UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO
FACULDADE DE DIREITO “LAUDO DE CAMARGO”
MESTRADO EM DIREITO
EDUARDO AUGUSTO LOMBARDI
DIREITO COLETIVO URBANO:
A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE LOTEAMENTOS
CLANDESTINOS E IRREGULARES COMO EFETIVAÇÃO DA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Ribeirão Preto
2010
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EDUARDO AUGUSTO LOMBARDI
DIREITO COLETIVO URBANO:
A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE LOTEAMENTOS
CLANDESTINOS E IRREGULARES COMO EFETIVAÇÃO DA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Dissertação apresentada à Universidade de Ribeirão Preto UNAERP, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direitos Coletivos, Cidadania e Função Social do Direito.
Orientador: Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld
Ribeirão Preto
2010
Ficha catalográfica preparada pelo Centro de Processamento Técnico da Biblioteca Central da UNAERP
- Universidade de Ribeirão Preto -
Lombardi, Eduardo Augusto, 1965 - L842d Direito coletivo urbano: regularização fundiária de ocupações
clandestinas e irregulares como efetivação da função social da
propriedade / Eduardo Augusto Lombardi. - Ribeirão Preto, 2010.
155 f.
Orientador: Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld.
Dissertação (mestrado) - Universidade de Ribeirão Preto,
UNAERP, Direito, área de concentração: Direitos coletivos,
Cidadania e Função social do direito. Ribeirão Preto, 2010.
1. Direito. 2. Direito coletivo. 3. Função social – Direito.
4. Urbanismo – Direito. I. Título.
CDD: 340
Dedico este trabalho ao Criador e Senhor de todas as coisas.
Agradeço
Aqueles que iluminaram meu caminho e cooperaram para a regularização de minha vida no
decorrer deste estudo.
“Era uma casa Muito engraçada
Não tinha teto Não tinha nada.
Ninguém podia entrar nela, não Porque na casa não tinha chão.
Ninguém podia dormir na rede Porque na casa não tinha parede.
Ninguém podia fazer pipi Porque penico não tinha ali.
Mas era feita com muito esmero Na rua dos Bobos
Número zero.”
Vinícius de Morais, Bardotti, Sérgio Endrigo
RESUMO Direito Coletivo Urbano: A regularização fundiária de loteamentos clandestinos e irregulares como efetivação da função social da propriedade. Diante da incessante busca de soluções para os problemas de ocupação urbana, o estudo pretende demonstrar que é possível resgatar a dignidade e a cidadania de grupos de indivíduos excluídos socialmente, por meio do reconhecimento e da legalização da moradia, convertendo-a em propriedade, ainda que aparentemente irregular ou clandestina, diante da legislação em vigor, notadamente a Lei Federal de Loteamentos e Parcelamento do Solo e o Código Florestal, levando-se em consideração os aspectos do Estatuto das Cidades. A evolução do Direito Urbano, nos últimos 50 anos, sob o ponto de vista (doutrinário e jurisprudencial) da evolução dos direitos humanos, a partir da visão das constituições até as atuais normas legais e as experiências positivas de iniciativas de Governos Estaduais e Municipais, embora isoladas, é precursora de uma nova etapa do resgate da cidadania, por ações concretas especialmente em São Paulo que criou e efetivou o Comitê de Regularização Fundiária (Cidade Legal) e, recentemente, com a instituição do Programa Minha Casa Minha Vida (Lei nº. 11.977/09) pelo Governo Federal, como a primeira lei nacional de regularização fundiária para a concretização dos ideais traçados constitucionalmente, sob forte influência do florescer do Direito Coletivo e sua função na sociedade, notadamente na ordem econômica e patrimonial. De outro plano, a concretização do direito à moradia e propriedade, no direito brasileiro, se opõe e confronta com as regras efetivamente traçadas para obtenção destes direitos. A busca de solução para estes e outros conflitos legais é o objetivo principal deste estudo.
Palavras-chave: Direito Coletivo Urbano. Urbanismo. Função social. Propriedade clandestina e irregular. Moradia e cidadania.
ABSTRACT
Urban collective right: landed regularization of clandestine and irregular occupations as effectuation of the function of the property. Before incessant search of solutions for the problems of urban occupation, the study intends to demonstrate that it is possible to rescue the dignity and the citizenship of individuals' groups excluded socially, by means of the recognition and legalization of the home, converting it in property, although seemingly irregular or clandestine, due to the available legislation, especially the Federal Law of Divisions into lots and Subdivision of the Soil and the Forest Code, being taken into account the aspects of the Statute of the Cities. The evolution of the Urban Right in the last 50 years, under the point of view (doctrinaire and jurisprudential) of the evolution of the human rights, since the vision of the constitutions until the current legal norms and the positive experiences of State and Municipal, although isolated initiatives of Governments, is precursory of a new stage of the rescue of the citizenship, by concrete actions especially in São Paulo, that created and it executed Landed Regularization's Committee (Legal City) and recently with the first national law of landed regularization that instituted the Program My House My Life (Law nº. 11.977/09), of the Federal Government, for the materialization of the ideals drawn constitutionally, under strong influence of blooming of the Collective Right and her function in the society, especially in the economical and patrimonial order. Of another plan, the materialization of the right to the home and property, in the Brazilian right, is opposed and it confronts with the rules indeed drawn for obtaining of these rights. The solution search for these and other legal conflicts is the main objective of this study. Keywords: Urban Collective Right. Urbanization. Social function. Clandestine and irregular property. Home and citizenship.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
1 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE............................................................. 17
1.1 OS PRÍNCIPIOS E A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO NO MEIO AMBIENTE URBANO ......................................................................................... 22
1.2 O DESENVOLVIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS ................................................................... 27
1.3 A POLÍTICA URBANA E A QUESTÃO FUNDIÁRIA ........................................... 35
1.4 O ESTATUTO DAS CIDADES ............................................................................ 47
1.4.1 A gestão democrática e as sanções ................................................................. 49
1.5 O PLANO DIRETOR ........................................................................................... 50
1.5.1 Os planos territoriais......................................................................................... 50
1.6 O PARCELAMENTO DO SOLO .......................................................................... 52
1.6.1 Os parcelamentos ilegais de solo ..................................................................... 56
1.6.2 O desenvolvimento sustentável ........................................................................ 60
1.6.3 As restrições urbanísticas ................................................................................ 62
2 O DIREITO COLETIVO URBANO ......................................................................... 64
2.1 OS ELEMENTOS DE DIREITO COLETIVO E A TUTELA COLETIVA DE DIREITOS ........................................................................................................... 64
2.1.1 O Direito Coletivo (ao bem estar) urbano ......................................................... 73
2.2 O USUCAPIÃO COLETIVO ................................................................................ 82
2.3 O USUCAPIÃO COLETIVO ADMINISTRATIVO ................................................. 86
2.4 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO COLETIVO URBANO ............................................................................................................. 88
3 A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA ........................................................................ 95
3.1 OS INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA ............................. 101
3.1.1 O Direito Coletivo como instrumento de regularização fundiária .................... 101
3.1.2 A Lei nº. 11.977/2009: instrumentos legais de regularização fundiária .......... 104
3.1.2.1 A regularização fundiária de interesse social .............................................. 109
3.1.2.2 A regularização fundiária de interesse específico ....................................... 113
3.1.3 O Programa Cidade Legal .............................................................................. 116
4 A TUTELA COLETIVA PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA DE OCUPAÇÕES CLANDESTINAS E IRREGULARES .......................................... 127
4.1 OS ASPECTOS PENAIS ................................................................................... 137
4.1.1 A responsabilidade e o crime ......................................................................... 137
4.2 O PODER DE POLÍCIA NO CAMPO URBANÍSTICO ...................................... 141
4.3 A CARACTERIZAÇÃO COMO IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA DA OMISSÃO DAS AUTORIDADES MUNICIPAIS NA FISCALIZAÇÃO DO USO DO SOLO ................................................................................................. 143
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 146
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 145
Introdução 10
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa inicia-se em uma época de transição, tal como a
transição verificada entre o Estado Liberal e o Estado Social que proporcionou o
reconhecimento de novas formas de conceber o direito, posicionando-o em
igualdade de valores com os direitos individuais e os direitos públicos.
Reconhece-se a angústia em estudar e escrever sobre um assunto tão
complexo que envolve e cerca a propriedade imóvel e quais as conseqüências desta
transição do vedado e oneroso para o permitido e incentivado, diante das novas
formas de operacionalizar a regularização fundiária. Formas estas instituídas
recentemente pela Lei Federal n.º 11.977, de 7 de julho de 2009 – primeira lei
brasileira de regularização fundiária – que complementa o Estatuto da Cidade e
estabelece novos paradigmas para tentar incorporar os princípios da função social e
tornar efetivo os princípios constitucionais de cidadania e da dignidade, por meio da
conquista da moradia digna, tendo em vista que um titulo de propriedade, apesar de
simples, proporciona ao seu detentor a confirmação da origem e a identificação dos
cidadãos e a segurança para se sentirem partes integrantes do sistema e buscarem,
para si e para a comunidade, outros serviços básicos.
Nesta concepção, o instituto da propriedade, pública ou privada, e a
função social do direito e sua aplicação, na atualidade, despertam acirrados debates
diante da visão diferenciada quanto a importantes e fundamentais conceitos de
institutos jurídicos complexos, como o direito de propriedade e seus fins.
Buscou-se a base de estudos na concretização do respeito aos Direitos
Coletivos, diversos do paradigma processual de cunho individualista, possibilitando
um avanço em relação à tutela coletiva, sendo este o objetivo da grande área de
estudo que originou o presente trabalho. Direitos classificados não como novos, mas
como nova compreensão de valores, que têm contribuído para atingir diversos
anseios dos operadores do direito com a efetivação de diversos preceitos
constitucionais nos quais o coletivo sobrepõe-se aos interesses pessoais e pela
relevância de seu conteúdo, mais social, mais humano, dirigido à coletividade com
Introdução 11
amplas possibilidades de resgate da cidadania e recuperação da dignidade e
igualdade material dos tutelados, enquanto sujeitos de direito, tentando inserir no
contexto a sua função social.
Buscou-se, de forma relevante, destacar a Função Social dos Direitos
Coletivos, especificamente na utilização da propriedade urbana enquanto utilidade
para a sociedade e não somente para o proprietário, ou seja, buscando o fim social
do direito de propriedade, uma vez que não há Direito sem um Fim Social, e de
forma a se manter o equilíbrio e não se perder as conquistas do próprio direito,
enquanto liberdade.
A própria origem do direito de propriedade e sua função no ambiente
urbano foi amplamente questionada, tendo como questão central do estudo o seu
parcelamento e a sua inserção no meio ambiente construído, centenas de anos
antes, quando não havia qualquer preocupação urbanista ou social. A pesquisa
iniciou-se anos atrás, no início da década de 90, por diversas discussões e debates
enquanto participante da comissão de regularização fundiária, representando o
Poder Público Municipal, conjuntamente com técnicos do Poder Executivo Municipal
e Representantes do Ministério Público. Debates estes que ocorriam ora através dos
proprietário de áreas que não conseguiram, por inúmeros motivos, realizar o regular
parcelamento, tornando-os irregulares ou totalmente clandestinos, bem como diante
do contato direto com os moradores das referidas áreas no decorrer dos anos,
inclusive contato pessoal nos loteamentos clandestinos, até a sua efetiva
regularização e efetivação dos direitos sociais.
Tal questão causa preocupação há muitas décadas, não só no Brasil
como em todo o planeta, em todos os povos, cada qual com suas próprias
características, mas, em quase totalidade, vitimas da falta de planejamento e do
descaso dos poderes públicos, notadamente pela não intervenção na formação de
novos núcleos até a própria conivência. Por comodidade político-administrativa de
todos os interessados, não excluíndo os próprios compradores que, diante do
escasso mercado imobiliário, optam pela clandestinidade, a baixo custo, com um
custo (invisível) próprio e social elevado, muitas vezes de proporções catastróficas.
Entretanto, aqueles que, por inúmeras razões, adquiriram imóveis
oriundos de parcelamentos irregulares, executados de forma diferente do projeto
aprovado, ou totalmente clandestinos, sem registro do respectivo projeto, e ali
Introdução 12
ergueram suas residências e fixaram moradia sem conseguir a regularização, em
sua maioria por problemas meramente formais e excesso de requisitos prévios e
burocracia exagerada, podem ter resgatados os valores sociais da propriedade, a
dignidade e a cidadania com o reconhecimento e o respectivo registro imobiliário da
aquisição de sua propriedade.
Cumpre ressaltar, e deixar claro, que em nenhum momento há
concordância com a invasão de terras produtivas ou socialmente utilizadas, bem
como da posição contrária à ocupação de áreas de risco, de vidas, e especialmente
as áreas de preservação ambiental, inclusive com danos para toda a coletividade,
cujas ações devem ser totalmente diferenciadas das aqui apresentadas, para
minimizar as perdas e os danos já causados.
Sendo favorável a regularização fundiária, é sério o temor na forma de
sua efetivação, em não se buscar sérios critérios de equilíbrio, entre o social, o
ambiental e o urbano, diante destas novas formas de regularização e aquisição da
propriedade, formal, e as conseqüências da aplicação destes novos instrumentos, se
forem executados sem responsabilidade na sua concretização.
Dentre as formas de aquisição da propriedade e as questões
fundiárias, todas conhecidas entre nós, notadamente afetadas pelas restrições
urbanísticas, foram tratadas conjuntamente com as experiências efetivas da Política
Nacional Urbana, a sua evolução, bem como a utilização de métodos coercitivos,
como o Plano Diretor, e as restrições legais à utilização da propriedade.
Neste contexto, em tempos de reconhecer novos valores aos antigos
institutos e a disponibilidade de novos instrumentos legais, consagraram a nova
visão coletiva do direito, em nosso País, iniciada pela própria Constituição Federal,
pelo Código do Consumidor, pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Estatuto da
Cidade, especificamente no nosso campo de estudo e pesquisa, onde, consagrou-se
o usucapião coletivo, como efetivo instrumento de inclusão social, de grande parcela
da população, resgatando a dignidade com a efetividade dos direitos sociais, de
moradia digna e cidadania, pela conquista do título de propriedade.
Ao Município sempre coube a responsabilidade (ou a falta) pelos
parcelamentos do solo, sempre indiscriminadamente utilizados e sem qualquer
Introdução 13
controle efetivo, proliferaram por todo o País, e somente agora, buscam minimizar os
efeitos catastróficos desta omissão, na maioria das vezes com seus crimes impunes.
Destaca-se, neste trabalho, com acompanhamento pessoal de seu
desenvolvimento, dentre outros programas, o Programa “Cidade Legal”, do Estado
de São Paulo, por se entender que, pela primeira vez, o Poder Público contempla a
questão da regularização de forma séria e com disponibilização de recursos
financeiros e de mão-de-obra especializada para os trabalhos técnicos que
demandam as regularizações, cujo custo inviabilizou, na maioria das vezes, as
tentativas de busca da solução legal.
Somente no século XXI evoluíram as legislações federal, estadual e
municipal, até então severas e impeditivas na aprovação da regularização fundiária,
por não atenderem e aceitarem a situação urbana consolidada quanto à infra-
estrutura básica, aos arruamentos, às áreas verdes, à área mínima de lotes, às
áreas institucionais, às restrições urbanísticas e ambientais, sofrendo profundas
alterações em seus conceitos.
Assim, em que pesem os esforços anteriores, somente recentemente,
especialmente após a Constituição Federal de 1988, foram criados instrumentos
legais, em níveis estadual e federal com o apoio do Poder Judiciário e do Ministério
Público, para efetivar especificamente as regularizações fundiárias.
Compreende-se que o problema deve ser solucionado como um
conjunto de interesses inseridos dentro do complexo sistema social e não
isoladamente. Assim, pelas novas regras, o Município, diante do caso concreto,
recebe assessoria técnica do Estado para editar as leis municipais específicas para
as ocupações, para elaborar diagnósticos, plantas, memoriais, levantamentos
planialtimétricos e identificação de restrições especiais, a fim de adequar a situação
à legislação, tornando estes imóveis, irregulares ou clandestinos, aptos ao registro
imobiliário e, a partir da regularização da propriedade, implantar a infra-estrutura
necessárias e as alterações do projeto aprovado e irregularmente executado ou,
aprovando-se o novo projeto pela demarcação, criando-se as matriculas respectivas
isoladamente ou de forma coletiva em condomínios.
As etapas buscadas em toda regularização são a efetivação do
reconhecimento do direito de propriedade e a implantação das obras de infra-
Introdução 14
estrutura básica e outras intervenções pelo Município, Estado ou Sociedade, no
resgate da cidadania e da inclusão social destas comunidades.
Estes programas de regularização fundiária urbana ganharam
substancial reforço a partir da edição do Estatuto das Cidades e, recentemente, com
a redução dos custos para os registros e a primeira legislação federal especifica, Lei
Federal n.º 11.977, de 2009, denominada Programa Minha Casa Minha Vida, de
grande valor para a concretização da função social da propriedade, tema deste
estudo.
O referido programa visa à garantia da função social da propriedade
imobiliária urbana nas cidades, diminuindo as exigências para ampliar o acesso aos
bens e serviços públicos, com a finalidade de promover o reconhecimento dos
direitos sociais e constitucionais de moradia e qualidade de vida digna.
Ações efetivas estão em andamento, sem se poder avaliar os impactos
de determinadas conseqüências como é o caso de favelas, localizadas notoriamente
em áreas de risco, cuja situação pode ser considerada irreversível.
Novas formações, invasões, ocupações ou, ainda, a ampliação de
qualquer núcleo ou ocupação devem ser severamente coibidas para contornar e/ou
minimizar os problemas, advindos da desordenação urbana e da clandestinidade,
para toda a sociedade. Assim, entende-se que a impunidade deve ser repensada e
devem ser ampliadas as possibilidades de tipificação das sanções aos responsáveis
e co-responsáveis, notadamente os agentes públicos e políticos. O poder, o dever e
a capacidade de exercer tal controle e fiscalização são do Município e este deve ser
responsabilizado, incluindo o Chefe do Poder Executivo que, da mesma forma, deve
ser responsabilizado pelos atos e omissões no descumprimento da legislação
federal, caracterizando-os como improbidade administrativa.
Verifica-se ainda que, mesmo que existam inúmeras críticas e diversos
defeitos técnicos jurídicos, tem-se o instrumental necessário para minimizar a
exclusão social de grande parcela da população, para fornecer meios à
reurbanização, bem como para o combate à ilegalidade nos parcelamentos do solo e
ao descaso social urbano.
O início de amplas ações a respeito do saneamento do meio ambiente
urbano é possível. As leis em foco permitem à autoridade administrativa, ao Poder
Introdução 15
Judiciário (sempre quando instado), ao Ministério Público e, diretamente, aos
Municípios e Serviços de Registro de Imóveis inúmeras possibilidades de ação, de
forma a corrigir ou coibir, a reprimir ou prevenir. Há, portanto, instrumentos legais
para a regularização fundiária e o combate à clandestinidade e à irregularidade.
Serão apresentadas e avaliadas, na parte final do trabalho, ainda que
de interpretação pessoal sem respaldo em culta doutrina, mas apenas em artigos
esparsos e comentários pessoais do ponto de vista jurídico, no texto da própria lei
11.977/09, as diferentes abordagens de elaboração de projetos de regularização da
propriedade e resgate da cidadania, incluindo-se a discussão sobre procedimentos
para a inclusão da opinião da população e de resultados de avaliação pós-ocupação
nas tomadas de decisão. Serão explorados os contextos sociais, políticos e
espaciais em que esses projetos serão a base da intervenção.
Por ser assunto recente, este estudo se caracterizou por ser do tipo
exploratório, em função da existência de poucos estudos que tratam do tema na
realidade brasileira. Embora o conhecimento sobre regularização fundiária seja bem
difundido em diversos países, no Brasil há pouca literatura e as tentativas práticas
estudadas demonstraram que estes conceitos ainda estão em estágios primários.
O universo de pesquisa foi constituído de loteamentos clandestinos e
irregulares nas áreas urbanas consolidadas e as ações efetivas para a sua
regularização.
Estes assentamentos humanos coletivos se caracterizam por
ocuparem áreas utilizadas como moradia, excetuando-se as impróprias ou com
riscos, à sua própria integridade e da sociedade, cuja solução será outra. Acredita-
se que, nestas, como é indicado pela literatura, haverá maior probabilidade de se
encontrar práticas de regularização com relativo sucesso.
A escolha destes assentamentos se deu pelo fato de serem setores
excluídos da legislação com um número elevado de situações de fato. Ao mesmo
tempo, é um dos grandes problemas que figura com grande número de ações
individuais, com foco constitucional e coletivo e com grandes conflitos de princípios,
na atual sociedade urbana moderna.
Em relação ao caráter exploratório e qualitativo deste estudo, não
existe a pretensão de se propor qualquer generalização ou mesmo um modelo ideal,
Introdução 16
mas sim trazer informações sobre a aplicação dos conceitos de direito coletivo
urbano, na realidade brasileira urbana.
A aplicação do instrumental jurídico e sua efetiva aplicação serão
objeto de melhores e mais profundos estudos e conclusões futuras, a partir das
atuais ações na contribuição para a transformação desta realidade. A carência é
conhecer e aplicar os novos instrumentos na busca do equilíbrio no meio ambiente
urbano, quanto a abrigar seus habitantes de forma digna e saudável, atendendo às
suas funções e a melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes.
A função social da propriedade 17
1 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Em tempo de transformações o sagrado e natural direito à propriedade
amadureceu. No decorrer da história do homem surgiram diversas concepções para
procurar explicar sua natureza, para entendermos, hoje, a propriedade não como um
direito subjetivo do proprietário, mas uma função social do detentor da riqueza,
devendo gerir seu patrimônio no interesse de todos, trazendo consigo características
gerais, coletivas, unitárias, perpétuas, absolutas, exclusivas, elásticas e sociais e,
acima de tudo, éticas para poder exercer, de forma plena, o direito de uso, gozo,
disposição e reivindicação.
Entende-se tal concepção não como limitação, mas sim adaptação do
direito patrimonial, uma delimitação do direito conforme as necessidades da vida em
sociedade, pois o direito de propriedade é vinculado às normas legais sem que seu
exercício venha a lesar direitos de terceiros, ou seja, utilizado contrariamente à sua
finalidade social e de bem-estar coletivo.
Sem esta nova conformação o direito de propriedade não preexiste ao
perfil que se impõe hoje com novo aspecto, novo contorno, que exige um exercício
contínuo de sociabilidade, num ambiente que favoreça os interesses sociais e
coletivos, buscando harmonia entre os princípios da propriedade privada e da função
social da propriedade.
Apoiada pela melhor doutrina, Rosa M. A. Nery afirma que:
Já não é mais possível preservar a idéia de que o contrato opera efeitos apenas entre as partes que o celebram. Há na compreensão moderna do contrato, bem como da empresa que opera o mercado e da propriedade privada, um sentido funcional de promoção social que ultrapassa os limites da funcionalidade do ato e do negócio, como mera experiência particular de um sujeito. Os institutos do direito de obrigações não podem abdicar de sua função construtiva de uma sociedade mais justa. Não pode o contrato, fruto da mais elaborada técnica jurídica, dispõem-se a representar um papel que se ponha contra essa finalidade científica do direito.
É por isso que o contrato, expressão jurídica máxima da liberdade deve ser estudado não apenas sob o ponto de vista de sua base subjetiva, ou seja,
A função social da propriedade 18
da manifestação da liberdade negocial das partes, mas também, e principalmente, sob o ponto de vista de sua base objetiva e, porque não dizer, de sua função social.
1
O princípio da função social é decorrência da razão de ser do direito
como um elemento da sociabilidade e de mantença da totalidade do tecido social, de
forma harmônica e não contraditória.
Com importante contribuição, acrescenta Flávio Tartuce:
Sintonizado com o princípio da função social do contrato, não se pode afastar a importância do art. 51 do CDC para a nova visualização dos pactos e avenças celebrados sob a sua égide. Ora, quando Código Consumerista reconhece a possibilidade de uma clausula considerada abusiva declarar nulidade de um negócio, esta totalmente antenado com a intervenção estatal nos contratos e com aquilo que se espera de um direito moderno, mas justo e equilibrado.
[...]
A primeira tentativa relevante de trazer ao nosso sistema o princípio da função social dos contratos ocorreu com a promulgação da Lei 8.078/1990, restrita, em princípio, a sua aplicação aos contratados de consumo. Com o Código Civil de 2002 temos uma ampliação do uso do principio da função social dos contratos, inicialmente pelas previsões gerais que constam dos seus arts. 421 e 2.035, parágrafo único, bem como de outros dispositivos legais específicos, que merecerão um estudo detalhado.
2
O autor, acima referido, completa:
A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
[...]
Pela vanguarda dessa nova visão, os contratos devem ser interpretados de acordo com a concepção do meio social em que estão inseridos, não trazendo onerozidade excessiva ou situações de injustiça às partes contratantes, garantindo que a igualdade entre elas seja respeitada, equilibrando a relação em que houver a preponderância de situação de um dos contratantes sobre a do outro. Valoriza-se a eqüidade, a razoabilidade, o bom senso, afastando-se o enriquecimento sem causa, ato unilateral vedado expressamente pela própria codificação emergente, nos seus arts. 884 a 886.
3
1 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito
privado. São Paulo: RT, 2008, p. 249, grifo da autora. 2 TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código
Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007, p. 168-169. 3 Ibid, p. 239-240.
A função social da propriedade 19
Eis a fórmula, eis o desafio: o equilíbrio entre valores pela ponderação,
razoabilidade e proporcionalidade, entre usufruir e contribuir para uma sociedade
menos egoísta e, da mesma maneira, conscientizar o ser humano, culturalmente
explorador e naturalmente apropriador, a tornar-se sustentável e a dividir.
Entretanto, ações positivas, embora isoladas, estão sendo efetivadas (ainda que
tardias) e novas perspectivas, com a edição da Lei nº. 11.977/09, poderão ser
implementadas na busca de melhores condições de vida a milhões de pessoas
resgatando, efetivamente, a cidadania e a dignidade de possuir um endereço. Um
requisito tão banal para todos que possuem moradia regular, mas de conseqüências
devastadoras para aqueles que não o possuem, pois significa total exclusão social.
Os fundamentos da função social da propriedade, embora de
inspiração divina, solidária e fraternal em constante evolução, notadamente na
Europa, no sistema jurídico brasileiro, salvo normas sanitárias e de desapropriação,
tiveram suas estruturas plantadas apenas após a Constituição Federal de 1988,
conforme Rosa M A Nery, citando Nery-Nery:
Como já se disse os arts. 5. ° XXIII e 170 III da Constituição Federal ali estão por inspiração da Constituição alemã de 1919 (Constituição de Weimar), que no art. 153, in fine, estabeleceu, por inspiração dos civilistas Martin Wolff Otto Von Gierke, os princípios de que „a propriedade obriga‟ (Eigentum verpflichtet) e da „função social da propriedade‟ (Gebrauch nach Gemeinen Besten).
4
E, arrematando, a questão, afirma que:
Assim deve ser visto o direito de propriedade, que - como, aliás, todos os outros institutos jurídicos - não se compadece de uma consideração voltada, exclusivamente, para o atendimento e satisfação apenas dos interesses pessoais de um titular, mas cumpre um papel (uma função) dentro do regime jurídico posto, de atender também a interesses sociais.
5
Entretanto, adverte a autora que o direito real de propriedade, como
complexo lógico-jurídico necessário para a sua plena fruição, somente é
fundamental quando cumpre sua função social. Assim, para Rosa M.A. Nery:
4 NERY-NERY apud NERY, 2008, p. 171, destaques da autora.
5 Ibid, loc. cit..
A função social da propriedade 20
Pode-se compreender o direito real de propriedade como esse feixe de interações que „juridiciza‟ aspectos velhos e novos da vivência social do homem quanto ao gozo jurídico e econômico de seu patrimônio material, para além do comando da Carta Política (CF 5.° XXII a XXVI; 20; 26; 170 III e VI; 176 caput; 182; 184; 185 parágrafo único; 186; 216; 225 §§ 4.º a 6.°; e 243). Aspectos que respeitam: - ao sistema de responsabilidade ex re, em decorrência dos chamados
direitos de vizinhança (CC 1.277 a 1.313); - à instituição do chamado bem de família (CC 1.711 a 1.722); - à tratativa jurídica do chamado patrimônio mínimo (Lei 8.009/90); - ao sistema de garantias reais (penhor, anticrese e hipoteca - CC 1.419 a
1.510) e ao sistema de propriedade fiduciária (CC 1.361 caput); - ao sistema de responsabilidade ex re, em decorrência das chamadas
obrigações „propter rem‟ (v.g. CC 1.336 I; CC 1.315 caput); - ao sistema real de solidariedade social com institutos como o da
servidão (CC 1378 a 1.389) e o da superfície (CC 1.369 a 1.377); - aos sistemas de segurança real-pessoal, a partir do aparato técnico de
mecanismos institucionais como o usufruto (CC 1.390 a 1.411), o uso (CC 1.412 e 1.413), a habitação (CC 1.414 a 1.416);
- às limitações impostas pela finalidade econômica e social do bem (CC 1.228 § 1.°);
- às limitações impostas pela proteção ambiental (CC 1228 § 1.°); - às limitações decorrentes dos planos diretores das cidades ou do
Estatuto da Cidade; - à destinação da coisa (CC 1.314); - à técnica dos registros públicos imobiliários e de títulos e documentos. Tudo isso é expressão da função social da propriedade dentro do sistema. Na medida em que cabe também ao direito privado prover o sistema jurídico de mecanismos e instrumentos capazes de permitir que o Estado organize a economia ou intervenha nela, e que o contrato e a propriedade são instrumentos tradicionais utilizados para esse fim, bem como na medida em que a empresa adquire diversas formas jurídicas para poder operar o mercado, é perfeitamente atual e necessário que se diga ter a empresa uma função social consentânea com os princípios que o direito privado pretende ver realizados.
6
Conforme se deduz a função social é instituto jurídico indissolúvel do
exercício de qualquer direito, notadamente os de cunho patrimonial que, além dos
princípios que os norteiam, devem orientar-se pela ética, pela boa fé e pela
lealdade, como bases de sustentação de uma sociedade solidária, desenvolvida,
pós-moderna.
Adverte, porém, José Rodrigues Arimatéa:
Todo o panorama constitucional da propriedade privada e a sua disciplina nas legislações ordinárias ainda não receberam o impacto das novas tempestades que se avizinham, trazidas pela nova ordem econômica mundial. A tendência de superação dos Estados Nacionais, verificada na Europa Comunitária, onde os tratados obrigatoriamente integram as
6 NERY, 2008, p. 253.
A função social da propriedade 21
Constituições dos Estados, certamente, influenciará a disciplina jurídica do direito de propriedade, harmonizando-o com as novas exigências públicas, notadamente, no campo do urbanismo e do meio ambiente.
7
As cidades devem ser sustentáveis. O campo deve ser sustentável.
Deve-se buscar o equilíbrio impondo limitações e restrições ao seu uso, estando
condicionado ao interesse coletivo, difuso e social.
Esta deve ser a regra social imposta nestes novos tempos e, em boa
hora, o Brasil apresenta promissoras intenções legislativas.
Este raciocínio atribui novas formas de intervenção estatal para estes
novos tempos, de relações múltiplas, interesses antagônicos de grupos, gerando
tensão e instabilidade social pela ausência do Estado.
É nesse contexto que o Poder Público é obrigado a intervir, pois os conflitos já não são mais inter-individuais, não interessam somente a pessoas determinadas, passaram a ser multifudiários, opondo os indivíduos aos grupos, ou até mesmo grupos se opondo aos grupos, o que requer a equilibrada atuação estatal
Não se questiona que a propriedade, mesmo diante da nova ordem econômica mundial, terá seu lugar de destaque, haja vista que a nova ordem não prescinde do contrato e nesse particular lembramos, e não é demais repetir, as sábias palavras de Messineo: „Si no se admitiera la riqueza (la propiedad) privada, ésta no podría circular y el contrato careceria casi enterammente de función pratica‟. Mas, a propriedade imóvel continuará sofrendo duras limitações.
