apesardeseusmilharesdetestes.
—Osenhornãosabequetestes...
— E hámais um detalhe que o senhor talvez imagine que a segurança esqueceu de levar emconsideração—declarouLeland,
sorrindocomocantodoslábios.—Não,eunãomeesqueçodenada.Nãoesqueço,porexemplo,queosenhortambémpodeestar...contaminado.
—Eu?!—Porquenão?Osenhorestáaqui,trabalhandonosegredo.Passaosdiasnestasala,hámaisde
dezoitomeses,comapenas trêsrápidosperíodosdeférias.SeCorvaisiseCroninforamcontaminadosapósalgumashorasdecontato,porquenãoosenhor,depoisdetodoessetempo?
— Mas...—Bennell estava surpreso demais para encontrar as palavras certas— ... é muitodiferente! Estou trabalhando aposte-riori! O que quer que tenha acontecido com Corvaisis e opadre,aconteceunaquelanoite.Souquaseumfaxineiro...umsujeitoquechegadepoisdafestaetemquesecontentarcomos restos...Acoisa, sejaoque for, aconteceunocomeço,nasprimeirashoras... nãodepois.
— E o que isso prova?Como posso ter certeza de que não houve contaminação... depois?—Lelandcontinuavaafitá-lodefrente,osolhosfrioscomoaço.
—Tomamostodasasprecauções...trabalhamosemperfeitascondiçõesdesegurança...— O que são “perfeitas condições de segurança” para trabalhar com o desconhecido? O
desconhecido é exatamente isto... o que não se conhece e não tem passado... nem se pode prevercomoevoluirá.Eimpossíveltomarprecauçõescomrelaçãoaalgoquenãoseconhece.
—Mas...Não!Nãopodeser...— Umavez contaminado, o senhorpoderia contaminar amim também.—Ocoronel olhou em
volta.—Talvezpensequeexageroapenasparaassustá-lo,nãoé?PoisnãoachaintrigantequeotenenteHorner tenha ficadoaí,durante todoo tempodenossaconversa semfazernada,quandopoderiaestartrabalhandonosdetetores?Ele,queéespecialistaeminterrogatórioseequipamentosmilitares?Sabeporqueordeneiaotenentequenãosaíssedasala?Porquenaoachoseguropermaneceremambientefechadosozi-
nhocomosenhor...Definitivamente,nãoéseguro.—Estádizendoque...—Bennellarregalavaosolhos,semacreditar.—Osenhorentendeuperfeitamenteoqueestoudizendo.Estoudizendoque,nahipótesedetersido
contaminado, o senhor saberia também o que fazer para me contaminar... O desconhecido de quefalavamoshápouco.Eseusassequalquerumdessespoderesmisteriosospara...entraremmeucérebro,roubarmeu espírito humano eme transformar emoutra...coisa}\ Posso não saber usar o vocabuláriocientíficomaisrigoroso,masosenhorentendeperfeitamenteoquequerodizer.
*—Chegamosadiscutirseseriaseguropermanecermosaquiapenasnósdois—declarouHorner,aproximando-se.—Nãotireiosolhosdosenhor,doutor,enãoseisepercebeuquetambémnãotireiamãodocoldre.
Bennellolhavadeumparaooutro,aturdido.— Talvez pense que sou um soldado rápido no gatilho— Le-land continuou—, um fascista
xenófoboeteimoso.Masfuiencarregadodasegurançadesseprojeto,oqueincluimanterosegredosobreo que se passa no depósito e assegurar a tranqüilidade da população civil. Parte de minha missãoconsisteemimaginaropioreagircomoseopiorfosseinevitável.
—Deusdocéu...—murmurouocientista,arregalandoaindamaisosolhos.—Vocêssãodoidos...Estãocompletamenteloucos!Osdois!
—Reaçãoprevisível—retrucouLeland—paraumhomemque,commuitaprobabilidade,jánãoéplenamentehumano.Venha,Horner,nãotemosmaisnadaafazeraqui.
Bennellseguiu-o,rápido:—Espere!Porfavor!Lelandvoltou-se.—Tudobem,coronel.—Ocientistarespiroufundo.—Entendoqueseutrabalhoexigeconsiderar
toda possibilidade, mesmo que pareça absurda. De qualquer modo, sua idéia é... loucura. Não há omínimoriscodequeeu,ouqualquermembrodemi-
nhaequipe,tenhasido...tomadoporalgumabactériaouentidadeestranha.Nãoépossível!Masháumacoisaqueprecisosaber...Esefosseverdade?Seeu,oualgumdoshomensquetrabalhamcomigotivessesidocontaminado,osenhornosmataria?
—Semhesitar—Lelandrespondeu.— Ese... todososoficiaisque trabalhamnodepósito,mesmoosquenãosabemoquefazemos
aqui,tambémestivessemcontaminados?Todos,inclusiveogeneralAlvarado...?—Jápenseinisso.—Oquefaria?Matariaatodos?Dosoldadorasoaogeneral?—Sim.—Jesus!—Ese,poracaso,estápensandoemdarofora,esqueça—continuouocoronel,impassível.—
Há dezoito meses, prevendo que essa idéia poderia lhe ocorrer, introduzi um novo programanocomputadorquecontrolaaentradaeasaída.Amenosquedigiteoutrocódigo,que,evidentemente,sóeuconheço,todasassaídasestarãobloqueadasemfraçõesdesegundo...
—Estamospresos!—Bennellempalideceuaindamais,apeleamareladabrilhandoemcontrastecomabarbaescura.—Nãofalariadessecódigosejánãoohouvesseativado...
—Acertouemcheio!Aoentrar,expusasimpressõesdigitaisdeminhamãoesquerda...enãoasdadireita,comosemprefiz.Bastouissoparatrancarassaídaseentradas.SóotenenteHornereeuestamosautorizadosatransitarlivrementeparadentroeparaforadodepósito.Atéqueeuentendaqueoperigopassou.
LelandFalkirkgirousobreoscalcanharesesaiudasala,quaseplenamentefeliz.Pelaprimeiravez,emdezoitomeses,conseguirafazercomqueMilesBennellperdesseacalma.
Sepudesse,adorariacontar-lheseuplano,pelosimplesprazerdeveroorgulhosocientistarastejarde medo e implorar piedade. Mas ainda era cedo. O plano estava pronto e era perfeito, desde queacionado no momento correto. Quando chegasse a hora, sabería o que fazer para matar todos osresidentesdeThunderHill...nahipótesedeseconfirmarqueestavamcontaminados.Nãoso-
brariapedra sobrepedra.Odepósito ficaria reduzidoaummontedeescombros fumegantes... eosegredo permaneceria enterrado para sempre, até a consumação dos tempos. Um plano simples, queexigia um único sacrifício: ele próprio teria que ficar enterrado ali, com os restos damaldita praga.Lelandnãotremeria...quandochegasseomomento.
Tendodormidoapenascincohorasemeia,Jorjalevantou-se,tomouumbanho,vestiu-seecorreuaoencontro deMareie. Amenina e Jack Twist esperavam-na, sentados à mesa do café. Jorja parou noliving,aalgunspassosdacozinha,eobservou-osdelonge,sqmqueosdoisdessemporsuapresença.
QuandovoltaramdeElko,àsquatroequarentadamanhã,decidiramqueJackdormirianasala,paraqueMareienãoficassesozinhademanhã,quandoFayeeErniesaíssem.Jorjainsistiraemlevarafilhaparaoquarto,masJackjuraraquetomariacontadameninaatéelaacordar.
— A garota está dormindo comosBlock. Se a tirarmos da cama agora—dissera—, ela vaiacordarepassaranoiteemclaro.Ninguémaquiestáemcondiçõesdedesperdiçarummomentodesono,porqueamanhãprecisamosestaremforma.
— Maseladormiumuitocedo—Jorjaargumentara.—Vaiacordarcedoeacabaráacordandovocêtambém...
—Nãofazmal.Estouacostumadoadormirpouco.Você,sim,precisadeumaboanoitedesono.—Vocêé...umamigoetanto...—Jorjasorrira.Edepois,séria,acrescentara:—Talvezvocêseja
omelhoramigoquejátive.—Ah...souumsanto!JorjadescobriraqueJackeraumgrandesujeitoenquantorodavamporElko.Eleeraesperto,atento,
gentil,eomelhorouvintequejáencontrara.Aumaemeiadamadrugada,Brendan,cansado,encolhera-senobancotraseirodojipe,paradormir.Jorja,quedesdemuitotempoqueriaficarasóscomJack,deragraças a Deus ao ver o padre ressonar baixinho. Agora sim, Jack Twist era todo seu. SemBrendan,sentira-seàvontadepararelaxareentregar-seaofascínioqueJackexerciasobreela.Contara-lhemaissobresua
vidadoquejamaishaviacontadoaninguém,desdeodiaemquesuaúnicaemelhoramigamudara-seda vizinhança, vinte anos antes. Em quase sete anos de casamento, nunca se abrira com Alan tãosinceramentecomoconversaracomJackTwist,umhomemquemalconhecia.
Ali, parada junto à porta da cozinha, vendo-o falar com Mareie, descobria nele ainda outrasqualidades.Eradospoucose raroshomenscapazesde falar tranqüilamentecomumacriança, semsercondescendente,sempareceridiota,semdarsinaisdeimpaciência.JackriacomMareie,interrogava-asobre suasmúsicas preferidas, seus pratos favoritos, seus desenhos animados prediletos, ajudava-a apintar as luas vermelhas. Mareie parecia ainda mais alheia que na véspera, como se, aos poucos,mergulhassenumtransecadavezmaisprofundo.Nãorespondiaàsperguntasemantinhaosolhosfixosemsuasluas.Aindaassim,elecontinuavaafalarcalmoenormal.Jorjalembrou-sedoquelhecontarasobreaesposa:sim...passaraoitoanosaoladodeJenny,semjamaisreceberresposta,semperceberumsinalqualquerdequeelaoouvisse.Tãocedo,comcerteza,Mareienãoofariaperderapaciência.
Jorja continuou parada junto à porta, dividida entre o prazer de ver Jack à vontade, tranqüilo edescontraído,eaagoniadenotarqueMareiedistanciava-secadavezmais,mergulhandoaospoucosnummundosóseu,comoascriançasautistasdoslivrosquehavialido.
—Bom-dia!—exclamouele,erguendooolhar.—Dormiubem?Fazmuitotempoqueestáaí?—Chegueiagora.—Jorjaaproximou-se.—Vamos...—Jackvirou-separaamenina.—Digabom-diaparasuamãe.Mareienãomoveuummúsculoecontinoufitandoasluasemseuálbum.Jacksorria.—Afinal...jáéquasehoradeboa-tarde...Tentando sorrir também, Jorja aproximou-se de Mareie, acariciou-lhe os cabelos e tocou-lhe o
queixoparafazê-lavirar-se.Ameninaolhouparaorostodamãe,apenasporummomento,comosenãoavissee,baixandoos
olhosparaoálbum,voltouásprofundezasdeummundoquesóelaconhecia.Olhossembrilho,vazios.Jorjasuspirou,eMareieconcentrou-senaLuaquepintavapelacentésimavez,comoúltimotocodelápisvermelho.
Jacklevantou-seeandouatéorefrigerador.—Estácomfome?—perguntou.—Poiseuestou.Mareiejátomouseuleite,maseuquisesperá-
la para tomarmos café juntos.— Examinou o que havia para comer.— Que tal ovos com bacon etorradas?Ouumaomeletedequeijocomcebolaepimentãoverde...
—Então,alémdomais,vocêsabecozinhar!— Não sou nenhum mestre-cuca, mas sempre se pode engolir o que cozinho e geralmente é
possívelidentificaroquesevaicomer,antesdeprovar.Esperesóparaver.—Abriuaportadofree-zer.
—Temoswafilescongelados.Sequiser,aqueçoalgunsparaacompanharaomelete.—Eucomooquevocêcomer—disseJorja,semdespregarosolhosdorostinhodeMareie.Cada
vezqueolhavaafilha,sentiaoestômagocontrair-se.Jackfoiatéacozinhacarregandoumacaixinhadeleite,algunsovos,umpacotedequeijo,pimentões,
umapequenacebola,edeixoutudoaoladodapia.Jorjaaproximou-se,olhandoporsobreseuombronadireçãodeMareieefalandoemvozbaixa:
—Éverdadequeelatomouleite?—Leite,flocos,umatorradacomgeléiaeoutracomcremedeamendoim.Claroqueeuprecisei
ajudar,maselaestáalimentada.Jorjafechouosolhos,lutandoparanãopensarnoqueDomlhecontarasobreamortedeZebediah
Lomack e no suicídio de Alan. Se os dois, homens adultos, não encontraram forças para vencer aobsessãodoentiacomaLua,surgidaapartirdoqueviramnanoitede6dejulhodoanoretrasado...oqueocorreriacomMareie,umamenina?!Seacabarammorrendo,oqueaconteceriaasuafilha?!
—Não,não...—Jackvirou-separaelaeabraçou-a.—Nãochore.Mareievaificarboa.Eugaranto.Hojecedo,todosacordaramtran-qüiloseninguémtevepesadelos;
Domnãoandoupela casa,Er-niequasenão sentiumedodoescuro...Sabeporquê?Porqueo fatodeestarmos juntos, aliados, como uma verdadeira família, aliviou as tensões. Os bloqueios começam aceder...Sim,sim...EclaroqueMareiepareceaindamaisalheia...porémissonãosignificaqueestejapior.Fiquetranqüila...Mareievaificarboa.Eusei.
Jorjanaoesperavaoabraço,masagradeceuaDeus!Deixou-seabraçar,e,parasurpresasua,sentiu-serenascerentreosbraçosfortesdeJack.Eramquasedamesmaaltura;poruminstante,porém,abraçadaaele,Jorjasentiu-sepequenaefrágil,guardadaeprotegidacomoalgomuitoprecioso.Lembrou-sedoque pensara durante a viagem até Elko: ninguém nasce para ser só, para lutar sozinho; a essência daespécie é a necessidade de dar e receber afeto. Ali, naquele momento, aproximavam-se duas forçascomplementares: ela, que tanto precisava ser confortada, e Jack, que tanto queria encontrar alguém aquemconfortar.Dauniãodosdoisbrotavaacoragemdequeambosprecisavamparacontinuaraluta.
—Omeletedequeijo,compoucacebolaepedacinhosdepimentãoverde—Jackmurmurou-lheaoouvido,sentindoqueelaserecompunha—...Issoétudodequeprecisamos,porora.Vocênãoacha?
—Maravilhadasmaravilhas.—Minhasomeletestêmumsegredo.Sempreusopedacinhosdecascadeovonotempero.— Mas é esse o segredomesmo!Osmelhores restaurantes domundo preparam omeletes com
pedacinhosdecasca,paramelhoraratextura.—Emesmo?Ebolinhosdebacalhaucompedacinhosdeespinha?—Oquedizdestroganoffcomlasquinhasdeosso?—Emoussedechocolatecompalitos?—Epregosnatortademaçã?—Eumasolteironaemcadaformadebolo?—Detestobolos.—Eutambém.—Jackriu.—Chega?—Chega.Vouderreteroqueijo.Namesa,Mareiecolorialuasemaisluas.Eacadaumareiniciavaocantomonótono,monocórdico,
repetindosempreamesmapalavra.EmMonterey,Califórnia, Parker Faine escapava por pouco da rede de uma gigantesca aranha de
cerca. Deu-se por muito feliz, quando viu que ainda estava vivo, livre dos terríveis tentáculos domonstro. Uma autêntica aranha de cerca: uma mulher chamada Essie Craw, vizinha dos Scalcoe. As
aranhasde cerca constróemnagramaninhos tubulares, subterrâneos, quase invisíveis, camufladosporumapequenatampacuidadosamentetramadacomoslongosfiosdebabaqueproduzem.Quandoalguminsetodescuidadotropeçanaarmadilha,cainoburacodoninhoeacabatragadopelabestapeludaqueoesperaláembaixo.
O ninho tubular de Essie Craw era uma linda casa em estilo espanhol,muitomais bonita e bemintegradaaocenárioqueamansãocolonialdosScalcoe,comsacadasdeferrofundidoeflorescoloridasbrotando de vasos de argila. Bastou olhar a casa para Faine adivinhar que estava à porta de genteinteressante,bonitae,comumpoucodesorte,tambéminteligente.Mas,quandoEssieCrawapareceu,elelogo viu que se enganara. Quando a aranha de cerca descobriu que ele queria saber da vida dosScalcoe, praticamente o arrastou para dentro, fazendo cair a tampinha do ninho tubular a suas costas.Porquegentequequersaberdavidaalheiadeveestardispostaafalardavidaalheia...eEssieCraweraviciadaemmexericos.
A julgarpelacara,contudo,Essienãoeraaranha,maspássaro.Nãoumurubumagro,depescoçopelado...antes,umagaivotagordaebemcevada,queolhavaaspessoasdeladocomolhinhosredondosearregalados.
Depoisdeconduzi-loatéasala,ofereceu-lhecafé.Parkeragradeceu.Elainsistiu.Eledissequenãoqueriadartrabalho.Elatrouxeocaféeaindafoibuscarumpratodebolinhosamanteigados,muito
animadaefalante.Parkerdescobriuquepassavadiasesperandoquealguémcaísseemsuateia.Essiedesapontou-sequandoelelhedissequenãosabiacoisaalgumasobreosScalcoee,portanto,
nãotinhanovidadesparacontar.Mascomonãoeranemmesmoamigodafamília,ofereceu-separaouviroqueelaquisessedizer, fossemmentiras,calúniasecomentáriosmoralistas.Enãoprecisouperguntarmuitoparadescobriroquequeriasaber.
DonnaScalcoe, esposa deGerald, era—nas palavras deEssie—umpoçode fingimento: loiraoxigenada, sorridente demais para ser honesta e falsa como uma cobra. Tão magra que talvezfosse talcoólatra... ou anoréxica. Gerald era seu segundo marido; embora já estivessem casados pordezoitosanos,Essieacreditavaqueauniãonãoseriaduradoura.Emsuaversão,ocomportamentodasduasfilhasdocasal,gêmeasdedezesseisanos,eratãodesregrado,licenciosoepecaminosoquebandosderapazesrondavamamansão,comocãesàprocuradecadelasnocio.
GeraldScalcoeeraproprietáriodetrêsprósperaslojasdeanti-güidadesemCarmel,masEssienãosabiaexplicarcomoaslojasdavamtantolucro,sendoeleumbeberrãolibertinoeignorante,semomenortinocomercial.
Parker mal roçou os lábios pela xícara de café e não tocou nos bolinhos. Essie Craw era tãovenenosa que ultrapassava os limites da simples maledicência e raiava a desumanidade, o que ofazia sentir-se muito mal sob seu teto, com vontade de levantar-se, sair e esquecer os Scalcoe parasempre.
De qualquer modo, conseguiu algumas informações importantes. Os Scalcoe haviam partido derepente,semmaioresexplicações,eviajaramparaNapaeSonoma,naregiãodosvinhos.Estavamtãoansiosospelodescansoqueseesqueceramdedeixarendereço.NemossóciosdeGeraldsabiamondeencontrá-lo,oque levavaEssieasuporqueossócioseramladrõesequeGeraldqueria livrar-sedosnegócios.
—Elemetelefonounodomingo;dissequeiamviajarevoltariamnodiavinte—Essiecontou.—Pediu-meparadarumaolhadanacasa.Émuitodesagradáveltervizinhosquenosimpõemtarefasdessetipo...comoseeunãotivessemaisnadaafazersenãocuidardacasadosoutros.
—Chegouafalarpessoalmentecomalgumdeles?—Não...Achoqueestavamcommuitapressadeviajar.
—Vocêosviupartir?—Não...Ebemquetentei.Devemtersaídoquandoeuestavaocupada.—Asgêmeasviajaramcomeles?Nãoestãonaescola?— Estão... mas é uma dessas escolas modernas. Modernas demais para meu gosto, aliás as
professorasdizemqueviajarétãoimportantequantoassistiràsaulas.Jáouviuestupidezmaior?—EGeraldScalcoe...quandofaloucomvocêaotelefone...pareciaestranho?— Estranho? Não. Parecia nervoso... como sempre. Devia estar bêbado. Falava aos trancos,
enrolavaalíngua...Claro!TalvezDonnaotenhalevadoparainterná-lonumaclínicadedesintoxicação!Deveserisso.
Erademais.Parkerlevantou-separasair,eEssieplantou-sediantedaporta,falandosemparar.Senão havia gostado do café... talvez chá? Ou croissant de nozes? A vontade férrea e o desejo in-quebrantávelquefizeramdeParkerFaineumdosgrandespintorescontemporâneosforammaisfortes,eeleconseguiuescapar,primeiroatéavarandaelogo,correndo,atéacalçada.Essieseguiu-oatéocarroverde-vômito,que,consideradasascircunstâncias,parecia lindocomouma limusine,porquepermitia-lhe fugirda redevisguentadaquelamulher.Pisandonoacelerador,Parker escapoucomoColeridge,ograndepoetainglês:
“Comoohomemque,numaestradadeserta, foge commedoehorror e, tendoumavez espiadoparatrás,voltaacabeçaesegueemfrente.
Porquesabequeumdemônioopersegue,deperto,correndopelaestrada.”Dirigiuaesmopelacidade,pormaisdeumahora,reunindocoragemparafazeroquesabiasernecessário.Porfim,voltouàcasadosScalcoe,estacionoujuntoà
alameda, aproximou-se da porta e tocou a campainha sem parar, durante três minutos. Se houvessealguémemcasa,aindaquenãoestivessedispostoarecebervisitas,acabariaatendendoàporta,paraselivrardotormentodasirenesoprandonosouvidos.Masninguémapareceu.
Parkerandoupelavarandaeespioupelasjanelasdafrente,comosefosseumconhecidodafamília,embora,naverdade,tomassecuidadoparaqueEssieCrawnãoovisse.Namansão,ascortinasestavamcorridas e não se via sinal de vida. Parker desceu pelos fundos da varanda e contornou a casa,mergulhandonasáreasdesombra.Experimentouotrincodealgumasjanelas—todasbemfechadas.Nosfundoshaviacanteirosde flores,umgrandepátiode lajotas,umbarealgunscarosmóveisde jardim.Parkeraproximou-sedaportadacozinha,encostouoombronovidroequebrou-o;então,meteuamãopelo buraco, abriu o trinco, afastou as cortinas e entrou. Parou, atento. Nada. A casacontinuavamergulhadaemsilêncio.Acozinha ligava-seàcopa iluminadapelaclaridadequevinhadopátio.Parkerpassoupelalareiraepelamesadebilhareparou,petrificado,aoveroalarmenaparede.Conhecia o aparelho desde os tempos em que construíra a casa de Laguna Beach e fora obrigado ainformar-se sobre equipamentos de segurança. Fez menção de girar sobre os calcanhares e fugir,quandoselembroudapequenalâmpadavermelhaquedeveriaficaracesaseoaparelhoestivesseligado.A lâmpada estava apagada: não havia o que temer. Os Scalcoe esqueceram-se de ligar o alarmequandosaíramdeférias.
Acopaeraagradável,bemequipadaemoderna.Parkeratravessou-aechegouàsaladejantar,queestavaàsescuras.Depoisdeavaliarosriscos,decidiuacenderasluzesparacontinuarsuasinvestigaçõesdeespiãoamador.Parououtravez,noliving,àprocuradesinaisdevida.Nada.Osilênciooenvolvia,profundoepesadocomosilênciodecemitério.
Quando Brendan Cronin chegou à cozinha dos Block, depois de acordar tarde e tomar um longobanhodechuveiro,encon-
trouMareieocupadaemcolorirluasemurmurandoindiferenteatudoeatodos.Chegouapensarem
usar seus poderes para tentar ajudá-la, mas logo afastou a idéia. Enquanto não tivesse certeza decontrolaroquefaziacomasmãos,seriamuitoarriscadotentaroutracura.
Jack e Jorja acabavam de comer a omelete com torradas e receberam-no com carinho. Jorjaofereceu-separapreparar-lheumprato,masBrendanagradeceu:queriaapenascafé,forteequente.
Viuasquatropistolassobreamesa,aoladodeJack.DuaspertenciamaErnie.Asoutras,opróprioJacktrouxeradeNovaYork.Ninguémmencionavaasarmas,poissabiamqueoinimigoestavaàescutaenãoeraconvenienterevelaroarsenaldequedispunham.MasasarmasdeixavamBrendannervoso.Elepressentiaqueseriamusadas,váriasvezes,aindaantesdofimdaqueledia.
Jánãoeraohomemotimistadachegada,talvezporque,pelaprimeiravezemsemanas,naquelanoitenãosonhara.Dormirasemsonhar...oqueapenasofrustrava.Aocontráriodosoutros,noiteapósnoitetinhasonhosdeslumbrantesqueoenchiamdeesperanças.Semsonhos,asnoitespareciamvazias...eissoodeixavatensoepreocupado.
—Achoquevainevar—comentousentando-separatomarocafé.—Esemdemora—Jackconcordou.Océupareciadepedra,duroecinzentocomogranito.Revezando-se comoprimeirogrupo,NedeSandySarver foramparaElko, navéspera, encontrar
Jack,JorjaeBrendan.Dasquatrodamanhãàsseteemeia,andarampelacidadecumprindoseuturnoequandovoltaramaomotel todos jáhaviamsaídoparaas tarefasdamanhã.Asoitohoras tomaramumrápidodesje-jumeforamdormir,preparando-separaalonganoitequeosesperava.
Nedacordoupoucodepoisdasduasdatarde,masnãosele-vantou.Deixou-seficarnacama,noquartoempenumbra,vendoSandydormir.Amava-amaisque
nunca,comumamorforteeprofundo,quefluíacomoriocaudaloso,levando-osparaumavidamelhor,alémdasdoresedaspreocupaçõesdomundo.
Ned daria qualquer coisa para saber falar com a mesma habilidade com que consertava objetosquebrados.Asvezes,ocorria-lheaidéiadequenuncadisseraaSandyoquantoaamava.Cadavezquetentava,acabavaenrolando-senasfrases,longasdemais,complicadasdemais,cheiasdeimagenspesadaseidiotas.Nasceramesmoparaconsertaroquesequebrava,asas,pessoas...Masdebomgradotrocariatalhabilidadepelodomdapalavra,pelafraseperfeita,queexpressasseossentimentosmaisprofundos.
•Olhandoparaamulher,percebeuqueelatambémestavadesperta.—Jáacordou?—perguntou.Sandysorriueentreabriuosolhos.—Fiqueicommedodevocê.Estavameolhandocomosequisessemecomerviva...—Vocêestáumadelíciaparasercomidaviva.Láissoéverdade...Elaafastouascobertase,nua,abriuosbraçosparaomarido.Os dois mergulharam então no ritmo conhecido do amor, em que se tornarammestres depois do
desabrochardeSandy.Mais tarde, quando descansavam lado a lado na cama, de mãos dadas, ela sorriu para Ned e
declarou:—Achoquesouamulhermaisfelizdomundo.Vocêmefezfelizassimqueovi,noArizona,há
tantotempo.Desdequecomeçouacuidardemim,quemelevouparaseuninho,vocêsempremefezfeliz.Sinto-metãofeliz,agora,que,seDeusmefulminassecomumraio,nesteexatoinstante,eunãoteriadoquereclamar.
— Não fale assim—pediuNed.Ergueu-se sobreumcotovelo,virou-separaela eolhou-adefrente.—Nãoqueroquefaleassim.Nãoébom...Podedarazar.Estamosmetidosnumaenrascadadosdiabos...eébempossívelqueumdenósmorra.Emelhornãodesafiarodestino.Nãoqueroquefaleem
morrer.—Vocênuncafoisupersticioso...—Eusei,masagoraédiferente.Nãoqueroquevocêdigaqueestátãofelizquepoderiamorrer
semreclamar.Ouviubem?Nãoqueronemquepensenisso.Abraçou-a, puxando-a para cima de seu corpo, e estreitou-a com força, até sentir o coração da
mulherbaterdeencontroaoseu.Derepente,jánãoouviamaspancadasdosdoiscoraçõespulsandoaomesmoritmo,masdeumúnico,imenso,cheiodeamor.
Na casa dos Scalcoe, emMonterey, Parker continuava a procurar respostas para as perguntas deDom.Em primeiro lugar, era preciso achar alguma prova de que a família estavamesmo emNapa eSonoma:umcatálogodehotel,umnúmerodetelefoneparaondeligareperguntarsehaviamchegadoemsegurança. Ou algum indício de que costumavam viajar para a região dos vinhos... uma agenda detelefones,porexemplo.Ou,sefosseimpossívelprovarquesimplesmentesaíramdeférias,algumsinaldequeforamtiradosdecasaàforça:manchasdesangue,mobíliarevirada,roupasatiradaspelochão.
Dom pedira-lhe apenas que fosse a Monterey e entrasse em contato com a família; ficariaboquiaberto se soubesse que ele arrombara uma porta e, naquelemomento, empenhava-se emplena ecriminosa invasão de domicílio.Mas Parker Faine não era homem de fazer as coisas pelametade, edeliciava-secomaaventura,apesardocoraçãoquebatiaaceleradoedagargantaseca.
Depoisdo living,vinhaabibliotecae,poucoadiante,umasalademúsica,compiano,estantesdepartituras, cadeiras, dois estojos de clarinetas e uma barra para exercícios de balé. Asgêmeas“devassas”,comcerteza,eramadeptasdamúsicaedadançaclássica.
Nãohaviamaisoqueprocurarnapartesocialdacasa,eParker,devagar,dirigiu-separaosquartos.A luz do piso inferior subia pelos degraus carpetados, fazia brilhar o corrimão de carvalho polido echegava até o hall do andar superior.Depois, escuridão. Ele parou no hall, asmãos úmidas de suor.Nada.Silêncio.Difícilentenderporquepressentiaquehaviamaisalguémem
casa.Talvezfosseinstinto.Talvezdevesseconcentrar-seeouviroquelhediziamseussentidosmaisprimitivos. Mas... se houvesse realmente alguém escondido ali, esperando para atacá-lo, por que odeixariasubir?Porquenãooatacaranoliving,porexemplo,ounacozinha?
Continuoupelocorredor,atéqueouviualgumacoisa.Umzumbido,umacombinaçãoestranhadebipeblip,umsomquevinhadosdoisquartosnofimdohall.Primeiro,Parkerpensouquefosseoalarmecontraladrões.Masdequeserviriaumalarmequemalsepodiaouvir?Oruídoeracontínuo,ritmado:bip-blip...
Estendeu a mão para o interruptor, acendeu a luz e esperou. O ruído continuava, vagamenteconhecido,porémimpossíveldeidentificar.
Avelhacuriosidade,jácrônica,esempresujeitaacrisesagudas,empurrou-oparaafrente.SemelaParkernão teria conseguidoganhar avidacomoartista.Curiosidadeé a almadacriatividade.Assim,curiosocomoumacriança,seguiuadiante,acompanhandoobip-blip.Aofimdocorredor,jáouviadoisruídosdiferentes,cadaumcomseuritmopróprioeambosvindodeumdosquartosescuros,cujaportaestavaentreaberta.
Parker respirou fundo, empurrouaportae entrounoquarto.Nãovianada, eninguémoatacou.Oruídocontinuava,plenamenteaudível,muitopróximo.Então,elepercebeu,naescuridãocompleta,umaluzinhaverde,muitofraca,definindo-seàmedidaqueseusolhossehabituavamàescuridão.Acendeualuze...viuasgêmeas.
Foi aprimeira imagemque se formouemsuas retinas.Pareciammortas, deitadasumaao ladodaoutranumacamadecasal,olençolpuxadoatéopescoço,osolhosabertos.Parkerpercebeuqueobip-blipvinhadosaparelhosdeeletroencefalogramaeele-trocardiograma,cujos fios ligavam-seàcabeça
dasmeninas.Viu as agulhas espetadas em seus braços.E entendeu que elas não estavammortas,masdrogadas,emplenoprocessodelavagemcerebral.Aqueletalvezfosseumquartodehóspedes,eleganteeim-
pessoal.Asgêmeasforamcolocadasali,nacamagrande,porqueoarranjotornavamaissimplesotrabalhomédico.
Mas onde estariam... eles? Onde estariam os seqüestradores, os torturadores, os carrascos?Confiariamemseusmétodosapontodedeixarafamíliafechadaemcasasemguardasesemassistência?
Parkeraproximou-sedacamaepassouamãodiantedosolhosdeumadasgêmeas.Elanempiscou.Tinha fones nos ouvidos, e, ao lado de sua cabeça, uma fita rodava devagar num gravador. Fainedebruçou-seeaproximouoouvidodofone.Umavozdemulherfalavasuave,manso:“Nasegunda-feiradormiaté tarde.Ohoteléótimoparadormiraté tardeporqueé silencioso,asar-rumadeirasentramesaemsemfazerbarulho.Ecomoumclubedecampo.Nemparecehotel,daquelesqueasarrumadeirasbatem portas desde a madrugada. A região dos vinhos é incrível... Eu adoraria viver lá! Quandoacordamos, Chrissie e eu fomos dar um passeio pelo campo, para conhecer algum gatinho... masnãoencontramosninguém”.
Umsomhipnótico,queoassustou.ComcertezaosbloqueiosdememóriadosScalcoecomeçavamaceder.Alguémdafamília, talvez
todos,lembrava-sedoqueviranoMotelTranqüilidade,emjulhodoanoretrasado.Tornou-senecessárioinduzi-los a esquecer tudo outra vez. Para cobrir o período de tempo da segunda lavagem cerebral,estavamrecebendooutroconjuntodelembrançasfalsas,ahistóriaqueavozderobôrepetia,semparar,nosfonesdeouvido.
Domfalara sobreo assuntopelo telefone,no sábadoenodomingoànoite,masParker aindanãosentira de perto o horror e amonstruosidade da conspiração em que se envolvia. A horrível voz dogravadorrevelou-lheaverdade.
Rodeouacamaeaproximou-sedaoutragarota, imóvel, àsvezescomosolhosparados, àsvezespiscandomuito,comoemconvulsão.Pensouemremoverasagulhas,desligarosaparelhosecarregarasmeninasparafora.Não.Eramelhoracharumtelefoneechamarapolíciaparacuidardelas.
Nãosaberiadizerporquantotempoeraobservado,mas,dere-pente,sensaçãofulminantecomoumraio,percebeuquenãoestavasozinhocomasgêmeas.Saltou
para a porta antes de pensar, mas não conseguiu fugir. À saída, esperavam-no dois homens de calçaescura,camisabrancacommangasarregaçadasatéocotoveloegravata frouxanocolarinhoduro.Umterceiro,deóculos,ternoegravatanolugar,aguardavanohall.
Agentes federais.Quemmais seria idiotaobastanteparaestarnaCalifórnia, fechadoemcasa,deternoegravata,matandoduasmeninasdedezesseisanos?
—Mas...quediabosestáfazendoaqui?!—perguntouumdeles.Parkernãoperdeutempoemexplicarqueerapintor,ouemtentaresmurrá-loscomo“mocinho”de
cinema,ouemexigirquerespeitassemseusdireitosdeirevirgarantidosatodocidadãocumpridordalei.Ficoudebicofechadoecorreuparaajaneladevidro,ocultaatrásdascortinas.Sótevetempodepensar que a janela não eramuito resistente, queo vidroquebraria sob seupeso, que as cortinas e ajaqueta de inverno o protegeriam dos cacos e que ele tinha chances de chegar lá embaixo antes queos federaispercebessem.Seas cortinas fossemmaioresquea janela,ou senãohouvesse janela atrásdelas,estariaperdido.
