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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
CENTRO DE ARTES, HUMANIDADE E LETRAS
CURSO DE CINEMA E AUDIOVISUAL
DIREÇÃO DE ARTE E O ESTUDO HISTÓRICO-ARTÍSTICO-CULTURAL
PARA A CARACTERIZAÇÃO E AMBIENTAÇÃO DE POVOS ANTIGOS.
Anna Terra Peixoto Paiva
Monografia produzida como requisito
parcial para a conclusão do Curso de
Graduação Cinema e Audiovisual, sob a
orientação da Prof. Dra. Angelita
Bogado.
Cachoeira - BA
Março de 2018
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DIREÇÃO DE ARTE E O ESTUDO HISTÓRICO-ARTÍSTICO-
CULTURAL PARA A CARACTERIZAÇÃO E AMBIENTAÇÃO DE
POVOS ANTIGOS.
Trabalho de conclusão de curso aprovado como requisito parcial para a obtenção do grau de
Bacharel no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia pela
seguinte banca examinadora:
Coordenador do Curso
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Adriano Anunciação de Oliveira
Banca examinadora
______________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Angelita Maria Bogado (Orientadora)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Adriano Anunciação de Oliveira (Membro interno)
______________________________________________________________________
Glenda Nicácio (Membro externo)
Março/2018
Cachoeira- Bahia
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RESUMO
A proposta dessa monografia é apresentar uma reflexão inicial sobre a construção da arte
em filmes ambientados em períodos antigos, buscando um olhar diacrônico das
problemáticas que essa representação envolve em suas diversas camadas. O recorte
selecionado consiste na representação do povo Persa, sendo o texto dividido em duas
etapas: Na primeira, é apresentado o Orientalismo e as problemáticas de representação e
estudo que ele traz durante seu desenvolvimento histórico, refletindo no cinema da
atualidade. Na segunda etapa, a direção de arte aparece como uma importante construtora
da narrativa, mapeando caminhos de ação que um diretor pode tomar na representação de
povos antigos. Através da identificação desses caminhos na arte de filmes previamente
selecionados, e finalmente discute-se como e sob qual pretexto o diretor de arte realizou
essa escolha, refletindo sobre como o estudo da história da arte é importante nessas
construções, assim como atrelar sempre as questões que o presente traz quando se estuda
o passado.
Palavras-chaves: Direção de Arte, Cinema, História da arte, Orientalismo, Arte Persa.
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ABSTRACT
This monograph proposal is to introduce a inicial reflection about the art construction in
movies seted in ancient periods, searching for a diacronic look of the problematics that
this representation involves on many layers. The clipping consists in the representation
of the persian nation. The text is cloven in two parts: the first, is introduced the
Orientalism and the problematics of representation and studies that it brings through this
historical development, reflecting on the actual cinema. On the second part, the art
direction apears as an important narrative builder, mapping action paths that a director
can take on old nations representation and finaly, discuss as and under what pretext the
art director realized this choice, reflecting about how the art history study is important on
those constructions, as how to relate the questions that the present brings when we study
the past.
Key words: Art direction, Cinema, Art History, Orientalism, Persian art.
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AGRADECIMENTOS
Durante o processo de escrita desse trabalho, foram fundamentais as ajudas externas que
recebi. Perante a um tema não muito trabalhado foi indissociável o auxílio de diversos
colegas e professores, além do apoio dos meus amigos e familiares.
Sendo assim, quero agradecer aos meus professores da Universidade de Lisboa pelos
ensinos e orientação durante o período do curso, principalmente à professora Teresa do
Vale. Quero também agradecer a todos os meus professores da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, por me acompanharem durante esses anos, me dando não apenas
ensinamentos, mas conselhos e orientação durante meus anos de curso, bases que me
fizeram crescer em diferentes aspectos e ser capaz de pensar o cinema de diferentes
formas e com diferentes enfoques. Entre eles, quero agradecer a professora Fernanda
Martins e a professora Rita Lima por se animarem com a minha área de pesquisa e me
encorajarem nela. Também quero agradecer ao professor Marcelo pelas diversas
conversas e orientações; a professora Amaranta por constantemente nos fazer olhar para
o cinema com um viés político, sempre discutindo a representação e como filmar as
realidades que não são, propriamente, as nossas. Aspecto que tentei manter em mente em
todo o processo. Aos professores Adriano e Ana Paula, quero agradecer por passarem
trabalhos nos quais o meu tema pode ser explorado, me permitindo exercitar a minha
visão sobre a ambientação persa. A todos os professores não citados agradeço por me
emprestarem seus olhos e ampliarem a minha visão analítica sobre os filmes, me fazendo
capaz de compreender melhor o mise en scène cinematográfico. Por fim, agradeço ,acima
de tudo, à professora Angelita, por ter me dado bases que me permitiram sobreviver aos
anos de graduação, quando eu não sabia nada sobre o cinema e sua linguagem, e por fim,
por me orientar nesse processo, tendo paciência com as minhas falhas e permitindo que
eu pudesse realizar meu desejo de escrever sobre o tema que eu escolhi, unindo as duas
universidades e áreas que amo trabalhar.
Agradeço também aos meus colegas de curso pelos infinitos ensinamentos diversificados,
aos meus amigos: Letícia Oliveira E Silva, Mari Sá, Marília Marques, Dona Gilca (in
memorian), Liz Riscado, Léo Costa, Thamires Santos, Ulisses Arthur, Amanda Brito,
Sarah Andrade, Helen Souza, Tia Nalva e Dona Dilma, por me acolherem e por todo o
apoio, fazendo com que eu crescesse tanto pessoalmente quanto artisticamente. Obrigado
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por todas as conversas longas, sobre diversos temas, que sempre me deram muito a
pensar, alguns eu poderei rever e isso me alegra, outros me farão muita falta. Também
agradeço aos meus veteranos, e principalmente à Fernanda Martins (Fefa), Glenda
Nicácio e Camila Camila pelas infinitas orientações que me permitiram seguir na direção
de arte, quando nosso curso ainda não tinha a professora Dorotea Bastos para isso. À
Mbeni Waré agradeço por todo o suporte e paciência durante esse período final,
conservando a nossa casa aconchegante e me mantendo sempre ciente da necessidade que
o corpo tem de receber alimentos periodicamente, quase uma mãe.
Para fora de Cachoeira, agradeço à minha família pelo eterno apoio e suporte,
especialmente ao meu primo Péricles Almeida Jr por me disponibilizar sua conta no
Word, sem a qual nada disso seria possível. Também agradeço ao meu grupo de amigos
que compartilham meus gostos por culturas distantes (vulgo K7s) pelo apoio infinito
durante esse processo, ouvindo meus desabafos e aliviando minha tensão. Principalmente
Juliana, Rebeca e Thaís por se prontificarem a ler o meu trabalho e me ajudar no
português. Muito obrigada! Um “obrigada” extra aos amigos que dividem a patrulha da
noite comigo.
Também quero agradecer aos professores Denis Correa de história na UFRB, por todo o
período que estava em Cachoeira se manteve a disposição, me orientando quanto a textos
e as bases de história, além de conversar por horas comigo sobre Pérsia. Agradeço
também ao professor Pedro Leão da Costa Neto (Universidade Tuiuti do Paraná), por se
disponibilizar e me orientar com leituras essenciais para o texto. Assim, como devo
agradecer a todos os autores da minha bibliografia, por terem realizado esses trabalhos
antes de mim, possibilitando bases para o estudo que eu sempre gostei de fazer. À Maria
de Fátima Rodrigues Pereira, agradeço pela suavidade com que apresentou o primeiro
livro de história da arte “confiável”, sempre apaixonada, e como resultado me fez querer
profundamente seguir estudando história da arte..
Agradeço também a todos os professores, desde o fundamental, que sempre me
incentivaram e me presentearam com tantas bases. Os de gramática, agradeço por terem
tentado.
Por último agradeço aos meus avós, pelo suporte infinito, pelo amor e por todo exemplo
que são na vida de toda a nossa família. A minha avó agradeço também por me dar os
livros que influenciaram tanto nos meus gostos, sempre incentivando meus estudos, e ao
meu avô agradeço, entre outras infinitas coisas, por voltar até o aeroporto e pagar fortunas
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de taxi para recuperar o livro de Mourreau que eu esqueci lá. Isso nunca será esquecido,
sem você esse trabalho estaria arruinado. A minha avó Veronica e meu tio José Álvaro,
agradeço pelo apoio e por estarem sempre na minha mente, me fazendo querer terminar
mais rápido o trabalho para voltar a vê-los. A minha irmã, Brisa Paiva, agradeço por
pacientemente suportar a minha ausência como sua companheira durante esse período, e
ao meu pai, Manoel Paiva, além de todos os motivos extras TCC, pelas constantes
orientações e ligações a toda hora, ouvindo meus desabafos, me aconselhando e
acreditando em mim.
Por fim, agradeço a minha mãe por motivos demais, mas além de ter me criado, gerado,
e passado por tudo que passou para se manter forte por mim, agradeço também por ter
tão cedo na infância me presenteado com diversos livros de arte e mitologia para crianças,
por ter lido tantas boas histórias para mim, por ter me inspirado com seu constante e
apaixonado trabalho. Por ter me feito sempre querer saber mais, estudar mais, e um dia
ter seu conhecimento e força. Agradeço também por sempre me orientar academicamente,
sempre trazer discussões ou sugeri-las, me fazendo querer estudar mais, me permitindo
conhecer ótimos professores, me incentivando desde sempre a escrever, aceitando meus
estudos mesmo quando não lhe apeteciam, lendo e corrigindo meus textos, criticando
sempre com muito amor e pontuando todas as questões nas quais eu poderia q me
aprofundar. Nenhum agradecimento nunca bastaria a todas as orientações que já me deu
para a vida pessoal e acadêmica, sempre como uma mãe e professora. Mesmo com
infinitas desavenças e pensamentos diferentes, é a pessoa que mais me inspira, e muito
obrigada por isso. É uma grande falha minha se você não já souber.
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Figura 1 Mercado árabe no filme Jumanji: bem vindo a selva.................................................... 24
Figura 2: Eugene Levy como sr.Habib em O pai da Noiva 2...................................................... 25
Figura 3: Comparação da representação de Judeus e Árabes. ..................................................... 26
Figura 4: Cena do filme No Rio Vale Tudo (1987) .................................................................... 31
Figura 5: Anitta em Sua Cara (2017) .......................................................................................... 33
Figura 6: Ríton de ouro (séc. v. a. C), dinastia aquemênida, decorado com leão alado. (Museu
Arqueológico, Teerão). ............................................................................................................... 44
Figura 7: Marcus Pitombo como Rei Assuero com Ríton em mãos em A História de Ester
(imagem promocional) ................................................................................................................ 45
Figura 8: Capitel aquemênida do palácio de Antaxerxes II em Susa, de mármore acinzentado.
(Museu do Louvre, França.) ........................................................................................................ 46
Figura 9: Poltrona do Rei Assuero em A História de Ester. ........................................................ 46
Figura 10: Coroa do rei persa em Príncipe da Pérsia: As areias do tempo. ............................... 48
Figura 11: Nicho onde adaga das areias do tempo é guardado em Príncipe da Pérsia. ............. 50
Figura 12: Exemplo de merlão em detalhe da escadaria do palácio de Apadana, em Persépolis.
..................................................................................................................................................... 51
Figura 13: Exemplo de coroa real com disco solar que representa o deus Ahura Mazda. Relevo
em disco de cobre (British Museum, Londres). .......................................................................... 52
Figura 14: Exemplo de coroa persa em, relevo, Bisuntun – Irão, detalhe de Dario o Grande, Sec.
VI a.C. ......................................................................................................................................... 53
Figura 15: Coroa simples. Rei diante do altar do fogo, a figura alada é a representação do deus
Ahura Mazda (VI - IV a.C). Relevo (Biblioteca Nacional, Paris). ............................................. 54
Figura 16: Screenshot de Nizan entrando no tempo dos Hassansins. Atrás dele podemos ver a
imagem de uma fênix na parede. Príncipe da Pérsia: As areias do tempo. ................................ 56
Figura 17: Gregas. ....................................................................................................................... 60
Figura 18: Paulo Gorgulho como Hamã, em A História de Ester. No colete vemos a decoração
com gregas. ................................................................................................................................. 61
Figura 19: Bracelete persa Aquemênida (datado entre 500 a.C. e 400 a.C, ouro maciço, parte do
Tesouro de Oxus (Museu Britânico – Londres) .......................................................................... 63
Figura 20: Aridai, Amalequita interpretado por Paulo Nigro em A História de Ester ................ 64
Figura 21: Aguague, Amalequita interpretado por Raymundo de Souza em Rei Davi (2012) ... 64
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SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................................... 11
1. QUESTÕES DO ESTUDO E REPRESENTAÇÃO DE POVOS ANTIGOS .......................................... 14
1.1-Orientalismo e colonização ................................................................................................... 14
1.1.2 – Questões levantadas pela crítica do Orientalismo. ......................................................... 19
1.2- Orientalismo no cinema – representação e problematização. ............................................ 23
1.2.1- Importância do estudo histórico cultural e da arte: ......................................................... 36
2. TIPOS DE AMBIENTAÇÃO – REPRESENTAÇÃO: ........................................................................ 39
2.1- Reconstituição ...................................................................................................................... 43
2.2-Liberdade artística: criação intencional e consciente. .......................................................... 47
2.3- Falta – em dois níveis. .......................................................................................................... 57
2.3.1- Anacronismo – equívoco, estereótipos, exotismo. ........................................................... 58
2.3.2- Falseadora do real. ............................................................................................................ 59
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................... 68
Filmografia................................................................................................................................... 70
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Introdução
A proposta dessa pesquisa é discutir a direção de arte na construção de filmes
ambientados em períodos antigos. Compreendendo que a idealização e realização da arte
são indissociáveis ás necessidades da narrativa. Essa monografia busca refletir sobre o
trabalho de pesquisa que o diretor de arte deve desenvolver quando pretende representar
povos antigos, explicitando a importância de um olhar diacrônico sobre as problemáticas
que uma representação pode trazer.
O cinema, como uma mídia reprodutível de largo alcance, possui potencialidades
discursivas que exigem uma responsabilidade e clareza de que tudo que se produz,
consciente ou inconsciente, acaba atrelado a um contexto histórico-político. E a direção
de arte tem parte importante nesse potencial construtor ideológico. Os elementos que
compõem a mise en scène1 são absorvidos como mensagem para o espectador, e essas
mensagens vão, facilmente, além do planejamento inicial do diretor.
Para fundamentar essa discussão, a ambientação será delimitada ao campo da
representação fílmica dos persas. Este recorte visa à exposição dos problemas da
ambientação histórica a partir da crítica a alguns exemplos de representação assim
escolhidos devido a estudos anteriores que possibilitaram uma maior aproximação à
cultura persa. A partir disso, devido às questões que qualquer representação do oriente
médio levanta, o texto será dividido em dois grandes blocos:
Na primeira parte do trabalho será apresentada a questão do Orientalismo, com
base nos estudos feitos sobre o livro de Edward Said: Orientalismo: o oriente como
invenção do ocidente (1996), que faz uma ampla crítica literária, apresentando, através
de diversas citações, como os orientalistas2 acabaram por “criar” o chamado oriente
através – dentre outros meios – do estudo e da representação tendenciosos sobre esse
povo, cultura e espaço. O primeiro bloco, então, será dividido em dois pontos e dois
subtemas: O primeiro ponto apresenta o que é o orientalismo e sua relação com a
colonização do Oriente Médio. Em seguida, serão apresentadas algumas questões
importantes levantadas pela crítica ao orientalismo feitas por Said. O segundo ponto traz
1 Nessa pesquisa o conceito de mise en scène parte de David Bordwell, o termo para o autor abarca
“cenário, iluminação, figurino, maquiagem e atuação dos atores dentro do quadro.” (BORDWELL, 2008,
p.36) 2 Said define os orientalistas como o conjunto de estudiosos, escritores, viajantes, exploradores, filólogos,
homens e mulheres das mais diversas áreas do saber que escrevem (ou falam, descrevem, transcrevem,
etc) sobre o oriente.
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o orientalismo no cinema, mostrando como ele foi construído historicamente na literatura,
e passa para essa nova arte. Por fim, o segundo bloco termina discorrendo sobre a
importância do estudo histórico e do estudo da arte, a partir da experiência que
orientalismo oferece.
A segunda parte do trabalho apresenta a questão da direção de arte em si, falando
sobre a construção da arte de um filme ambientado em períodos antigos, e mapeando
quatro caminhos que um diretor de arte pode tomar ao trabalhar com esse tipo de
ambientação. Nesse momento do texto, são empregados principalmente dois produtos
audiovisuais, selecionados para exemplificar as soluções artísticas elencadas. São eles:
Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo (Mike Newell, 2010) e a minissérie brasileira A
história de Ester (João Camargo, 2010).
A partir dos exemplos tratados nesses dois filmes, serão apresentados os tipos de
ambientação/representação que o diretor pode buscar. A reconstituição, a liberdade
artística (ou criação intencional), e, por fim, as duas alternativas para se lidar com a falta:
o anacronismo e a solução falseadora do real, nos quais a monografia se encerra.