Um dos maiores estudiosos do direito civil na Espanha José Luis de Los Mozos, bem destaca as transformações vividas pela propriedade privada: „como consecuencia de las técnicas de la planificación y de la ordenación del territorio, lo que se ha producido verdaderamente, más que una transformación de la propiedad que genera nuevas limitaciones del derecho, ha tenido lugar una nueva delimitación de los objetos sobre los que recae el mismo, mediante la incorporación en muchos casos a la actuación de aquellos del concepto de „finca funcional‟‟. O aumento da população mundial torna os bens, sujeitos a propriedade, mais escassos e, bem por isso, o direito de propriedade sobre eles e cada dia mais limitado.
A distribuição geopolítica das nações, após o término da Guerra Fria e as novas tendências do Direito, diante dos tratados comunitários e integradores, certamente provocarão novas mudanças em todo o cenário jurídico mundial e a propriedade não ficará incólume a estas novidades.
8
7 ARIMATÉA, José Rodrigues. O Direito de Propriedade: limitações e restrições públicas. São
Paulo: Lemos Cruz, 2003, p.42-43 8 Ibid., p. 43.
A função social da propriedade 22
Que estes novos tempos tragam, de forma equilibrada, a sonhada
justiça social no Brasil, onde as estatísticas demonstram que somos campeões em
produzir riquezas e misérias em igual escala e que, através da atuação do direito,
encontre-se o equilíbrio entre capital e social diante das novas orientações e
disposições legais, surgidas a partir do novo século, precursoras de novos direitos e
deveres ou de novo perfil para tradicionais instituições jurídicas.
Já não são tão recentes, embora ainda isoladas, ações para efetivar-se
a limitação administrativa ao direito de propriedade, em razão de sua função social
no contexto urbano. Assim, decidiu o Supremo Tribunal Federal, como Relator o
Min. Carlos Veloso, no RE 176.836:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. DIREITO DE CONSTRUIR. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. I. - O direito de edificar é relativo, dado que condicionado à função social da propriedade: C.F., art. 5º, XXII e XXIII. Inocorrência de direito adquirido: no caso, quando foi requerido o alvará de construção, já existia a lei que impedia o tipo de imóvel no local. II. - Inocorrência de ofensa aos §§ 1º e 2º do art. 182, C.F. III. - Inocorrência de ofensa ao princípio isonômico, mesmo porque o seu exame, no caso, demandaria a comprovação de questões, o que não ocorreu. Ademais, o fato de ter sido construído no local um prédio em desacordo com a lei municipal não confere ao recorrente o direito de,
também ele, infringir a citada lei. IV - R.E. não conhecido. 9
Novos conceitos e novas definições, pela doutrina e pela produção
jurisprudencial serão de enorme contribuição para se firmarem estas novas
concepções e conceitos de propriedade e função social do direito.
1.1 OS PRINCÍPIOS E A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO NO MEIO AMBIENTE URBANO
Ao transpor os conceitos capitulados pela Lei nº. 6.938/81 para o
espaço urbano, Vanêsca Buzelato Prestes pontua que:
9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 178836 / SP - SÃO PAULO, 2ª
Turma. Recorrentes: Antônio Cesar Novaes e outros. Recorrido: Município de Ribeirão Preto e Outro. Relator: Min. Carlos Velloso. Brasília, 8 de junho de 1999. Disponível em: <http://saopaulo.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/16-Constitucionalidade%20da%20limitao%20do%20direito%20de%20construir%20_%20limitao%20administrativa_STF.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2010.
A função social da propriedade 23
[...] para o planejamento, a avaliação, a indução, a redução dos impactos visando o equilíbrio ambiental nas cidades, necessariamente precisamos adotar o conceito contemporâneo de meio ambiente, o qual pressupõe a presença do homem e todos os aspectos do espaço construído que interagem e repercutem no ambiente. Sobretudo no espaço urbano, notadamente modificado ao ambiente natural. Na avaliação dos impactos, no planejamento da cidade, é imprescindível considerar o processo de urbanificação, os serviços postos à disposição do mercado consumidor (em-prego, lazer, cultura, habitação, segurança, etc.), a relação com os empreendimentos e a infra-estrutura urbana, a repercussão social e o impacto econômico destes, a fim de efetivamente buscar-se o equilíbrio ambiental no espaço urbano.
10
O presente trabalho, embora inspirado e com visão configurada na
prática de implementação de regularização fundiária, realiza um esforço teórico para
a compreensão do fenômeno da interpretação da norma constitucional a respeito do
conceito de propriedade e moradia, na visão contemporânea da nova hermenêutica,
traçando um percurso histórico dos princípios na hermenêutica jurídica, alçados hoje
à definitiva categoria de norma de efetividade reconhecida. Para tanto, ressalta-se a
relevância do princípio, enquanto referência na decisão dos casos difíceis típicos da
matéria ambiental em conflito com o urbanismo, e a utilização das técnicas de
ponderação na colisão dos princípios que afetam especialmente os princípios
constitucionais do desenvolvimento e da ordem econômica e da precaução na
interpretação de importantes questões desenvolvimentistas relacionadas à proteção
ambiental, à dignidade da pessoa humana e à necessidade de se harmonizar o
conceito de cidadania neste contexto social.
Descrever a trajetória do princípio constitucional, enquanto sede de
reconhecimento de direitos, significa, segundo a maioria dos autores, apontar a sua
característica evolutiva histórica de referência interpretativa à condição de norma
que, mesmo quando não explícita, produza eficácia interpretativa plena.
A linguagem jurídica tem muito de comparação e proporção, algo que
se sustenta e se estabelece a partir de uma estrutura de proporcionalidade, criada
pela palavra, mas que não basta para sustentar a pretensão do jurista que busca
explicações mais precisas para a finalidade científica do direito, conforme leciona
Rosa Maria de Andrade Nery11.
10
PRESTES, Vanêsca Buzelato (Org.). Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 27.
11 NERY, 2008, p. 20.
A função social da propriedade 24
“A experiência social é marcada pela presença do homem em situação
de permanente convívio com os seus semelhantes”12, segundo a mesma autora
que, ao discursar sobre a sabedoria jurídica e o direito como arte, ressalta as
preocupações da tensão criada entre o direito ideal e o direito para a vida prática,
citando a exposição de Norberto Bobbio em que enfrenta, entre outras, a passagem
de Aristóteles, em Política (1252), com o seguinte teor:
A comunidade que se constitui para a vida de todos os dias é por natureza, a família [...]. A primeira comunidade de várias famílias para a satisfação de algo mais que as simples necessidades diárias é o povoado [...]. A comunidade perfeita de vários povoados é a cidade, que atingiu o que se chama de nível de auto-suficiência e que surge para tornar possível a vida e subsiste para produzir as condições de uma boa vida.
13
Entretanto, não se pode compreender o direito só como arte, ciência ou
técnica, pois o método jurídico-científico, para o equilíbrio fundamental da
sociedade, visa à igualdade social ainda que somente exista um modo de pensar o
direito, pois tanto o positivismo quanto o direito natural devem nortear seus
caminhos para as normas de convivência em sociedade, hoje globalizada, que
transcende os territórios e nações, atribuindo-lhe relevância internacional e valores
como a eticidade, a sociabilidade e a operabilidade, já insculpidas no Código Civil de
2002.
Inúmeros autores afirmam que o Código Civil, de 1916, foi elaborado
com o objetivo de manter os privilégios do individualismo e, na atualidade,
preponderam fatores tais que os interesses sociais devem sempre merecer
redobrada atenção respaldados na Constituição Federal que direciona o exercício do
direito privado submisso à sua função social, notadamente o de propriedade.
Atendendo aos anseios da nova sociedade, o Código Civil, de 2002,
torna operante o princípio da solidariedade, a partir da orientação constitucional de
construir uma sociedade livre, justa e solidária, como princípio fundamental;
notadamente no que diz respeito ao interesse público e ao social.
12
NERY, 2008, p. 20. 13
Ibid., loc. cit.
A função social da propriedade 25
A fase atual, comumente denominada pela doutrina de pós-positivista e
pós-moderna, tem seu marco temporal delimitado em meados do século XX, com o
reaparecimento da discussão sobre a divisão característica entre regra e princípio e
seus consequentes desdobramentos, que importam na valoração interpretativa do
princípio e não mais no questionamento de sua validade enquanto norma. Parte-se
da noção de que a temática da interpretação principiológica é fundamental para o
entendimento das questões urbanísticas e ambientais, uma vez que as mesmas
revestem-se, na sua grande maioria, de aplicações de princípios consagrados na
quase totalidade dos ordenamentos constitucionais do mundo ocidental. O conflito
ambiental poderá carregar a idéia da colisão entre estes mesmos princípios, como
ocorre nas situações em que estão envolvidos o princípio da precaução e o princípio
do desenvolvimento explícito nas disposições da Ordem Econômica na nossa
Constituição Federal.
O dogmatismo jurídico requer do aplicador uma elevada dose de
abstração teórica e um distanciamento das questões ideológicas e contextuais que
cercam o intérprete da norma. Por seu turno, as situações de colisão de princípios
requerem um esforço na busca do maior grau possível de objetividade necessária à
atividade interpretativa.
Na adoção das técnicas da ponderação ou razoabilidade, comuns na
aplicação da regra principiológica, a análise da dose valorativa do princípio exige
uma abordagem mais ampla do fenômeno jurídico considerada no vasto leque da
função política da decisão judicial. Essa função, que repercute na questão clássica
da tripartição dos poderes e dos mecanismos de freios e contrapesos, é analisada
por autores clássicos da filosofia jurídica contemporânea sob o ponto de vista da
interpretação da lei, nos moldes do pós-positivismo e da relevância dos princípios na
atividade interpretativa.
Acredita-se que, respeitados os limites éticos e o distanciamento do
intérprete em relação ao seu objeto de estudo – ou situação de aplicabilidade da
norma –, é perfeitamente possível a interpretação “justa”, requerida pela colisão
entre princípios que demanda a ponderação. Ainda, assume-se a ótica segundo a
qual, em Direito, essa representação da realidade não é fácil de verificar,
especialmente no ato de interpretação da norma, sem que as crenças e valores do
intérprete sejam refletidos no seu objeto de atuação. Contudo, considera-se que a
A função social da propriedade 26
objetividade possível é plenamente alcançável em nome da eficiência do sistema
jurídico. Em se tratando de interpretação principiológica, especialmente na
ocorrência de situações de ponderação, o cuidado que cerca o intérprete deverá ser
redobrado, no sentido de extrair o máximo das possibilidades objetivas que a
atividade interpretativa possa oferecer, sem deixar de exercer a função político-
jurídica própria do intérprete.
Há necessidade de fazer-se uso das técnicas de ponderação que
cercam a interpretação de normas dotadas de natureza constitucional
principiológica, especialmente em questões ambientais que se revestem, com muita
freqüência, da condição de colisão.
São geralmente questões políticas, nas quais o conflito de interesses é
bastante ressaltado ou considerado um caso difícil. A ponderação leva em conta não
só o equilíbrio das situações de colisão de princípios, mas embute percepções dos
intérpretes que carregam, para a solução do conflito, seus valores individuais. Essa
consideração é importante quando se considera a natureza política que assume o
intérprete no momento em que se torna detentor da função de julgar e capaz de,
mediante sua decisão, influenciar o comportamento em um segmento administrativo
ou adoção de medidas de política pública. A ponderação permite ao intérprete,
buscando o distanciamento epistemológico de seu objeto e a busca da consciência
ética, a adoção de escolhas interpretativas com elevado grau de objetividade. O
controle das técnicas de ponderação deve favorecer a possibilidade de que não
possa existir, jamais, a opção por um ou outro princípio sob pena de
inconstitucionalidade da decisão, mas tão somente o sopesamento do princípio no
caso para eleição do menos danoso ao rol de direitos e garantias postos sob análise
na situação concreta.
Seja o desenvolvimento, seja a precaução, enquanto princípios
constitucionais da carta constitucional brasileira, o determinante ético da função do
hermeneuta jurídico assume destaque ao lado da consciência política do julgador,
favorecido pela condição de objetividade possível na técnica de ponderação.
Weinberger, citado por Rosa M. A. Nery, vê a experiência jurídica com
duas vertentes, uma moral e uma legal.
A função social da propriedade 27
[...] As considerações que determinam as noções doutrinárias de justiça sempre ocorrem em conjunção com considerações utilitárias. Elas não são, portanto, um caso de „justo‟ ou „injusto‟, mas em regra se preocupam em achar modos de agir que sejam tanto justos quanto apropriados para um propósito relevante.
14
A autora continua, citando Childs e Cater, afirmando que em todos os
sistemas é ausente a união entre individuo e comunidade.
No sistema individualista, o erro advém da supremacia dada ao individuo poderoso, tornando a „sociedade um valor decorrente, um meio para os fins do bem estar individual‟. Um sistema coletivista trata o indivíduo como um meio a ser utilizado ou destruído, de acordo com as necessidades, para atingir uma perfeição teórica.
15
Conclui-se que a função do direito é ser justo e o mal do nosso tempo é
a perda da noção de conjunto do direito, que ameaça a exatidão dos julgamentos da
justiça, sobretudo, por uma visão parcial.
A função social da propriedade aplicada ao meio ambiente urbano,
construído, o “habitat humano” é o foco deste estudo, que visa à conciliação entre
urbanismo e meio ambiente e que, através de instrumentos jurídicos, procura-se
minimizar os conflitos e buscar mínimas soluções de convivência, digna e saudável.
1.2 O DESENVOLVIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS
Em abordagem que demonstra profundo conhecimento sobre Direito
Urbanístico no ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica das Constituições
Federais e do próprio desenvolvimento da função social da propriedade, Carlos
Magno Miqueri da Costa afirma que:
14
WEINBERGER apud NERY, 2008, p. 247. 15
CHILDS; CATER apud NERY, op.cit., p. 248.
A função social da propriedade 28
A Constituição do Império, de 25.03.1824, foi omissa, porém declarou que as Câmaras Municipais governariam as cidades e vilas nos moldes de lei regulamentar que, por sua vez, veio a viger em 1828. Fez constar, em seu art. 179, inc. XXII, que o direito de propriedade seria uma das bases dos direitos políticos e civis dos cidadãos brasileiros, cuja plenitude e inviolabilidade apenas seriam excepcionadas em casos de interesse público („bem público‟), prevendo a lei essas situações e o direito de ser o proprietário „previamente indenizado do valor dela‟.
[...]
A retro demonstrada concepção, daí por diante, foi pouco alterada, mantendo-se distante de contextualização urbanística ou de ordenação do território mais abrangente. A primeira Constituição da Republica, de 1891 igualmente se restringiu a tratar da propriedade privada, trazendo para seu texto a designação da „desapropriação por necessidade ou utilidade pública‟, mantendo a previsão do direito à indenização previa (art. 72, § 17). A seguinte Constituição Republicana, de 16.07.1934, acrescentou que o direito de propriedade „não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar‟, retirando-lhe sua até então consagrada plenitude e abrindo uma fresta em sua redoma protetora (art. 113, item 17). Fresta que foi eliminada com o retrocesso normativo promovido pela Constituição de 10.11.1937 (art. 122, item 14), interrompendo, momentaneamente, a propagação das raízes da função social da propriedade, por sua vez retomada pela Constituição de 1946, ao ser preconizado por esta que o uso da propriedade estaria condicionado ao bem-estar social e a lei poderia „promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos‟ (art. 147). Sendo que esta última norma socializado da propriedade foi extirpada do texto constitucional de 1969, mantida a primeira delas.
16
Por um grande período, conforme se pode verificar, a efetivação da
função social da propriedade não mereceu a devida atenção permanecendo em
legislações esparsas dos três níveis, sem qualquer uniformização, limitadas as
diretrizes quanto ao instituto do direito de propriedade (e sua função social) ou as
desapropriações, em matéria de legislações infraconstitucionais e desarticuladas
ações urbanísticas.
Entretanto, em lição do mesmo autor, a Constituição de 1988
promoveu a implantação das linhas mestras da organização fundiária a serem
estabelecidas no território brasileiro (arts. 182 a 184). Para Victor Carvalho Pinto,
vários foram os fatores que corroboraram com isto, pois
[...] em 1987, quando a Assembléia Constituinte iniciou seus trabalhos, havia no Brasil um conjunto de fatores que convergiam para que a política urbana viesse a ser objeto de atenção: uma política pública e uma burocracia estatal em funcionamento e prestigiada; uma sensibilidade social
16
COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito Urbanístico Comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais lusos-brasileiros. Curitiba: Juruá, 2009, p. 147-148, destaques do autor.
A função social da propriedade 29
para a problemática urbana; uma proposta de institucionalização do direito urbanístico em tramitação no Congresso Nacional; um conjunto de organizações civis mobilizadas para alterar as políticas públicas.
17
A Constituição Federal de 1988 projetou duas dimensões para o
alcance da racionalização da ordenação das áreas urbanas e do território brasileiro
em geral, definindo competências legislativas e as prerrogativas de sua política
urbana confirmando, assim, “o caráter do urbanismo como função pública”, ao
agregar à propriedade conceitos urbanísticos e fortalecer o plano diretor como
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, §
1º).
Pondera, ainda, Victor Carvalho Pinto que “além de modificar o antigo
conceito de propriedade, a Constituição de 1988 deu novos contornos aos princípios
que passaram a reger a política pública de organização territorial brasileira.”18
Os princípios constitucionais e sua positivação têm fundamental
importância na conscientização da população, ainda que de caráter conceitual e
programático, em busca de melhor qualidade de vida e preservação da espécie
criada no ambiente urbano. Entretanto, tem-se que reconhecer a existência de
ocupações em condições extremamente precárias e, muitas vezes, irreversíveis,
salvo disponibilização de tímida presença estatal na prestação dos serviços públicos
e ações isoladas do terceiro setor para minimizar o caos que se instalou exatamente
pela ausência e omissão do mesmo Estado. Estado que, apenas nestas duas
últimas décadas após a Constituição Federal de 1988 e sob sua influência,
promoveu efetivas ações, até então tidas apenas como aspirações principiológicas
ao bem estar urbano.
Dos inúmeros autores que reconhecem este estado de coisas, Carlos
Magno Miqueri da Costa afirma que:
Numa tendência mundial, cujos passos seguem o Brasil, está insculpida na vigente Lei Maior, como um destes princípios, a preservação do meio ambiente, ao menos teórica e ideologicamente. Infra-constitucionalmente o Estatuto da Cidade regulamenta normas constitucionais e simultaneamente dispõe sobre normas de cunho urbano ambiental, ao se referir ao „direito a
17
PINTO, Vitor Carvalho. Direito Urbanístico: plano diretor e direito de propriedade. São Paulo: RT, 2005, p. 128.
18 COSTA, 2009, p. 150, destaques do autor.
A função social da propriedade 30
cidades sustentáveis‟; à prevenção e correção das „distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente‟; à ordenação e controle do uso do solo que evite „a deterioração das áreas urbanizadas‟ e „a poluição e a degradação ambiental‟; a proteção de padrões de expansão urbana „compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica‟ do território municipal; à „proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído‟; à participação democrática face a empreendimentos potencialmente nocivos ao meio ambiente. Legislação esta, com o respaldo da Constituição da República Federativa do Brasil, poderá mudar o quadro de danos ao ambiente, „à luz dos princípios da função social da propriedade e da sustentabilidade‟.
[...]
A regulamentação do uso da propriedade urbana está diretamente relacionada à busca do equilíbrio ambiental e inclui em seu conceito de cidades sustentáveis o saneamento ambiental. Como diretrizes da política urbana, impera que o planejamento do desenvolvimento das cidades se consumará de forma a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (natural e construído), destacadamente quanto à poluição e sua degradação; haverá prerrogativas quanto à proteção, preservação e recuperação do meio ambiente, devendo o Poder Público municipal e a população interessada serem ouvidos em processos de implantação de empreendimentos ou atividades potencialmente negativas/lesivas ao meio ambiente.
19
Dentre os dispositivos constitucionais, verificamos a preocupação com
o exercício do direito de propriedade, em tudo que se relaciona com a preservação
ambiental e manutenção do equilíbrio ecológico, no meio ambiente urbano.
E, ao direito de propriedade garantido constitucionalmente, foi
acrescido o direito a habitação, conforme art. 6º da Constituição Federal de 1988:
“São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição”20, sendo complementado pelo art.
23, inciso IX, que prevê a “promoção de programas de construção de moradias e
melhorias das condições habitacionais”, os quais serão oportunamente comentados
nos próximos capítulos.
Nossa constituição também valorizou a aproximação do urbanismo a
habitação, considerando o bem estar do local habitável e o meio em que está
inserido, conferindo, no capítulo da política urbana, artigo exclusivo acerca do “uso
de um imóvel urbano como moradia”, nos termos da lei, condição para aquisição da
propriedade, recompensando o exercício da função social da propriedade, a quem
19
COSTA, 2009, p. 151-152, destaques do autor. 20
Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000.
A função social da propriedade 31
dele fizer este uso, tipificando o usucapião especial urbano (pro casa, pro habitatio
ou pro morare).
Nestes últimos anos, embora tímidas e esparsas, tem se destacado a
evolução de ações governamentais garantidoras do direito à moradia e à efetivação
da função social da propriedade, em busca de um mínino de cidadania e dignidade
humana, nas áreas de ocupação clandestinas e irregulares, notadamente nas de
interesse social, habitacional ou especial, majoritariamente desprovidas de
condições físicas e financeiras para a implantação de moradias compatíveis com a
dignidade humana. Como o estado grave das ocupações tipo “favelas”, constituídas
de casebres rústicos e rudimentares, sobrepostos uns aos outros, sem qualquer
critério que seja, senão a da voraz ocupação dos espaços, onde se podem verificar
apenas intervenções restritas e corretivas, sem modificações profundas urbanísticas,
dada a sua impossibilidade. Tais ocupações necessitam de melhorias no mínimo
razoáveis de serviços públicos de saneamento para a sua habitabilidade e ações
corretivas de adequação aos projetos e planos de reorganização do ambiente
urbano reconhecendo o que está consolidado e provendo sua titulação, porém
limitando e impedindo a sua expansão com medidas eficazes de fiscalização e ação
operacional estatal.
Vem se desenvolvendo, outrossim, o senso de proporcionalidade e
isonomia e a preocupação dos acessórios à moradia, tais como a implantação de
infra-estrutura básica, na qual se busca flexibilizar e simplificar a interpretação e
promover edição de nova legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das
normas edilícias, com objetivo de reduzir custos e aumentar a oferta, promovendo a
regularização de áreas de parcelamentos consolidados, populares, clandestinos e
irregulares, com vistas ao resgate da cidadania de seus moradores e com a titulação
aos proprietários. Outra saudável iniciativa constituiu-se do subsidio financeiro para
a aquisição de habitações, por meio dos agentes financeiros, e a isenção das taxas
e emolumentos decorrentes dos registros imobiliários e, recentemente, com
programas específicos e aporte financeiro para as áreas de parcelamento de solo
passíveis de regularizações propriamente ditas, como ocorre com os loteamentos
clandestinos e irregulares, em quase todos os municípios do território nacional.
A função social da propriedade 32
Esta preocupação se refletiu nos atuais programas, federais e
estaduais, de regularização e resgate da cidadania com o reconhecimento oficial da
propriedade aos ocupantes, que serão objeto de comentários em capítulos próprios.
O incremento da efetivação do reconhecimento da função social da
propriedade, após a Constituição Federal, ecoou pelo julgamento do famoso caso da
Favela do Pullman, em São Paulo, Capital, de improcedência da ação
reivindicatória, de proprietários contra moradores.
Acórdão STJ
Data: 21/6/2005 Fonte: 75.659 Localidade: São Paulo
Relator: Aldir Passarinho Junior
Legislação: Arts. 524, 589, 77 e 78 do Código Civil; Súmula nº 7 do STJ; art. 524 do Código Civil anterior, c⁄c o art. 274 do CPC e Constituição Federal de 1988.
Ação reivindicatória. Abandono - recuperação de posse - impedimento. Terrenos de loteamento - área ocupada por favela.
Ementa:
Civil e Processual. Ação Reivindicatória. Terrenos de Loteamento situados em área favelizada. Perecimento do direito de propriedade. Abandono. CC, arts. 524, 589, 77 E 78. Matéria de fato. Reexame. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c⁄c 77 e 78, da mesma lei substantiva. II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ. III. Recurso especial não conhecido.
Íntegra:
RECURSO ESPECIAL Nº 75.659 - SP (1995⁄0049519-8).
RELATOR: MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR.
RECORRENTE: ALDO BARTHOLOMEU E OUTROS.
RECORRIDO: ODAIR PIRES DE PAULA E OUTROS.
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO. CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ.
I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma
A função social da propriedade 33
nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c⁄c 77 e 78, da mesma lei substantiva.
II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ.
III. Recurso especial não conhecido. 21
Inobstante os fundamentos jurídicos utilizados – erigidos sobre
relações constituídas em tempo anterior à vigência da CF/88 e sob a égide do CC de
1916 – sofrerem, até hoje, manifestações de criticas e sustentação, sem entrar neste
mérito, pode-se concluir que se concretizou a hipótese da efetivação do princípio da
função social da propriedade.
Esta conclusão é alicerçada na doutrina de Marcio Kammer de Lima,
que assevera:
Ocorre que, sem embargo da excelência das razões insertas no voto condutor, não parecia sustentável um desfecho assemelhado, ao menos à luz do direito infraconstitucional então vigente. O mais convincente argumento do que resultou decidido parece encartar-se na aplicabilidade direta de normas constitucionais vocacionadas à expressão função social da propriedade e que se sobrepuseram ao direito comum.
Assim igualmente pareceu ao culto Professor Arruda Alvim, ao confeccionar alentados e substanciosos comentários a propósito do famoso julgamento, dos quais sobreveio a seguinte conclusão:
„Apesar do esforço feito pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, dos méritos indiscutíveis do Des. José Osório de Azevedo Júnior, como grande juiz que foi e jurista que é, não nos parece, pelas considerações feitas, que a decisão seja compatível com o ordenamento brasileiro, no plano do direito infraconstitucional, mas o terá sido no plano do direito constitucional, que se impôs sobre o direito ordinário. O mesmo se há de dizer do acórdão do Superior Tribunal de Justiça e do seu eminente relator, o Ministro Aidir Passarinho Júnior. A hipótese, em nosso sentir, foi, realmente, decidida com base na Constituição Federal, à luz da regra do art. 5º, inciso XXIII‟.
Na senda do raciocínio do Professor Arruda Alvim, que se abona, parece que o que realmente se decidiu, com poder de convencimento a mais forte dose, é que a inércia do proprietário, por anos a fio, teve-se por indicador de que este não imprimia ao bem sua adequada finalidade econômica e social, ao passo que a ocupação do imóvel por moradores de núcleo populacional de baixa renda representava tradução de um comportamento socialmente mais prezado. Assim, deliberou-se em detrimento do proprietário que não acudia à convocação para uma atuação sintonizada à função social da propriedade, prestigiando-se o comportamento daqueles que no imóvel perseguiam a consolidação do direito fundamental de moradia (CF, art. 6°),
21
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Nº 75.659 - SP (1995⁄0049519-8), 4ª Turma. Recorrente: Aldo Bartholomeu e outros. Recorrido: Odair Pires de Paula e outros. Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Brasília, 21 de junho de 2005. THESAURUS 2005, n. 73, 2005. Disponível em: <http://www.irib.org.br/notas_noti/thesaurus2005.asp>. Acesso em: 10 fev. 2010.
A função social da propriedade 34
corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro (CF, art. 1º, III).
Nesse sentido, porque a legislação ordinária à época talvez não acomodasse adequadamente os direitos fundamentais contrapostos, de- liberou-se a aplicação imediata da norma de coalizão, que se contém no enunciado do art. 5°, XXIII, da Constituição Federal.
E não tisnava essa possibilidade a circunstancia da deflagração do processo ser anterior à vigência da Carta de 1988, quando a prolação dos acórdãos verificou-se sob a malha do regime constitucional vigente, porquanto, nesta seara, é pacífica a diretriz sobre a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais, assim no direito constitucional brasileiro (CF, art. 5o, § 1°), como no direito constitucional comparado.
Nessa mesma contextura, quadra a observação, de todo animada pelo princípio da proporcionalidade, no sentido de que os direitos fundamentais, por sua magnitude, não podem ser deixados „na esfera de disponibilidade absoluta do legislador ordinário‟, o que vale dizer que esses direitos, porque abrigam um conteúdo próprio, se não adequadamente expressado esse conteúdo pelo legislador ordinário, não há empeço para o magistrado, no manejo da proporcionalidade dita concreta, para logo afastar a restrição desproporcional recolhida da legislação infraconstitucional e aplicar esse conteúdo diretamente da Constituição.
22
Esta demonstração de realização da função social da propriedade,
como fonte, tornou-se precursora e marco para outras corajosas decisões na
interpretação do direito de propriedade, no Código Civil atual e na própria
Constituição Federal que, definitivamente, conseguiu inserir, no Direito Brasileiro,
novas concepções destes mesmos direitos, hoje, porém, sob a ótica coletiva e
social.
No mesmo sentido, o preclaro Min. Eros Grau, no Tribunal Pleno do
STF, no RE 387047, sacramenta a efetividade do instituto, em julgamento, cujo
conteúdo trouxe enorme contribuição para a interpretação do seu conceito.
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LEI N. 3.338/89 DO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC. SOLO CRIADO. NÃO CONFIGURAÇÃO COMO TRIBUTO. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO. DISTINÇÃO ENTRE ÔNUS, DEVER E OBRIGAÇÃO. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. ARTIGOS 182 E 170, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. SOLO CRIADO Solo criado é o solo artificialmente criado pelo homem [sobre ou sob o solo natural], resultado da construção praticada em volume superior ao permitido nos limites de um coeficiente único de aproveitamento. 2. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO. PRESTAÇÃO DE DAR CUJA SATISFAÇÃO AFASTA OBSTÁCULO AO EXERCÍCIO, POR QUEM A PRESTA, DE DETERMINADA FACULDADE.
22
LIMA, Márcio Kammer de. Usucapião coletivo e desapropriação judicial. Instrumentos de atuação da função social da propriedade. Rio de Janeiro: GZ, 2009, p. 129-131.
A função social da propriedade 35
ATO NECESSÁRIO. ÔNUS. Não há, na hipótese, obrigação. Não se trata de tributo. Não se trata de imposto. Faculdade atribuível ao proprietário de imóvel, mercê da qual se lhe permite o exercício do direito de construir acima do coeficiente único de aproveitamento adotado em determinada área, desde que satisfeita prestação de dar que consubstancia ônus. Onde não há obrigação não pode haver tributo. Distinção entre ônus, dever e obrigação e entre ato devido e ato necessário. 3. ÔNUS DO PROPRIETÁRIO DE IMÓVEL URBANO. Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano, cuja execução incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do disposto no artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento voltado à correção de distorções que o crescimento urbano desordenado acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções da cidade e a dar concreção ao princípio da função social da propriedade [art. 170, III da CB]. 4. Recurso extraordinário conhecido, mas não provido.
23
E, arrematando a questão da constitucionalidade da consolidação da
função social, como direito fundamental, Sérgio Iglesias Nunes de Souza expõe com
propriedade:
Mas na Constituição Federal não bastou só o interesse individual, pois este cedeu espaço ao interesse social, em que se fez constar o direito de propriedade, mas condicionado ao principio da função social, a teor do inciso XXIII, art. 5º “A propriedade atenderá a sua função social.
Quanto ao direito de propriedade, a grande contribuição trazida pela Constituição Federal de 1988 é o principio da função social. Assim, o direito de propriedade é um direito fundamental condicionado a esse principio. Já o atual Código Civil, seguindo o texto constitucional, estabeleceu que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como seja evitada a poluição do ar e das águas (§1.º do art. 1.228).
24
1.3 A POLÍTICA URBANA E A QUESTÃO FUNDIÁRIA
Lúcia Valle Figueiredo conceitua Urbanismo e Direito Urbanístico
como:
23
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 387047/CS – Santa Catarina, Tribunal Pleno. Recorrente: Koerich Participações, Administração e Construções Ltda. Recorrido: Município de Florianópolis. Relator: Min. Eros Grau. Brasília, 6 mar. 2008. LEXSTF, v. 30, n. 355, p. 263-287, 2008, p. 263.
24 SOUZA, Sérgio Iglesia Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. Análise comparativa e suas
implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 110-111.