Sempestanejarcorreuparaocortinadocomoumalocomotivasemfreio.Ouviuosvidrosquebrarem-se,sentiuoimpactodasvenezianasdemadeiraederepentepercebeuqueconseguiraescapar.Estavanavaranda,àluzdamanhã.Daliparaochão,eraumpulo.Eelesaltouporsobreabalaustrada,pedindoa
Deusqueolivrassedasorteinglóriadeenganchar-senumaárvoreesercapadoporalgumgalhoseco.Nãofoi.Caiuaochãointeiro;arranhado,assustado,masinteiro.
Disparou a correr. Viu folhas voando sobre a cabeça, viu uma lasca de árvore arrancada, acentímetrosdeseuombro,edeu-secontadequeatiravamnele.Entãonãoparoudecorrer.Viaos tiros,masnãoouviaosestampidos.Armascomsilenciador.Continuoucorrendo,chegouatéacercanoslimitesdogramado,caiunumatouceiradeazáleas, levantou-se,seguiuadiante,saltououtracercaenãoparoumais.
Oshomenstinhammesmoquetentarmatá-lo,paraevitarqueeleabrisseaboca.Naquelemomento,comcerteza,estavamremovendoasmeninas...oumatando-as.
Eseachasseumtelefone,chamasseapolícia?Oqueaconteceria?Dequeladoficariaapolícia,seosassassinosfossemagentesfederais?Emquemacreditariam?Numgrandepintorfantasiadodeartistaexcêntrico,decabelocompridoebarbaporfazer,ounoshomensdoFBIcomseusternosegravatasearmascomsilenciador,posandode salvadoresdahumanidade?... defendendoos cidadãoshonestosdeassaltosdegentecomoParkerFaine?
Continuoucorrendo.Deixouparatrásocalhambeque,escorregouporumgramado,equilibrou-senotopoestreitodeummurodepedra,andounomeiodospinheiros,atravessouoquintaldeumacasaesaiupor outro, na rua de trás.Obrigou-se a andar por rüas onde havia gente, porque não queria chamar aatenção.
Sabiaperfeitamenteoquetinhaafazer,agoraquecomeçavaadescobriraextensãodocalváriodeDom.Claroqueoamigoestavametidonumaconspiraçãodeproporçõesgigantescas,claroquesabiaquecorriaperigo...masumacoisaésabercomacabeça,eoutra,bemdiferente,ésabercomastripas.TinhadeirparaElko.Domeraseumelhoramigoeprecisavadeajuda.Oquemaispoderiafazernummomentocomoaquele?Ajudá-lo,sóisso...
Claroquepodiafingirparasimesmoquenadaacontecera.Podiavoltarparacasa,tranqüilamente,econtinuar a pintar... Se fizesse isso, porém, jamais voltaria a beber com a consciência tranqüila, nemseria capazde gostar de si próprio.Tragédias intoleráveis para umbeberrão egocêntrico, apaixonadopelopróprioperfil...
DeviairatéoaeroportodeMontereyetomarumaviãoparaSanFrancisco.Delá,dariaumjeitodechegaraNevada.Osfederaisnãopensariamemfecharoaeroporto,porquenãosabiamqueeleeraumforasteiro.Achavedocarrotinhaumaetiquetadalocadoradoaeroporto,masestavabemguardadanofundodobolsodajaqueta.Emumahoraouduas,evidentemente,acaba-
riamdescobrindoqueocarroforaalugadonoaeroporto...etalvezdescobrissemquemeraele.MasatéláParkerjáestariavoandoparaSanFrancisco.
Continuou andando.Numa rua tranqüila, já distante da casa dos Scalcoe, encontrou um rapaz, dedezenoveouvinteanos,escovandocaprichadamenteasbandasbrancasdeumvelhoautomóveldadécadade50,restauradoerecém-repintadodeamare-lo-brilhante.
—Escuteaqui,amigo—disseParker,aproximando-sedorapaz—,meucarroquebroualinaoutrarua,eeutenhoquetomarumaviãodentrodemeiahora.Estoumorrendodepressa.Seráquevocêmelevariaaoaeroportopor...cinqüentadólares?
O rapaz concordou e, no percurso, revelou-se exímio motorista. Não fosse assim, teriam ambosmorridoemqualquerumadasdezenasdecurvasqueelefez,rangendoospneusejogandooponteirodovelocímetronamarcadavelocidademáxima.
Noaeroporto,ParkerdescobriuqueopróximovooparaSanFranciscodecolavaemdezminutos.Foiotempodecomprarapassagemecorrerparaoembarque,certodeencontraroaviãojátomadopelosfederais,masnãoviunenhumdelesnaescadadoaparelho,ládentroounacabinedocomandante.Meia
horadepois,sobrevoandoaCalifórnia,começouapreocupar-secomosegundoproblemaquetinhapelafrente:comoconseguirumvoodeSanFranciscoaReno,antesqueoshomensdescobrissemsuatrilha.
Das janelas do apartamento dos Block, Jack Twist examinava a paisagem, procurando postos deobservaçãodaDERO.Haviapelomenosumnaquela área, tinhaquehaver, e, pormais escondidoouinvisívelquefosse,Jackprecisavalocalizá-locomprecisão.
Prevendo uma situação como aquela, levara consigo outra de suas engenhocas: um instrumentoconhecidopeloserviçosecretodoExércitocomotermodetetor.Semelhanteaumadessasarmas lança-raios, que aparecem em filmes de ficção científica, possuía no lugar do cano um conjunto de lentessensíveisaoca-
lor.Bastavaseguraroaparelhosobreapalmadamão,apontá-loparaaáreaaserobservadaeespiarpelovisor,comosefosseumtelescópio.Orientando-oparaumapaisagem,porexemplo,oobservadorteria a imagemampliada do terreno e, sobreposta a ela, a representação cromática de todas as fontesemissorasdecalorexistentesemseucampovisual.Plantas,animaiserochasaquecidaspelosolrecebemeemitemcalor,masatecnologiaavançadadoaparelhoconseguiaselecionarasfontes,detetandoapenasasquepesavammaisdetrintaquilos—entreasquaisseincluíamsereshumanos.Assim,mesmoqueoshomens de Leland estivessem com trajes de plástico, que retêm grande parte do calor do corpo, oaparelhoacusariasuapresençanumraiodemuitosquilômetros.
Jackvasculhouaáreadosfundosdomotel,aonorte,atétercertezadequenãohavianinguémporali.Nadireçãooestetambémnãoencontrouvestígiodepresençahumana.Então,postou-seàjaneladoladosul.
MareieacabaradecoloriraúltimaLuadoálbumeaproximara-se,calada,vendo-otrabalhar.Talvezgostasse dele, pois Jack sempre lhe dava muita atenção, mesmo que ela sequer o olhasse. Talvezestivessecommedoesesentissemaissegurasabendo-oporperto,ouqualqueroutrarazãomaisdifícildeidentificar.Jacksabiaquepororanãohaviaoquefazerporela,alémdecontinuarfalandocomcalma,emvozbaixa,edeixarqueameninaoseguisseatodaparte.
Jorjatambémoacompanhavae,emboranãolhefizesseperguntas,neminterferisseemseucampodevisão,perturbava-omuito.Eraumamulhermuitobonita,porémissonãoeraomaisimportante.ParaJackTwist,oimportanteéquegostavadela.PercebiaqueJorjasentia-sebemaseulado,masnãosabiaseaatraíacomohomem.Pensandobem,oquehaveriadeatraentenumcriminosoconfesso,decaraamassadae,aindaporcima,vesgo?Dequalquermodo,poderiamseramigos,oqueeramelhorquenada.
Finalmente,espiandodajaneladasala,Jackencontrouoqueprocurava:ondasdecaloremitidasporseres humanos.Duasmarcas coloridas,muito nítidas no visor, escondidas nas colinas, a quatrocentosmetros domotel.Os dados numéricos indicavam as dimensões aproximadas da fonte: tratava-se, semdúvida, de dois homens.Agora bastava-lhe examinar a área com um bom binóculo emuita paciênciapois,comcerteza,oshomensusavamtrajesdecamuflagem.
—Bingo!—Jackexclamouderepente.Jorja não disse palavra, porque, como todos, aprendera bema lição da véspera: tudo que diziam
podiaestarsendoouvidodelonge.Ajustandoaslentes,Jackcontinuouaobservar.Oshomensestavamempésobreaneve,eumdeles
carregavaumpossantebinóculopenduradoaopescoço.Jackdirigiu-separaajanelaqueseabriadoladoleste, retomou o termodetetor e vasculhou toda a área a sua frente: nada. Os homens de Lelandconcentravam-senosul,diantedafachadaprincipaldomotel—edaúnicaviadeentradaesaída.
FalkirksubestimaraJackTwist.Conheciasuahistóriaesabiaqueeraumsujeitoesperto,masaindanãoconseguiaavaliarograudesuaesperteza.
Áumaequarenta,anevecomeçouacairemflocos levesemacios.Vinteminutosdepois,quando
ErnieeDomvoltaramdamissãodereconhecimentodaáreaexternadeThunderHill,JackchamouErnie:—Daquiapouco,quandocomeçaranevardeverdade,vaiaparecergentequerendosehospedar
aqui, pois mesmo sem os luminosos acesos, há de ver os carros no estacionamento. Não será fácilexplicarqueomotelestáabertoparaunsefechadoparaoutros.Porisso,levemtodososcarrosparaosfundos.Nãoquerogenterondandoaqui.
Eraumtruque.SabendoqueoshomensdeLelandoouviam,inventaraaquelahistóriaparajustificaros carros estacionadosnos fundos, fora do alcancedosvigias.Mais tarde, quando escurecesse, todoseles partiriam doMotel Tranqüilidade, e Jack não queria que ninguém seguisse o caminhão e o jipelotados.
Erniepiscouoolho,fezumsinaldepositivocomopolegarechamouDom:—Venha.Vamostratardissoagora,paranãoterquesairdebaixodaneve,maistarde.Nacozinha,NedeSandyultimavamopreparodossanduíchesquelevariamnaviagem.Depois,era
sóesperarqueFayeeGin-gervoltassem.Anevasca aumentavade tempos em tempos, transformandoodia emnoite.Asduas e quarenta, o
ventocessoueanevepassouacaircomoumvéubranco,reduzindoavisibilidadeapoucomaisdedezmetros.Nascolinas,oshomensdaDEROrecolheramoequipamentodevigilânciaetrataramdeprocuraroutropostodeobservação,maispróximodomotel.
Jacknão tiravaosolhosdo relógio.Sentiaqueo temposeesgotava,masnãosabiaquantashorasaindalhesrestavam.
Enquanto o tenente Horner consertava o detetor de mentiras, Falkirk esbravejava com o majorFugata, chefe da segurança de Thunder Hill, e seu assistente, o tenente Helms, afirmando que ambosencabeçavam a lista de possíveis traidores. Fez dois inimigos de morte, o que absolutamente não opreocupava.Nãoprecisavaqueossubalternosoamassem:queriasóquesentissemmedo.
AindanãoterminaraodiscursoquandochegouogeneralAl-varado,umhomemgordoebarrigudo,comdedosgrossoscomosalsichasevastapapada.Ogeneralentrouaosberros,sempedirlicença:
—EverdadeoqueodoutorBennellacabademecomunicar,Falkirk?Nãopodeser!Vocênãoseatreveriaareprogramarasegurança...enosdeixarpresosaqui!
Osolhosfuzilando,masavozcontroladaerespeitosa,Lelandlembrou-lhequeeraresponsávelpelasegurançadoprojetoe,portanto, tinhaautoridadesuficientepara introduzir,quandobementendesse,ocódigosecretonoscomputadoresquevigiavamentradasesaídas.
—Equemlhedisseisso?—Alvaradoperguntou.— OgeneralMaxwellD.Riddenhour,chefedoEstado-MaiordoExércitodosEstadosUnidos,
senhor.— Nãoacredito.—Nãoerapossível.Nãopodia ser.OEstado-Maior jamaisodesautorizaria
peranteumsimplescoronel.—PorquenãoligaparaogeneralMaxwell,senhor,eperguntaaele?—Lelandretirouumcartão
dobolsoeestendeu-oaAlva-rado.—Aquiestáonúmero.—Euseionúmero!—gritouAlvarado,fuzilando-ocomoolhar.— Esseéo telefoneparticulardogeneral.Casoeleestejade folga...osenhoroencontraráem
casa.Creioqueeleconcordaráematendê-lo,jáqueenfrentamosumagraveemergência.Espumandode raiva,Alvarado agarrouo cartão, deumeia-volta e saiuda sala comoum furacão.
Voltouquinzeminutosdepois,pálidocomoumcadáver:— Estáconfirmado—disse,semolharparaninguém.—Apartirdestemomento,osenhoréo
comandantedabasedeThunderHill.—Não.Osenhorpermanecenocomando.
—Mas...souseuprisioneiro...— Osenhorpermanecenocomando—repetiuocoronel, impaciente—,noplenogozodesua
autoridade.Eseráobedecidosemprequesuasordensnãoentrarememconflitocomas instruçõesquedareiaopessoalnosentidodeimpedirqueelementosperigosos...queponhamemriscoasegurançadacomunidade...escapemdestabase.
Alvaradobalançouacabeçaecomentou:—PeloqueouvidodoutorBennell,osenhorparececonvencidodequenostransformamosnuma
espéciede...monstros.Issoéloucuratotal...Monstros...Ignorandoocomentário,Falkirkprosseguiu:— Como o senhor sabe, um ou mais oficiais ou cientistas residentes nesta base sabotaram a
segurançaeenviarammensagensaalgumastestemunhas,comoobjetivodeliberadodeatraí-lasparacá.Sem dúvida os criminosos esperavam fazer com que elas se lembrassem do que viram. O plano eraenvolveraimprensaeaopiniãopública,enosforçararevelaraomundonossosegredo.
Nãodescarto apossibilidadedequeesses traidores tenhamsidomovidosporboas intenções.Oscientistassãoingênuoseincapazesdeavaliarosriscosaquenosexpõem.
—Monstros...—Alvaradorepetiu,aindabalançandoacabeça.Consertadoodetetor,LelandencarregouFugataeHelmsdeinterrogartodososoficiaisdequalquerpatenteeoscientistasresidentesemThunderHill;ordenou-
lhesquecomeçassempelosquetinhamconhecimentodosegredoescondidonabasefaziadezoitomeses.— Senãodescobriremo traidoreuosmato—disse,navozfriadesempre.Nãoprecisavade
emoção para saber o que tinha a fazer. Se não encontrassem o traidor, só haveria umaexplicaçãoposSível...ocomplôassumiraproporçõesdemotimeenvolviaa todosemThunderHill;acontaminaçãoalastrara-seetodos,nabase,estavaminfetados.Claroqueteriadematá-los.
Àumaequarentaecinco,LelandeHornervoltaramaShenk-field,deixandoopessoaldodepósitotrancado em suagigantesca tumba subterrânea.Mal chegaram receberammásnotícias, por cortesia deFosterPolnichev,diretordoFBIemChicago.
Paracomeçar,CalvinSharkleestavamorto,emEvanston, Illinois.Se isso fosse tudo,atéquenãoseriatãomau,porémhaviamais:alémdelehaviammorridoairmã,ocunhadoeumaequipeinteiradoesquadrãoespecial.Oassuntoeramanchetedos jornaisedas televisõesdacidade,evidentementeporcausadaviolência.OsvampirosdaimprensaencontraramsanguenaRua0’Bannonenãodesocupariamaárea enquanto não se saciassem. Pior: as loucuras que Sharkle gritara da janela despertaram acuriosidadedeumjovemrepórteràcaçadematériassensacionalistas.HavianotíciasdequeestariaacaminhodeNevada,comoendereçoetelefonedoMotelTranqüilidadenaagenda.ErarazoávelimaginarquepoderiaseaproximardeThunderHill.
Comoseaindanãobastasse,Polnichevfalavade“coisasestranhíssimasqueandamacontecendoporaqui”.Porexemplo:umtiroteioentreapolíciaeummarginal,numdoscortiçosdocentro,terminoucomumhomemmortoeummenino...ressuscita-
do.OpatrulheiroWintonTolk,cujavidaopadreCroninsalvara,realizouomilagrecomofilhodosMendoza. Isso significava que o padre contagiara o policial... E o que mais lhe transmitira nessecontágio, além da misteriosa capacidade de cicatrizar tecidos? Devia ser algo muito terrível... ummonstroperigoso,quecresciadentrodeTolk.
Começavaoapocalipse.LelandsentiunáuseasaosaberdasnotíciasdeChicago.OFBIinformavaqueopatrulheiroaindanãofalaraàimprensaeestavafechadoemcasa,semquerer
verninguém.Noentanto,comocentenasderepórterescercassemacasa,eradeseesperarqueaqualquermomentoumdelesacabariaentrandoefalandocomopolicial.NãohaviacomoimpedirqueTolkcitasse
onomedeBrendanCronin.EdeCroninaEmmyHalbourgeraapenasumpasso.A menina... O outro pesadelo! Polnichev contou que, após a incrível ressurreição do filho dos
Mendoza,correraavisitarosHalbourg,paraver seagarota tambémandava fazendomilagres, jáquefora curada por Brendan. O que encontrou quase o fez desmaiar. Sua primeira reação foi prevenir afamília para que se mantivesse longe da imprensa. Em seguida, porém, temendo que uma simplesadvertêncianão fosse suficiente, resolveuprendê-los.Naquele instante, osHalbourg estavamnumdosendereços secretos que o FBI usava regularmente, sob a vigilância constante de seis agentes. Osprimeiros relatórios eramdesanimadores.Mais assustados comEmmydoque ela com suas armas, osagentespermaneciamunidostodootempo,aoinvésderevezar-se.TinhamintruçõesclarasparamatarafamíliainteiraaoprimeiromovimentosuspeitoouincompreensíveldeEmmy.
—Nãoseidequeadiantarámatá-los—Polnichevdiziaaotelefone.—Jánãohácomomanterosegredo.Perdemosocontrole.Aúnicasaídaquevejoéabrirojogo.Iraosjornaisecontartudo.
—Vocêestálouco?!—Lelandberrou.— Nãopodemos sairpor aímatandopessoas a torto e adireito!Oqueéquevocêquer?Que
matemososHalbourg,osTolk,osMendoza,todasassuastestemunhasdomotel?!Nãohásegredoquejustifiquetamanhacarnificina!—Vocênaosabeoqueestádizendo!—Falkirkcontinuavaagritar.—Aquestãojánãoseresume
em divulgar o segredo ou não! O segredo não temmais tanta importância. O problema é outro! E aespécie humana que está em perigo! Se divulgarmos o segredo agora, não poderemos sair por aícombatendoainfecçãopornossosmeios,porqueessespolíticosmalditoscairãoemcimadenós,comosliberaisecomtodososidiotasdopaís,e...aí,sim,estarátudoperdido!
—Poisajulgarpeloquetenhovistoaqui,operigonãoétãosérioquantovocêpensa—Polnichevargumentou.—Claroque instruíosagentesqueestãovigiandoosHalbourga teremcuidado,masnãoacreditoqueameninasejaumaameaça...Emmynãoéummonstro!Ebonita, saudável.NãoseioqueBrendanfezcomela,nemimaginocomoelaconseguefazertodasaquelascoisas,masapostominhamãodireita como a garota não ameaçaria a vida de uma mosca! Ah, se o senhor a visse... E... incrível!Achoqueestamosassistindoaoespetáculomaisdeslumbrante...desdequeomundoémundo!
— Claro...— Falkirk tentou controlar-se.—E exatamente isso que o inimigo quer nos fazerpensar.Sevacilarmos...nãosaberemoscomolutar.Eestaremosderrotadosantesdeaguerracomeçar.
—Escute...SeCronin,Corvaisis,TolkeEmmyestivessemcontaminados...sejánãofossemgentecomonós,porémmonstros,nãoestariamfazendomilagres!Estariamescondidos,esperandoomomentodeatacar!Etentariamcontaminaromaiornúmeropossíveldepessoas.
—Nãosabemosoquepodemestarplanejando—Lelandrespondeu,avozcalma.—Nãosabemoscomo funciona o agente infeccioso. Talvez omicróbio tome conta do cérebro deles. Talvez os torneescravosdesuavontade.Epossívelatéqueohospedeironemsaibaqueestácontaminado.Nemsabemosseoagente émesmoummicróbio...Dequalquermodo, essagente jánão éhumanae é com issoquedevemosnospreocupar.Nãopode-
mos confiar neles! Trate de prender também os Tolk. Toda a família. Ponha-os de quarentena.Urgentemente!
—JálhedissequeacasadosTolkestácercadaderepórteres.Seformosláprendê-losamanhãosenhorverámeuretratonasprimeiraspáginasdosjornais...EadeushistóriadevazamentoquímicoemShenkfield!Emboraeujánãoconcordecomaidéiademanterasmentirasqueinventamos,nãoqueroseroprimeiroapagaropato.
Acontragosto,Lelandconcordou.Osargumentosfaziamsentido.—Estãovigiandoacasa,pelomenos?—perguntou.
—Diaenoite.—EquantoaosMendoza?SeBrendantocouemTolkeocontaminou,eTolktocounogaroto...— Estamos de olho na casa, mas também não podemos nos aproximar muito por causa da
imprensa.OterceiropesadeloeraopadreWycazik.EstiveracomosMendozaesaíradeládiretamenteparaa
casadeEmmy,antesdePol-nichevsaberoquesepassava.Horasmais tarde,umdosagentesdoFBIidentificou-oentreamultidãoqueseaglomeravaemfrenteàcasadeSharkle,nomomentodaexplosão.Edaliemdiante,ninguémmaisoviu...faziamaisdeseishoras.
—Eclaroqueelesabedemuitacoisa.Bastasomardoisedoisparadescobrirpelomenosboapartedaverdade.Outrobommotivoparaabrirmosojogoenãosermosapanhadosdecalçacurta...
Para Leland Falkirk, era como se o mundo desabasse sobre seus ombros. Estavam perdendo ocontrole...Eeleconsumiraanoseanosaprendendoavivercomosetudoexistisseparasercontrolado.Nãoseriapossívelexistirvidasemhavercontrole.Emprimeirolugar,autocontrole:eraprecisotreinar-seatéaexaustão,paradominarosprópriosimpulsos,vencerodesejoenãoacabarderrotadoporvíciosrepugnantescomobebida,drogas,sexo—desdemeninoafamíliaensinava-lheessalição.Depois,vinhaocontroleintelectual:eraprecisoacreditarnalógicaenarazão,poisanaturezacorrompidadohomemviviaacossadaporbaixosins-
tintos,superstição,irracionalidade.EssasegundaliçãoLelandaprenderaapesardafamília,quandofugiadecasaparaassistiraoscultosdeumaseitafanática,cujosadeptosbabavamerolavampelochãocomoanimais.
Menino,Lelandobrigava-seapresenciarosrituaisqueapavoravamporquejáacreditavafirmementeque devia aprender a controlar omedo... para não enlouquecer.Aos poucos, aprendera a controlar oterror que lhe inspiravamopai e amãe, quandoo espancavam“para seupróprio bem”, diziam, para“livrá-lododemônio”.Umbommétododeaprendizadoeranãoresistiràdor,massubmeter-seaela...procurá-la,atétornar-seinsensível.Porquenadaécapazdecausarmedoquandosetemcertezadequeepossível suportar ador.Controle.Lelanderaohomemdocontrole.Controlava tudo:ocorpo, avida,seushomens,qualquermissãoquelhefosseatribuída.
E agora, pela primeira vez em mais de quarenta anos, sentia que o controle lhe escapava. Pelaprimeiravez,desdeotempodoscultosdosfanáticos,sentia-seàbeiradopânico.
—Voudesligar—disseafinal—,masnãosaiadaí.Mandareiosrapazesprepararemumareuniãoportelefone.Falaremosmaistarde...eu,você,seusuperior,RiddenhouremWashingtonenossocontatonaCasaBranca.Vamosdecidiranovalinhadeação.Teremosdeserduroseprecisos.Nãomedeixareienvolverpelas fantasiasquevocêestá alimentando.Reassumiremosocontrolede tudo.Vamosacabarcomessepessoalinfetado,quejácomeçaafeder.Vamosvarrê-losdafacedaterra,custeoquecustar,mesmo que sejam garotinhas lindas e padrecos bondosos. Precisamos salvar a própria pele. Podeapostar...eudouumjeitonissotudo!
OshomensdocarroseguiramFayeeGingeratéasaídadaRodovia80.Gingercomeçavaapensarqueelesseriambemcapazesdeestacionarjuntoàentradadomotel,comohóspedesnormais.Entretanto,ocarroparouaunstrintametrosdedistânciaeláficou,sobaneve.Eramduashorasequarentaecincominutos.
Fayeestacionouemfrenteàentradadarecepção,DomeErniecorrerampara ajudá-las a descarregar as compras que haviam feito emElko:máscaras e abrigos
paraenfrentaraneve,botaseluvastérmicas,doisrevólveressemi-automáticos,muniçãoparaessaseasoutrasarmas,lanternas,duasbússolas,umpequenolampiãodeacetilenocomdoisbujõesdegáseumainfinidadedeitensmenores.
ErnieabraçouFaye,DomabraçouGinger,eosdoishomensdisseramjuntos,emcoro:—Euestavapreocupadocomvocê.Rindo,asduasresponderamigualmenteemcoro:—Eutambémestavapreocupadacomvocê.Depois,ErniebeijouFaye,eDombeijouGinger,eninguémachounadaestranhoousurpreendente.
Eranormal.Previsíveleesperado.DomeGingersentiam-seíntimosepróximoscomosefossemmaridoemulherdesdehátrêsdécadas,comoFayeeErnie.ForaassimjánomomentoemqueseabraçaramnapistadepousodoterminalaéreodeElko,doisdiasantes.
Depoisdeempilharascomprasnumcantodasala,todosforambuscartodasasarmasexistentesemcasa.Gingerarrumavaascadeirasaoredordamesa,amesmaondeDomeBrendanhaviamtestadoseuspoderes,navéspera,Brendanfitavaasarmascomumolharmistodemedoedesgosto,ejánãopareciatãootimistaeentusiasmado.
—Algumproblema?—Gingerperguntou-lhe.—Nãosonheiontem—respondeuele.—Nãovialuzdourada,nãoouviavozquemechamava.
Sabe,desdeocomeçoeurepetiaparamimmesmoquenãoeraDeusquemmechamavaparacá.Mas,nofundodocoração, euqueria exatamenteo contrário... queria ter certezadequeEle chamava.OpadreWycazikestavacerto...Nãoperdicompletamenteafé.Aindaháemmimalgumacoisamuitoprofunda,quetalvezmefaçavoltaràIgreja.Tenhopensadomuitonisso,ultimamente.Nãoéapenasafé,acrençasinceranaexistênciadeDeus...Emaisdoqueisso...precisodeDeus!Masagora,quandopercebotudo,não consigo mais sonhar, já não vejo aquela luz dourada... E como se, de uma vez por todas, Deusestivesseseesquecendodemim.
—Não,nãoéassim...Gingersorriuetomou-lheasmãos,tentandotransmitir-lhecoragem.—Deusjamaisabandonaosquecreemnele.Oshomens,àsvezes,esquecem-sedeDeus,masElenãoseesquecedeseusfilhos.Deuséperdãoeamor...Nãoéissoqueospadresensinamaosfiéis?
—ParecequefoivocêqueestudouemRoma...Elaapertou-lheasmãose,olhando-obemnosolhos,prosseguiu:— Nenhum de nós tem sonhado, e acho que a razão é a mesma... Nossos sonhos são apenas
indícios de lembranças que procuramvir à tona, talvez em termos de símbolos, não sei.Mas, seja lácomofor,aindaqueseusonhosejaaexpressãodeumchamamentodeDeus,ébemrazoávelquevocêjánão sonhe... porqueestá aqui.Que tal?Deuschamou, evocêatendeu.Pronto.ParaqueDeusperderiatempoeenergia chamandovocê, sevocê já chegou?Podenão serumaboaexplicação teológica,masfazsentido.
Brendanriubaixinho,osolhosumpoucomenostristes.A volta damesa, os outros iam tomando seus lugares. Preocupada, Ginger observou queMareie
pareciacadavezmaisalheia.FicousentadaondeJorjaacolocara,cabisbaixa,ocabeloescondendo-lheo rosto, as mãozinhas cruzadas no colo, repetindo sempre a mesma palavra: “A Lua”... Devia ter asensação de que estava prestes a lembrar-se de alguma coisa importante, que a qualquer momentosurgirianitidamenteemsuamemória.Semmecanismospsicológicosmuitosólidos,numaidadeemquerealidade e fantasia são quase a mesma coisa, deixava-se levar pela intensidade da sensação,mergulhandoemsiprópria,cadavezmaisfundo,àprocuradarecordação.
—Elavaificarboa—GingergarantiuaJorja,quefitavaameninacomolhosúmidosdelágrimas.—Nãoseiaindaquandooucomo...mastenhocertezadequevaificarboa.
—E...—Jorjarespiroufundoetentousorrir,agradecida.—Elatemqueficarboa!JackeNedterminaramdeprenderafolhadecompensadodiantedovidrodaportaetambémforamparaamesa.Agoranãofaltavamaisninguém.
Emrápidaspalavras,FayeeGingerfizeramorelatóriodavisitaaosJamison.FalaramdoshomensqueashaviamseguidoedescobriramqueErnieeDomtambémtiveramcompanhiaemseupasseio.
—Seandamporaí,àvistadetodos,éporqueestãoprontosparacairemcimadenós—comentouJack.
—Talvezsejabomalguémdarumaespiadaparaversejánãoestãochegando.Euvoulá.—Nedlevantou-se,aproximou-sedajanelaeolhouporumafresta,focalizandooestacionamento.
Apedido de Jack,Ernie eDomcontaram sobre a expedição de reconhecimento nos arredores deThunder Hill. Jack ouvia, atento, perguntando sobre detalhes cujo significado Ginger não conseguiaadivinhar.Asgradesdoportãotinhamfiosdearametrançado?Eacerca?Comoeramosmontantesdecerca?Porfim,eleperguntou:
—Haviaguardasvigiandoacerca?Cães?—Não—respondeuDom.—Nãohaviapegadasnaneve.Eprovávelqueasegurançasejatoda
eletrônica.Eutinhaesperançasdeentrarlá,mas,depoisdoquevimos,achoqueéloucura.—Claroquevamosentrar!—Jackdeclarou,navozcalmaeseguradesempre.—Nãovaihaver
problema até chegarmos à entrada do depósito, propriamente dito. Quanto a entrar na montanha...veremosoqueépossívelfazer,quandochegarmoslá.
Surpreso, Dom olhou para Ernie, que, por sua vez, franziu a testa. Pela cara dos dois, GingerconcluiuqueThunderHilleratotalmenteinexpugnável.
—Vocêdisse...“entrarnamontanha”?—Domperguntou.—Ninguémentralásemserconvidado—disseErnie,balançandoacabeça.— Se a segurança externa é eletrônica— Jack pensava em voz alta—, é quase certo que a
segurançadaentradaprincipaltambémé.Deunsanosparacá,parecefebre...Todosconfiamcegamentenosequipamentoseletrônicos.Claroque,pelosim,pelo
não,deixamumguardanoportãodafrente.Masoguardatambémsabequeasegurançaéabsoluta...oupensaqueé...Achaqueestáalisóparaconstar,porquenuncafoiassaltado.Écapazatédedormirasonosolto...—Animadocomaidéia,fitouoscompanheiros,umaum,edeclarou:—Entrarlávaiserfácil.Quanto ao resto, ainda não sei. Pode ser que a gente consiga dar uma boa olhada em tudo semninguémnosver...
—Vocêfalacomosetivessecertezadeque...—Gingercomeçou,masJackainterrompeu.—Passeimaisdeoitoanosdeminhavidaentrandoesaindodelugaresondeninguémentraede
ondeninguémsai.Éminhaespecialidade.OpróprioExércitometreinouparaessetrabalho...Conheçoostruquesdeles.—Riuepiscouoolhovesgo.—Semfalarnostruquesqueeumesmoacabeiinventando.
Jorjaretesou-senacadeira,tensa,eponderou:—Mas...comseustruquesousemeles...vocêpodeacabarpresoládentro!—Claro!Eexatamenteoqueeuquero.—Oraessa.Eporquê?!—Elalevantou-sedeumsalto.—Oquevaifazerlá?!Oplanopareciaperfeito.Nocomeço,Gingerouviu-ocomocoraçãoapertadodemedo,masquando
eleacabou,tevequesecontrolarparanãobaterpalmas.JackTwisteraumestrategistadegênio!Comosempre,Jackexpôs-lhesoplanocomasegurançadequemsabiaqueseriaobedecidoeque
todos concordariam em executar as tarefas sem discuti-las e sem assustar-se com os riscos. Usou detodos os truques de persuasão que conhecia, falou-lhes com voz firme como se estivesse falando asoldadosprofissionais,antesdemandá-losparaumamissãoextremamentearriscada.Entreoutrasrazões,agiaassimporquenãotinhatempoaperdercomdiscussões.Océrebroeosinstintosgritavam-lheumaúnicaerepetidamensagem:“Estáchegandoahora!Estáchegandoahora!”
Oplanoerasimples.
Dentrodeumahora,comexceçãodeDom,NedeJack,todosentrariamnojipeerumariamparaElkoporumaestradavicinalàqualsepodiateracessopelosfundosdomotel.Quasecomcertezanãoseriamseguidos.EmElkoogruposedividiria:Ernie,FayeeGingercontinuariamviagemnojiperumoaTwinFalis,Idaho,edeláparaPocatello,ondedariamumjeito,qualquerum,deconseguirumaviãoqueoslevasse a Boston.Deviam chegar a Boston na quinta à noite ou, omais tardar, na sexta demanhã, ehospedar-seemcasadosHannaby,aosquaiscontariamosdetalhesdoquehaviamdescobertoatéaqueleinstante. Depois, durante uma ou duas horas, Ginger se ocuparia exclusivamente em telefonar para omaiornúmeropossíveldemédicos,seusconhecidosdohospital,convocando-osparaumareunião.Nesseencontro, Faye, Ginger e Ernie contariam a todos o que acontecera, concentrando-se nos detalhessórdidosda lavagemcerebralpraticadaporagentesdogovernoeminocentescidadãos.Enquanto isso,GeorgeeRitaestariamcontatandoseusamigosinfluenteseorganizandooutrasreuniões,àsquaisGinger,ErnieeFayecom-pareceriamparacontaramesmahistória, repetindo-aoquanto fossenecessário.Sódepois de falar a várias pessoas importantes os três procurariam a imprensa. E só depois de falar àimprensaprocurariamapolíciapara formalizarumadeclaraçãooficial,assinadapelos três,afirmandoquePabloJacksonnãoforaassassinadoporumladrãocomum,noassaltodasemanaanterior.