Esses quatro caminhos foram identificados pela breve análise de filmes antigos,
e corroboradas através de estudos sobre a escassa bibliografia brasileira na área da direção
de arte. Também foi necessário, para a realização da pesquisa, o estudo de uma ampla
bibliografia de base para entender a arte persa, pelo menos o bastante para a construção
desse trabalho. Foi estudado história política medo-persa, a história das antigas religiões
persas e da chegada do islamismo, e, claro, a história da arte. Foi necessário o uso de uma
extensa (mesmo que ainda incompleta e claramente não esgotada) bibliografia de tipos
diversos, que apenas comprovou o quanto o estudo da arte de uma cultura exige muito
esforço e tempo, pois ela não está desassociada da história política e cultural de um povo.
As vivências e experiências geram as obras de arte, que devem ser vistas como fruto
humano.
Enfim, para pensar a direção de arte esse estudo trabalha a história da
representação e com o estudo do oriente, para que assim o trabalho de pesquisa da arte se
entenda e se insira em seu contexto geopolítico, com isso permitindo que o pesquisador
olhe por traz das palavras de suas fontes, buscando sempre o contexto e o posicionamento
do autor. Entendendo o contexto, o texto faz um breve levantamento histórico da
representação do árabe, para assim inseri-lo no cinema. Na segunda parte, o foco está
voltado para a direção de arte, e o estudo de como essa representação é feita pela arte nos
filmes. No fim, a organização do texto reflete a abordagem metodológica, sendo o
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planejado de forma a melhor desenvolver o pensamento, perante ao lugar inicial que a
pesquisa se coloca. Aqui “lugar inicial” se refere à imaturidade das ideias, não só por uma
falha do trabalho, mas por toda a pesquisa flertar com áreas pouco desenvolvidas no
Brasil, e demandar mais tempo e leitura para a sua completa maturação.
Todos os pensamentos que o texto não é capaz de satisfatoriamente finalizar,
reflete uma pesquisa que não se completa, e não pode se completar nessa monografia.
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1. QUESTÕES DO ESTUDO E REPRESENTAÇÃO DE POVOS ANTIGOS
O trabalho de direção de arte, a caracterização dos personagens e ambientes
exigem uma cuidadosa pesquisa histórico-cultural, não apenas com o fim de representar
fidedignamente um determinado tempo e uma determinada cultura, mas para ser capaz de
imprimir no campo diegético uma visualidade que convença e dialogue para além da mise
en scène. Quando se trata de representar povos antigos, o diretor de arte precisa trabalhar
também como um historiador da arte, se atendo às conjunturas além das que determinam
as decisões de cor, de um visagismo mais atraente ou objeto de cena verossímil.
Nesse capitulo serão apontados alguns aspectos com os quais o diretor e o diretor
de arte devem estar atentos ao ambientar o mundo diégetico (de uma determinada época
histórica) que lhe foi proposto. Devido ao estudo ser delimitado ao campo da
representação fílmica dos persas, e as questões de amplitude mundial que qualquer
representação do oriente médio levanta, a pesquisa apresenta um recorte distante
(geograficamente mais do que culturalmente) de modo a levantar num objeto de estudo
específico uma questão genérica da problemática de representação.
Outro fator que reforçou a escolha do recorte foi o estudo realizado por Edward
Said, Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente (1996). A obra de Said
apresenta um cuidadoso estudo de caso, em que a representação do oriente feita pelos
orientalistas, mesmo sendo uma crítica essencialmente literária, possibilita uma
interessante reflexão sobre o trabalho de representação da direção de arte no cinema. Em
uma primeira apreciação do livro, salta aos olhos, o quanto pode ser complicado, e muitas
vezes até perigoso, o trabalho de representar uma cultura de tradição milenar, ainda que
esta seja a cultura a qual o diretor pertence.
1.1-Orientalismo e colonização
Now, this is the road that the White Men tread
When they do to clean a land –
Iron underfoot and the vine overhead
And the deep on either hand.
We have trod that road – and a wet and windy road –
Our chosen star for guide.
Oh, well for the world when the White Men tread
Their highway side by side.
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[Ora, é este o caminho que os Homens Brancos trilham
Quando uma terra vão limpar
Aos pés o ferro, a vinha sobre a fronte
E a vastidão em cada mão.
Já trilhamos esse caminho – úmido e tormentoso –
Por guia nossa estrela eleita.
Oh, que bom para o mundo quando os Homens Brancos
trilham
Lado a lado a estrada deles!]
Rudyard Kipling
Pensando na realização de um filme, no qual a narrativa volta-se para uma época
e uma cultura distante, deve-se primeiramente adotar um olhar diacrônico, ou seja, como
esta cultura se apresenta na contemporaneidade? Um povo antigo claramente não está
desconexo da história, ele possui ou reflete relações de embate no mundo contemporâneo.
Assim como não vivemos um presente contínuo desprovido de passado, o passado
também não está desprovido do presente. Para Eric Hobsbawm,
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que
vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos
fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase
todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem
qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem,
tornam-se mais importantes que nunca no final do segundo milênio.
(HOBSBAWM, 1996, p. XX)
No filme Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo (2010), dirigido por Mike
Newell e distribuído pela Disney (uma das maiores distribuidoras globais, cujo conteúdo
é grande parte feito para crianças, sendo um potente núcleo formador de opinião), o ator
principal (que personifica o “príncipe da Pérsia”) é o ator Jake Gyllenhaal, americano,
branco de olhos azuis. Trata-se de uma questão apenas de escalação de elenco? O que
legitima essa escolha?
Em 1978, Said apresenta como o estudo e a representação de toda uma
civilização pode denegrir e interferir na política e na vida dos sujeitos históricos. Fazendo
um levantamento bibliográfico dos estudos de orientalistas que o precederam, Said expõe
como o oriente acabou por ser uma invenção europeia, como esta invenção se tornou a
realidade e o retrato uno de diversos povos. Mesmo sendo um livro escrito há 30 anos,
ainda é a referência quando se quer falar sobre o estudo do oriente.
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Filólogos, exploradores, viajantes, estudiosos, escritores, poetas, artistas… O
Orientalismo foi construído por diversos indivíduos interessados pelo oriente em suas
mais diferentes formas. O Oriente podia servir de local para peregrinação, visto enquanto
um palco de espetáculo, um lugar interessante pelo exótico, pelas línguas antigas, pelas
terras santas. O Oriente proporcionava um universo extravagante, atraente para o estudo
e/ou ainda pela possibilidade de libertinagem diferente de um modelo regrado que a
Europa oferecia. Mas, quase todos os que escreveram sobre o oriente seguiram um
pensamento comum, generalizante, muitas vezes quase “enojado”, como diz Said, por seu
objeto de estudo com uma sua visão eurocêntrica, na qual o “nós”, superior ocidental, é
sempre bem distinguido do “eles” inferior oriental.
[…] Por um lado, o orientalismo adquiriu o Oriente da maneira mais
literal e ampla possível; por outro lado, domesticou esse conhecimento
para o Ocidente, filtrando-o por meio de códigos reguladores,
classificações, exemplos de espécimes, revistas periódicas, dicionários,
gramáticas, comentários, edições e traduções, tudo isso formando um
simulacro do Oriente e o reproduzindo materialmente para o Ocidente
no Ocidente. O Oriente, em resumo, seria transformado, de um
testemunho pessoal e algumas vezes deturpado de intrépidos viajantes
e residentes, em uma definição impessoal feita por todo um exército de
trabalhadores científicos. Seria transformado, da experiência
consecutiva da pesquisa individual, em uma espécie de museu
imaginário sem paredes, no qual tudo o que fora colhido nas enormes
distâncias e variedades da cultura oriental se tornava categoricamente
oriental. Seria reconvertido, reestruturado, do amontoado de
fragmentos trazidos aos poucos por exploradores, expedições,
comissões, exércitos e mercadores, em significado orientalista
lexicográfico, bibliográfico, departamentalizado e textualizado. Por
volta de meados do século XIX, o Oriente se tornara, como disse
Disraeli, uma carreira, em que a pessoa podia refazer e restaurar não
apenas o Oriente, mas a si mesma. (SAID, 1996, p.174)
Sendo assim, devemos saber: quem estuda os povos orientais? Os semitas, os
povos do oriente médio, os persas? Um rápido levantamento bibliográfico traz nomes de
autores majoritariamente de três países: França, Inglaterra e Estados Unidos. Também
aparecendo Alemanha, Portugal e Itália em menor escala. Dependendo do ano da
pesquisa, alguns países trazem mais autores sobre o tema do que outros.
Questiona-se, por que esses três países produzem mais trabalhos sobre o oriente
médio? Fica nítido que a necessidade da Inglaterra, França e Estados Unidos – as três
grandes potencias do mundo medieval (no seu final), moderno e contemporâneo – de
apossar-se das matérias primas e base energética abundantes no oriente, levou, por
conseguinte, a processos de invasão e colonização que demandaram controle econômico
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e político por meio de conflitos bélicos e de produções discursivas, nas quais funda-se o
orientalismo enquanto uma construção cultural de interesse dos colonizadores.
Assim, a colonização não apenas permitiu um maior estudo desses povos como
um maior estudo desses povos permitiu uma melhor colonização, “[…] o espaço
geográfico do oriente foi penetrado, trabalhado e apropriado. O efeito cumulativo de
décadas de um manuseio tão soberano por parte do Ocidente fez com que o espaço
oriental deixasse de ser estrangeiro para se tornar colonial.” ( SAID, 1996, p.217)
Mais do que isso, o estudo do oriente se provou historicamente como uma
potente arma de dominação.
[…] Napoleão considerava o Egito como um projeto verossímil
precisamente porque o conhecia tática, estratégica, histórica e – que não
deve ser subestimado – textualmente, ou seja, como algo sobre o que se
lê e que se conhece através dos escritos de autoridades europeias
recentes e clássicas. A questão nisso tudo, é que para Napoleão o Egito
era um projeto que adquiriu realidade na mente dele, e mais tarde nos
preparativos para a sua conquista, através de experiências que
pertencem ao reinado das idéias e dos mitos extraídos de textos e não à
realidade empírica. Os planos dele para o Egito, portanto, tornaram-se
o primeiro de uma série de encontros europeus com o Oriente nos quais
a habilidade especial dos orientalistas foi posta diretamente a serviço de
um emprego colonial funcional; pois, no momento crucial em que um
orientalista tinha de decidir se as suas lealdades e simpatias estavam
com o Oriente ou com o Ocidente conquistador, ele sempre escolheu
este último, a partir de Napoleão. Quanto ao próprio imperador, via o
Oriente apenas como tinha sido codificado, primeiramente pelos textos
clássicos e depois pelos especialistas orientalistas, cuja visão, baseada
em textos clássicos, parecia ser um substituto útil a qualquer encontro
de fato com o Oriente real.
O alistamento feito por Napoleão de várias dúzias de “sábios” para
a sua Expedição Egípcia é muito bem conhecido para precisar ser
detalhado aqui. A idéia dele era formar uma espécie de arquivo vivo
para a expedição, na forma de estudos sobre todos os temas feitos por
membros do Institut d’Égypte, que ele fundara. […] (SAID, 1996, p.
89)
Esse campo de estudos raramente foi desconexo de um interesse político-
econômico sobre o oriente. O estudo do oriente, ou melhor, o “orientalismo”, permitiu,
justificou, apoiou, valorizou, amparou (e tantos outros sinônimos) a colonização, o poder
da Europa (e da América do Norte) sobre o oriente. O que pode ser mais funcional do que
uma teoria racial que permite – por sua superioridade intelectual, moral, etc. – governar
outro povo, pelo bem e para o bem dele? Said cita o pensamento de inúmeros orientalistas
em seu livro, alguns são exemplares para o estudo desta pesquisa:
A dominação do Oriente Médio é historicamente justificada:
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Antes de mais nada, considerem os fatos da questão. Assim que surgem
para a história, as nações ocidentais demonstram aquelas capacidades
incipientes para o autogoverno […] tendo méritos próprios. […] Pode-
se olhar para o conjunto da história dos orientais no que é chamado,
falhando de maneira geral, de Leste, sem nunca encontrar traços de
autogoverno. Todos os séculos grandiosos desses países – e eles foram
muito grandiosos – Foram vividos sob despotismos, sob governos
absolutos. Todas as suas grandiosas contribuições para as civilizações
– e elas foram grandiosas – foram feitas sob essa forma de governo. Um
conquistador sucedia a outro conquistador; uma dominação seguia a
outra; mas nunca, em todas as reviravoltas da sina e da fortuna, se viu
uma dessas nações, de moto próprio, estabelecer o que nós, de um ponto
de vista ocidental, chamamos de autogoverno. Esse é o fato. Não é uma
questão de superioridade ou inferioridade. Suponho que um verdadeiro
sábio oriental diria que o governo funcional que assumimos no Egito e
em outros lugares não é uma obra digna de um filósofo – que essa obra
é um trabalho sujo, o trabalho inferior de desempenhar as tarefas
necessárias. (BALFOUR apud SAID, 1996, p. 43)
Said retoma esse tema, tratando-o como uma “visão canônica de que os orientais
não tinham tradição de liberdade.” (SAID, 1996, p.246) – logo os orientais devem ser
guiados pelos ocidentais, sob sua tutela, para atingir, talvez, o momento de sua liberdade.
Eu pretendia fazer uma nova nação, restaurar uma influência perdida,
dar a 2º milhões de semitas a base sobre a qual erigir um inspirado
palácio de sonhos com os pensamentos nacionais deles. […] Todas as
províncias subjugadas do Império não valiam para mim um menino
inglês morto. Se eu tiver devolvido ao leste algum auto respeito, uma
meta, ideais; se tiver tornado um pouco de mais exigente o domínio
corrente do branco sobre o vermelho, terei deixado esses povos em
condições para a nova riqueza comum que as raças dominantes
esquecerão as suas realizações brutas, e brancos, vermelhos, amarelos,
pardos e negros estarão juntos sem desconfianças a serviço do mundo.
(LAWRENCE apud SAID, 1996, p. 246)
Esses dois trechos apontam bem como o orientalismo se encaixou na
colonização, e são reafirmados por diversas outras passagens que revelam uma certa
lógica messiânica do colonizador mártir, o salvador sobre um povo inferior e infante, que
pela falta de conhecimento, é incapaz de tomar decisões do que é melhor para si.
Por fim, os orientalistas eram aqueles que faziam a história do oriente. Não
apenas na ação: eles escreviam, criavam, moldavam sua possibilidade de grandeza ao
presentear o Oriente com a cultura e história do próprio Oriente, porém da maneira
correta, erudita, grandiosa da raça dominante ocidental. Sua colonização era isso:
Melhorar uma cultura historicamente inferior.
19
1.1.2 – Questões levantadas pela crítica do Orientalismo.
O Orientalismo trouxe em sua bagagem diversos cacoetes ideológicos, ainda não
superados, que devem ser apresentados para sua identificação na posterior arte
cinematográfica.
A) Said frequentemente traz em seu texto exemplos, na literatura ficcional,
da representação que o pensamento orientalista fez do oriental, seus líderes políticos e
espirituais, do árabe, do islamismo. A passagem escolhida para ilustrar essa representação
é a que Said fala da representação de Maomé no inferno do cânone: A Divina Comédia
de Dante Alighieri.
Maometto – Maomé – aparece no canto 28 do Inferno. Está localizado
no oitavo de nove círculos do Inferno [...]. Assim, antes que Dante
chegue a Maomé, ele passa por círculos que contém pessoas cujos
pecados são de uma ordem inferior: os luxuriosos, os avarentos, os
glutões, os hereges, os irados, os suicidas, os blasfemadores. Depois de
Maomé estão apenas os falsificadores e os traidores (o que inclui Judas,
Bruto e Cássio), antes de se chegar ao fundo do Inferno, que é onde Satã
se encontra. Maomé, portanto, pertence a uma rígida hierarquia de
males, na categoria que Dante chama de seminator di scandalo e di
scisma. O castigo de Maomé, e também sua eterna sina, é peculiarmente
repugnante: ele está sendo perpetuamente rachado em dois, do queixo
ao ânus[...]. O verso de Dante, nesse ponto, não poupa o leitor de
nenhum detalhe escatológico sobre aquilo que o castigo implica. [...]
Mas isso não é tudo o que Dante tem a dizer sobre o islã. Em uma
passagem anterior do Inferno, um pequeno grupo de mulçumanos
aparece. Avicena, Averróis e Saladino encontram-se entre os pagãos
virtuosos que, juntamente com Heitor, Enéas, Abraão, Sócrates, Platão
e Aristóteles, estão confinados ao primeiro círculo do Inferno, para aí
sofrer um castigo mínimo (e até honroso) por não terem tido o benefício
da revelação cristã. [...] Mesmo que o Corão especifique Jesus como
um profeta, Dante prefere considerar os grandes filósofos e o rei
mulçumano como fundamentalmente ignorantes do cristianismo. [...] (
SAID, 1996. p.79)
B) O orientalismo costuma tratar o oriental como um povo uno. Que segue
uma só religião. Todo árabe é mulçumano, o islamismo é um só e a palavra “islã” pode
“significar ao mesmo tempo uma sociedade, uma religião, um protótipo e uma realidade.”