A função social da propriedade 36
Urbanismo vem de urbs, cidade. O conceito de Urbanismo não é, pois, o mesmo que o de Direito Urbanístico.
Direito Urbanístico é, numa definição singela, o conjunto de normas disciplinadoras do ordenamento urbano.
Este tema, de grande importância na atualidade, mereceria, ainda, tratamento sistemático, pelo menos no Brasil.
25
José Afonso da Silva destaca que se trata de um ramo jurídico,
[...] produto das transformações sociais que vêm ocorrendo nos últimos tempos. Sua formação, ainda em processo de afirmação, decorre da nova função do Direito, consistente em oferecer instrumentos normativos ao Poder Público a fim de que possa, com respeito ao principio da legalidade, atuar no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse da coletividade.
26
Citado por Lúcia Valle Figueiredo, Diogo de Figueiredo Moreira Neto
conceitua Urbanismo relacionando-o aos espaços habitáveis: “Daí se vê a amplitude
que vem ganhando o termo, pois, na realidade, não se vai restringir apenas à
cidade, à urbs, inserindo-se o problema do solo rural quer nas normas referentes ao
Direito Urbanístico, quer nas concepções de Urbanismo.”27
E conclui no sentido de que o campo de atuação do Direito Urbanístico
encontra-se na penumbra, entre o Direito Ecológico e o Direito Administrativo e os
outros ramos do direito.
Ou seja, qualquer lugar habitável (?) ou passível de ocupação humana,
ainda que inconcebíveis e seus registros, equipamentos e espaços comuns, quer
sejam coletivos, históricos, culturais, estéticos, paisagísticos, são abrangidos pela
disciplina urbanística tendo em vista que compõem o cenário urbano.
Em toda a história do homem, foram inúmeras as tentativas de se
encontrar soluções globais para as cidades (aglomerados humanos), restringindo-
se, entretanto, aos planejamentos focalizados em problemas pontuais e específicos.
E, segundo Carlos Magno Miqueri da Costa28, as cidades nos dias atuais, ou
25
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 32.
26 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1.997, p 127.
27 MOREIRA NETTO apud FIGUEIREDO, 2005, p. 76.
28 COSTA, 2009, p. 45 et seq.
A função social da propriedade 37
cidades pós-modernas, têm problemas, não só quase idênticos aos da antiguidade,
mas agravados e mais complexos, nas relações que se travaram após o domínio e
transformação da máquina, da evolução da indústria, da era da informação e da
pulverização e ocupação, pelo homem, de todo o globo terrestre, na necessidade de
o homem se fixar e criar comunidades estabelecendo-se nos mais longínquos
lugares para se proteger e multiplicar-se.
Na evolução das cidades, desde as formas primitivas e antigas da
relação homem-espaço até as cidades pós-modernas, os conflitos entre valores
sempre se mostraram evidentes diante das crescentes necessidades humanas e as
formas de suprimentos, em sua maioria de forma exploratória e devastadora, com
efeitos negativos na qualidade de vida de toda a comunidade. Nestas, as regras de
boa vizinhança amadureceram e efetivaram-se em estudos e trabalhos de
ordenação das ocupações, com inúmeras tentativas de se organizar os direitos e
deveres, no conflito entre propriedade privada e interesse da comunidade.
Em 1907, na França, foi utilizado pela primeira vez o termo urbanismo
para a ciência que tratava dos assentamentos humanos.
Pela Europa se buscava projetar a cidade, em sua total complexidade,
na exploração de soluções potenciais para problemas técnicos, confrontando a
regularidade do traçado clássico e a irregularidade dos espaços medievais, inserindo
o verde e o equilíbrio entre o funcional e o estético, criando opções para a
formatação fundiária originada do parcelamento e distribuição de suas vias,
desenvolvendo e ampliando o seu campo de inserção nas teorias e funções
originalmente concebidas.
Entretanto, as transformações sociais e econômicas no século XX,
agravadas com a explosão demográfica das cidades, consolidaram o urbanismo
como disciplina autônoma que estuda a “complexidade estrutural e morfológica das
cidades, assim como dos problemas a elas correlatos”.
Neste contexto, o urbanismo do Estado Liberal se confronta com o
direito de propriedade como direito absoluto e a liberdade de construção submissa
apenas a poucos regulamentos sanitários.
A função social da propriedade 38
Segundo Carlos Magno Miqueri da Costa,29 a primeira Carta do
Urbanismo, com formulação e execução de planos reguladores para as cidades,
ocorreu na França, em 1919, e vários trabalhos importantes surgiram na tentativa de
se traçar um novo ideal de planejamento urbano, destacando-se a Carta de Atenas,
composta pelas conclusões do IV CIAM, em 1933, caracterizador da cidade
moderna, que norteou (ou deveria nortear) inumeráveis normalizações urbanísticas
e ações governamentais, orientando, em síntese, que a cidade é parte de um
conjunto econômico, social e político, inserido em uma região onde é necessária a
conciliação entre o individual e o coletivo e que a existência das urbes é influenciada
pelas situações geográfica, topográfica, econômica e política, devendo-se respeitar
sua história e suas características e que seus preceitos de desenvolvimento sofrem
mudanças contínuas. Desde então, previa-se que a "era da máquina" levaria ao
congestionamento desordenado das áreas urbanas e ao esvaziamento das terras,
bem como, também relata o autor, sobre o estado já crítico das cidades e do
atendimento às suas funções-chave quanto à habitação, ao lazer, ao trabalho e à
circulação, procurando indicar soluções, tais como ser urgente a necessidade de
estabelecimento de programas urbanísticos promulgados por leis que permitissem
sua realização.
O mesmo frisou a urgência quanto à imprescindibilidade de se
regulamentar, por meio legal, a disposição de todo solo útil, harmonizando as
necessidades individuais e coletivas, nas quais o interesse privado será
subordinado ao interesse coletivo.
Estes conceitos da urbanização foram modelos utilizados até a década
de setenta do século XX, buscando o atendimento das necessidades biológicas,
psicológicas, sociais e funcionais do homem, diante da superpopulação nas cidades
e da ausência de saneamento básico, do alto déficit habitacional e do aumento da
intervenção pública no ordenamento das cidades e do solo urbanizado, pela sua
consequente “socialização”.
Entretanto, o modelo não atendia aos anseios da população.
A partir de então a cidade pós-moderna vem se configurando, nas últimas décadas, como forma urbana híbrida que mescla, em algumas ou em
29
COSTA, 2009 p. 45 et seq.
A função social da propriedade 39
muitas características, as versões históricas anteriores; presentes infindáveis modos de inserção de seus elementos morfológicos. Foi minorada a ação do arquiteto perante a crescente relevância das disciplinas não espaciais no processo de planejamento, posto que „o planejamento urbanístico desenvolve o seu interesse disciplinar para questões de programas, quantidades, esquemas distributivos e funcionamento, decisões políticas e econômicas, estratégias financeiras e sociais‟. O desenho, por si só „ordenador da ocupação do solo‟, perde terreno para o planejamento dinâmico-interdisciplinar, e a cidade contemporânea adquire nuanças de „cidade interativa‟, ao efetivamente ser interligada aos mais diversos segmentos acima referidos.
30
Após a metade do século passado, refletindo a atuação do Estado de
Direito Social (intervencionista e assistencialista), o urbanismo sofreu profunda
normatização, iniciada na Europa, onde o Estado assume papel ativo e operacional,
interagindo com autarquias e particulares, privilegiando a análise macro da
"multiplicidade de fins" inerentes à ocupação, uso e transformação do solo, perdendo
a propriedade o caráter de direito absoluto e adotando conformação, fixada por lei,
social e coletiva. Neste contexto, emergem as primeiras leis gerais em matéria
urbanística, evoluindo em conformação com um mundo globalizado, preocupado
com a qualidade de vida, com fins urbanísticos e ambientais, proteção aos
patrimônios histórico, arqueológico, artístico, natural, paisagístico, com a
minimização da expansão das cidades, reestruturação e renovação urbanas,
descentralização de competências e participação dos cidadãos na elaboração e
execução dos planos urbanísticos.
No Brasil, sempre coube à Administração local executar e controlar o
desenvolvimento das ocupações, restringindo-se a regularem algumas relações de
vizinhança e do direito de construir. Salvo raras exceções e algumas posturas,
diante das características da ocupação majoritariamente dos campos, não havia
normatizações específicas de urbanismo, as mesmas limitando-se aos conceitos do
direito de propriedade vigentes.
As primeiras leis brasileiras de organização municipal remontam ao
século XIX, com medidas de polícia administrativa relacionadas ao direito de
construir e competência municipal de legislar sobre as edificações e suas
decorrências para as cidades, vigorando o máximo individualismo no exercício do
direito de propriedade.
30
COSTA, 2009, p. 50 et. seq.
A função social da propriedade 40
Com força para intervir no absolutismo deste direito, surgiram as leis de
desapropriação, expropriando imóveis de seus donos em benefício da utilidade
pública com fins urbanísticos, em especial a Lei nº. 816, de 10 de julho de 1855,
regulamentada pelo Decreto nº. 1.664, de 27 de outubro de 1855, que vigoraram até
seu desaparecimento com a vigência do Decreto-Lei nº. 3.365/1941.
Desde 1916, com o Código Civil Brasileiro, foram autorizadas restri-
ções ao direito de construir, por via de regulamentos administrativos (art. 572), e as
posturas constituíam-se em práticas crescentes. Iniciaram-se ações urbanísticas
esparsas e isoladas, sendo o urbanismo regido em muitos lugares pelos Códigos de
Obras com meras definições de ocupação urbana, sofrendo, a partir de então,
influência do socialismo interventivo e do dirigismo estatal da nação e,
consequentemente, da propriedade, até que a
Constituição de 1934 trouxe ao ordenamento jurídico a concepção de propriedade vinculada à função social, figurando como um marco divisor do Direito brasileiro em matéria urbanística, „eis que a partir de então a propriedade se sujeita às limitações da lei impostas ao particular em beneficio do bem comum‟.
Desde então, poder-se-á dizer que começa a se delinear o nosso verdadeiro direito do urbanismo, posto que através das limitações administrativas, de variadas ordens, esse direito começa a ter alguma coerência e as normas começam a conter uma preocupação verdadeiramente urbanística.
31
A lei estava, então, autorizada a restringir direitos inerentes à
propriedade privada, como forma de proteger os interesses sociais e coletivos.32
Entretanto, a evolução do planejamento urbano no Brasil e o seu
desenvolvimento e aplicação acompanharam, de forma desordenada, o
desenvolvimento econômico e a industrialização do País, sendo raras as exceções
de planos bem sucedidos, até a década de 70, o que, ou postergou ações
governamentais neste sentido, ou tais ações foram fadadas ao fracasso por
designarem, sem qualquer capacidade, o município como responsável pela sua
implementação, de forma impositiva, sem qualquer visão ampla; coordenada por
uma política nacional urbana.
31
MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 40. 32
Ibid., p. 43.
A função social da propriedade 41
Na mesma esteira de evolução, sem grandes efeitos no mesmo
sentido, a modificação da estrutura do direito de propriedade foi pouco influenciada
pelas nossas Constituições, trazendo as mesmas características e submissão
apenas à desapropriação por necessidade ou utilidade pública, com direito à
indenização prévia. Apenas em 1934, a Constituição Federal acrescentou a
sociabilidade ao direito de propriedade que "não poderá ser exercido contra o
interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar", constituindo-se as raízes
da função social da propriedade, restauradas em 1946, ao ser preconizado pela
Carta Magna que o uso da propriedade estaria condicionado ao bem-estar social.
Em matéria especificamente urbanista pouco se produziu, limitando-se
a matérias esparsas nos diversos níveis governamentais, o que gera falta de
unicidade das ações cujo perfil era e ainda é notadamente exploratório.
A Constituição de 1988 traçou, em boa hora, as bases da organização
fundiária a ser implantada no país (arts. 182 a 184), projetando ações para o alcance
da racionalização da ordenação das áreas urbanas e do território brasileiro em geral,
com claras competências legislativas da União, dos Estados e dos Municípios e das
prerrogativas de sua política urbana, confirmando, assim, o caráter do urbanismo
como função pública.
Agregando à propriedade os conceitos urbanísticos, o plano diretor
assume a posição de instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana e “[...] além de modificar o antigo conceito de propriedade, a Cons-
tituição de 1988 deu novos contornos aos princípios que passaram a reger a política
pública de organização territorial brasileira.” 33
Em sintonia com ações internacionais (ainda que na retaguarda),
seguem-se os conceitos de que a propriedade deve estar em um contexto
sustentável e não predatório, trazendo para o aspecto constitucional a preservação
do meio ambiente e a sustentabilidade da ocupação pelo homem em sociedade. Sua
regulamentação se firmou quando da edição da Lei nº. 10.257/01, o Estatuto da
Cidade, que simultaneamente dispõe sobre normas de cunho urbano-ambiental na
busca de um equilíbrio ambiental do espaço ocupado pelo homem.
33
COSTA, 2009, p. 150 et. seq.
A função social da propriedade 42
Em 2000, a Carta Magna Brasileira foi alterada pela Emenda
Constitucional nº. 26 para amparar o direito à moradia, em seu art. 6º que agrega
valor ao capítulo da política nacional urbana orientando o proprietário a fazer cumprir
a função social da propriedade.
Para este exercício, não se pode afastar dos conceitos do direito à
propriedade, mas este deve ser dosado em harmonia entre os princípios da
propriedade privada e de sua função social, para se encontrar o equilíbrio entre os
interesses, sem que um sobreponha o outro, em perfeita convivência para o
adequado aproveitamento do solo urbano (CF, art. 182, § 4º).
A legislação federal brasileira sobre o assunto, antes da Constituição
Federal de 1988, afora as normas que tratam estritamente do “sistema financeiro da
habitação” e de “incorporações imobiliárias” (Leis nº. 4.380, de 21 de agosto de
1964, e nº. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, com as alterações subsequentes),
resumia-se, na prática, às seguintes normas: Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho
de 1941, que “dispõe sobre desapropriações por utilidade pública”; Lei nº 4.132, de
10 de setembro de 1962, que “define os casos de desapropriação por interesse
social e dispõe sobre sua aplicação”; e Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979,
que “dispõe sobre o parcelamento do solo urbano”.
Conforme afirmado, na verdade, a idéia de instrumentalizar a gestão
urbana ou o direito urbanístico por meio de uma legislação própria e específica
precede a “constitucionalização” do assunto. Antes, no início dos anos oitenta, já se
buscava dar materialidade jurídica ao princípio da função social da propriedade e
estabelecer diretrizes e instrumentos para a política urbana, tentativas infrutíferas,
salvo raras exceções isoladas.
Estava ainda em vigor a Constituição do regime militar, de 1969, e o
país enfrentava os efeitos dos elevados e crescentes índices de urbanização que
marcaram os anos 50, 60 e 70. A Constituição da época, além de caracterizar-se
pelo perfil autoritário, ignorava a natureza já predominantemente urbana do Brasil. A
única vez em que a palavra “urbano” aparecia no texto constitucional era para
referir-se, no capítulo dos tributos, ao Imposto Predial e Territorial Urbano, o IPTU.
Na própria sociedade, ou em boa parte dela, os chamados formadores
de opinião e os detentores da propriedade e de grandes patrimônios sempre se
A função social da propriedade 43
opuseram ferozmente a qualquer iniciativa de socializar a propriedade ou, ainda,
restringir o seu uso, porém foram derrotados.
Com nossa atual Constituição Cidadã, a partir de 1988, dentre vários
projetos, o que prosperou foi o denominado “Estatuto da Cidade”, de autoria do
falecido Senador Pompeu de Sousa, que se tornou realidade em 2001.
Finalmente, a Constituição da República Federativa de 1988 tornou-se
precursora de nova filosofia para a realização da Política Urbana, consubstanciada
na função social da propriedade e no plano diretor como "instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana", consolidada no Estatuto da Cidade
(Lei nº. 10.257/2001).
Agregando-se o homem torna-se forte e, nas comunidades, as
oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional se multiplicam. A
urbanização traz, sem dúvida, melhores condições de empregos e serviços públicos,
mas impõe a convivência com miséria, precariedade e escassez de bens de
consumo, de serviços urbanos, de transporte e de saneamento, que além de
insuficientes têm alto custo. As cidades são, em si mesmas, uma contradição e o
acesso à terra, hoje elevado a condição de direito fundamental à moradia, é objeto
de garantia e norma constitucional.
Ressalte-se que a Constituição de 1988, destinou todo um capítulo
específico à política urbana (arts. 182 e 183), diante da qual a propriedade é
gravada com a obrigação de realizar sua função social.
As cidades propiciam (ou deveriam propiciar) melhores condições
culturais e materiais, pelos meios e modos de produção de riquezas, com a efetiva
elevação dos padrões de dignidade, do respeito aos princípios éticos que devem
alcançar as sociedades organizadas. E, nelas, o Poder Público deve zelar para a
consecução de seus objetivos mediante ações políticas, entendendo a ocupação
urbana de forma universal, federal, estadual e finalmente municipal, onde se iniciam
as ocupações e que fecham o ciclo nacional da realidade urbanística.
Com esta nova filosofia de ocupação territorial iniciada pela
Constituição de 1988, as competências e responsabilidades urbanísticas são
distribuídas entre as esferas de poder. À Federação caberia traçar as diretrizes e os
objetivos gerais do desenvolvimento urbano, as regiões geoeconômicas do país e a
A função social da propriedade 44
ordenação especial como no caso dos transportes, meio ambiente, etc. Aos Estados
compete a ordenação do seu território e a sua ordenação especial, respeitadas as
diretrizes federais. Aos Municípios cabem as questões entre regiões administrativas,
elaboração dos planos gerais, especificados nos planos diretores, bem como quanto
ao zoneamento, alinhamento, melhoramentos urbanos, etc., e as normas especiais
para distritos industriais, de renovação urbana, entre outras, ressaltando-se o
respeito pelas normas estaduais e federais, construindo as noções preliminares de
Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano constituído de elementos
interrelacionados que interagem no desempenho de uma função, no caso o tão
complexo desenvolvimento urbano.
Algumas questões como a fragilidade da gestão e do controle dos
recursos públicos, a dificuldade em promover a gestão democrática e o controle
social e a dificuldade na implementação da agenda política do desenvolvimento
urbano, particularmente no âmbito legislativo, diminuem a eficácia dos planos
urbanísticos, instituídos pela Política Nacional de Desenvolvimento Urbano que se
constituí como um conjunto de princípios, diretrizes e normas norteadoras da ação
do poder público e da sociedade em geral na produção e gestão das cidades, ainda
inexistentes em nosso País. Para o desenvolvimento econômico e social, a
integração de políticas setoriais, políticas territoriais, controle social e destinação de
recursos financeiros são fundamentais no combate à desigualdade social existente.
Esses, gerenciados por agentes de diferentes níveis de governo e da sociedade no
âmbito de suas competências e atribuições, deveriam interagir de modo articulado,
integrado e cooperativo visando à formulação e execução do controle social, na
atualização e monitoramento constante da Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano.
Não tão diferentes da Carta de Atenas, as Conferências Nacionais das
Cidades aprovaram princípios que devem (ou deveriam) nortear a Política Nacional
de Desenvolvimento Urbano, no sentido de promover o desenvolvimento social e
econômico; o combate à desigualdade sócio-territorial, racial e de gênero; a
integração das políticas setoriais e entre as esferas municipais, estaduais, distrital e
federal; a concretização dos direitos estabelecidos nas legislações existentes; a
garantia de amplo controle social e da democratização do acesso universal à terra
urbana, aos equipamentos, bens e serviços.
A função social da propriedade 45
Embora lentamente, a elaboração da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988,
em especial os artigos 6º, 182 e 183, e da aprovação do Estatuto das Cidades – Lei
nº. 10.257/01, tornou possível: a edição da Medida Provisória 2.220/01; a criação do
Ministério das Cidades; a criação do Conselho das Cidades e do processo de
Conferências das Cidades; a criação do Sistema e Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social – Lei nº 11.124/05; a aprovação do marco regulatório da Política
Nacional de Saneamento Básico – Lei nº 11.445/07; a aprovação da Lei de
Consórcios Públicos – Lei nº 11.107/05; a proposição do Projeto de Lei da
Mobilidade Urbana – PL nº 1687/07; a aprovação da lei voltada à regularização
fundiária em áreas da União – Lei nº 11.481/07; a retomada e ampliação de recursos
para habitação e saneamento, apesar de ainda insuficientes, e início de um
processo de revisão de prioridades de investimento dos recursos públicos federais
para população de baixa renda; a flexibilização de limites de endividamento para o
setor público; a realização da Campanha Nacional para Elaboração de Planos
Diretores Participativos e, finalmente, a primeira legislação específica de
regularização fundiária, chamada de Programa Minha Casa Minha Vida, Lei nº.
11.977/2009, fruto da conversão em lei da MP nº. 2.220/01, a qual possui regras
específicas de regularização fundiária para loteamentos e parcelamentos do solo
irregulares ou clandestinos.
Neste ínterim, destacam-se ações governamentais estaduais e
esforços individuais, de forma isolada, de alguns municípios para regularização
fundiária, notadamente dos loteamentos clandestinos e irregulares.
Entretanto, apesar dos esforços realizados, esses avanços expressam
o acúmulo obtido em torno das políticas setoriais que historicamente influenciam e
determinam a definição de investimentos, reproduzindo a lógica tradicional de
produção e reprodução das cidades, sem a preocupação de construir um sistema.
A Política Nacional de Desenvolvimento Urbano brasileira ainda é
entendida como a somatória das políticas setoriais de habitação, saneamento,
mobilidade, entre outras, pois pressupõe integração dessas políticas entre si e entre
as demais políticas sociais, devendo passar necessariamente por:
1. planejamento territorial integrado nos âmbitos municipal e regional
(intermunicipal e interestadual), elaborado de forma
A função social da propriedade 46
comprovadamente participativa, que respeite as peculiaridades
regionais e que considere os graves problemas existentes em
regiões metropolitanas;
2. participação e controle social: a) avançar no controle social,
estabelecendo o caráter deliberativo do Conselho das Cidades no
âmbito nacional, implementando a resolução sobre o tema,
aprovada na 1ª Conferencia Nacional das Cidades; b) tornar
obrigatória a implementação do Sistema de Conselhos e
Conferências Nacional, Estaduais, Distrital, Regionais e Municipais;
c) estabelecer um processo democrático no acompanhamento da
utilização de todos os recursos do PAC e outros de importância
estrutural nas três esferas de Governo;
3. integração de políticas entre os entes federados e entre as políticas
setoriais (de habitação, saneamento ambiental, mobilidade e
gestão territorial) com a criação de mecanismos legais;
4. estrutura institucional construída de forma articulada nas três
esferas de governo, adequada às diretrizes estabelecidas pela
Política Nacional de Desenvolvimento Urbano;
5. financiamento: a) superar o descompasso da política econômica de
manutenção de juros altos, contingenciamento e insuficiência de
recursos para a política urbana; b) implementar uma política de
financiamento; c) garantir a destinação de recursos financeiros com
fontes permanentes; d) atendimento prioritário à população com
renda até 5 salários mínimos; e) instituir o Fundo Nacional de
Desenvolvimento Urbano;
6. elaboração de diretrizes para promoção do desenvolvimento
territorial urbano, regional, metropolitano e aglomerações urbanas;
7. estabelecimento de formas institucionais de participação social
(conselhos, conferências, audiências públicas etc.), definindo as
atribuições de cada instância, em todas as esferas da federação;
A função social da propriedade 47
8. elaboração de um sistema unificado de informações que articule as
três esferas de governo, para o monitoramento e avaliação da
política;
9. estabelecimento de fontes estáveis e permanentes de recursos
financeiros nos três níveis de governo.
1.4 O ESTATUTO DAS CIDADES
A Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da
Cidade e seus instrumentos, instituiu uma política nacional urbana com o objetivo de
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana. Ela tem como objetivo fundamental minimizar as desigualdades sociais, tão
grandes no Estado Brasileiro promovendo a integração social, e densificar direitos
previstos constitucionalmente, mas que ainda não saíram do papel, como o direito
de moradia. Ainda prevê a regulamentação da regularização fundiária através do
usucapião urbano e concessão especial de uso para fins de moradia previstos no
artigo 183 da Constituição Federal, garantido o direito à terra urbana, à moradia
(CF/88, art. 6º), ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e
aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.
A gestão de uma cidade sustentável tem que ser democrática,
garantindo a participação popular e a do terceiro setor, durante o acompanhamento
de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano e resgate da dignidade
e da cidadania. Entretanto, conflitos deverão surgir e suas respostas e
consequências deverão ser devidamente solucionadas no decorrer do tempo, já que
a nova legislação provoca, no mínimo, limitações ao exercício da propriedade ou de
construção.
O “adequado aproveitamento do solo urbano” concede ao Poder
Público Municipal o direito de exigir a utilização nos termos da lei ou dos planos
urbanísticos, sob pena de ser obrigado a promover o parcelamento ou a edificação
compulsórios, pagar imposto progressivo no tempo sobre a propriedade predial e
A função social da propriedade 48
territorial urbana ou, ainda, ter seu terreno submetido à desapropriação mediante
pagamento em títulos da dívida pública resgatáveis em até dez anos.
O Estatuto da(s) Cidade(s) regulamentou o desenvolvimento urbano no
Brasil, definindo os específicos instrumentos para a efetivação das diretrizes
encontradas no capítulo "Da Política Urbana", da Constituição Federal de 1988,
conferindo poderes, personalidade, maiores competências e, respectivamente,
maiores responsabilidades, compromissos e custos ao ente político-administrativo
municipal.
Ao reconhecer a função social da propriedade, o Estatuto da Cidade
desvencilha o direito de propriedade de sua visão absoluta, cerrada e dogmática, e
abre as portas para a criação, implementação e exercício das políticas urbanas, tal
qual se tem notícia atualmente.
Com orientação constitucional de que a política de desenvolvimento
urbano seria executada pelo Poder Público municipal, com o objetivo de "ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade” (art.; 2º) e garantir o bem-
estar de seus habitantes (art. 1º), o Estatuto das cidades definiu as diretrizes gerais
de tal política (arts. 1o a 3o), bem como os instrumentos de ação governamental na
busca das finalidades urbanísticas buscadas (arts. 4° a 45).
O Estatuto das Cidades subdivide-se em cinco capítulos:
Diretrizes Gerais (capítulo I, artigos 1º a 3º);
Dos Instrumentos da Política Urbana (capítulo II, artigos 4º a 38);
Do Plano Diretor (capítulo III, artigos 39 a 42);
Da Gestão Democrática da Cidade (capítulo IV, artigos 43 a 45);
Disposições Gerais (capítulo V, artigos 46 a 58).
Dentre seus instrumentos, encontra-se o Plano Diretor como portador
fundamental das normas destinadas a conduzir e regular a política urbana e sua
execução, mediante adequada intervenção na ordenação do território, por meio de
institutos tributários, financeiros, jurídicos, urbanísticos, estruturais, ambientais e
políticos.
A função social da propriedade 49
Ainda, fixa como meta a visão coletiva contrária à propriedade como
conquista privada absoluta, com base nas garantias constitucionais dos deveres
comuns aos direitos patrimoniais, em proveito da sociedade, para o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, buscando a
construção de cidades sustentáveis.
1.4.1 A gestão democrática e as sanções
A gestão democrática, enfaticamente dirigida aos cidadãos (e depende
da organização do grupo para o sucesso), visa à atuação de órgãos colegiados de
política urbana mediante a realização de debates, audiências públicas, consultas
públicas, garantindo participação efetiva em leis, planos e projetos.
Com relação ao Plano Diretor de Desenvolvimento urbano obrigatório
(deveria ser para todas), ela orienta seu desenvolvimento e compete ao Município a
sua plena observância, notadamente quanto às sanções ao proprietário omisso, em
caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput
do art. 5º desta Lei ou não sendo cumpridas as etapas previstas no seu § 5º, o
Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo
de cinco anos consecutivos, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento, até
que se cumpra a referida obrigação.
É grave a consequência que se impõe aos terrenos ociosos, que
infelizmente é pouco praticada no País, ora por conveniência, ora por ações
isoladas.
Não há ou ainda são insuficientes, em nossa legislação, normas legais
específicas em se atribuir a fiscalização e responsabilizar o Prefeito Municipal,
omisso ou conivente com o descumprimento de inúmeras regras de Urbanismo que,
na maioria das vezes, não utiliza as medidas saneadoras e preventivas para o
ordenamento urbano sustentável, inclusive a desapropriação com pagamentos da
divida pública e pelo valor atribuído ao imóvel para fins de lançamento tributário.
A função social da propriedade 50
Dispõe e aprimora o Usucapião, que mereceria todo um tratado sobre
esta especial modalidade de aquisição de domínio, auto-aplicável, previsto
constitucionalmente e, agora, ampliado pela possibilidade de iniciativa para o
usucapião coletivo, o que facilita e viabiliza a regularização fundiária de quaisquer
áreas urbanas.
O controverso instituto, previsto no Artigo 9º e seguintes da Lei,
regulamenta o Direito de Superfície, flexibilizando a utilização dos terrenos urbanos
e, ainda, atribui o direito de preempção ou de preferência ao Poder Público na
aquisição de imóveis urbanos.
Além disso, institui a elaboração do estudo prévio de impacto de
vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou
funcionamento, a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou
atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas
proximidades.
Estas e outras tantas regras, se respeitadas, poderão trazer
minimização dos efeitos negativos das cidades, caóticas por culpa exclusiva de seus
habitantes, predadores por essência e, contrariando Rousseau, com uma cobiça
nata, cujos instintos vorazes devem ser refreados pela sociedade.
A lei da sobrevivência impera em qualquer ambiente, quer seja
selvagem, quer seja civilizado, competindo à sociedade organizar sua atuação em
função do bem comum e de sua preservação.
1.5 O PLANO DIRETOR
1.5.1 Os planos territoriais
Dentre os instrumentos de política urbana, o art. 4º da Lei nº. 10.257/01
(Estatuto da Cidade) prevê em seus incisos: “I - planos nacionais, regionais e
estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; II –
A função social da propriedade 51
planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e macrorregiões;
III - planejamento municipal”, cuja ampliação de competência se respalda no art. 24,
I e § 1º da Constituição Federal de 1988, ao dispor que compete a União legislar
sobre as normas gerais de Direito Urbanístico, suplementar aos Estados, reservando
ao Município a primordial função de legislar sobre assuntos de interesse local e
promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano,
assim como ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem estar de seus habitantes, ao executar a política de desenvolvimento
urbano (CF/88, art. 30, I e VIII, art. 182).
Deve-se ressaltar, notadamente pelo foco do presente trabalho, dentre
os planos territoriais municipais, os Planos Urbanísticos que englobam o Plano
Diretor e seus desdobramentos específicos de partes das previsões globais e de
interesses especiais de renovação, operações consorciadas, urbanizações
prioritárias, restritivas, industriais e, ainda, as áreas de expansão urbana onde se
encontram as áreas de lazer e chácaras de recreio, ora em forma de condomínios,
ora em forma de loteamentos rurais.
O Plano Diretor, "instrumento básico da política de desenvolvimento e
de expansão urbana" (Lei nº 10.257/01, art. 40), é destinado a todos, salvo para
populações com menos de 20.000 habitantes ou que não se encontrem inseridas em
regiões metropolitanas; as aglomerações urbanas; as áreas de interesse turístico ou
em área de influência de empreendimentos ou atividades que gerem impacto
ambiental de âmbito regional (Lei 10.257/01, art. 41), e tem como objetivo
"sistematizar o desenvolvimento físico, econômico e social do território municipal,
visando ao bem-estar da comunidade local.”
Do ponto de vista do pesquisador, nenhum município brasileiro deveria
ter sido excluído da exigência, a fim de que, desde sua formação, os núcleos
urbanos possuíssem claras diretrizes de desenvolvimento e qualidade de vida.
Carlos Magno Miqueri da Costa afirma que:
O Plano Diretor delimita as áreas que serão alvo de aproveitamento específico, enquanto a lei municipal será a hospedeira dos critérios objetivos do „adequado aproveitamento do solo urbano‟, fixando condições e
A função social da propriedade 52
prazos para sua implementação. Sendo que, de acordo com os interesses locais diversificados, poderão variar de uma municipalidade para outra. As sanções para o caso de descumprimento também serão inseridas nas regras legais, apesar de que, pela ordem prevista na Lei Maior, o dito desrespeito desaguará na aplicação do IPTU progressivo no tempo e na desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.