—Aidéiaéinformaromaiornúmeropossíveldepessoassobreoqueestáacontecendoaqui.Assim,casovocêssoframum“acidente”antesdepoderemconvencera imprensaainvestiremnossahistória,haverámuitagentedispostaanãoaceitaraidéiadequeo“acidente”tenhasidomesmo...acidental.Aíéquevocêentra,Ginger—Jackvirou-separaela—,porqueéaúnicadenósquetemcontatosinfluentesem Boston, uma das cidades mais importantes do país. Se conseguir “vender nosso peixe” lá,estarácriandoumparedãodesegurançaanossavolta.Maséimportantequevocêssemexamdepressa,paranãodar tempoaosfederaisdedescobriremoqueestamosplanejando.Elesosmatariamantesdepensarduasvezes.
Láforaatempestadedeneveassobiava.Ótimo.Quantomaisviolentaanevascamaioresaschancesdesairsemseremseguidos.
— DepoisqueGinger,FayeeErnie foremparaPocatello—Jackcontinuou—,vocêsquatro...Brendan, Sandy, Jorja e Mareie... irão até uma loja de carros e comprarão outro veículo de traçãonas quatro rodas, comodinheiro que vou lhes dar. Imediatamente depois tomarão rumooposto ao deGinger...irãoparaSaltLakeCity,Utah.Aviagemvaiserdifícilelentaporcausadaneve,masvocêstêmdechegarláeconseguirumvooparaestaremChicagonomáximoquinta-feiraànoite.—Virou-separaBrendan.—Então,vocêdeveráentraremcontatocomseuamigo,opadreWycazik,afimdeconseguirumaentrevistacomo...“chefe5'daarquidiocesedeChicago...omaisdepressapossível.
— Ocardeal—Brendancorrigiu.—CardealRichard05Calla-han.MasachoquenemopadreWycazikpodeconseguirumaentrevistacomelenoprazoquevocêquer...
—Eleprecisaconseguir.ComoGinger,emBoston,vocêdeveagirmuitorápidoemChicago.Você,JorjaeMareiedeverãofalarcomocardealecontar-lheoqueestáacontecendoconosco.Seforpreciso,Brendan,façavoarabatinadele,arranqueimagensdosaltares,grudeosbancosnoteto.Façaoquefornecessário,masconvençaocardealdequeeleestátendoachancedeparticipardomaisextraordináriofenômenoqueahumanidadejáviu,desdeosdiasemqueJesusmultiplicavaospeixeseressuscitavaosmortos.Nãoéblasfêmia...—assegurou,diantedosolhosarregaladosdeBrendan.—Estouconvencidodisso.
—Eu...também—Brendangaguejou.Apesardoespanto,pareciaoutravezentusiasmado,comoquecontagiadopelaserenaconfiançadeJack.
Oventosopravacadavezmaisforte.—Ajulgarpelovendavaldeagora,teremosumtufãodepoisqueanevascapassar.
Omautempopoderiaajudá-los,masumtufãoacabariacomseusplanos.Oinimigotalvezdecidisseanteciparoassaltoaomotel.
—Eisso,Brendan—Jackresumiu.—Vocêtemamissãodeconvencerseucardeal0’Callahanaconvocarreuniõescomoprefeito,vereadores,empresários,líderesdacomunidade...todomundo.Teránomáximovinteequatrohorasparaespalharasnotícias.Quantomaisacidadefalardevocê,masseguroestará.Depoisdesereunircomos“figurões,,Jprocureaimprensa.Dêumshownatelevisão.Façavoarasaiadarepórter,arranquequadrosdasparedes,empurremesas,virecadeiras...
— Depois dissoeles não poderãomais nos perseguir— concluiuBrendan, rindo de orelha aorelha.
—Eoqueesperamos.Etorçoparavocêsconvencê-losdequenãosãoloucosvarridosnemestãoinventandohistórias.—Jackrespiroufundo.Porqueenquantoestiveremandandoporaí,comoestrelasde televisão,Dom,Nede eu estaremosdentrododepósitodeThunderHill, provavelmentepresos.Aúnicachancedesairmosdelávivosvaidependerdaperformancedevocês.
— Não gosto disso—declarou Jorja, balançando a cabeça.—Por que vocês têm de ir paraaquelamalditamontanha?Jálhefizamesmapergunta,evocêaindanãorespondeu,Jack.Vamossairporaí,vamosgritarnossahistóriaaosquatroventos,vamosdesmascará-los...Quenecessidadehádevocêsiremsemeterládentro?Seoplanofuncionar,maisdiamenosdia,acabaremosdescobrindooqueháemThunderHilleoqueaconteceunoverãoretrasado.
Jackesperouummomentoantesde falar,porquepreviaqueasdiscussõescomeçariamexatamenteàquelaalturadoplano.
—Desculpe,masvocêestásendoingênua.Podemosgastaralínguadetantofalare,aindaassim,oExércitofaráopossíveleo impossívelparaganhar tempo.Vãoinventaroutrashistórias,processarosjornais,fazerodiabo...paratertempodeinventaroutramentiraquejustifiquetudo.Sótemosumachancededescobriraverdade...eéagircomrapidez.Paraapressarosacontecimentos,vocêsprecisamterumargumentomuitoforte,queexijaimediataaçãodasautoridades;Dom,Nedeeu,prisioneirosemThunderHill, seremos o grande trunfo de vocês. Três cidadãos honestos... ou pelo menos razoavelmentehonestos...seqüestrados
pelasmais altas autoridades nacionais. Seremos as vítimas... enquanto o presidente, empessoa, etodosos“figurões”dopaísfarãoopapeldeterroristas.Nãovamosdartempoaessacorja...elesvãoterdeexplicar-seemdoisdias,nomáximo.
Avoltadamesa,ninguémachouoquedizer.FayeolhavaparaJackcomosolhoscheiosdelágrimas,comosejáovissemorto.
—Nãoéjusto—Jorjamurmurou—quevocêssesacrifiquem...— Ninguém será sacrificado se cada um de vocês fizer o que deve fazer— Jack respondeu
prontamente—Vocêsnostirarãodelá,sãosesalvos,comaagitaçãonacionalquevãocriar.Eporissoquesuamissãoétãoimportante.
—Mas...ese,poracaso,depoisquevocêsestiveremládentro— argumentou Jorja, passando amão pelo cabelo, aflita—, virem alguma coisa que explique
tudo... que sirva para nos fazer entender o que aconteceu? Poderão tirar fotografias, ou roubaralgumplano,seilá...evoltarparacasa...nãoé?Vocêsvãotentarou...?
—Eclaroquevamostentar!—Jackrecostou-seàcadeiraeriu.—Eébempossívelqueconsigamosescapar.Mentira.JackTwistsabiaque tinhampoucachancedeentrarnabasee rigorosamentenenhumade
sairdeThunderHill.Quantoaencontraralgumacoisaqueexplicasseosacontecimentosnememsonho!Pelaboarazãodequenãotinhamamínimaidéiadoqueprocurar.Poderiampassardezvezesaoladoda
explicação de seus tormentos e nem suspeitariam. Além do mais, na hipótese de algum experimentocientífico em andamento ter escapado ao controle naquela noite, os relatórios de pesquisa estariamcodificados oumicrofilmados, escondidos no coração da rocha.Mas Jack não falou sobre isso. Nãocorreriaoriscodeperderumsegundoemdiscussõesestéreissobrepossíveisriscos.
Jorjaaindainsistiu:— PoderiamosiraElko,procuraroredatordojornaldacidade...Brendanfariaseushowaqui
mesmo.NãovejonecessidadeemcomeçarporChicagoeBoston...—Atéqueagrandeimprensachegasseaquiestaríamosmortos—■Jackdeclarou,consultandoo
relógiodepulso;osponteirosvoavam.—Brendan seria tido por louco, por umdesses que contamque viramdiscos voadores.
Não.Temosqueir.Etodosprecisamfazerexatamenteoqueeudisse.Enossaúnicachance.Jorjafechouosolhosecruzouosbraçossobreopeito.—Vocêvaicomigo,Dom?—Jackperguntou.—Sim...claro.—ArespostaqueJackesperava.Oescritorpertenciaàquelacategoriadehomens
nosquaissepodeconfiarcegamente,porquejamaisseacovardamemmomentosdenecessidade,masqueainda não chegaram a conhecer-se bem a si próprios.— Claro que vou, mas você se importaria decontarporqueescolheuminhaagradávelcompanhia?Eumahonra,porém...
—Esimples.Ernieaindanãoestácompletamentecuradodomedodoescuro.VaiserdifícilparaeleencararaviagematéPoca-tello.Nãoseriaseguro,nemparaelenemparanós,levá-loaumamissãonoturna. SobravamNed e você. Além disso, eu me senti-ria mais seguro sendo seqüestrado com umescritorderenome...Aimprensaadoracelebridades!
Ginger,quesemantiveracalada,olhando-o,comentou:—Vocêéumgênio,Jack,masnãopassadeumautênticoporcochauvinista.Porquenãoincluiu
mulheresnogrupoquevaiaThunderHill?AchoqueostrêsquedeviamirsomosDom,vocêeeu.—Mas...—Aindanãoacabei...—elaointerrompeue,levantando-se,caminhouparaaoutraextremidade
damesa,conscientedeque,assim,deslocavaparasimesmaocentrodasatenções.Mobilizavaasalainteira,cominteligência,intuiçãoebeleza,paraenfrentarJack.Afinaleracomoele...sabiaconseguiroquequeria,domodocomoqueria,noinstanteemquequeria.—Meuplanoéoseguinte...NedeSandyvão aChicago para dar credibilidade aos prodígios deBrendan. Jorja eMareie seguem paraBostoncomFayeeErnie,levandoumacartaminha;osHannabyosreceberãocomoreceberiamamimmesma.Eháoutrodetalhequevocê,Jack,nãopoderiaavaliar...RitaeFayevãoseadorarnoinstante
emqueseencontrarem...Vãodescobrirquesãoirmãsdealma...Nãofareifaltanenhumalá.Aqui,sim, posso sermuitomais útil. Primeiro porque soumédica. Vocês dois estarão sozinhos em terrenoinimigo; se forem feridos, poderei cuidar de vocês. Segundo, porque, embora seja interessante serseqüestradojuntocomumacelebridade,émuitomaisinteressanteserseqüestradocomumacelebridadee...umamulherlNãosejacabeça-dura,Jack...Eclaroquevocêtemdemelevar!
Não havia o que discutir. Ginger estava certa da primeira à última palavra, e Jack rendeu-se àevidência.
— Tem razão. Você vem comigo e comDom. Ned, Sandy e Brendan vão para Chicago. Estáresolvido.
—Pormim,nãohaveriaproblemaalgumemircomvocêparaThunderHill,sevocêachassequeeraocaso—disseNed.
—Eusei.Masmudamososplanos.JorjaeMareievãoparaBostoncomFayeeErnie.Eagora...sedemorarmosmuitoparadaroforadaqui,passaremosorestodaeternidadediscutindoquemdeveria
ter ido com quem para o inferno! Porque eles estão chegando. — Jack levantou-se, foi até a porta,removeuocompensadoeolhouparafora.—Perfeito!
Umaespessacortinabranca,deventoeneve,cobriaapaisagem.Quandosaíram,malseviaaestradaondeestacionaraocarroquehaviaseguidoFayeeGinger.Mas
Jack logopercebeuqueocarronãoestava lá.Prefeririaqueoshomensosacompanhassemdeperto...porqueassimeletambémosvigiaria.
AreuniãoportelefonenãoseguiaorumoqueLelanddesejava.Queriaqueoschefesconfirmassemsuadecisãodeinvadiromotel,prenderas“testemunhas”elevá-lasparaThunderHill.Paraisso,contavacomogeneralRiddenhourparaajudá-loaconvencerosoutrosdequeaameaçaerarealemuitograve.Tão grave que justificaria a autorização oficial para eliminar os intrusos domotel e todo pessoal deThunder Hill, assim que tivessem provas de que já não eram humanos. E essas provas, sem dúvida,apare-ceriam. Porém, no momento em que apanhou o telefone e ouviu as últimas notícias, Lelandpercebeuqueteriaproblemas.
Emil Foxworth, diretor do FBI, foi o primeiro a falar.O grupo encarregado da segunda lavagemcerebral dos Scalcoe, emMon-terey, Califórnia, informava que a casa fora invadida por um homembarbudoqueconseguiraescapar.OcasalScalcoeeasduasgêmeasforamtransferidosàspressasparaumhospitalmóveledaliparaumacasaqueoFBIusavaememergências;oprocessodelavagemcerebralprosseguia.Investigaçõesrealizadassobreohomembarbudo,apartirdocarroabandonado,revelavamquesechamavaParkerFaineeeragrandeamigodeCorvaisis.
—Conseguimossegui-loatéSanFrancisco,masoperdemos.NãosabemosdeledesdeomomentoemqueoaviãopousouemSanFrancisco.
Foster Polnichev, do escritório do FBI em Chicago, já achava extremamente arriscado manter osegredoeacaboudeconvencer-sedaurgênciadadivulgaçãoaoouvirorelatóriosobreavisitadeFaine.Foxworth,tambémdoFBI,eJamesHerton,assessordaPresidênciaparaassuntosdesegurançanacional,concordavamcomele.
PolnichevnãosecansavadefalardascurasmaravilhosasqueBrendaneTolkrealizarameinsistiaemqueosresultadosdosacontecimentostalvezfossembenéficosparaahumanidade.
—Semesquecer—dizia—queodoutorBennellesuaequipedepesquisadoresachamquenãoháejamaishouveperigo.Fazmesesquerepetemisso...etêmargumentosbastanteconvincentes.
Leland tentou persuadi-los de queBennell poderia estar contaminado e que era arriscado confiarnele.Mas sabia que era apenas um líder militar, incapaz de enfrentar dois políticos numa guerra depalavras.Deviamimaginarqueestavalouco.
NemogeneralRiddenhourodefendia.Depoisdeouviratentamenteosargumentosdeumaeoutraparte,assumindoopapeldemediador,eleacabouconcordandocomPolnichev.
— Respeitosuaposição—declarouaLeland—,masachoqueoassunto jánãoéapenasumaquestão militar. Claro que não devemos negligenciar quanto à segurança, porém, talvez seja hora deconvocarcientistas,neurologistas,biólogos,filósofos...pa-
ra nos ajudar a pensar. Devemos evitar soluções precipitadas. Claro também que, caso o senhorencontre provas de que realmente há perigo, estarei disposto a rever minhas posições. Quanto àsprovidênciasimediatas,concordoemqueastestemunhassejamlevadasparaThunderHillequearegiãosejamantidasobseveravigilância...masaconselhocautelaquantoàsmedidasdemédioelongoprazos.Nenhum de nós deverá descartar a hipótese de que o segredo do depósito possa eventualmente serdivulgado.
—Comtodoorespeito...—replicouLeland,malcontrolandoafúriaqueofaziaestremecer—,eunãotenhodúvidasdequeaameaçaérealemuitograve.Nãotemostempoaperdercomneurologistasou
filósofos...nemcomofalatóriodeumbandodepolíticoscovardes.Foxworth e Herton vestiram a carapuça e protestaram, aos gritos. Leland retrucou, também aos
berros,eareuniãoviroubate-bocainterurbano,ninguémentendendoninguém,atéqueRid-denhourexigiusilêncio. Tinha uma proposta de trégua: Leland nada faria contra as testemunhas, e não se tomariamprovidênciasparareforçaraversãooficial,mas,emtroca,tambémnãosepensaria,pelomenosnaquelemomento,emdivulgarosegredo.
— Vou pedir uma audiência de emergência ao presidente—disseRiddenhour.—Nomáximodentro de quarenta e oito horas, teremos esboçado um plano que satisfaça a todos, do presidenteaodoutorBennelleseuscientistasemThunderHill.
Impossível,pensouLeland,vermelhodeira.Desligouotelefoneepermaneceusentadoporalgumtempo,esforçando-separaengolirofracassoda
reuniãoeacertezadeque,maiscedooumaistarde,acabariaderrotado.NãochegouachamarHornerparatrocaridéiasporqueHornernãopodiasaberqueoplanoaserexecutadoempoucosminutoseraumatodeinsubordinaçãoeflagrantedesobediênciaàsordensdecomando.
Nãoprecisavadeconselhos.Lelandconheciaseudever.Mandariabloqueararodovia,sobpretextodeoutrovazamentodegástóxico,ecomissoisolariao
motel.PrenderiaastestemunhaseaslevariadiretamenteparaodepósitodeThunderHill.Quandoestivessemreunidascomodr.Bennelletodoopessoaldabase,presosportrásdasportas
deaçodamontanha,Lelandosfariavoarpelosares...evoariacomeles,naexplosãodeumaouduasdasogivasnuclearesdecincomegatonsguardadasnoarsenaldopisoinferior.Umaouduasexplosões,etudoque estava contido na montanha se reduziria a cinzas. Estaria eliminada a principal fonte dacontaminação.Sobrariamoutras,espalhadaspelomundo:osTolk,afamíliadeEmmyeastestemunhas,cujosbloqueiosaindanãohaviamfalhado.Lelandconfiava,porém,que,aoverovalorosoexemplodeseusacrifício,Riddenhourvoltariaà razãoeordenariaaSoluçãoFinal,comaeliminaçãode todasasfontesdecontaminaçãorestantes.
Falkirktremia.Nãodemedooudeansiedade...masdeorgulho!Eraoeleitoparalideraragrandebatalha da humanidade. Para salvar não apenas um país... mas o planeta inteiro, a espécie humana.Sentia-seprontoparaenfrentarograndemomentodosacrifício.Nadatemia.Imaginandooquesentiriaquandoasondasdecalordaexplosãooatingissemeofizessemdesaparecer,umarrepiopercorreu-odospésàcabeça.Não,nãorecuariadiantedador,amais intensa,amaisviolenta,amais longador...Sa-beriacomosuportá-la.Haviamuitotempoquesepreparavaparaaquelemomento,paraaúltimadordesuavida.
Ao sair do restaurante, dois passos atrás deGinger, Dom levantou a cabeça para o céu, para asespiraisbrancasqueoventocriavananeve.Derepente,viuoqueosoutrosnãopodiamver:
Asuascostas,ouve-seoruídodosúltimosvidrosquesedesprendemdasjanelaseseespatifamnochão.Afrente,aslâmpadasdoestacionamentoacesas,naescuridãodanoitedeverão.Eportodaaparte, vindo de todas as direções, o ronco de trovoada e o som de terremoto. O coração bate-lhedescompassado. Não consegue respirar, a boca seca, a garganta fechada. Corre para fora dorestaurante,olhaemvolta.Entãoolhaparacima...
—Oquehouve?—Gingerperguntou.Dompercebeuqueescorregarananevee,também,numfrag-mentodelembrançaqueafloravaàconsciência.Voltou-separaogrupo:—Vi...comoseestivesseacontecendoagora.Emjulho...naquelanoite.Duasnoitesantes,semquerer,recriaraosomdetrovoadaeotremordeterradanoitede6dejulho,
mas agora nada acontecera, talvez porque a memória já estivesse menos reprimida e encontrasse
caminhosdesimpedidosparamanifestar-se.Domolhouparacimaoutravez,e...Eumroncodemotor,tâofortequelhefereosouvidos.Aterratreme,eleasentetremernosossos,
nosdentes,comovidrosejanelasemnoitesdetrovoada.Correpelopisocimentado,olhandoparaocéuescuroe...Láestá!Umaviãovoandomuitobaixo,cem,duzentosmetrosacimadosolo,asluzesbrancasevermelhaspiscandonaescuridão,tãobaixoquesevêobrilhodovidrodacabinedopiloto.Umjatomuitoveloz,umcaça...Elávemoutro!Saindodanoiteestrelada.Masoruídoquerebentouosvidrosdorestauranteefezsaltarossaleirossobreasmesascontinuaacrescer,cadavezmaisforte.Osjatosvoamlonge,porémoroncocontinua.Domvira-separatrás,porqueoruídoparecevirdelá...egritadesusto:outrojato,aindamaisbaixoqueosdoisprimeiros,poucomaisdeummetroacimadotelhadodorestaurante.Tãobaixoqueelesejogaaochão,certodequeoaviãoestácaindo.Umjatocomascoresamericanas.
—Dom!Estavadeitadodebruçosnocimentodopátio,orostoescondidoentreosbraços,querendoproteger-
sedojato...quevirananoitede6dejulhodoanoretrasado!—Oquehouve?—Sandyperguntava,ajoelhadaaseulado,tocando-lheoombro.Gingerestava
dooutrolado,igualmenteajoelhada,segurando-lheamão.—Vocêestábem?—perguntou.Antesqueelerespondesse,asduasuniramforçasparaajudá-loalevantar-se.—Estoucomeçandoalembrar...—Domergueuosolhosparaocéu,àesperadequeofluxode
lembranças continuasse. — Vi jatos militares voando baixo... Eram dois, mas depois apareceu umterceiro...Voavamtãobaixoqueeupenseiquefossemcairemcimadorestaurante.
—Jatos!—Mareiegritou.Todosviraram-separaela,poiseraaprimeirapalavra,alémde“Lua”,quediziadesdeavéspera.A
meninaestavanocolodamãe, tentandoproteger-sedovento,masolhavafixamenteparaocéu.ComoquedespertadapelaspalavrasdeDom,vasculhavaocéuàprocuradosaviõesque, tambémparaela,pareciamteracabadodepassar.
—Nãomelembrodenada...—disseErnie.—Jatos?—Jatos!Jatos!—Mareierepetiu,erguendoamãoparaocéu.Ninguémconseguiu lembrar-sedenada.Oqueforaummomentodeesperança transformava-seem
vazioedesencanto.Mareiebaixouacabeçaemeteuopolegarnaboca,mergulhandonovamenteemseualheamento.
—Temosdesairdaqui—JackpuxouJorjaeDom.—Nãopodemosesperarmais.Vamospegarascoisasecairfora.
Quasequearrastadoparadentro,sentindooperfumedanoitedeverãodemesesatrás,ouvindoaindaoroncodosjatos,Domoseguiu.
TERCEIRAPARTE
NOITEEMTHUNDERHILL
Coragem,amor,amizade,compaixãoeempatianoselevamacimadosanimaisedefinemoqueéhumano.
LivrodasLamentaçõesTuatumbahumildepormãosestrangeirasadornada;reverenciadaporestranhoseporestranhos
pranteada.AlexanderPopeSEIS_______________________Noitedeterça-feira,14dejaneiro1.LUTAMalaterrissouemSaltLakeCity,procedentedeChicago,opadreStefanWycazikembarcouemoutro
avião,rumoaElko.Conseguiupousar,apesardanevasca,minutosantesdeoaeroportoserfechadoaotráfego aéreo, com a visibilidade reduzida a quase zero. Dirigiu-se então a um telefone público,conseguiudescobrir onúmerodoMotelTranqüilidade e ligou.Nãoouviu sinal de chamada, apenas alinhazumbindosemparar.Tentouváriasvezes,e repetiu-seozumbido.Pediuoauxílioda telefonista,que,apósduastentativas,desistiu.
—Desculpe,senhor,masalinhaestácomdefeito—disseela.Ainformaçãopareceu-lhedramática,eStefangritou:—Defeito?!Quetipodedefeito?—Nãosei.Algumcaborompidoporcausadatempestade...Estáventandomuito.Aexplicaçãoerasimplesdemais.Faziapoucotempoqueestavanevando,eovendavalnãoparecia
suficientepararompercabostelefônicos.Omotelestavaisoladodetudoedetodos,eissopareciaobrademãoshumanas,semqualquerrelaçãocomnevascaouvendaval.
StefanligouparaChicago,àprocuradopadreGerrano,queatendeulogoaosegundotoque.—Michael,jáestouemElko,sãoesalvo.Masnãoconsigoli-garparaBrendan.Háalgumdefeito
nalinha.—Eusei—opadreGerranorespondeu.—Vocêsabe?!Mascomoéquepodesaber?!—Equerecebiumtelefonemahádoisoutrêsminutos-explicou-seooutro.—Umhomemquenão
quisseidentificar,masdisseseramigodeGingerWeiss,umadaspessoasqueestánomotel.ContouqueGingerligouparaelehojedemanhã,pedindoalgumasinformações,equeelejátinha,masnãoconseguiaentraremcontatocomoMotelTranqüilidade.ParecequeGingerWeisspreviaproblemascomotelefone,poisdeuaohomemnossonúmeroeodeumcasaldeamigosdelaemBoston.Pediuaotalhomemqueligasse para nós e passasse as informações ao senhor, pois ela se encarregaria de entrar emcontatoconosco.
— O homem não quis se identificar... — Stefan repetiu, preocupado. — E lhe passou asinformações?
—Passou.—Michaeltentouserbreve.—Sãodoisassuntos.Primeiro,sobreumlugarchamadoThunderHill.Ohomemdizque,tantoquantopôdedescobrir,olugarcontinuasendooquesemprefoi...umaespéciedealmoxarifadogigante,superprotegi-do,àprovadeexplosõesedeinvasão...umdosoitoalmoxarifa-dosqueoExércitomantémpor todoopaís,equenãoé,sequer,omaiordeles.Osegundo
assuntoerasobreumtalcoronelLe-landFalkirk,doExército,comandantedeumaunidadedaDE-RO,umgrupoencarregadodadefesacivil.
Vendo a nevasca que crescia a cada instante, os olhos na janela da cabine telefônica, o padreWycazikouviuocolegacontar-lhe,quasesemtomarfôlego,abiografiaoficialdocoronelFalkirk.
—...masnadadissoéimportante—Michaelconcluiu.—ParecequeosenhorXdesconfiadequeháapenasumdetalheemtodaessabiografiaquepode teralgoavercomosacontecimentosdoMotelTranqüilidade.
—SenhorX...?—Nãosabemosonomedele,nãoé?PorquenãoochamamosdesenhorX?—Tudobem,continue.— Bem,X acredita que o único fato relevante é que o coronel Falkirk foi o representante do
Exércitonumgrupodeespecialistasqueogovernocriou,hánoveanos,paraelaborarumrelatóriosobreoqueaconteceriaàhumanidadeemcasodecatástrofetotaldedimensõesplanetárias.OsenhorXdizqueandou investigando e descobriu duas coincidências estranhíssimas... Primeira, que várias pessoas quetrabalharam nesse grupo estão ou têm estado de férias muito seguidamente, desaparecem às vezespor mais de um mês, têm folgas fora de hora... A segunda coincidência é que o sigilo que cerca orelatório foi ampliado... os resultados estão sob segurança máxima desde o dia oito de julho doanoretrasado.DoisdiasdepoisqueBrendaneosoutrosestiveramnoMotelTranqüilidade,emNevada.
—Oquepoderiaseressa...“catástrofetotal”queogrupoestudou?—StefanperguntoueouviuMichaelrepetirarespostaqueosr.Xlhederaquandoelefezamesmapergunta.—Oh,Deus...bemqueeuimaginava!
— Imaginava...—Avoz do outro lado do fio parecia um eco.— Imaginava... que uma coisaassim...estivesseportrásdosproblemasdeBrendan?!Osenhoracreditanisso?
— Não pense que eu tenha chegado a essa espantosa conclusão usando minha fantásticainteligência...Sei apenasqueCalShark-legritava algumacoisaparecida com isso...minutos antesdeexplodiraprópriacasa.
—Deusdocéu...—Michaelsuspirou.—Parecequeestamosnosaproximandodolimiardeumnovomundo.Vocêestápreparadoparao
futuro?—Euseilá!Eosenhor?—Ah,estousim,claro.Mashámuitosperigosnocaminho.GingersabiaqueJackTwistcorriacontraotempo.Trabalhavanumaespéciedefrenesi,atendiaaumeoutro,auxiliandonasúl-timastarefasantesdapartida,masnãotiravaosolhosdaportaedasjanelas.Pareciaesperarque,a
qualquermomento,chegassemosinimigos.Levaramquasemeiahoraparasevestir,carregarasarmaseajeitarnasmochilasamuniçãoextra.
Depois,aindaprecisaramarrumaroequipamento,distribuindo-oentreacamionetadosSarvereojipedeJack.Trabalhavamsemparardedizerbanalidades,paraconfundiroshomensqueosescutavamdelonge.
Porfim,àsquatroedezdatarde,deixandoorádioligadobemaltoparaganharalgunsminutosantesqueosobservadoresdessempelafaltadegente,saírampelaportadosfundos,sussurrandodespedidas,como“atémaisver”,“cuide-sebem”,“vourezarporvocê”,“vaidartudocerto”ou“vamosacabarcomaquelesfilhosdaputa”.GingerpercebeuqueJackeJorjasepararam-secomumlongoabraçoeviuque,aosedespedirdeMareie,Jackbeijou-acomosefossesuafilha.Erapiorqueumadespedidadefamília,porque,pormaisquealguns insistissememrirepulardeentusiasmo, todossabiamquealguns, talvezmuitos,nãovoltariamaencontrar-se.
Reprimindoaslágrimas,Gingerchamou-osàrealidade:—Chegadedespedidas!Temosquecairfora!ComNednadireção,ossetequeiamparaChicagoeBostonsaíramprimeiro.Anevecaíapesadae,
poucospassosadiante,jáescondiaojipe.Nedtinhainstruçõesparaevitaraestradaprincipalenquantopudesse, para enganar os vigias e manter-se o mais afastado possível do local onde Jack avistara oobservadordebinóculo.Assim,rumouparacampoaberto,descendopeloacostamento.Oventoquezuniaencobriuoruídodomotoratéojipedesaparecercompletamente.
Ginger,DomeJackembarcaramnacamionetadeNedeseguiramamesmatrilha.Sentadaentreosdois,Gingerolhavaojipeasuafrente,pensandosealgumdiavoltariaaverosamigosqueláestavam.Faziapouco tempoqueosconheciamasamava-oscomosefossemgentesua,suafamília.E tremiademedoporeles.
—“Oamordignificaohomem”,Jacob,seupai,sempredizia.“Inteligência,coragem,amor,amizade,compaixão,empatiasãoasqualidadesquediferenciamoser
humano”,explicava.“Algumaspessoasachamqueainteligênciaénossaqualidademaisimportante,poisnospermite resolver problemas, atingir objetivos, avaliar os riscos e vantagens... Sim, claroque issotudo também conta! Mas de que serviria a inteligência, sem coragem, amor, amizade, compaixão,empatia?Nós,homensemulheres,amamosnossopróximo...essaénossagrandecruz...eamaiorbênçãodeDeus!”
ParkerFainechegouapensarqueopilotonãoconseguiriapousaredesviariaparaoutroaeroporto,maisaosul.Enganou-se:oavião foiumdosúltimosaaterrissaremElkoantesqueocampo fechasseparapousosedecolagens.Parkerdesceueatravessouapista,protegendocomamãoenluvadaorostoqueoventofustigavacomoagulhasdegelo.Adensabarbaquecultivaraduranteanosfazia-lhefalta...
LogoquechegaraaSanFrancisco,pelamanhã,comprouumbarbeadoreumatesoura,ecorreuparaobanheirodoaeroporto.Semhesitar,pôs-searasparabarbae,aofinaldatarefa,examinouoprópriorosto sorrindo: estavamais bonito do que antes. Rapidamente tosou a cabeleira e olhou-se de perfil:maravilhoso!
—Estáfugindodapolícia?—perguntouumhomemquelavavaasmãosnapiaaolado.— Não—Parker respondeu, sem tirarosolhosdoespelho,deslumbradocomacaranova.—
Estoufugindodeminhamulher.—Entãosomosdois...—Ooutrosuspirou,comdesalento.Paraevitarseridentificado,guardouoscartõesdecréditoecomprouadinheiroumapassagempara
Reno,aonde,bendizendoasorte,chegouatempodeembarcarnoúltimovoorumoaoterminaldeElko.Pagouapassagemtambémàvistaedescobriu,comumsuspiroconformado,quelhesobravamvinteeumdólaresnobolso.Queimportava?!Dom,seumelhoramigo,precisavadeajuda...eeleprecisavairemseusocorro.
Agora emElko, o primeiro passo era telefonar aoMotel Tran-qüilidade. Correu a uma das duascabinesexistentesnopequeno
terminal,ligoutrêsvezesseguidase...nada!Parkercorreuatéomeiodosaguão,olhandoemvolta,perguntoualgumacoisaaumfuncionáriouniformizadoquepassavaedescobriuquenãopoderíaalugarumcarronoaeroporto.Tambémnãoencontrariatáxi,porque,comatempestade,todosostáxisestavamocupados na cidade. Tinha que arranjar uma carona. Virou-se para um lado, para o outro, e acaboucolidindodefrentecomumhomemdecabelogrisalho,altoemagro.
—Soupadre,meufilho—disseoestranho.—TenhoqueiraoMotelTranqüilidade.Umcasodevidaoumorte.Tenhoqueiraomotel...omaisrapidamentepossível.Podemedarumacarona?
DomiasentadoaoladodeGinger,coladoàportadacamionetadeNed,tensocomonuncaemsua
vida.Afrente,apenasaneve,infindáveiscortinasbrancasqueocarrorompiaumaauma,descobrindoquedepoisdaprimeirahaviaumasegunda,eoutra,eoutra,semnuncaacabar.
Cansadodecontarcortinasdeneve,eleconcentrou-senomotivodesuatensão.Concluiuqueestavacommedode,comonocasodosjatos,lembrar-sedealgomais,talvezdetudo.Oquete-riaacontecidodepoisdapassagemdoterceirojato,emvootãobaixoqueofezjogar-senochão?
Anevascatornavaatardeaindamaisescura.Nãoeramnemcincohorasejáparecianoitefechada.De qualquermodo,Dom sabia que Jack ainda não podia ligar os faróis, principalmente por causa daneve.Refletidanosmilhõesdepequenoscristais,aluzamareladaseriavisívelaquilômetrosdedistânciaeacabariachamandoaatençãodosvigias.
Acertaalturadocaminho,asmarcasdojipesobreanevefundaemaciadobraramparaleste.Jackacompanhou-ascomoolhar,pensativo,eseguiuemfrente,rumoaonorte;daliemdiante,guiou-sepelasindicaçõesqueDomlhefornecia,lendoabússola.
Poucomaisàfrentecomeçavaasubidadaencosta.DomchegouapensarqueJackteriaquevoltareseguiratrilhadeNed
paracontornaramontanhaemlugardetentarescalá-la.Jack,porém,engatouamarcha,pisoufundonoaceleradoreesperouqueatraçãonasquatrorodasconseguisselevá-losparacima.Aossolavancos,omotorgemendocomoesforço,ojipecomeçouasubir.
EntreJackeDom,Gingersacolejavaacadatrancodospneusnoterrenoacidentado.AosolhosdeDom,pareciamaisbonitadoquenunca,ocabelobrilhando,ouroeprata,maisluminosodoqueaneve.
Avançaram vários metros, morro acima, até atingir um primeiro platô, liso, de terra firme. Derepente,Jackpisounobreque:
—Osjatos!—gritou.‘Dom ergueu os olhos para o céu, imaginando tratar-se de visão real.Mas não: Jack falava dos
mesmosjatosqueDomviraaosairdorestaurante.Aviõesdopassado.—Um...dois...três...quatrojatos!—exclamouJack,deolhosfechados.—Voandobaixo.Parece
quevãocairemminhacabeça!—Sómelembrodetrês—observouDom.—Ooutroapareceuquandosaídomotel.Eunãoestavanorestaurantecomvocês.Corriparafora
demeuquartoevi...achoqueeraumcaça-bombardeiro...surgindodonada,domeiodaescuridão.Vocêtemrazão...estavamuitobaixo!Unsdoze,quinzemetros.Oquartoaviãoeraoquevoavamaisbaixo...foielequeestourouasvidraças.