(SAID, 1996, p. 303) – Os próprios indivíduos orientais são uma massa genérica amorfa
de características em comum.
[…] O orientalista inspeciona o Oriente desde cima, com vistas a
apreender todo o panorama que se estende diante dele – cultura,
religião, mente, história, sociedade. Para fazer isso, ele precisa ver cada
detalhe por meio de um conjunto de categorias redutivas (os semitas, a
20
mente mulçumana, o Oriente, e assim por diante). Visto que essas
categorias são primariamente esquemáticas e eficientes, e posto que se
presume mais ou menos que nenhum oriental pode conhecer a si mesmo
como o orientalista pode, qualquer visão do Oriente, em última
instância, passa a depender, para a própria coerência e força, da pessoa,
instituição ou discurso a que pertence. Qualquer visão abrangente é
fundamentalmente conservadora, e já observamos de que modo, na
história das idéias sobre o Oriente Próximo no Ocidente, essas idéias
mantiveram-se a despeito de quaisquer provas contra elas. (Na verdade,
podemos argumentar que elas produziram provas da própria validade.)
(SAID, 1996, p.245)
Um breve exemplo:
“Os árabes não se mostram como pessoas que acreditam facilmente,
mas como pessoas teimosas, materialistas, que questionam, duvidam e
zombam de suas próprias superstições e costumes, que gostam de
provas do sobrenatural – e tudo isso de uma maneira curiosamente leve
de espírito, quase infantil.” (MACDONALD apud SAID, 1996, p.252)
C) Posteriormente na história, o orientalismo ainda fez mais: Legitimou, das
mais diversas formas, o ódio americano por essa gente “inferior”, “agressiva”,
“infratora” e “desnecessária”:
[…] De um estereótipo vagamente delineado como um nômade
montado em um camelo a uma caricatura aceita por todos, de
encarnação da incompetência e da derrota fácil: esta era toda a latitude
concedida ao árabe.
No entanto, depois da guerra de 1973, o árabe apareceu por toda a parte
como algo mais ameaçador. Caricaturas apresentando um xeque árabe
de pé atrás de uma bomba de gasolina surgiam repetidamente. Esses
árabes, contudo, eram claramente “semíticos”: os seus narizes
nitidamente aduncos e o malvado olhar de soslaio encimando um
bigode eram lembretes óbvios (para uma população em sua maioria não
semítica) de que os “semitas” estavam por trás de todos os “nossos”
problemas, que neste caso se traduziam principalmente por uma falta
de gasolina3. A transferência do animo popular anti-semita de um alvo
judeu para outro árabe foi feita suavemente, posto que a figura era
essencialmente a mesma. (SAID, 1996, p.290)
O que há de melhor para explicitar o poder cultural do orientalismo que a
representação do árabe no cinema americano? Podemos ver inúmeros personagens, com
vestimentas genericamente do oriente médio, morrendo em massa como apenas
obstáculos a serem superados em uma compilação sobre o tema que aparece no
3 Uma série de conflitos envolvendo os produtores de petróleo da OPEP (Organização dos Países
Exportadores de Petróleo), no Golfo Pérsico, geraram uma inflação nos valores em 1973, que chegou a
aumentar 400% em cinco meses. O que gerou uma recessão nos Estados Unidos e Europa,
desestabilizando a economia mundial.
21
documentário-entrevista Edward Said On Orientalism de 1998, feito pelo professor Sut
Jhally. Como essa prática pode soar errada se gerações de escritores já a legitimaram?
[...] O sistema de ficções ideológicas que venho chamando de
orientalismo tem sérias implicações, não só por ser intelectualmente
desabonador. Pois os Estados Unidos, hoje, estão pesadamente
envolvidos no Oriente Médio, mais que em qualquer outro lugar da
terra: os peritos em Oriente Médio que aconselham os planejadores
estão imbuídos de orientalismo até quase o último deles. [...] (SAID,
1996, p.325)
D) Said ainda traz a questão de o próprio estudioso oriental acabar por se ver
como o orientalismo o apresenta: “as páginas dos livros e jornais em língua árabe (e sem
dúvida em japonês, em diversos dialetos indianos e em outras línguas orientais) estão
cheias de análises de segunda categoria feitas por árabes sobre ‘a mente árabe’, ‘o islã’ e
outros mitos” (SAID, 1996, p.326). No fim, “o Oriente moderno, em resumo, participa
de sua própria orientalização.” (SAID, 1996, p.329) e não importa ao ocidente como o
Oriente “é”, é posta sobre ele a concepção do que o ocidente acha que ele é, ou vê como
sendo o Oriente, e assim o oriente perde sua realidade sob a “nossa” concepção do que
é o “eles”.
Soma-se a esta questão o fato de que a própria universidade no mundo árabe é
uma instituição, que assim como a maior parte dos países colonizados é “[…] geralmente
administradas de acordo com um padrão herdado de uma ex- potência colonial, ou no
passado imposto por ela diretamente” (SAID, 1996, p.327) só que essas universidades
acabam vivendo em uma realidade muito mais precária. Poucos estudantes “promissores”
que conseguem passar pelo sistema são incentivados para terminar seus trabalhos nos
Estados Unidos ou na Europa, o que faz com que:
[…] Na medida em que se possa fazer uma generalização abrangente,
as tendências sentidas da cultura contemporânea no Oriente Próximo
guiam-se por modelos europeus e americanos. Quando Taha Hussein
disse, em 1936, que a cultura árabe moderna era europeia, e não
oriental, ele estava registrando a identidade da elite cultural egípcia, da
qual ele era um membro tão distinto. O mesmo vale para a elite cultural
árabe de hoje, embora a poderosa corrente de idéias anti-imperialistas
terceiro-mundistas que se apoderou da região desde os anos 50 tenha
temperado o fio ocidental da cultura dominante. Além disso, o mundo
árabe e islâmico ainda é uma potência de segunda categoria em termos
de produção cultural, conhecimento e erudição. Nesse ponto temos de
ser completamente realistas sobre o uso da terminologia da política de
poder para descrever a situação resultante. Nenhum estudioso árabe ou
islâmico se pode dar ao luxo de ignorar o que ocorre nos periódicos
eruditos, institutos e universidades americanos e europeus; o contrário
22
não é verdade. […] O resultado previsível disso tudo é que os estudantes
orientais (e os professores) ainda querem vir e sentar-se ao pé dos
orientalistas americanos, e mais tarde repetir para as suas audiências
locais os chavões que eu venho caracterizando como dogmas
orientalistas. Esse sistema de reprodução torna inevitável que o
estudioso oriental use a sua formação americana para sentir-se superior
ao seu próprio povo, pois ele é capaz de “controlar” o sistema
orientalista; em suas relações com seus superiores, os orientalistas
europeus ou americanos, ele continuará sendo apenas um “informante
nativo”.[...] (SAID, 1996, p. 327,328)
Como se pode notar, há diversas maneiras de se manter uma dominação cultural.
No fim, o orientalismo vira a verdade absoluta sobre o oriente, tão presa na mente de
estudiosos, artistas e autores que questionar essa verdade se tornou quase impensável por
muito tempo. O orientalista “não só se apropria dele [oriente] como o representa e fala
por ele” (SAID, 1996, p.182). Agora, como isso foi possível? Como questões que hoje
parecem de senso comum puderam se tornar praticamente dogmas sobre um ambiente
enorme e sociedades diversas que não existe se não na mente do orientalista e dos
consumidores do orientalismo? Simples: A repetição e propagação continuada por anos
de um pensamento, pelo qual por gerações os orientalistas não buscaram suas fontes no
oriente real, mas com referências em textos de outros orientalistas diversos que repetiam
as mesmas ideias bases, assim se perpetuou e solidificou o orientalismo, assim se permitiu
que a interpretação sobre o oriente fosse uma visão amorfa e preconceituosa que
permanece ainda hoje.
um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos – em
resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas,
transpostas e embelezadas poética e retoricamente e que, após muito
uso, parecem firmes, canônicas e obrigatórias para um povo: as
verdades são ilusões sobre as quais já esquecemos que isso é o que elas
são. (NIETZSCHE apud SAID, 1996, p.209)
Dessa forma, indaga-se: Quanto o cinema colaborou e participou na construção
desse exército de ilusões?
Antes de passar para o próximo capitulo é de suma importância – principalmente
perante as questões atuais de representação – finalizar esse sub capítulo, lembrando que,
no final de seu livro, Said coloca que os fracassos metodológicos do orientalismo não
devem ser justificados pelo oriente que o ocidental retrata, ser diferente do oriente real.
A questão é: é possível existir algo como um oriente real, ou verdadeiro? Said na
realidade argumenta “que ‘o Oriente’ é em si uma entidade constituída” (SAID, 1996, p.
326) e também defende que “a noção de que há espaços geográficos com habitantes
23
indígenas radicalmente ‘diferentes’ que podem ser definidos com base em uma religião,
cultura, ou essência racial próprias desse espaço geográfico é altamente discutível.”
(SAID, 1996, p. 326). Ele também adiciona em seu texto que não pretende fazer “uma
afirmação do necessário privilégio de uma perspectiva ‘interna’ sobre uma ‘externa’”
(SAID, 1996, p. 326) e inclusive finaliza com: “Eu certamente não acredito na proposição
limitada segundo a qual apenas um negro pode escrever sobre negros, um mulçumano
sobre mulçumanos e assim por diante.” (SAID, 1996, p. 326).
1.2- Orientalismo no cinema – representação e problematização.
No capítulo anterior, colocou-se a questão da representação do árabe e como ela
se propaga no cinema como uma repetição desses anos de orientalismo.
No início do ano de 2018, uma continuação de Jumanji – Jumanji:Bem-vindo à
selva (2017), dirigido por Jake Kasdan – estreou nas salas de cinema comercial do Brasil.
O primeiro Jumanji se tornou um filme famoso e aclamado pelo público, com
carismáticos personagens que se veem presos em um jogo de tabuleiro mágico e perigoso,
onde cada comando do jogo se torna um perigo real e material. Pois bem, a adaptação traz
uma questão importante: ninguém mais gosta de jogos de tabuleiro (segundo o primeiro
jogador). Estamos no mundo moderno de 1996. Para se adaptar ao mundo moderno, o
jogo mágico maligno se torna um cartucho para determinado modelo de videogame da
época, que mais tarde, adolescentes jogam e mais uma vez se veem presos dentro do jogo.
Só que agora, no mundo “virtual” do vídeo game que se materializa, enquanto eles são
novos “avatares” que em suas relações originais de “poder” se invertem (a bonitinha se
torna um cara gordo, o atleta um pesquisador, a nerd uma mulher sedutora, e o nerd
magrelo se torna o musculoso Dwayne Johnson). O relevante para essa pesquisa não é a
narrativa, mas sim ressaltar que em determinada fase do videogame (como se sabe, jogos
de videogame geralmente exigem que você passe por determinadas fases e realize
determinados “quests”/missões para poder vencer o jogo) os personagens se veem tendo
que ir a um mercado.
Logicamente, o mercado, no meio de uma selva, era um mercado cujo modelo é
característico do oriente médio e que chegam até nós através do cinema. E, nem só com
direito a turbantes, encantamento de cobras, véus, mas também com a adição de vários
povos e nacionalidades circulando. A única justificativa da narrativa, é talvez referenciar
a franquia de Indiana Jones, e claro: há um mercado, tem que ser árabe.
24
Figura 1 Mercado árabe no filme Jumanji: bem vindo a selva.
Fonte: https://www.traileraddict.com/jumanji-welcome-to-the-jungle/featurette-bazaar
Em Príncipe da Pérsia4 ,o personagem que mais se assemelha à fisionomia árabe
(o ator Alfred Molina, filho de um italiano e um espanhol) aparece como um mercador
mercenário, que serve de apoio ao personagem principal (junto ao único outro ator negro),
e o ator de ascendência mista indiana é o vilão enquanto os heróis e o personagem
principal são atores americanos ou ingleses de sotaque britânico. Na realidade,
praticamente todo o elenco é do reino unido, ou britânico e/ou americano, com variações
apenas nas ascendências.
No documentário (indispensável para o estudo da representação do árabe no
cinema) Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People (2006), dirigido por Sut
Jhally, funciona como uma extensão do livro de mesmo nome escrito por Jack Shaheen,
nele vemos uma lista interminável de filmes nos quais a vilania árabe é reforçada. Nesse
documentário, é chocante a quantidade exorbitante de filmes cujo trabalho flerta com
chavões do orientalismo, um perigoso e consistente padrão no qual o árabe é em maior
ou menor medida, o causador dos problemas americanos. E muitas vezes nem há uma
motivação válida para isso em seu roteiro. Não só de forma política. Não só um terrorista
vil, o árabe compra a sua casa (toma seu espaço) para destruí-la (como O pai da noiva 2
(Charles Shyer, 1995). É interessante observar que a Palestina foi dividida em um “estado
4 Adotaremos constantemente, a partir de agora, apenas o nome Princípe da Pérsia para nos referirmos ao
Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo.
25
judeu” e um outro “estado árabe
através de uma decisão das
Nações Unidas pós segunda
guerra, que simplesmente
“criaram” o Estado de Israel e o
“entregaram” aos Judeus em
1948, portanto, resolvendo toda a
questão nazifascista e o
“problema” que o judeu era na
Europa, os mandando de volta para a sua terra sagrada que já não era “sua” a mais de um
milênio. Com efeito, Eles tiram os palestinos de suas casas e ainda apoiam o Estado do
Israel, associando o problema da palestina como uma questão nazista.
Shaheen ainda mostra como as imagens de ódio contra o judeu, se transformam
em imagens de ódio contra o árabe, com a única adição de um turbante em suas cabeças.
Figura 2: Eugene Levy como sr.Habib em O pai da Noiva 2
Fonte: https://getyarn.io/yarn-clip/3c823ae6-20a3-4411-ab05-
88f5ee4d674d
26
Figura 3: Comparação da representação de Judeus e Árabes.
Fonte: Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People (Sut Jhally, 2006),
A vilania pode até vir mais simples em uma comédia: o árabe sendo o sujeito
irritante acompanhado de várias belas mulheres, que rouba o direito americano às “suas”
mulheres ao constantemente “conquista-las” e casar com elas, e lógico, possivelmente
várias, já que um harém repleto de esposas é o básico da cartilha de todo árabe, como
mostram filmes como Cannonball Run 2 (Hal Needham, 1981), Jewel of the Nile (Lewis
Teague, 1985), entre outros. Para esse fim, eles podem também optar pelo rapto das belas
americanas, um exemplo seria Sahara (Andrew V. McLaglen, 1983). Além de, entre
tantos males, estarem hediondamente para todo lado nas capitais americanas, são
numerosos, e isso é simplesmente irritante e perturbador, como pode ser constatado em
27
The Bonfire of the Vanities (Brian De Palma,1990) Chapter Two (Robert Moore, 1979).
E não apenas isso como eles estão “comprando a América”, o que está claro no
premiadíssimo filme Network (1976) dirigido por Sidney Lumet.
Uma mulher árabe, bonita, quase sempre contém um subtexto: Cuidado! Ela
deve ser uma terrorista ou torturadora. O árabe é perigoso, ou tolo, ou tolo e perigoso
como é o caso de True Lies (James Cameron, 1994), que adora matar judeus, sempre com
muito sangue e carnificina nas cenas. Contudo, as vítimas palestinas, os campos de
refugiados, seu sofrimento e humanidade, isso raramente aparece. O papel de vilania
quase sempre é representado por um palestino. Até mesmo uma criança vítima de uma
chacina é culpada, pois ela segura uma arma, ela ataca o exército americano na trama de
Rules of Engagement (William Friedkin, 2000) e justifica: porque matar os americanos,
civis ou militares, é dever de todo mulçumano (essas últimas palavras que estão no filme).
Há guerra na Palestina? Não faz sentido, o povo é violento, incompreensível. Essa postura
americana retoma a primeira parte do estudo quando faço referência a Hobsbawm:
Parecem ter completa perda de sua memória histórica.
Nos filmes e na televisão o árabe é associado à libidinagem ou a
desonestidade sedenta de sangue. Aparece como um degenerado super
sexuado, capaz, é claro, de intrigas astutamente tortuosas, mas
essencialmente sádico, traiçoeiro, baixo. Traficante de escravos,
cameleiro, cambista, trapaceiro pitoresco: estes são alguns dos papeis
tradicionais do árabe do cinema. O chefe árabe (de saqueadores, piratas,
insurgentes “nativos”) muitas vezes visto rosnando para o herói e a loira
ocidentais capturados (ambos impregnados de integridade): “Meus
homens vão matar vocês, mas… eles gostam de se divertir um pouco
antes”. Enquanto fala, ele olha sugestivamente de soslaio: esta é uma
degradação comum do xeque feita por Valentino. Nos filmes ou nas
fotos de notícias, o árabe é sempre visto em grandes números. Nenhuma
individualidade, nenhuma característica ou experiência pessoal. A
maior parte das imagens apresenta massas enraivecidas ou miseráveis,
ou gestos irracionais (logo, desesperadoramente excêntricos). À
espreita, por trás de todas essas imagens, está a ameaça da jihad.