Ressalta-se que o sujeito passivo da obrigação de aproveitar adequadamente o solo urbano é a pessoa de direito privado que ocupe a posição de seu legítimo proprietário. Isso se depreende do fato de que impossível seria a incidência de IPTU em relação à União, Estados, Distrito Federal e outros Municípios (art. 150, inc. VI, CRF/88), bem como a desapropriação de bens de pessoas jurídicas de direito público compo-nentes da administração pública direta ou indireta (art. 2
o, §§ 2
o e 3
o,
Dec.nº. 3.365/1941) impedimentos fulcrados no princípio federativo.34
Assim, o Plano Diretor é uma das máximas expressões da legislação
urbanística e seus desdobramentos, notadamente quanto às restrições impostas ao
direito de propriedade privada, bem como a exigência do cumprimento de sua
função social.
Como as antigas posturas, o Plano Diretor é o instrumento de
preservação dos bens ou áreas de referência urbana, com previsão e moderna
inspiração constitucional e do Estatuto da Cidade, que estabelece diretrizes para a
adequada ocupação do município, determinando o que pode e o que não pode ser
feito em cada parte do mesmo (CF/88, art. 182, § 1º; Lei 10.257/ 01).
O Plano Diretor, vinculado aos anseios da população, estabelece a
delimitação das áreas urbanas parceláveis, a edificação ou a utilização compulsória,
a exigência de infra-estrutura e demanda para a utilização do solo não edificado,
subutilizado ou não utilizado, exercício do direito de preempção, da outorga onerosa
do direito de construir, a alteração de uso do solo e as operações urbanas
consorciadas.
1.6 O PARCELAMENTO DO SOLO
As revoluções do comportamento humano, do domínio da pedra à
nanotecnologia, dos sinais de fumaça à rede de alcance mundial (“www - world wide
34
COSTA, 2009, p. 172 et. seq.
A função social da propriedade 53
web”) provocaram, notadamente no último século, profundas transformações nos
modos de produção e nos valores sociais, trazidas pelos ideários das Revoluções
Européias, impulsionando o crescimento e a expansão das cidades, transformando-
as em gigantescos nichos de alimentação, proteção e reprodução da espécie
humana, em um ambiente (meio ou fim) predador e cruel criado para suas múltiplas
satisfações pessoais e do subgrupo a que pertence.
O processo de urbanização constitui um importante e complexo objeto
de estudo para a administração pública, para as ciências jurídicas e outras ciências
correlacionadas, tais como a engenharia civil, a arquitetura, as ciências ambientais e
as ciências sociais.
Com a constante expansão e desenvolvimento urbano, a demanda de
prestação de serviços públicos, a infra-estrutura básica e as unidades habitacionais
aumentaram proporcionalmente. Diante disto, cresceram os parcelamentos de solo
realizados pela iniciativa privada e pelo poder público.
A implantação regular de empreendimentos destinados aos
parcelamentos do solo de grandes propriedades implica em um investimento
bastante alto e em um processo burocrático complexo e demasiadamente moroso.
Dessa maneira, fatores externos condicionam o preço da mercadoria, tornando o
acesso à propriedade distante das famílias de baixa renda.
Para minimizar esse problema, o poder público tem interferido e
implantado os chamados “loteamentos populares” e “loteamentos de interesse
social”. Mesmo assim, a oferta alcançada encontra-se distante da demanda
necessária e, muitas vezes, nem mesmo os empreendimentos públicos são
revestidos de plena legalidade.
O déficit de habitação regular reflete na ocorrência e agravamento dos
loteamentos clandestinos e irregulares e suas consequências atingem o sistema
viário, o sistema de abastecimento de água e coleta de esgoto, o sistema de
escoamento das águas pluviais, o meio ambiente e os direitos civis dos adquirentes,
além de sobrecarregar a administração pública municipal.
Atualmente é possível verificar o sucesso de ações que tratam os
aspectos jurídicos e urbanísticos da regularização judicial e administrativa dos
parcelamentos ilegais solo, visando, em um primeiro momento, a regularização da
A função social da propriedade 54
propriedade e moradia, a integração social aos serviços públicos e de infra-estrutura
básica, saneamento e outras intervenções pelo Estado ou coletividade, com o
resgate efetivo da dignidade e cidadania. Os conflitos legais devem ser superados
com a conjugação dos princípios constitucionais e da nova filosofia, quebrando
paradigmas do direito coletivo e sua função social.
Dentro deste contexto, a legislação administrativa, que define todo o
perfil do direito de propriedade, traça diretrizes para a divisão do solo em lotes,
permitindo (sob severas condições) ao proprietário que faça a alienação parcelada
de sua propriedade.
A Lei nº. 6.766/1979, em seus artigos 4º e 5º, expressa as condições
para a aprovação do loteamento. Os projetos, plantas, memoriais e uma infinidade
de poderes-deveres são objeto de profunda análise, incluindo as obras de infra-
estrutura básica, para tornar possível a habitação, sujeito a algumas espécies de
normas jurídicas: normas de direito civil, emanadas somente pela União; de direito
administrativo e urbanístico, objeto de competência federal, estadual e municipal.
O parcelamento do solo é a divisão geodésico-jurídica de um terreno,
uma vez que por meio dele se divide o solo e, concomitantemente, o direito
respectivo de propriedade, formando-se novas unidades, propriedades fisicamente
menores, mas juridicamente idênticas.
Juridicamente, o parcelamento do solo pode ocorrer através do
loteamento e do desmembramento urbanos, disciplinados pela Lei nº 6.766/79, com
as alterações trazidas pela Lei nº. 9.785/99, e do loteamento rural, disciplinado pelo
Decreto-lei Federal nº 58/37; pela Lei nº 4.504/64 – Estatuto da Terra; pela Lei nº
5.868/72 e pelas Instruções Normativas do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA).
Outras formas simplificadas de parcelamento não se encontram
disciplinadas pela Lei nº 6.766/79 e possuem disposições específicas, adequadas à
sua natureza, como o desdobro (divisão em 2 lotes) e o fracionamento (divisão do
terreno de 2 a 6 lotes).
Outras formas de parcelamento do solo surgiram a partir de inovações
criadas com base em legislações diversas, a exemplo do “condomínio deitado”, ou
“loteamento fechado”, e o “condomínio de lotes” que buscam na articulação de mais
A função social da propriedade 55
de uma lei ou instituto jurídico o respaldo para sua legitimidade, assim também as
chamadas “chácaras de recreio”, localizadas na zona rural.
Há, ainda, os parcelamentos de solo realizados através de expedientes
fraudulentos ou sem que sejam concluídos os procedimentos iniciados para sua
implantação, objeto de estudo desse trabalho, os parcelamentos ilegais do solo e,
consequentemente, uma proposta para solução de alguns dos inúmeros problemas
de regularização fundiária enfrentados em nosso País.
A Lei nº. 6.766/79 dispõe, em seu artigo 4º, que os loteamentos
deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:
I – as áreas destinadas a sistema de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situem;
II – os lotes terão área mínima de 125 m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando a legislação estadual ou municipal determinar maiores exigências, ou quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes;
III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica;
IV – as vias de loteamento deverão articular-se com as vias adjacentes oficiais, existentes ou projetadas, a harmonizar-se com a topografia local.
§ 1º. A legislação municipal definirá, para cada zona em que se divida o território do Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas de lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento.
§ 2º. Consideram-se comunitários os equipamentos públicos de educação, cultura, saúde, lazer e similares.
A reserva de áreas públicas destinadas ao sistema de circulação, à
implantação de equipamentos urbanos e comunitários, bem como as
correspondentes aos espaços livres de uso público, é imposta ao loteador pelo
inciso I, artigo 4º, enquanto o percentual mínimo, a partir das alterações introduzidas
pela Lei nº 9.785/99, deve ser fixado por legislação municipal.
Para efeito de entendimento do inciso I, desse artigo, o parágrafo 2º
estabelece que são considerados equipamentos comunitários ou públicos os que
A função social da propriedade 56
são destinados à educação, à cultura, à saúde, ao lazer e similares. Pela parte final
do dispositivo tem-se que a lista apresentada não possui caráter taxativo, ou seja,
outras atividades exercidas pelo Poder Público ou por particulares podem ser
consideradas comunitárias.
O dispositivo estabelece que cabe ao Município, ao fixar as diretrizes,
indicar os equipamentos urbanos e comunitários adequados a cada parcelamento,
conforme o planejamento urbano municipal. As vias de circulação do parcelamento
devem integrar o sistema viário oficial existente e o projetado.
As áreas públicas e os equipamentos urbanos e comunitários
implantados passam para o domínio municipal, ficando sob a responsabilidade do
Município ou de seus concessionários e permissionários. A transferência do domínio
ocorre com o recebimento do parcelamento pelo Município, a partir da expedição do
Termo de Verificação das obras, constatando que o projeto foi executado conforme
o ato de aprovação.
São considerados parcelamentos legais, portanto, os que atendem às
legislações municipal, estadual e federal, referentes à aprovação, à execução e ao
registro do projeto.
Assim, só podem ser chamados legais os parcelamentos do solo
urbano, ou para fins urbanos, aprovados pelo Poder Público competente (Município
ou Distrito Federal, quando for o caso) que foram executados conforme o ato de
aprovação e registrados, dentro do prazo fixado em lei, no Cartório de Registro de
Imóveis da situação do empreendimento, nos termos das normas jurídicas vigentes
ao tempo do ato de aprovação, da execução e do registro do empreendimento.
1.6.1 Os parcelamentos ilegais de solo
Os parcelamentos ilegais do solo são considerados um dos problemas
mais graves estudados hoje no direito urbanístico e no direito municipal, com
reflexos nos direitos ambiental, econômico e penal. Esses parcelamentos proliferam
nas periferias urbanas e nas zonas rurais, como resultado da carência de oferta
A função social da propriedade 57
imobiliária de baixo custo, da especulação e, ainda, da ocupação de terras públicas.
Diversos argumentos são apresentados para a não observância da lei,
como os custos elevados de implantação e a acentuada burocracia para a
aprovação.
A implantação de um loteamento, por exemplo, demanda a obtenção
de diretrizes urbanísticas junto ao município; a elaboração de planta, memorial
descritivo e projeto; a contratação de técnicos, dentre engenheiros, arquitetos,
geólogos e topógrafos; a execução de obras conforme padrões técnicos, incluindo
demarcação dos lotes e áreas, abertura de ruas, implantação de rede de distribuição
de água, de energia elétrica e de coleta e disposição de esgoto, pavimentação,
implantação das galerias de escoamento de águas pluviais, guias e sarjetas; a
comercialização dos lotes considerando profissionais, marketing e propaganda; o
recolhimento de impostos; a manutenção de elemento de empresa e
consequentemente encargos correspondentes, e assim por diante.
Além disso, transferem-se, em regra, 35% da gleba ao patrimônio do
município, gratuitamente, para a formação das vias de circulação, espaços livres,
áreas verdes e de lazer, praças e prédios públicos, e assim por diante.
Todo esse quadro eleva sobremaneira os custos do empreendimento,
o que, obviamente, é repassado ao adquirente, inviabilizando, portanto, a
flexibilização econômica desse mercado.
Quem possui o devido poder aquisitivo, tem a possibilidade de adquirir
sua propriedade regular; quem não o possui passa a compor a demanda dos
parcelamentos realizados à margem da lei.
Unidos ao fator econômico, que reproduz o interesse dos compradores
e compõe a demanda, aparecem outros fatores, não menos importantes, como a
negligência fiscalizatória da Administração Pública, que pouco faz avante o gabinete,
da demora característica dos procedimentos burocráticos, da irresponsabilidade dos
interessados – parceladores e da impunidade dos infratores.
O artigo 40, da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, faculta a
regularização dos loteamentos e desmembramentos não-autorizados ou executados
sem a observância do ato de aprovação. Esse dispositivo não só estabelece as
diferenças entre parcelamento irregular (aprovado, mas executado em desacordo
A função social da propriedade 58
com a legislação ou não registrado) e clandestino (sem aprovação), como os abriga
na legislação.
Frise-se que, embora distintos para efeito de regularização, tanto a
clandestinidade como a irregularidade do loteamento recebem da lei o mesmo
tratamento.
O parcelamento é clandestino, “na medida em que o Poder público
competente para examinar e, se for o caso, aprovar o plano, dele não tem, nesse
sentido, nenhum conhecimento oficial”.35 Assim, são clandestinos os parcelamentos
do solo não aprovados pela autoridade municipal competente.
O parcelamento é irregular quando o Poder Público competente o
aprova e o interessado “deixa de executá-lo, ou o executa em descompasso com o
ato de aprovação ou, após a aprovação e execução, não o registra”.36 Para José
Afonso da Silva, irregulares são os loteamentos “aprovados pela Prefeitura, mas que
não foram inscritos, ou o foram, mas são executados em desconformidade com o
plano e as plantas aprovadas”.37
Ante a inércia do Poder Público nas questões urbanísticas, o homem
em tempos de “pós-modernidade”, como animal social, buscando segurança e
proteção para reprodução e alimentação, domina um espaço, apossa-se dele e o
transforma para recriá-lo de forma que atenda a suas necessidades, as básicas e as
não-básicas. O meio ambiente, no espaço urbano, é artificial, notadamente
construído/modificado pelo homem e traz peculiaridades distintas do meio ambiente
natural. Assim, o homem por sua inexperiência, falta de conhecimentos técnicos e
ganância de poder arrisca-se a sucumbir no caos que provocou, no emaranhado de
espinhos que floresceu neste novo ambiente.
Ele cria um lugar excludente, tornando-se vítima de violência e fica
atrás das grades de suas casas tentando se proteger sem compreender os
problemas urbanos como problemas ambientais e sociais, sem enfrentá-los de forma
mais eficaz, ignorando a realidade histórica do desenvolvimento dos aglomerados
urbanos e arcando, fatalmente, com o ônus de suas inconseqüências.
35
GASPARINI, Diógenes. O município e o parcelamento do solo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 128.
36 Ibid., p. 130.
37 SILVA, 1997, p. 307 et. seq..
A função social da propriedade 59
Transformando o ambiente natural, as alterações processadas
terminam voltando-se contra o criador: instala-se a subversão dos valores humanos
no ambiente urbano e o homem fica enredado nele, asfixiado pela poluição que deu
origem e excluído pelo planejamento urbano elitista, sofrendo a violência que
causou, pois esqueceu que a sustentabilidade das cidades, sua função social e o
respeito à dignidade humana são questões que determinam a qualidade de vida e
devem, como tópicos de Segurança Pública, ser providas pelo Poder Público.
Os espaços urbanos são dependentes de recursos naturais, de
energias externas e de atuação do Poder Público; necessitam ser constantemente
monitorados pelo Estado para evitar que a qualidade de vida da população decaia e
ecloda a violência social. O ordenamento urbanístico é pressionado política e
ideologicamente para a adoção de um modelo de auto-sustentabilidade de difícil
consecução na prática, em especial por estarem em jogo aspectos não formais
como a luta pelo poder de facções criminosas. Os moradores do campo migram em
busca de uma vida melhor e encontram a discriminação e a intolerância a esperá-
los, de vez que o respeito ao pluralismo social não é garantido num modelo perverso
de um capitalismo selvagem em que as pessoas valem pelo que possuem ou por
sua aparência.
As cidades não são projetadas, suas soluções derivam do improviso e
o resultado, além do caos urbano, tem como subproduto a violência urbana,
decorrente de comportamento anti-social daqueles que foram, ou se julgam,
excluídos socialmente, como contrapartida ao comportamento dos "incluídos" que
não abrem mão de seus privilégios. Urge que o Poder Público adote uma política
para a sustentabilidade das cidades.
A cidade é o Meio Ambiente Construído. Novas acepções da palavra
Meio Ambiente, como o Meio Ambiente Natural, Cultural, do Trabalho e o
Construído, repercutem nas relações que envolvem Direitos Humanos e Direito
Econômico, além de ter sua tipologia assentada na Constituição com topografia
diferenciada: Natural (art. 225); Construído ou Artificial (artigos 182 e 183); Cultural
(artigos 215 e 216), e do Trabalho (artigos 6º e 200).
Cidades são sistemas abertos, com uma dependência profunda e
complexa de fatores externos, o que não pode ser colocado de lado pelo Poder
Público. Elas tradicionalmente têm sido abordadas como ameaça aos recursos
A função social da propriedade 60
ambientais, com impactos sobre o sistema natural pelas mudanças que provocam
na ocupação da terra e no uso do solo.
Os lugares mais poluídos são os ocupados pela camada
hipossuficiente da população, criando uma curva perversa dos que "pagam" o ônus
da degradação. É necessário planejar o abastecimento de água e alimentos
(armazéns, silos e distribuição), mas estas regiões também são pouco cuidadas e é
novamente a população de baixa renda que nela constrói suas moradias.
A regularização fundiária das áreas irregularmente ocupadas e a
produção de habitação popular são impositivas. Neste sentido, a Lei nº 10.257, de
10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade, traz uma nova proposta,
condizente com o princípio da participação da comunidade na gestão pública.
Cresce o terceiro setor ante a ineficiência do primeiro setor. Busca-se uma visão
global da polis, numa conceituação holística e transdisciplinar, pois a única solução
para o desenvolvimento humano está no planejamento participativo e na
solidariedade.
1.6.2 O desenvolvimento sustentável
O desenvolvimento sustentável migrou de um conceito puramente
ambiental para transformar-se em tópico, propondo-se encontrar a solução dos
problemas sociais, compatibilizando o atendimento das necessidades humanas, nos
seus variados aspectos, com a função socioambiental da cidade. No entanto, ele
deve ser acompanhado de transformação contínua, de avanços tecnológicos e
sociais diversos, ou não haverá sustentabilidade.
Um projeto de sustentabilidade urbano-ambiental deve contemplar a
caracterização física, ambiental e socioeconômica, a avaliação dos recursos
ambientais, as obras de infra-estrutura urbana, o saneamento ambiental, as áreas
verdes públicas, os espaços livres e vegetados que garantam a recarga dos
aquíferos, os serviços e equipamentos públicos, o programa de desenvolvimento
comunitário, o programa de habitação e o de regularização fundiária.
A função social da propriedade 61
As cidades agregam dificuldades aos esforços de avançar para a
sustentatibilidade urbana e o controle da violência, decorrentes da falta de auto-
suficiência de produção, disposição final dos resíduos criados e o desrespeito aos
Direitos Humanos.
A dicotomia entre o objetivo e o seu atingimento demonstra a
complexidade da problemática urbana. A difícil consecução impõe que os conceitos
de desenvolvimento sustentável de cidade e paz urbana ainda precisam ser
abordados, afastando-se o discurso fácil, desprovido de significado e viabilidade. O
envolvimento e a participação da coletividade são essenciais para o êxito do
processo.
A ocupação de áreas ambientalmente frágeis da cidade por pessoas de
menor poder aquisitivo, sem que o estado adote medidas preventivas, coloca em
risco a segurança dessas pessoas e da coletividade. Vive-se assim um círculo
vicioso. Quem fica em posição de risco é quem não tem condições políticas e
econômicas de defesa. É inegável que, nas questões urbanas, o tráfico de
influências políticas resolve muitos problemas, como é exemplo o fechamento de
ruas (logradouros públicos e bens de uso comum) para garantir a segurança dos
moradores, independentemente do caos que provoque na circulação da cidade.
A falta de previsão da destinação final de resíduos líquidos, sólidos e
gasosos agrava os problemas socioambientais, frequentemente fazendo com que as
classes de baixa renda convivam com esgotos a céu aberto e lixões, criando bolsões
de doenças e miséria que facilitam a instalação do crime organizado onde falharam
as Políticas Públicas de inserção social. Frequentemente, bandidos são
considerados, pela população local, como benfeitores e suas mortes homenageadas
como de figuras nacionais, com demonstrações de profundo luto e perda.
A falta de uma infra-estrutura viária dificulta a circulação das pessoas,
presas no trânsito, vivendo longe de seus trabalhos, perdendo muito tempo nesse
deslocamento e ainda sendo vítimas de constantes assaltos.
O passivo sócio-ambiental das áreas urbanas consolidadas, em
especial das áreas irregularmente ocupadas, deve ser recomposto através de
equipamentos urbanos compatíveis com a demanda.
A função social da propriedade 62
Projetos de produção de habitação popular devem contemplar o
conceito de sustentabilidade urbano-ambiental e desenvolver projetos integrados de
saúde, educação, geração de emprego e renda, bem como dotar de infra-estrutura
urbana, em especial tratamento e destinação de águas servidas e resíduos sólidos.
A globalização, distinguindo produção e consumo geograficamente,
induz impactos ainda maiores se considerarmos os limites tradicionais da cidade e
as exclusões que provocam. Essa dificuldade dos problemas urbanos gera fendas
abissais na estrutura social que, por sua vez, induz à violência e à discriminação
pela não aceitação do pluralismo.
1.6.3 As restrições urbanísticas
José Rodrigues Arimatéa, lecionando sobre as restrições urbanísticas
impostas pela Lei do parcelamento do solo urbano, afirma que:
A Lei nº. 6.766, de 19 de dezembro de 1976 (Lei do parcelamento do solo urbano), é um dos maiores avanços em matéria urbanística do País, pois estabeleceu critérios mínimos a serem observados para o fracionamento do solo urbano, sem prejuízo da disciplina municipal das peculiaridades locais.
O parcelamento do solo urbano, segundo a determinação da Lei, pode ser feito mediante loteamento ou desmembramento (art. 2º). Não são expressões equivalentes, pois o loteamento exige a construção de uma infra-estrutura completa. Por isso, é realizado em solos onde ainda não existem equipamentos públicos de infra-estrutura. O desmembramento aproveita a infra-estrutura pública já existente.
O loteamento é definido como a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos, ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes (art. 2º, § 1º, da Lei nº 6.766/76). Por desmembramento a Lei considera a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique a abertura de novas vias e logradouros públicos, nem o prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes (art. 2º, § 2º, da Lei nº. 6.766/76).
38
Estas restrições, mínimas, estabelecem também como, quando e onde
poderão ser executados os parcelamentos e seus conceitos vigoram até a
38
ARIMATÉA, 2003, p. 145 et seq.
A função social da propriedade 63
atualidade. Inclui, desde esta época, a preservação ambiental como preocupação
urbanística, condicionando sua alienação e o uso da propriedade, quer seja urbana,
quer seja de expansão urbana e, hoje, busca a efetivação de diversas de suas
diretrizes para qualquer área habitável, inclusive rural.
As restrições urbanísticas ganharam tamanho relevo, em razão do crescimento desordenado das cidades, que exigiu do Poder Público enérgicas intervenções, mas estas não chegam a esvaziar o conteúdo do direito de propriedade. São restrições baseadas no poder de polícia e legitimadas pelo interesse público. A inexistência das restrições urbanísticas tornaria caótica a situação habitacional das cidades. Aliás, esta situação caótica é bem visível nas grandes cidades, onde o Poder Público perdeu o controle sobre o ordenamento da ocupação do solo urbano.
39
A Lei do parcelamento do solo urbano convive, harmonicamente,
inclusive com o instituto da desapropriação, da supressão do direito de propriedade
e com o usucapião, além é claro das restrições urbanísticas peculiares locais que
podem atingir todos os atributos do direito de propriedade, justificado na sua função
social e no direito difuso e coletivo.
Entretanto, Arimatéa faz duas advertências:
Ainda que necessárias, e até essenciais, as restrições urbanísticas não podem resvalar para os abusos, com atos ilegais ou ilegítimos, pois incidem sobre o direito de propriedade, que, repita-se, é constitucionalmente consagrado como um direito individual. A restrição deve, pois, ser moderada e utilizada no patamar mínimo necessário, de forma a possibilitar a coexistência dos direitos individuais.
Não basta a existência dos instrumentos urbanísticos, pois é necessário utilizá-los, com moderação e verdade, de forma a preservar, em última análise, a vida na cidade. Li por este fundamento que as restrições urbanísticas são legitimadas.
40
Analisando todo o contexto histórico e a situação atual do direito à
propriedade e da sua função social, conclui-se que a disciplina e a regulamentação
das questões a ela relacionadas são da competência do Direito Coletivo. Então se
faz necessária a discussão sobre o Direito Coletivo e, mais especificamente, sobre o
Direito Coletivo Urbano, visto que o foco deste trabalho é a propriedade urbana.
39
ARIMATÉA, 2003, p. 147 et. seq. 40
Ibid., p. 149 et. seq.
O Direito Coletivo Urbano 64
2 O DIREITO COLETIVO URBANO
2.1 OS ELEMENTOS DE DIREITO COLETIVO E A TUTELA COLETIVA DE DIREITOS
Neste campo, notadamente de aspecto econômico e patrimonial, os
Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, inseridos constitucionalmente,
influenciam todo o Direito Urbanístico e o próprio Direito de Propriedade, com
profundas alterações na forma de se comporem os conflitos diante das novas
técnicas de ponderação e valoração de princípios, ainda que aparentemente
colidentes.
O coletivo estabelece, pois, sua vasta abrangência, ora inserindo-se no
direito de propriedade, ora qualificando o direito urbanístico, ora restringindo o
Estado e ao mesmo tempo ordenando a sua regulação e a eficácia da utilização dos
recursos públicos e, principalmente, especificando o uso social (coletivo) da
propriedade imobiliária, incluindo direitos e obrigações aos não-proprietários, dando
novos contornos e perfis a direitos existentes e já consagrados, sem desqualificá-los
ou retirar suas essências.
A conscientização de que vivemos em uma era que exige mudanças
comportamentais, do ponto de vista ético, moral, na busca do justo e,
principalmente, de ambientes sustentáveis é passaporte para estabelecer novos
conceitos de convivência social.
Os direitos conquistados pela humanidade, garantidos pelo
ordenamento jurídico, fundamentais e basilares, inseridos nos sistemas de Direito e
expressos nos princípios inseridos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e
nas Constituições Federais, representam as diretrizes atuais dos Estados
(Democráticos) de Direito no contexto internacional, em plena era da globalização
O Direito Coletivo Urbano 65
das relações de mercado cujas consequências devem ser analisadas sob o ponto de
vista social.
Entretanto, para se alcançar o campo prático do Direito, estes direitos
ou garantias evoluíram e adequaram-se às necessidades através de sua época,
sendo consagrados, hoje, como os direitos de terceira geração (em elaboração
conceitual) aqueles denominados direitos solidários, representados no ordenamento
jurídico como direitos “coletivos” ou “difusos”, ou seja, o direito de viver em um
ambiente apto a fornecer a qualidade de vida digna e propícia à sobrevivência de
todas as espécies de seres vivos e jamais poderia deixar de estar inserido no mundo
jurídico (sustentabilidade).
O desenvolvimento do direito, na garantia pela tutela dos direitos
coletivos, busca celeridade no entendimento e dimensão da situação, assim como
na resolução possibilitada ao seu alcance.
Importante ressaltar, ainda, que os direitos difusos e coletivos estão
presentes nas relações de consumo, na proteção dos direitos das crianças e dos
adolescentes, dos idosos, dos deficientes, na habitação/moradia, no trabalho, na
recreação, no transporte e na circulação, todos estes ensejadores de proteção
especial do Estado.
A nova concepção de tutela coletiva também merece nossa atenção,
buscando entender sua teoria geral para inserir seus fundamentos em nossa
capacidade de ser e ter, diante da conflituosidade dos interesses públicos primários
(que consistem nos interesses públicos, sociais e da coletividade) com os interesses
públicos secundários, que se limitam à esfera interna do ente estatal (interesses
individuais do Estado, como quaisquer sujeitos), e com os direitos individuais.
Os direitos tutelados, coletivos, e sua nova instrumentalização não se
enquadram nas classificações tradicionais entre direitos públicos ou privados, mas
buscam a solução da questão comum coletiva.
Nessa “era de direitos”, adverte o processualista Luiz Manoel Gomes
Júnior:
Hoje, não interessa, apenas, a defesa intransigente do lucro ou da livre iniciativa, ambos valorizados, mas, exige-se, ainda que haja o atendimento
O Direito Coletivo Urbano 66
da função social „indispensável‟ em qualquer tipo de atividade, individual ou coletiva, bem como da própria atuação do Poder Público.
41
Assim, busca-se a tutela dos denominados interesses metaindividuais,
que são os direitos que pertencem a todos, não públicos, derivado das modernas
relações sociais coletivas. É a categoria de direitos, diferente da que alberga os
direitos sociais e também diferenciados da categoria relativa aos direitos subjetivos,
especifica na proteção do bem estar coletivo, em que haja interesses em conflitos
entre princípios de supremacia de valores, frente à tradicional proteção aos
interesses individuais.
Neste contexto, cumpre deixar claro que se entende como interesse
público o próprio interesse do Estado, interesse privado como aquele que tem por
titular o cidadão em suas relações com outros indivíduos e como interesse social
aquele que se refere ao interesse da coletividade no sentido mais amplo, sendo o
individual o que tem o indivíduo como único titular.
Deve-se ressaltar que não se pode confundir defesa de diretos
coletivos com defesa coletiva de direitos (individuais), segundo o Ministro Zavascki,
É preciso, pois, que não se confunda defesa de direitos coletivos com defesa coletiva de direitos (individuais). Direitos coletivos são direitos subjetivamente transindividuais (+ sem titular determinado) e materialmente indivisíveis. Os direitos coletivos comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela jurisdicional. Ou seja, embora indivisível, é possível conceber-se uma única unidade da espécie de direito coletivo. O que é múltipla (e indeterminada) é a sua titularidade, e daí sua transindividualidade. „Direito Coletivo‟ é designação genérica para as duas modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo strito sensu.
42
Ele conclui:
Já os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não altera e nem pode desvirtuar essa natureza. É qualificativo utilizado para identificar um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos eles. [...] Há, é certo, nesta compreensão, uma pluralidade de titulares, como ocorre nos direitos transindividuais; porém,
41
GOMES JR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 3, destaque do autor.
42 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo, tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de
direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 41.
O Direito Coletivo Urbano 67
diferentemente desses (que são indivisíveis e seus titulares indeterminados, a pluralidade, nos direitos individuais homogêneos, não é somente a dos sujeitos (que são determinados), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autônomas, com titularidade própria.
43
E, com peculiar sabedoria, o autor leciona:
Não se trata, pois, de uma nova espécie de direito material. Os direitos individuais homogêneos são, em verdade, aqueles mesmos direitos comuns ou afins de que trata o art. 46 do CPC (nomeadamente em seus incisos II e IV), cuja coletivização tem um sentido meramente instrumental, como estratégia para permitir a sua efetiva tutela em juízo.
44
Finalizando, resume: “Quando se fala em „defesa coletiva‟ ou em
„tutela coletiva‟ de direitos homogêneos, o que está se qualificando como coletivo
não é o direito material tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua
defesa”.45
Assim, pressupondo que direito coletivo é a denominação genérica
para duas modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo,
compreendem-se por direitos difusos aqueles cujos titulares não são determinados e
nem mesmo determináveis quanto à respectiva titularidade, ligadas umas as outras
por meras e acidentais circunstâncias fáticas, cuja satisfação alcança sempre a toda
uma coletividade.
No coletivo, há perfeitas condições de se identificarem os titulares por
necessário vínculo associativo ou corporativo, um vínculo jurídico, na convergência
dos interesses, legitimando entidade à defesa até por meio de ações coletivas
voltadas à defesa desses direitos.
O direito individual homogêneo, embora contenha as mesmas
características dos direitos coletivos, diferencia-se daqueles considerando-se a
divisibilidade do dano ou da responsabilidade que ele afeta. Eles derivam do mesmo
fundamento de fato onde direito que podem ter, entre si, relação de afinidade por um
43
ZAVASCKI, 2006, p. 43. 44
Ibid., p. 44. 45
Ibid., loc. cit..
O Direito Coletivo Urbano 68
ponto comum de fato ou de direito, cuja melhor instrumentalização é de forma
coletiva.
A tutela coletiva de direitos (valores) é sempre possível, desde que
considerados bens com interesses coletivos (coletivos e difusos), quando tais
direitos forem afetos à coletividade (nem sempre a própria) e não apenas quando
puder ser considerado no âmbito individual e, ainda assim, poder-se-á pleitear a
proteção, mesmo estando em mãos (propriedade) de particulares ou do Estado, cuja
demonstração do valor a ser protegido deverá ser comprovada por técnicos das
respectivas áreas.