—Edepois?—Gingerperguntou,avozporumfio,commedodeespantaraslembrançasdeJack.— O terceiro e o quarto jatos, que voavammais baixo, tomaram a direção da rodovia, quase
batendo nos fios elétricos... Dava para ver as turbinas roncando, cor de fogo. Passaram por cima daestradaesesepararam:umfoiparaleste,ooutroparaoeste...Foramevoltaram.Eu...corrinadireçãodogrupoquesaíadorestaurante.Eramvocês...Eunãosabia.Queriaperguntarse tinhamidéiadoqueestavaacontecendo.
Anevebatianopára-brisa.—Ésó...—Jackdebruçou-sesobreovolante.—Nãoconsigomelembrardemaisnada.—Fiquetranqüilo...vocêvaiselembrar—Domgarantiu.—Osbloqueiosjáestãocedendo.Jackengatouamarchaeseguiuemfrente,rumoaThunderHill.OcoronelLelandFalkirkeotenenteHorner,acompanhadospordoissargentosdaDEROarmados
atéosdentes, tomaramumcarroe rumaramparaopontoemqueestavasendomontadoobloqueiodaestrada.DoisgrandescaminhõesdoExército,atravessadossobreoasfalto,fechavamaestradaaleste.Aoeste,abarreirasituava-sedezquilômetrosadiantedoMotelTranqüilidade.Portodososladosviam-se
lanternas de sinalização montadas sobre cavaletes. Seis soldados da DERO, com abrigos deinverno,policiavamaárea.Trêsdeles,naquelemomento,andavamaolongodafiladeveículosqueseformavajuntoàbarreira,polidamenteexplicandoasituaçãoaosmotoristas.
Lelanddesceudocarroedirigiu-seaosargentoVinceBidakian,encarregadodobloqueio.—Comoestamosindo?—perguntou.—Atéagora,tudobem,senhor.Hápoucomovimentoporcausadanevasca.Muitagenteparouem
BattleMountain para não viajar com esse tempo. Outros ficaram emWinnemucca. Os caminhoneirosdevemterpreferidopararondeestavam,quandoanevascacomeçou.Afilaestápequena.Vaidemorarmaisdeumahoraatétermosduzentosveículosporaqui.
A idéia era conseguir que osmotoristas esperassem ali, sem lhes sugerir que voltassem a BattleMountain. Os homens da DERO tinham instruções para explicar a todos que a estrada permaneceríabloqueadapornomáximoumahoraequeomelhorafazereraesperarumpoucoeseguirviagemcomsegurança.
Umbloqueiomais demorado significaria engarrafamento, com todos querendo voltar até a cidademaispróxima,eexigiríanotificaçãodasautoridadeslocais.
Leland estava disposto a acelerar a operação só para não se envolver com a polícia, porque erainevitávelqueestaentrasseemcontatocomocomandomilitar...emaiscedooumaistardedescobriríamque estavam lidando com um rebelde. Se conseguisse mantê-los a distância por apenas uma hora,ganhandotempoparacompletaraoperação,resolveriatudoantesqueelesaparecessem.Bastava-lheumahoraparaapanharastestemunhaselevá-lasparaThunderHill,ondeninguém,nunca,poderiaencontrá-las.
—Naoseesqueçadeprovidenciarparaqueosmotoristastenhamgasolinasuficienteparaseguirviagem.Foiporissoquetrouxemosnossostanques.
—Jáestamosprovidenciando,senhor.Sãoasinstruçõesquere-cebi.—Bidakianperfilou-se.—Apolíciaaindanãoapareceuparameteronariz?—Aindanão,senhor.—Osargentopassouosolhospelape-quengfiladecarrosparados.—Mas
logovaiaparecer.—Vocêsabeoquedevedizeraeles?— Sim, senhor. Um caminhão que transportava materiais para Shenkfield sofreu um pequeno
acidente.Oacidenteprovocouumvazamentodesubstânciatóxica,enósachamosqueseriaprudente...— Coronel!—O tenente Horner aproximava-se, correndo pela neve, tão cheio de casacos e
abrigosdefrioquepareciaduasvezesmaisgordoqueonormal.—UmamensagemdosargentoFixx,daescuta,emShenkfield.Aconteceualgumacoisacomastestemunhas.Osargentonãoouvevozesháquinzeminutos,sóumrádiotocandomuitoalto.Eleachaquenãohámaisninguémnomotel.
—Estãonorestaurante...—Não,coronel.Fixxachaqueeles...foramembora...—“Foramembora”...paraonde?!—Lelandnemesperouaresposta,emparteporquenãoqueria
ouvir,emparteporquesabia.Correudevoltaparaocarro.Chamava-seTaliaErwy,eera igualzinhaaMarieDressler,aparceiradeWallaceBeerynaqueles
divinos filmes antigos.Naverdade, pareciamais alta emaiorqueDressler, que a seu lado seriaumamulher miúda, apesar dos ossos grandes, do rosto redondo, da boca enorme e do queixo duro. Dequalquer modo, Talia era a mais fantástica das mulheres aos olhos de Parker Faine, não só porqueconcordavaemlhesdarumacarona,comotambémporqueinsistiaemnãoreceberumvintém.
— Paramimvaiserótimo—disse,rindoumpoucocomoMa-rieDressler.—Naotenhonadaparafazer.Sabemqualerameuprograma?Irparacasaeprepararalgumacoisaparacomer...sozinha.
Sou péssima cozinheira... Vocês apareceram na hora certa. Assim posso adiar por alguns minutos osuplíciodecomermeuhorrívelbolodecarne...Soueuqueagradeço!
Talia dirigia um carro velho, commais de dez anos, porém bem equipado, com pneus de neve ecorrentes.FezcarafeiaquandoParkerperguntouseocarroandava.
— Meu“Velhão”?!Vocêsnaoo conhecem.O“Velhão” chega aqualquer lugardomundo, façachuva,façasol...ouneve.Entremaí.
Parkersentou-seaoladodela,eopadreWycazikacomodou-senobancodetrás.Nãorodaramnemdoisquilômetrosquandoouviram,pelorádio,anotíciadovazamentodegásedobloqueiodarodovia.
—Filhosdamãe,incompetentes,burros...Taliaaumentouovolumedorádioeergueuavoz,paraque os dois ouvissem, aomesmo tempo, as notícias e sua opinião sobre osmilitares.—Uma drogaperigosa,eelesaí,noscaminhões,paraláeparacá,comomalucos!Emdoisanos,éasegundavezqueessesvenenospingamporaí!
NemParkernemStefanconseguiramresponder,sequercomumrápidoolhardesimpatia.Começavaoúltimoatodatragédia.
—Eagora?—elaperguntouvirando-seumparaooutro.—Oquequeremqueeufaça?—Háalgumlugarondepossamosalugarumveículocomtraçãonasquatrorodas?Umjipetalvez...—Háumalojaquevendejipes.—Eseráquevocênoslevariaatélá?—Parkerperguntou,sorrindo.—Eueo“Velhão”podemoslevá-losaondequiserem,mesmoquecaiamcanivetes.0vendedornãoeracoloridoeanimadocomoTalia;aocontrário:FelixSchellenhoferacinzentoe
sorumbáticodacabeçaaospés.Roupacinzenta,vozcinzenta.DisseaParkerquenãoalugavamcarrospordia.Claro,tinhamváriosjipesàvenda,maseraimpossívelconcluirumavendaemvinteminutos.Nocasode financiamento, precisariamdevinte e quatrohoraspara avaliar o créditodo comprador.NãoaceitavamchequesdeoutrosEstados.Sóvendiamàvistaeemdinheiro.
—Voupagarcomcartãodecrédito—anunciouParker,enfiandoamãonobolso.Impossível.A lojaaceitavacartõesapenasparaacompradeacessórios.Nunca,em tempoalgum,
aparecera alguém querendo pagar um jipe inteiro com cartões de crédito. Um carro... mediante umsimplesretângulodeplástico!
—Meucartãonãotemlimitedecompra.Veja...quandoestiveemParis,certavez,passeiporumagaleriaeviumquadrodeDali exposto.Lindo!Custava trintamildólares... eagaleriaconcordouemvendê-lo...
Comgestosdecinzentapolidez,Schellenhoflevantou-separadispensá-los.— PeloamordeDeus!Tratedenosvenderesse jipe logo!—Stefan levantou-seeesmurroua
mesa,vermelhodatestaaopescoço.—Eumcasodevidaoumorte.Pegueessetelefoneeligueparaaempresa do cartão de crédito.—Outromurro namesa.— Pergunte se autorizam a venda.Mas sejarápido!—Deuoterceiromurro,definitivo.
Afúriadivina,ouosmúsculosdeStefan,ouasduascoisasjuntasconvenceramohomem.Semdizernada,elepegouocartãoecorreuparaotelefone.
— Sim,senhor!—Parkerexclamou,perplexo.—Seosenhor fosseumdessespregadoresqueaparecemnatelevisão,estariamilionário!
—Nãoestouinteressadoemsermilionário,masjásacudipelocolarinhoumoudoispecadoresatéfazê-losdescobriremaverdadedeDeus.—Nãotenhodúvidas...Schellenhof voltou, menos cinzento do que antes, porque a venda fora aprovada e ele antevia a
comissão.TraziaumadúziadeformuláriosemostrouaParkerondeassinar.
—Quesemana...—quasesorriu.—Nasegunda-feirameapareceuummalucoquecomprouumjipe e pagou em dinheiro... um saco de notas de vinte dólares! Deve ter ganho no cassino. E agoravocês...Asemanamalcomeçou!
—Queemoção!—Parkerfezumacaretaepôs-seaassinarosformulários.O padreWycazik apanhou o telefone e pediu à telefonista que fizesse uma ligação a cobrar para
Chicago, em nome de Michael Gerrano. Mal o cura o atendeu, Stefan contou-lhe sobre Parker e obloqueiodarodovia.Depois,aproveitando-sedomomentoemqueSchellenhofseafastou,dissealgoquesurpreendeuopintor:
—Epossívelquenosaconteçaalgumacoisaaindahoje.Portanto,noinstanteemqueeudesligar,telefoneparaSimon2o-derman,na redaçãodoTribune, econte-lhe tudo.Abrao jogo.ConteaeleasligaçõescomocasodopolicialTolk,comEmmyHalbourg,comCalSharkle, tudo!Conteaeleoqueaconteceu em Nevada há quase dois anos, naquele verão. Conte-lhe o que eles viram. Se ele nãoacreditar, diga que falou comigo, que eu mandei você procurá-lo e que eu sei que é tudo verdade.Simonmeconheceesabequesoudurodeconvencer.
QuandoStefandesligou,Parkerarregalouosolhos.—Osenhor...sabe?Sabeoqueaconteceunomotel?—Achoquesei.Euexplicopelocaminho.Neddirigiaojiperumoaleste,comSandyeFayeaolado,olhandoparaavastaimensidãobranca
quepareciacobriromundo.Nobancodetrás,apertadoentreBrendaneJorjacomMareienocolo,Ernietentavaconvencer-sede
quenãoserenderiaaomedonomomentoemqueasúltimasfracasluzesdodiadesapareces-sem.ConfiavanaslembrançasdeDom.Seesteconseguiulembrar-sedosjatos,eletambémpoderiae
entãoestarialivreparasempre.—Chegamosàestradamunicipal—Fayeanunciou.Dozequilômetrosadianteficavaaentradade
ThunderHill.—Depressa,Ned—Sandytocouobraçodomarido.Todospensavamnomesmoproblema:estavamemplenaestrada,apoucosquilômetrosdeThunder
Hill.Aqualquermomentopodiaaparecerumguarda,atéporacaso,edescobri-los.Nedpisounoacelerador,atravessouaestradaevoltouaoterrenoacidentadodooutrolado,fazendo
tudo tão rápido que Bren-dan e Jorja foram jogados sobre Ernie, encolhido no banco. Novaihenteesconderam-seentrecortinasdeneveerumaramparaapróximaestradamunicipal,doisquilômetrosaleste.Ali,afinal,estariamacaminhodaúltimaestrada,paralelaàrodovia,queoslevariaaElko.
Ernieespiavapelajanelaeviaanoitechegando.Não...erabobagemgastarenergianumafobiaidiota.Comopodiatermedodoescuroquandotantas
ameaças reais pesavam sobre sua cabeça, sobreFaye, sobre os amigos?Eramuito fácil perder-se nomeiodeumatempestade,foradaestrada.Erafácilnãoverumburacocobertodeneveecairantesdeperceberoquesepassava.Nedcomcertezajáadivinhavaoperigo,poisagoradirigiadevagar,atentoaosacidentesdoterreno.
Voutemeroquevaleapenatemer,Erniepensou,franzindoatestanumacaretazangada.Nãotenhomedodoescuro,droga!
Comoseouvisseseupensamento,Fayevirou-separatrásesorriuparaomarido.Erniefitou-anosolhosefez-lheumsinaldepositivocomopolegar,quasesemtremer.Fayeiadizeralgumacoisa,chegoualevantaramãoparadevolver-lheosinal...efoientãoqueMareiegritou.
SentadonoescritóriodeThunderHillondetrabalhava,nasentranhasdaterra,odr.Bennellpensava,mergulhadonapenun-bra,terrivelmentepreocupado.Aúnicaluzexistentevinhadapequenajanelaquese
abriaparaovãocentraldagrandecavernadosegundopisoeerainsuficienteparailuminarosalãosubterrâneo.Namesa,asuafrente,estavam
as seis laudas datilografadas que lera e relera centenas de vezes e quase conhecia de cor: o perfilpsicológico de Leland Falkirk, roubado do computador central que guardava as fichas pessoais dossoldadosdaDEROescaladosparaasegurançadeThunderHill.
Doutorembiologiaequímica,estudiosodefísicaeantropologia,músicoformadoemviolãoepiano,autordelivrostãodiferentesquantoumtratadodeneuro-histologiaeumatesesobreaobradeJohnD.MacDonald, conhecedor de vinhos finos, apaixonado pelos filmes de Clint Eastwood — o que ocredenciavacomooúltimodosiluministasvivosemplenofimdeséculo20—,MilesBen-nelleraentreoutrascoisasumaautoridademundialdeinformática.Umapaixãoquelhevinhadostemposdeestudante.
Dezoitomeses antes, quando o trabalho que o retinha ali o obrigou a ter freqüentes contatos comLelandFalkirk,Bennelldescobriraqueocoronelsofriadegravesperturbaçõesmentais,queotornariaminaptoparaoserviçomilitar,nãofosseeleumaespéciemuitoraradelouco.Lelandsabiausarapróprialoucuraparatransformar-seemmáquinaeficienteeprodutiva,semdeixardecomportar-secomosefossenormal.ApartirdaíMilesdecidiuinformar-sesobreele.Porquepareciasempretãotenso?Quetipodeestímuloofariadescontrolar-se?Asrespostasestavamnoscomputadoresdaunidadesobseucomando,eMilescomeçouausarseupróprioterminalparateracessoaosarquivosdabasedaDEROeaosdossiêsultra-secretosdeWashington.
Quandoafinaldescobriuotextoquetinhaàsuafrente,operfilpsicológicodeLelandFalkirk,sentiucalafrios,masdecidiunãoabandonaroprojetodeThunderHill,mesmocomriscoadicionaldeterqueconvivercomumhomemdesequilibradoeperigosocomoocoronel.Nãohaviaperigoimediato,desdequetratasseFalkirkcomorespeitoeasolenidadequesualoucurapareciaexigir.Nãopodiadescuidar-se;qualquerdeslize,eLelandsaberiaquehaviaalgumacoisaportrásdareverência.Masnãocorreriatalrisco,desdequeotratassecompolidezeomantivesseadistância.
Tudo correu razoavelmente bem até que, de repente, Falkirk tomou o poder, assumiu o controleabsolutodaoperação.EaliestavaBennell,comogrupodecientistasreunidosparaoprojeto,àmercêdeumloucovarrido.EnterradosvivosemThunderHill,àesperadequeLelanddecidisseoquefazercomeles,julgando-osconformeumcódigoalucinadodeinocenteseculpados.
0 psicólogomilitar—maismilitar que psicólogo— encarregado de redigir o perfil do coronel,escreviamale,emboradeclarasseseupaciente“excepcionalmenteapto”paracumprirsuasfunções,naodeixavadeobservaralgunsfatosintrigantes.ParaMi-les,excejentepsicólogoecientistahabituadoalernas entrelinhas, o texto era claro.E terrivelmente assustador.Emprimeiro lugar, porque afirmavaqueLeland Falkirk temia e ao mesmo tempo desprezava todas as formas de religião. Sabendo que, paramuitosdeseuscolegas,oamoraDeusconfundia-secomoamoràpátria,ocoronelfizeraopossíveleoimpossível para ocultar seus sentimentos anti-religiosos.A explicação parecia simples: infância numafamíliadefanáticos.Sintomaque,emmuitoscasos,nãoseriagrave,masque,dadasascircunstânciasdoprojetoempauta,tornava-semuitosério.PorquehaviaboadosedemistérioemisticismonosegredodeThunderHill,oquetalvezdisparasseosmecanismosderejeiçãomaisalucinadosdeLelandFalkirk.
Alémdisso,Lelanderaobcecadopelanecessidadedecontrolar tudoe todos.Suanecessidadedemanterocontroleeraumacompulsão,muitofacilmenteexplicável,poisnãopassavadeumreflexodemedodeserderrotadopelosprópriosfantasmaspessoais.Semumcontrolerígido,aloucuraviriaàtona,fazendo-operderasdivisas,oprestígioeopoder.
Miles estremeceu, pressentindo a terrível pressão que o segredo de Thunder Hill exercia sobreaquelecérebrodoente.Comoninguém,Falkirksabiaqueumdiatalsegredoseriadescobertoedivulgadoaos quatro ventos, escapando a seu controle. A tensão era suficiente para que, de repente, o coronel
explodissepordentroparasempre,ouparafora—enestecasoelesetrans-formarianumabombaviva,compodersuficienteparadestruiroplaneta.Em terceiro lugar,Falkirk sofriadeclaustrofobiaaguda,que seacentuavaem locais subterrâneos.
Resquíciosdemedoinfantilde“arderparasemprenoinferno”,comoseuspaisnãocansavamderepetir.A claustrofobia levava-o a desconfiar de qualquer pessoa que, como ele, vivesse nas profundezas daterra.
Opiorforadeixadoparaofimdorelatório:LelandFalkirkeramasoquistacompulsivo.Gostavadesentirdoremedo.Issopoderíalevá-lo,sempensarmuito,aadotaralgumtipode“soluçãofinal”parasipróprio e para todos os que conheciam o segredo. Inventaria alguma coisa como sacrificar-se pelahumanidade,ouentregar-separasalvaromundo...SóDeussabedoqueseriacapaz!
Milescobriuorostocomasmãosebaixouacabeça.Nãoeraotemoràmortequeodesesperava.Nemomedodevermorreremseuscompanheirosdepesquisa.Eramaisqueisso.SeFalkirkresolvessematá-los para que não revelassem o segredo, estaria negando a única chance de conseguir, depois demilênios, vencer a fome, a miséria, a morte e a dor. Estaria roubando à humanidade o prêmio datranscendência.
NacozinhadosBlock,LelandFalkirkfolheavaoálbumdeMareie:luasemaisluas,vermelhas,cordesangue.
Doladodeforadomotel,dozehomensdaDEROvasculhavamochãoàprocuradepistas,passandoinformaçõesumparaoutro,aosgritos,porcausadoventoqueassobiavaforte.
Respirandocompassadamente,contandoatétrêsantesdedeixarsairoardospulmões,numexercícioquesempreofaziarelaxar,FalkirkviravaumaaumaaspáginasdoálbumdeMareie: luasvermelhas,centenasdelas.
OtenenteHornersubiuasescadaseapareceunaportadacozinha:—Revistamososvintequartosdomotel.Estãovazios.Elesescaparampelosfundos.Hámarcasde
pneusnanevelátrás.Massãomuitofracas.Continuanevando,eaneveestáencobrindoasmarcas.Dequalquermodo,elesnãopodemestarlonge.
—Mandoualguématrásdeles?—Falkirkperguntou.—Aindanão.Masreunialgunshomens,quesóesperamsuasordens.Leland respirou fundo, um-dois-três, para dentro e para fora, até sentir que a voz soaria calma,
normal;entãoordenou:—Diga-lhesquesaiamjá.—Sim,senhor.Vamosapanhá-losemmenosdemeiahora.—Tenhocertezadisso.—Avoz,rigorosamentesobcontrole,confirmavaoperfeitochefemilitar
nocomandodeseushomens.—Depoisdedespacharossoldados,encontre-me láembaixoe leveummapadetodaaregião.ElesestãotentandochegaraElkoporalgumaestradamunicipal.Vamosdescobrirqualéeinterceptá-losnametadedocaminho,quandomenosesperarem.
—Sim,senhor.Hornerdesceu,ospassosapressados soandopelaescada.Falkirkvoltoua folhearoálbum. Jána
rua,otenentegritavainstruçõesparaossoldados.Outrafolhacobertadeluasvermelhas,eoutra,emaisoutra.
A frente do motel, os carros acionavam os motores. Oito homens, divididos em dois grupos dequatro,umemcadacarro,partiamnoencalçodosfugitivos.
Lelandainda folheouoálbum, tocandocomapontadaunhaos recortescolados.De repente, semmover ummúsculo do rosto, apanhou o álbum e jogou-o com força contra a parede. Alguns recortessoltaram-seeflutuaramnoar,antesdecairnummovimentosuaveeondulante.Sobreoaparador,Falkirk
viu uma jarra de cerâmica: um ursinho risonho com as patas dianteiras sobre a barriga.Apanhou-a eatirou-aaochão,ficandoaouvirotilintardoscacossobreaslajotas.Biscoitosespalharam-sesobreasfolhasarrancadasdoálbum,misturando-seaoscacos.Depoisfoiorádiodepilhaquevoounadireçãodaslâmpadaseespatifou-sesobreopiso.Oaçucareirobateunaporta,esparramandoseuconteúdoparatodolado.Acestadepãoalvejouaparede.Acafeteiraautomáticarebentouovidrodofogão.
Nacozinhaemdesordem,apenasoroncodaagitadarespira-çãodeLelandcortavaosilêncio.Passadaa fúria,ocoronelcomeçouacontrolar-se, inspirando...
um-dois-três, expirando... um-dois-três. Calmamente, quando a respiração se normalizou, ele saiu dacozinha,desceuaescadaeaproximou-sedamesaondeHor-neroesperava, sentadoà frentedomapaaberto. Calmamente, os dois debruçaram-se sobre a mesa e começaram a planejar a operação deinterceptação.
—ALua!—Mareiegritou.—Mamãe...Olhe!ALua!Mas,porquê,mamãe?!Olhesó...aLua!Esbravejando,semparardegritar,ameninasaltoudocolodeJorja,queinutilmentetentousegurá-la.
Assustadocomosgritos,Nedbrecouojipe.Mareieesmurravaajanela,aoladodeErnie,semsaberoquefazerparaescaparda lembrançaquecomeçavaavoltar.Ernieagarrou-acomforçaeentregou-aaBrendan.Ameninaaindagritava,presaentreosbraçosdopadremas,aospoucos,foiseacalmandoatéqueparoudegritarerecomeçousuacantilenamonótona:
—ALua...ALua...—Algunsinstantesdepois,voltouaagitar-se.—Oh,nãodeixequeelesmepeguem...Nãodeixe,porfavor...—Assustada,osolhosarregalados,MareiesaltoudocolodeBrendanependurou-seaopescoço
deErnie.— Acalme-se,querida...Está tudobem.Eclaroquenãovoudeixarque levemvocê.Está tudo
bem...—Ernieabraçou-a,acariciando-lheacabeça.Nedengrenouamarcha,eogrupooutravezmergulhounaescuridãodanevasca.Depoisdemesesdeterror,desesperadocadavezquepressentiaaaproximaçãodanoite,Erniepela
primeiravezsentia-sefeliz,empaz,descobrindoquehaviaalguém,nomundo,queprecisavamuitodesua força e de sua coragem. Estreitando a menina contra o peito, Ernie afagava-a e secava-lhe aslágrimas,falavabaixinhoparaconsolá-la.Eesquecia-sedanoite,jáescura,jácobrindoomundo,coladaaosvidrosdojipe.
Jackdirigiaacamionetarumoaleste,atéque,afinal,chegouà estrada que Ned deveria ter atravessado alguns minutos antes. Então dobrou e rumou para o
depósitodeThunderHill,seguindoomesmocaminhoqueDomeErniehaviampercorridodemanhã.Quantomaissubiamamontanha,maisfortenevava.— Aquelas lâmpadas acesas, lá longe, sãoa entradadodepósito— informouDom,apontando
duaslâmpadasdevapordemercúrioquebrilhavamvagamenteentreosflocosdeneve.Jackmal conseguiaver operfil daguarita, longe, alémda cerca.Desligouos faróis e diminuiu a
marcha,dando-setempoparahabituar-seàfaltadeluz.Quantoaoruídodomotor,nãohaviarazãoparasepreocupar,poistodososruídossumiam,perdidosnosgemidosdovento.Poucoseviadocaminhoàfrente,jáqueoslimpadoresdepára-brisaestavamgrudadosaosvidros,pesadosdeneve,começandoacongelar.
— Achoquepoderiamos acender os faróis—Ginger sugeriu, a voz tensa, os olhos colados àestrada.
—Nadadisso.Temosqueirnoescuroatélá.Nomotel, Leland Falkirk e o tenente Horner continuavam analisando as possíveis rotas de fuga,
quando voltaram os soldados encarregados de seguir as testemunhas.Não conseguiram acompanhar a
trilha,porcausadaneveedovento.Asmarcasdospneusdesapareciamapoucosquilômetrosdali.Dequalquermodo,havia indíciosdequepelomenosumdoscarrosrumaraparao leste.Comonãohaviamotivo para supor que as testemunhas pretendessem separar-se, a conclusão óbvia era que os doiscarrosseguiamnamesmadireção.
—Claro,estãotodosindoparaElko—Lelandcomentou,semdesviarosolhosdomapa.—EaúnicaviadeacessoparaforadoEstado.Asduasoutrasalternativas,BattleMountainouWin-nemucca,sãomuitodistantesepequenasdemaisparaqueelespossamesconder-selá.
OtenenteHornerapontouparaomapacomodedogordocomoumcharuto.—EstaéaestradaquepassaportrásdomotelevaiatéThun-derHill—explicou.—Jádevemterchegadoàestradaeestãoseguindoparaoleste.—PorondeterãoquepassarparachegaraElko?—Sóháumcaminho...VistaValley.Setequilômetrosalestedaestradaquevaiatéodepósito.—
OtenenteHornerlevantouacabeçaeolhouparaFalkirk.Odr.MilesBennellouviualguémbateràportaegritou:—Entre!Estáaberta.—Oqueestáfazendo,sentadonoescuro?—perguntouogeneralAlvarado.—SeFalkirkovisse
aí,mandariaprendê-lopor“atitudesuspeita”.—Falkirkestáloucoevocêsabedisso,Bob.— Descobri tarde demais. Passeimeses dizendo e repetindo que ele era um excelente oficial,
embora muito preso aos manuais e “esquentado” demais. Hoje à noite, porém, descobri que vocêtemrazão.Ohomemquer ircontraacorrenteremandocomumremosó.Acabodereceberumpedidodele.Naverdade, umaordem.Querque todoopessoal residente emThunderHill seja recolhido aosalojamentosepermaneçaconfinadoaté“ordensposteriores”.Dentrodealgunsminutosvoutransmitiraordempelosistemadesomdabase.
—Eelenãodisseporquequeriaisso?Alvaradopuxouumacadeiraparajuntodamesaesentou-se.Aluzquevinhadosfundosdacaverna
iluminava-lheospés,aspernasemetadedotronco,masdeixavaorostomergulhadoempenumbra.—Estátrazendoastestemunhasenãoquerqueninguémalheioaosegredoasveja.Nãoseiseé
verdade,masfoioquemedisse.Atônito,Bennelldebruçou-sesobreamesa.—Masseeleestápensandonumasegundalavagemcerebral,omelhorseriamanterastestemunhas
no motel, como da outra vez — argumentou. — Você sabe se ele já mandou chamar os malditos“lavadores”?
— Tanto quanto sei, ninguém está sendo esperado em Thunder Hill. Falkirk não chamou osmonstros.Deveestarconvencidodequenãoserápossívelmanteroplanooriginal.Falouqueéparavocêestudar cuidadosamente dois deles, o padre Stefan e Dom Corvaisis. Disse que talvez já nao sejamhumanos.Masdissetambémqueandoupensandonaconversaquetevecomvocêechegouàconclusãodequetalvezvocêtenharazãoeeleestejasendorigorosodemais...Querquevocêexamineastestemunhasefaça um relatório, especificando os dons que têmmanifestado. Dependendo do resultado, ele poderápoupá-las.Casoseurelatórionãodeixemargemadúvidassobrearealsituaçãodessaspessoas,Falkirksuspenderá a segunda lavagem cerebral e encaminhará sugestões aos superiores, em Washington,recomendandoqueosegredosejadivulgado.
---Ébomdemaisparaserverdade...Nãoacreditonele,Bob.Milesestendeuamãoparaacenderasluzes,masogeneralodeteve,pedindo:—Nãoacenda,porfavor.Assim,noescuro,émaisfácilfalarcomfranqueza.—Cruzouosbraços,
silenciouporalgunsinstanteseperguntou:—Diga...foivocêquemmandouasfotosparaDomCorvaisiseparaBlock?—Comonãoobtivesseresposta,continuou:—Somosamigos...Pelomenos,tenhotidoaimpressãodequepodemosconfiarumnooutro.Jamaisencontreialguémcomquempudessejogarxadrezepôquer...Vocêébomnosdois.Porissovoulhecontaraverdade.FuieuqueatraíJackTwistparacá.
—Você...mascomo?!Porquê?—Bennellarregalouosolhos.— Soube que algumas testemunhas começavam a se lembrar e estavam tendo problemas
psicológicos em função disso.Achei então que só teriam chance se viessempara cá e criassem tantaconfusãoqueasautoridadesacabassemobrigadasarevelaraverdade.
—Masporquê?!—Porquedescobriqueéimpossívelmentirtanto.— E resolveusabotaroplano...deFalkirk.Poderia tersidomaisdireto.Falarcomochefedo
Estado-Maior,porexemplo.—Nãoquiscorreroriscodedesobedecerordenssuperiores.—Alvaradorespiroufundo.—Não
quisarriscarminhaaposen-tadoria,queestápróxima,nemapensãoquesustentaminhafamília.Etambém... tivemedodeque
Falkirkmandassemematar.Milesviviapensandonamesmapossibilidade.—ComeceicomTwist—prosseguiuogeneralporqueéoúnicohomemdogrupodomotelcom
capacidade e experiência de combate suficientes para organizar um exército civil capaz de derrotarFalkirk. Quanto a descobrir os bancos, identidades e códigos, foi fácil. Bastou dar uma olhada nosarquivosdointerrogatórioedassessõesdelavagemcerebral.Fíáatécópiasdaschavesdoscofres.Idéiade Falkirk, para o caso de, algum dia, ser necessário chantagear Jack ou apresentar provas que omandassemparaaprisão.Emdezembro,quandotiveafolgadedezdias,fuiparaNovaYorkeenchioscofrescomcartões-postaisqueleveidaqui.Foifácil.
—Emuitoengenhoso...—Milessorriu,deslumbrado,paraasombradorostodoamigo.—JackTwistdeveterenlouquecidoquandoencontrouospostais.EFalkirkjamaisdescobririacomooscartõesentraramnoscofres.Pelomenosnãopoderíaprovarnadacontravocê.
—Esperoquenão.Tomeitodososcuidadospossíveis...nuncatoqueinoscartõessemusarluvas,porexemplo.AidéiainicialeradaralgumtempoparaTwistreorganizarasidéias.Depois,bastariadaralguns telefonemas anônimos para as testemunhas, falar-lhes sobre seus problemas psicológicos,fornecer-lhesonúmerodotelefonedeTwistesugerirqueoprocurassem.Foientãoquesoubedasfotos,emeuplanonãoprecisouseguiradiante.ComoFalkirk,tambémnãotenhodúvidasdequeohomemquemandouasfotoscontinuaemThunderHilleconheceosegredo.Comoé?Vaiseabrir,oueuficofalandosozinho,comopecadoremconfessionário?
Bennell baixou os olhos para a mesa onde deixara as laudas do perfil psicológico de Falkirk.Respiroufundo,recostou-senacadeiraedeclarou:
—Gostodejogarxadrezcomvocêporquepensacomoeu.Egostodejogarpôquerporquevocêétãodoidoquantoeu...Doisgênios!Everdade,amigo...Fuieu
quemandeiasfotos.— Ah...—Alvaradoesticouaspernasgrossaserelaxou.—Agoramesintomelhor.Mas...por
que Corvaisis? E fácil entender que você quisesse cutucar os Block. Afinal, vivem aqui, e asoutrastestemunhasacabariamchegandoaeles.Mas...Corvaisis?!
— Porque é escritor, um homem de imaginação. Cartas anônimas, falando das crises desonambulismo e dos sonhos que só ele conhecia, e estranhas fotos de gente desconhecida acabariampordespertar-lheacuriosidadeeofariamreagirantesdosoutros.Isso,semfalarqueacabadelançarum
livroqueosjornaisjácomentavamantesdolançamento.SeCorvaisisprecisassedeespaçonaimprensa,teriamaisfacilidadeemconsegui-lodoquequalqueroutro.
—Somosdoisgênios...—E...Geniaisdemais...Oplanofuncionou,masfoiumpoucolento.Elesprecisavamterchegado
antes.Outalvez,setivéssemosumpoucodecoragemparaenfrentarFalkirk,nãoserianecessárioarriscartantasvidas.
—Porqueachaquevimprocurá-loecontartudo?—Alvaradoperguntou,depoisdeuminstantedesilêncio.
—Porqueprecisavadeumaliado.Porque,comoeu,vocêtambémnãoacreditanaregeneraçãodeFalkirk.Não acredita que, de um instante para outro, ele tenha-se transformado emhomem sensato.Etambémnãoacreditaqueestejatrazendoastestemunhasparacáafimdeseremexaminadas.
— Elevaimatarastestemunhas,osmilitareseoscientistasquetrabalhamaqui,começandopornósdois.Vainosmataratodos.
Oalto-falanteembutidotocouumasirenedealerta,umapequenaluzvermelhaacendeu-senaparede,elogoosubterrâneofoiinvadidopelavozdogeneralAlvarado:opessoaldeserviçoemThunderHilldeveriarecolher-seaosalojamentoselápermaneceratéordensposteriores.Antesdisso,porém,todos,civisemilitares,deviamapresentar-seaoalmoxarifadoeidentificar-separareceberarmasquelevariamparaosalojamentoseusariamquandoecomolhesfosseoportunamenteindicado.
Alvaradolevantou-seeaproximou-sedoamigo.—Ouviu?Quandoestiveremarmadoserecolhidos,voureuni-losecomunicar-lhesquehouveum
motimlideradoporFalkirkeseusmalditosasseclas;queaidéiademantê-losconfinadosfoideFalkirk,masqueaidéiadearmá-losfoiminha.
—QuandoLelandmandarseuscachorrosparaaexecuçãogeral,queroquenossoshomenstenhamumachancededefender-se.Masesperoqueconsigamosdetê-loantesdechegaraesseextremo.