Resultado: Um temor de que os mulçumanos (ou árabes) tomem conta
do mundo. (SAID, 1996, p.291)
Como não esquecer o famoso caso da antiga música de abertura de Aladdin
(1992)? Clássico filme americano dirigido por Ron Clements e John Musker, produzido
pela Disney. Um desenho infantil, importante deixar claro, de uma produtora que distribui
filmes para todo o mundo, inclusive para as crianças árabes. A versão atual da música
seria:
Oh I come from a land, from a faraway place
28
Where the caravan camels roam
Where it's flat and immense
And the heat is intense
It's barbaric, but hey, it's home
[Oh eu vim de uma terra, de um lugar distante
Onde caravanas de camelos atravessam
Onde é chato e imenso
E o calor é intenso
É bárbaro, mas hey, é nosso lar.]
Ainda demonstrando preconceitos, essa é uma versão mais suave dos versos
anteriores de 1992-93, que foram alterados provavelmente não pelo seu conteúdo
preconceituoso (visto que permanece) mas, pelo conteúdo adulto em um filme infantil:
Oh I come from a land, from a faraway place
Where the caravan camels roam
Where they cut off your ear
If they don't like your face
It's barbaric, but hey, it's home
[Oh eu venho de uma terra, de um lugar distante
Onde caravanas de camelos atravessam
Onde eles cortam fora a sua orelha
Se eles não gostam da sua cara
É bárbaro, mas hey, é nosso lar.]
Há, na música inicial de Alladin ainda esse trecho:
Arabian nights
Like Arabian days
More often than not
Are hotter than hot
In a lot of good ways
[Noites Árabes
Como dias Árabes
Mais frequente do que não
São mais quentes que o quente
Em vários bons sentidos.]
O personagem que canta essa música abre várias interpretações, mas devido ao
uso constante da mulher do oriente médio como sensual e exótica, além da histórica visão
do oriente médio como local libidinoso, de hábitos diferentes, furor sexual, Sodoma,
inúmeras outras referências já conhecidas... o sentido parece lógico.
[...] Quase sem exceção, toda obra contemporânea de erudição
orientalista (especialmente nas ciências sociais) tem muito a dizer a
respeito da família, da sua estrutura dominada pelos homens, e da
influência que ela exerce sobre toda a sociedade.[...]Eles [os
29
orientalistas] reconhecem o poder da família, observam as fraquezas da
mente árabe, notam a “importância” do mundo oriental para o Ocidente,
mas nunca dizem o que está implícito no discurso deles, que o que
realmente resta para o árabe depois que tudo foi dito e feito é um
impulso sexual indiferenciado. Em raras ocasiões – como na obra de
Leon Mugniery – encontramos o implícito esclarecido: que há um
“poderoso apetite sexual [...] característico daqueles sulistas de sangue
quente”. Na maior parte das vezes, contudo, a diminuição da sociedade
árabe e a sua redução a trivialidades inconcebíveis para qualquer um
que não seja racionalmente inferior são levados a cabo com base em
uma corrente subterrânea de exagero sexual. [...]O que equivale a dizer
que o único modo em que os árabes contam é como seres meramente
biológicos; institucional, política e culturalmente eles são nulos, ou
quase nulos. Numericamente, e como produtores de famílias, eles são
reais. (SAID, 1996, p.315, 316 e 317)
Essa passagem traz dois pré-conceitos. Primeiro, árabes, como já foi dito, são
numerosos, procriam absurdamente, estão em massa e vão dominar o mundo. Segundo,
apresentam a libido exacerbada, enquanto a arte humaniza, o sexo animaliza. Qual a
relação que se quer fazer quanto ao árabe? A arte deles que se enaltece é sempre a dos
tempos antigos, o estudo e a admiração vão todos para o passado, o presente se ignora. O
árabe é a sombra do que já foi, as grandes civilizações desapareceram, devem ser
governados para voltar ao brilho do passado. E, por outro lado, enquanto sua arte não
evolui, o apetite sexual “poderoso” continua intacto como nos tempos pré-históricos. Não
se organizam em sociedades, se organizam apenas em famílias e clãs, a primeira instância
social, a mais antiga, logo, atrasada. A sexualidade exacerbada em si é algo muito
malvisto na sociedade europeia, cuja base nasce ainda da cultura grega. Era essa a crítica
que os gregos faziam aos judeus5, sendo a base da criação dos sátiros, esses híbridos de
animais com humanos, tão ensandecidos pelo apetite sexual que raptavam as mulheres
gregas. Híbridos animais, não humanos, porque animais são os que não controlam suas
paixões. O árabe é visto com esse excesso, o que não se controla, o pecador.
Pouco importa se o ocidental busca esse novo lugar constantemente para ter
acesso a paixões e excessos. A questão é, na representação e estudo de outras culturas, é
constante entre os pesquisadores a necessidade de se diferenciar, se afastar, deixar claro
os limites entre o “nós” e o “eles”. Desumanizar, infantilizar, desacreditar, exotizar todas
essas práticas deixam claro a separação: “nós” não “somos” “eles”.
5 Nas aulas de arte Clássica do prof. Doutor Nuno Simões Rodrigues, aparece a informação de que, durante
as famosas olimpíadas gregas – onde os homens competiam nus – corria um boato que por serem
circuncisados o pênis dos judeus cresceria infinitamente, e pelo tamanho exarcebado que suas formas
tomariam, seriam eles seres hipersexuais. Na realidade, para o grego quanto menor fosse o órgão, mais ele
mostrava controle de suas paixões. Por isso na arte eram sempre representados em um tamanho diminuto.
30
[…] tentei levantar toda uma série de questões relevantes para a
discussão dos problemas da experiência humana: como representar
outra cultura? O que é outra cultura? Será que a noção de uma cultura
(ou raça, ou religião, ou civilização) distinta é útil, ou será que ela
sempre se envolve em autocongratulação (quando discutimos a nossa
própria) ou em hostilidade e agressão (quando se discute a “outra”)? As
diferenças culturais, religiosas e raciais são mais importantes que as
categorias socioeconômicas, ou que as político-históricas? Como é que
as ideias adquirem autoridade, “normalidade” e até mesmo a condição
de verdades “naturais”? Qual é o papel do intelectual? Seria validar a
cultura e o estado de que faz parte? Que importância ele deve dar a uma
consciência crítica independente, uma consciência crítica de oposição?
(SAID, 1996, p.330)
A partir da apresentação do que é o orientalismo, e da sua forte influência na
representação cinematográfica, uma questão que deve ser levantada é: assim como por
anos não se foi questionada a maneira de se representar o oriente médio na literatura e no
próprio estudo acadêmico, o cinema, ou melhor, quem consome e produz cinema,
continuará permitindo essa propagação na forma despreocupada e tendenciosa de se
representar o oriente?
A questão não se resume a uma escolha de atores que claramente seguem padrões
de belezas ocidentais com o uso do ocidental como oriental – quase como Griffith usando
brancos pintados de preto como negros em O Nascimento de uma nação (1915), mas
também o cuidado com o “exotizar”, com o considerar tudo o que é do oriente médio
vindo como uma só “identidade”. Todo o islamismo uma religião só, toda a arte feita e
utilizada por um povo só, em um tempo indeterminado e desimportante.
Não é só o oriente que acaba por sofrer essa visão exoticista, é possível perceber
essa mesma posição em filmes hollywoodianos que escolhem o Brasil como palco de suas
tramas, como é o caso de filmes como Lambada – A dança proibida (Greydon Clark,
1990) em que temos a ex-Miss EUA Laura Harring (de origem mexicana), representando
uma princesa indígena numa tribo brasileira americanizada, que para impedir a destruição
de sua terra por uma empresa multinacional, entra em uma competição de Lambada,
buscando assim ser ouvida. A generalização dos latinos é bem comum, os vários episódios
de Os Simpsons (1989 – presente), que se passam no Brasil trazem o hipersexualismo da
brasileira, o recorrente símbolo dos macacos, Amazônia em pleno Rio de Janeiro, além
de todo mundo dançando conga, tango, e outros ritmos de países vizinhos da América
Latina. A série, criada por Matt Groening, não difere muito de outros tantos filmes
americanos que cometem vários erros. No filme Stigmata (Rupert Wainwright, 1999),
31
nem se quer é possível identificar um Brasil com sotaque espanhol (alguns figurantes
falam espanhol), e uma população que em sua maioria claramente não é a do sudeste,
sendo, em sua maior parte, bolivianos6. A geografia brasileira no cinema consente
pirâmides maias na Amazônia, e as cataratas de Foz de Iguaçu na região central do país,
como em 007 contra o Foguete da Morte (Lewis Gilbert, 1979). E a fauna é tão
diversificada, que babuínos (Ásia e África) atacam o The Rock em Bem-Vindo à Selva
(Peter Berg, 2003), e javalis (Europa e América do Norte) aparecem no filme
Anaconda(Luis Llosa, 1997).
Entretanto, nenhum local teve essas deturpações em suas representações de
maneira tão tendenciosa quanto o Oriente Médio.
Nas representações do Brasil, é ainda mais recorrente o uso da brasileira como
o símbolo do despudor com seu enorme apetite sexual, e claro, constantes “elogios” a
anatomia sinuosa da mulher brasileira genérica. Podemos ver isso em diversos filmes e
séries, e quando não aparece uma brasileira, ela é pelo menos citada. Alguns filmes que
podem exemplificar essa postura, claramente, são sugestivos já pelo título: Blame it on
Rio (Stanley Donen, 1984) e o filme francês, No Rio Vale Tudo (Philippe Clair, 1987),
ambos com o “o” de Rio desenhado como uma marca de batom dos lábios de uma mulher.
Figura 4: Cena do filme No Rio Vale Tudo (1987)
Fonte: Screenshot do Trailer. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6HoQ5Z1OflU
6 Mesmo realmente existindo muitos bolivianos no Sudeste, no filme isso é muito além da realidade.
Quase não se identificaria um “Brasil”, se não aparecesse uma legenda indicativa antes.
32
Essa visão da sexualidade brasileira torna pertinente uma comparação ao
exoticíssimo da sexualidade árabe, e sua representação na arte narratológica. Primeiro,
em diversos trechos Said traz algumas considerações sobre o “escapismo da fantasia
sexual” (SAID, 1996, p.197) e sobre a mulher na mente do escritor viajante, falando mais
especificamente sobre a recorrência dos “chavões orientais” (SAID, 1996, p.197) tais
como: “haréns, princesas, príncipes, escravos, véus, rapazes e moças que dançam,
sorvetes, unguentos entre outros aspectos do gênero” (SAID, 1996, p.197). Em seu livro,
Said comprova repetidamente essa prática recorrente da literatura ocidental7 :
[...] mais uma vez, a associação entre o Oriente e a Liberdade sexual
licenciosa é feita às claras. Poderíamos muito bem reconhecer que para
a Europa do século XIX, com seu crescente embourgeoisement, o sexo
fora institucionalizado de modo bastante considerável. Por um lado, não
existia nada parecido com sexo “livre” e, pelo outro, o sexo em
sociedade implicava uma trama de obrigações legais, morais, e até
mesmo políticas e econômicas de uma espécie detalhada e certamente
embaraçosa. Do mesmo modo que as várias possessões coloniais –
muito além do benefício econômico que proporcionavam às metrópoles
europeias – eram úteis como lugares para onde mandar filhos
desobedientes, populações excedentes de criminosos, pobres e outros
indesejáveis, o Oriente era um lugar onde se podia procurar por
experiências sexuais impossíveis de se obter na Europa. Praticamente
nenhum dos escritores europeus que escreveram sobre o Oriente ou
foram para lá no período após 1800 furtou-se a essa busca: Flaubert,
Nerval, “Dirty Dick” Burton e Lane foram apenas os mais notáveis. No
século XX podemos pensar em Gide, Conrad, Maugham e dúzias de
outros. O que eles com freqüência procuravam – corretamente, acho –
era um tipo diferente de sexualidade, talvez mais libertina e menos
culpada; mas até mesmo essa busca, se repetida por um número
suficiente de pessoas, podia tornar-se (e tornou-se0) tão regular e
uniforme quanto a própria cultura. Com o tempo, o “sexo oriental”
passou a ser uma mercadoria tão comum quanto qualquer outra das que
estão à disposição na cultura de massas, com o resultado de que os
leitores e os escritores podiam obtê-la, se quisessem, sem terem
necessariamente de ir para o Oriente.(SAID, 1996, p. 197/198)
Podemos ampliar essa prática literária para a questão das famosas gueixas,
gisaengs, concubinas, mulheres e jovens homens asiáticos. Como apresentado
anteriormente, o exoticismo sexual é uma recorrência familiar para o Brasil, outro país
colonial8. A exploração da “beleza exótica” das brasileiras e o turismo sexual são questões
7 Cf. SAID, 1995, p. 189, 190, 194 e 195. 8 Nesse momento do texto o Brasil aparece por ser o país de origem desse estudo, mas o exoticismo ataca
também diversos outros países , principalmente os de origem colonial, como mostram, por exemplo, os
filmes Vênus Negra (2010) de Abdellatif Kechiche, e Paradies: liebe (2012) de Ulrich Seidl.
33
amplamente conhecidas e discutidas, como por exemplo, no documentário Cinderela,
Lobos e um Príncipe Encantado(Joel Zito Araújo, 2009). Também são recorrentes em
tema de novelas, como Salve Jorge (Luciano Sabino, 2012-2013) e Paraíso Tropical
(Dennis Carvalho, 2007).Ademais, no segundo semestre de 2017, surge uma colaboração
entre uma cantora famosa e “sexy simbol” brasileira e uma drag queen,também brasileira,
o grupo de música eletrônica Major Lazer e o famoso produtor musical norte-americano:
Diplo. Essa colaboração resulta em um music video da música Sua cara (2017).
Independente da qualidade da música, seu ritmo dançante e da importância de figuras
como a Anitta e Pabblo no Brasil, uma questão surge: Onde foi decidido gravar o music
video? E sob qual temática? Recorre-se mais uma vez ao Oriente médio, Dubai. Expondo,
assim, as marcas famosas do colonizador personalizadas para se encaixar na
caracterização das figuras femininas, que no videoclipe surgem como dançarinas do
imaginário ocidental, das sensuais mulheres árabes, com direito a véus e toda essa base
“exótica” que o oriente médio “oferece”. A união perfeita entre sensualismos exóticos.
Figura 5: Anitta em Sua Cara (2017)
Screnshot do mv https://www.youtube.com/watch?v=omzk3klIy0E
A relação do ocidente colonizador (o que claramente inclui os Estados Unidos)
e o oriente médio exótico já é tão natural que mal percebemos. É simples, o mercado de
um mundo fantasioso vai ser árabe, e nem vamos nos questionar mais. A odalisca, a figura
feminina com véu, o encantamento de cobras (que não entrou no videoclipe sua Cara,
34
mas nos backstages vemos que foi filmado)... Tudo isso vai ser facilmente assimilado e
transfigurado pelo pop, colocando sobre essa nova forma resultante de cultura suas
marcas de colonizador, e nem se trata mais de uma premeditação. É o natural, é um
aspecto cultural que é trazido historicamente, é familiar. Said ainda traz uma importante
contribuição quanto essa relação cultural e econômica:
[...] a relação é unilateral, com os Estados Unidos como um consumidor
seletivo de muitos poucos produtos (petróleo e mão-de-obra barata,
principalmente), e os árabes como consumidores altamente
diversificados de uma vasta gama de produtos americanos, materiais e
ideológicos.
Isso teve várias consequências. Há uma vasta padronização do gosto na
região, simbolizada não só por aparelhos transistorizados, blue jeans e
Coca-Cola, mas também pelas imagens do Oriente fornecidas pelos
meios de comunicação de massa americanos e consumidas sem pensar
pelas massas de telespectadores. O paradoxo de um árabe vendo a si
mesmo como um “árabe” do tipo produzido por Hollywood é apenas o
mais simples resultado daquilo a que estou me referindo. Outro
resultado é que a economia de mercado ocidental e a sua orientação do
consumidor produziram (e continuam produzindo em um ritmo
crescente) uma classe de pessoas educadas cuja formação intelectual é
dirigida para a satisfação de necessidades de mercado. É dada uma
pesada ênfase à engenharia, à administração e à economia, obviamente;
mas a própria intelligentsia é um acessório ao que ela mesma considera
como as principais correntes liquidas no Ocidente. O seu papel foi
prescrito e preparado para ela como “modernizador”, o que significa
que legitima e confere autoridade a idéias sobre a modernização, o
progresso e a cultura que são na maior parte provenientes dos Estados
Unidos. [...]” (SAID, 1996, p. 329)
Em outra produção do final de 2017, o filme Victoria e Abdul: O Confidente da
Rainha, 1h e 50m dirigido por Stephen Frears. O filme é baseado na história verídica de
Abdul Karim, um indiano, e a rainha Victória, da Inglaterra, imperatriz da Índia e outras
colônias orientais. A narrativa traz a vinda de Abdul para a corte inglesa,
aproximadamente no período de 1887. Embora a análise da obra traga várias questões
importantes e relevantes para o estudo do orientalismo, o momento que interessa ao
desenvolvimento do raciocínio é quando ele se encontra com o estilista da corte.