Pelo mesmo motivo, justifica-se inclusive a proteção à ordem
econômica, sempre quando estiver presente a relevância social do interesse
transindividual por meio das denominadas ações coletivas.
Embora posições contrárias, a expressão "ação coletiva" (não
individual) constitui-se em gênero que alberga todas as ações que tenham por objeto
a tutela jurisdicional coletiva (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos),
diferenciando-se da "ação individual" que tem por finalidade veicular pretensão
puramente subjetiva e particularizada.
Assim, em tempos de pós-modernidade e de evolução dos novos
contornos dos direitos, temos em nosso sistema os direitos coletivos, diferentes e ao
mesmo tempo com estreita relação com o direito civil e com o penal, a partir da
Constituição Federal de 1988, com as consagradas definições, a partir de então, dos
direitos coletivos lato sensu nos incisos do art. 81 do Código de Defesa do
Consumidor (Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990) como:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
O Direito Coletivo Urbano 69
Esta conceituação é aceita pela maioria da doutrina nacional.
Depreende-se, do conceito legal, o número indeterminado e
indeterminável de pessoas que não se interligam por relação jurídica, mas por
circunstâncias fáticas e indivisibilidade do bem jurídico em litígio. Atinge-se um
número indeterminado de pessoas, ligadas por circunstâncias de fato. O bem
jurídico tutelado, doutra parte, é indivisível e beneficia a todos os interessados.
Assim, como exemplo, o adequado uso da propriedade.
Em sendo prudente, a distinção entre interesses e direitos difusos, de
um lado e, de outro, interesses e direitos coletivos, decorre do direito positivo.
No entendimento, lado a lado, estão os direitos difusos e os coletivos.
São transindividuais, de natureza indivisível. Entretanto, quando coletivo reduz-se a
um número determinável de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base (art. 81, II, Código de Defesa do Consumidor), enquanto
difuso este número é indeterminável.
São direitos que não representam o interesse de uma só pessoa,
diante de um bem jurídico, indivisível, mas há diversidade de pessoas, com um laço
jurídico unindo-as.
A poluição ambiental por uma indústria, em manancial de
abastecimento urbano é uma hipótese muito real, em nossas cidades, de violação
de direito difuso, eis que as conseqüências ultrapassam as possibilidades de
delimitação de seus efeitos.
Em sendo coletivo, as pessoas são determináveis, têm uma relação
jurídica com a parte contrária e o bem jurídico é indivisível, na acepção de que não é
fruível isoladamente e deve pertencer a uma mesma classe coletiva perceptível por
vínculos, identificando os titulares pelo grupo ou coletividade, mantendo-se a
indivisibilidade do direito.
Assim, determinadas comunidades ao reivindicar direito de
saneamento básico em seus bairros ou ainda energia elétrica, água encanada, são
exemplos enquadrados como interesse coletivo.
O Direito Coletivo Urbano 70
Pela nova forma de ver ou entender os direitos existentes, classificou-
se os Direitos individuais homogêneos, como aqueles decorrentes de origem
comum (art. 81, III, do Código de Defesa do Consumidor).
Diversos dos interesses difusos e dos coletivos são os direitos
individuais com caráter predominantemente individualizado e divisíveis entre os
titulares, com o bem jurídico perfeitamente individualizado entre os titulares que, no
entanto, podem postular a proteção jurisdicional coletivamente, em face da origem
comum do direito afirmado.
De relevante importância para os embates causados pela
conflituosidade de interesses, no espaço urbano e na sua formação, estes direitos,
conquanto se tratem de direitos individuais e, pois, fruíveis individualmente, podem
ser tratados de forma coletiva.
Os direitos difusos têm indeterminação quanto aos titulares e são
indivisíveis; os direitos coletivos não têm titular individualizado, mas grupo
identificado e natureza indivisível; entretanto, os individuais homogêneos têm a
titularidade perfeitamente individualizada.
E, no contexto do presente trabalho, o direito individual homogêneo é
perfeitamente adequado para fundamentar ações que visem buscar o direito à
regularização fundiária, como novo instrumento de forma coletiva, pois embora
perfeitamente possível pleitear a obtenção do título individualmente (usucapião, p.
ex.), a obtenção do direito de forma coletiva resultaria em todos os benefícios
almejados pela legislação, que consagrou a supremacia do solidário ante o
individual, na aplicação do Sistema Único Coletivo por meio de seus novos
instrumentos colocados à disposição.
Assim, busca-se cumprir as inovações constitucionais e seus valores
principiológicos de cidadania e da dignidade da pessoa humana, quando reforça a
idéia do direito difuso ou coletivo.
Deve-se compreender que o cidadão de hoje é algo além de participar
de sua coletividade em busca de defender seus interesses. Poder e dever são a
chave do sucesso, ao cidadão compete proteger os interesses gerais da coletividade
com autoridade para exigir, do Poder Público, a sua eficiente consecução.
O Direito Coletivo Urbano 71
Surgem, então, as preocupações dos processualistas que se voltam à
instrumentalidade e à efetividade do processo. Surge renovada idéia de processo e
toma vez a concepção de processo coletivo como instrumento de transformação
social, fator determinante para o rompimento com o modelo clássico, individualista,
de processo até então vigente.
O Ministério Público foi colocado em merecida postura constitucional
condizente. Como guardião da sociedade e nossa maior e mais expressiva voz, foi
obrigado a tomar para si a incumbência principal, a defesa destes direitos, por
omissão da própria sociedade que, a passos lentos, caminha para a sua própria
conscientização.
Desde muito antes, tem-se inúmeras iniciativas do Ministério Público
contra os loteadores clandestinos, ilesos na maioria das vezes, e seus co-autores
sequer chamados ao processo, salvo raras exceções, que serão tratados em
capítulo próprio com suas respectivas tutelas.
Ainda, quanto ao processo, diz Barbosa Moreira, citado por Lucia Valle
Figueiredo:
Não menos pesada no campo do processo que no resto do universo jurídico, a herança individualista reservou por muito tempo lugar exclusivo, no centro das atenções, aos problemas da tutela jurisdicional atinentes a conflitos entre pessoas singularmente consideradas. O mais rápido olhar em esquemas processuais clássicos, tais como os que refletem os grandes monumentos legislativos e a doutrina tradicional, desde logo os descobre, com poucas exceções, fundamentalmente armados à imagem e semelhança das relações jurídicas interindividuais, a cujo trato se ordena, de maneira precípua, o aparelho da Justiça.
46
E, ainda,
[...]. Por outro lado, a ciência jurídica, entre nós, ainda não se debruçou sobre a hipótese de ver-se o próprio interesse coletivo, como algo distinto da mera soma dos direitos individuais, encarnado, por assim dizer, numa associação que se proponha o fim de defendê-lo, e que em tal perspectiva se legitimaria em caráter ordinário, de acordo com os princípios comuns, quando se mobilizar para postular em juízo a respectiva proteção [...].
47
46
MOREIRA, José Carlos Barbosa apud FIGUEIREDO 2005, p. 41. 47
Ibid., p. 42.
O Direito Coletivo Urbano 72
Superada esta fase, evolui-se para entender os interesses singulares
(individuais) vinculados aos interesses gerais (coletivos), bens individuais
componentes de um todo difuso e coletivo, garantindo-se ambos na busca do
equilíbrio entre seus “valores”.
Maria Helena Diniz, citada por Lúcia Valle Figueiredo, ao comentar
sobre o direito subjetivo individual, nesta árdua valoração e ponderação, entre o
individual e o social, afirma:
O direito subjetivo é sempre permissão que tem o ser humano de agir conforme o direito objetivo. Um não pode existir sem o outro. O direito objetivo existe em razão do subjetivo, para revelar a permissão de praticar atos. O direito subjetivo, por sua vez, constitui-se de permissões dadas por meio do direito objetivo.
48
Assim, ao exercer seu direito de propriedade, este deve ser conforme
sua função social e princípios do direito urbanístico, dentro dos contornos do
ordenamento jurídico vigente.
A partir de então, onde houver pluralidade de interesses individuais,
devemos considerar as novas hipóteses e respeitar a reciprocidade de interesses,
direitos e deveres do grupo, mantendo sua individualidade e unicidade, enquanto
detentores destes direitos, ora individuais, ora coletivo ou difuso.
Depois de acurada análise, Rodolfo de Camargo Mancuso, citado por
Lucia Valle Figueiredo, arremata com o conceito analítico de interesses difusos:
Tais considerações nos levam a propor o seguinte conceito analítico, para os interesses difusos: são interesses metaindividuais que não tendo atingido o grau de agregação e organização necessários a sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo (v.g., o interesse da pureza do ar atmosférico), podendo, por vezes, concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido (v.g., os consumidores). Caracterizam-se: pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua interna litigiosidade interna e por sua tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço É, pois, a época da conscientização de que o indivíduo só sobrevive bem se a coletividade, na qual vive, esteja também defendida.
49
48 DINIZ apud FIGUEIREDO, 2005, p. 43. 49
MANCUSO, Rodolfo de Camargo apud FIGUEIREDO, 2005, p. 52.
O Direito Coletivo Urbano 73
É fato, a Constituição de 1988, no que concerne ao meio ambiente e à
ordenação do território urbano e, em conseqüência, à tutela dos direitos difusos,
impende verificar, trouxe enorme evolução ao pensamento jurídico nacional e
influencia até os dias de hoje os novos conceitos de sobrevivência em coletividade,
merecendo ampla proteção judicial (CF/88, art. 5º, inc. XXXV).
2.1.1 O Direito Coletivo (ao bem estar) urbano
Embora inapropriado, serão utilizados, em diversas oportunidades
nesse trabalho, a expressão direito coletivo abrangendo todos os direitos coletivos,
stricto sensu, os direitos difusos e os individuais homogêneos para caracterizar
determinadas situações em estudo, como passiveis da tutela coletiva.
O homem, como qualquer outro ser vivo, necessita, para sobreviver, de
fontes de alimentação e de um abrigo, um local seguro para se proteger e para se
reproduzir; antes nômade e individualista, hoje sedentário e comunitário (ainda em
estágio egoístico), deve evoluir para inserir, neste novo perfil para o ambiente
urbano, os princípios da dependência recíproca.
E, assim, por inúmeras questões, as sociedades primitivas se uniram
em grupos e estes grupos, por outras inúmeras razões, somente prosperaram à
medida que se organizavam.
E, desta evolução, surgiram as Cidades-Estados, conforme expõe
Lehfeld:
Embora não haja estudos conclusivos sobre como as cidades-Estado evoluíram das comunidades que as precederam, presume-se que, nessas sociedades em que o governo se limitava apenas ao âmbito familiar, houve um processo de unificação dessas famílias. As cidades, com isso, passaram a constituir um empreendimento coletivo, governado por poucos, dotados de certa autoridade sobre as demais.
50
Conforme se depreende, desde essa época havia a preocupação com
o interesse público coletivo e o bem estar de seus habitantes, financiado por rendas
50 LEHFELD, Lucas de Souza. Controle das agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2008, p. 15.
O Direito Coletivo Urbano 74
diversas e impostos e, notadamente, pela contribuição referente ao patrimônio, a
título de dever cívico.
O ambiente atual, de novos conceitos e conteúdos, é a Cidade pós-
moderna (no sentido mais abrangente possível), onde convivem todas as
subespécies de seres humanos, em total desarmonia, da lei do mais forte à lei da
inteligência artificial, da selvageria à subserviência, dos sádicos aos masoquistas, do
santo ao bárbaro, dos escravocratas, dos racistas, dos senhores, dos donos, do rico
e do pobre, do sábio ao ignorante, da abundância e fartura aos miseráveis e
esfomeados, das mansões e arranha-céus aos casebres e barracos, diante dos
interesses múltiplos da sociedade, em cada tempo com uma denominação, sempre
com os velhos conflitos que envolvem o capital, o patrimônio, o poder.
Mesmo analisado como ramo novo (ou novo perfil de direitos
existentes) para a Ciência do Direito, em pleno desenvolvimento da raça humana, se
confirma cada vez mais a necessidade e aplicabilidade do direito da solidariedade,
da comunidade, da coletividade, caracterizando sua autonomia científica.
Esta preocupação em defender o direito coletivo, inserido no direito
urbano, de propriedade urbana, principalmente com fundamento na sua função
social, não é recente. Há várias décadas, o Ministro Eros Roberto Grau, tratando da
regulamentação existente para a convivência harmônica dos princípios e o efetivo
impacto sobre o direito de propriedade referido à chamada propriedade urbana – e
seus efeitos concretos em relação à definição do seu perfil, afirma que já existia
sensível regulamentação normativa para o uso solo e sua função, mas
O mesmo não se pode afirmar, no entanto, com relação à propriedade urbana, cujas unidades se encontram inseridas em um conjunto mais amplo: a cidade. Essa carência de instrumentação, no entanto, é inteiramente injustificável, dada a fundamental importância do fenômeno das urbanização, que está inteiramente vinculado aos mecanismos de desenvolvimento econômico, construindo-se mesmo, entre ambos, um processo de causação circular acumulativa, onde causa e efeito se confundem.
51
A concretização dos valores e princípios, consagrados na atual Carta
Magna, direciona a sua dinâmica evolutiva e necessária para a efetivação do direito 51
GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle
ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 64.
O Direito Coletivo Urbano 75
coletivo e sua efetiva incidência sobre a propriedade, principalmente a urbana, que
deve ser usada com fins coletivos/sociais.
Mais que evolução, o direito urbano inovou, da mesma forma, em
consonância com os bons fluídos do Direito Coletivo, o próprio Direito Coletivo
Urbano ao se tornar um aliado dos ocupantes irregulares de áreas urbanas
privadas. Nesta nova filosofia de compreender o direito, grupos de moradores
poderão buscar, em conjunto, na Justiça o direito ao terreno ocupado em uma só
ação, desde que esteja há mais de cinco anos no local e não tenham enfrentado
oposição judicial. Propõe-se uma reforma urbana, regularização da propriedade
fundiária das favelas, favorecendo os que vivem em situação precária, aliviando o
volume de processos de reconhecimento de usucapião impetrados individualmente
no Poder Judiciário. Pode ser utilizada em áreas urbanas com mais de 250 metros
quadrados, ocupadas por população de baixa renda que more no lugar por cinco
anos ininterruptos e sem oposição, caso da maioria das vilas e favelas em estado
irregular. A regularização fundiária é vista pelos experts como uma forma de
incentivar a paz social. O morador, sabendo-se titular do direito de propriedade, terá
mais interesse em tornar seu bairro mais seguro, pois isto irá valorizar seu
patrimônio.
O Direito Ambiental como conjunto de regras, princípios e políticas
públicas busca a harmonização do homem com o Meio Ambiente, envolve aspectos
naturais, culturais, artificiais e do trabalho que possuem regulamentação própria,
com institutos jurídicos diferentes, apesar de complementares, e deve estar inserido
no contexto urbano.
Domar os confins da terra, do ar e das águas significa satisfação de
desejos e o atendimento pleno de propósitos e caprichos, como se o conforto de
alguns privilegiados fosse a finalidade maior da “Mãe Natureza”. No entanto, ao
projetar um espaço elitista esquece que o ser humano é plural e fragiliza a ordem
pública pela carência de infra-estrutura. O homem constrói a cidade, e ela vai
contextualizá-lo e influenciá-lo. Criador e criatura atuam em simbiose e em
autopoiese. Satisfazer "desejos humanos urbanos", como morar, se alimentar e se
reproduzir, torna-se prioridade que se julga alcançada mesmo quando a ocupação é
precária e em área de risco.
O Direito Coletivo Urbano 76
A ocupação desordenada das encostas, em várias cidades brasileiras,
tem acarretado uma ciranda sem fim de desmoronamentos e mortes. Fala-se muito
na violência urbana, nos ataques ao patrimônio, nas mortes no transito etc., é a
violência explicita dos "conflitos" dos sem-terra, dos sem teto, dos sem “endereço”
que atinge o mercado imobiliário, para constatar que há correlação entre infra-
estrutura urbana e violência.
O Código Tributário Nacional, no § 1º do art. 32, para fins de instituição
do IPTU, entende como zona urbana a que tenha pelo menos dois dos seguintes
requisitos: meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
abastecimento de água; sistema de esgotos sanitários; rede de iluminação pública,
com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; escola primária ou posto de
saúde a uma distância máxima de três quilômetros do imóvel considerado; tornando
a argumentação frágil se pretendida a associação com a realidade. Na visão jurídica
de José Afonso da Silva, ela é a sede do governo municipal, qualquer que seja a sua
população, com ou sem os requisitos supra mencionados.
Freqüentemente os Municípios tendem a superdimensionar sua área
urbana visando a cobrança do IPTU, sem considerar o desamparo que ficam as
pessoas que moram nas periferias desassistidas pelo Poder Público e privadas dos
mais essenciais Direitos Humanos.
Ainda hoje, entretanto, apesar da Declaração do Rio 92 expressar o
aspecto antropocêntrico dessas questões, elas são desatendidas fazendo com que o
papel do Estado Provedor seja arrebatado pelo leigo que passa a organizar, sem
técnica, espaços para suprir a própria necessidade de proteção, mas visando
apenas o lucro e não o bem comum. O tipo de urbanização da cidade evidencia o
grau de desenvolvimento do povo que a construiu e a habita, enriquecendo a
experiência humana com um enorme e amplo universo de ideais de realidades que
se complementam no exercício do respeito, da solidariedade e da cidadania, quando
o que acontece é o choque de culturas e de egoísmos, com a solidariedade só
aparecendo em campanhas públicas, mas escondida no dia-a-dia e nos atos sem
publicidade.
O esgoto e o lixo que a cidade produz estão sem destino, estando a
sua remoção e tratamento dos resíduos líquidos e sólidos intimamente ligados ao
fenômeno da urbanização. Novamente tem-se um segmento social sofrendo os
O Direito Coletivo Urbano 77
efeitos maléficos da urbanização desordenada. Se a infra-estrutura básica,
constitucional, continuar a ser descuidada e mal planejada, o ambiente ficará
doente, ocorrendo epidemias e/ou endemias que, em geral, atingem mais as classes
menos favorecidas.
Repita-se que a regularização fundiária das áreas irregularmente
ocupadas e a produção de habitação destinada ao re-assentamento são impositivas
para conter a escalada do caos urbano, cada vez mais grave.
Acima de qualquer regularização fundiária atual, está a previsão legal
de responsabilização dos governantes por improbidade administrativa em qualquer
situação de ocupação regular futura, com objetivo de iniciar uma nova cultura de
soluções para os assentamentos humanos.
Desde o final da década de 70, na periferia dos grandes centros
urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, emergiu a implantação de loteamentos
urbanos sem infra-estrutura urbana e autorização do Poder Público, o que resultou
numa ocupação sem padrões mínimos de qualidade ambiental de grande parte do
território destas cidades. Com o objetivo de fazer a reversão da deteriorização de
áreas urbanas, ainda que algumas irreversíveis, foi instituída a Lei nº. 6.766/79 que
dispõe sobre o parcelamento do solo urbano; estabelece os padrões urbanísticos
mínimos para implantação de loteamento urbano, tais como sistema viário,
equipamentos urbanos e comunitários, áreas públicas, bem como as
responsabilidades dos agentes privados (proprietários, loteadores, empreendedores)
e do Poder Público e tipifica os crimes urbanísticos.
Nestas quase três décadas de aplicação desta lei, muitas críticas têm
sido levantadas quanto à sua eficácia, devido ao aumento do número de
loteamentos irregulares e clandestinos e, principalmente, de favelas nas grandes
cidades brasileiras, como também dos raros casos em que os responsáveis pela
prática dos crimes urbanísticos foram punidos de forma exemplar, seja na esfera
Administrativa, na civil ou na penal.
De fato, a Lei nº. 6.766/79 (ainda que mais eficaz com as novas
legislações) necessita de uma revisão geral para atender os objetivos da política
urbana preconizada em nossa Constituição, de modo que as funções sociais da
cidade e da propriedade urbana sejam cumpridas, através de medidas redutoras das
O Direito Coletivo Urbano 78
desigualdades e da exclusão social e efetivem os direitos inerentes às pessoas que
vivem nas cidades, especialmente dos que vivem nas cidades informais (favelas,
cortiços e loteamentos populares na periferia urbana). A revisão, efetuada pelo
Congresso Nacional sem garantir a participação dos diversos setores da sociedade
que atuam com a questão urbana, é extremamente preocupante para todos os
cidadãos que lutam pela existência de cidades justas e sustentáveis com padrões
dignos de qualidade de vida.
A Lei nº. 9.785 de 29/01/99, que alterou a Lei nº. 6.766/79, diz respeito
à regularização do registro público dos parcelamentos populares implantados em
áreas desapropriadas pelo Poder Público, destinados à população de baixa renda.
Então, além da Lei nº. 6.766/79, também foram alteradas a lei de registros públicos e
a lei sobre desapropriações de interesse público.
Esta alteração permitiu a dispensa do titulo de propriedade para fins de
registro do parcelamento popular de área desapropriada, sendo necessário que o
Poder Público já tenha judicialmente a posse do imóvel. Outra mudança significativa
é a da lei permitir, nos parcelamentos populares, a cessão da posse para as
pessoas que adquiriram os lotes do Poder Público por instrumento particular tendo
caráter de escritura pública. A cessão de posse deve ser obrigatoriamente aceita
como garantia nos contratos de financiamentos habitacionais.
Estas mudanças têm um alcance social importante, uma vez que um
dos processos mais perversos de desrespeito ao direito à moradia é a falta de
segurança jurídica para a população de baixa renda que adquire os lotes ou
unidades habitacionais dos empreendimentos efetuados pelo Poder público.
Essa Lei alterou também os requisitos e critérios urbanísticos para a
implantação de loteamento urbano, as responsabilidades e obrigações do loteador e
do Poder Público. São diversas as alterações efetuadas na Lei nº. 6.766/79 que
resultam na flexibilização do parcelamento do solo urbano, como impacto negativo
nas cidades.
Entretanto, a qualidade dos efeitos sócio-ambientais das intervenções
tendentes à regularização urbanística depende do trabalho de orientação da
população e da administração pública, sobre os danos produzidos pela ocupação
O Direito Coletivo Urbano 79
irregular, do planejamento da intervenção e do monitoramento dos resultados
pretendidos.
O combate às causas das ocupações ilegais deve ser priorizado
através da formulação de políticas adequadas de planejamento urbano, habitação
social e preservação ambiental.
Neste contexto, fundada na Constituição, o Estatuto da Cidade, Lei nº.
10.257, de 10 de julho de 2001, estabelece as diretrizes gerais da política urbana
que devem ser observadas por ela própria, pelos Estados e pelos Municípios, tais
como a garantia do direito a cidades sustentáveis e a gestão democrática da cidade
com participação popular. Torna-se, pois, tremendamente desvantajosa a aquisição
de terrenos urbanos, como se fossem fundo de poupança da população
economicamente melhor. Este era o regime de engorda da terra e a especulação
imobiliária que expulsava, cada vez mais, os hipossuficientes para a periferia das
cidades e para áreas desprovidas de infra-estrutura. É uma tentativa de se alcançar
a Justiça Social e, através dela, a Paz e Segurança Pública.
Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, a
comunidade aguardava ansiosamente a regulamentação dos artigos 182 e 183,
estabelecendo normas de ordem pública e interesse social que regulamentassem o
uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar
dos cidadãos. Era a esperança de que esta mudança trouxesse consigo a Paz
Social e a garantia da Segurança Pública para todos os habitantes da cidade, como
já dito. É a densificação da função social da cidade, através de instrumentos
jurídicos e políticos que garantam a sustentabilidade da polis.
A Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, instituiu uma política nacional
urbana com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e da propriedade urbana.
Ela tem como objetivo fundamental minimizar as enormes
desigualdades sociais existente no Estado Brasileiro, pela promoção da integração
social, e densificar direitos previstos constitucionalmente, mas que ainda não saíram
do papel, como o direito de moradia. O Estatuto da Cidade regulamenta, também, a
regularização fundiária através do usucapião urbano e da concessão especial de
uso para fins de moradia previstos no art. 183 da Constituição Federal. A gestão de
O Direito Coletivo Urbano 80
uma cidade sustentável tem que ser democrática, garantida a participação popular e
do terceiro setor, durante o acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano.
Essa Lei inovou, ao instituir o estudo prévio de impacto de vizinhança
(EIV), a semelhança do estudo prévio de impacto ambiental (EPIA) preconizado na
Lei que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº. 6.938/19981), com o
objetivo de avaliar os efeitos do empreendimento na vida da população da região. O
EIV tentará evitar que uma obra prejudique a qualidade de vida de seu entorno,
considerando a opinião dos vizinhos.
Ao ser sancionada, a nova legislação se tornou uma aliada dos
ocupantes irregulares de áreas urbanas privadas. A partir de agora, grupos de
moradores poderão buscar na Justiça, em conjunto, o direito ao terreno ocupado,
em uma só ação, desde que estejam há mais de cinco anos no local e não tenham
enfrentado oposição judicial. Como uma reforma urbana, reafirmando seus objetivos,
o Estatuto da Cidade, ao regularizar a propriedade imobiliária das ocupações
clandestinas e irregulares (ilegais), favorece o restabelecimento da paz social
porque resulta em minorar o trânsito de processos de reconhecimento de usucapião
individuais, podendo ser utilizada coletivamente em áreas urbanas ocupadas por
diversos indivíduos de baixa renda que usem de moradia um espaço urbano em
estado ilegal. A regularização fundiária é vista pelos experts como uma forma de
incentivar a conciliação do ambiente e das ofertas de bens social. O habitante-
morador, uma vez assegurada a titularidade do direito de propriedade, promoverá
ações (individuais e coletivas) em tornar o local mais propício e seguro, o que irá
estabilizar diversos conflitos sociais.
Demonstrando evolução, a política nacional urbana proporcionou
efetiva ação para a regularização fundiária de assentamentos urbanos, com a edição
da Lei nº. 11.977, de 07 de julho de 2009, que trata especificamente do tema e que
será, sem dúvida, de grande utilidade para a regularização imobiliária dos
loteamentos clandestinos e irregulares, conforme mencionado nos próximos
capítulos.
A referida legislação é complementar à Constituição Federal, que
afirma o imperativo categórico de que a política urbana, a ser executada pelo
Município, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
O Direito Coletivo Urbano 81
da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes e há que se ter os princípios
gerais da atividade econômica, indicados no art. 170, sobressaindo a defesa do
meio ambiente e a proteção ao consumidor, por serem princípios de ação política,
cuja implementação é essencial ao bem-estar do homem urbano.
Assim, tem como tendência contemporânea de atender aos interesses
difusos da população urbana, a que se reconhece, sob perspectiva individual, o
direito ao bem-estar urbano compreendendo, no seu amplo espectro, a defesa do
meio ambiente e a proteção do consumidor, tudo convergindo, para maior eficácia
da sadia qualidade de vida, na expressão do art. 225, da Constituição Federal.
Para a tutela de interesses difuso e coletivo, que visem ao direito do
bem-estar urbano, a Constituição Federal de 1988 dispõe que qualquer cidadão é
parte legítima para propor ação popular com objetivo de anular ato lesivo ao
patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural (cf. CF/88, art. 5º, LXXII, e Lei nº. 4.717/65), bem como o
mandado de segurança (coletivo) é instrumento de cidadania perante ilegalidade ou
abuso de autoridade, acrescido, nas situações de lacuna ou omissão legislativa, pelo
mandado de injunção, afora a inclusão de outros direitos e garantias compatíveis
aos princípios constitucionais ou aos tratados de que o Brasil seja signatário (CF/88,
art. 5º, LXIX, LXXI, e § 2º).
É oportuno ressaltar a política nacional de desenvolvimento urbano, de
competência administrativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios (art. 23), notadamente objetivando promover programas de construção
de moradias, de melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (IX);
combater as causas de pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a
interação social dos menos favorecidos (X); estabelecer e implantar política de
educação para segurança do trânsito (XII).
Na Constituição atual encontramos variadas regras de convivência
relacionadas ao bem-estar urbano, evoluindo, desde a liberdade de consciência e de
crença, à inviolabilidade dos locais de culto e liturgias (art. 5º, VI), ou à liberdade de
locomoção e de reunião (art. 5º, XVI) e, ainda, a função social da propriedade sujeita
a desapropriação ou uso no caso de iminente perigo público (art. 5º, XXIII, XXIV,
XXV); restringiu-se ou remodelou-se a atividade econômica, a qual deve respeitar
diversos princípios (art. 170). Ela destaca, igualmente, que a ordem social deve ser
O Direito Coletivo Urbano 82
compromissada com o trabalho, o bem-estar e a justiça social, em inúmeros
dispositivos e oportunidades, tais como os arts. 194, parágrafo único, I, II e III; art.
196; art. 200 e incisos; arts. 203, 205, 206, 208, 211, 212, 213 e 214; art. 216, V, §§
1º, 4º e 5º; art. 220, § 3º, II, § 4º; e arts. 221, 225 e 227.
Estas regras constitucionais concretizam o direito ao bem-estar urbano,
que é um dos componentes indissociáveis do direito a sadia qualidade de vida,
sendo de todos (Poder Público e sociedade) o poder-dever de garantir a sua
efetivação, em tempos de máximo respeito aos direitos humanos, constituído em um
valor social, um poder atribuído tanto aos indivíduos ou, pela nova doutrina dos
interesses difusos, aos diferentes grupamentos sociais, a defesa de interesses
coletivos, notadamente o bem estar urbano.
Cumpre ressaltar o fato de que os direitos humanos, na pós-
modernidade, assumiram um perfil jurídico-positivo no nível de normas
constitucionais. O direito ao bem-estar urbano é exigência atual, com formas e
contornos ainda não definidos e proporciona, enquanto conceito de conteúdo
indeterminado, um enorme empenho e árduo trabalho exegético, destinando-lhe
compor e estruturar, para a sua concretização constitucional, um sistema aberto de
normas, valores e princípios, passíveis, portanto, de múltiplas interpretações.
2.2 O USUCAPIÃO COLETIVO
O Estatuto da Cidade, no seu art. 4°, V, onde elenca os “institutos
jurídicos e políticos” para fins de regularização fundiária dispõe sobre usucapião
coletivo.
Ele apresenta diversas formas de regularização fundiária e, em
especial, pelo assunto deste tema, a alínea “j”, que trata do “usucapião especial de
imóvel urbano”.52
Por determinação do art. 191, parágrafo único, art. 183, § 3º da
Constituição Federal não há usucapião (literal) de bens públicos, para os quais
52
Utilizado no masculino por preferência do autor.
O Direito Coletivo Urbano 83
deverão ser utilizadas outras formas de regularização que não transferem o direito
de propriedade sobre o bem.
O usucapião é um instrumento já bastante conhecido no mundo
jurídico, com origens no direito romano e finalidade de transferir a propriedade de
bem móvel ou imóvel, mediante alguns requisitos de tempo de ocupação e posse
incontestada (5 a 15 anos), com o devido processo legal e sentença apta a registro.
Nestes novos tempos, a partir da Constituição Federal de 1988, o
referido instituto foi melhor instrumentalizado, com a coletivização dos seus
princípios e fundamentos, coletivizando o próprio direito ao usucapião, previsto no
art. 10 da Lei nº. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) que disciplina:
Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Portanto, aqueles que estiverem na posse da área, de forma individual
ou em litisconsórcio, associados ou representados, podem reivindicar sua
regularização e receberão (art. 10, § 3º) “igual fração ideal de terreno a cada
possuidor independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo
hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais
diferenciadas”, com efeito, erga omnes e gratuidade de seus atos, inclusive de
registro.
Com a coletivização do direito ao usucapião, busca a legislação a
aplicação do princípio da função social da propriedade, de seu efetivo uso nas ações
para regularizar as áreas ocupadas ilegalmente por grupos de pessoas excluídas
socialmente, em sua maioria de baixa-renda.
Este novo perfil de direitos, também adotado para o usucapião, não se
pode conceber com horizontes individualistas, dos antigos preceitos consagrados no
direito civil de propriedade, tendo em vista que propõe a regularização, não apenas
para a aquisição da propriedade urbana, mas partindo de premissas diferentes, ou
seja, do todo para a unidade, do ambiente para o seu ator, com o objetivo de
O Direito Coletivo Urbano 84
otimizar a utilização da propriedade imobiliária urbana, garantindo a constante
observância de princípios urbanísticos voltados ao bem-estar do individuo em
interação com a comunidade em que vive, orientado pelos princípios constitucionais
e de direito público.