—Voureceberumaarmatambém?—Bennellergueu-se.Ogeneraldirigiu-separaaporta,masparouantesdeabri-la.— Você,antesdequalqueroutro—respondeu.—Useumdeseusaventaisdelaboratório,bem
largos,eleveapistolaescondidanacintura.Vouvestirmeuabrigodeinvernoetambémestareicomapistolaescondida.QuandodesconfiarmosqueFalkirkestáprontoparaordenaromassacre,faço-lheumsinal...EumatoFalkirk,evocêmataotenenteHorner.Nãopercaumsegundo,porqueHornertentaránosmatartãologoperceberquequeremosLeland.Quandoeusacarapistola,Hornervaiatiraremmim...eémuitoimportantequeeusobreviva.—Alvaradovirou-seesorriu.—Nãosóporquequerogozarminhamerecidaaposentadoria,masprincipalmenteporquesougenerale,comFalkirkmorto,tenhoautoridadeparaordenarqueoshomensdaDE-ROdeponhamasarmas.Entendeu?
Milesfezquesimcomacabeça.—Eestápreparado?—perguntouooutro.—Achaqueécapazdematarumhomem?—Fiquetranqüilo.NãovoudeixarHorneracabarcomvocê.Nãosóporquenãoqueroperderum
grandeparceirodexadrezepôquermas,principalmente,porquevocêéoúnicogeneralqueconheçoqueleuaobracompletadeT.S.Eliot.
— “Acho que chegamos ao fim do caminho. Onde os mortos deixam os ossos”—Alvaradodeclarou,comumsorriso.—Veja-queironia!Quandoeueramenino,hámuitotempomeupaidi-
ziaqueminha“maniadepoesia”iametornarefeminado.Hoje,sougeneraldecincoestrelasecitoEliotparaagradeceraohomemqueprecisarámatarparasalvarminhavida...Vamosaoal-moxarifado?
Bennellaproximou-see,antesdesair,perguntou:— VocêestábemconscientedequeFalkirkcumpreordensdocomandantedoEstado-Maiordo
Exército?Quandovocêomatar,ogeneralRiddenhoure,talvez,oprópriopresidentevãocairemcimadevocê.
— Quesedaneocomandante!—Alvaradoriuepousouamãonoombrodoamigo.—Quesedanemospolíticos,quequeremtransformaroExércitonumclubedecomadresfofoqueiras.MesmoqueFalkirkleveparaoinfernoocódigodesaída,emdoisoutrêsdiasestaremosforadaqui,nemquesejaprecisodinamitaraportaoudesmontá-la,parafusoporparafuso.Eentão...seremososdoishomensmaisimportantesdesteinfelizplaneta.TalvezduasdaspersonagensmaisimportantesdetodaaHistória,emtodosostempos.DesdeMariaMadalena,namanhãdaPáscoa,ninguémtevenotíciatãoimportanteparacontaraomundo.
OpadreWycazikencarregou-sededirigiro jipe,umavezque,desdeoVietnã, tinhacertapráticacomveículosdetraçãonasquatrorodas.VerdadequenãonevavanoVietnã,masojipeéjipe.Apressaea angústia com o que estaria acontecendo a Bren-dan faziam-no esquecer o perigo e despertavamlembranças dos dias terríveis do passado, quando transportava feridos oumedicamentos por estradasimpossíveis com balas zunindo sobre a cabeça. Voltavam-lhe a energia da juventude, a força e acoragemdeseusprimeirosanosdecarreira.PorissoDeusochamaraparaosacerdócio:àsvezes,emmomentosdedesespero,umpadreprecisatermúsculosdeaço,coragemdeleãoealmadeaventureiro.
Com a rodovia interditada, só lhes restava a estrada estadual, que mal se via debaixo da neve.Apenasosolhos-de-gatoamarelos,àmargemdaestrada,sinalizavamocaminho,eStefanguiou-
seporeles.ParaavançarrumoaoMotelTranqüilidade,felizmentecontavamcomabússolaeomapadaregiãoquehaviamcomprado.
Duranteaviagem,opadrefalouquesabiaarespeitodorelatóriomencionadoporMichaelGerrano;porfim,concluiu:
— PeloquemedisseotalsenhorX,achoqueorelatórioéumcasotípicodemalversaçãodosfundospúblicos...Umbandodecientistas...algunsrazoavelmentesérios,outroscompletamentedoidos,reunidosparaanalisarasconseqüênciasdeumeventoque,naopiniãodetodos,jamaisaconteceria...Atéqueaconteceu.
—Aconteceu...oquê?—Parkertirouosolhosdomapaevirou-separaStefan.— Obandoautodenominou-seGrupodeEstudossobreContatosdeTerceiroGrau.Onomediz
tudo,nãoacha?Parkerestavaperplexo.— Então...oqueaconteceu...Não!Nãopodeser!Osenhorestádizendoque...meuamigoDom
tevecontatocom...seresdeoutroplaneta?!—Exatamente...Algumacoisadesceudocéunaquelanoite,seisdejulhodoanoretrasado.—Jesus!—Parkercolocouamãonaboca.—Desculpe,nãoénadapessoal...Disse“Jesus”assim,pordizer...Nãoépossível!Deusdocéu...
Putaquepariu!Perdão,padre,perdão!Eque...merda...édemaislNossaSenhora...—Achoque,dadasascircunstâncias,Deusnãovaiseofendercomessamisturadeblasfêmiasque
vocêestávomitando...—riaStefan.—Oqueinteressaéqueotalgrupo,conhecidoporalgunscomoGETRAU,passouanosestudandooqueaconteceriaàhumanidadese,poracaso,aTerrafosseinvadidaouvisitadaporseresdeoutroplaneta.
— Mas que besteira! Gastar massa cinzenta para descobrir uma coisa que qualquer criançaacostumada a ver filmes de ficção científica responderia na hora! Seria fantástico, maravilhoso,lindo... descobrir que não estamos sozinhos no espaço! Eu sei, o senhor sabe, qualquer idiota sabe...Desculpemaisumavez...Osenhornãoéidiota,sóeu.
—Talvez.Dequalquermodo,vocêháde concordarqueumacoisa éver seres extraterrestresno
cinema,eoutra,bemdiferente,éencontrá-losemcasa,ànoite.Averdadeéquevárioscientistasveemnessescontatosalgumasameaçasgraves.Antropólogosehistoriadoresobservamoseguinte:aoentraremcontato com culturas mais evoluídas, as culturas primitivas tendem a sofrer um colapso em suasinstituições...Osprimitivosperdemafénosvaloresdeseumundo,nosdirigentes,nosprópriosdeuses.Isso aconteceu com os esquimós, por exemplo, quando os brancos invadiram suas terras. Cresceramassustadoramente as taxas de alcoolismo entre a população, a família desintegrou-se, aumentou onúmero de suicídios. E não pense que os brancos queriam acabar com os esquimós. Claro que não!Chegaram como amigos...Mas levavam uma culturamais sofisticada,mais complexa... O contato foidevastadorparaosesquimós.Perderamoorgulho,aauto-estima,ejamaisserecuperaram.EoGETRAUachaqueamesmacoisapoderiaacontecercomtodosnóssedepararmoscomumaculturasuperior.
Stefanparoudefalare,nomesmoinstante,brecouojipe.Aestradaacabavaderepente.Parkeracendeualuzinterna,debruçou-sesobreomapa,estudou-oporalgunsinstantese,apontando
paraaesquerda,disse:—Porali.Vamosrodarquatroquilômetrosparaoeste,atravessaraestradadeVistaValley,voltar
paraochãobrutoeseguiradiante,unsdezquilômetros,atéchegarmosaoMotelTranqüili-dade,pelosfundos.
—Fiquedeolhonessemapa.Deussóajudaaquemseajuda—proclamouStefan,recolocandooveículoemmovimento.
Apósalgunsmomentosdesilêncio,Parkervoltouaoassunto:—OtalsenhorXentrounessetipodedetalhecomopadreGerrano?Falousobreosesquimós...
sobreaposiçãodeGETRAU...?—Dissealgumascoisas...—...eoutrasosenhormesmoconcluiu...Stefansorriu,calou-seporinstantesedeclarou:—Oproblemadoscontatosentrediferentesculturaspreocupaosjesuítasháváriosséculos.Temos
pensadosobreoassunto,paradescobrirsefizemosmaisbemoumaismalàsculturasqueprocuramos,aolongo dos séculos, na tentativa de convertê-las à nossa religião. Em alguns casos, é difícil saber sefizemosopapeldemensageirosdeDeus...oudodiabo.
— Estamos indo para o norte. Trate de corrigir a rota para a esquerda, o mais rapidamentepossível—interrompeu-oParker.
Stefanobedeceue,poucodepois,retomouoassunto:—Pense,porexemplo,nosíndiosamericanos.Nãofoiaaguardenteouasarmasdosbrancosque
osdestruíram...foiochoquedeculturas.Novosvalores,novastécnicasdesobrevivênciaobrigaramosíndiosareavaliarseusvalorestradicionais...e,infelizmente,fezcomquesesentissematrasados,pobres,derrotados.O senhorXdisse aopadreGerranoque a conclusãodoGETRAUera exatamente essa: ocontato de nossa cultura, no atual estágio de progresso, com outra cultura extraordinariamentedesenvolvidapoderálevaroplanetaàautodestruição,àperdadafénasinstituições.
—Bobagem...—Parkerfezumacareta.—Osenhorteriasuaféabaladaporumcontatocomgentedeoutroplaneta,aindaquesejambilhõesdeanosmaisavançadosdoquenós?
—Não!—Stefanretesouascostasnobancoeolhouparaocéu,orostoiluminado.—Muitopelocontrário! Talvezminha fé sofresse abalos se, algum dia, se comprovasse que somos os únicos serespensantesnessavastidãoinfinita.Nossasolidãotalvezdemonstrassequesurgimosdeumátomoquesejuntouaoutroporacaso,quecresceuporacasoedeunoquedeuporacaso.Mas,sedescobríssemosvidaem outros planetas, provaríamos definitivamente a existência de Deus, criando vida, semeando seusfilhosemtodososlugares.Deusexisteporqueamaavida...Elenaodeixariaoespaçovazio...
—Muitagentepensariacomoosenhor.—Aindaqueaespéciequeviessenosvisitartivesseumaaparênciamuitodiferentedanossa,eu
nãomeassustaria.Deusnoscriou à Sua imagem... não à imagem física, mas à espiritual. Deu-nos capacidade de pensar,
compaixão, amor, amizade... por essas qualidades é que somos comoEle. E isso que preciso dizer aBren-dan...—Impaciente,opadreesmurrouovolante.—Estouconvencidodequesuacrisedefétemalguma relação com isso. Ele teve contato com seres diferentes de nós... de cultura espantosamentesuperior ànossa...E concluiuquenão fomos todoscriados à imagemdeDeus. Sua fé caiu por terra.Entendeagoraporqueestou tãoansiosopara encontrá-lo?Precisodizer-lhe:não importa a aparênciafísica, não importa a superioridade cultural. O que importa é saber se os seres que ele viu têmcapacidade de amar ao próximo, de interessar-se sinceramente pela sorte dos irmãos, de usar ainteligênciasuperiorqueDeuslhesdeuparaenfrentarcomcoragemasdificuldadesdavida.
— Nãoteriamchegadoatéaquisenãofossemassim...—observouParker, respirandofundo,orostosério.
—Claro!—Stefanexclamou.—AchoquealavagemcerebralnãopermitiuqueBrendanrefletissesobresuasprimeirasemoções.Mas,quandoeleselembrardoqueviuetivertempoparapensar,chegaráàmesmaconclusão.Eeuqueroestarcomele,paraajudá-lo.
—OsenhorgostamuitodeBrendan,nãoé?Atentoao terrenoqueseestendiaa sua frente,brancoequase impenetrável,opadreWycaziknão
respondeu.Momentosdepois,desabafou,numavozextremamentesuave:— Asvezesmearrependode terme tornadopadre.Deusquemeperdoe,mas éverdade...As
vezes,pensonafamíliaquepode-riaterconstruído...umaesposaquepartilhassecomigoasdoreseasalegriasdavida,quemedessefilhos,queosvissecrescer,ameulado.Eaúnicacoisaquemefezfalta...umafamília.Só isso,nadamais.Brendan,paramim,éo filhoquenao tiveenunca terei.Gostomuitodele...maisdoquevocêpodeimaginar.
Parkerouviuemsilêncio,osolhosnomapa,pensativo.Derepente,sentenciou:— EsseGETRAUéumabesteira.Asconclusõesdo relatório são ridículas.Nãohácontatode
terceirograuquepossadestruiroplaneta.— Tambémacho—Stefan concordou.—Oerrode raciocínio é simplório... elespensamque
nossaculturaestáparaadosextraterrestrescomoadosesquimósparaadosbrancos.Osesquimóseramprimitivos...masnósnãosomos!Ocontato,emnossocaso,sedariaentreumaculturaavançadaeoutramaisavançada.O relatórioafirmaque,nahipótesedeocorrerumcontatodesse tipo,oacontecimentodeveria ser mantido em segredo por dez ou vinte anos. É óbvio que isso também não está certo. Ahumanidade há de suportar o choque, porque está madura para o encontro. Deus... há quanto tempoesperamosporelesl
—Háséculos...—Parkersuspirou.Durantealgumtempo,sacolejandonojipe,tentandoevitarosacidentesdoterreno,osdoisficaram
emsilêncio,semencontrarpalavrasparaexpressarseudeslumbramentoanteafantásticadescoberta:nãoestavamsozinhosnouniverso.
Parkerlimpouagarganta,verificouabússolaeinformou:—Estamosperto.MenosdeumquilômetroàfrentedevemosencontraraestradadeVistaValley.
— Calou-se e, um segundo depois, perguntou:—O que foi que o homem de Chicago, o tal CalvinSharkle,gritoudajanela?
— Que viu pousar uma nave extraterrestre tripulada por seres hostis... que tinhamedo de serlevadoparaanave...quetodososvizinhosestavamcontaminados.Gritoutambémqueosseresestranhos
o amarraram numa cama e... entraram em seu corpo pelas veias do braço. Quando ouvi contar isso,chegueiapensarqueCalestavacerto...osextraterrestrespodiamterchegadocomoinimigos.Masdepoiscomecei a pensar. Sharkle estava confundindo a aterrissagem da nave e o medo que sentiu com oataquedos soldados queo prenderamà cama e o drogarampara fazer a lavagemcerebral.As coisasdevemtersepassadomaisoumenosassim:anavepousou, todosseassustarame logoapareceramossoldadosnostrajesdelaboratório,cobertosdacabeçaaospés,paralevá-lospresos.Calnãofoipresopelosalienígenas,maspe-
lossoldados;naconfusãomentalprovocadapelasdrogas,tudosemisturou.— O senhor acha que os soldados usavam equipamento adequado para evitar uma possível
contaminaçãobacteriológica?— Exatamente.Talvezalgunshóspedesdomotel tenham-seaproximadodanave... oque fezos
soldados suspeitaremde contaminação. Sei ao certo que alguns hóspedes domotel lembramde havermantidocontatocomgentevestidadeummodoestranho,comroupasque,depois,adoutoraGingerWeissidentificoucomotrajes“vedados”,dotipousadoemlaboratóriosdepesquisasparaevitarcontaminaçãoporbactérias.OpobreCalvinenlouqueceuporque lhe tiraramachancede lembrar-sedos fatoscomorealmenteaconteceram.
—Estamosamenosdequinhentosmetrosdaestrada.—Parkeracendeualâmpadadacabine.Anevecontinuava,implacável.Porvezes,quandooventodiminuíaoumudavadedireção,osflocos
giravamdeumladoparaooutroeacabavamdesaparecendo,comofantasmasbailarinos.— Umanavedesceu...—murmurouParker,pensativo.—Eogovernosabiaquealgumacoisa
estava para acontecer... Tanto sabia que bloqueou a rodovia minutos antes... Talvez já estivessemperseguindoanavedesdelonge...Masnãoconsigoentendercomoacertaram...Atripulaçãodanavenãopoderiateralteradoocurso?
—Não—Stefanrespondeu.—OgovernotemsatélitesdeobservaçãomuitodistantesdaTerra.Sóseriapossívelpreverolocaldepousoseanaveestivesseseguindoumcursodeterminado,emquedalivre,porexemplo...seatripulaçãoestivessemorta.
—PeloamordeDeus!Nãoqueronempensarqueelesviajaramtantoparaseesbbrracharaqui,nestefimdemundo!
—Nemeu...—Queroviverparadescobrirqueeleschegaramvivosebem...sejamláquemforem!Ojipederrapou,desceualgunsmetros,mas,outravez,conseguiuseguiradiantenaescalada.— Querodescobrir—Parkercontinuou—queDomeosoutrosnãoviramumanavecheiade
cadáveres.Maschegaramafalarcomosextraterrestres.Imagine...Imaginesó!— Acho que naquela noite aconteceram fatosmuito estranhos.Mais estranhos, até, do que ver
descerdocéuumanavedeoutroplaneta.—Osenhorachaque...essesfatosexplicariamospoderesdeDomeBrendan?—Talvez.Nãotenhodúvidasdequeaconteceualgomais,alémdeumsimplesencontro.Pararamaochegaraotopodacolinaeolharamemvolta.Apesardaneve,Stefanviufaróisacesos,
poucos metros abaixo, na estrada de Vista Valley. Quatro carros, estacionados em círculo, os feixesamareladosdas luzesdos faróis cortandoacortinadeneve,desenhandogradesnavastidãobranca.Opadre engrenou a marcha e começou a descer o acostamento para atingir a estrada; tinha a nítidaimpressãodequenãoconseguiriachegar.
—São...metralhadoras!—Parkergritou.Doishomenspróximosà luzestavamarmados, asmetralhadorasapontadasparaumgrupode seis
adultos e uma criança, todos virados de frente para um jipe idêntico ao que Parker havia
comprado,apenasdecordiferente.Outrosoitooudezhomensfechavamocírculoàvoltadojipe,todosvestindoomesmotipodeabrigocontraofrio.Eramossoldadosquebloquearamarodoviahorasantes—etambémnanoitede6dejulhodoanoretrasado.
Todos,soldadoseprisioneiros,voltaramacabeçaparaaestradaassustadoscomaintromissão.Stefanchegouapensaremmanobrarrapidamenteepisarfundoparaescapardali.Maslogoconcluiu
quenãohaviafugapossível:ossoldadososagarrariam,ouosmatariamatiros.FoiquandoreconheceuBrendan.—Eele!—exclamou.—Brendan!Estáali...oúltimodafila!— Osoutros tambémdevemestar saindodomotel.—Parker aproximou-sedovidropara ver
melhor.—MasDomnãoestácomeles.agoraquejáhaviaencontradoBrendan,opadreWycaziknãosairiamaisdepertodele,nemmesmo
seDeuslheabrisseumcaminhodiretoparaoCanadá,comofizeranomarVermelhoparaMoisés.Penaque estava desarmado. Afinal... era padre e nunca confiara em armas de fogo. Nao podia fugir, nemqueriaatacar...Naindecisão,deixouoveículodeslizarlentamente,encostaabaixo,enquantodavavoltasevoltasnacabeçatentandodescobrircomocomeçaraconversa.
—Mas...oquevamosfazer?!—Parkersegurou-senobanco.Odilemaduroupouco,parasurpresaedesesperodeStefan.Umdossoldadosarmadosvirou-seeabriufogocontraojipe.Semfalar,DomobservavaJackTwist,delanternanamão,examinandoacercadearamefarpadoque
seerguiaacimadesuascabeças.Estavamnaáreaemqueacercaseestendiaemterrenoaberto,descendoparaofundodovale.Agrossatramadearamefarpadoestavaincrustadadegeloemváriospontos,masJackconcentrava-senaspartesondeanevenãoseacumulara.
—Acercanãoéeletrificada—avisou,elevandoavozacimadozumbidodovento.—Nãoháfios condutores entretecidos no arame, que, aliás, émuito grosso para servir de condutor; e ainda hápontassoltas.Nãohádúvida...acercanãoéeletrificada.
—Mas...—Gingerperguntou—eosdizeresnaestrada?—Sóestãoláparaafugentaramadores.—Jackaproximouofeixedeluzefezumsinalparaque
elaolhassedeperto.—Mastambémsãoverdadeiros,porque,emboraacercanãosejaeletrificada,háfioscondutoresescondidosnosrolosdearamefarpado4ueficamentreosdois ladosdacerca,aliporcima.Sealguémtentarpular,vaimorrerfrito.Vamospassarporbaixo.
GingerseguroualanternaenquantoDomtiravadeumdossacosdelonaomaçaricodeacetilenoeentregava-oa Jack,queajei-ava 0s oculosdeproteção,naverdade simplesóculosde esquiador^omovisorpintado.OruídoagudodomaçaricoeraaudívelapesarVento,eachamaazuladacriavaumhaloaoredordogrupo.
EstavamlongedaestradadeThunderHill,numpontodacercaondedificilmenteseriamvistos.Mas,refletidananeve,a luzdoacetilenobrilhavamaisdoquenormalmente, eDom temiaque,de repente,chegassemosguardas.Dequalquermodo,valiaapenatentar,pois,seJackestivessecertoeasegurançafosse eletrônica, nem as câmaras seriam de grande utilidade numa noite de nevasca, porque as lentesestariamcobertasdeneveegelo.Pelosim,pelonão,seporacasofossemapanhadose“convidados”aentrar,nemtudoestariaperdido...eelesseencontrariamdentrodeThunderHill.
NemGinger,nemDom,nemJackestavamarmados.Todooarsenaldequedispunhamforaentregueaogrupodojipe,queprecisavaescaparaocerco.OplanodeJackdependiadequeossetecompanheiroschegassem a Elko e, dali, tomassem rumos diferentes, para fazer sua parte do trabalho. Se fossemcapturados,oplanofracassaria.
Jackcontinuavacurvadojuntoàcerca,cortandooaramecomomaçarico,aluzazuladarefletianos
óculos.FoialuzquefezDommergulharnovamentenopassado.Oterceirojatopassaroncandosobreorestaurante,voandobaixo,muitobaixo.Domestánochão,
o rosto escondido.Masoaviãonãocai.Voabaixoaindaporalgunsmetros e, de repente, sobe emdireção ao céu, deixando junto ao chão o cheiro quente de combustível queimado e o calor dasturbinas incandescentes. Ainda ganha altura quando aparece o quarto jato, com luzes vermelhas ebrancas,roncandoporcimadotelhadodomotel,abrindoenormesferidasnaescuridãodanoite.Voapara o sul, depois altera o curso e ruma para o leste, por cima das barricadas que bloqueiam arodovia, seguindo a trilha do terceiro jato.Os primeiros dois jatos já estão de volta, voandomaisbaixodoquenaprimeiraincursão,masnãoseaproximamdomotel;separam-seameiocaminho,indocadaumparaumlado.Aterraaindaestremecesobacargadodeslocamentodeareaindaseouveoronco, às vezes mais perto, às vezes mais longe, como uma bomba sendo armada para explodir;inchando,inchandosempre,semnuncarebentar.Jackachaqueoutrosjatosdeaproximam...Mashatambémozumbido,agudo,estranho,impossíveldeserlocalizado,poisparecevirdetodososlados.Não é barulho de motor a jato. Dom levanta-se e olha em volta. Vê Ginger, Jorja e Mareie.Jackaproxima-se,correndo,saindodomotel.ErnieeFayesaemcorrendodoescritório...eosoutros!Todososoutros,Ned,Sandy...Ozumbidocresce...lembraofragordecataratas,porémémaisagudo,comoummilhãodepífarossopradosemuníssono;cortaoarcomoumaserraelétrica.Domvasculhaocéuaprocuradosjatos,cobreosouvidos,olhaparaoalto,apontaegrita:
*—Vejam...ALua!ALua\Todosacompanhamseuolhar,Domrecuaalgunspassos,tremendodehorror.Alguémgrita...—ALua!Domacaboudespertandocomosomdosprópriosgritos.Estava deitado na neve, derrubado pelo susto daquele instante de lembranças. Ginger sacudia-o
pelosombros,perguntando:—Vocêestábem?—Acho...quemelembreidealgumacoisa.Masnãoseidireitooqueé.Osjatos,nãosei...Passos adiante, Jack acabava de abrir caminho através da cerca. Desligou omaçarico, e a noite
desceuoutravez,comoumimensomantopardo.—Vamosemfrente—disseparaosoutros.—Daquiemdianteestamosnatocadaonça.—Dáparaandar?—GingerperguntouaDom.—Dá...—respondeuele,masoestômagodava-lhevoltaseocoraçãopareciacongelado.—De
repente,nãoseiporquê,fiqueicommedo.—Todosnósestamoscommedo...—Não,nãoestoucommedodeserapanhadoaqui.Não...Eoutracoisa.Umacoisadaqualestive
muitoperto,agora.Quasemelembrei...eestoutremendocomovaraverde.MeuDeus!BrendanmalacreditouquandoouviuocoronelFalkirkordenaraosoldadoqueabrissefogocontrao
jipequeseaproximavapelaestrada.Queloucura!Elenemsabiaquempodiaestarseaproximando.Osoldadotambémnãoacreditou,tantoquenemtocounaarma.MasFalkirkaproximou-sedele,aosberros:
—Obedeça,cabo!Esteéassuntodesegurançamáxima!Envolveproblemasdesegurançanacional.Seupaísemrisco!Queméquevocêpensaquepodeandarporaí,nessaestrada,comumanoiteassim?Boagentenãohádeser.Atireparamatar!
Entãoocaboobedeceu.Arajadademetralhadoracantounanoite,poruminstante,maisaltoqueovento.Osfaróisdojipeapagaram-se;desgovernado,oveículoganhouvelocidadeedesceuemdireçãoaogrupo.Ovidrodopára-brisaestilhaçou-sesobachuvadebalas.Ojipeaproximava-se,cadavezmaisrápido,atéquebateunumapedra,saltouparafrenteeparouapoucomaisdeummetrodeFalkirk.Aneve
continuavaacair.Cincominutosantes,quandoNed,chegandopelaoutrapistadaestrada,dobraraàdireitaparacair
diretonaarmadilhadeFalkirk,todosperceberamqueasarmasqueJacklhederadenadavaleriam.Nemametralhadora,nemaspistolas,nada...SabendoqueavidadetodosdependiadequechegassemaElko,teriam tentado enfrentá-los, se não estivessem cercados por um verdadeiro exército, armado até osdentes.Nãohaviaresistênciapossível.
Brendan,angustiado,pensavasenãocaberiaaeleeaseuspoderestelecinéticosatarefadelivrá-losdamorte. Talvez conseguisse arrancar asmetralhadoras dasmãos dos soldados.Mas, e se não dessecerto?Nãoesqueciaque,navéspera,norestaurante,ospodereshaviamescapadodequalquercontrole,esóporsortenãoaconteceraalgodemaisgrave.Sefalhasse,ossoldadosabririamfogocontraogrupo,parasedefender.Ouasprópriasmetralhadoras,comoossaleiros,voariamsozinhos,disparandoaesmoatéesgotar-seamunição.Esealguémfosseferido?Eseele,Brendan,fossemortoenãotivessetempodesalvarosoutros?Difícilganharumdomcomplicado,seminstruçõesdeuso...
Aoverojipedescendoaestradacomoumanimalferido,Bren-dan adivinhoudesgraça.Estava commedo... deFalkirk, doveículodesgovernado e de simesmo.
Talvez, para sentir-se melhor, pudesse socorrer as pessoas que viajavam no jipe. Tinha que tentar,custasseoquecustasse!Eraseudever,comopadreecomohomem.Tambémnãoentendiaomistérioquefazia suas mãos estancarem o sangue, mas a experiência parecia-lhe menos arriscada. Então,aproveitandoqueossoldadosestavamvoltadosparaojipemetralhado,afastou-sedogrupo,contornouoveículodeJackedisparouacorrerpelaestrada.Correu,escorregounaneve,caiu,levantou-seeseguiu.
Naoouviutirosasuascostas,apenasgritos.Obancoaoladodomotoristaeraomaispróximo.Umhomemcorpulento,comatestaencostadana
porta entreaberta, tateava à procura de alguma coisa onde pudesse apoiar-se para descer.Não estavamorto,mas tinha duas grandesmanchas de sangue no peito.Usava um pesado casaco do uniforme daMarinha.
No instante emqueBrendano tiroudo jipe eodeitounaneve, um soldado aproximou-se, comacoronhadametralhadoraerguidaparagolpeá-lonacabeça.
—Saiadaqui!—Brendangritou,erguendo-sedeumsalto,ospunhoscerrados.—Voucurarestehomem.Enãotentemeimpedir.Suma!
Falkirk chegou a tempo de segurar a coronha da metralhadora, evitando que o soldado atingisseBrendan:
—Isso,padre.Váemfrente.Querosertestemunhaoculardeseucrime.—Oquê?—Brendannãoentendeu.—Nada.Façaseu“servicinho”.Nem precisaria ordenar. Antes que acabasse de falar, Brendan ajoelhou-se ao lado do homem
desmaiado. Abriu-lhe o casaco, ergueu a malha e desabotoou a camisa xadrez. Encontroudois ferimentos: um no ombro esquerdo e o outro,maior, perto da cintura, à direita. Precisava tratarprimeirodoferimentonoabdome.
Mas... como?l Não conseguia lembrar-se do que fizera para curar Emmy ou Tolk. O que haviaacontecido?Nãosabia...nãoselembravadenada,alémdequesentiraimpotência,frustração,horror.Amortequerialevarumameninalinda,umhomemjustoetrabalhador...Não!Nãopodiaser...Erahorríveldemais, terríveldemais...Tinhaquelutar...Maseratãofraco,sozinhocontraomundo,contraamorte!Não!Amorteprecisavaservencida,pelaglóriadavida,pelaglóriadeDeus!
Sentiuaspalmasdasmãosaquecerem-se.Osanéisreapareceram.Semnecessidadedeolhar,pousouasmãossobreaferidadohomem.EpediuaDeus,ouquemlhe
tivessedadoopoder,queoajudasseasalvá-lo.Entãosentiuacorrentequeseestabeleciaentresuasmãoseohomemdeitadoasuafrente,aenergia
quelhefluíadasveiaseandavapelosdedosatéatingirapele.Aenergiaemseucorpotomavaaformadeumaespiral,quegirava, fazendosurgirumfioqueo ligavaaohomem.Aoredordosdois tecia-seummantoprotetorcontraadoreamorte.Dessavez,aocontráriodoqueaconteceracomEmmyeWintonTolk, Brendan sentia-se plenamente consciente da força que emanava de suas mãos. Sabia que,agora, estava remendando os tecidos dilacerados, recompondomúsculos, reconstruindo veias, criandosangue.
A medida que conseguia acompanhar o processo de cicatriza-ção desencadeado por suas mãos,descobriaqueeracapazdeoutrasmaravilhas.ComWintoneEmmy,oprocessoforamaislento.Porémohomem deitado a sua frente, com o abdome praticamente cicatrizado, abria os olhos, respirava bem,tentavalevantar-se.Diziaalgumacoisaquenãoentendiabem:
—Porfavor...opadre...estáferido.Váatendê-loantes.OpadreWycazikestánojipe...— Wycazik?!—Aproximouoouvidodos lábiosdohomem.Não... não era possível!Oqueo
padreWycazikestariafazendoemNevada,numjipe,nomeiodanoite?!—Vádepressa—ohomemrepetiu.Brendancorreu,empurrandosoldadosemetralhadoras.Aportadomotoristaestavaemperrada.De
umsalto,subiuàjanela,segurou-se comopôdee saltou sobreo capô,de frenteparaopára-brisa estilhaçado.Como jipe
tombado,eraimpossívelalcançarohomempresoaovolante.EntãoBrendanvoltouàportaeforçou-a.Impossível abri-la; parecia soldada à carroceria. Brendan fechou os olhos, tocou o trinco e,simplesmente, desejou que a porta se abrisse... e ela escancarou-se, com um ruído áspero demetalamassado.
Ocorpodeslizou lentamentepara fora e caiu emseusbraços.Brendandeitou-o sobre aneve.Deolhos abertos, o padre Wyca-zik já não olhava para esse mundo. Contemplava outra dimensão, nosprimeirospassosdavidaeterna.
T-NÃO...—BRENDANGEMEU.—NÃO...Tinhaum ferimentona cabeça, junto à têmpora direita, por onde a bala entrara para sair atrás da
orelha.Nãoeraumferimentomortal,masooutro...nagarganta...era.Umburaco,poucoabaixodopomo-de-adão,mostrandoacarnedilacerada;osangueescurocomeçavaacoagular.
Aindaassim,trêmulo,BrendanpousouasmãossobreopescoçodeStefan,sentiucresceremasondasdeenergiaquehaviamcuradoEmmy,opatrulheiroTolk,odesconhecidode instantesatrás.Milhõesemilhõesdelongosfiosdeluzecorcorrendo-lhenasveias,chegandoasuasmãos,outraveztecendoavida. Sentiu nos dedos o toque frio da pele de seu único grande amigo, seu guia, seumestre. E logopercebeuquenãopoderiasalvá-lo.Opoderdependiadaempatiacomavidaqueainda lutava.Semaparticipaçãoativadaoutrametade,Brendaneraapenasafiandeiradeumcordãoquenãotinhacomoserusado.Osfioscontinuavam,masoteardeixaradetecer.
OpadreWycazikestavamortoháalgunsminutos,provavelmentedesdequeojipesedesgovernara.Brendan descobria que podia curar feridas,mesmo asmais terríveis, apenas enquanto houvesse vida;jamais conseguiría fazer o queCristo fizera comLázaro.Pôs-se a chorar. Soltouumprimeiro soluço,tenso, desesperado, depois outro, um terceiro, até que se levantou e olhou para o céu. Murmuravapalavrasquesupunhateresquecido:
—“SantaMaria,mãedeDeus,rogaipornós,pecadores,agoraenahoradenossamorte...”Estava rezando outra vez, nem inconscientemente, nem por hábito. Rezava, como tantas vezes na
vida,comaconvicçãodoceeprofundadequeaMãedeDeusouviriaseudesesperosurdoe,aliando
seuspoderesaosdele,oajudariaafazerreviveropadreWycazik.Seemalgummomentoperderaafé,reconquistava-anaqueleinstante,intata,perfeita.Acreditavaepediadetodoocoração.
Ajoelhadonaneve,asmãospousadassobreaferidaaindaúmida,masjáfria,semparamentos,semostrajeseclesiásticos,Bren-danrezavaàVirgem,MariaImaculada,NossaSenhora,MãeeProtetoradosDesamparados, RosaMística, Estrela daManhã, Torre deMarfim, Saúde dos Doentes, Consolo dosAflitos.
—“Mãedemisericórdia,rogaipornós...”Demorou alguns instantes para compreender que Deus levara para sempre seu velho amigo.
Continuourezandobaixinho,masafastouasmãosdamonstruosaferidanopescoçodeStefan,eafagou-lheorostogelado.Umagigantescaondadedorosufocava,lágrimasardentesqueimavam-lheasfaces.
— Então,osenhordescobriuqueseuspoderesnãosãoilimitados—Falkirkcomentou,rindoasuascostas.—Ótimo!Muitobom!Masagoramexa-se!Junte-seaosoutros.