Retratando com coerência o que era a euforia produzida pelo exótico na época, esse
momento do filme mostra os dois indianos recém-chegados na Inglaterra, provando as
roupas que esse estilista inglês fez para impressionar a rainha com base em desenhos e
pinturas que retratavam os indianos. Em determinado momento, o estilista coloca uma
faixa na cintura do personagem e é quando Abdul aponta que na Índia não se usava esse
35
adereço, o homem responde que sabe disso, mas que assim eles pareceriam mais
“indianos”. Logo, eles pareceriam mais “orientais”, mais exóticos.
É possível identificar a postura desse estilista também na construção da arte
cinematográfica, como será retomado, mais adiante, no segundo capítulo.
É importante lembrar que cito aqui poucos filmes dos vários que seguem essa
lógica orientalista repleta de pré-conceitos, mas todos de grande alcance midiático,
construídos para o entretenimento de públicos de todas as idades.
Lógico que alguns filmes trazem, por sua vez, momentos bonitos e passagens de
respeito, trazendo o árabe, o mulçumano, como um ser humano honrado, digno e que
inspira respeito e admiração. Como no filme Cruzada (Ridley Scott, 2005), no qual o
Sultão do Egito e da China, o mulçumano de nome Saladino – mesmo sendo o inimigo
do povo cujo herói faz parte – se mostra respeitoso, honrado, até mesmo superior em
caráter a vários dos cristãos que seriam o “nós”. Ainda mais: Ele é colocado como um
semelhante ao grande, honrável e comprovadamente nobre rei Baldwin IV (O rei leproso).
O Filme tem uma base num período histórico real e trata da retomada de Jerusalém pelos
mulçumanos. A história narra guerras e perdas, mas de forma nobre, sem denegrir a
imagem de seu inimigo. No filme, os mulçumanos são apenas opostos em uma batalha,
opostos humanos e humanizados. Em uma cena, que foi aplaudida pela audiência quando
passou em Beirute (capital do Líbano), Saladino entra em uma igreja, após sua vitória
sobre os católicos, e vê uma cruz caída no chão. Ele levanta esse ícone e o coloca de volta
no altar. Intacto.
O líder dos mulçumanos não chuta, não destrói, ele mostra respeito ao símbolo
religioso dos Cristãos. Saladino respeita um objeto de outra cultura, e, desde o princípio
e até hoje, a arte islâmica não tem como prática comum a destruição da arte de outros
povos. Quando o islamismo surgiu, as igrejas bizantinas que se tornaram islâmicas,
permaneceram iguais, com apenas as inserções de simbologias características da arte
Islâmica sobre uma base artística otomana inalterada. Uma não apagou a outra. Os
mulçumanos tiveram como base católicos, judeus, e tantos outros convertidos de diversas
culturas seculares, e eles respeitavam suas artes, a incorporavam na sua e eram tolerantes
com a arte de outras culturas e religiões não islâmicas.
Nessa simples cena, o filme simbolicamente respeita algo que existe no mundo
real: vários judeus, católicos e mulçumanos que vivem juntos, em harmonia. Eles não se
explodem, não guerreiam, eles conversam e apertam as mãos. Logo, eles se respeitam.
Um não é “mau” e o outro é “bom”.
36
Os aplausos recebidos por essa cena no cinema da capital libanesa, apenas
enriquece o quanto esse tipo de representação do oriental, do árabe, do mulçumano, é
incomum e sua falta é sentida9. Um filme produzido em parceria com Reino Unido,
Estados unidos e Alemanha, mostrando essa cena, em um mundo onde o árabe é sempre
o vilão cruel, caricato e sem nenhuma humanidade, é muito importante.
Esse exemplo demonstra como o cinema tem um forte poder de representação,
de identificação, e de transmissão de mensagens. E ele deve ser usado com essa
consciência.
1.2.1- Importância do estudo histórico cultural e da arte:
Para a conclusão desse capítulo, é indispensável ressaltar a importância do
estudo histórico cultural, e, além disso, repensar a nossa forma de o realizar:
Um dos aspectos marcantes da nova atenção da ciência social
americana em relação ao Oriente é o fato singular de ela evitar a
literatura. Podem-se ler resmas inteiras de escritos sobre o Oriente
Médio moderno sem encontrar nunca uma única referência à literatura.
O que parece importar muito mais, para um perito regional, são os
“fatos”, dos quais um texto literário seja talvez um perturbador. O efeito
final dessa notável ausência na moderna percepção americana do árabe
ou do Oriente islâmico é manter a região e o seu povo conceitualmente
emasculados, reduzidos a “atitudes”, “tendências”, estatísticas: em
resumo, desumanizados. Visto que um poeta ou romancista árabe – e
há muitos deles – escreve sobre as experiências, os seus valores, a sua
humanidade (por mais estranho que possa ser), ele efetivamente
perturba os vários padrões (chavões, imagens, abstrações) pelos quais
o Oriente é representado. Um texto literário fala mais ou menos
diretamente de uma realidade viva. A sua força não deriva do fato de
ser árabe, ou francês, ou inglês, mas da força da vitalidade das palavras
que, para usar a metáfora de Flaubert em La tentation de Saint Antoine,
derrubam os ídolos dos braços do orientalista e fazem-no deixar cair
aquelas grandes crianças paralíticas – suas idéias do Oriente – que
tentam se fazer passar pelo oriente. (SAID, 1996, p.295)
Não só o texto literário, mas praticamente toda a forma de arte acaba por ter esse
“potencial” de humanizar, por sua força universal de linguagem sensível, humana. No
artigo “A memória, o homunculus e a arte da ficção”, Pecchinenda relata que a “arte é
9 Uma questão a ser adicionada é que, já em A Divina Comédia, é mostrado que o ocidental respeita a figura
histórica de Saladino, assim como a figura de Ciro, Dario e outros grandes líderes da história do oriente
médio. Ciro e Dario eram postos por vários historiadores orientalistas como grandes líderes, excepcionais,
e até mesmo encaixados na raça ariana como justificativa. Em alguns casos árabes ou mulçumanos são
como uma exceção a maleficência dos outros árabes, o que não deve ser desconsiderado nessa mostra de
respeito a um personagem mulçumano. Esse personagem é o histórico Saladino, não um árabe qualquer.
37
um produto que caracteriza e faz autenticamente humanos aqueles seres que, de um ponto
de vista evolucionista, conseguiram superar a pura e simples condição de
sobrevivência.”(PECCHINENDA, 2012, p.139). Em outras palavras: ver a arte de outro
povo permite que o espectador o enxergue, o perceba como humano, como sensível, como
um ser orgânico capaz de sentir alegria, tristeza, cantar, dançar, amar, pensar e abstrair,
assim como o “nós”
É muito importante a arte de um povo e o estudo dessa arte para não obliterar,
não afastar o humano. Talvez, o ideal seria prestar atenção nas similaridades, no fato de
que questões humanas estão sendo tratadas ali, mesmo com diferentes formas de
expressar sentimentos que as diferentes culturas têm – muitas vezes formas que nos são
estranhas – o sentimento está presente. O “sentir” já devia nos igualar.
O cinema pode trazer essa arte e acentuar esse valor humano, pode superar
barreiras com sua linguagem como a dominação cultural hollywoodiana nos mostra, e
como, por outro lado, a influência do cinema japonês, e mais recentemente o coreano, nos
mostra. Mesmo com suas infinitas diferenças culturais, o cinema asiático cresce cada vez
mais no mercado internacional, assim como a música. Num mundo globalizado é possível
que nada possa ser mais efetivo na união entre povos e países do que a troca cultural,
através do cinema, da literatura, da música e outras artes reproduzíveis, pode existir de
uma maneira fluida, suave sem a necessidade de mobilidade.
Outro fator importante a se considerar sempre em um estudo histórico, é a
necessidade de olhar por cima das palavras do autor, perceber o período em que ele se
encontra, as discussões que o envolve, os problemas em sua metodologia e em seu texto.
[…] O pensamento e a experiência modernos nos ensinaram a ser
sensíveis ao que está implicado na representação, no estudo do Outro,
na insensata e acrítica aceitação da autoridade e das ideias que carregam
autoridade, no papel sociopolítico dos intelectuais, no grande valor de
uma consciência cética crítica. Talvez, se lembrarmos que o estudo da
experiência humana tem uma consequência ética, para não dizer
política, no pior ou no melhor sentido, não ficaremos indiferentes ao
que fazemos como estudiosos [...]. Talvez devêssemos lembrar também
que o estudo do homem na sociedade está baseado na história e na
experiência humanas concretas, e não em abstrações solenes, ou em leis
obscuras ou sistemas arbitrários. O problema, então, é fazer com que o
estudo se ajuste à e de certo modo seja moldado pela experiência, que
seria iluminada e talvez mudada pelo estudo. A qualquer custo, a meta
de orientalizar continuamente o Oriente deve ser evitada, com
consequências que não podem senão refinar o conhecimento e reduzir
a presunção do estudioso. Sem “o Oriente” haveria estudiosos, críticos,
intelectuais e seres humanos para os quais as distinções raciais, étnicas
38
e nacionais seriam menos importantes que o empreendimento comum
de promover a comunidade humana.
Acredito positivamente – e em outros trabalhos meus tentei mostrar –
que está sendo feito o bastante hoje em dia nas ciências humanas para
fornecer ao estudioso contemporâneo visões, métodos e idéias que
possam dispensar os estereótipos raciais, ideológicos e imperialistas do
tipo fornecido pelo orientalismo durante a sua ascendência histórica.
Considero que o fracasso do orientalismo foi tanto humano como
intelectual; pois, ao ter de assumir uma posição de irredutível oposição
a uma região do mundo que ele considerava como estranha à
sua própria, o orientalismo não foi capaz de identificar-se com a
experiência humana, nem foi capaz de vê-la como experiência humana.
A hegemonia mundial do orientalismo e de tudo o que este representa
pode agora ser desafiada, se pudermos beneficiar-nos adequadamente
da ascensão geral de tantos povos da terra, verificado no século XX à
consciência política e histórica. […] Acima de tudo, espero ter
mostrado ao meu leitor que a resposta ao orientalismo não é o
ocidentalismo. Nenhum ex-“oriental” se sentira confortado pela ideia
de, por ter sido um oriental, estar propenso – demais – a estudar novos
“orientais” – ou “ocidentais” – de sua própria confecção. Se o
conhecimento do orientalismo tem qualquer sentido, é como um
lembrete da sedutora degradação do conhecimento, qualquer
conhecimento, em qualquer lugar, a qualquer momento. Hoje em dia
talvez mais que antes. (SAID, 1996, p.331e 332)
Essa longa citação traz várias considerações que Said julga importantes em seus
estudos, e que nessa pesquisa aparece como válido não só para um historiador, mas, como
ele mesmo coloca, para um estudioso. O estudo necessário para a criação da arte de um
filme não é uma exceção, pelo contrário. Enquanto mídia de arte reproduzível, nunca se
pode esquecer que o cinema é mais do que capaz de produzir e reproduzir discursos. O
estudo que se molda pela experiência humana pode também moldá-la, e o Orientalismo é
uma prova negativa dessa afirmação. As diferenças étnicas, culturais e nacionais – não só
no estudo como na arte – não devem suplantar o valor humano por trás. A representação
não pode esquecer o humano. O que Said chama como “degradação do conhecimento”
deve ser uma preocupação presente para todos aqueles que produzem arte, pois como
indivíduos políticos, o artista faz parte da história. Antes, o artista podia agir como um
retratista, a mando de um mecenas, mas no mundo moderno, o artista pode e escolhe para
quem e sobre o que sua produção fala.
39
2. TIPOS DE AMBIENTAÇÃO – REPRESENTAÇÃO:
O principal objetivo deste capítulo é apresentar alguns pontos importantes na
construção da arte, principalmente de filmes que se encontram em períodos não
contemporâneos. Como resultado de um prévio estudo da arte persa, tanto nos períodos
da dinastia Aquemênida quanto da dinastia Sassânida e da Safávida (mesmo que ainda
exigindo mais estudo), os exemplos vão se basear nessa arte para explicar os pontos aqui
apresentados. Para esse fim, foram selecionados como corpus central o filme
estadunidense Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo (Mike Newell, 2010), e a
minissérie brasileira A história de Ester (João Camargo, 2010), produzida pela rede
Record.
É importante ressaltar que as considerações feitas acerca do trabalho de direção
de arte realizado nesses filmes não têm sua validade aplicada apenas à arte persa, ou
filmes circunscritos nessa temática.
A direção de arte é essencial em um “filme de época”, futurista, ou universos
alternativos. Ela acaba sendo muito importante na construção do discurso que o filme
traz.
O ambiente não é apenas o espaço em que se passam as ações do filme
como também um conjunto de mensagens que contribuem para a
construção de uma personalidade e de uma situação, um mapa cujos
conteúdos ajudam o espectador a entender quem são aquelas pessoas e
o que vivem, mesmo que não se lembre dos detalhes que compõem o
cenário ou sequer reparem neles. É a ambientação que traz informações
sobre quem habita aquele espaço, seus gostos, qual estrutura familiar e
a classe social em que se insere. O mobiliário e os objetos que habitam
um determinado lugar se estruturam de maneira simbólica e subjetiva.
São uma sobreposição de tempos afetos e memórias, vestígios de quem
nele mora. (JUNQUEIRA, 2017, p.153)
E essa importância do cenário se estende ao figurino; “O figurino é uma
arquitetura, é tudo que veste os corpos em cena, fazendo parte da vasta e complexa rede
de signos que são impressos num filme” (JUNQUEIRA, 2017, p.156). Não é apenas para
o espectador, Thales Junqueira ainda traz: “o elenco [...] precisa estar bem convencido de
que o que veste pertence aos seus personagens ao entrar em cena.” (JUNQUEIRA, 2017,
p.156).
Ambientar não é apenas pôr um pano de fundo para que a história se desenvolva.
É trabalho da direção de arte criar elementos que permitam à narrativa se tornar real
40
naquele mundo, que permitam que tudo pareça verossímil, crível, que o espectador e os
próprios atores consigam vivenciar esse mundo diegético. O diretor de arte faz com que
ele exista materialmente antes que ele possa existir no quadro.
Atualmente muitos filmes trabalham com tecnologias e essa experiência passa a
não ser vivenciada do mesmo modo pelo ator, mas permanece sendo o trabalho da arte
gerar o mundo gráfico que torna a história válida para o espectador. O mundo gráfico
continua exigindo os mesmos esforços de pesquisa e criação, no entanto, transporta o
trabalho de criação de uma materialidade para uma virtualidade.
Contudo, a criação não parte do nada e para o nada, não apenas por questão da
necessidade de um estudo prévio histórico-cultural, mas a arte nunca é desassociada de
seu objetivo principal, faz parte de um todo orgânico:
[...] ela não é uma obra autônoma em si mesma; existe em função de
algo, ou seja, em todo o seu universo a direção de arte se justifica para
concretizar uma produção teatral, um roteiro audiovisual etc., projetos
que, até então são potencias virtuais de sentido.
Uma direção de arte bem elaborada, seja em uma montagem teatral ou
em um filme, vai evidenciar conteúdos latentes nos roteiros originais
colocando questões para o público, procurando afinidades entre
elementos semelhantes, usando conceitos de semiótica facilmente
identificáveis, ajudando a materializar o argumento. A relação entre o
espaço e a direção de arte adquiriu, tanto no teatro quanto no cinema,
uma importância-chave no desenvolvimento cênico e tornou-se um dos
principais elementos receptores da visualidade que revela o espaço do
cenário e o espaço das personagens. A direção de arte estabelece um
vínculo entre os espectadores e o produto final, muitas vezes tornando-
se ela mesma um elemento narrativo percebido por eles. (PEREIRA,
2017, p.130)
Também é preciso destacar que qualquer historiador da arte se encontra frente a
uma dificuldade básica: a falta de fontes. O que se apresenta são rastros daquilo que foi
capaz de permanecer no tempo, que os arqueólogos encontram, e os historiadores
estudam. Datando, explicando, teorizando, encaixando no mundo. Porém, muita coisa
não chega até nós.