Trata-se, como vimos, de mais um importante avanço e de um
instrumento de mecanismo de regulamentação fundiária e, notadamente, de
reorganização urbanística.
Para Márcio Kammer de Lima, este usucapião especial, presente no
art. 183 da Constituição Federal de 1988, legitimamente aparece como um
instrumento de realização da função social da propriedade, diminuindo o prazo para
a conquista da propriedade e estatui sanção àquele proprietário que dignifica o
direito subjetivo a ele outorgado. Para a operacionalização deste instrumento foi
sancionada a Lei nº. 10.271/01, o Estatuto da Cidade, com o objetivo de execução
dos artigos 182 e 183 da referida Constituição. 53
Ressalte-se, também, que o art. 183 da Constituição Federal como
instrumento de concretização da função social da propriedade e ferramenta de
realização de princípios fundantes como o que discorre sobre a dignidade da pessoa
humana e aquele da missão do Estado de erradicar a pobreza e diminuir as
desigualdades sociais não pode ser visto como embaraço “à promoção desses caros
princípios informadores da disposição.” 54
Márcio Kammer de Lima pontua que o art. 10 do Estatuto da Cidade
possui requisitos reproduzidos literalmente do art. 183 da Constituição Federal,
como lapso de tempo exigido, destinação de moradia e não possuir, o favorecido,
título de outra propriedade. Porém,
[...] o legislador ordinário foi além para permitir que áreas urbanas superiores ao limite gizado para o usucapião constitucional (duzentos e cinquenta metros quadrados), onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, possam também ser usucapiadas coletivamente, o que põe logo a lume a questão de se saber se essa novel modalidade de usucapião introduzida pelo Estatuto da Cidade constitui, no plano substancial, direito novo, nova modalidade de aquisição de domínio – e então de perda de propriedade, se voltado o foco para a esfera jurídica do proprietário anterior –, ou se traduz somente nova roupagem, novo figurino
53
LIMA, M. K., 2009, p. 23. 54
Ibid., p. 25.
O Direito Coletivo Urbano 85
para o mesmo direito subjetivo que frutifica da incidência da disposição constitucional.
55
Seria esta uma nova modalidade de aquisição (ou perda) de domínio
ou uma espécie de usucapião urbano, cuja novidade está na forma de apresentação
de um direito subjetivo derivado diretamente da Constituição Federal. Para Paulo
José Villela Lomar, citado por Márcio Kammer de Lima:
O que o legislador propiciou foi que aquele possuidor suscetível de adquirir o domínio do imóvel que utiliza para moradia própria ou de sua família com base no art. 183 da CF pudesse, livremente, somar-se a outros possuidores com iguais possibilidades para viabilizar a reurbanização capaz de melhorar as condições reais de vida de todos eles naquele ambiente.
56
Assim, pode-se afirmar que a novidade está no reconhecimento
coletivo do usucapião com a instituição de modalidade diferenciada de condomínio
até a completa reurbanização da área ocupada pelas moradias quando se
concretizarão os princípios constitucionais fundamentais. O que leva a concluir que o
usucapião coletivo é somente um direcionamento do usucapião individual especial
para uma finalidade urbanística.57
Posteriormente à criação dessa forma de usucapião, o que facilitou
sobremaneira a aquisição da propriedade por grupos de indivíduos, surge a Lei nº.
11.977/09, que inovou com o usucapião coletivo administrativo, que deverá provocar
inúmeras manifestações e grandes obras doutrinárias quando de sua aplicação, e
que será sintetizado mais adiante.
Todo o contorno jurídico legal, que envolvia as regularizações, se
constituía em um complexo burocrático de documentos e serviços técnicos jurídicos
e de engenharia, muitas vezes inacessível à população economicamente carente. A
ocupação totalmente desordenada, pela total ausência do Poder Público, seja
regulamentando, coibindo ou restringindo, não justifica a retirada do direito de
propriedade destes imóveis, porém até recentemente não havia instrumentos legais
aptos a oficializar estas ocupações.
55
LIMA, M. K., 2009, p. 28, grifo do autor. 56
LOMAR, Paulo José Villela apud LIMA, M. K., op. cit., p. 31. 57
LIMA, M. K., op. cit., p. 32.
O Direito Coletivo Urbano 86
Com a nova legislação, as infrações urbanísticas foram revistas, em
nome dos princípios sociais, e tentou-se implementar ações efetivas de saneamento
básico e melhoria na qualidade de vida. Foi uma maneira de conceder o direito de
resgatar a cidadania dessa parcela de população excluída socialmente para,
finalmente, conceder-lhes o direito de ter um endereço oficial e seu titulo de
propriedade.
A figura do usucapião coletivo é um instituto criado pelo legislador
brasileiro para a regularização dos loteamentos ilegais (clandestinos e irregulares)
em área urbana, embora não seja suficiente.
O usucapião coletivo foi o primeiro passo capaz de transferir o direito
de propriedade através do registro do título (ainda que coletivo) à população sem
acesso formal ao mercado imobiliário das cidades, efetivando a função social da
propriedade, o direito ao uso do solo, à moradia, contra a especulação fundiária e,
por fim, assegurar condições sociopolíticas de cidadania urbana em busca de uma
sociedade justa e sustentável.
Entretanto, por melhor que fosse referido instituto, carecia de um
instrumento importante, ou seja, o econômico-financeiro, da responsabilidade pelos
custos da regularização, o que gerou diversas ações políticas, sendo
complementado, desde 2001, por ações dispersas e isoladas dos Governos
Estaduais e Municipais, com raros exemplos de sucesso como é o caso do atual
perfil do “Programa Cidade Legal” do Estado de São Paulo que será tratado quando
da análise dos instrumentos de regularização.
2.3 O USUCAPIÃO COLETIVO ADMINISTRATIVO
Para legitimar a posse, princípio e início da aquisição do direito de
propriedade, foi instituído o novíssimo instrumento denominado Demarcação e
Legitimação da Posse que se constitui em um conjunto de medidas preliminares
para o Usucapião Coletivo Administrativo, ou seja, a Demarcação é o ato realizado
pelo Poder público em área pública, ou particular, correspondendo ao registro da
implantação do loteamento existente de fato e a Legitimação é o ato, após o registro
O Direito Coletivo Urbano 87
do parcelamento, em que o poder público outorgará título de legitimação na posse,
isto na esfera administrativa, não judicial.
Tem-se, pois, como novo marco normativo, a Lei nº. 11977/09, que
define o Usucapião Administrativo para todos aqueles que, após 5 anos da outorga
do título de legitimação da posse, poderão requerer diretamente ao Cartório de
Registro de Imóveis que o converta em usucapião mediante preenchimentos de
alguns requisitos legais.
Cumpre ressaltar que se trata da primeira legislação nacional de
regularização fundiária e corresponde aos anseios de diversos dos princípios da
Constituição Federal de 1988, tendo por fundamento a dignidade da pessoa
humana, a função social da propriedade e o direito à moradia, com efetivo resgate
da cidadania, ao inserirem estas comunidades na propriedade formal urbana, ou
seja, no seu contexto econômico-patrimonial e social.
É a participação popular no espaço urbano, resultado de uma nova
democracia cujo projeto sócio-cultural está assentado em dois pilares: o da
regulação e o da emancipação e cada um deles é constituído por três princípios:
O pilar da regulação constitui-se pelos princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Por sua vez, o pilar da emancipação é formado por três lógicas de racionalidade: estético-expressiva da arte e da literatura, moral-prática da ética e do direito e cognitivo- instrumental da ciência e da técnica. A racionalidade estético-expressiva articula-se primeiramente com o princípio da comunidade; a racionalidade moral-prática, com o Estado; a racionalidade cognitivo-instrumental, com o mercado.
58
E afirma que a partir da década de sessenta, o capitalismo
desorganizado fez com que o princípio do mercado adquirisse magnitude sem
precedentes, provocando a transformação de energias emancipatórias em energias
regulatórias. Mas, a partir de uma das heranças da modernidade, a fragmentação,
reconstruíram-se as racionalidades locais, adequadas às necessidades locais,
conscientes da irracionalidade global, porém conscientes de que só a podem
combater localmente. É nesse contexto que emerge a questão urbana, cujos
problemas só as próprias comunidades podem realmente sentir e soluções
58
DEXHEIMER, Marcus Alexsander. Estatuto da Cidade e democracia participativa. Florianópolis: OAB/SC, 2006, p. 48.
O Direito Coletivo Urbano 88
propostas sem ouvi-las resulta muito provavelmente em ineficácia dos projetos. 59
Neste momento, pode-se fazer uma relação com a ecologia que além
da dimensão ambiental engloba também as dimensões social e mental, no que se
chama de ecosofia – uma articulação ético-política do meio ambiente, das relações
sociais e da subjetividade humana, entendendo a política com caráter
multidimensional, planetário e antropológico. 60
Porém, historicamente, não havia uma arquitetura jurídico-legislativa
apta a possibilitar, aos regularizadores, instrumentos efetivos que propiciassem a
concretização da inclusão social desses espaços urbanos no mercado imobiliário
formal, ou seja, nas cidades, por meio das novas regras de regularização fundiária
de interesse social e específico.
O referido instrumento jurídico, por ser auto-aplicável, busca reverter o
quadro de segregação sócio-econômica espacial nesse país e, se utilizado da forma
a que se propõe, confere importantes ferramentas aos operadores do direito para a
consecução dos objetivos de ordenar para melhorar a urbanização em busca do
bem estar coletivo e da pacificação social.
Para finalizar, pode-se afirmar que a legislação brasileira teve um
grande avanço com o enfrentamento das questões de direito coletivo urbano e de
usucapião para resolver muitos problemas sociais que emergem da falta de infra-
estrutura devida à desorganização e ausência de posse legal de terra urbana para
residir. Porém, fez emergir muitos casos que necessitam regularização. Para que se
possa entender a regularização de ocupações ilegais deve-se, antes, expor os
fundamentos da regularização fundiária, assunto do próximo capítulo.
2.4 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO COLETIVO URBANO
“O Direito é.”
Leciona Pontes de Miranda, ao comentar os processos de adaptação
59
DEXHEIMER, 2006, p. 49. 60
Ibid., p. 50.
O Direito Coletivo Urbano 89
social do homem, e a função social do direito na Constituição Federal de 67:
Em todos os Estado, o Direito exerce papel estabilizante, que lhe é específico. Os princípios políticos e econômicos são mais instáveis do que os jurídicos; ganham peso, transformando-se em princípios jurídicos. Mais estabilizantes do que o Direito só a Arte, a Moral e a Religião, em ordem crescente de valor de frenamento. [...]
O direito é necessário à Sociedade e ao Estado. Ao Estado, porque, sem Direito, não poderá afirmar-se. Ora, a firmação é essencial ao Estado. Quando o direito das gentes considera suficiente o dado social, para que se possa falar da existência do Estado, pressupõe a afirmação político-jurídica; portanto, Estado e Direito.
61
E arremata:
A regra jurídica é, especificamente, mais estabilizante que a regra política. Os fatos jurídicos participam de tal especificidade estabilizante, menor do que a dos fatos religiosos, morais e artísticos, porém assaz sensível para quem se põe do lado dos fatos políticos. As verdadeiras revoluções começam por investir contra os espíritos emperrados dos juristas, contra a ordem retrógrada, que eles confundem com o Direito, como se o Direito fosse outra coisa que processo de adaptação; e irrompem contra o Direito, em vez de investirem contra o direito vigente, direito que somente pode ser destruído com outro direito, que o substitua. Processo adaptativo, estabilizante, fixador, o Direito será sempre o mesmo, como é sempre o mesmo o oxigênio que há na fruta, no ar, na água; ele é o mesmo, e pesa o mesmo; os componentes é que se diferenciam. O direito do estado será mais rígido, mais resistente, se os outros elementos forem mais rígidos e mais resistentes; esses é que variam. O remédio contra o direito que parece demasiado opressor, parado, está em outro direito menos opressivo, e mais novo. De qualquer modo, outro direito.
62
Conforme buscamos constatar, com valiosos subsídios da doutrina de
Frederico Antonio Veigas de Lima, onde, dentre outras, pondera sobre a utilização
da propriedade social, expondo que:
Partindo de uma visão principiológica e filosófica – porém bem ajustada ao Direito -, Rawls indica que os princípios de justiça são reconhecidos por trás de um véu de ignorância (veil of ignorance), de forma que nenhum individuo será favorecido pelas escolhas de princípios que não possuam causas naturais e pelas contingências sociais, fazendo com que a justiça social
61
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 163. Tomo I.
62 Ibid., loc. cit.
O Direito Coletivo Urbano 90
deva, em primeiro lugar, ser atingida mediante uma felicidade total, a partir do princípio da diferença.
63
Na interpretação de seus ensinamentos, temos que a aplicação do
direito de propriedade, deve resgatar e abranger que os princípios sociais e deve
compreender que o social precede, necessariamente, o homem, por que não foi o
homem que fez a sociedade. O conjunto, o social, a comunidade e a comunicação
que fizeram o homem, pressupondo que o conjunto tenha de encher-se de
indivíduos, e o individuo sem conjunto não existiria. Não existiria a comunidade, a
sociedade, sequer o grupo, onde conviver. Não há dúvida, somos animais sociais.
Salvo raras excentricidades, não se pode conceber homem sem comunidade
interagindo entre si.
O homem apenas apropriou-se de bens, patrimônios, pessoas e se
elegeu governante, com ajuda do grupo ou de parte dele e, diante de cada realidade
social, criou ordens jurídicas, resultante de muitas regras feitas de pensamentos,
que criam regras abstratas formulando hipóteses para os fatos que ela prevê.
Nas regras de adaptação dos membros da sociedade, entre si, por
meio de regras jurídicas que permitam co-existirem sem lutas insolúveis, o direito
busca estabelecer o processo de passagem de um direito para outro, em evolução e
adaptação, e continuar a existir quando as instituições, suas criadoras, não mais
existirem.
Assim, o direito de propriedade adaptou-se, evoluiu, e a propriedade no
plano geral e imobiliário, em particular, merece ser repensada.
A crise econômica, neste início de século XXI, que apavorou nações
inteiras diante das antigas concepções do instituto da propriedade e de sua
distribuição, enquanto riqueza é indispensável a sua adaptação para corresponder
aos atuais contornos do direito e do próprio instituto para a conceituação do seu, do
meu e do deles.
Ressurge o tema da necessidade de adaptação a estes novos tempos,
das metrópoles e da supremacia dos direitos humanos e sociais, ou seja, do direito
de bem-estar, do bem comum, coletivo. Ressurge diante da necessidade de
63
LIMA, Francisco Antonio Veigas de. A propriedade imobiliária. Brasília: Instituto Brasil de Direito
Civil; Universidade de Brasília, 2009, p. 6.
O Direito Coletivo Urbano 91
regulamentação das relações inerentes à propriedade, abandonando os velhos
paradigmas da autonomia, do absolutismo e da liberdade contratual.
Em sendo uma instituição política e social, valores sociais e humanos,
além do econômico, foram agregados para constituir a propriedade em uma norma
de obrigação social, em contraposição a inspiração meramente econômica
individual.
Nas últimas décadas, o conceito de propriedade sofreu profundas
alterações, o que nos faz refletir acerca de suas mutações e transformações para
poder definir o que vem a ser a propriedade. Entende-se que se trata de novo
contorno do antigo instituto, convertendo-o em função e não mais somente em
direito individual, mas um direito de todos, sem retirar a sua essência de propriedade
individual destinada ao proveito da sociedade.
Com novos contornos, a propriedade deve se fundamentar na
Constituição Federal, em seus princípios fundamentais, notadamente na
compreensão conjunta dos incisos XXII e XXIII do art. 5º e do art. 183, sem
descuidarmos dos parágrafos do art. 1228 do Código Civil.
Esta perspectiva civil-constitucional destina-se a firmar-se mais como
finalidade de atender às necessidades da coletividade, exigindo do proprietário
respeito a uma série de restrições e limites ao seu uso, convertendo-se em função
ou poder restringido.
A atual concepção do direito corresponde às novas noções de direito
civil e constitucional, em que se busca a solidariedade sobre o individualismo
acentuado, que pelos seus atuais princípios e cláusulas gerais nos remete à busca
do bem estar coletivo.
No contexto de unitariedade sistêmica, com estreita vinculação às
fontes e aos princípios, não mais pode se conceber a propriedade como o poder de
fato que alguém exerce sobre alguma coisa e deve ser respeitado pelos terceiros, ou
seja, mais ter e menos ser.
Imutável por muitos anos, a nova visão deve primar por uma
concepção da propriedade, notadamente a imobiliária urbana, partindo das relações
pessoais que devem atuar em prol da sociedade, inerentes ao ser em conjugação
com o bem, e qual a função do mesmo bem na coletividade.
O Direito Coletivo Urbano 92
Este raciocínio lógico nos conduz a uma evolução do pensamento para
conceber a propriedade atual como uma relação de pessoas vinculadas a um
determinado bem e não mais de relações entre sujeito e coisa, mediante a atuação
do interesse público sobre o interesse privado, do coletivo antes do individual.
A pluralidade de interesses, que compõe nosso ordenamento jurídico,
desbancou o caráter absoluto e deu novo perímetro legal à propriedade, dotando-a
de plasticidade, da capacidade de se amoldar a novas concepções do mesmo direito
e de se adaptar às situações reais, em busca de seus objetivos sociais, com o
mínimo de garantias, necessárias a sua manutenção e preservação, enquanto
propriedade.
A propriedade atual também deve ser vista como tridimensional, ou
como um “cubo”, não apenas de direito ao solo, mas que irradia seus efeitos em
todas as direções e necessita de regulação em todos os sentidos e de forma
permanente, sem sucumbir à atuação política, separando a noção de função social
da noção de cunho ideológico, possibilitando a sua perpetuação no tempo e sua
manutenção diante das intempéries políticas, periódicas e transitórias.
Isto se consegue firmando, no seio da sociedade, fortes laços e
conceitos de justiça social e solidariedade, do uso racional e da utilização da
propriedade, dos quais a coletividade não estará disposta a abrir mão, por
constituírem o seu próprio bem-estar social, cujos efeitos emancipam e libertam não
apenas o individuo (titular do direito), mas os demais integrantes do grupo social
(titulares do mesmo direito).
Vincula a todos, proprietários e não proprietários, implicando um
compromisso de persecução dos objetivos e interesses sociais, nas
responsabilidades que caracterizam o exercício dos interesses de seus titulares e
como atores sociais mais justos e solidários.
A propriedade deve destinar-se aos fins sociais, entretanto, deve ser
revestida de plena liberdade ao seu titular, sem descaracterizá-la, como garantia de
sua manutenção não apenas como função social, mas também como função
econômica. Este equilíbrio é a principal dificuldade a enfrentar na aplicação de suas
prerrogativas.
O Direito Coletivo Urbano 93
Mais que assegurar a legitimidade dos direitos coletivos, através de
uma legislação suficiente para estruturar o sistema das relações sociais e do
mercado, deve-se traçar claros parâmetros definidos que permitam a vida em
comunidade, de forma coletiva e harmônica, plena de liberdades e direitos.
É tempo de se reconhecer que todos os proprietários possuem deveres
diante dos não proprietários e estes se vinculam ao uso da propriedade, no sentido
de que todo o excesso deve ser revertido em prol da sociedade, para o seu
desenvolvimento em iguais oportunidades. Sendo a propriedade vista, atualmente,
como norma de obrigação social, deve restabelecer valores (religiosos) no sentido
de se constituir em uma complexa relação entre as pessoas (proprietários e não-
proprietários) para afastar sua concepção apenas como valor de mercado, para ser
utilizada de maneira ampla, porém sem descuidar de seu caráter econômico,
estritamente condicionado ao fator social e moral.
De acordo com o ordenamento vigente, a propriedade deve
proporcionar o atendimento a diversos fatores, além do social, ou seja, o equilíbrio
ambiental, a preservação patrimonial, histórica e cultural.
Este mesmo sistema deve ser visto na atualidade como um sistema
coordenado, unitário e complexo, diferente dos planos superior e inferior, antes
estabelecidos, para se firmar em um conjunto de integração completa a partir da
Constituição Federal, como um direito fundamental e uma liberdade (como função
econômica da garantia da propriedade) até as normas locais de direito urbanístico,
sensíveis às mudanças sociais.
Embora as noções de propriedade privada sofram forte pressão para a
manutenção de seus antigos conceitos, pois se constituem em modo de organização
social, frente às restrições de uso pela legislação ambiental e urbanística, não se
pode arrefecer, porque aos proprietários é garantida (constitucionalmente) a
compensação financeira a suas perdas patrimoniais.
Ainda que se afirme, mesmo em tempos atuais, os conceitos de usar,
gozar, dispor e reivindicar da mesma maneira secular, devemos tentar entender a
propriedade como um complexo de tensões de direitos e deveres, contrapostos, em
que se busca o equilíbrio entre os proprietários e os não proprietários na utilização
da mesma no contexto social, no ambiente urbano, nas cidades.
O Direito Coletivo Urbano 94
Assim, o caráter absoluto da propriedade deve ser afastado. O
proprietário tem direito de propriedade não direito à propriedade e esta deve estar
revestida da função social, respeitados estes direitos e deveres por toda a
coletividade.
Na propriedade devem coexistir as mais variadas formas, compostas
de um sistema de vários direitos destinados ao uso pelo seu titular, resultante de
uma visão plural e complexa com funções efetivas e justas.
A proteção da propriedade não se vincula mais ao individualismo, mas
à maximização dos benefícios do direito de propriedade para toda a coletividade, em
uma sociedade livre e democrática, numa concepção moderna de direito a liberdade
de ações e limites da própria liberdade, harmonicamente protegendo ambos os
institutos.
Embora duramente criticado, o novo conjunto de legislação está apto a
iniciar, ou desencadear, esta troca de influências entre o individual e o coletivo, em
matéria de propriedade imobiliária, com a possibilidade de regularização de
ocupações (loteamentos) ilegais (clandestinos e irregulares). É tempo de
desprovermos de alguns de nossos direitos em favor uns dos outros, em favor da
coletividade, para assegurar nossa própria qualidade de vida.
Temos, pois, que as aspirações de compreender as novas formas de
direitos e/ou de modificações jurídico-reais, antes não estabelecidas, com uma
flexibilização sistêmica crescente a fim de viabilizar as necessidades do direito de
propriedade na pós-modernidade em busca do equilíbrio dos princípios objetivando
a justiça social, conforme buscamos na doutrina de Frederico.
Cumpre, com ponderação, acompanharmos a sua efetiva aplicação e
concretização de seus conceitos.
A regularização fundiária 95
3 A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
Em pleno século XXI, a desarticulação entre órgãos governamentais,
legislação conflitante, sociedade desorganizada e cartórios de registros de imóveis
fazem com que o poder público ainda esteja muito distante de possuir um mapa das
propriedades públicas e privadas que compõem a planta onde repousa nosso País.
A invasão de terras, urbanas e rurais, em áreas consideradas impróprias, ora
clandestinas, ora fundadas em falsos títulos de propriedade popularmente conhecida
como grilagem, ora incentivada por movimentos sociais, é apenas um dos aspectos
da confusão sobre a propriedade de terras. A regularização fundiária, portanto, se
impõe como questão primordial de desenvolvimento humano, no amplo contexto
sócio-ambiental constitucional, com finalidade de promover a integração social e o
resgate da dignidade humana e da cidadania, em qualquer parte do País.
A regularização fundiária de área urbana, através da consolidação dos
princípios de direito coletivo urbano, objetiva o fortalecimento da dignidade da
pessoa humana por meio da melhoria da qualidade de vida, do direito à moradia e a
habitação saudáveis, do direito de propriedade e do resgate da cidadania, fundados
nos princípios constitucionais e na função social do direito.
Mais que regularização fundiária, esta terá que ser sustentável para
atingir plenamente os objetivos de concretização dos princípios da dignidade e de
cidadania, notadamente pela inclusão social dos indivíduos e dos grupos.
As irregularidades fundiárias mais comuns nas cidades são as
ocupações, loteamentos clandestinos ou irregulares e cortiços.
As áreas mais atingidas são as Áreas de Proteção Permanente (APPs),
que deveriam sofrer severa fiscalização, mas que ficam totalmente abandonadas
pela ausência do Estado (e da própria sociedade), originando ocupações irregulares
nas áreas de mananciais e às margens de rios e canais e, ainda, ocupações de
serras, restingas, dunas e mangues, tendo em vista que a especulação econômica
nestas áreas é limitada.
A regularização fundiária 96
A ocupação irregular costuma acontecer, ainda, em áreas de risco,
como perto de redes de alta tensão, faixas do domínio de rodovias, gasodutos e
troncos de distribuição de água ou coleta de esgotos. Tudo isto ocorre devido à
baixa oferta de lotes para pobres e o abandono destas áreas pelos respectivos
proprietários e responsáveis (Poder Público, concessionárias, empresas etc.).
Os programas de regularização fundiária em área urbana englobam os
programas de urbanização em áreas informais e a legalização fundiária das áreas e
lotes ocupados informalmente. Os programas devem ter como objetivo não apenas o
reconhecimento da segurança individual da posse para os ocupantes, mas
principalmente o objetivo da integração sócio-espacial dos assentamentos informais.
Entretanto, a busca por soluções para a regularização, não pode
sobrepor-se a princípios também já consagrados, notadamente o da moradia digna,
e do meio ambiente saudável, inclusive urbano, por ultrapassar os limites
constitucionais de proteção social já consagrados em nosso ordenamento jurídico.
Com relação ao meio ambiente saudável, os problemas trazidos pela
crise ambiental da atualidade têm reflexo nas cidades que sofrem e reproduzem tais
problemas integrando este panorama ambiental mundial. Assim o aperfeiçoamento
do Estado Social leva à construção do Estado Democrático-participativo e que
segundo Canotilho, citado por Dexheimer, pode ser traduzido como Estado de
Direito Democrático-Ambiental. 64
Este último está associado ao conceito de Estado Constitucional
Ecológico fundamentado em dois pressupostos:
(1) o Estado constitucional, além de ser e dever ser um Estado de Direito democrático e social, deve ser também um Estado regido por princípios ecológicos; (2) o Estado ecológico aponta para formas novas de participação política sugestivamente condensadas na expressão democra-cia sustentada.
65
Assim, antes de considerarmos a regularização técnica e formal,
devemos repensar o contexto em que se inserem para evitar abusos e soluções com
conseqüências ainda mais devastadoras, sendo vedada a regularização de áreas
64
CANOTILHO, 1995, p. 81 apud DEXHEIMER, 2006, p. 68. 65
DEXHEIMER, op. cit., p. 69.
A regularização fundiária 97
reconhecidamente impróprias para a ocupação e habitação humana, com os
mesmos fundamentos de sociabilização da propriedade e a proteção do bem-estar
social e do meio ambiente urbano.
Conforme afirmado no inicio deste trabalho, existem situações
realmente irreversíveis, como as favelas paulistanas e cariocas, cuja solução será a
regularização no estado em que se encontram, inibindo a sua expansão e formação
de novos núcleos de ocupação. Em outras, entretanto, sem as mínimas condições
de ocupação, com graves riscos ao próprio ocupante e de toda a coletividade, deve-
se buscar a desocupação e recuperação da área, dentro das possibilidades do caso
concreto.
Podemos considerar, portanto, como infra-estrutura mínima exigível
para a autorização de regularização fundiária a existência de:
a. malha viária com canalização de águas pluviais;
b. rede de abastecimento de água;
c. rede de esgoto;
d. distribuição de energia elétrica e iluminação pública;
e. recolhimento de resíduos sólidos urbanos;
f. tratamento de resíduos sólidos urbanos.
Identificadas as áreas irregulares, deve ser feito um cruzamento de
cadastro da Prefeitura (IPTU) e das concessionárias de serviço público (água e
eletricidade), com informações do censo do IBGE, do cadastro de aprovação de
construções (alvarás e habite-se) e dos domicílios recenseados, para apurar as
características do empreendimento e executar o mapeamento das áreas irregulares,
através da elaboração de plantas cadastrais, para a construção de cadastros
municipais e definição da extensão de cada situação de irregularidade e quantidade
de famílias envolvidas.
As ações de urbanização sempre devem estar harmonizadas com as
ações de regularização fundiária. Os instrumentos de parceria permitidos em lei e a
interlocução com a comunidade ocupante das áreas irregulares são fundamentais.
A regularização fundiária 98
A regularização jurídica é indispensável e tem como etapas o
levantamento da situação fundiária do terreno a ser regularizado e o levantamento
das famílias que moram no local a ser regularizado.
Junto ao órgão ambiental competente se obtém a autorização para
intervenção ou supressão em APP, desde que o Município se proponha a:
a. incluir no plano Diretor as regras para aplicação dos instrumentos de
regularização fundiária;
b. promover assessoria jurídica e técnica para levantar a situação
jurídica, física e urbanística das áreas a serem regularizadas;
c. criar um programa de regularização com a participação da
comunidade em todas as etapas;
d. criar um fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano;
e. estabelecer um conselho de habitação e desenvolvimento urbano;
f. desenvolver trabalhos sociais com a comunidade, como um
diagnóstico coletivo dos problemas de habitação;
g. elaborar e executar planos de urbanização e de regularização
fundiária;
h. garantir que, depois de aprovado o plano de urbanização, não seja
permitido o remembramento de lotes, exceto para implementação de
equipamentos comunitários públicos;
i. reconhecer o direito e outorgar o titulo de concessão de direito real
de uso ou concessão especial para fins de moradia.
Estas regras se aplicam aos locais onde o município pode efetuar a
regularização fundiária, ou seja: áreas públicas municipais; áreas públicas de
ocupação consolidada para fins de moradia, como favelas; áreas desapropriadas
para desenvolvimento de projetos habitacionais; áreas particulares onde seja
possível aplicar o usucapião; habitações coletivas de aluguel, como cortiços.
Na hipótese de vegetação em APP, o Poder Público poderá autorizar,
em qualquer ecossistema, a intervenção ou supressão de vegetação, eventual ou de
baixo impacto ambiental. Entretanto, existe sempre um entrave maior e efetivo que
A regularização fundiária 99
inibe ações concretas de regularização, por se constituir crime a derrubada de
árvores e outras formas de vegetação em APP, que configuram ilícito penal previsto
no art. 38 da Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, Lei de Crimes Ambientais,
bem como constituiu crime a derrubada de árvores nativas em APP sem autorização
do órgão competente, conforme previsto no art. 39 da Lei de Crimes Ambientais.
Outro não menor obstáculo quanto à regularização fundiária, são sem
dúvida a Lei nº. 6.766/79 e a Lei nº. 6.015/73 diplomas legais que tratam dos
registros públicos dos imóveis. Os loteamentos, para serem válidos e regulares,
necessitam registro em Cartório de Registro de Imóveis, que deve ser requerido até
180 (cento e oitenta) dias após a aprovação do projeto pela Prefeitura Municipal (Lei
nº. 6.766/79, art. 18). O embasamento legal do registro imobiliário está contido no
art. 167, da Lei nº. 6.015, que possui a seguinte redação:
Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. I – o registro: [...] 19) dos loteamentos urbanos e rurais [...] II – a averbação: [...] 4) da mudança de denominação e de numeração dos prédios, da edificação, da reconstrução, da demolição, do desmembramento e do loteamento de imóveis [...].
Complementa o art. 169, declarando que “todos os atos enumerados
no art. 167 são obrigatórios”.
Dos dispositivos transcritos acima, depreende-se uma inconsistência: a
Lei dos Registros Públicos (Lei nº. 6.015/73) não faz constar do rol dos registros o
desmembramento, enquanto a Lei de Parcelamento do Solo (Lei nº. 6.766/79) o
exige. Essa contradição legal dá margem para a realização de loteamentos
clandestinos sob a forma de desmembramentos, caso a fiscalização do Município
não seja atuante, como na maioria das vezes não o é.