Brendan voltou-se, fitou-o nos terríveis olhos gelados que tanto o assustaram e, sem se mover,declarou:
— Meuamigomorreusemtempodeconfessar-se.Soupadre,comoele,evoucumpriros ritosreligiososqueelemereceequeeudesejooferecer-lhe.Sequisermematar,podemandarseussoldadosatirarememmimpelascostas.Casoresolvaesperar,eumereunireiaosoutrosquandoacabar.
Deu as costas a Falkirk e descobriu que, de repente, voltavam-lhe as frases, em latim, da oraçãopelosmortos.
Jack abriu uma trilha estreita na cerca de arame; como nenhum dos três era gordo, não tiveramdificuldadeemchegaraooutrolado,depoisdeempurrarossacosdelona.
Seguindorigorosamentesuasintruções,DomeGingerpararambemjuntoàcerca,enquantoJackexaminavaoterrenoaoredorcomaajudadeseubinóculodevisão
infravermelha. Procurava descobrir as câmaras de televisão ou os alarmes com células fo-toelétricas.Apesardoventoedanevequetornavamapesquisamuitomaisdifícildoqueseanoiteestivesselimpa,conseguiudescobrirduascâmarasquecobriamaáreaapartirdedoisdiferentespontos.Eraprovávelquetivessemaslentescobertasdeneve,mas,aindaassim,nãoconvinhaarriscar.Emcompensação,nãohaviasinaldecélulasfotoelétricas.
Jack tirou de um dos bolsos do abrigo um aparelho nãomaior que uma carteira de dinheiro: umvoltímetro extremamente sofisticado, capaz de detectar a passagem de corrente elétrica num fio semprecisartocarnele.Virou-sedecostasparaacercaeapontouovoltímetroparaoterreno;ajoelhou-se,esticouobraçoeavançoualgunsmetros,devagar.Oaparelhoerasensívelaqualquersinaldearmadilhafotoelétricaoutermoelétrica,aindaqueenterradasameiometrodeprofundidade,masnãoregistrariaumemissor encapsulado. De qualquer modo, Jack tentava localizar uma fonte que dificilmente estariaencapsulada e não seria afetada pelas camadas de neve, antiga ou mais recente. Precisou avançarajoelhado apenas três metros, e logo o detector soou, fazendo acender uma pequena lâmpada cor deâmbar.JackparouechamouGin-gereDom.
— Fiquempertodemim—disse.—Oterrenoestáminado.Alarmessensíveisapressãoestãoenterrados à profundidade de cinco ou seis centímetros. São acionados pelo peso de quem pisar noterreno,apartirdetrêsmetrosdecerca,emtodaavolta.Eumateiadefiosenvoltaemplásticofino,debaixavoltagem.Oalarmeéacionadosemprequequalquercriaturacommaisdevinteouvinteecincoquilos pisa num dos “ninhos” e rompe o contato. O peso da neve não o aciona, porque a neve estáuniformementedistribuídaportodaarede.Paraacionaroalarme,opesodevelocalizar-senumapequenaárea.
—Atéeupesomaisquevinteecincoquilos—comentouGin-ger,balançandoacabeça.—Arede
defiosémuitoextensa?—Cobreumafaixadetrêsmetros,nomínimo.—Jackrespondeu.—Aidéiaéimpedirqueum
espertinhocomoeudescubraasminaseresolvasaltarsobreelasatéooutrolado.—Nãoseioquevocêestápensando,masgarantoqueeunãopossofazê-losvoaremparalá—
disseDom,tentandosorrir.—Nãosei...—Jackvirou-separaele.—Talvez,setivéssemostempo,valesseapenatestarseus
poderes.Sevocêfazcadeirasvoaremparaoteto,talvezpossanosteletransportarporcimadasminas.Masnãohátempoparatestes...Vamosterquevoaraminhamoda.
—Oquequerdizer...“aminhamoda”?Como?Achaque...—Não,doutora.—Jackabaixou-seecomeçouatirarcoisasdasacola.—Nãoachonada...sei
quevamosvoardentrodedezminutos.—Levantou-seedeualgunspassosjuntoàcerca,aindadistantedaáreaminada.—Vamosencontrarumaárvoredooutrolado,comumgalhorazoavelmentegrossoqueseestendesobreoterreno.Sepossível,umaárvorequeestejavinteoutrintametrosdaqui.
—Paraquê?—Domfranziuassobrancelhas.—Jávaiver.—Esenãoencontrarmosumaárvore?—Gingerperguntou.—Tratedepensarpositivamente.Quandoeudisserqueprecisamosdeumaárvore,digalogoque
vamosencontrarumaflorestainteira.Oufiquedebicofechado.Aárvoreperfeitaestavatrintametrosàfrente,nacolinaquedesciaemdireçãoaovale:umpinheiro
altoesólido,comosgalhosbemseparados,exatamentecomoJackqueria,majestosoecobertodeneve.Comobinóculo,Jackvasculhoucadacentímetrodepinheiro,atéencontrarumgalhoqueservisseparaoqueplanejava:grossoeresistente,passandoapoucosmetrosdealturadacerca,depoisdaáreaminada.Perfeitoparaatuarcomopilardeumapontedecorda.Jackdeixoudeladoobinóculo;apanhouoganchoque tirara do saco de lona e levava preso ao cinto, e o grosso fio de náilon, com um centímetro dediâmetro,queenrolaranobraço—itensque,entreoutros,FayeeGingerhaviam
comprado em Elko pela manhã. Prendeu o fio no gancho, com um nó firme, e testou o arranjo.Perfeito.Usadoporalpinistasprofissionais,ofiodenáiloneracapazdesuportaropesodostrêsjuntos.Voltouatestaronó.Fixouumadaspontasdofiosobabota,paraevitarquelheescapasse,epreparouumlaçocomaextremidadeondeataraogancho.
—Afastem-seumpouco—pediu.Movendoobraçodevagar,acimadacabeça,fezgirarolaçocomoganchoemmovimentoscadavez
maisamplosemaisrápidosatésoltá-lonadireçãodogalhoqueescolhera.Ofiovoousobreaáreadasminascomumzumbidoquecortavaaneveeenganchou-senoalvocomprecisão,Jackenrolouapontaque permanecia presa sob a bota num dos montantes da cerca de arame, depois de examiná-lodetidamenteetercertezadequenãotinhasensoresoucâmaras.Deuduasvoltasemtornodomontantee,usandotodoopesodocorpo,puxouofiodenáilonatédeixa-lobemesticadoereto.PediuaGingereDomqueoajudassemapuxare,entãosim,amarrou-oàvoltadomontante.
Estavaprontaumarazoávelpontedecorda,queosfaria“voar”sobreaáreadasminas.Jacktinhaqueseroprimeiroapassar,paraexaminaroterrenoeplanejaraetapaseguinte.Deumsalto,ergueuosbraços,pendurou-seebalançou-separaafrenteeparatrás,atéganharimpulsoparaalcançarofiocomos pés e cruzar os calcanhares sobre ele.De branco, no abrigo de frio,mãos en-luvadas, parecia umgrandeursopolarbrincandonaneve,orostoviradoparaocéu,ascostasparalelasaochão.Andandocadencia-damente,mãos e pés, como umaminhoca gigante, fez uma primeira demonstração, foi até ametadedocaminhoevoltou.
—Eisso—disse.—Euvounafrentecomasduassacolasmaiores.Domvaiporúltimo,evocê,
Ginger,éasegunda.Cadaumlevaumadassacolasmenores,presaàscostas,comomochila.—Vaiserfácil.—Gingerprecisoudeajudaparaalcançarofio,mas,depoisdependuradapelas
mãos,logoconseguiuprender-sepelostornozeloseriu.—Claroquevamosconseguir!Sãosónoveoudezmetros!
—Vocêestáemexcelenteforma,doutora.—Jackergueuosolhosparaela.—Quandochegaraostrêsmetrosvaisentirqueseusbraçosestãosendoarrancadosdocorpo.Aodez,serácapazdejurarquejáforamarrancados.
AlgumacoisanaatitudedeBrendanemrelaçãoàmortedovelhoamigochocouocoronelLelandFalkirk. Havia tal indignação em seus olhos, tanta dor em sua voz calma e contida que era quaseimpossívelduvidardequeeleaindafossehumano.
O medo do contágio devorava-o. Leland tinha visto muitas coisas estranhas naquela nave, e oscientistasdescobriramoutrasmais.Aspreocupaçõeserammaisdoquejustificadas...emboranãoofossea loucura. De qualquer modo, era difícil acreditar que Brendan estivesse fingindo. Logo ele, o dospoderesmaisesquisitos,umdosprincipaissuspeitosdeestarpossuído!Comoentenderopoderdecurar,senãocomoapossessãodeumcorpohumanoporumamentediabólica?
Confuso e aturdido, o coronel andou alguns passos, parou ao lado do padre ajoelhado junto aocadáverdoamigo,ouviuapreceemlatim,balançouacabeçaetentouorganizarospensamentos.ViuasoutrasseistestemunhasaoladodojipedeJackTwist.Viuseussoldados,aparvalhados,semsaberoquefazer,divididosentreodeverdeobediênciaeosentimentodesolidariedadeparacomopadre.Viuodesconhecidoquechegaracomovelhopárocoandandodeumladoparaooutro,angustiado,masvivo,inteiro.Umautênticomilagre,dignodeserfestejado.Porquetemerumprodígiocomoaquele?!
LelandsabiaoqueestavaescondidoemThunderHill.Eofatodeconhecerosegredoobrigava-oaverosfatoscomolhosdiferentes.Acuraeraumaarmadilha,umafarsaparaconfundi-lo,paralevá-loapensar como seria vantajoso colaborar com o inimigo, para induzi-lo à não-resistência e à rendiçãoincondicional.Ofereciamaomundoofimdador,avitóriasobreamorteemquasenoventaporcentodoscasosdeacidentes e ferimentosgraves.Mas... comoentender avida semdor?Comodeixarohomemsonharcomofim
dosofrimento?Todosossonhosacabavamemruína,esóosofrimentoeinfinito,inexorável.Enãohádormaiordoqueverruirumsonho.Melhornãoacalentarilusões,nãoalimentaresperanças.Ohomemnasce e morre com dor... Por isso tem que viver também com ela, porque a dor é a essência dahumanidade.Asanidadeeasobrevivênciadependemdeaprenderaconvivercomosofrimento.Dequeadiantaresistiràfatalidadeousonharcomoimpossível?Eprecisovenceromedo,vencerador...efugirdos falsosMessiasqueaparecem,aqui e ali,prometendoummundomelhor, transcendente,mais feliz.Desconfiar,desconfiarmuito.
Maiscalmo,Lelandvoltavaaserohomemdesempre.Nograndecaminhãode transportede tropasdoExército, Jorjapensavaeobservava.Ocaminhão
tinhadoislongosbancosdemetal,umdiantedooutro,eumterceiro,maiscurto,encostadoàdivisãodacabinedomotorista.Delongeemlonge,penduradasnoteto,haviaalçasdecouroondeospassageirospodiamsegurar-se.Nobancomenor, jaziaocorpodopadreWycazik,amarradocomcordaspresasnacarroceriaenosganchosdoteto.Nosoutrosdoisbancos,sentavam-seJorja,Mareie,Brendan,Ernie,Fa-ye,Sandy,Nedeoúnicorecém-chegadosobrevivente,ParkerFaine.Emcircunstânciasnormais,aportadocaminhãofechava-sepordentro,comumatrancadeferro,parapermitirque,emcasodeacidente,ossoldados pudessem sair. Mas o coronel Fal-kirk mandara trancar a porta por fora, com cadeado, eguardaraachave.Jorjasentia-secomonumaceladeprisão...e,naescuridão,começavaadesesperar-se.
TodosimaginaramqueErniefossedesmaiarouenlouquecer,obrigadoaviajarànoite,dentrodeuma
cabineescura.Maselepareciabem,demãosdadascomFaye,arespiraçãoquasenormal.Apenasumavezdeumostrasdeperderocontrole,masacriselimitou-sealigeirafaltadearrapidamentesuperada.
—Estou começando ame lembrar dos jatos dequeDom falou—disse ele, poucodepois queocaminhãocomeçouamovimentar-se.—Eramquatro,pelomenos,voandomuitobaixo...Então,acon-
teceu alguma coisa que não consigo lembrar... Depois, corri para o estacionamento, entrei nacamioneteedispareiparaarodovia,rumoaolugarondeestivemos...olugartãoespecialparaSandyeparamim...Étudo,porenquanto.Masjápercebique,quantomaislembro,menosmedodoescurosinto...
Lelandnãodeixaraguardasnocaminhão,talvezporqueachassearriscadodemaisdeixarumoudoishomensfortementearmadosnacompanhiadaqueles...monstros!Depoisdefazê-losentrarnocaminhão,estiveraapontodeordenaraexecuçãode todos, e Jorja sentiraoestômagocontrair-sedeansiedade.Maspareceuacalmar-sederepenteemandouoveículoandar.Jorja,porém,estavacertadequeeleosmatarianoinstanteemquechegassemaofimdaviagem,queninguémimaginavaondeacabaria.
Aos berros, Falkirk perguntara porDom,Ginger e Jack.Ninguém respondeu.Como louco, ele seaproximoudeMareie, segurou-apeloscabelosedisseque, senão falassem, torturaria ameninaaté amorte.Erniesaltoudobanco,vociferou,dissequeFalkirkenvergonhavasuafardae,cabisbaixo,acaboudizendo que Jack, Dom e Ginger saíram doMotel Tranqüilidade com destino a Battle Mountain, naesperançadechegaraReno.
— Ficamos com medo de que seus soldados já estivessem bloqueando as estradas — Erniecontinuou,semprecabisbaixo—epreferimosnãoarriscartudonumajogadasó...
Nãoeraverdade.Poruminstante,JorjapensouemsaltarsobreopescoçodeErnieegritar-lhequenão arriscasse a vida deMareie commentiras idiotas... mas percebeu que Falkirk acreditava. ErnieinventoutantosdetalhesqueLelandacaboumandandoossoldadossaíremparainvestigar.
Nocaminhão,aossolavancos,Jorjaagarrava-seaumadasalçasdecouroeseguravaMareiejuntoaocorpo.Aospoucos, ameninapareciadespertarda letargiadosúltimosdias, dava sinaisdequereratençãoecarinho,abraçava-secomforçaàmãe.Aindaestavalongedaalegriaedavitalidadedeantes,mascomeçavaarestauraroslaçoscomarealidade,escapandodoabismonegroemquemergulhara.
Jorjaseriacapazdejurarquenada,ouninguém,conseguiriafazê-laparardepensarnosproblemasdeMareie,atéqueParkercomeçouaexplicarcomoeporqueeleeopadreWycazikhaviamchegadoatéali.Falou-lhesdeCalvinSharkle, de comoBren-dan transmitira ospoderesde cura e telecineseparaWintonTolkeEmmyHalbourg...
— ...eagora,talvez,tambémparamim...—concluiubaixinho,comtaldeslumbramentonavoz,queJorjaseesqueceudafilha,domundo,detudo.
Depois,Parkerfalou-lhesdoGETRAU.Disseque,quasecomcerteza,umanaveespacialpousaranoterrenoemfrenteaoMotelTranquilidade.Umanave,oualgumaoutracoisa,desceradocéu...eomundonuncamaisvoltariaaseromesmo.
—Umanavedocéu...—Fayemurmurou,pensativa,maslogogritou:—Vocêestálouco!Nãoépossível!
QuandoFayeseacalmou,Sandybateupalmaseriualto,feliz.—Estoumelembrando—disse,aindarindo.—Osjatospassaram,oúltimovoavamuitobaixo...
Nós tínhamos corrido para o pátio, e o chão continuava a tremer, como se fosse um terremoto.O arvibrava...—Suavoztambémtremia,nummistodedeslumbramentoeterror,aomesmotempoeufóricaeassustada.—Derepente,Domolhouparacima,paraoladodorestaurante,egritou...“ALua,aLua!”TodosnosviramosevimosaLua,maisbrilhantedoquenunca,brancadedoerosolhos.Pareciaqueestavacaindosobrenós.Oh,Deus...Vocêsnãoselembram?!NãoselembramdoquefoiolharparaocéueveraLuaseaproximando?!
—Eumelembro...—Erniemurmurou,reverente.—Eclaroquemelembro...—Eeutambém...—AvozdeBrendan.Jorjateveumflashdelembrança:umaLuaenorme,muitobrilhante,aproximando-sedotelhadodo
motel.—Alguémgritou—Sandyrecomeçou.—Algunscorreram.ATerratremiacadavezmais,oronco
eracadavezmaisforte.Sentíamosavibraçãonosossos.Umruídocomoodeumacha-leira fervendo,misturado como barulho de centenas demetralhadoras, e o zumbido de umvento
fortíssimo...Masnãoestavaventando.Sempreumzumbidoeumtrovão,aproximando-se...Derepente,aLuaficouaindamaisbrilhante,oestacionamentoparecia iluminadoporummilhãode lâmpadas.E,derepente,aLuamudoudecor!Ficouvermelha,cordesangue,vermelha...FoiquandopercebemosquenãoeraaLua...eraoutracoisa...
Jorjaviu,comonumfilme,aLuamudandodecor,dobrancomaisbrilhanteparaumrubrodensoeluminoso.Foiaprimeirabarreiraqueruiu.Asdemaisforamcaindo,umaapósoutra.InacreditávelquehouvessevistoasluasvermelhasdeMareieenãoselembrassedenada.Aslembranças,agora,fluíamcomoumrio.Jorjatremiademedodoqueaindaestavaporvir,massentiaocoraçãobateracelerado,exultante.
—Entãoelasurgiuportrásdorestaurante—Sandyprosseguiu,comonumtranse.—Voandomuitobaixo, como os jatos. Mas lenta, muito lenta, como um zepelim que vi uma vez na televisão. Eraimpossívelentender...Qualquerumviaqueerapesada,milvezesmaispesadaqueumzepelim.Maselavinha,belaelenta...Adivinhamosqueera...quetinhaqueser...quenãoeradestemundo.
Jorja fechouosolhos e apertouMareie contraopeito, lembrando-sede comoa abraçaranaquelanoite, os olhos erguidosparao céu.Uma luzvermelha...mas serena, inacreditavelmentebela.O chãotremia,Sandyestavacerta:quandoviramqueaLuanãoseaproximavadaTerra,adivinharamaverdade.Anavenãoeracomoosdiscos-voadoresdocinemaedatelevisão...nãotinhanadadeespantoso...alémdofatodeexistir.Nadadeplacascoloridas,nadadecalotasdeluzoufeixesdevapor,nadadearmascomonos filmesde ficçãocientífica.A luzvermelhaenvolvia-a toda,comoumcampode forçaqueafaziaflutuar.Nãofosseisso,anavepareceríasimples,antiquada,apenasumgrandecilindrocomquinzeou vintemetros de comprimento por quatro ou cinco de diâmetro, as bordas arredondadas comodoisbatonsusadosunidospelasbases.Espantosamentesimples,gastapelo
tempo e pelas dificuldades da viagem. Jorja via-a descer, como no verão retrasado, por cima dorestaurante, na direção da rodovia; os jatos zuniam ao redor,metros acima, voando de um lado paraoutro.Comonaquelanoitede6dejulho,sentiaocoraçãodisparar,nolimiardeumaportaquerevelariaosentidodavida...comosdedosnachave.
— Eladesceudooutroladodarodovia—continuouSandy,respirandofundo.—Bemnolocalquevisitamos...olugarespecialparaErnieeparamim.Osjatosvoavamcomomoscastontas.Tínhamosqueiratélá!Oh,Deus!Nadaouninguém,destemundooudeoutro,nosimpediríadeiratélá!Corremosparaoestacionamentoefomos...
— EueFayefomosnocaminhãodomotel—Erniedisse,avozsolta,a respiraçãonormal.—DomeGingerestavamconosco...etambémojogadordepôquer,Lomack,deReno.Porissoeleescreveunossosnomesnospôsteres...ComoDomcontou.Alembrançadacorridadecaminhãoatéanavedeveter-lhederrubadoobloqueio.
—Jorja,omarido,Mareieealgunsoutroshóspedesforamconosco,natraseiradacamionete—Sandycontou.—Brendan,Jackemaisalgunshóspedesforamdecarro.Pessoasquenemseconheciamchamavam-seumasàsoutras,oferecendocarona...Equejánãoéramosestranhos,euacho.Paramosnoacostamento.CarrosquevinhamdeElkotambémpararam.Gentecorriapelaestrada.Estacionamosnuma
curva, subimos na grade de proteção e olhamos. A nave não brilhava como antes, estava seapagando.Algunsarbustosfumegavam,ocapimestavatodoqueimado,masaténosaproximarmosofogoháhaviadesaparecido.Eraestranho...ninguémfalava,nemgritava,nemolhavaparaoslados.Estávamosemsilêncio,comoqueesperando...àbeiradeumprecipício,querendosaltar,esabendoquesaltarnãonosfariacair.Prontosparavoar,euacho...Nãosei...Vocêssabemoquequerodizer!
Jorjasabia:asensaçãoquaseinsuportáveldedeslumbramentoeexaltação.Comoseahumanidade,presahaviaséculosnuma
jaula escura, de repente visse abrirem-se as portas da eternidade, descobrindo que, no futuro, asnoitesnãoseriamtãoescurasnemtãoapavorantes.
— Fiquei parada — Sandy voltou a falar —, vendo aquela nave de luz, tão linda, tão...impossível... na planície. E entendi que as desgraças de minha infância... a dor, o desespero, avergonha...nãotinhammaisimportância.Meupaijánãomedavamedo.—Avozvacilou,emocionada.— Não vejo meu pai desde meus catorze anos... Mas tinha pesadelos e vivia com medo de que,derepente,eleaparecesse...emearrastasseparaacama...comoantes.Seiquepareceasneira,masàsvezesnemconseguiadormircommedodesonharcomele...Narodovia,olhandoparaana-‘ve,naquelesilêncio,osjatosvoandoalto,comopássarosdistantes...descobrique,semeupaiaparecesseumdia,eunãoiatremerporquejásabiacomoeleé:umpobrehomemdoente,umgrãodeareianumapraiaenorme.
Alibertação,Jorjapensou,osolhosmarejados.Alibertaçãodoshorroresdopassado,dosmedos,dodesespero.Ainda que os tripulantes da nave não trouxessem resposta para nenhuma das questões queatormentamahumanidade,suasimplespresença,serenaebela,erajáarespostaquetodosesperavam.
Chorandodealegria,avozdeSandyvibravanaescuridão:— A imagemdanaveme fezdescobrirqueeu tambémeraalguém,apesar de suja, coberta de
pecadosevergonha.Entendiquetodossomospoucacoisa,queninguémémuitomaisimportantequeosoutros...e,aindaassim,somosumaraçaespecial,umaraçaque,algumdia,poderávoarpeloespaçoechegar até o lugar de onde aquela nave partiu. Grãos de areia, sim, todos nós, mas com um grandedestino... Será que vocês entendem o que quero dizer?—Calou-se por ummomento, sufocada pelossoluços.—Foiissoquepensei,queavidaéfeitadeesperançanummundomelhor—concluiubaixinho,avozfraca.—Eentãocomeceiachorarerir,comolouca...
—Tambémmelembrodetudo—declarouNed,voltando-separaamulher:—Estávamosparadosnacurvadaestrada.Você
meabraçou...edissequemeamava!Foiaprimeiravez,desdequenosconhecemos!Eusabiaquevocêmeamava...masvocênuncadisseantes!Foibemali,diantedeumanavequeacabavadedescerdocéu!Esabeoqueémaisestranho?Comvocêabraçadaamim,dizendoquemeamava...eujánemligavapara a nave! A única coisa importante que aconteceu naquela noite foi você... — Respirou fundo,procurandocontrolaraemoção—dizendoquemeamavadepoisdetantosanos.
Naescuridão,Nedabraçavaamulher,eamboschoravamjuntos.Apósalgunsmomentos,elevoltouafalaralto,tenso:
—Eosdesgraçadosmeroubaramessemomento!Omelhormomentodeminhavida!Você,dizendoquemeama...Ah!Masconseguirecuperá-lo...Aslembrançasagoraestãocomigo.Ninguém,nuncamais,vaitirá-lasdemim.
— E euque aindanão consigome lembrar de nada!—Faye exclamou, furiosa.—Tenhoquelembrar!Soupartedisso,comovocês!
Ninguémretrucou.Nosilênciodanoite,ocaminhãoavançava.Jorja,outravez,fechouoolhosedeixouopensamentovoar.Asimplesdescobertadequehaviauma
inteligência superior obrigava a ver de uma perspectiva nova a luta da humanidade: a violência da
dominação,aescravidãodosmaispobresoumaisfracos,asupostasuperioridadededeterminadaraça,osbanhosdesangueparaimporcertasidéias...tudopareciainfinitamentepequenoeinútil.Asreligiõesquepregavama igualdadede todosperanteDeus sobre-viveriam,masasquepregavamaurgênciadetodosseprostraremdiantedefalsosídolos,essasestavamcondenadas.Sempoderexplicar,massentindoemcadafibradocorpo,Jorjaintuíaqueavisitadosextraterrestresfariaahumanidadeseunir,comoumagrande família. Os humildes seriam respeitados, os doentes tratados, os infelizes consolados, comoirmãos.Semrei,semgoverno.
Umanavedesceradocéu.Ecomeçavaaascensãodahumanidade.—ALua...—Mareiemurmuroubaixinho,orostoescondidonopeitodamãe.Eraomomentodeconsolá-la,abraçá-laedizer-lhequeascoisascomeçavamamelhorar,quelogo
ela também se lembraria de tudo e estaria livre dos pesadelos e dos farrapos de lembranças que aatormentavam.Maseracedoparacriarfalsasesperanças:enquantoestivessemàmercêdeFalkirk,nãopodiampreveroamanhã.
—Lembro-medemaisalgumacoisa—disseBrendan.—Seiquedescioacostamentodarodovia,caminhandoparaanave.Elaaindabrilhavaumpouco,comoâmbar.Haviamaisgentecomigo...Faye,Ernie,GingereDom.MassóGingereDomseaproximaramdanave,comigo.Quandochegamosbemperto...vimosumaporta...emarco...aberta...
Jorjalembravaquetambémquisir,mastevemedodelevarMareieenãopodiadeixá-laparatrás.Sentiu vontade de gritar que tomassem cuidado, e ao mesmo tempo, que não se acovardassem, nãotivessemmedo,seguissemadiante.Nãodeuumpasso,vendo-osaproximarem-sedoportaldourado.
—Paramosdiantedaporta—Brendancontinuou—,esperandoquealguémsaísse,masninguémapareceu.A luz,amaravilhosa luzdouradaqueeuviaemsonhos, láestava,noschamando.Tínhamosmuitomedo.Então ouvimos osmotores dos helicópteros que se aproximavam, como aves agourentas.Sentimosquehaviapoucotempo,queoExércitoinvadiriaanavetãologooshelicópterospousassem.Aluznoschamava...
—Vocêsentraramnanave!—Jorjalembrou-se.—Entramos.Nóstrês.Ummomentoimpossível,inacreditável.Omomentoquemarcavaoutrorecomeço:antesedepoisda
história da humanidade. Começava a ruir o último bloqueio que ainda ocultava a verdade. Fez-secompleto silêncio no caminhão que seguia adiante, para um destino que ninguém conseguia sequerimaginar.
Oitopessoas,cruzandoanoitegelada,sentadassempodervernemmesmoorostodocompanheiroaoladoe,noentanto,maispróximasumasdasoutrasdoquequalquerserhumano,emqualquertempo.
—Eoqueaconteceu,padre?Oqueaconteceuquandovocêstrêsentraramnanave?—Parkerquissaber.
Comoauxíliodapontedecorda,valendo-seváriasvezesdosinstrumentosqueJacktiravadeseusacodesurpresas,os trêschegaram,porfim,àentradaprincipaldeThunderHill.Gingerarregalouosolhos diante das descomunais portas de aço. O vento, soprando sobre o gelo, desenhara estranhosarabescos na superfície polida do metal, como ideogramas de significado indecifrável. A frente dasportas,começavaumaespéciedecaminhorecobertodeasfalto,comcertezaequipadocomaquecedores,poisnãoseviaomenorvestígiodeneve,euma fumaçaclara,purovapor, subiadochão.Ocaminhodesciaemdireçãoaoeste,cruzandoaplanícierumoàfloresta,ondeseviamasluzesdoportãojuntoàguarita.
Se aparecesse alguém para entrar ou sair nos próximos minutos, ou se houvesse uma troca deguardas, todo o trabalho de chegar até ali estaria perdido. Os três, é claro, poderiam esconder-se,
acobertadospelanoite.Nãohavia sinaisdepegadasnaáreapróximaàentrada,oquesignificavaquealguémestiveraalinasúltimashoras.Masasmarcasdeseuspés,brilhandonanevesolta,falavammaisquequinzealarmesdisparandoaomesmotempo.Eraprecisoentrarlogo,semperdadetempo,oujamaisentrariam.
Apequenaportadeacessodopessoalpareciatãoimpenetrávelcomoaoutra.Jacknempiscou.Tiroudasacolamaiorocomputadorportátilqueoajudaratantasvezes,pediuaGingerquenãotirasseosolhosdaentradaprincipal,semdeixardeprestaratençãoaqualquerluzouruídosuspeitoqueaparecessedosladosdoplatô,entregouumalanternaaDom,ecomeçouatrabalhar.
Ajoelhadananeve,olhoseouvidosatentosaomenorruído,Gingersentia-seàmercêdodestino,aquasequatromil quilômetrosde seu apartamento emBoston.Oventobatia-lhe forteno rosto.Anevegrudava-seasuassobrancelhase,aoderreter,pingava-lhenosolhos.Quesituaçãoestúpida!Meshugge.Quedireitotinhaalguémdedestroçaravidadetantaspessoas?!Quemomal-
ditoKtlkirkpensavaqueera?Quemseriaoloucoquelhedavaordens?Mausamericanos.Momzers,todosmomzers.Lembrou-sedorostodeFalkirk,queviranojornal:treifniak,comoadivinharadesdeoprimeiro instante, um homem em que não se podia confiar, nem por ummomento, nunca. Sempre queGingerrecheavaospensamentosdetantaspalavrasemídiche,dasduasuma:tinhasériosproblemasnavida...ouestavamortademedo.
Menos de quatro minutos depois que Jack acionara seu aparelho, ouviu-se o ruído da portadeslizandoparadentrodapedra.DomsaltoudesustoeJackcaiusentadonaneve.Quandoseaproximouparaajudá-lo,Gingerviuqueaportaseabriratãorepen-*tinamenteecomtantaforçaqueelenãotiveratempodedesligarosfiosdominiterminal,queassimforamarrancadosepuxadosparadentrodonichoemqueaportaseencaixava.
Dequalquermodo,aentradaestavafranqueada,enãosoounenhumalarme.Asuafrente,estendia-seo túnel de concreto, com três metros e pouco de comprimento por dois de diâmetro, iluminado porlâmpadasfluorescentes.Dobravaàesquerdaeacabavaemoutraportademetal.
—Esperemaqui—Jackcorreuparadentrodotúneleolhouemvolta.Gingerplantou-seaoladodeDom,certadeque,emboraoplanofossedeixar-seprenderemThunderHill,nãoresis-tiriaàtentaçãode disparar a correr pela neve, ao primeiro sinal de que algo não ia bem.Talvez adivinhando-lhe ospensamentos,Domenlaçou-apelosombroseestreitou-ajuntoasi,nãoapenasparaimpedi-ladefugir,comotambémparalembrá-ladequenãoestavasozinha.
Poucodepois,certodequenenhumsinaldisparariaàentradadotúnel,Jackvoltouparajuntar-seaosdois.
—Háduascâmarasdecircuitofechadonotetodotúnel.—Vocêfoivisto?—Domperguntou.— Achoquenão,porqueascâmarasnãosemoveramparameacompanhar.Achoqueépreciso
fecharaentradaprincipalparaabrirasegundaporta.Noinstanteemqueaprimeiraportaéfechada,ascâmarascomeçamafuncionar.Hápontosdegásjunto
àsluminárias.Estãoescondidos,maseuosvi.Osistemacompletofuncionamaisoumenosassim...você fecha a porta externa e aciona as câmaras antes de abrir a segunda porta.Caso as câmaras nãogostem de sua cara, é acionado o gás. Seja para fazer você dormir, seja paramatá-lo... dependendoapenasdogásqueusem.
—Viemosatéaquiparaserpresos,nãoparamorrernumacâmaradegás—protestouDom.—Bastadeixarmosabertaaportaexternaatéabrirmosasegunda...—Jacksorriu.—Masvocêacaboudedizerqueissoéimpossível!—Talvezsejafacílimo...
Opróximopassofoiesconderassacolasnaneve;Jackpareciatercertezadequenãoprecisariamdaqueleequipamentoeseriaperdadeenergiacarregá-lo.Depois,instruídaporele,Gingerencarregou-sede cortar os fios das câmaras comumcanivete de escoteiro.Em seguida, Jack correupara a segundaporta:
—Nãotemsegredoexposto.Portanto,nãofazdiferençaqueocomputadorestejaforadecombate.—Seráquenãoháescuta?—Gingersussurrou.—Devehaver.Massóéacionadaquandoaportaexternasefecha.Aíocomputador,ascâmarase
osmicrofonescomeçamafuncionar.Casohajaumguardadoladodelá,nãonosouviriaatravésdessaportanemsegritássemos.—Jackexplicouemvozbaixa,juntoaoouvidodeGinger.Apontouopaineldevidroàdireitadasegundaporta.—Eiso“abre-te,Sésamo”.OExércitocomeçavaausaressetipodefechaduraeletrônicaháoitoanos,quandodeixeio serviço.Bastapressionarapalmadamãocontraovidroe“mostrar”suasimpressõesdigitaisaocomputador.Eleasanalisaecomparacomasimpressõesdopessoalautorizadoaentrar.Entãoasportasseabrem.
—Eseasimpressõesnãoconferem?—Domperguntou,tambémemvozbaixa.—Ogáséliberado.—Masentão,comovamosentrar?—Gingerarregalouosolhos.—Domvaiabriraportaenosconvidarparaafesta.Boquiaberto,Domvirou-separaele.—Vocêestádoido?!Comoéquevoufazerminhasimpressõesdigitaisconferiremcom...—Esqueçaasimpressões.UseasmãoscomousouemReno...paraarrancarospôsteresdaparede
doinfelizLomack.Oucomousouparafazerdesceremascadeirasvoadoras, lánorestaurante.Vire-separaaportaelheordenequedesapareçadafrente.Devesersimples.
—Nãoposso...Nãoseicomo...—Finjaqueaportaestácobertadesaleirosevidrosdemolho.Façadecontaquenãoéporta,mas
cadeira.Seilá!Inventeumjeito...esejarápido,porfavor.— Nãodá.Vocêmesmoviu,norestaurante,quenãoseicon-.trolarospoderes.Alguémpoderia
ter-seferido.Ese,semperceber,eudispararogás?Jackbaixouacabeçaecalou-seporummomento.Quandotornouafalar,avozsoouduraefriacomo
aço:—Voupedir-lhemaisumavez...Porfavor,DomCorvaisis,abraessaporta.—Não.Éminhaúltimapalavra.Nãoinsista.Jackvirou-seerumouparaaportaprincipal.Certadequeeleestavasaindo,Gingeraindadeudois
passosparatentarconvencê-loavoltar,masviu-opararantesdasaída,amãosobreumbotãonaparede.—Umterminaltermossensível—disseparaDom.—Sevocênãotentarabriressaporta,encosto
amãoaqui,aportaexternasefecha,ascâmarasnosencontram,nãonosidentificamcomo“qualificados”,eogáséliberado.Vêmosguardase...