Jaime Ginzburg, quando fala da interpretação do rastro em Walter Benjamin, traz:
[...]Se pudermos considerar o rastro como um tipo de detalhe – um
resto, um resíduo, com relação a uma trajetória –, é possível assumir
que é fundamental compreender que nele reside um componente
41
histórico. De fato, para interpretar um rastro, é necessário compreendê-
lo em sua ambiguidade temporal, entre passado e presente. Nessa
ambiguidade pode ser observado o componente histórico. Aquilo que
restou é significativo para interpretar o que ocorreu. (GINZBURG,
2012, p. 114)
O rastro dificilmente pode ser interpretado em si mesmo, sem considerar seus
vestígios de ausência-presença. Os escritos dos contemporâneos sobre os persas, por
exemplo, são principalmente realizados pelos gregos. Quem é familiarizado a
historiografia grega, sabe muito bem que a fabulação é uma parte concreta na construção
de suas narrativas, chegando a ser complicado ter certeza do que é ou não real. Quando
um homem nasce, se ele for considerado um grande imperador, ou admirado pelo autor,
o homem não apenas nasce no mais belo dia de seu ano. Uma arvore nasce no jardim. A
mais bela e de tronco mais bem constituído. Ele inclusive – como Ciro, o grande
Aquemênida que juntou os medos e persas gerando o império – ganha até mesmo uma
saga digna e bem similar a Hércules (Heráclito). Nos livros de história antiga, não apenas
os santos católicos realizam milagres. Zoroastro mesmo, não se queimava com fogo e
andava com chamas reluzentes sobre a mão; curava magicamente cavalos com seu toque.
Inclusive, outro livro relevante para o estudo de povos antigos, é a própria Bíblia.
A Bíblia serve como fonte, trazendo nomes de povos, fatos históricos, tudo na versão dos
hebreus. A narrativa bíblica é bastante similar, e segue a mesma base em seu modo de
contar história: o real e o mito se misturam, a magia se torna real, tudo é predestinado. E
se realmente o que descrevem existiu ou não, apenas os arqueólogos devem sonhar em
talvez descobrir, devido a outro empecilho no estudo de períodos antigos: a destruição
dos restos materiais.
Assim como os próprios livros se putrefizeram, e o que resta geralmente são
cópias e fragmentos, as obras de arte, quando não perecíveis, acabam sendo vítimas de
diversas intervenções históricas, principalmente no oriente médio.
O advento do sol e da chuva nada se compara ao advento das guerras, espólios,
destruição que uma civilização cometia sobre as construções de outra, derretimento dos
artefatos de metais preciosos para a construção de moedas ou até mesmo outras artes e
também os furtos. Algumas obras só chegam a ser descobertas, após anos no fundo de
algum oceano.
Há muita informação, mas muita acaba por faltar. Quando se vai estudar para
construir a arte de um filme cuja ambientação e caracterização se volta para o passado,
42
existe a demanda de um estudo profundo, e que muitas vezes é frustrado. O diretor de
arte precisa lidar com as adversidades e construir suas saídas para achar suas respostas.
[...]Em um universo de eterna fugacidade, um rastro é uma chave de
conhecimento. Ele está ambiguamente em ausência e em presença.
Sendo um resto, ele já não é mais o que foi vivido. Sua presença é
indicação de uma convergência entre o que está ausente e o que está
diante dos olhos. Tratar um objeto como rastro implica admitir que ele
tem mais de um significado possível. Além de sua presença imediata,
nele se encontra uma cifra, que pode ser tomada como condição para
entender o que houve ou supor o que haverá. (GINZBURG, 2012, p.
112)
O diretor de arte pode manejar conscientemente as informações que possui, as
ausências e presenças, e optar por não realizar um trabalho de reconstituição do passado,
mas criar um mundo antigo com base em referencias:
Na transfiguração de dados da dramaturgia em imagens, cria-se uma
unidade visual para o filme, uma gramática própria que atende aos
contextos sociopolíticos, históricos e psicológicos em que a história
acontece, a partir de signos que valorizam a apreensão do filme.
Acredito que a direção de arte funciona quando é capaz de criar sentidos
nos ambientes em que se passa a história, de maneira que o espectador
identifique referências e tenha uma apreensão convincente, cumprindo
uma função narrativa. Isso não significa, claro, que a direção de arte só
atenda ao filme na medida em que seja capaz de elaborar um contexto
naturalista, reconhecível. Dependendo do filme e da proposta que o
diretor idealize, ela pode atuar no sentido oposto ao da verossimilhança,
rompendo com o que pode promover familiaridade, buscando não a
identificação, mas o estranhamento, ultrapassando os limites da
identificação. De toda maneira, a visualidade de um filme funciona
quando convence, fazendo o espectador acreditar na autenticidade do
que se vê, seja através do naturalismo ou do artifício. (JUNQUEIRA,
2017, p.151)
Sendo assim, nessa pesquisa são apresentados quatro caminhos que um diretor de
arte pode escolher trabalhar no seu processo criativo. Eles podem dialogar e se misturar
dentro dos filmes, e são eles: a Reconstituição, que seria quando o diretor tentar trabalhar
fidedignamente a arte do período proposto; a Liberdade Criativa, que aqui se toma como
uma adaptação artística consciente que o diretor faz sobre a arte do povo no momento
histórico escolhido; e os últimos dois aparecem como caminhos para se tomar perante ao
empecilho da falta de informações especificas quanto a arte de povos, períodos ou objetos
43
que devem fazer parte da ambientação, divididos como Anacronismo e a arte como
Falseadora do Real.
Independente de qual seja a opção escolhida, é de suma importância o estudo das
culturas a serem representadas. Assim como é importante entender o processo ao qual a
pesquisa de arte se insere e entender a mensagem que esta passa, porque mesmo quando
não se pretende transmitir nenhuma, o discurso ainda se revela e se difunde.
2.1- Reconstituição
Essa primeira escolha seria construir a arte de um filme buscando ser o mais
realista possível, ou seja, representar de forma fidedigna o espaço, a forma como as
pessoas se vestiam, suas noções estéticas, como organizavam seus cabelos, seus objetos
cotidianos, suas ações, etc.
Para se construir um filme, cuja proposta seja ser o mais fiel possível à história de
um povo, ou cuja autenticidade do local se mostre necessária, é preciso muito estudo, o
que torna a consultoria com especialistas da área geralmente o ideal.
Estudar através das imagens para construir seu espaço não é o bastante. Por mais
que os baixo e médio relevos10 desses povos pré-clássicos auxiliem muito na identificação
de características, vestimentas, apetrechos, posição social e diversas outras informações
básicas, o estudo da arte nunca pode se resumir ao estudo iconográfico. Não basta. É
necessário estudar a cultura, os deuses, as mitologias para se entender como funcionava
cada objeto encontrado pelos arqueólogos, para que serviam, como eram usados. Eram
objetos sagrados? Ritualísticos? Festivos? Ou eram usados no dia a dia? Qual a relação
desse povo com seus deuses e reis – ou o poder em geral – e até onde sua arte atende a
isso? Para construir filmes modernos uma cruz já é uma simbologia clara para um homem
que segue sua religião, que tem fidelidade ao seu credo. Os símbolos e práticas da maior
parte das religiões modernas são fáceis de se encontrar e identificar, mas como seria em
um filme ambientado em períodos pré-cristãos? Como os homens demostravam sua fé?
Qual a sua relação com o ambiente que os cerca? Qual a sua relação com os objetos que
10 Ambas esculturas em relevo, diferenciadas por quanto a figura esculpida se eleva da superfície onde foi
feita. Geralmente na pérsia antiga usados em muros, portas e paredes de pedra, comemorativas ou até
mesmo guardando túmulos, esses relevos trazem várias informações das características dos povos da
época e suas relações de poder. Como os relevos nas ruínas de Apadana, em Persépolis, nas quais
podemos ver representados diversos povos com suas vestes e apetrechos característicos.
44
os cercam e com as próprias roupas que usam? A arte traz muito da identidade de um
povo e o modo como ele usa a sua arte é fundamental.
A reconstituição é o primeiro caminho que o diretor de arte pode escolher para
trabalhar com períodos antigos, porém, é extremamente complicado e tormentoso
reconstruir toda uma arte fiel e autêntica ao real, e quanto mais antigo o período, mais
seria um trabalho para ser ladeado por historiadores da arte, arqueólogos, e ainda assim
não se completaria como autêntico ao real.
Nem sempre é possível encontrar as informações necessárias para se reconstruir
um mundo, nem ao menos parte dele. Na realidade, é muito difícil encontrar essas
informações, como já foi dito anteriormente. Muitas vezes não basta a pesquisa, pois não
se encontra o que já não existe.
Essa impossibilidade faz com que raramente um filme seja realmente fiel a um
período antigo e sua realidade tona-se desconhecida, mas é necessário que se busque
referências da arte do povo trabalhada, para assim reconstruir essa arte, sempre tendo
espaço e necessidade de se criar sobre lacunas.
Contudo, é de extrema relevância para um filme ser identificável, que ao menos
uma parte de sua arte busque ser reconhecível, ser de acordo com as referências que se
possa ter desse lugar, de preferência referências reais, não como uma criação repleta de
preconceitos de como se acredita que seja o lugar.
É importante o espaço acolher a história
que nele será contada, que os personagens se
relacionem com um ambiente cuja função não
seja apenas a de um pano de fundo em que tudo
se desenvolve. Ou seja: é importante que os
objetos caracteristicamente antigos sejam usados
de uma maneira verossímil, que se tenha mais do
que traços de que ali vivia uma cultura antiga,
mas que se tenha a prática.
Por exemplo, os filmes que trabalham
com a arte Aquemênida, devem considerar o
Ríton (Rhyton)11 em suas comemorações. É um
11 Se trata de um “copo” comemorativo em formato de chifre cuja extremidade inferior possui geralmente
a metade superior de um animal, ou às vezes só a cabeça. Os rítons persas trazem como animais mais
Figura 6: Ríton de ouro (séc. v. a. C),
dinastia aquemênida, decorado com leão
alado. (Museu Arqueológico, Teerão).
Fonte:
https://technologyofmoney.wordpress.com/2
013/03/28/money-and-the-golden-leonine-
rhyton-in-the-achaemenid-empire/
45
dos objetos mais representativos da arte decorativa persa. Aliás, a arte decorativa é um
dos aspectos mais marcantes de toda a arte persa, principalmente no período Aquemênida
no qual muito dos povos nômades estavam se fixando.
Sendo assim, como o cinema pode deixar de trazer esses objetos, de inseri-los na
narrativa?
Na minissérie A História de Ester (2010), vários anacronismos aparecem, mas o
Ríton foi inserido na comemoração que o rei Persa convocou.
Figura 7: Marcus Pitombo como Rei Assuero com Ríton em mãos em A História de Ester (imagem
promocional)
Fonte: http://tv.r7.com/record-tv/a-historia-de-ester/videos/conheca-o-elenco-de-a-historia-de-ester-
21022018
característicos o grifo, o cavalo e o leão. O grifo aparece como possivelmente vindo de suas relações com
outros povos, como os egípcios. Já o cavalo é provavelmente o animal mais importante da cultura persa.
Andar a cavalo era a base da educação de qualquer jovem dignitário persa, unido a atirar com o arco e
flecha e não mentir (importante na reforma religiosa trazida por Zoroastro vide nota 20.), sendo essa a
“fórmula famosa [que] resume toda a ética iraniana”(MOURREAU, 1978, p.224) . Em alguns livros o
cavalo aparece como o animal sagrado do deus sol Ahura Mazda (o principal deus do panteão persa). Já o
leão simboliza o rei persa e sua força. Os rítons reais que nos chegaram muitas vezes aparecem feitos com
metais preciosos e ricamente trabalhados, os mais famosos possuindo a parte do animal finamente
construído com traços delicados e realistas.
46
Figura 8: Capitel aquemênida do palácio de
Antaxerxes II em Susa, de mármore
acinzentado. (Museu do Louvre, França.)
E mesmo que fora de contexto, e
servindo de uma forma diferente a qual
realmente deveria ser utilizado (como
poltrona), o famoso capitel12 persa, presente
durante a dinastia Aquemênida, também
aparece em cena. Geralmente esse capitel
traz uma bela escultura com duas partes
superiores do animal se unindo pouco
abaixo das patas dianteiras, como num
espelho. Os animais representados
costumam ser touros, ou cavalos.
Figura 9: Poltrona do Rei Assuero em A História de Ester.
Fonte: https://i.ytimg.com/vi/xLJyaTvrK0A/hqdefault.jpg
Essas pequenas identificações tornam um período histórico mais reconhecível,
mesmo quando a proposta não é se trabalhar fielmente uma época. Como escreve Betruce,
a direção de arte:
[...] pode ir muito além do simplesmente bem-feito, exercer sua
potencialidade criativa de forma mais incisiva. Ou seja, em vez de
exigir da direção de arte que ela apresente um cenário verossímil, pode-
se desejar que este seja também significante. Além de trazer ao
12 Na arquitetura é a parte superior de uma coluna, pilar ou pilastra, servindo como suporte mais amplo
para o entablamento (a parte superior que se apoia nas colunas, para saber mais procurar o sistema
“ordens da arquitetura” de Vitruvio, séc. 1 a.C.) do que a coluna por si só. Geralmente decorada, existe de
diversas formas com características distintas.
Fonte:
https://hav120151.wordpress.com/2015/04/06/capi
teis-zoomorficos-um-monumento-da-arte-persa/
47
espectador a noção ou a atmosfera, por exemplo, de um certo
acontecimento histórico no final do século XIX, a direção de arte pode
também construir um espaço que permita o questionamento desse
momento histórico através da estruturação de determinada visualidade.
Isto é, ela deixa de ter um caráter de mimese, estar no lugar de alguma
coisa, e passa a desempenhar um papel de reflexão sobre o que
representam esses espaços. A direção de arte constrói então um espaço
que ganha sentido dentro de seus próprios constituintes, e não apenas
como mera informação a ser confrontada. (BUTRUCE, 2017, p.14)
Essa ideia de construir um espaço significante e reflexivo provavelmente funcione
muito bem quando é um período histórico com o qual se tenha familiaridade, no entanto,
uma inquietação surge quando se trata de “criar” sobre a arte de um povo: como isso pode
não ser considerado algo como o realizado pelo estilista inglês, uma busca por tornar o
“exótico” mais exótico?
O ideal é que o discurso seja muito bem elaborado e tenha uma base solida de
informações e pesquisa, trazendo em si a motivação que permita qualquer alteração feita
sobre a cultura representada.
O que se busca em uma ambientação é uma relação orgânica, na qual se pretende
parecer real, ou, então, discutir essa realidade. Mesmo que a reconstituição não seja
sempre possível, ou apenas cause mais estranhamento do que identificação, o importante
talvez não seja ser um documento de relato, mas ter consciência do que se relata.
É imprescindível entender as características básicas de um povo ao trabalhar sobre
elas. E ainda mais imprescindível é o olhar diacrônico, a consciência de todas, ou pelo
menos as principais questões que ao se trabalhar determinada cultura possa acarretar.
2.2-Liberdade artística: criação intencional e consciente.
Esta pesquisa considera como liberdade artística a ação de um diretor de arte, em
todo ou determinado momento do filme (um utensílio, espaço, adereço...) decide não
seguir como seria o “objeto” no “mundo real”, e sim trabalhar sobre ele de forma livre.
O diretor pode encontrar a informação sobre esse objeto, ela existe e é acessível.
Ele pode saber o que é o real, mas prefere trabalhar exercendo a sua capacidade criativa
gerando uma nova arte, seguindo as bases culturais do grupo ou grupos representados.
48
“Quando se trabalha em locações há um investimento nos valores que
o reconhecimento desses lugares envolve. Também é interessante
quando se faz intervenções nos espaços de modo a criar uma
discordância entre o que é de conhecimento público sobre o lugar e a
sua representação alterada no filme, capaz de criar sentidos poderosos.
Isso é algo que se faz com frequência em filmes de época ou futuristas.
Mas não apenas.” (JUNQUEIRA, 2017, p.152)
Esse trabalho que pode trazer resultados interessantes quando, mais uma vez, o
diretor busca entender as características
elementares de um povo para trabalhar sobre elas,
como, por exemplo, a coroa do rei Sharaman
(Ronald Pickup), em Príncipe da Pérsia: As Areias
do Tempo.
Com relação a essa obra, é importante
contextualizar que filme não tem base num fato
histórico, sendo uma fabulação que ocorreria no
império persa provavelmente na dinastia Sassânida.
Porém, o filme realmente não precisa se passar em
um período exato visto que o próprio rei Sharaman
é um personagem ficcional, assim como toda a
narrativa. Na narrativa, são criados deuses,
religiões, guerras... A Pérsia na realidade serve
apenas como palco para essa nova narrativa fantástica, na qual suas características
artísticas são emprestadas a esses “persas”. Não é uma crítica negativa ao fato de que a
ficção se passa num local e períodos reais, ou cria deuses – essas informações devem
apenas ressaltar como essa arte se constrói e sob quais limites e liberdades.
A Pérsia teve várias dinastias, e seus grandes momentos como centro imperial foram
no período da dinastia dos Aquemênidas (550 – 330 a.C.)13, em que a dita “arte persa” foi
constituída e individualizada, depois foi renovada na dinastia dos Sassânidas (261 a.C. –
651 d.C.) época em que sofreu forte influência de artistas gregos e egípcios, povos
13 As datas relativas ao início do império variam, dependendo do fator histórico a ser considerado como
inicial, geralmente arredondado para 550 a.C. Porém, quanto ao final, foi em 333 ou 334 a.c.(dependendo
do autor) que o imperador romano Alexandre Magno vence Dario III em Issos, pondo fim ao império
persa (alguns autores consideram o final do império em 330 a.C. por ser quando ele teria se livrado de
todos os principais líderes fieis a Dario III). Nesse trabalho foi decidido considerar as duas datas
arredondadas.