Ainda, na Lei nº. 6.015/73 se houver alguma inconsistência, falta de
documentos ou qualquer hipótese que não preencha os requisitos indispensáveis ao
registro, poderá o oficial suscitar dúvida ao juízo da comarca respectiva, conforme
prevê o art. 198, da Lei de Registros Públicos:
A regularização fundiária 100
Art. 198 - Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimi-la, obedecendo-se ao seguinte: I - no Protocolo, anotará o oficial, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida; Il - após certificar, no título, a prenotação e a suscitação da dúvida, rubricará o oficial todas as suas folhas; III - em seguida, o oficial dará ciência dos termos da dúvida ao apresentante, fornecendo-lhe cópia da suscitação e notificando-o para impugná-la, perante o juízo competente, no prazo de 15 (quinze) dias; IV - certificado o cumprimento do disposto no item anterior, remeter-se-ão ao juízo competente, mediante carga, as razões da dúvida, acompanhadas do título.
O procedimento de suscitação de dúvida poderá ser impugnado pela
parte, sendo, após apreciado por Juiz de Direito que prolatará sentença, ouvido o
Ministério Público. Da sentença caberá apelação (Lei nº. 6.015/73, art. 202).
A legislação tenta, de forma bastante rígida, coibir irregularidades e/ou
implantações de empreendimentos em desacordo com as suas diretrizes, entretanto
não existiam normas legais para aqueles casos que não se enquadram em seus
requisitos. Com o rompimento de barreiras jurídicas tradicionais, sob novo prisma e
paradigma de concepção constituída de novos valores, busca-se como objetivos:
garantir a função social da cidade e da propriedade imobiliária
urbana;
diminuir a exclusão territorial, para ampliar o acesso aos bens e
serviços da cidade;
promover o reconhecimento dos direitos sociais e constitucionais de
moradia e da qualidade de vida dos cidadãos;
promover o reconhecimento dos novos direitos, como o usucapião
coletivo urbano e a concessão de uso especial para fins de moradia.
Busca-se, assim, uma efetiva intervenção pública para legalizar a
posse do imóvel de interesse social, com implicações diretas sobre a urbanização da
área e a inclusão social da população, garantindo à população beneficiada o pleno
exercício de seus direitos; como também dar aos moradores das áreas atendidas o
reconhecimento legal da posse da área em que moram e os direitos decorrentes da
condição de cidadão e morador formal da cidade. Ao mesmo tempo, procura-se
A regularização fundiária 101
possibilitar a melhoria gradativa das habitações e das condições de moradia por
parte do poder público, ações que começam a produzir resultados em algumas
localidades do País.
3.1 OS INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
3.1.1 O Direito Coletivo como instrumento de regularização fundiária
Por influência de uma concepção basicamente individualista atinente à
proteção dos interesses privados, os direitos de tradição romano-germânica, incluído
nesse conjunto o direito brasileiro, permaneceram, por razoável período de tempo,
consideravelmente alheios aos mecanismos coletivos de tutela jurisdicional.
Porém, atualmente, constitui-se um novo estágio na evolução dos
direitos fundamentais que para Paulo Bonavides
[...] tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.
66
Estes novos direitos não existem em detrimento dos direitos anteriores,
mas redefinem o conceito dos direitos estabelecidos agindo em sua forma, em sua
instrumentalidade e em seu conteúdo sem extingui-los. Então, os direitos coletivos e
difusos não extinguem a propriedade, agem impedindo que seja um instrumento
jurídico que se oponha a qualquer direito. 67
Então, a conjugação de direito de propriedade, necessidades sociais e
proteção do meio ambiente gera o que se denomina função sócio-ambiental da
propriedade. A função social da propriedade abandona a concepção do direito
66
BONAVIDES, Paulo. Curso de directo Constitucional.7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 523 , 67
DEXHEIMER, op. cit., p. 99.
A regularização fundiária 102
absoluto de propriedade, um direito individual, em que o Estado intervém somente
para garantir a mesma ao proprietário, emerge dela um direito de propriedade
condicionado ao cumprimento de exigências vinculadas ao bem-estar social e ao
equilíbrio ambiental. 68
Como defende Peña, citado por Dexheimer:
A propriedade privada é urna instituição que está intimamente vinculada com o conceito de sujeito moderno e a representação da liberdade como ilimitada, característica também da modernidade. Aquele que tem propriedade pode gozar e usar sem limites, sem mais limites que a vontade do proprietário. As liberdades dos outros e os recursos naturais vêem-se amenizados por uma instituição que faz de cada proprietário um soberano e um déspota. É necessário, pois, limitar esta instituição até a linha em que se põe em perigo as liberdades dos outros ou as condições ecológicas de reprodução da vida.
69
Tais modificações vêm acontecendo no Brasil a partir de meados da
década de 1980, em especial com a edição da Lei nº. 7.347/85 e, posteriormente,
com a promulgação da Constituição de 1988. Após a nova Constituição, uma grande
variedade de leis subsequentes incidiu sobre esse mesmo tema, criando no país um
sistema legal detalhado de proteção de interesses coletivos e difusos. Entre essas
leis, merece especial destaque a Lei nº. 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor) que complementou e aprimorou consideravelmente a disciplina da Lei
nº. 7.347/85, delimitando certos conceitos e ajustando a regulação de temas como
competência, coisa julgada e outros, além de ampliar seu âmbito de incidência, que
passou a englobar “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”.
Essa reforma legislativa representou grande avanço no sentido de
conferir tratamento especial à tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais
homogêneos, representando revolucionária ruptura com o individualismo no
processo civil, com potencial ganho na racionalização do uso da estrutura judiciária,
tendo em vista a extensão dos limites da coisa julgada que traz o sistema em
questão.
A utilização destes instrumentos tem importante relação com o
desenvolvimento de atividades econômicas, pois afeta diferentes campos desde as
68
DEXHEIMER, 2006, p. 100. 69
PEÑA, Francisco Garrido, 1998, p. 219 apud DEXHEIMER, op. cit., p. 101.
A regularização fundiária 103
relações de consumo até as discussões sobre impactos ambientais que envolvem
projetos de infra-estrutura, entre outros.
A discussão atual, em âmbito nacional, sobre a instituição de
mecanismos para possibilitar projetos de geração de energia, construção e
ampliação de portos etc., especialmente por meio das parcerias público-privadas,
exige uma avaliação aprofundada dos instrumentos de proteção de interesses
coletivos para permitir a racionalização de seu procedimento, a celeridade de suas
conclusões e a garantia de marcos legais para o desenvolvimento de atividades
econômicas permitidas.
O subsistema processual das ações coletivas, atualmente reconhecido
como Sistema Único Coletivo, tem mais de duas décadas de existência servindo de
instrumento para a intensa discussão de políticas públicas de diversas naturezas,
incluindo políticas de regulação de serviços públicos como telefonia, gás e petróleo,
energia elétrica e outras, e também políticas de reforma administrativa em sentido
mais amplo. Tal subsistema serviu, ainda, para consolidar e estruturar o regime
jurídico de proteção e defesa do consumidor, afetando mercados os mais diversos
como os de seguros (com destaque para os seguros de saúde), fornecimento de
bens de consumo e outros. Finalmente, tais ações coletivas consistiram, nesse
mesmo período, em importante instrumento de regulação ambiental e proteção dos
recursos correspondentes.
Entretanto, mesmo diante deste contexto, a importância e profundidade
desses fenômenos não chegaram a motivar um número compatível de tutelas
coletivas relacionadas à garantia de qualidade de vida de grupos dentro do contexto
do meio ambiente urbano, relacionados diretamente ao próprio direito coletivo
urbano, direito de moradia e reconhecimento da propriedade para determinados
grupos de indivíduos, visando a sua inserção social e o resgate de sua cidadania.
Diante das escassas soluções perante a vastidão dos problemas relacionados e
existentes sobre o tema, as informações relevantes são necessárias à compreensão
dos resultados positivos e negativos alcançados até o momento, o que, a seu turno,
consiste em subsídio indispensável à concepção de reformas legislativas e à
implementação de políticas públicas de defesa e aperfeiçoamento do sistema de
tutelas coletivas no país, direcionadas para a regularização fundiária.
A regularização fundiária 104
A importância do tema extrapola os limites do território nacional, por ser
um problema humano e não apenas nacional, embora mais visível nos países
subdesenvolvidos, naqueles em desenvolvimento e nos chamados emergentes.
3.1.2 A Lei nº. 11.977/2009: instrumentos legais de regularização fundiária
A partir da Lei 11.977/09, a pesquisa e o desenvolvimento do trabalho
deixaram de ser majoritariamente doutrinária para tornar-se interpretativa da nova
legislação, em razão principalmente da escassez de literatura específica sobre o
assunto, direcionando os esforços em interpretar os próprios manuais dos órgãos
públicos envolvidos e o próprio texto legal.
Neste contexto, foi editada a Lei nº. 11.977/09, a qual servirá de
demonstração da possibilidade histórica e jurídica de regularização fundiária,
notadamente se houver disposição e contrapartida dos Municípios, os principais
interessados em resolver seus problemas fundiários.
Avançadas discussões e importantes reflexões, que em muito poderão
contribuir para o estudo do assunto, hoje são foco de atenção de toda a sociedade e
ocupam uma das primeiras posições na pauta de ações dos atuais Governos.
Porém, deve-se ponderar que o principal obstáculo às ações reside no
conflito da regularização fundiária com a lei dos registros públicos, cujas exigências
são, neste primeiro momento, intransponíveis, salvo criativas e mirabolantes
soluções para transpor tais obstáculos legais, mediante fixação de claras e eficientes
regras federais.
Assim, destaca-se a enorme diversidade de necessidades
habitacionais e nos modos de prover a moradia e habitação popular, em área urbana
consolidada e a transferência dos ocupantes de áreas ambientalmente sensíveis.
Atualmente, um dos caminhos que se descortina, respeitando a
Constituição por ser competência privativa da União (art. 21, inciso XX), é o Estatuto
da Cidade que estabelece as diretrizes gerais da política urbana e exige a sua
observância como a garantia do direito a cidades sustentáveis, através da gestão
A regularização fundiária 105
democrática, participativa, desestimulando a aquisição de terrenos urbanos voltados
ao lucro e à especulação imobiliária, que forçava grande parcela da população
desprovida de recursos financeiros a buscar melhores condições na periferia das
cidades e em áreas desprovidas de infra-estrutura, geralmente parceladas
clandestinamente de forma ilegal.
O conflito latente entre espaço urbano e norma jurídica cria um forte
vínculo entre o Direito e o Urbanismo. Urbanismo que no Brasil apresenta um
processo de concentração urbana iniciado concomitantemente com o processo de
fim da escravidão, o que gerou o fenômeno de moradia precária, que era associada
às idéias de imoralidade e insanidade. Este fato fez com que o Poder Público fizesse
intervenção nestes espaços com finalidade higienista, o que pode ser considerado o
primórdio do Direito Urbanístico Brasileiro. 70
Para Marcus Alexsander Dexheimer,
No caso específico da construção do espaço urbano, também há um conjunto normativo avançado e relevante, a serviço da formulação e execução de políticas urbanas sérias e ousadas, e extremamente importante para a ampliação dos espaços democráticos pátrios. É o Estatuto da Cidade, a Lei n° 10.257, de 2001.
O Estatuto chega para estabelecer diretrizes gerais de política urbana e fixar linhas bem definidas para a consolidação do Direito Urbanístico que está sendo desenhado no Brasil, por vezes tido como ramo autônomo do Direito, por vezes como especialização técnico-funcional do Direito Administrativo. Como se considerava faltar autonomia ao Direito Urbanístico em razão da ausência de um corpo normativo próprio, o Estatuto da Cidade representa também o amadurecimento e a solidificação da discutida autonomia.
71
Buscando efetivar a função social da propriedade imobiliária urbana
(habitação), ao regulamentar os artigos 182 e 183, da CF/88, a legislação trouxe
instrumentos jurídicos e políticos para garantir a sustentabilidade da cidade, com
inovações como o estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) no qual se busca
traçar os efeitos do empreendimento na vida da população em geral, e não apenas
do próprio empreendimento e da região. O EIV embora restrito a obra e as
adjacências, busca preservar a qualidade de vida de seu entorno, em função do
conjunto que é a cidade, coletivamente falando.
70
DEXHEIMER, 2006, p. 132-133 et. seq. 71
Ibid., p. 135-136.
A regularização fundiária 106
Frise-se que a gestão de uma cidade sustentável tem que ser
democrática, deve-se garantir a participação cidadã na consecução de seus
objetivos.
No Brasil existe uma demanda de mais de 7 milhões de moradia e,
para minimizar os danos foram estabelecidos instrumentos legais como o Estatuto
da Cidade (Lei 10.257/2001) que garante a função social da propriedade e das
cidades, a MP nº. 2.220/2001 que criou a Concessão de Uso Especial para fins de
moradia, e a Lei nº. 11.977/2009, que reconhece o direito à moradia e define
diretrizes de regularização fundiária de assentamentos urbanos, por meio de um
conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à
regularização de assentamentos irregulares e a titulação de seus ocupantes.
A Lei nº. 11.977/09 também determina a realização da demarcação
urbanística, na qual o Poder Público responsável pode lavrar auto de demarcação
urbanística, realizando planta e memorial descritivo da área, cadastro dos
ocupantes, registro da demarcação urbanística na matrícula da área, elaboração do
projeto de regularização fundiária e, finalmente, o registro do parcelamento do solo.
Além disto, torna possível a legitimação de posse, expedida pelo Poder Público aos
ocupantes cadastrados, sendo que após ser devidamente registrada constitui direito
em favor do detentor da posse direta para fins de moradia.
Esta legitimação de posse constitui prova antecipada para usucapião,
tendo em vista que depois de 5 anos do registro, formaliza a conversão do direito
real de posse em propriedade. A referida lei ousou mais, pois instituiu também o
custeio de moradia à população de baixa renda. Com estes instrumentos, busca-se
viabilizar a titulação da propriedade imobiliária à população economicamente
carente, pois o alto custo da terra urbana é um dos grandes limitadores da habitação
regular.
Com relação à regularização fundiária, o Art. 46 da Lei nº. 11.977/2009,
conceitua:
Regularização Fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções
A regularização fundiária 107
sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Sua abrangência aplica-se a assentamentos irregulares, assim
consideradas as ocupações inseridas em parcelamentos informais ou irregulares,
localizadas em áreas urbanas públicas ou privadas, predominantemente utilizadas
para fins de moradia.
Podendo ser de interesse específico ou de interesse social a
regularização de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por
população de baixa renda, nos casos:
a) em que tenham sido preenchidos os requisitos para usucapião ou
concessão de uso especial para fins de moradia;
b) de imóveis situados em ZEIS; ou
c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de
regularização fundiária de interesse social.
Para ser absolvida pela nova legislação, a regularização fundiária de
interesse social em área a regularizar deve apresentar predomínio de ocupações
pertencentes a pessoas de baixa renda, para lotes de extensão superior a 250 m2,
salvo se destinados ao usucapião coletivo nos termos do art. 10 do Estatuto da
Cidade.
O usucapião coletivo é o instrumento previsto pelo Estatuto da Cidade
que permite a delimitação e destinação de determinadas áreas do Município para
abrigar moradia popular, com o objetivo de implantar habitação de interesse social,
com normas especiais de uso, ocupação, parcelamento do solo e edificação para
áreas já ocupadas por assentamentos informais.
Os princípios básicos da regularização fundiária configuram-se pela:
I – ampliação do acesso a terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística, social e ambiental; II – articulação com as políticas setoriais de habitação, de meio ambiente, de saneamento básico e de mobilidade urbana, nos diferentes níveis de
A regularização fundiária 108
governo e com as iniciativas públicas e privadas, voltadas à integração social e à geração de emprego e renda; III – participação dos interessados em todas as etapas do processo de regularização; IV – estímulo à resolução extrajudicial de conflitos; e V – concessão do título preferencialmente para a mulher.
A Lei nº. 11.977/2009 reforça a autonomia dos Municípios para que
legisle sobre o procedimento de regularização fundiária em seu território,
observadas suas próprias disposições e o Estatuto da Cidade, legitimando também
a União; os Estados e o Distrito Federal; os Municípios; os beneficiários, individual
ou coletivamente; cooperativas habitacionais; associações de moradores,
fundações, organizações sociais e OSCIPs, outras associações civis com finalidade
ligada a desenvolvimento urbano ou regularização fundiária.
Por seu turno, o Projeto de Regularização Fundiária deverá definir, no
mínimo, os seguintes elementos:
I - as áreas ou lotes a serem regularizados e, se houver necessidade,
as edificações a relocar;
II - as vias de circulação existentes ou projetadas e, se possível, as
outras áreas destinadas a uso público;
III - as medidas necessárias para a promoção da sustentabilidade
urbanística, social e ambiental da área ocupada, incluindo as
compensações urbanísticas e ambientais previstas em lei;
IV - as condições para promover a segurança da população em
situações de risco; e
V - as medidas previstas para adequação da infra-estrutura básica.
Esta exigência foi excluída para o registro da sentença de usucapião,
da sentença declaratória ou da planta, elaborada para outorga administrativa de
concessão de uso especial para fins de moradia.
Um dos maiores avanços da nova legislação, na regularização
fundiária de assentamentos consolidados antes da publicação da Lei n°.
11.977/2009, foi conceder ao Município o poder de autorizar a redução do
percentual de áreas destinadas ao uso público e da área mínima dos lotes definidos
A regularização fundiária 109
na legislação de parcelamento do solo urbano, o que inviabilizava a maioria dos
loteamentos já implantados.
3.1.2.1 A regularização fundiária de interesse social
Esta regularização exige prévia análise e aprovação, pelo Município, de
projeto de regularização fundiária, correspondente ao licenciamento ambiental e
urbanístico do projeto, desde que o Município tenha conselho de meio ambiente e
órgão ambiental capacitado.
O Projeto de Regularização Fundiária de Interesse Social deverá
considerar as características da ocupação e da área ocupada para definir
parâmetros urbanísticos e ambientais específicos; identificar os lotes; identificar as
vias de circulação; identificar as áreas destinadas a uso público.
Fixando em 31 de dezembro de 2007 o marco divisor, poderá, por
decisão motivada, admitir a regularização fundiária de interesse social em APPs,
desde que inseridas em área urbana consolidada e que estudo técnico comprove
que esta intervenção implica a melhoria das condições ambientais em relação à
situação de ocupação irregular anterior.
A grande questão, certamente, será a implantação do sistema viário e
da infra-estrutura básica, previstos no § 6º do art. 2º da Lei nº. 6.766/79, a qual
compete ao poder público e de onde se originarão os recursos e se estes serão
suficientes, podendo inclusive serem efetivadas antes da regularização jurídica das
situações dominiais dos imóveis, ou seja, reconhece-se como consolidada a
situação de fato e nesta é que deverão ser efetivadas as ações.
O pressuposto para a realização do processo de regularização
fundiária de interesse social é a existência de assentamentos irregulares (sem título
de propriedade) ocupados por população de baixa renda e que o Poder Público
tenha interesse em regularizar, ainda que sejam outros os legitimados a darem
início ao processo.
A regularização fundiária 110
A própria Lei n° 11.977/09 regula amplamente o procedimento, pois
estabelece que a ausência da legislação municipal reguladora específica não
impede a realização da regularização.
Ainda de acordo com a referida Lei, o procedimento de regularização
fundiária de interesse social é desenvolvido a partir da lavratura de Auto de
Demarcação Urbanística pelo órgão do Poder Público interessado em realizar a
regularização fundiária (União, Estado ou Município).
A Demarcação Urbanística não tem o condão de proporcionar a
transferência de propriedade imobiliária, apenas sinaliza a possibilidade de
aquisição da propriedade imobiliária pelo usucapião, bem como não constitui título,
não adquirindo, o Poder Público, qualquer direito real em razão da pura e simples
demarcação, destinando-se ao reconhecimento do fato da posse, não tendo
qualquer natureza de ato expropriatório (desapropriação), tendo capacidade,
apenas, para fundar a matrícula da área demarcada quando esta não possui
matrícula ou transcrição anterior, dispensando ação discriminatória.
O referido auto de demarcação urbanística deve ser instruído com:
I - planta e memorial descritivo da área a ser regularizada, nos quais
constem suas medidas perimetrais, área total, confrontantes,
coordenadas preferencialmente georreferenciadas dos vértices
definidores de seus limites, bem como seu número de matrícula ou
transcrição e a indicação do proprietário, se houver;
II - planta de sobreposição do imóvel demarcado com a situação da
área constante no registro de imóveis; e
III - certidão da matrícula ou transcrição da área a ser regularizada,
emitida pelo registro de imóveis, ou, diante de sua inexistência, das
circunscrições imobiliárias anteriormente competentes.
Abrangendo ou confrontando área pública, os órgãos responsáveis
pela administração patrimonial dos demais entes federados devem ser notificados
para que informem se detêm a titularidade da área, no prazo de 30 dias, sob pena
de prosseguir a demarcação urbanística.
A regularização fundiária 111
Nas áreas de domínio da União, aplica-se o disposto na Seção III-A do
Decreto-Lei nº. 9.760, de 05 de setembro de 1946, inserida pela Lei nº. 11.481, de
31 de maio de 2007, e nas áreas de domínio dos Estados, DF ou Municípios a sua
respectiva legislação patrimonial, podendo haver regularização fundiária também
nesse imóvel.
A diferença é que, ao final da regularização, o título recebido pelo
beneficiário é de uma concessão de uso especial para fins de moradia (que constitui
direito real) sobre o imóvel público regularizado.
O Procedimento da Regularização Fundiária de Interesse Social exige
que, após a demarcação, o órgão do Poder Público deve apresentar ao RI pedido de
averbação do Auto de Demarcação, o qual identifica o proprietário e a matrícula do
imóvel objeto da demarcação e notifica pessoalmente o proprietário da área, com
prazo de 15 dias para impugnação, também por edital; os confrontantes e
interessados têm o mesmo prazo para impugnação.
Em caso de não localização, o proprietário será notificado por edital
com 15 dias para impugnação, nele constando resumo do auto de demarcação
urbanística com descrição que permita a identificação da área a ser demarcada e
seu desenho simplificado. A publicação do edital deve-se dar em até 60 dias, uma
vez pela imprensa oficial e uma vez em jornal de grande circulação local; diante da
impugnação o poder público deverá se manifestar em igual prazo.
Transcorridos os prazos legais, sem manifestação ou impugnação,
procederá à averbação o auto de demarcação na matrícula do imóvel, a qual deverá
ser aberta se não existir. Entretanto, a demarcação somente poderá ser efetivada
por consenso, ou seja, mediante prévio acordo, podendo inclusive propor a alteração
do auto de demarcação urbanística ou adotar qualquer outra medida que possa
afastar a oposição do proprietário ou dos confrontantes à regularização da área
ocupada ou, ainda, poderá inclusive excluir do auto a área impugnada. Ou seja, a
área a ser demarcada, não poderá sofrer impugnação total e, se parcial, o
procedimento deverá seguir em relação à parcela não impugnada.
Uma vez averbado o auto de demarcação urbanística (LRP, art. 167, II,
n° 26), o Poder Público deverá executar o projeto de regularização e submeter o
A regularização fundiária 112
parcelamento dele decorrente a registro, devendo ser apresentados os documentos
específicos para tal.
O registro do parcelamento determina a abertura de matrícula para
todas as parcelas resultantes do projeto, as quais não podem ser objeto de
remembramento.
A legitimação de posse devidamente registrada constitui direito em
favor do detentor da posse direta para fins de moradia e, após o respectivo registro
do parcelamento, o poder público concederá título de legitimação de posse aos
ocupantes cadastrados, preferencialmente em nome da mulher, e registrado na
matrícula do imóvel (LRP, art. 167, I, n° 41).
Revestido de precariedade, para que se dê sua conversão em título de
propriedade, torna-se necessário ser provado ou implementado o prazo
constitucional de posse ad usucapionem (CF/88, art. 183).
Entende-se que são diferentes: o instituto da legitimação de posse para
fins de moradia resultante de regularização fundiária de interesse social (Lei
11.977/09, art. 59) e o chamado instituto da concessão de uso especial para fins de
moradia em imóveis da União ou de outros entes federados (Lei nº. 9.636/98, art.
22-A), porque somente esta última foi guindada à condição de direito real, nos
termos do art. 1.225, XI, do Código Civil, com alteração da Lei nº 11.481/07.
Assim, o instituto contemplado no art. 60 propõe a introdução do
Usucapião Extrajudicial no ordenamento e será processado perante o Oficial do
Registro de Imóveis, independendo de qualquer decisão ou homologação judicial,
tendo em vista possuir peculiaridades próprias constituídas de prévio processo de
regularização fundiária de interesse social e, somente, o usucapião especial urbano
(ou constitucional).
Verificando as hipóteses estabelecidas na Lei, surgem situações
diferentes em relação à implementação do prazo da posse ad usucapionem (que é
de cinco anos) nos termos do art. 183 da Constituição Federal de 1988, ou seja, já
caracterizado ao tempo da realização da regularização fundiária ou aguardar o
transcurso desse prazo, por inteiro, o qual será contado a partir do registro da
legitimação de posse.
A regularização fundiária 113
Para resolver tal questão, deverão surgir fórmulas e a prática
consagrará a mais eficaz, relativa à forma como poderá ser provada a posse
quinquenária anterior à concessão do título de legitimação pelo Poder Público.
Entende-se que não há possibilidade de se requerer a conversão antes do tempo
estabelecido de 5 (cinco) anos de seu registro, salvo por decisão judicial.
Em razão da matéria não ter sido regulada pela Lei, não se pode
entender possível a conversão antes do prazo, mediante simples prova feita, perante
o Oficial do Registro de Imóveis, por documentos ou, ainda, através de testemunhas,
nem sequer por meio de escritura pública de justificação de posse. Não se entende
possível, da mesma forma, reconhecer este direito por prova também produzida pelo
Poder Público, com base em seus registros administrativos que demonstrem a
implementação do prazo de 5 anos, senão judicialmente.
Resta, para se configurar o Usucapião Administrativo, aguardar o prazo
legal para a conversão da posse em propriedade. Cumprido o prazo, é simples a
conversão do registro de posse em registro de propriedade, mediante meras
formalidades e certidões especificas.
3.1.2.2 A regularização fundiária de interesse específico
Este tipo de regularização fundiária regulamentou e, também,
oficializou o que muitos empreendimentos já tentam há vários anos, ou seja, formas
de regularizar a ocupação existente, geralmente em loteamentos de classe média-
baixa, onde, embora possuam infra-estrutura, estas foram executadas fora das
normas urbanísticas traçadas para o local, ou seja, os loteamento irregulares.
Este procedimento para a regularização fundiária, também trazido pela
Lei nº. 11.977/09, não apresenta o caráter social presente na regularização de
interesse social, mas interessa igualmente ao Poder Público, visando à organização
das cidades. Nele há maior rigor quanto aos institutos aplicáveis e às exigências da
legislação urbanística e ambiental.
A regularização fundiária 114
Dependerá, pois, da análise e da aprovação do projeto de
regularização pela autoridade licenciadora e emissão das respectivas licenças
urbanística e ambiental, devendo observar as restrições à ocupação de APPs e
demais disposições previstas na legislação ambiental, cujo saneamento dependerá
de contrapartida e compensações urbanísticas e ambientais, na forma da legislação
vigente.
Para este procedimento, os ônus da regularização serão partilhados e
serão definidas as responsabilidades respectivas entre poder público, loteador e
população a ser beneficiada com a regularização, pela implantação: do sistema
viário; da infra-estrutura básica; dos equipamentos definidos no projeto de
regularização; e das medidas de mitigação e de compensação urbanística e
ambiental eventualmente exigida (mediante termo de compromisso firmado com a
autoridade).
Devem ser considerados, nesta partilha de responsabilidade, os
investimentos em infra-estrutura e equipamentos comunitários já realizados pelos
moradores e o poder aquisitivo da população a ser beneficiada.
Especificamente, o registro do parcelamento resultante do projeto de
regularização fundiária de interesse específico, nos termos da legislação em vigor, é
basicamente a legislação aplicável a loteamentos, notadamente a Lei nº. 6.766/79,
com as suas especificidades constantes do projeto de regularização aprovado.
É vaga a solução para as glebas parceladas para fins urbanos,
anteriormente a 19 de dezembro de 1979, que não possuírem registro e poderão ter
sua situação jurídica regularizada com o registro do parcelamento, desde que o
parcelamento esteja implantado e integrado à cidade, envolvendo parte ou a
totalidade do parcelamento, apresentada a certificação de que a gleba preenche as
condições da Lei, bem como desenhos e documentos com as informações
necessárias à efetivação do registro do parcelamento.
Certamente, somente as situações de fato serão objeto de profunda
análise em busca da efetivação da função social da propriedade e o resgate da
cidadania de seus proprietários, finalmente com o reconhecimento deste direito.
A Lei nº. 11.977/09, para a sua implementação, promoveu grandes
alterações na Legislação Registral Brasileira, notadamente o Decreto-Lei nº.
A regularização fundiária 115
3.365/41, a Lei nº. 6.016/73, na qual foram inseridos: o n° 41 no inciso I do art. 167,
para possibilitar o registro da legitimação de posse e o n° 26 no inciso II do art. 167,
para possibilitar a averbação do auto de demarcação urbanística; também foi
acrescentado, no art. 221 da LRP, o inciso V, para admitir como títulos registráveis
os “contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados e
Municípios no âmbito de programas de regularização fundiária, dispensado o
reconhecimento de firma”; além disso, promoveu alterações no Estatuto da Cidade,
acrescendo dois novos instrumentos de política urbana para o país: demarcação
urbanística para fins de regularização fundiária (alínea “t” do inciso V do art. 4º) e
legitimação de posse (alínea “u” do inciso V do art. 4º).
Enfim, a primeira lei brasileira de regularização fundiária merecerá
redobrada atenção de nossos doutrinadores e da jurisprudência na aplicação da
mesma, diante da realidade frustrante das cidades brasileiras.
A legislação protetora da função social da propriedade surge
efetivamente na legislação e no meio social brasileiro como reflexo da pressão e dos
questionamentos oriundos da própria sociedade. Em nenhum município ocorre
fenômeno diferente: a Prefeitura age urbanizando favelas, sem preocupar-se com o
próprio Plano Diretor e, aguardando as manifestações sociais ou não podendo
contê-las, termina por desapropriar algumas áreas – reflexo claro de medidas
movidas, em sua maioria, por interesses políticos; outras vezes ignora as ocupações
por ser conveniente. As comunidades sem-teto já possuem uma organização própria
para pressionar a Justiça e invadir áreas que julgam ociosas. O Poder Judiciário
espera ser acionado para se posicionar e o Ministério Público se faz omisso na
maioria dos casos de ocupação de terrenos urbanos nas cidades.
O déficit habitacional cresce progressivamente porque se defende,
sobremaneira, o bem individual em detrimento da função social da propriedade.
Os administradores públicos são coniventes e, muitas vezes, cooperam
com as implantações irregulares, uma vez que é um problema a menos (ou a mais)
a ocupação clandestina.
Nesse viés, defende-se que comete crime de improbidade o
Administrador Público Municipal, o Prefeito, por deixar de fazer cumprir lei federal,
conforme define a própria Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº. 8.429/92,
A regularização fundiária 116
especialmente pelos incisos I e II do artigo 11 que estabelecem a improbidade por
omissão da prática ou dever de ofício, ou seja, não impedir a formação de núcleos e
invasões em áreas impróprias ou de forma irregular e clandestina, contrariamente ao
Estatuto da Cidade e legislação inerente ao parcelamento do solo.
3.1.3 O Programa Cidade Legal
Algumas cidades, como iniciativas isoladas, apresentam experiência de
programas de iniciativa pública estadual que unem esforços do Poder Público
Municipal, do Ministério Público, da Comunidade diretamente envolvida e da
sociedade civil de modo geral, e que têm conseguido resultados surpreendentes
indicando a viabilidade do desenvolvimento sustentável, que desafia a criatividade
de todos os setores e “atores” da sociedade.
Existem relatos de práticas corajosas do passado e do presente, que
antes de ferir o princípio da legalidade, deram concreção a outro princípio
igualmente cogente, por ser da essência do próprio Estado – o da Supremacia do
Interesse Público sobre o Privado, entendido o interesse público como uma
dimensão pública dos interesses individuais, como interesse dos indivíduos
enquanto membros do corpo social. E, tais atos, foram praticados não em afronta ao
princípio da legalidade, mas, ao contrário, sob a sua égide com a peculiaridade de
se conceber os antigos institutos e suas próprias funções de Juízes Corregedores,
Juízes de Varas de Registros Públicos, Ministério Público e Administradores
Públicos com novos contornos, numa dimensão mais ampla, compatível com a nova
Ordem Constitucional.