—Achoqueviemosexatamenteparaserapanhados—Domcontinuavaanegarcomacabeça.—Viemosparadescobriroqueestáacontecendoaqui...edepoisserpresos.—Temosquenoscontentarsóemserpresos.—Domcontinuavaintransigente.Abertaparaanoitegelada,aporta,externafaziaescaparocalordotúnel,eovaporbrancoaumentavaaimpressãodequeosdoishomenstravavamumabatalhade
vidaemorte.Entreosdois,Gingeradivinhavaquemseriaovencedor.GostavadeDomeadmirava-oapontode
nãopensarduasvezesantesdelheconfiaraprópriavida.Naverdade,jálheentregaraavida.MasnãohaviadúvidadequeJackoderrotaria,porqueestavahabituadoavencer,eDom,comoeleprópriodizia,
acabavadesairdeumatocadecoelho,ondesempreseescondera.— Senosvirem,morreremos.Duvidoquepercamtempoemnosfazerdormir.Nadadisso!Vão
usarcianuretooualgumoutrogásvenenosoque,semdúvida,atravessaránossasroupas,porquenãosãoidiotasapontodepensarquenãotrouxemosmáscaras—Jackfalavacalmamente,comsegurança,amãoacentímetrosdobotãonaparede.
—Vocêestáblefando!—Será?—Jacksorriucomocantodoslábios.—Vocênãotemcoragemdenosmatar.—Souumcriminosoprofissional,jáesqueceu?—Vocêfoi...nãoémais.—Umavezbandido,semprebandido.Seusolhosagorabrilhavamdeummodoestranho.Nosorrisoenviesado,haviaalgodesádico,que
fezGinger estremecer: começava a acreditar que ele cumpriria a ameaça, se as coisas não corressemcomoqueria.
—Vocênãoplanejounossamorte,nãoé?Esedererrado?—Domaindabalançavaacabeça.—Não,mastambémnãopreviquevocêserecusariaacolaborar.Abralogoamerdadessaporta!Domvirou-separaGinger,respiroufundoepediu:—Afaste-sedaqui.ElaobedeceudeimediatoeJackgritou:— Quandoabriraporta,entrelogo.Devehaverumguardadooutrolado,maselevailevarum
grandesusto,porquenenhumalarmeopreveniu.Sevocêconseguirderrubá-lo,euestareiaseuladoparaconcluir o serviço. Temos uma boa chance de descobrir o que existe aí antes que apareçam outrosguardas.
Domconcordou.Virou-separaaporta, tocou-ade leve,comoumexperientearrombador, tentando“sentir”afechadura.Juntoàsaída,Jackafastouamãodobotãoquefechariaaportaprincipal,voltou-separaGingeremurmurouparaqueDomnãooouvisse:
— Estoupressentindoque,aqualquermomento,ogigantevaidescerpelopédefeijãoeacabarcomabrincadeira.
Gingerdescobriuqueelejamaisoscondenariaàmorte.SeDomnãoconcordasseemtentarabriraporta,provavelmente,Jackinventariaummododeserapanhado,talvezretornandoàguarita.
De repente, como um sopro de vento, a porta do fim do túnel abriu-se. Foi um movimento tãorepentinoqueDomcaiudecostas,esquecidodasinstruções.Numinstante,porém,levantou-seecorreuparadentro.Jack,queacionaraomecanismodaportaexternaantesqueooutroselevantasse,correuparaasegundaporta,comGingernoscalcanhares.
Estavamnogrande túneldepedra,escavadonarocha.Gingerparou,àesperadosprimeiros tiros,masnãoouviuumúnico ruído.Acimadesuacabeça,descendodeum tetoquenãosevia,perdidonaescuridão, apareciamas lâmpadasque iluminavamapassagem:unsvintemetrosde larguraporquasecemdecomprimento,daportaaohallondedeveriamestaroselevadores;atrêsmetrosdaentrada,umamesacimentadaaopiso,esobreaqualseespalhavamexemplaresderevistasdasemana,umterminaldecomputadore...nenhumguarda.Otúnelestavasilenciosoedesertocomoummausoléu.Estranho...umdepósitoquecustoumilharesdemilhõesdedólares,projetadoparaenfrentaraTerceiraGuerraMundial,assim,entregueaosratos...
—Nãoépossível!—Jackolhavaemvolta.—Ondeestãoosguardas?!— Eagora?—perguntouDom,aindaassustadocomafaçanhadaporta, taosimpleseperfeita,
depoisdofracassonorestaurante.
—Háalgumacoisaerrada...—Jackfranziaassobrancelhas.—Não sei o que e,mas sinto na pele.—Tirou o capuz e correu o zíper do abrigo.Dom eGinger
repetiram seus gestos.—Esta é a área de carga e descarga de caminhões.As instalações principaisdevemestarnopisoinferior.Nãoestougostandodosilêncio,masachoquedevemosdescer.
—Temoséqueparardeespeculareagirrápido—Gingercaminhouparaofimdotúnel,ouvindoozumbidodaportaqueJackfechava.
MergulharamnocoraçãodeThunderHill.
2.MEDO
Andavam em silêncio como ratos escondendo-se de um gato faminto, e ainda assim seus passosecoavampelasparedesdepedra.Passarampeloselevadoresmaiores,abertos,plataformasmovidaspordoispilareshidráulicossincronizados,umdecadalado,grandesosuficienteparaotransportedeaviões.Deixaram para trás os ascensoresmédios, também de carga, e, por fim, chegaram a um elevador detamanhonormal.
Entraram,enoinstanteemqueJackapertouobotão,Domlembrou-sedeoutrosdetalhesdanoitede6dejulhodoanoretrasado.Lembrou-sedaLuamudandodecor...edopousodanave.Umcilindroliso,aparentemente simples, quase comum, e que, sem dúvida, vinha de outro planeta. Quando conseguiuacalmar-se,Dompercebeuqueestavacomatestacoladaàparedefriadoelevador,osbraçoscruzadossobre o peito, tremendo como criança assustada. Virou-se, viu os companheiros fitando-o de olhosarregalados,àespera.
—Oqueaconteceu?—Gingerperguntou.—Lembrei-medemaisumacoisa...Dom contou-lhes o que acabava de “ver”.Não precisou falarmuito para que os dois também se
lembrassem.OsolhosdeGingerbrilhavam,Jackbaixouacabeçaparaesconderaslágrimas...demedo,alegria,espantoeesperança.
—Nósentramos—Gingermurmurou.—Sim...você,DomeBrendan—completouJack,avozgraveeemocionada.—Naoconsigolembraroqueaconteceudentrodanave...—Nemeu—Domsuspirou.—Pelomenosatéagora.Lembro-medetudo,atéomomentoemque
atravessamosoportaldanaveevimosaluzdourada.Ginger estava pálida. Dom adivinhou que também ela descobrira a explicação para a poderosa
empatiaqueosjogaranosbraçosumdooutroquandoseencontraramnoaeroporto,nodomingoanterior.Haviamentradojuntosnanaveeláviramalgumacoisaqueosligouparasempre.
—AnavedeveestarescondidaaquiemThunderHill—disseela.Temqueestar!—Porisso,ogovernotomouaterradosfazendeiros—Domacrescentou.—Aumentaramaárea
desegurançaparaimpedirquealguémseaproximasseosuficienteparasuspeitardoqueexisteaqui.—Devetersidodifíciltransportaranave—Jackpensouemvozalta.—Existemaquelasenormesjamantasquetransportammísseis.—Sim,eusei.Masporqueelesteriammantidoahistóriasobsigiloabsoluto?— Não faço idéia... — O elevador parou e Dom virou-se para sair. — Quem sabe não
descobrimostudoemmenosdeumminuto?Estavamnosegundopisosubterrâneo.Ajulgarpelademoradadescida,haviaváriosmetrosderocha
sólidaentreumpatamareoutro.Afrente,umaenormecaverna,comquasenoventametrosdediâmetro.
Aoredor,várioscompartimentosdeparedesdemetal,dipostoscomo trailersnumacampamento.Doisdos trailers estavam iluminados; os outros, às escuras, pareciam desertos. Dom pensou nosacampamentos em locações de filmagem, os vagões-camarim dispostos em círculo. Na outra parede,abriam-sequatrograndesgrutas,umadelasfechadacomumacuriosapilha
detorasdemadeira,primitiva,rústica,deslocadanoambientedealtatecnologiadolugar.Mais espantoso, porém, era o silêncio. Aquela caverna deveria estar pululando de gente, mas
apareciadeserta,comoqueabandonada.Nãohaviaumúnicoguardanaentrada,nãoseviavival-manosegundopiso,nãoseescutavanembarulhodemáquinas,vozes,passos!
Verdadequefaziafrioe,àquelahora,opessoaldabasedeviaestarrecolhidonosalojamentosvendotelevisão,ouvindomúsica.Mas,eosilêncio?!
—Será...queestãomortos?—Gingerperguntoucomumfiovoz.—Sintoquealgumacoisaestáerrada...—Jackolhouemvolta.Semtirarosolhosdabarricadade
toras,Domdeudoispassosem sua direção. Jack e Ginger seguiram-no de perto, aproximando-se de um postigo estreito,
recortadonamadeira,soboqualpassavaumfiodeluzamarelada,diferentedaluzdifusaqueiluminavaagrandeantecâmaradepedra.Domchegouaestenderamãoparaempurraraporta...eouviuvozes.Doishomensfalandobaixo,quasesussurrando.Pensouemdarmeia-voltaefugir,masparou,percebendoquealiestavaamelhorchancedeveroquecontinhaacaverna...eserapanhadoconformeoplano.
Aproximou-semais,fezumsinalparaJackeGingereempurrouaporta.Deudoispassos...Anaveestavaali,bemasuafrente.Gingerparou,asmãoapertandoopeitosobreocoração,quebatiaalucinado.Agrutaeraimensa,comquasecemmetrosdeprofundidadeporvinteoutrintadelargura,eumteto
alto, abaulado. O chão de pedra, nivelado, criava uma plataforma lisa, de parede a parede: estavamanchadodeóleo,comosealifuncionasseumaoficinamecânica.
Àdireitadaentrada,aolongodaparede,haviaoutrostrailersidênticosaosdohall,compequenasjanelaseportasmetálicas,alinhadosatéofundo.Emcadaportaumaplaca:Laboratóriode
Química, Biblioteca de Química, Patologia, Laboratório de Biologia, Biblioteca de Biologia,FísicaI,FísicaII,Antropologia,eoutrosquenãopodiamler,poisestavamdistantes.Alémdos trai-lers, mesas de trabalho e aparelhos científicos; exceto um espec-trógrafo e um aparelho de raios Xconvencional, idêntico ao do Boston Memorial, os instrumentos eram moderníssimos, extremamentesofisticados.
A nave estava à esquerda da entrada. Era exatamente comoGin-ger lembrara quando os últimosbloqueioscomeçaramaruir:umcilindrodequinzeoudezoitometrosdecomprimentoporquasecincodediâmetro,combordasarredondadas.Estavaapoiadaemalgunscavaletesdeummetroemeiodealtura,comoumsubmarinorecolhidoparareparos.Emrelaçãoàantigaimagem,faltava-lheapenasobrilhoqueafizeramudardecor,dobrancoaoescarlateeaoâmbar.Nãoseviammotoresnemturbinas.AfuselagemeracomoGingerrecordara:umafileiradetrêsmetrosdedepressõesarredondadasàfrente,cadaumadotamanhodeumpunho,semfunçãoaparente.Dooutrolado,quatrocúpulas,comometadesdeumaconcha,tambémsemfunçãoidentificável.Espalhadaspelafuselagem,meiadúziadeelevaçõesnometal,algumasdotamanhodeumatampadelatadelixo,outraspequenascomofechodevidrodemaionese,nenhumacom mais de dez centímetros de altura, estranhas e misteriosas. Não fossem algumas marcas dearranhões,anaveestariaperfeita,lisaebrilhante.Nãoeraespetacular,nemsepareciacomasdefilmesourevistas,maseraavisãomaisdeslumbrantequeGingeralgumdiativeradiantedosolhos.Assustava-aemaravilhava-a,dandomedoealegriaaomesmotempo.
Doishomensestavamsentadosàmesa,aoladodaaeronave.Umdeles,alto,magroebarbudo,vestia
calçaescura,malhapretaeumamploaventaldelaboratório.OoutrousavauniformedoExército,comatúnica desabotoada; parecia uns dez anos mais velho que o barbudo. Nenhum dos dois correu paraacionaroalarme,nemgritouchamandoosguardas.Apenaslevantaram-seepararam,calados,olhandoosrecém-chegados.
Estavamnosesperando,Gingerpensou.Eraestranho,talvezfossemausinal,maselanãoseinteressavacomnadaalémdanave.TendoDom
deum lado e Jackdooutro, todosmuito juntos, andouna direçãodo engenho e parou a umpassodedistância,ocoraçãobatendocomolouco,maravilhada,deslumbrada,sentindo-secomoqueemestadodegraça.
Umdosladosdefuselagemestavaraspado,resultadodealgumchoquecomasteróidesoucomnavesinimigas,duranteaviagem.Pequenasmarcas,causadasnãoporventosoutempestadesterrestres,masporalgumtipodeataquedeestranhoselementosdeestranhasparagens.
Talvez por intuição, talvez por já saber, Ginger “sentia” que a nave eramuito antiga... podia termilêniosdeidade.Correndoosdedosdelevepelometalfrio,entendeuque,naverdade,anaveeracomoumarelíquia,ummonumentoaopassado.Vieradelonge,notempoenoespaço;cumpriraumajornadaquaseeterna.
Domtambémaproximou-seaindamaisetocouometal.—Ah!—exclamou,incapazdeexpressaroquesentia.—Deus...—Gingermurmurou,fechandoosolhos—,queriaquemeupaiestivesseaqui!Como
elegostariadever isto!—Ja-cob,osonhador,quesempreamaraoscontos fantásticosdeviagensnotempo,paraopassadoouparaofuturo...
—SeJennytivessevividoumpoucomais...Sóumpoucomais...—disseJack,pensandoque,naverdade, não queria apenas que ela estivesse ali, partilhando aquele momento; queria quetivesse resistidoapenasmaisummêsoudois... para ser salva!Então, comumsimples toquedemão,DomouBrendanpoderiamdevolvê-laaseusbraços,vivaefeliz.
— Deus...—Ginger repetiu, num fio de voz, asmãos trêmulas sobre ometal. Sabia quemalcomeçavamaentenderosignificadodaqueleestranhoencontro,asimplicaçõesqueteriaparaofuturo,asrepercussõessobreopassado...Estranhoencontro,ànoitenumverãoperdido,nodesertodeNevada.
—Umaligadesconhecida.—Ohomembarbudoaproximou-sedostrêsetocouanave.—Maisresistentequeaço,maisduraquediamante,einacreditavelmente
leveeflexível.VocêéDomCorvaisis?— Sou...—Dom estendeu amão.ComoGinger, tambémpressentia que os dois homens eram
aliados.— Meu nome é Miles Bennell, sou chefe da equipe encarregada de estudar o... maravilhoso
acontecimento. Este é o general Alvarado, comandante de Thunder Hill. Não podem avaliar comolastimamosoquefizeramcomvocês.Oquevocêsviramjamaispoderiater-lhessidoroubado.Precisavaser contado aomundo... Se existisse algummodo de remediar os erros, vocês divulgariam a verdadeamanhãmesmo!MasFalkirkchegouprimeiro,encontrouvocêse...
—Falkirk?!—Jackinterrompeu-o.—EstápensandoquefoiFalkirkquemnostrouxeaqui?Claroquenão!—Riu.—Nósviemospornossaconta.
Gingerpercebeuqueogeneraldavaumpassoatrás,colhidopeloimpactodesurpresa.Viu-oolharparaBennelle,aospoucos,umapequenaluzdeesperançarenascendonorostodeambos.
—Querdizerque...entraramemThunderHill...sozinhos?!—Alvaradoarregalouosolhos.—Masissoéimpossível!— AidéiadeatrairJackTwist foisua,nãofoi?—Bennellsorriuparaoamigo.—Conhecea
fichadele.Lembre-sedequefoisoldadodeeliteetemaltotreinamentopara...invadiráreasproibidas.—SemDom,nãoteríamosconseguidoentrar—garantiuJack.—Euostrouxeatéasegundaportadotúnel.Masfoielequemaabriu.Bennellvirou-separaDom,perplexo,assobrancelhasfranzidas.—Mas...oquevocêentendedesistemasdesegurança?Amenosque...Claro!Vocêtempoderes
especiais!DepoisdearrancarospôsteresdacasadeLomack,ede fazeraquela luzsurgirquandoviuBrendan,vocêdeve terpercebidoqueeracapazde fazerqualquer...milagre!Eacaboudescobrindoaverdade...opoderestáemvocê.
prova de que ouviam mesmo todas as nossas conversas no motel, Ginger pensou. Mas prova,também, de que Jack conseguira manter em segredo os planos de fuga. Se não tivesse arrancado ostelefonesemantidovedadasasjanelas,Bennellsaberíatambémdossaleirosvoadores.
—Everdade.Brendaneeusabemosquetemospoderesteleci-néticos...eoutros,talvez.Masdeondevemessepoder?Sabemosquedevemteralgoavercomanave,masnãoconseguimoslembraroqueaconteceudepoisqueentramos.Osenhorsabe?
—Não...—Bennellbalançouacabeça.—Sabemosquevocêstrêsentraram,eissoétudo.Nãotemosidéiadoqueaconteceudentrodanave!QuandochegaramoshelicópteroscomoshomensdaDE-ROeosprimeiroscientistas,vocêssaíram,emestadodechoque.Nãoficaramládentromaisquealgunsminutos.Quandoforampresos,disseramquenãotinhamvistonadadeespecial,sóderamumaespiada.Para impedir que vocês resistissem à prisão, o pessoal sedou os três e levou-os de volta aoMotelTranqüilidade.Assim,se,depoisdepassadoochoque,vocêsmudassemdeidéiaeresolvessemcontaroqueviram,nãoteriamtempo.
Assustadoouangustiado,Milespassouasmãospeloscabelos.— Mais tarde, quando decidiramque vocês seriam submetidos a lavagem cerebral, não houve
temposequerpara interrogá-los.Semesperarquevocês saíssemda sedação, elesapenasmudaramasdrogas e deram início ao trabalho.Essa foi umadas razõespelas quais semprediscordei da idéiadalavagemcerebral.Fazervocêsesqueceremantesdelhesdarachancedecontaroquehaviaacontecidoera,alémdecrueleinjusto,umaterrívelasneira,porquenosdeixavacompletamentenoescuro.
Gingerolhouparaaportadanaveemurmurou:—Seentrarmosoutravez,épossívelquenoslembremosdetudo...—Sim...—Bennellseguiu-lheoolhar.—Epossível.Tambémfitandoanave,Jackperguntou:— Como é que vocês souberam que... ela estava se aproximando e que pousaria junto à
rodovia?—Eporquedecidiramesconderanaveeastestemunhas?—Domquissaber.—Havia...tripulantes?—Jackestavaansioso.—Calma—pediuAlvarado,dandoumpassoàfrente.—Vocêsvãorecebertodasasrespostas,
porquetêmdireitoaelas.Mas,antes,háproblemasmuitourgentespararesolver.—Virou-separaDom.—Sevocêconseguiuentraraqui,comcertezatambémsaberáabrirasportasparaopessoalsair,nãoé?Poderámantê-lasabertasparaqueabasesejaevacuada?
GingerolhouparaDom,depoisparaJack,eosviualertas.—Bem...—Dommurmurou.—Nãosei,talvez...—Bob...—disseBennell,muitosério,voltando-separaoamigo.—Seocoronelperceberquea
basefoievacuadaouquealguémentrouaqui,semserapanhadopelasegurançaquesóelecontrola,serácomoacenderopavio.Vaipensarque...fomoscontaminados.
—Contaminados...?—Gingerperguntou.
—Lelandestálouco.Acreditaquetodos,nestabase,fomos“possuídos”pelosseresquechegaramcom a nave. Acha que eles nos roubaram a alma e nos transformaram em zumbis, escravos de umavontadesuperior.
—Essecaraprecisaserinternadonohospício—opinouJack.— Doutor—começouGinger, escolhendobemaspalavras—,éclaroquenão somoszumbis.
Mas...háalgumarazãoobjetivaparaFalkirksuspeitardecontaminação?— Em tese, sim—Miles respondeu com um esgar. —Mas só em tese. Na verdade, todos
demoramosumpoucoparaentenderoquerealmenteaconteceu.Maistarde,comcalma,eulheexplicareitudo.
—Porfavor,reconhecemosquevocêstêmplenodireitodesaberdaverdade,masnãopodemosperderumminuto—disseAlvarado,jáaflito.—-Falkirkpodechegaraqualquermomento,trazendoasoutrastestemunhasdomotel.
—Nãovaiacharninguémnomotel.Elessaíramantesdenós—Dominformou.— Jamais subestime aquele homem. Precisamos impedir que ele entre, montar um plano de
divulgação para a história de vocês e, se possível, evacuar a base. Caso Falkirk consiga entraraqui,haveráummassacre.Talvezhajaummassacredequalquermodo,afinal...
Ouvirampassosnohall.Gingerlevouasmãosàbocaparanãogritar.Mareie,Jorja,Brendaneosoutrosentraram.
—Tardedemais...—Bennellsuspirou.ÀentradadeThunderHill,ParkerFaineetodoogrupoforamempurradosemdireçãoàportamenor,
sobamiradametralhadoradotenenteHorner.LelandordenaraaossoldadosdaDEROquelevassemocorpodopadreWycazikparaShenkfield,enterrassem-nosemidentificaçãoeficassemporláàesperadenovasordens.Nãovianecessidadede sacrificara tropa toda,quandoapenaseleePlorner, seubraçodireito,poderiamcontrolarosprisioneirosedestruirodepósito.PobreHorner...nãoteriaachancederecebernemmesmoumamedalhadeHonraaoMérito...
Notúneldeentrada,Lelandsentiuumcalafrioaoperceberqueascâmarasdetelevisãonãoestavamoperando.Maslogosossegou,lembrandoqueocódigosecretonãoexigiaobservaçãovisual,poisforaprogramado para só abrir a porta interna ao receber a impressão da palma de suamão esquerda.Noinstanteemquetocouachapadevidro,aportaabriu-se.
Sempre sob a mira da metralhadora de Horner, os oito prisioneiros foram conduzidos para oelevador,quedesceuparaosegundopiso,eagoraentravamnacaverna.
Espiando por sobre as cabeças do grupo, Leland viuGinger,DomCorvaisis e Twist.Não podiaimaginarquemosfizeraentrar,masnãoimportava.Oquevaliaeraqueeletinhatodosemseupoder,bemali,exatamentecomoqueria.
DeixouHornercomosprisioneirosnasaladeBennellecorreuparaoelevador,queotransportouparaoterceiropisoinferior.EraumapenanãopodermaiscontarcomHorner:eleficariamuitotempoexpostoaosagentesdacontaminação.
Lelandlevavaametralhadoraaoombro,dispostoadispararnoprimeiroquetentassebarrar-lheocaminho.Seaparecessemmuitos,atirariaemsimesmo:preferia
morreradeixar-secontagiar.Nãopodiamudar,transformar-seemalgoquenãoentendiabem,sedesdeainfânciaresistiraaopaieàmãe,etambémaefes,aosvermesqueoperseguiamduranteanos,sobumououtrodisfarce,querendoroubar-lheadignidadeeaprópriaidentidade.
No terceiro piso subterrâneo guardavam-se as armas, amunição, todo o equipamento bélico. Alisemprehaviaalgunsoperáriosencarregadosdamanutençãoeosguardasdesegurança.Naqueleinstante,porém, o local estava deserto. Sinal de queAl-varado não se atrevera a desobedecer suas ordens: o
pessoalestavaconfinadonosalojamentos.Talvezpassassepelacabeçadogeneralque,agindoassim,con-seguiriaconvencê-lodequeainda
era humano. Idiota! Seus pais também agiam, falavam e pensavam como gente... Ah! Sim...beijos,carinhos,horasehorasdeconvervafiada...equandocomeçavaaconfiarneles,aacreditarnasmentirasquediziam,mostravamaverdadeira face, ahorrívelcarademosntroquesempreescondiam.Apanhavama correia de couro ou a palmatória e o espancavam, dizendo que o castigavam“para seupróprio bem!” Nenhum zumbi conseguiria enganá-lo, logo a ele, Leland Falkirk, que desde meninoaprenderaaidentificaroloboescondidosobapeledocordeiro.
Chegouaolocaldoarmamentonuclear,sobsegurançamáxima.Apenasoitodosoficiaissuperiores,emThunderHill, tinhamautorizaçãoparaentrarali,masapenasquandoseapresentassemjuntosounomínimoemgrupode três.Ocomputador estavaprogramadopara só liberar a entradadepoisque seispalmasdemão, emordempredeterminada, fossemapresentadas àplacadevidro.Mas, isso, antesdeLeland alterar os códigos de acesso ao sistema de segurança. Agora, frente à pesada porta demetal,bastou-lhetocaraplacacomapalmadamãoesquerdaparaabrircaminho.
A direita da entrada, as ogivas nucleares, semimontadas, mas sem detonador nem explosivo: osdetonadoresestavamguarda-
dos nas gavetas ao longo da parede, e as cargas de explosivo encontravam-se em cabinespressurizadas,deumidadeetemperaturacontroladas,naparedeoposta.
OtreinamentomilitardeLelandpreviaaeventualidadedeenfrentarameaçasdeterroristasarmadoscom bombas atômicas. Por isso ele sabia perfeitamente comomontar, armar e desarmar todo tipo debomba.Emoitominutos,semdeixardevigiaraporta,ametralhadorasempreaoalcancedamão,armouosdetonadoreseimplantouascargasdeexplosivodeduasbombas.Depoisdeconectá-lasadoistimers,respirou um pouco mais aliviado. Acertou os ponteiros dos mecanismos de tempo para explodir emquinzeminutoseligouosdetonadores.
Levantou-se, pendurou ametralhadora numombro e no outro prendeu as alças das bombas.Cadabomba pesava mais de trinta quilos, e ele gemeu ao erguê-las da mesa, arqueado sob o pesodoapocalipse.
Qualqueroutrohomempararianomeiodocaminhoparacolocaropesonochãoealiviaradordosmúsculos.LelandFal-kirk,não.Opesocurvava-lheascostas,faziaarderem-lheosnervosdobraço,maseleavançavasempre,felizcomadorquaseinsuportávelparaqualqueroutromortal.
Nacavernadeondepartiamoselevadores,aindanoterceiropiso,deixouumadasbombas,bemnomeiodochão.Ergueuosolhosparaotetodepedra,ecomumsorrisodesatisfaçãoexaminouasparedessólidas.Quandochegasseomomentodadetonação,amenorrachaduraexistentenarochafariaexplodiracaverna,eosandaressuperioresdesabariam...Lelandsabiaquenãohavianoplanetarochasemfissura.Aindaqueasparedesresistissem,ninguémsobreviverianaquelepiso,nemsereshumanos,nemqualqueroutra formadevida—monstros, vermes, bactérias... tudo seria reduzido apó.Ocalor do inferno seinstalarianabase...etambémador.
Elenãosobreviveriaàdor,masnãotemeriaenfrentá-la,seriaumaagoniaintensa,indescritível,masbreve.Durariamuitomenosqueasintermináveissurrascomacorreiadecouroouaspan-
cadasdepalmatóriapelorostoepelascostas...ateapelerasgar-seeosanguejorrarcomoáguadatorneiraaberta.
Comasegundabombaaindapenduradaaobraço,sorriuparaopequenorelógioondeosponteirosvoavam.Amaiordasmaravilhas,oquefaziaasbombasatômicastãofascinantes,eraexatamenteaquelepequenodetalhe: depois de armadas, como timeracionado, nada nemninguém conseguiria impedir aexplosão,fataleinexorávelcomoodestino.
Foiatéoelevadoresubiuparaosegundopiso.ComMareie no colo, Jorja correu para o lado de Jack e parou, rígida, pálida, os olhos na nave.
Emborade certomodo já estivessepreparadapara a cena, apresençadanave, real, palpável, adoispassosdedistância,devolvia-aaoestadodeexaltaçãoeemoçãodoinstanteemque,aindanocaminhãodeFalkirk,começaraalembrar-se.
Mareie debatia-se para soltar-se, e Jorja colocou-a no chão. A menina deu dois ou três passosvacilantesemdireçãoànaveeestendeuamãoparatocarobojodemetal.
—ALua...—murmurou.—Não,querida.NãoéaLua.Éumtipodeavião,diferentedosqueconhecemos.Foiessa...nave
que desceu do céu, naquela noite. Não foi a Lua, que parecia cair sobre nossas cabeças. Você selembra...?Erabranca,depoisficouvermelha...
—NãofoiaLua...—Mareierepetiu,baixinho,assobrancelhasfranzidas,noesforçodeconseguirseparar,nalembrança,oqueerapesadeloeoqueerarealidade.
—Não...Foiessanaveespacial.Ameninavirou-separaJorjae,pelaprimeiravezemsemanas,reconheceuorostodamãe.Esorriu.—Umanave...comoadocapitãoKirk?—Achoquesim...—Jorjariu.—ComoadeLukeSkywalker,deGuerranasEstrelas—Jackajudou.—Luke?!EHanSolo?!Essamesma.—Jacksorriu,masvendoqueMareieoutravezsealheavaevoltavaaolharparaanavecomosenãoavisse,ficousérioepousouamãonoombro
deJorja.—Nãosepreocupe.Elaprecisadealgumtempoparaseadaptaràsnovidades.Maslogo,logo,estarábem,rindoebrincandocomoantes.
Jorja fechouosolhos,emparteparaagradeceraDeuspor terconhecidoaquelehomem,emparteparausufruirmaisintensamenteasegurançaqueapresençadeJacklhetransmitia.Maslogorecuperouaconsciênciadesuasituaçãoedisse:
—Talvez...Seconseguirmosescapardaqui.—Claroquevamosescapar.Aindanãoseicomo,masvamossairmaiscedodoquevocêpensa.DomcorreuparaabraçarParker,comumsorrisonoslábioselágrimasnosolhos.—Comofoiquevocêchegouaqui?!—Depoiseucontotudo—ooutrorespondeu,avozeorostosombriosdizendoclaramenteque
nemtudoforaummarderosas.—Eunãotinhaodireitodeenvolvê-lonessaconfusão.—Vocênãotinhaodireitoédemedeixardefora...—Parkerolhouparaanaveeesqueceu-sedo
resto,deslumbrado.—Oqueaconteceucomsuabarba?Vocêcortouocabelo!—Nãolhedissequesóraspariaabarbaquandoacontecessealgumacoisaquemerecessemesmo
sercomemorada?Nãoachaqueisso—apontouparaanave—valemaisqueumabarbavelha?Erniecontornavaanave,tocava-acomapontadosdedos,examinavaosmínimosdetalhes.Aolado
deBrendan,Fayeesperava,tãopreocupadacomelequantocomomarido.Faziamesesqueperderaafé,ouachavaqueaperdera,oquedavanamesma;agoraacabavadeverseumelhoramigomorto.Estavapálido,comolheiras,porémmesmoassimconseguiusorrir,aocomentar:
—Elaélinda,nãoé?—Linda...comoofuturo—Fayerespondeu.—Eeuquenuncaacrediteiemhistóriasdediscos
voadores!
—MasissonãoéDeus...—Brendanbaixouacabeça.—Nofundodocoração,euesperavaoutrotipodemilagre.
—Lembra-sedoqueParkercontounocaminhão?SobreoqueopadreWycazikdisseaele?Seupárocosabiaquealgumacoisa tinhadescidoàTerra,umanave
interplanetária.SabiaquenãoeraDeus...e,aindaassim,sentiacommaisintensidadeomistériodafé.—Vocênãooconheceu—atalhouBrendan.—Paraele,qualquercoisaserviaparareforçarafé.— Pois você é como ele. Só precisa de algum tempo para se adaptar. Na verdade, você é
igualzinhoaseuqueridopadreWycazik.—Masvocênemoconheceu!—Brendanolhou-a,surpreso.—Nemprecisariaconhecê-lo.Oquevocênoscontousobreelefoisuficienteparaveroquanto
vocêoamava.Admirou-ocomopadreecomoserhumano.Masvocêaindaémuitojovem.Comotempo,àmedidaqueforamadurecendoeaprendendomaissobreavidaeoshomens,tambémserácomoele...umgrandepadreeumgrandehomem.Efarádecadadiadasuavidaumahomenagemaele.
Brendancomeçavaavislumbraralgumaesperançadereencontrarapaz.Comosolhosúmidos,fitouFayeetornouabaixaracabeça.
—Achaqueeuposso...sonharcomisso?—murmurou.—Tenhocerteza.—Elaoabraçoucomomãeconfortandoofilho.Demãosdadas,SandyeNedcontemplavamanavede longe.Quasenão tinhammaisoquedizer,
porque tudoque importava já foradito.Pelomenos,eraoqueNedpensava,ocoraçãoexplodindodealegria.
FoiquandoSandyencontrouumassunto.Algumacoisamuito importante,sobreaqualnenhumdosdoisjamaisfalara:
— Seescaparmosdessa,quero terumfilho.Vouprocurarummédico,descobrirporquenuncaengravidei.Talvezhajaummeio...
—Masvocê...vocênunca...—Nuncamepreocupeiporqueachavaqueomundonãomerecia,queeunãomerecia,queobebê
nãomereciaviversóparasofrer—elarespondeu.—Masagoraédiferente!Queroumfilho,paraestarvivoquandonósdoisnãoexistirmos...parapodergostardevivernessemundonovoquevemaí,paraviajarpeloespaço,parairaoencontrodessascriaturasquenostrouxeramafelicidade.Prometoquevouseramelhormãedestemundo...e,quemsabe,deoutrostambém!
—Eusei.—Nedabraçou-a,comosempresemencontraraspalavrascertas.QuandoMilesBennellviuchegaremasúltimastestemunhas,compreendeuquedenadaadiantariam
ospoderesdeDomparamanterFalkirkadistância.Oúnicopoderqueofariaparareraaarmaquetraziaescondida na cintura. Imaginava que Falkirk fosse aparecer com um verdadeiro exército da DERO,esurpreendeu-seaoverHornerentrarsozinho,demetralhadoraapontadaparaacabeçadeMareie.
—GeneralAlvarado,doutorBennell—disseotenente—,ocoronelFalkirkchegaránuminstante.— Como se atreve a aparecer armado em frente de seu comandante, tenente?!— O general
Alvaradoavançouparaametralhadora.—Nãopercebequeestamosnumacaverna?Nãoentendeque,seescorregar essededonogatilho, a armadispara, asbalas ricoche-teiamnasparedese todospodemosficarferidos,inclusivevocê?
— Meudedo jamaisescorreganogatilho, senhor.—Havia tamanha ironiaemsuavozqueeraquaseumdesafio.
—OndeestáFalkirk?—Ogeneralresistiuàprovocação.— Está ocupado, senhor, em tarefas urgentes. Pede que o desculpem pela demora...Mas logo
estaráaqui.