Figura 10: Coroa do rei persa em
Príncipe da Pérsia: As areias do tempo.
Fonte:
https://www.terra.com.br/diversao/cinema/
infograficos/principe-da-
persia/img/pers_sharaman.jpg
49
dominados pelo Irã. Mesmo assim, manteve sua afirmação assírio-babilônica14 que vem
desde os primórdios do império Aquemênida.
Nota-se que o filme se passa na dinastia Sassânida e não na Aquemênida, é que em
622 d.C se dá o começo da era islâmica, que evoluiu como uma importante força político-
social. A importância desse fato é que: O Islã se mostrava contra a representação
figurativa15. E, sendo assim, foi necessário a formação de um novo vocabulário artístico
que respeitasse essa proibição e pudesse representar essa nova civilização. Nesse intuito
adaptaram e reutilizaram as tradições dos povos que foram sendo conquistados pelo Islã,
adicionando novos temas e técnicas, como, por exemplo, a caligrafia que foi sendo usada
por todas as artes, não só como meio de transcrever o corão, e os arabescos, que são
soluções fundamentais da arte islâmica. Temos essa informação em livros básicos de
história da arte: “[...] os artesãos orientais, impedidos de representar seres humanos,
puseram sua imaginação para trabalhar com padrões e formas e criaram os arabescos,
ornamentação rendilhada e sutil. [...]” (GOMBRICH, 2013, p.111)
Os arabescos surgem como essa nova solução admirável que é possivelmente a que
mais representa a arte islâmica.
Essa é uma informação importante porque no filme Príncipe da Pérsia vemos vários
arabescos na cidade de Alamut16, a cidade sagrada onde se encontra a adaga das areias do
tempo17. O que indicaria que esse filme teria ocorrido pós- nascimento e propagação do
islamismo. Porém, ao mesmo tempo, Alamut não seria no filme uma cidade islâmica, e
sim politeísta18. Não sendo nem ao menos monoteísta como o islã, o que torna bastante
interessante (e talvez perigoso) usarem a arte islâmica como a arte religiosa dessa fé
hipotética do jogo.
14 Os Assírios eram o povo dominante pré dinastia Aquemênida, derrotados por Ciro (primeiro imperador
Aquemênida). Já a Babilônia uma das principais capitais do mundo antigo, conquistada por Ciro em 539
segundo Mourreau (MOURREAU, 1978). 15 O autor H.W.Janson compara, em sua enciclopédia sobre história da arte, a relação do islão com
representações, com a dos iconoclastas bizantinos. Também condenando a idolatria às estatuas são vistas
no corão como inspiradas por satanás. Felizmente, nada diz no corão sobre a pintura ou outros modos de
representação. É um tema complicado, mas a falta de referencia a esta questão especifica na teologia
primitiva faz com que se acredite que imagens pintadas nunca foram um problema para Maomé e seus
sucessores imediatos. 16 O castelo de Alamut teria sido inaugurado em 602 d.C. 17 Até o presente momento de estudo não é possível verificar informações de fontes seguras que
confirmem Alamut ser ou não uma cidade islâmica ou politeísta. Porém não é relevante. 18 As areias do tempo sempre aparecem como presente dos “deuses” no plural.
50
Claro, que a direção de arte do filme modifica um pouco essa arte islâmica e adiciona
outras características, trazendo outras referências, como a roda da fortuna de tradição
europeia19 entre arabescos.
Figura 11: Nicho onde adaga das areias do tempo é guardado em Príncipe da Pérsia.
Fonte: Príncipe da Pérsia: As areias do tempo (2010)
Não se sabe a data exata em que o filme se passa, mas seria provavelmente em um
período transitório entre o zoroastrismo20 e o islamismo. Vemos o rei Tus com uma
Masbaha nas mãos (objeto de oração bastante usado pelos mulçumanos, geralmente
comparado ao rosário ou terço católico e a Japamala usada no budismo e hinduísmo.), e
também o rei Sharaman21, que além de tudo é respeitoso com a cidade sagrada22.
19 Informação encontrada em FONTANA, 2013. 20 Existe desacordo entre as datas do nascimento de Zaratustra (Zoroastro), mas tudo indica que teria
ocorrido antes do surgimento do império Aquemênida. O zoroastrismo foi uma reforma da antiga religião
iraniana. Como uma “purificação”, o zoroastrismo condenava antigas práticas e alterou o panteão persa
num dualismo: Ahura Mazda como o deus bom e da verdade e Angra Manyu como o deus do mal e da
mentira. Os verdadeiros e de pensamentos bons se aproximam de Ahura Mazda e falsos com pensamentos
maus de Angra Manyu. Por isso não mentir estava atrelada a cultura dos antigos persas. 21 É importante ressaltar que Mourreau faz referência a um certo objeto de contas que os persas usariam
em suas orações ainda sob o zoroastrismo, mas como a informação ainda não foi confirmada em outras
fontes, não foi adicionada. 22 Uma característica da dominação persa é respeitar as crenças dos povos dominados, os presenteando
com construções, restauros e reconstruções de seus espaços sagrados. Além de permitir suas práticas e
qualquer liturgia, mesmo que diferente da Persa. Como por exemplo: de todas as plantações do império o
rei tirava uma porcentagem, mas das plantações dedicadas a deuses, como Apolo, esses impostos eram
respeitosamente isentados (MOURREAU, 1978).
51
Dastan em alguns momentos cita seus deuses no plural, o que indica que ele (como
príncipe, filho do rei), por sua vez, não era mulçumano.
Quanto à arte persa-islâmica, talvez por respeito aos antigos cristãos entre os seus
discípulos, os árabes se mostravam tolerantes às imagens sagradas de outras religiões e
faziam vista grossa para a arte figurativa secular dos territórios conquistados.
O povo persa, assim como vários outros que o islamismo chegou, era adepto a
figuração e se recusou a abandoná-la. Como uma espécie de iconoclastas passivos os
mulçumanos acabaram por rejeitar as estatuas, mas admitiam as paisagens helenísticas,
os animais sassânidas, os relevos etc. A crítica maior era depositada na representação de
figuras humanas, talvez pela influência de judeus convertidos, cujo perigo não era o de
idolatria, mas o de presunção. Representar o ser vivo seria como usurpar o ato de criação
reservado a Deus.
A princípio, tanto a representação de humanos quanto a de animais foram proibidas,
mas, perante ao fato dessa ser uma tendência muito antiga (não só pelos persas, mas
também por árabes, turcos e mongóis, povos que forjaram a civilização islâmica), o
resultado foi que na prática as autoridades eram rigorosas apenas com representações de
tamanho natural ou maior. Acabaram por ser permitidas se não projetassem sombras, ou
fossem pequenas, ou reproduzidas em artefatos de uso corrente como tapetes, louças,
tecidos e etc. Sendo reduzidas ao nível de
motivos ornamentais ou não mais que
decoração. Os temas principais desse
período eram ornatos vegetais em forma de
candelabros, animais envoltos de laços que
se afrontam de cada lado de uma arvore da
vida, simurgh23 e espécimes fantasiosos.
O que nos leva de volta a coroa do rei
Sharaman, em Príncipe da Pérsia: Os reis
persas costumavam usar algo diferente, a
coroa das representações sassânidas trazem-
23 Mítico rei das Aves, similar à fênix.
Figura 12: Exemplo de merlão em detalhe da
escadaria do palácio de Apadana, em Persépolis.
Fonte:
https://hav120151.wordpress.com/2015/04/04/
apadana-um-lugar-para-chegar-ou-um-lugar-
para-esconder/
52
nas com enfeites similares aos “merlões”24 únicos que as próprias construções persas
continham. Sobre isso, aparecia dois chifres, ou asas (os dois eram possíveis), abaixo de
um grande círculo solar mostrando sua fidelidade ao deus sol Ahura Mazda.
Provavelmente apenas a parte inferior da coroa seria usada no cotidiano do rei como
mostram algumas outras representações.
Figura 13: Exemplo de coroa real com disco solar que representa o deus Ahura Mazda. Relevo em disco de
cobre (British Museum, Londres).
Fonte: CURTIS, John. Ancient Persia. London: British Museum Paperbacks, 1989
24 No seu significado primário, os merlões são elementos sólidos e elevados no muro de fortificações ou
cornijas (parte superior de uma fortificação, que vem depois do entablamento), geralmente com ponta
quadrada, arredondada ou chanfrada, que separam ameias, que por sua vez seriam espaços entre os
merlões. Os merlões serviriam como proteção, enquanto as ameias permitiriam a visão em uma
fortificação.
53
Figura 14: Exemplo de coroa persa em, relevo, Bisuntun – Irão, detalhe de Dario o Grande, Sec. VI a.C.
Fonte: GHIRSHMAN, Roman. Persia – protoiranianos, medos, aquemenidas. tradução Arturo del Hoyo.
Madrid: editora Aguilar, 1964.
54
Figura 15: Coroa simples. Rei diante do altar do fogo, a figura alada é a representação do deus Ahura
Mazda (VI - IV a.C). Relevo (Biblioteca Nacional, Paris).
Fonte: GHIRSHMAN, Roman. Persia – protoiranianos, medos, aquemenidas. tradução Arturo del Hoyo.
Madrid: editora Aguilar, 1964.
Por outro lado, outra informação25 aparece no livro A Pérsia dos grandes reis e de
Zoroastro(1978) de Jean- Jacques Mourreau, que trata ainda do Império Aquemênida:
[...]O copo para beber [rhyton], assinala Ghirshman, tem lugar de
destaque no mundo cita: a divindade o substitui pelo diadema no
momento da investidura de um príncipe. Decorado, ele recebe silhuetas
de animais familiares: cavalo, cervo, boi com corcova. (MOURREAU,
1978, p.70)
O sentido fica dúbio, não se sabe se o autor fala sobre a decoração do ríton – que era
o tema anterior de todo o parágrafo, e que realmente recebem essas decorações – ou do
tal diadema citado. Porém, como citei logo acima, era comum na dinastia dos Sassânidas
a representação de animais que se afrontam de cada lado de uma árvore da vida26. Essa
25 Essa informação, até o presente momento da pesquisa, só pode ser encontrada nesse livro. Dando ainda
mais a entender que o autor se refere ao ríton, e não a um suposto diadema. 26 É interessante como a da àrvore da vida é um tema que acaba por existir em diversas religiões e
culturas.
55
temática está constantemente presente em tapetes persas assim como a miniaturas
delicadamente trabalhadas de animais já é uma constante em braceletes e outros adereços
da arte persa (como o ríton) desde antes de Cristo, na dinastia Aquemênida.
Esse é um claro exemplo, que o conhecimento de uma determinada arte permite ao
diretor de arte criar sobre a arte de determinada cultura, mas ainda assim manter uma
essência, uma lógica, uma certa autenticidade pela identificação da temática.
Vários outros pequenos objetos se somam para validar essa caracterização: o
centro do colete de Dastan (o personagem principal) e as figuras circulares na cela do
cavalo e na bolsa, comuns na pérsia pela simbologia solar que vem desde os proto-
iranianos, que consagravam o fogo como um dos elementos sagrados e essenciais27, mais
tarde o tornando uma deidade, que mais tarde permanece com os pireus28 nas religiões
pré-zoroastrismo, passa para a divinificação do sol em Ahura Mazda, que na reforma
religiosa instaurada por Zoroastro se torna o deus bom e da verdade de seu panteão
maniqueísta. Permanece ainda como símbolo sagrado em algumas correntes do
islamismo, sendo também considerado por diversos autores que o astro solar seria a
motivação para o medalhão central dos mais famosos tapetes persas e tipos de azulejos
islâmicos29.
Outro símbolo recorrente na cultura persa é a fênix, ou simurgh, o pássaro do fogo e
do sol. Aos 59:13 minutos do Príncipe da Pérsia, Nizam, indo visitar o líder dos
Hassansins, passa pela temática persa em uma das paredes do velho castelo.
27 A autora Mary Boyce coloca em seu livro Zoroastrians – Their Religious Beliefs and Pratices (1979) a
hipótese de, devido antigamente ser difícil a possibilidade de se acender uma chama há qualquer
momento, as famílias (geralmente sendo papel da mulher) deixavam sempre uma chama acesa, que mais
tarde se torna uma deidade, ou o sagrado pireu. 28 Eram basicamente tochas sagradas cujas chamas nunca deveriam ser interrompidas. 29 Um dos famosos azulejos islâmicos traz a estrela de 16 pontas, que é resinificado no islamismo, mas
que traria como base a histórica adoração do deus sol.
56
Figura 16: Screenshot de Nizan entrando no tempo dos Hassansins. Atrás dele podemos ver a imagem de
uma fênix na parede. Príncipe da Pérsia: As areias do tempo.
Fonte: Príncipe da Pérsia: As areias do tempo (2010)
Mais um exemplo de uso das referências na arte, temos os braceletes e leões –
populares na pérsia- o bracelete veio como influência dos ornamentos medos e de povos
conquistados, sendo bastante popularizado no Irã o uso de braceletes com cabeça de leão.
Já presente no período Aquemênida, o leão era um símbolo de força. Ao redor do trono
do rei, era comum pinturas nas quais o soberano estaria derrotando um leão, ou relevos
com a mesma temática, ou mais tarde tapetes com o tema “combate de animais”, nos
quais leões atacariam outros animais, vencendo-os. Todos esses exemplos são símbolos
de poder. Não só nesses adereços, mas também é constante a referência da força do leão
no filme.
O próprio rei persa é historicamente representado como leão, o que deixa ainda mais
profunda a simbologia no filme, quando na infância, Nizan salva Sharaman do ataque de
uma leoa e no futuro se arrepende, já que se o irmão tivesse morrido, ele seria o rei30.
A “liberdade artística” na retratação de povos antigos é um caminho interessante,
porém acaba sendo uma saída que traz perigo, já explicado, de se “exotizar o exótico”.
Não é aprazível partir de preconceitos como “raça ariana indo-europeia”, e decidir
30 Constantemente a irmandade como base do império é pregada pelo Rei, é uma interessante alegoria
relacionável ao fato de que o império persa se consolidou a partir de uma irmandade medo-persa (Ciro seria
filho de um persa e uma medo), de uma união político-cultural essencial para o êxito desse império, além
de uma fortíssima noção de respeito pelas outras culturas.
57
polemicamente empregar atores ingleses e de olhos claros para representação de povos
que – independente do que antigos orientalistas alegam – são iranianos31. Os escritos
orientalistas, como já trabalhado durante todo o primeiro capitulo, trazem esse perigo para
um pesquisador inexperiente na área:
O rei persa jamais exige a integração das nações vassalas. “Ariano, filho
de Ariano”, ele tem demasiada consciência de sua especificidade étnica
para impô-la aos povos submissos ao império. Contenta-se em ver o
reconhecimento da suserania persa.[...] (MOURREAU, 1978, p. 210)
Certamente, é a dramaturgia que deve ser o fundamental para nortear o diretor de arte,
a partir de pesquisas de referências, a criação sempre existe. A liberdade artística real se
dá em toda a escolha que se faz em uma representação. Em Príncipe da Pérsia32, o mundo
tem base em uma trama de um jogo, sem existência no mundo real, o que faz com que o
filme também não precise, e nem deva se encaixar em um determinado contexto histórico.
Citando Thales Junqueira: “o importante é criar enunciados visuais interessantes, que
permitam ao espectador penetrar num universo subjetivo a partir de suas complexidades
simbólicas.” (JUNQUEIRA, 2017, p.152).
2.3- Falta – em dois níveis.
A história se depara com enormes lacunas, descontinuidades, períodos e povos
hipotéticos, e nem tudo é exato. A própria historiografia antiga nos chega como grandes
ficções tendenciosas em alguns resquícios de documentos.
Acontece porém, que em diversos filmes ocorre a necessidade da existência de
determinado elemento em cena, que não se tem informações exatas de como seria. E para
isso, o diretor de arte precisa preencher essa lacuna de algum modo.
31 As representações trazem os cabelos cacheados, e tirando os livros neonazistas, nenhuma tapeçaria ou
pintura sassânida ou safávida traz reis ou pessoas loiras de olhos azuis como Tus ou Dastan. Eles eram
árabes, eles são parte da ampla malha cultural que forma o iraniano. 32 Outra relação histórica que podemos ver no filme – dessa vez com o período moderno – é o roteiro de
um filme estadunidense de 2010, ser justamente a história de um povo dominante, invadindo outro povo
menor e mais fraco, o acusando de fabricação e venda de armas e iniciando uma guerra quando na verdade
o interesse do povo dominante é apenas algo que está no território do povo menor, em seu subsolo
(petróleo). Quase uma alegoria à situação América do Norte versus Oriente Médio.
58
Aqui, são elencados dois caminhos para se trabalhar com a falta: o Anacronismo
e a solução Falseadora do real.
2.3.1- Anacronismo – equívoco, estereótipos, exotismo.
Em algumas situações o diretor de arte acaba decidindo utilizar estereótipos de
determinado povo como sua representação, muitas vezes independente da veracidade e
até mesmo da lógica desse fato. E, consequentemente utiliza-se de uma arte estereotipada
ou que se assemelhe ao lugar que se imagina.
Novamente trazendo como exemplo a minissérie A História de Ester, vemos tapetes
persas de medalhão central, um motivo que surge na dinastia Sassânida e se solidifica na
Safávida. Os medalhões centrais eram soluções utilizadas no século XV ornamentando
capas de encadernações, frontispícios de Corões e as abóbodas do interior de cúpulas que
é de onde o tema se origina, segundo Maria Helena Maia e Melo, mas só foram
adicionadas na decoração dos tapetes no século seguinte (MELO, 1964). Sendo assim,
como poderiam existir em palácios do império Aquemênida?
Notam-se, também diversos arabescos e artes que só teriam surgido muito mais tarde
e diversas outras questões que fogem do período retratado, não por um bom motivo de
necessidade do roteiro. Mas, talvez seja devido a problemas de custos de uma produção
na televisão brasileira (geralmente não existindo tempo hábil para as pesquisas), porém,
mesmo que seja possível relevar, entra como exemplo de anacronismo.
Já o constante uso do azul nas vestes da rainha Ester é um anacronismo claramente
proposital e justificado. Por anos se representou Maria (mãe de Jesus) de azul,
independente se essa era uma cor rara e que apenas ricos seriam capazes de obter. Como
uma personagem santa, nada mais lógico que representar a rainha Ester com o mesmo
esquema de cores “santificadas” no nosso repertório cultural.
No entanto, a única coisa que claramente não podia existir ali, era rezarem diante de
uma cruz, visto que é algo que se passa muito antes de Cristo, e é um símbolo muito
conhecido em sua trajetória. De resto, sendo uma minissérie idealizada para a televisão
brasileira, a falta de cuidado histórico, devido à velocidade da produção desta mídia,
talvez seja compreensível.
59
Outro exemplo, no qual o anacronismo não é um equívoco, e sua função parte da
necessidade narrativa, aparece no filme Maria Antonieta (Sofia Coppola, 2006). Saindo
da arte persa, o filme traz um momento em que ocorre uma prova de roupas da jovem
Maria Antonieta, quando então surge, entre sapatos de época, um All-Star – tênis
americano já disseminado como um símbolo da juventude “descolada”. Não é um
anacronismo equivocado ou solução por falta de informações quanto aos sapatos da
época, não é um erro de objeto externo deixado em cena, é proposital, justificado, pois
trata-se de um dos construtores do discurso do filme. É um signo eficaz, claro, inteligente.
2.3.2- Falseadora do real.
Outras vezes a falta de informação sobre a cultura de determinado povo se
encontra em detalhes. Se a falta de informação é causada por falta de dados arqueológicos,
falta de referência quanto ao período, estudo incompleto, isso não é relevante, pois essa
falta leva a necessidade de uma solução para preencher uma lacuna existente.
Às vezes, como vemos em A História de Ester, a solução é algo simples, suscitado
por uma problemática simples: como seria o colar de uma menina humilde judia nascida
antes de cristo? Não poderia ser, logicamente, uma versão das ricas joias trabalhadas em
ouro e pedras semipreciosas que chegam até nós, expostas em museus e já datadas no
período certo (fácil, conhecido, seguro). Certamente, a menina pobre precisa de um
adereço que possa condizer com sua posição social. Não se sabe como seria esse adereço?
A saída pode ser tentar um objeto neutro, fácil de se fazer, com bases naturais, que pareça
ser possível de existir naquele período nas mãos dessa personagem e de acordo com sua
classe social: um colar de corda com uma pedra simples. Se a pedra existiria nesse
ambiente e época, se é lapidada ou não, se esse povo dominaria ou não esse tipo de arte
ou esse tipo de nó, isso não importa: Faz sentido. Não causa um grande estranhamento,
funciona para a narrativa. Nenhum historiador fará um grande julgamento: é justificado.
Em alguns casos, o diretor de arte decide para representar determinado povo ou
personagem do qual não possui referências artísticas, usar características de uma outra
cultura, ou mais. E essa se torna a identidade do povo o qual se desconhece.
60
Como por exemplo, em A História de Ester, observa-se que o colete de Hamã e
seus filhos amalequitas (ou amalecitas)33, possui uma decoração em formatos de espirais
quadradas, conhecidas como grega34. O nome vem justamente por ser uma decoração
recorrente da cultura grega. Os amalecitas seriam um povo inimigo dos hebreus presente
em algumas passagens da bíblia35, nada indica que sejam reais. A arte que constrói a
representação deles se baseia na arte de outros povos contemporâneos ou outras
representações, como outros filmes bíblicos, outras versões da história de Ester no
cinema, pinturas, etc.
Figura 17: Gregas.
Fonte: https://media.istockphoto.com/vectors/greek-wave-and-meander-vector-id652404952
33 Hamã aparece na bíblia como “agagita”, e por isso é apresentado como descendente de Agag (vide nota 35), rei dos amalecitas, inimigos dos hebreus desde o livro Êxodo. (Est, 3:1) 34 Essa arte surge de uma estilização das ondas do mar. A princípio, oriundas da forte relação que os
gregos têm com o mar, as ondas tradicionais eram constantemente representadas nas artes gregas, até que
foram se estilizando até formar as gregas quadradas e famosas. 35 Vemos na passagem:“O SENHOR disse a Moisés: <<Escreve isso, [...] Eu hei-de apagar a memória de
Amalec de debaixo dos céus.>> / Moisés [...] disse: <<Porque uma mão se levantou contra o trono do
SENHOR, haverá guerra do SENHOR contra Amalec, de geração em geração.>>” (Ex. 17: 14-16) e
também “Isto diz o SENHOR do universo: ‘Vou pedir contas a Amalec do que ele fez a Israel, opondo-
se-lhe no caminho, quando subia do Egipto. Vai, pois, agora, ferir Amalec. Votarás ao extermínio tudo o
que lhe pertence, sem nada poupar. Matáras tudo, homens e mulheres, crianças e meninos de peito, bois e
ovelhas, camelos e asnos.’>>” (1 Sm, 15:2,3.) e então, após Saul e seus homens destruírem todo como
Deus mandou, temos essa passagem: “Tomou vivo Agag, rei dos amalecitas.[...]” (1 Sm, 15:8) e então
após terminarem de matar todo o povo, se conta que pouparam Agag. Junto ao seu melhor rebanho de
ovelhas (1 Sm, 5:9) O senhor se irrita, tira o poder de Saul, e Samuel executa Agag na frente do senhor.
(Ou seja, Agag teria morrido, assim como todo seu povo. E Hamã, de algum modo, é seu descendente.)
61
Figura 18: Paulo Gorgulho como Hamã, em A História de Ester. No colete vemos a decoração com
gregas.
Fonte: https://abrilmdemulher.files.wordpress.com/2016/10/historia-ester-
hama.jpg?quality=90&strip=info&w=700
Se esses Amalecitas realmente existiram sobre outro nome, simbolizando assírios
ou tantos outros povos que constantemente ameaçavam os hebreus, se eram apenas uma
representação do mal como um povo simbológico, não se sabe. A questão é que muito do
que há na bíblia surge como uma visão dos hebreus do período histórico em que viviam,
passados de geração em geração pela oralidade antes de se tornar escrita. Assim como em
“Ester”, o rei Assueiro é considerado como sendo rei persa Xerxes36, na bíblia várias
personagens ou fatos históricos surgem com outros nomes (muitas vezes nomes da época
que chegam até nós de outra forma) e descritos em sua narrativa repleta de
ficcionalizações que, como já aferido, era uma prática comum na historiografia de povos
antigos.
36 Na versão da Bíblia estudada para essa monografia, aparece (na página 707 no livro de Ester, nota A 1-
11) a informação de que esse seria o nome hebraico do rei persa, que teria sido aportuguesado para
Assuero, que corresponderia ao nome persa de Xerxes, filho de Dario, que reinou entre 486 e 465 a.C. Já
o texto grego traz esse personagem como sendo Antaxerxes, sucessor de Xerxes. Por isso surge também
esse segundo nome em algumas pesquisas.
62
A questão de ordem prática é: não se tem notícias da existência desse povo. Não
há resquícios de sua arte, sua representação, seus costumes ou modo como se vestiam.
Sendo ficcional ou não, esse povo divide o palco com povos que existiram. Assim como
os persas, os medos, os hebreus, os egípcios, etc. Eles precisam ser representados de uma
forma verossímil, uma forma que não se quebre a lógica interna da narrativa que se
pretende histórica.
Para isso, o que o diretor de arte e o próprio roteirista devem fazer? Um povo tem
costumes, hábitos, rituais, e nesse caso: devem ser emprestados de outros povos, de
preferência contemporâneos aos citados na narrativa, como o caso das gregas37. Porém,
em A História de Ester, vemos a esposa de Hamã fazendo rituais com o fogo sagrado,
prática comum entre os povos pré-clássicos, inclusive sendo uma base da qual descende
o Zoroastrismo, a grande religião dos persas, e subsequente do povo ao qual o rei Assueiro
pertence. Historiadores divergem sobre o período em que o zoroastrismo passa a ser
seguido pelo império persa, mas na antiga religião e na que surge após a reforma de
Zoroastro, um fato fica evidente e permanece: Ahura Mazda é o grande deus Persa, no
zoroastrismo a verdade é a sua lei, mas antes o fogo já é sagrado. O pireu é sagrado.
Porém, a história bíblica torna isso uma bruxaria pagã desse povo “mal”, Assueiro
nunca fala de seu deus, mas é lógico que em uma história bíblica ele é mais fraco que o
deus dos Hebreus. Na realidade, o deus do rei persa nem sequer existe, nem se quer
importa, nem se quer é citado. O deus único e real é o deus hebreu, e é compreensível que
só ele seja importante por ser uma história bíblica.
A narrativa mostra isso até mesmo nessas pequenas simbologias, o “nós” e os
“outros”. Said traz um trecho do livro “O talismã”, de Walter Scott:
Eu bem que achava [...] que a tua raça cega descendia do demônio
infame, sem cuja ajuda não poderia ter mantido essa abençoada terra da
Palestina contra tantos valentes soldados de Deus. Não falo assim de ti
em particular. Sarraceno38, mas em geral do teu povo e da tua religião.
É estranho para mim, contudo, não que possas descender do Malvado,
mas que te vanglories disso. (SCOTT apud SAID, 1996, p. 110)
37 Talvez as gregas não sejam contemporâneas imediatas, a informação não foi confirmada, porém a
datação não é considerada relevante para a questão no momento. 38 Na idade média os cristãos designavam genericamente árabes ou mulçumanos como Sarracenos. Só
muito depois surgiram palavras como “Islão” e “mulçumano”
63
O sarraceno Assueiro é na narrativa um homem bom. Os persas constantemente
são considerados bons, eles salvaram os hebreus da escravidão na Babilônia, eles lhe
ofereceram a terra sagrada, reconstruíram ou até mesmo construíram templos para os
Judeus. Porém, não basta. Esse povo, que sempre caminhou nas narrativas ao lado e a
favor dos judeus, é seu inimigo pela religião. Primeiro pelo fogo sagrado, pelo
Zoroastrismo, e mais tarde pelo islamismo. Mesmo que o islã descenda – assim como o
catolicismo – da mesma base, todos semitas, não
importa: Sarracenos descendem do mal, do
demônio.
E sua religião vai permanecer sendo (como
já vimos lá no primeiro capítulo, quanto a “Divina
Comédia”) constantemente demonizada.
Os amalequitas da minisérie trazem também
um colar que se assemelha a um bracelete persa,
que se repete futuramente nas outras representações
de amalequitas feitas pela rede Record, como em
Rei Davi (Edson Spinello, 2012). Zeres, esposa de
Hamã, em determinado momento traz em sua testa
uma concha, que remete a outro povo pré-clássico.
Enfim, vários elementos, de vários povos podem
ser encontrados para criar a identidade dos
amalequitas.
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/co
mmons/thumb/8/88/Iran-
bracelet.jpg/180px-Iran-bracelet.jpg
Figura 19: Bracelete persa Aquemênida
(datado entre 500 a.C. e 400 a.C, ouro
maciço, parte do Tesouro de Oxus (Museu
Britânico – Londres)
64
Figura 20: Aridai, Amalequita interpretado por Paulo Nigro em A História de Ester
Figura: http://lh6.ggpht.com/_C_rEq2bSqac/SzfuG1bfVZI/AAAAAAAAAEk/BZLY5VzFyyg/s1600/3.jpg
Figura 21: Aguague, Amalequita interpretado por Raymundo de Souza em Rei Davi (2012)
Fonte: http://pt-br.minisseriesbiblicas.wikia.com/wiki/Agague
Tirando o específico caso do uso do fogo sagrado para o mal, a justificativa para
essas “trocas” é a de solucionar um problema prático. Assim como o colar de Ester em A
65
História de Ester. não são anacronismos (ou talvez até possam ser em alguma medida),
sua finalidade é solucionar e preencher uma lacuna.
66
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] o historiador deve ser justo e honesto no modo de apresentar a sua
história. Isso não quer dizer que ele deve limitar-se à recitação nua de fatos
definitivamente estabelecidos. Em muitas etapas do seu trabalho, o
historiador deve formular hipóteses e fazer julgamentos. O importante é que
ele faça isso consciente e explicitamente, revendo as evidências a favor e
contra as suas conclusões, e declarando explicitamente qual é a sua decisão
e porque chegou a ela.
Bernard Lewis39
A afirmação que abre esse capítulo final, chega a parecer bastante hipócrita sendo escrita
por Lewis. Lewis foi um orientalista que trabalhou através de constantes insinuações sobre o
oriente, que se tornaram hipóteses e mais tarde verdades indiscutíveis.40 Porém, a história por traz
do texto não faz com que ele perca partes de sua veracidade.
O questionamento sobre o estudo é sempre necessário, porém, “ser justo e honesto” parte
de uma visão que desconsidera um fato: o ser humano é tendencioso. O ser humano tem suas
crenças e o que ele fala, ou escreve, parte de sua criação e ideologias, e isso deve sempre ser
considerado. Tomar uma postura não é um problema, mas é problemático acreditar que é
realmente possível não existir um discurso por traz do que se apresenta, e não considerar a
importância desse discurso, pelo que gera, ou pelo que pode influenciar.
Quando se trabalha com mídias, a reprodução não é apenas de uma imagem em tela, é de
uma ideia, de uma ideologia, e todas as pequenas coisas formulam e constroem essa ideologia. A
arte nunca esteve inteiramente desassociada da história, da política e da cultura, nem num passado
histórico, e nem num presente nas telas do cinema. Cabe ao diretor essa consciência de
responsabilidade que qualquer mídia reproduzível traz.
Neste trabalho, buscou-se realizar toda uma breve e inicial consideração sobre a
construção da arte e sua associação à construção de discursos (com base, principalmente, no
estudo do livro Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente de Said), não só no filme
em si, mas no contexto em que a produção cinematográfica se insere. Talvez não aprofundado, e
não tão completo quanto mais tempo de pesquisa e experiência poderiam permitir, a única real
pretensão desse projeto é a de iniciar esse estudo histórico, artístico e cultural dentro da direção
de arte no cinema.
39 (LEWIS apud SAID, 1996, p.324) 40 SAID, 1996
67
Na primeira parte, foi construída uma rápida atualização das questões históricas do
orientalismo, e seus resultados no mundo moderno e no cinema, sempre se atendo as questões
políticas e ideológicas por trás dos estudos e representações. Não apenas como uma crítica, esse
estudo buscou identificar trabalhos, e suas construções perigosas de uma ideologia, seguida pela
constante “alimentação” desse sistema ideológico.
A segunda parte por sua vez, identificou quatro caminhos tomados pelo diretor de arte
quando se trabalha a construção de narrativas que se passem em períodos antigos, e identificou
algumas motivações por traz das escolhas realizadas pela direção de arte em um filme. Ainda que
timidamente, a pesquisa não foi capaz de fazer uma análise profunda e satisfatória da arte de um
filme com um olhar diacrônico, tanto por ser um estudo inicial e inexperiente, quanto pelo período
curto em que uma monografia de finalização de curso deve ser trabalhada.
Porém, as considerações aqui realizadas abrem um caminho que exige aprofundamento,
e que satisfatoriamente permitiram a construção de saberes para além do texto, através das leituras
que mesmo ainda imaturas certamente podem formar diversos resultados interessantes em um
futuro projeto.
68
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Network. Sidney Lumet. 1976. 121 min.
No Rio Vale Tudo (Si Tu Vas à Rio... Tu Meurs). Philippe Clair. 1987. 100 min.
O pai da noiva 2 (Father of the Bride Part II). Charles Shyer. 1995. 106 min.
O Nascimento de uma nação (The Birth of a Nation). D.W. Griffith. 1915. 193 min.
Os Simpsons (The Simpsons) Matt Groening. 1989. 21 – 24 min por episódio.
Paraíso Tropical. Dennis Carvalho. 2007. 45-55 min por episódio.
Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo (Prince of Persia: The Sands of Time). Mike
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