—Quetarefas?—Nãoestouinformado,senhor.Aolado,MilesimaginavaoqueFalkirkestariafazendoechegavaatemerquejáhouvesseordenado
a execução dos soldados confinados nos alojamentos. Não se ouviam tiros... o que, afinal de contas,poucosignificavaentreaquelasparedesdepedra.EstavaapontodesaltarsobreHorner,desarmá-loecomeçaralimpeza,mandando-oparaoinfernocommetralhadoraetudo.
Paracontrolarosimpulsosassassinos,decidiuqueaúnicacoisaafazereraaproveitarotempoparacontaràs testemunhasoquesabiaedescobriroquepudesse.Jáde início,descobriuqueconheciamorelatóriodoGETRAU.Emrápidaspalavras, resumiu-oparaosoutros, respondendo,paracomeçar,àsperguntas queDom e Jack haviam feito.O segredo fora idéia de Falkirk, baseado nas conclusões dorelatóriosobreadestruiçãodavidanoplaneta,acatástrofetotaleoutrasprevisõesfatalistas.
Quanto à nave, fora detectada pelos satélites avançados, posicionados a trinta e cinco milquilômetrosdaTerra,queavirampassarpelaLua.Ossoviéticos,cujoequipamentodevigilâncianãoeratãoacurado,sómuitomais tardedescobriramaaproximaçãodanaveenuncachegarama identificá-lacomprecisão.
De início, os observadores imaginaram que se tratasse de um grande meteorito ou um pequenoasteróideemrotadecolisãocomaTerra.Sefosseconstituídodematerialporoso,talvezseincendiasseaoentrarnaatmosfera.Casocontrário,haviaaindaapossibilidadedequesefragmentasseemmeteoritosmenores,quaseinofensivos.MasaTerraestavasemsorte.Asprimeiraspesquisas,descobriu-sequeo“meteorito” continha alta taxa de ferro e níquel, o que formava uma liga resistente, eliminandoa possibilidade de fragmentação extensa e criando terrível ameaça potencial. Naturalmente, podia-secontarcomaaltaprobabilidadedequecaíssenomar,quecobresetentaporcentodoplaneta.Seaquedaacontecessemuitojuntoàcosta,contudo,teriaoimpactodeummaremoto,gerariaumaondagigante—atsunamidosjaponeses—quedevastariagrandeextensãodolitoral.Napiordashipóteses,corria-seorisco de que o “meteorito” caísse em área densamente povoada. Aventou-se, então, a possibilidadededestruí-loantesquechegasseàTerraoualterar-lheatrajetória.
—Imaginemoqueaconteceria seumapeçade ferroeníquel,grandecomoumônibus,desabassesobre o centro de Manhattan, à velocidade de quase três mil quilômetros por hora — Ben-nellexemplificou.
Seismesesantes,asórbitasdossatélitesdedefesaespacialdosEstados Unidos haviam sido secretamente alterados. Espertos e previdentes, os projetistas os
equiparam com armas poderosas e altamente manobráveis, capazes de destruir qualquer ameaça àsegurança nacional oriunda desse ou daquele planeta. Não dispunham de ogivas nucleares, mas oarmamentoacopladoaossatélitespareciaplenamentesatisfatórioparadarcombateao“pedacinho’’delixoespacialqueameaçavaopaís.
— Então—Miles continuava—, poucas horas antes do momento previsto para o ataque ao“meteorito”, começamos a receber fotografias espantosas. Não podia ser um meteorito, porque asfotosmostravam um objeto de simetria bilateral perfeita. Os dados dos computadores instalados nossatélites confirmaram nossas suspeitas. As fotos chegavam de dez em dez minutos. Ao fim de umahora, nenhum de nós tinha dúvidas de que se tratava de uma nave espacial. A idéia de destruí-la foiimediatamentedescartada.Ossoviéticosnãosabiamdenada,porquenãoestavamrastreandooobjeto.Quandotivemoscertezadequeeleentrarianocampodeobservaçãodossoviéticos,começamosaemitirsinais de interferência; assim, não poderiam saber da “visita” que estávamos esperando. De início,pensamosqueanavenãoconseguiriaescaparàatraçãogravitacionaldaTerraeseriaapanhadaemórbitafixa,antesdecolidircomnossoplaneta.Poucodepois,quandojánãohaviaoquefazer,vimosqueanave
seaproximavadaTerraseguindoatrajetóriadeumautênticometeorito;sóque,paranossasurpresa,aquedapareciacontrolada.Trintaeoitominutosantesdopouso,tínhamosdadossuficientesparacalcularepreveropontodeimpacto:Elko,Nevada.
—TiveramtempoparaordenarobloqueiodarodoviaeconvocarFalkirkeoshomensdaDERO,que,comcerteza,andavamaquiporperto...—completouErnieBlock.
— Estavamemmanobras em Idaho—Miles concordou.—Felizmente, estavampróximos.Ouinfelizmente,conformeopontodevista.
—Quantoaseupontodevista,doutorBennell,édesnecessárioinsistir.Jáoconheço.—LelandFalkirksorria,encostadoàporta.
NacinturadeMiles,aarmapesavacomoumcanhãoepareciacomoumestilingue.AoverFalkirk,GingerdescobriuqueasfotosdoSentinelanãolhefaziamjustiça.Eramaisatraente
e mais imponente do que o jornal mostrava. A metralhadora, que carregava despreocupa-damentependuradanoombro,pareciacemvezesmaisameaçadoraqueadeHorner,apontadaparaocoraçãododr.Bennell.Gingerteveaimpressãodequeaquelapostura,tãodescontraída,eraquaseumconviteparaque alguém se atrevesse a atacá-lo. Ao vê-lo entrar, pressentiu ou adivinhou a aura de loucura eterrorqueoacompanhava.
—Ondeestãoseussoldados,coronel?—Bennellperguntou.—Estamosaqui...otenenteHorner...eeu.Nãoacheinecessáriomobilizarmaisgenteparadiscutir
umassuntotãosimplescompessoastãosensatas.Bennellfungou,confusoeassustado.Gingersentiuumarrepio.— Por favor— Falkirk continuou, sorrindo ligeiramente—, não interrompam o que estavam
fazendo.OdoutorBennellterátodooprazeremresponderàsperguntasquedesejemfazer.—Tenhoumapergunta—declarouSandy.—Ondeestãoos...tripulantesdessanave?—Estãomortos.Eramoito...emorreramantesdepousar.ParaGinger,foicomosaberdamortedeumafamíliaamiga.—Morreram...como?—Nedquissaber.—Algumadoença?SemtirarosolhosdeFalkirk,Bennellrespiroufundoeexplicou:—Paracompreender,vocêsprecisamsaber,pelomenos,oquedescobrimossobreelesesobreas
razõesqueosfizeramviraténós.Encontramos,nocomputadordanave,umaespéciedeenciclopédiadesuacultura,dahistóriadesuaespécie.Demoramosduassemanasparadescobrirafitadevídeoemaisdeummêsparaentendercomooperaroaparelhoondeestava.Descobrimosqueoaparelhoestavaembomestadodeconservação, funcionandoperfeitamente,oqueéespantoso,considerandoque...Bem,vamosporpartes.Interessa,porora,quevimosafita,eentende-
mosperfeitamenteamensagemquenos traziam,porqueusaramumalinguagemvisualdefantásticaclareza, que praticamente eliminava a barreira da língua. Alguns cientistas chegaram a se emocionar,chorandocomocrianças,aoperceberquesesentiamcomoirmãosdenossos...convidados.
—Irmãos...—Falkirkrepetiu,comumrisoirônicoemaldoso.Bennellfezcomosenãotivesseouvidoecontinuou:
—Seriamnecessáriasmuitassemanasparaqueeupudesselhescontartudooquesabemossobreeles.Porenquanto,paraqueentendamoqueaconteceu,bastasaberqueaespéciedelesémuito ijiaisantiga que a nossa. Quando partiram para essa viagem, haviam localizado já cinco outros planetashabitadosporseresinteligentes.
— Cinco!—Gingerexclamou,deslumbrada.—Mas...éfabuloso!Aindaque todasasgaláxiasestivessemcheias de seres inteligentes, é quase impossível acreditar que tenhamconseguido localizarcinco,quandonós,porexemplo,emmilhõesdeanos,nãolocalizamosumúnicoplanetahabitado!
— Creio que, quando afinal dominaram a tecnologia das viagens intergalácticas — Bennellprosseguiu—,aquestãodeencontrarevisitarseusplanetasirmãostornou-separaelesumaespéciedereligião,umdevermístico.Édifícilentendermosbemesseaspectodesuacultura.Averdadeéqueafitaque trouxeram fala mais de aspectos do dia-a-dia que de altas indagações filosóficas. Mas váriospesquisadores,alémdemim,achamqueasviagenseram,paraeles,umaespéciedeserviçoreligioso,comose,nabuscadeoutrostiposdevida,tentassemprovarquetodosnósestamosligadosaumúnicoCriador.
—Deus?!—perguntouBrendan,lívido.—Achaqueeleste-riamvindocomomensageirosde...Deus?
—Talvez.Nãocomo“mensageiros”,nosentidoemqueentendemososanjos,porexemplo.Nãotraziam nenhuma mensagem de caráter religioso. Tenho a impressão de que a grande missão dessesviajanteseraajudaraestabelecercontatoentreasváriases-
tihipéciesquehabitamoespaço.Fazercomqueseencontrassemecriassemlaçosentresi.— Laços...—Falkirk fezumacaretaeolhouo relógio.Lentamente,movendo-secomcalma,o
generalaproximava-sedeLelandsemqueooutroovisse.Percebendoamanobra,ecadavezmaisangustiadacomoclima
decrescentehostilidadeentreBennell,FalkirkeAlvarado—hostilidadequenãoconseguia^ntender—,Gingeracercou-sedeDomeenlaçou-opelacintura.
— Eles nos trouxeram um presente — disse Bennell, chegando /mais perto de Falkirk. —Pertencemaumaespécieantiqíiíssima,
queviveumilêniosparaaprenderausaressespoderesque,paranós,aindaparecemparanormais,comoacapacidadedecicatrizartecidosoumoverobjetos.Nossos“amigos”nãoapenastiveramtempoparadesenvolvertaispoderes,comotambémescobriramummododetransferi-losaespéciesqueaindanãojpsconhecem.
—“Transferi-los”?—Domrepetiu.—Como?rp-—Aindanãodescobrimos.Masnãohádúvidadequeelessabempassaradiantesuashabilidades.Oqueaconteceucomvocês,porexemplo,comprovaisso.
—Oquê?!—Jackarregalouosolhos.—EstádizendoqueDomeBrendantambémpodempassarparanós...ouparaqualqueroutrapessoa...ospoderesquetêm?!
— Já aconteceu—Brendan respondeuporMiles.—Asduaspessoasque consegui salvar emChicago,umpolicialeumagaro-tinha,jásãocapazesdefazeroqueeufaço.
—Maisdoisfocosdecontágio—Falkirkresmungou.—Três,coronel.—Parkersorriu.—EutambémfuisalvoporBrendan.Seosenhorprecisar,me
telefone.Seráumprazersalvá-lo.Falkirkfulminou-ocomumolhar,eBrendancontinuou:—NãoacreditoqueDomeeusejamoscapazesdetransmitirsóumdenossospoderes.Achoque,
quandosalvoalguém,transmito-lhetodosquerecebi,mesmoaquelesqueaindanãodescobri.AcabeçadeGingerdavavoltas,comoumtorvelinho.—Deus...DoutorBennell,osenhorestádizendoqueelesvieramparaacelerarnossoprocessode
evolução... Para nos fazer queimar etapas, de modo que nos transformaremos logo numaespéciesuperior...Eisso?!
—Parecequesim.—Ora,ora...—Falkirkolhouparaorelógio.—Chegadepalhaçada!—Masquepalhaçada,coronel?—Fayevirou-separaele.—Seráquejánãobastaaloucurade
imaginarquenãosomoshumanos?—Porfavor,nãocometaoerrodepensarquemeengana.Vocêsestãotodospossuídosporesses
demônios.Bobagemtentarmeenganar.— Oque significa isso?—GingerperguntouaBennell, vendo-oaproximar-sedeFalkirkpela
esquerda,comaclaraintençãodechamarsuaatençãoparaoladoopostoaodogeneralAlvarado.—Umerro—Bennellrespondeu.—Ou,talvez,apenasoutraamostradapobrezadeespíritode
nossa infelizespécie,sempredesconfiadaeassustadafrentea tudoqueédiferente.Atéeuealgunsdenossos cientistas mais confiáveis chegamos a temer que os extraterrestres tentassem controlar nossasmentes.Mas logo compreendemos a verdade, àmedida que tivemos acesso às fitas de vídeo de suaenciclopédia.
— Eunãoacreditona“verdade”dessasfitas—gritouLeland.—Purapropaganda.Mentirasemaismentiras.Vocêsforamcontaminados.
—Nãoacreditoqueelesfossemcapazesdementir—rebateuMiles.—Noentanto,supondoquequisessemnosenganar,porquetrariamasfitas?Porquesepreocupariamemexplicaroqueestavamnosdandodepresente,sempedirnadaemtroca?
—Seiquenemtodosaquisãoreligiosos—disseBrendan—,maseuosvejocomoverdadeirosmensageirosdeDeus.Comoanjos...
—Edemais!—Falkirksoltouumagargalhada.—VocêpensaqueconseguemefazerengoliressababoseiradeanjosemensageirosdeDeus...comomeupai,aqueledesgraçado,fazia?Esque-
ça!Naoacreditoemanjos...Achoquenemvocêsacreditariamqueelessãoanjos, seosvissem...Sãomonstros...Nãotêmcabeça...parecemvermes...nojentos,visguentos...Sãomonstros!
—Vermes?—Brendanvirou-separaMiles.—Oqueelequerdizercomisso?— Nossos visitantes, na verdade, não se parecem conosco—explicou o doutor. São bípedes,
comonós,etêmdoisbraçoseduasmãos,mascadaumacomseisdedos.Naverdade,deinício,tambémmepareceramrepulsivos.Depois,aospoucos,fuidescobrindoque,láaseumodo,erammuitobonitos.
—Sópodemparecerbonitosaosolhosdeseussemelhantes!—Ocoronelespumavadefúria.—Vocêssãotodosiguais!Ben-nellacabadeprovarquetenhorazão...vocêsestãopodres,contaminados,sãomonstroscomoeles,vermes...
Esquecendoomedoeametralhadora,GingersaltouàfrentedeFalkirk.—Seuidiota!—gritou.—Queimportânciatemseelesnãosãoiguaisavocêeamim?!Oque
importaéapenasoquesãopordentro,naalma,nocoração,sejaláondefor!Eelesvieramcomoúnicoobjetivodenosajudar.Ossereshumanosdebomcoraçãotêmmaiscoisasemcomumcomelesdoquediferenças.Meupaidiziaqueinteligência,coragem,amor,amizade,compaixãoeempatiasãoasgrandesqualidades que diferenciam o ser humano.Mas só a inteligência não basta para nos distinguir de ummacaco... ou de um verme! Um verme não teria coragem para se aventurar pelo espaço, rumo aodesconhecido,comoelesfizeram.Quevermearriscariaaprópriavidaparanosajudarasermaisfelizes?
Cadavezmais exaltada, sentiuquenão falavaapenas aquele coronel ridículo, cheiodeorgulhoevaidade,masàprópriahumanidade,incapazdeverofuturo,desonhar,decrerelutarpordiasmelhores.A humanidade está conformada com a própria miséria, porque é uma miséria conhecida, que já nãoassustanemindigna,quefazpartedaessênciadodia-a-dia.
•—Olheparamim,coronel!Estávendo?Soujudia.Hámuitagente,poraí, capazdeacharqueeu tambémnãosouhumana, queminha raçageramonstros, que
matamosecomemoscriancinhas!Quediferençaexisteentreoanti-semitismoparanóicodetantosesualoucura,coronel?Porfavor,penseumpouco...Deixe-nossairempaz,semtiros,semmortes...Podemosajudá-loareencontrarapaz...Bastaquenosdeixeajudá-lo.Porfavor!
— Magnífico discurso, doutora... — Falkirk bateu palmas que ecoaram, agourentas, entre asparedesdepedra.SemparardefalaroudeolharparaGinger,apontouametralhadoraparaopeitodeAlvarado.
— Páraondeestá,general.Não toquenaarma.Não tenhoplanosdemorrercomum tiro...Vouesperarpelograndefogo...
—Grandefogo?—Bennellvirou-separaele.—Ograndefogoquevaiacabarconoscoelivraromundodadesgraçaqueosenhorescondeaqui.—Bob!—Bennellaproximou-sedeAlvarado.—Essemalucodeveterativadoasbombas...— Duas bombas...— Falkirk riu.—Uma está aqui no hall. A outra está no andar de baixo.
Ativadaseligadasao timer.—Consultouorelógio.—Faltamtrêsminutos...Nãohá temponemparavocêstentaremmepassarseusmicróbios!Quantotempodemoraparaocorrercontágio?
GingerolhavaparaFíorner,tentandodescobriroquefazer,quandoviuametralhadoravoardesuasmãos...livre,leve...pararnoarporuminstanteeacomodar-se,tranqüila,nasmãosdeJack.Aolado,ametralhadoradeFalkirksaltavaparaamãodeErnie,quearecebeuemplenovoo.
—Foivocê,Dom?—Gingerperguntou-lhe.—Achoquesim...—Elesorriu,aindaassustado.—Masnemsabiaquepodiafazerisso,maisou
menoscomoBrendan,quandorealizasuascuras.— Mas de que adianta isso?—Bennell aproximou-se.—Falkirk disse que as bombas estão
acionadasparaexplodiremtrêsminutos.Domcorreuparaaportademadeira,gritando:—Brendan!Cuidedabombaqueestáaqui.Eumeencarregodaqueestánoandardebaixo.—Éinútil...—Alvaradosuspirou.Brendanajoelhou-seaoladodabombaeestremeceuaoveropequenocronômetro:faltavamnoventa
etrêssegundosparaaexplosão.Nãosabiaoquefazer.Curaratrêspessoas,éverdade;fizeravoaremsaleirosevidrosdemolho;até
criaraluzcomopoderdesuasmãos.Masossaleirosevidrosdemolhoescaparam-lheaocontrolee,deummomento para o outro, passaram a ameaçar todomundo no restaurante. Sabia que, se fizesse ummovimentoemfalsocomodetonadordabomba,denadavaleriamseuspobresdesuper-homem.
Oitentaeseissegundos.Todososoutrosdeixaramacavernaereuniram-senaantecâ-mara.FalkirkeHornercontinuavamsob
amiradasmetralhadoras—oque,paraosdois,nãofaziaamenordiferença,poisconfiavamplenamentenaeficáciadabomba.
Setentaeumsegundos.—Oqueaconteceráseeufizerexplodirodetonador?—BrendanperguntouparaAlvarado.—Nemtente.Abombaéprogramadaparaexplodirautomaticamenteassimquealguémtocarno
detonador.Sessentaetrêssegundos.Fayeajoelhou-seaoladodeBrendanesugeriu:—Façaodetonadorseparar-sedabomba.ComoDomfezparadesarmarosdoissoldados.Brendan fixou os olhos no pequeno relógio que não parava de girar e tentou imaginar que o
detonadorpulavaparalongedabomba.Nada!Quarentaequatrosegundos.Esmurrando as paredes do elevador para que andasse mais rápido, Dom correu para o hall do
terceiropisotãologoaportaseabriuosuficienteparalhedarpassagem.Gingerseguiu-o.Eleajoelhou-seaoladodabomba,ocoraçãopulandonagarganta.
—Jesus!—exclamou.Quarentaedoissegundos.— Você vai conseguir.—Ginger nao tirava os olhos dos ponteiros.—Você tem uma tarefa
grandiosa.—Lávai...—Euteamo.—Eutambémteamo.Sempresemtirarosolhosdodetonador,Domergueuasmãoseviuosanéisaparecerem,umemcada
palma.Brendansuavafrio.Trintaenovesegundos.Já sentia os anéis nas palmas da mão, sabia que o poder despertava em seu corpo, mas não
concentrava-se na urgência da tarefa. Quanto mais pensava, menos conseguia controlar a energiaqueacordava.
Trintaequatrosegundos.—Assimnãodá...—Parkeraproximou-se.—Vocêestátentandoumaviaracional,talvezporque
éjesuíta,eosjesuítassãoviciadosempensar.Deixe-metentarporoutrocaminho,maisemocional.Eusouartista...Deixe-me tratardisso ameumodo.—Apontouum longodedo iradoparaodetonador eberrou:—Seufilhodeumaputa,desgraçado,veadodemerda...Caiaforadaí.../a!
Comumestalidode fios rebentados,odetonador simplesmente saltoudabombae aninhou-senosbraçosdeParker.
—Osponteirosaindaestãocorrendo!—Brendanexclamou,perplexo.—Masodetonadorestáaqui...—Parkerriu.—Háumacargadeexplosivoconvencionalnoprópriodetonador.—Alvaradoestendeuamão,
esperandoqueopintorojogasseparaele.OoutrodetonadorpulounasmãosdeDom.Osolhosfixosnosponteiros,quecontinuavamacorrer,
percebeuque,dealgummodo,eraprecisofazê-losparar.Então,sempensarmais,simplesmentedesejouqueparassem.Osponteirosficaramcomoquecon-
gelados,enovisordigitalosalgarismosimobilizaram-sederepente:trêssegundos!Aindamalacostumadoaopapeldemágico,Parkerassustou-secomainformaçãodeAlvarado.Mas,
coerentecomopapeldeheróiemmomentosdecrisequaseincontornável,gritouquetodossedeitassemeprotegessemacabeça.Então jogouodetona-dorpara longeeatirou-sedecaranochão.Oaparelhoroloucomoumagranadaeparouacentímetrosdaparededofundo.
DomestavabeijandoGingerquandoambosouvirama explosãonoandarde cima.Estremeceram.Precisaramdeumsegundoparaperceberque,sefosseabomba,otetojáteriadesabado,eelesestariamcaindoaindamaisfundo,juntocomtoneladasderocha.
—Foiodetonador—Gingerdisse.—Vamosverseháalguémferido.Oelevadorarrastava-separacima.Naantecâmara,foramrecebidosporumverdadeiroexércitode
soldadosarmadosatéosdentes,prontosparaentraremcombate.DompegouamãodeGingere,semvernempensar,correuparaasaladanave.PrimeiroviuFaye.DepoisSandyeNed.Brendan,vivo,inteiro,Jorja,Mareie,Jack.
Parkercorreuparaosdoiseenvolveu-osnumenormeabraço!— Vocêperdeumeu show, amigo!Fui fantástico!Se tivessemmeconvocado, junto comAudie
Murphy,teríamosacabadocomaSegundaGuerraemmenosdeseismeses!—AchoqueestoucomeçandoadescobrirporqueDomgostatantodevocê...—Gingerriu.—Porqueconvivecomigohámuitotempo...“ConhecerParkeréamá-lo”!
De repente, um grito assustado chamou-lhes a atenção. Aproveitando-se do momento em que aeuforiaostornaradescuidados,FalkirkfugiudoalcancedasarmasdeJackeErnie,etirouumapistoladeumdossoldados.
— PeloamordeDeus,homem...—Jackgritou.—Está tudoacabado.Jánãoháperigo,droga.Esqueçaessasloucurasdemonstrose...
—Sei,sei...—Falkirksorriuirônico.Nãoperderiasuamiserávelguerraparticularnoinstanteemque chegara tão perto de uma vitória consagradora.— Está tudo acabado... mas vocês não vão meapanharemsuasarmadilhas.Nãovãomepegar!
Antesquealguémpudessepensaremtirar-lheaarmadasmãos,meteuocanodapistolanabocaepressionouogatilho.
Com um grito de horror, Ginger virou-se para não ver, Dom fechou os olhos. Não era apenas asolução violenta que os horrorizava.Muitomais do que isso, assustava-os a estupidez de umamorte,mais uma, no momento em que a humanidade estava tão próxima de ganhar, para sempre, atranscendência.
3.TRANSCENDÊNCIAEnquantoossoldadosdeThunderHilldeslumbravam-secomanave,quemuitosdelesjamaishaviam
visto,Ginger,Domeosoutros,acompanhadosporMilesBennell,subiramarampadeacesso.O interior da nave era simples como a fuselagem, e conforme Miles explicou, a espécie a que
pertenciam os visitantes haviam superado a concepção de equipamentos científicos tal como nós osconhecemos.Comcerteza,teriamsuperadoatéaprópriafísicaqueestudamos.
Logoà entradaviramumagrande sala, quase completamente cinzenta, semnadade especial.Nãoencontraramvestígiodaluzdouradaquebrilhavaalinanoitede6dejulhoequeBrendanvoltaraaverem sonhos. Apenas um fio estendia-se de parede a parede, com lâmpadas comuns, instalado peloscientistasparapoderemtrabalhar.
Aindaassim,anaveeraquente,hospitaleiraemágica.Gingerlembrou-sedoescritóriodopai,nosfundosdaprimeirajoalhe-riaquecompraranoBrooklyn,ondeinstalouseuquartel-generalduranteanos.Osantuáriotinhadecoraçãocomum,quasevul-
gar.MasGingerachavaaquelasalaamaisfantásticaemágicaquepodiahaver,porqueeraondeseupaitrabalhava,lia,sentava-separapensaracontar-lhehistórias:aventurasdemistério,contosdefada,com bruxas e gnomos. Ao ouvi-lo, Ginger esquecia as paredes nuas e os móveis velhos e soltava afantasia;àsvezesiaparaLondres,ajudarSherlockHolmesemsuasinvestigações;àsvezesiaparamuitomaislonge,guiadapelasmãosdeRayBrad-bury.Oescritóriodopaieracomoumagrutaencantada.Anave,emboramuitodiferente,tinhaamesmaauradedeslumbramento.Pelasparedesnuas,aquicomolá,corriaminfindáveisriosdemaravilhasemistérios.
Juntoàsparedes,enfileiravam-sequatrournasbranco-azuladas,grandesobastanteparaacomodarseresadultos,fabricadascommaterialdesconhecido,transparentecomoacrílico.Haviamser-
ido para manter os viajantes em estado de semicongelamento du-nte a viagem, de modo queenvelheciam apenas um ano terrestre a cada cinqüenta anos, conforme Bennell explicava.Provavelmente, viajaramsemacordar, entregandoadireçãodanave a aparelhos capazesde indicar aexistênciadevidainteligentenosplanetaspelosquaispassavam.Atravessaramcentenasdemilharesdesistemassolarestãograndesquantoonosso.
Atampadecadaurnaapresentavaumamarcacircular,idêntica,emformaetamanho,aosanéisqueapareciamnaspalmasdasmãosdeDomeBrendan.
— O senhor disse que eles já chegaram mortos — Ned lembrou —, mas não contou como
morreram.— Morreramdevelhos.—Bennell balançoua cabeça.—Anavecontinoua funcionarguiada
apenas por aparelhos, até algunsminutos depois de pousar na rodovia.Os tripulantes já deviamestarmortoshámuitotempo.
—Envelhecendoumanoacadacinqüenta?!—Fayeadmirou-se.— A espécie é diferente da nossa.Pelo que conseguimosdeduzir, viviam, emmédia, cerca de
quinhentosanos.ComMareienocolo,Jackaproximou-sedeBennellparacomentar:— Deus...SeumanonaTerraequivaleacinqüentaanos,elesestavamviajandohápelomenos
vinteecincomilênios,paramorrerdevelhos!—Muitomais—corrigiuBennell.—Apesardetodooavançotecnológico,asinformaçõesque
trouxeramprovamquenuncaconseguiramsuperaravelocidadedaluz,cercadetrezentosmilquilômetrosporsegundo.Naverdade,anaveviajavaaumavelocidadeligeiramenteinferior,atépequenaemrelaçãoa distância que tinha a percorrer. Nossa galáxia, que é vizinha à deles, tem oitenta mil anos-luz dediâmetro,oequivalenteetrezentoseoitentaequatrotrilhõesdequilômetros.Oaudiovisualquetraziamindicava a localização exata do planeta de origem: trinta e ummil anos-luz do limite da sua galáxia.Viajando a umavelocidadebempróxima à da luz, é fácil calcular e descobrir que saíramde casahápoucomenosdetrintaedoismilênios.Mesmocomenvelhecimentomuitolento,porcausadahibernaçãocontrolada,devemtermorridohá,nomínimo,dezmilênios.
Gingertremiadospésàcabeça.Comamãotrêmula,tocouaurnamaispróxima,sentindoqueestavadiante de um monumento à compaixão, ao amor, à empatia; um monumento que ultrapassava oentendimentohumanoeprovavaumacapacidadedesacrifícioaomesmotempocomoventeeassustadora.Haviamsaídodecasacertosdequejamaisvoltariam,animadosapenaspelaesperançadeajudaroutraespéciemuitodistante.
—Morreramavinteecincomilanos-luzdedistânciadeseuplaneta—Bennellcontinuava,emvozbaixaereverente,comoseestivesserezandooufalandonumaigreja.—Jáestavamacaminhoemortosquando a humanidade ainda vivia em cavernas e começava a aprender a cultivar a terra. Quandomorreram, havia apenas cincomilhões de habitantes emnosso planeta...menos que ametade da atualpopulação de Manhattan. Durante o último milênio, desde que o homem ainda espantava lobos nasestepesatéconstruirsuashorríveisbombascapazesdeacabarcomavidadafacedoglobo,essesoitoaventureirosinvencíveiscorriamparanós,cortandoavastidãodoespaçodeserto.
Brendan tocava outra urna e chorava. Pensava em tudo que deixara de lado para dedicar-se aosacerdócio: família, filhos, prazeresmundanos. E, de repente, descobria que seu sacrifício era nada,comparadoaoqueDeusexigiradaquelesseres.
—Masparaencontraroutroscincoplanetashabitados,adistânciastão...inacreditáveis—disseParker, procurando as palavras—, com possibilidades tão remotas de chegarem a seu destino, elesteriamquelançaraoespaçomuitasnavesiguaisaessa...
— Imaginamosque lançavamcentenaspor ano, talvezmilhares—Bennell explicou.—E issomais de cem milênios antes que esta nave partisse. Como eu lhes disse, as viagens têm umalto significado para eles, tanto cultural quanto... religioso. As outras cinco raças ou espécies quelocalizaram estavam num raio de quinzemil anos-luz domundo deles. E não podemos esquecer que,depoisdelocalizarumplanetahabitado,anotíciaaindademoraquinzemilêniospararetornaraoplanetadeles.Achoqueagoravocêscomeçamaentenderosentidoeaprofundidadedocompromisso,nãoé?
—Algumasnavestalveznemvoltem...nemcheguemalugarnenhum—Erniepensouemvozalta.—Ficamaípeloespaço,parasempre,mesmodepoisqueatripulaçãoestámortahámilênios.
—Certo...—Bennellconcordou.—Masmesmoassimelescontinuam...—disseDom.—Mesmoassim,elescontinuam.—Nuncachegaremosatanto!—NedbaixouacabeçaeabraçouSandy.—Talvezcheguemos—Bennellsorriu.—Claroqueprecisaremosdetempoparaamadurecer...
milanos,umpoucomais,talvez.Depois,outroscemanosparadesenvolver,emtermosdetecnologia,asinformaçõesquenostrouxeram.Entãopoderemosconstruirelançarumanavecomtripulaçãohumana,emestado de hibernação. Talvez até lá tenhamos desenvolvido algum processo de bloquear oenvelhecimento.Nósjánãoestaremosaquiparaver,nemnossosnetos,masostataranetosdostataranetosdos
tataranetos de nossos tataranetos talvez estejam: trinta e dois milênios depois da partida, nossosdescendentesdistantesretribuirãoessavisita,respondendoaoconvitequenossos“amigos”conseguiramnosentregar,emmãos,mesmodepoisdemortos.
Todosficaramemsilêncio,tentandovisualizaraimensidadedofuturoqueBennelldescrevera.—ParecequeestamospensandocomoDeus...PensandoesonhandocomosefôssemosDeus,enão
homens—Brendanmurmurou.—E,diantedisso,quemligaparaadecisãodocampeonato,nojogodedomingo?—Parkerriu.Domtocavaasurnascomapontadosdedos,andandoàvoltadacabine.—Sóseistripulantesestavammortosquandochegaram—disse.—Lembroqueduasdessasurnas
pareciamnoschamar.Eramaquelas...—Apontou.—Continhamseresvivos;muitofracos,éverdade,masvivos.
— Sim...—Brendanconcordou,as lágrimascorrendo-lhepelo rosto.—Havia luznestasduasurnas,umaluzqueparecianoshipnotizar.Fuiconduzidoatéaquiecomoqueobrigadoacolocarasmãossobreesteanel,primeiroadireita,depoisaesquerda.Quandoobedeci...sentiquehaviavidanaurna,umfiodevida,lutandoparanãoseperderantesdenospassaros...poderes.Doladodedentrodaurna,eletambémtocouoanel,primeirocomumamão,depoiscomaoutra...eentão,afinal,cumpriuamissãoqueotrouxera.Morreuinstantesdepois.Nãoentendioqueestavaacontecendo,nemoquesentia...ignoravaospoderes...Poucodepoisapareceramosguardasenoslevaram.
—Vivos!—Bennellmalconseguiarespirar.—Sim...épossível!Doiscorposestavamreduzidosa pó... outros dois em adiantado estado de decomposição, talvez porque as câmaras de hibernaçãodesligaram-seautomaticamentenoinstanteemquemorreram...Doisestavamra,'cimenteconservados,edois...estavamperfeitos.Pareciaquesimplesmentedormiam.Masnãoimaginamosque...
— Lembro-me de tudo — afirmou Dom. — Sem dúvida, omeu também estava vivo e, quasemorrendo,mepassouospoderes.Claroqueeuesperavaserinterrogado,tertempoparapensarsobreoque acontecera e para pôr as idéias em ordem.Mas oGoverno estava tão aflito, tentando proteger apopulaçãodo“contatocomumaculturamaisadiantada”,comodiziaotalrelatório...Talvez,naverdade,tivesseapenasmedododesconhecido...Nuncativeaoportunidadedecontarissoaninguém.
Ginger olhou, umpor um, os rostos dos amigos doMotelTran-qüilidade, vendo em cada olhar apromessaquesecumpriria:nasciamosnovostempos.Ogrupoalipresenteteriaumpapelimportantenaconstruçãodofuturo,estariamunidosparasempre...Todohomemreaprenderíaaamaraopróximocomoa si mesmo. Ninguém mais se sentiria estrangeiro em nenhum canto do planeta. Já não haveriadesconhecidosondeexistissempelomenosdoishomens,umhomemeumamulher,duasmulheres,duascrianças.Gingerolhoupara asprópriasmãos,pequenas ehábeismãosde cirurgiã.Talvezestivessemperdidososanoseanosdeestudoeprática.
Queimportava?Omundojánãoprecisariademédicos,hospitais,cirurgias.Logo,quandoDomlhe
transmitisseospoderes,curariacomumsimplestoque,e,aocurar,passariaadianteosmesmosdons.Aestimativadevidadaespéciecresceriamuito...haveriagentecomduzentos,trezentos,quinhentosanosdeidade.Praticamentejánãohaveriamorte,excetotalveznoscasosdeacidentes.NenhumJacobenenhumaAnnaseriamarrancadosdepertodos filhosqueamavam.AsJenny teriamvida longa,parapartilharavelhicesaudáveleútildosmaridos.Baruch-ha-Shem...nuncamais!