É importante destacar a lucidez dos registradores de imóveis do Brasil,
que se uniram ao Ministério Público, quanto à sua responsabilidade social e à
necessidade de sua ativa participação neste processo de discussão e
amadurecimento, posicionando-se como efetivos agentes para as mudanças.
Torna-se necessária, então, uma regulamentação uniforme para todo o
país, ainda que consistente em normas gerais para a questão da regularização
fundiária, em especial a adequada formalização do procedimento, resguardando-se
A regularização fundiária 117
direitos individuais e coletivos, numa preocupação com a efetividade das políticas
públicas sem o comprometimento da segurança jurídica.
Um destes casos é o Programa Cidade Legal objeto do Decreto
Estadual nº. 52.052, de 13 de agosto de 2007, precursor inclusive de ações de
regularização fundiária. O Governo de São Paulo criou o Comitê de Regularização,
um espaço importante para a articulação das ações entre os órgãos estaduais, com
o Poder Judiciário, junto ao Tribunal de Justiça, o que resultou no parecer nº. 144,
de 23 de junho de 2008, da Corregedoria Geral da Justiça que orienta os Juízes
Corregedores Permanentes e Oficiais de Registro de Imóveis, aprimorando as
Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, no tocante ao registro
imobiliário de processos de regularização fundiária, notadamente aqueles referentes
a loteamentos irregulares e favelas.
Quando do registro, será necessária a exibição do auto de
regularização pela Prefeitura Municipal, sendo este o principal instrumento de
regularização, em substituição a diversos outros documentos e licenças, antes
exigidos. Nesse documento será registrado que a regularização se deu em
conformidade com o Programa Cidade Legal, com orientação e auxílio técnico
prestados pelo Comitê Estadual de Regularização, acompanhado do correspondente
licenciamento, autorização ou aprovação do órgão estadual, quando for o caso.
Também há tratativas com o Ministério Público para que a Promotoria
de Justiça de Habitação e Urbanismo faça gestões para, por meio do Programa
Cidade Legal e com a participação da Prefeitura Municipal, buscar a regularização
fundiária de qualquer espécie de parcelamento para fins urbanos, quer esteja na
fase de Inquérito Civil, quer na de Ação Civil Pública.
Para consecução de seus objetivos, além de financiar a execução dos
projetos e demais documentos técnicos, a Lei Estadual nº. 13.290/08 garantiu custos
acessíveis para a regularização e construção de habitações, destinadas à população
de baixa renda, em imóveis de interesse social.
O Programa Cidade Legal não só auxilia os municípios nos programas
e ações de regularização de núcleos habitacionais (loteamentos, conjuntos
habitacionais e outros núcleos irregulares ou clandestinos) fornecendo orientação e
apoio técnico, mas diretamente (terceirizando as ações, assumindo o ônus e as
A regularização fundiária 118
despesas) executando os trabalhos técnicos necessários para a efetiva
regularização.
O Ministério Público tem interesse e legitimidade para acompanhar e,
se necessário, intervir nos procedimentos de regularização fundiária (CF/88, art.
129, II e III), especialmente nas regularizações fundiárias de interesse social
promovidas pelo Poder Público ou por terceiros.
O objetivo da participação do Ministério Público é garantir o acesso à
terra e aos serviços públicos essenciais à população de baixa renda, buscando
efetivar a dignidade da pessoa humana, além de fiscalizar o cumprimento das
diretrizes previstas no Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257/01), no art. 1.228, § 1º, do
novo Código Civil e na Lei nº. 6.766/79.
Nesse contexto, é função do Ministério Público zelar pela legalidade do
ingresso dos planos de regularização sustentável no Registro de Imóveis. São
considerados prioritários para a atuação do Ministério Público, na área de habitação
e urbanismo, os procedimentos de regularização de núcleos urbanos ocupados pela
população de baixa renda ou que possuem risco à vida ou à saúde, sejam ou não
objeto de procedimentos de investigação já instaurados pelo Ministério Público ou de
ações civis públicas promovidas pela instituição.
Entende-se por núcleos urbanos aqueles localizados em áreas públicas
ou privadas compreendendo as ocupações e os parcelamentos irregulares ou
clandestinos, além de outros processos informais de produção de lotes e
edificações, ocupados predominantemente para fins de moradia, implantados sem
autorização do titular de domínio ou sem aprovação dos órgãos competentes, em
desacordo com a licença expedida ou sem o respectivo registro imobiliário.
Além das ações já elencadas para a regularização de imóveis, cabe
destacar, adicionalmente, alguns instrumentos legais de apoio ao desenvolvimento
habitacional que podem ser realizados pelo Município visando ao estímulo à
regularização e à produção habitacional de interesse social tais como: lei que
permita ao Município pagar total ou parcialmente, em caráter de subsídio, as custas
e emolumentos devidos aos serviços notariais e de registro, respeitados os limites
orçamentários e dotações próprias a serem criadas ou suplementadas se
necessário; lei de isenção de Imposto de Serviço de Qualquer Natureza (ISS) na
A regularização fundiária 119
prestação de serviços destinados a obras enquadradas como empreendimentos de
interesse social, ou para a produção de Habitação de Interesse Social (HIS); lei de
isenção do pagamento de Imposto sobre Transmissão “Inter Vivos” (ITBI) para
lavratura de escritura e demais atos relacionados à transmissão de imóveis ou de
direitos a eles relativos, referente à produção e aquisição de unidades habitacionais
de interesse social; lei de isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)
para imóveis destinados ou utilizados para implantação de empreendimentos
habitacionais de interesse social, até o lançamento individualizado do imposto
referente às respectivas unidades autônomas; lei de Dação em Pagamento,
permitindo ao Município receber imóvel como pagamento de dívida de IPTU ou de
outras taxas e impostos. Tais medidas poderão permitir o equacionamento fundiário
de áreas para intervenções de regularização de núcleos habitacionais ou para a
construção de habitações de interesse social.
O Programa Cidade Legal busca sacramentar o resgate ao direito à
moradia digna, inserido legalmente no ordenamento urbano com a melhoria da
qualidade habitacional. A regularização dos Parcelamentos do Solo, de Núcleos
Habitacionais e a Reurbanização de Assentamentos Precários e Favelas representa
uma vitória dos segmentos envolvidos na obtenção e concretização de uma
sociedade mais justa, resgatando o direito à segurança de uma moradia legalizada,
de um endereço oficial, de uma cidade mais democrática e eficiente.
No Programa de Regularização – Cidade Legal – caberá às partes:
Governo do Estado de São Paulo, através do Comitê de Regularização do
Programa-Cidade Legal da Secretaria da Habitação, e Prefeitura Municipal, o
desenvolvimento de ações de cooperação técnica descritas no Convênio, em que
cada um, dentro de sua competência, contribuirá para o objetivo comum, ou seja, a
obtenção da regularização dos núcleos habitacionais irregulares existentes no
município.
À Secretaria de Estado da Habitação, através da Secretaria Executiva
do Comitê de Regularização, caberá:
a integração dos órgãos estaduais na busca de soluções e das
ações necessárias para o cumprimento das atividades previstas no
Plano de Regularização;
A regularização fundiária 120
mobilizar e coordenar os trabalhos com os órgãos estaduais
envolvidos na regularização dos núcleos habitacionais, articulando
ações que vão nortear o exame e a análise técnica para a
regularização pelos municípios;
colaborar com os órgãos municipais no cumprimento das
disposições estabelecidas no presente Manual de Orientação
Técnica;
disponibilizar condições aos Municípios para o desenvolvimento das
atividades técnicas na elaboração dos elementos que viabilizem a
regularização;
fornecer orientação técnica aos Municípios na condução das ações e
na efetivação dos atos técnicos e legais inerentes aos processos de
regularização dos núcleos habitacionais.
Ao Município, caberá:
criar instrumentos legais e regulamentares, que viabilizem a
execução do programa;
integrar as ações das Secretarias e Órgãos Municipais envolvidos na
execução do programa;
expedir os atos administrativos apropriados, no âmbito de suas
atribuições, alusivos à regularidade para cada núcleo habitacional,
tendo como parte integrante o cronograma físico-financeiro de obras
complementares a executar, se necessário;
divulgar à população os parcelamentos e núcleos habitacionais
enquadrados no programa, incluindo placa de obras, quando for o
caso, em modelo a ser fornecido pela Secretaria Executiva do Co-
mitê, observadas as restrições impostas pelo artigo 37, § 1º, da
Constituição Federal;
fornecer todos os materiais e documentos existentes sobre os
núcleos habitacionais a serem regularizados;
disponibilizar, se possível, veículo para a locomoção dos técnicos da
Secretaria da Habitação do Estado, nos trabalhos de campo, bem
A regularização fundiária 121
como reservar um espaço para os técnicos processarem os
relatórios e a tabulação dos dados coletados;
emitir os atos de regularização dos núcleos habitacionais e enviar a
documentação completa ao Cartório de Registro de Imóveis
requerendo o registro do núcleo habitacional;
quando do registro do núcleo, oficiar a Secretaria Executiva do
Comitê de Regularização – Cidade Legal, informando seu registro e
conclusão dos trabalhos.
Na referida Cooperação Técnica, sob a coordenação da Secretaria
Executiva do Comitê e em parceria com os Municípios, está previsto o
desenvolvimento de estudos e trabalhos de identificação, caracterização e produção
de elementos técnicos que instruam e orientem os processos de regularização a
serem conduzidos pelas Prefeituras.
Os núcleos habitacionais enquadrados no Programa Cidade Legal são
loteamentos e desmembramentos para fins residenciais, conjuntos e condomínios
habitacionais e a reurbanização de assentamentos precários e favelas.
As ações, em conjunto com os técnicos dos Municípios, para o
desenvolvimento de serviços previstos no Programa são, a saber:
1) preenchimento dos questionários com informações físicas,
jurídicas, institucionais e sociais do Município e do núcleo
habitacional;
2) produção de peças técnicas preliminares (Levantamentos
Cadastrais e outros, se necessário);
3) sistematização e análise dos dados e peças técnicas, com
identificação das irregularidades e diagnóstico da situação do
núcleo;
4) avaliação do diagnóstico pelo corpo técnico da Secretaria
Executiva e dos membros do Comitê, no que couber, com a
competente proposição de ações e serviços;
A regularização fundiária 122
5) produção de peças técnicas e legais necessárias aos processos
de regularização, inclusive os termos de compromisso para a
execução de obras ou serviços, se for o caso;
6) caracterização ambiental, quando necessária, constando no
mínimo os aspectos sócio-ambientais de uso e ocupação do solo,
identificando os passivos e as fragilidades ambientais, bem como
as restrições, potencialidades e as unidades de conservação, a
saber:
6.1. carta topográfica em escala compatível, localizando
precisamente a poligonal de trabalho;
6.2. cadastro de toda a rede hidrográfica que ocorre na gleba
trabalhada, nascentes, córregos (canalizados ou não),
lagos/lagoas (naturais ou antrópicas);
6.3. demarcar ocupação irregular da APP (incluir sempre marcos
cronológicos da ocupação que tenham por objetivo facilitar o
enquadramento legal da intervenção frente à evolução da
legislação florestal no que tange a APP);
6.4. locar faixas de restrição de ocupação segundo as Leis
Federais nº. 4.771/65 e nº. 6.766/79, isto é, APP (art. 2º) e
15 m de corpos d‟água segundo a Lei nº. 6.766/79, locar as
faixas de 0-15 m e 15-30 m;
6.5. elaborar “Quadro de Áreas” discriminando em m² a área de
intervenção dentro da APP, incluindo os percentuais
relativos à área impermeabilizada na APP;
7) projetos de solução de esgotamento sanitário, se for o caso;
8) projetos de intervenção sócio-ambiental na área, com ações
mitigadoras e compensatórias, mesmo que seja para inclusão em
termos de compromisso, se for o caso;
9) projeto urbanístico de regularização e respectivos memoriais;
A regularização fundiária 123
10) execução, pela municipalidade, das ações administrativas de
ajuste da legislação municipal, se for o caso, e da expedição dos
atos de regularização;
11) requerimento, por parte da municipalidade, ao Cartório de
Registro de Imóveis (CRI) competente solicitando o registro do
parcelamento ou núcleo habitacional regularizado;
12) depois de concretizado o registro do parcelamento ou núcleo, a
Prefeitura deve comunicar à Secretaria Executiva do Programa
Cidade Legal, enviando cópia da matrícula.
É importante refletir sobre este tema e sobre estas propostas a respeito
da regularização fundiária, com compartilhamento de experiências e pontos de vista
técnicos de áreas distintas, convergindo todos para os mesmos fins, a fim de
reforçar a imprescindibilidade do envolvimento interdisciplinar nesta discussão, dada
a relevância de suas participações nos procedimentos que não se resumem em
simples aplicações da lei.
A regularização fundiária consiste em um conjunto de medidas
jurídicas, físicas e sociais a serem adotadas pelo poder público, em acordo com a
comunidade, a fim de expedição de títulos de propriedade em favor dos moradores.
Porém, a titulação das áreas ocupadas por estas comunidades envolve diversos
aspectos e critérios que implicam a caracterização de um processo de regularização
fundiária peculiar. Nesse sentido, embora ainda não vigore um conceito adequado,
podem ser destacados alguns elementos constitutivos da noção de regularização
fundiária dessas áreas:
a) noção de processo: a regularização fundiária dos imóveis, com
vistas à melhoria da qualidade de vida da população moradora e da
expedição dos títulos de propriedade, é um processo físico,
jurídico, social e coletivo sobre o qual incidem diversos
instrumentos jurídicos e etapas legislativas, processuais e
administrativas a serem cumpridas;
b) processo físico: refere-se às ações de medição, delimitação e
demarcação das áreas a serem tituladas, bem como às medidas
adotadas para assegurar o saneamento ambiental destas áreas,
A regularização fundiária 124
dotando-as de serviços e equipamentos de água tratada, energia
elétrica, sistema de esgotamento sanitário e moradias adequadas;
e aos procedimentos de re-assentamento de comunidades
localizadas no perímetro da área considerada de alto risco;
c) processo jurídico: refere-se aos levantamentos da cadeia dominial,
do título de domínio e outros documentos inseridos no perímetro
dos imóveis, e às medidas judiciais visando à desapropriação de
propriedades de terceiros; às medidas legislativas e judiciais
adotadas para remover/solucionar gravames ambientais,
urbanísticos e administrativos incidentes sobre as áreas; ao
processo de expedição dos títulos de propriedade e o seu registro
no cartório de imóveis;
d) processo social: refere-se ao reconhecimento como “morador” ou
“possuidor” dos imóveis pelas famílias e pessoas envolvidas e ao
processo de registro da respectiva certidão; aos processos de
identificação e reconhecimento das comunidades moradoras
ocupantes de determinada área; às políticas públicas de educação,
saúde, alimentação, trabalho e renda, visando à inclusão social das
comunidades excluídas e marginalizadas; e à participação das
comunidades em todo o processo de regularização fundiária;
e) processo coletivo: refere-se às formas de organização social,
cultural, econômica e religiosa das comunidades que incidem no
processo de apropriação e utilização dos imóveis e dos recursos
naturais necessários a sua subsistência, sobrevivência e
reprodução, os quais devem ser considerados para a expedição
dos títulos coletivos de propriedade em benefício da comunidade,
urbana ou rural.
Estes programas públicos têm como objetivo incluir as famílias na
cidade, eliminando barreiras urbanísticas, administrativas e patrimoniais. A fim de
garantir local de moradia legalizado com infra-estrutura adequada para famílias de
baixa renda. A regularização promovida visa garantir o direito constitucional à
moradia e obedece a critérios estabelecidos na Constituição Federal e no Estatuto
A regularização fundiária 125
das Cidades, além de enfrentar o desafio da regularização fundiária urbana e
prevenir loteamentos irregulares.
Pretende-se o entrosamento do Governo Federal, que apóia estados,
municípios e associações civis sem fins lucrativos, na promoção da regularização
fundiária de assentamentos informais ocupados pela população de baixa renda.
Segundo estimativa do Ministério das Cidades, 12 milhões de famílias
vivem em assentamentos urbanos irregulares, como favelas e loteamentos
clandestinos. São pessoas que, além da carência de serviços básicos como água,
esgoto, coleta de lixo, iluminação e segurança pública, não têm o registro de suas
terras e nem endereço oficial necessário para a requisição de financiamento
bancário e de crediário, por exemplo.
Estes programas devem atuar em três frentes principais. Na primeira, o
Governo Federal repassa recursos do Orçamento Geral da União para estados e
municípios concretizarem os processos de regularização, com ação conjunta do
Ministério das Cidades, da Secretaria do Patrimônio da União, do Instituto Nacional
de Seguridade Social (INSS) e da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA). A
segunda frente visa à remoção de obstáculos à regularização, tanto os relativos à
legislação como os associados a processos administrativos e judiciais; para isso é
importante a revisão da Lei Federal nº. 6.766/79 que dispõe sobre o parcelamento
do solo para fins urbanos – proposta que já tramita na Câmara dos Deputados. A
terceira frente reconhece a importância dos municípios nesse processo, pois investe
na capacitação de equipes municipais no preparo de publicações, biblioteca virtual
jurídico-legal e um banco de experiências em regularização fundiária.
Postos os instrumentos para a regularização fundiária, inclusive com a
exemplificação de ações isoladas, mas bem sucedidas, de governos estaduais, resta
discutir sobre o objeto deste estudo: questões da responsabilidade sobre a
regularização fundiária de ocupações clandestinas e irregulares, que serão
apresentadas no próximo capítulo.
Temos, portanto, as regularizações fundiárias como ações para se
concretizar o direito à moradia, como direito natural, melhor traduzido nas palavras
de Sergio Iglesias Nunes de Souza:
A regularização fundiária 126
A justificativa para o direito à moradia ser um direito social permite a possibilidade de maior estruturação da legislação infraconstitucional, no sentido de preservá-lo, a fim de proteger o individuo, sem que, sob o pretexto de proteger a coletividade, seja sacrificado. Ou seja, não se justifica o sacrifício do direito a moradia de uma pessoa ou de algumas delas, sob o pretexto do beneficio social. Se o direito à moradia fosse incluído apenas como direito individual, teria fragilidade diante do interesse da função social que a limita.
O direito de propriedade é exercido plenamente quando limitado pelo interesse social, o mesmo se diga quanto ao direito à moradia. É certo que esse direito se constitui como inerente a cada um, sendo inviolável em qualquer hipótese. A sua inclusão como direito social no texto constitucional tem por objetivo a proteção da sociedade, mas visto com o objetivo de proteção, antes, di individuo. E, nesse caso, não se justifica a lesão desse direito a uma ou mais pessoas, ou apenas parte delas, sob o argumento de que o direito à moradia visa a proteção da função social e, nesse passo, estar-se-ia observando o seu regramento fundamental. Ao contrario, o objeto de norma constitucional é a preservação do direito di individuo à moradia e, em decorrência, atende-se a esse direito em beneficio da sociedade.
72
72
SOUZA, Sérgio Iglesia Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. Análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 122.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 127
4 A TUTELA COLETIVA PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA DE OCUPAÇÕES CLANDESTINAS E IRREGULARES
Lotear, dividir em lotes, ou ainda parcelar (par.ce.la: sf. parte de algo;
fração; pedaço; quota) são inúmeras denominações possíveis para a prática de
assentamento humano. Estes assentamentos concentram-se em torno da metrópole
e, por exclusão social ou falta de opção, boa parcela nas áreas periféricas onde
dividem minúsculos espaços físicos, sem quaisquer vestígios de cidadania, de forma
totalmente desordenada e à margem da legalidade.
Que autoridade pública desconhece a questão do favelamento e das
invasões implantadas em áreas públicas de alto risco? E este é um tema de políticas
públicas – infelizmente insanável ou não passível de regularização fundiária.
Neste contexto se situam os chamados parcelamentos de solo
irregulares ou clandestinos entre as chamadas áreas imobiliárias regulares, nas
quais os cidadãos possuem seu instrumento de propriedade dentro do conceito
urbanístico, as aglomerações, os favelamentos e invasões de alto risco, cuja solução
é a remoção e re-implantação com um mínimo de dignidade, tomando como
exemplos: Projeto Cingapura, reurbanizações, PAC, etc.
O loteamento clandestino caracteriza-se como ilícito administrativo,
sujeito às sanções previstas na legislação federal e de cada Município, como
desrespeito à legislação urbanística que é. Dentre as sanções destacam-se as de
multa, embargo e demolição, tradicionais em nosso direito administrativo.
A legislação procura dotar o sistema de meios e ações adequadas para
aprimorar e ordenar o parcelamento do solo urbano, entretanto, tem se mostrado
ineficaz e, a cada dia, além de ineficiente tem tornado impunes os seus autores,
quer sejam empreendedores, loteadores, corretores e correlatos, e o que é mais
grave, com a ampla participação de agentes públicos, fiscais e até autoridades, quer
por ação ou por omissão, que estão a cada dia contribuindo para a proliferação e
agravamento deste caos social urbano.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 128
Incomum é o Município que fiscaliza adequadamente o uso do solo.
Quando ocorre a fiscalização, há grande dificuldade em fazer valer o poder de
polícia. As notificações de infração são solenemente desconsideradas pelos
infratores, que não raras vezes usam seu poder político para corromper, comprar ou
intimidar aqueles se opõe aos objetivos; outras vezes rechaçam com violência e com
apoio da mídia e dos grupos de defesa de direitos humanos, gerando, como
conseqüência, um estado catatônico do Poder Público que se omite, por ser sua
melhor opção, e se constitui numa das principais causas da fragilidade do poder de
polícia municipal.
Este comportamento se reforça na idéia de impunidade e de que a
legislação não tem como atingi-los, eis que voltada apenas na defesa dos interesses
privados contra interesses privados, nunca contra o Estado ou seus representantes.
Entretanto, esta é uma nova era de definição de valores e de ideais de
justiça e de revisão do próprio sistema jurídico no País, que se encontra em
profundas transformações de conceitos e paradigmas, voltando finalmente para a
busca do justo, antes do legal, e para a proteção do coletivo, antes do individual, ou
seja, na busca da verdadeira função social do direito.
Neste contexto, não só os empreendedores e os autores
tradicionalmente conhecidos, mas também as autoridades públicas devem ser
responsabilizadas, e não os Municípios e sua sociedade que, de uma forma ou de
outra, arcarão com os custos sociais das ações preventivas, para impedir a
implantação, ou corretivas, para regularização.
Atualmente, diante de um também novo quadro legal de
responsabilidade social, ambiental, urbanística e fiscal dos governantes, a omissão
das autoridades na fiscalização do uso do solo deve ser caracterizada
explicitamente como uma concreta hipótese de improbidade administrativa e como
crime, tratado adiante, o que permitirá a punição dos administradores coniventes
com os loteamentos clandestinos, cuja conduta é tão ou mais grave que a dos
próprios empreendedores.
A conjugação da legislação federal, estadual e municipal, além de
complexa, torna moroso e oneroso o processo de implantação de loteamento
regular. Poucos Estados são dotados de órgãos concentrados e, quando o são, não
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 129
fiscalizam de forma eficaz nem podem coibir de forma preventiva as atividades
desenvolvidas.
Cumpre percorrer, sem esgotar o tema, algumas das questões que o
tema suscita.
Ser proprietário significa ter o direito de usar, gozar e dispor de um
bem, e bem é toda utilidade material, ou imaterial, sobre a qual incide a faculdade de
agir do sujeito. Para ser considerada plena essa propriedade, há a necessidade de
que todos os seus direitos elementares se achem reunidos no do proprietário. A
Constituição Federal em seu artigo 5º, XXII, assegura esse direito aos adquirentes
de lotes, o seu exercício pleno.
Quando estes preceitos não se encontram evidenciados, por qualquer
que seja o motivo, estes fatores influenciam o comportamento social dos
pseudoproprietários (consumidores), que incertos quanto ao futuro do
empreendimento deixam de edificar sobre seus terrenos. Os que já edificaram
deixam de receber as melhorias devidas não conseguindo, assim, o uso que
originalmente pretendiam. Também não usufruem agradavelmente do direito da
propriedade. Convivem diariamente com a insatisfação de ter seus planos adiados, a
privacidade espiada, a família e os bens a mercê da sorte, dada a falta de
segurança, por não possuírem um “endereço”.
Nem mesmo exercer o direito de dispor do bem podem, não sem
prejuízos, já que o loteamento não se enquadra nos moldes da legislação pertinente,
que impede a regularização documental dos mesmos, estando ora irregulares, ora
na clandestinidade.
Torna-se necessário deixar claro, para melhor compreensão da
situação em comento, o que seja loteamento clandestino e irregular.
Loteamento clandestino é aquele que não existe no mundo jurídico, ou
seja, não foi levado a registro. Já o loteamento irregular é aquele que tendo sido
registrado, o empreendedor não realizou, no tempo hábil, as obras de infra-estrutura
ou, as tendo realizado, o fez em desacordo com o projeto aprovado pelo Poder
Público competente. Sua regularização não demanda apenas o registro do
loteamento como também a realização – nas condições impostas pela lei e pelo
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 130
próprio Município no ato da aprovação do projeto – de todos os atos, obras e
benfeitorias que o loteador estaria obrigado a fazer.
Parcelar o solo, no Brasil, é uma árdua tarefa a ser percorrida pelos
empreendedores o que, muitas vezes e por inúmeras razões e intenções, tende a
não atingir seus objetivos. As etapas determinadas pelas legislações federal e
municipal para se aprovar e/ou regularizar o parcelamento do solo urbano, desde
sua concepção a sua efetiva implantação, com a homologação e arquivamento do
respectivo processo na Prefeitura com matrículas imobiliárias individuais
devidamente registradas, são um verdadeiro calvário.
O sistema traçado pela Lei Federal nº. 6.766/79 se constitui,
basicamente, em um complexo de procedimentos técnico-científicos, jurídicos e de
engenharia, bem como toda uma estratégia de execução da infra-estrutura
concomitantemente com a comercialização dos lotes. Qualquer falha poderá
transformar o sonho em pesadelo, os projetos em dramas.
Inicia-se com o requerimento para se obter diretrizes municipais para o
uso do solo (Arts. 6º e 7º) – muitos sequer avançam deste ponto – e apresentação
dos projetos, contendo desenhos e memorial descritivo, acompanhado do título de
propriedade, certidão de ônus reais e certidão negativa de tributos municipais, todos
relativos ao imóvel (Art. 9º); proceder à aprovação do projeto do loteamento (Art. 12)
e registro do loteamento ao Cartório de Registro de Imóveis (Art. 18), acompanhado
de garantia para a execução das obras (Art. 19), não havendo óbice legal em que o
registro seja feito antes das obras de infra-estrutura.
Neste contexto, as áreas circunvizinhas ao perímetro urbano são o
principal alvo do parcelamento ilegal do solo e onde mais florescem as invasões e a
ação de aventureiros ávidos por lucro fácil.
Com isso, forçoso concluir que o empreendedor que, agindo à margem
da lei, vier a desatender a essas diretrizes incidirá, consequentemente, nas
cominações legais prescritas no citado art. 50 e respectivos incisos e parágrafo
único da aludida Lei nº. 6.766/79.
Cabe aclarar que o mencionado diploma, em seu artigo 51, cuidou de
estender a responsabilidade pelo cometimento da infração a todos aqueles que, de
qualquer modo, venham a concorrer ou somar esforços para a consecução do
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 131
desiderato penalmente reprovável, praticando atos tendentes à viabilização material
do ilícito, inclusive no que toca à venda das frações desmembradas no loteamento
irregular, não sendo, pois, imprescindível que o agente venha a praticar os atos
especificamente descritos no núcleo da norma penal incriminadora. Em não sendo
cumprida qualquer das formalidades por parte dos empreendedores, os
compradores, por seu legítimo interesse e direito, podem proceder a suspensão dos
pagamentos restantes e notificação do loteador para suprir a falta, quando for
verificado que o loteamento não se acha registrado ou regularmente executado (Art.
38).
Por obrigação decorrente de lei, a Prefeitura Municipal (cujo
poder/dever de fiscalização ostenta) ou o Ministério Público deverão promover a
notificação ao loteador prevista no caput deste artigo e na forma determinada pelo
Art. 49 (Art. 38, § 2º).
A efetivação dos depósitos das prestações devidas, deverão ser
realizadas junto ao Registro de Imóveis competente, que as depositará em
estabelecimento de crédito, segundo a ordem prevista no inciso I do Art. 666 do
Código de Processo Civil, em conta com incidência de juros e correção monetária,
cuja movimentação dependerá de prévia autorização judicial no caso de ocorrer a
suspensão do pagamento das prestações restantes, na forma do caput deste artigo
(Art. 38, § 1º), cujo levantamento judicial dos valores depositados somente poderá
ocorrer após ter regularizado o loteamento (Art. 38, § 3º).
Caso desatendida a notificação pelo Loteador para regularização, o
Município/Prefeitura Municipal assumirá o loteamento não autorizado ou executado
sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar
lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos
adquirentes de lotes (Art. 40).
O Município, quando promover a regularização (raramente o faz, sem
ação judicial respectiva) na forma deste artigo, obterá judicialmente o levantamento
das prestações depositadas, a título de ressarcimento das importâncias despendidas
com equipamentos urbanos ou expropriações necessárias para regularizar o
loteamento (Art. 40, § 1º). Se os depósitos feitos não cobrirem as importâncias
despendidas para regularização do loteamento, este exigirá a parte faltante do
loteador (Art. 40, § 2º). No caso de o loteador não cumprir o estabelecido no
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 132
parágrafo anterior, a Prefeitura Municipal poderá receber as prestações dos
adquirentes, até o valor devido (Art. 40, § 3º), podendo, para assegurar a
regularização do loteamento bem como o ressarcimento integral de importâncias
despendidas ou a despender, promover judicialmente os procedimentos cautelares
necessários aos fins colimados (Art. 40, § 4º) contra o loteador, sendo que somente
depois de regularizado é que os adquirentes poderão obter o registro de propriedade
do terreno.
O dever de executar as obras de infra-estrutura e de regularizar o
loteamento é do empreendedor. Na omissão deste, a obrigação é repassada,
prontamente, para o Município por força de disposição expressa do artigo 40 da Lei
Federal nº. 6.766/79, que poderá regularizar loteamento ou desmembramento não
autorizado ou executado em observância das determinações do ato administrativo
de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na
defesa dos direitos dos adquirentes dos lotes.
Uma vez regularizado, as importâncias despendidas pelo Município,
serão exigidas na parte faltante do loteador, aplicando-se o disposto no Art. 47, que
poderá promover judicialmente os procedimentos cautelares necessários aos fins
colimados.
Entende-se que a lei não impõe o dever ao Município de regularizar o
loteamento tão somente quando ele agir com culpa, a única exigência é a de que o
loteador não tenha cumprido essa tarefa. Assim, a responsabilidade do Poder
Público Municipal é objetiva.
A urbanização é tarefa eminentemente pública e o empresário-loteador,
antes de fracionar o solo, deve submeter seu intento às conveniências da
coletividade para que este seja tido por viável, dentro da obrigação da função social
do uso da propriedade.
A realização de loteamento em total desacordo com as leis que regem
o parcelamento do solo constitui-se em ato danoso, capaz de gerar situação
prejudicial para os adquirentes desavisados, bem como para a Municipalidade que
se vê obrigada a conviver com situação de risco potencial e desrespeito ao bem
estar público.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 133
Neste contexto, o Poder Público municipal tem papel preponderante a
realizar, quer fiscalizando todas as áreas urbanas que compõe o município para
detectar, debelar, coibir e determinar a correção de parcelamentos clandestinos e
irregulares, quer analisando, corrigindo e aprovando projetos de parcelamento; ou
regularizando todos os loteamentos clandestinos e irregulares.
É pela existência de tão grande responsabilidade do Município que a
Constituição da República Federativa do Brasil prevê, em seu artigo 182 (e o recente
Estatuto da Cidade), que compete à Administração Municipal disciplinar, no âmbito
de seu território, o uso da propriedade com o objetivo de ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes, devidamente detalhado no respectivo plano diretor que é o instrumento
básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
De pouco adianta ter um plano diretor, como instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana, se o Executivo se mantém
omisso não o cumprindo nem o fazendo cumprir, bem como é vã a previsão
constitucional de que a propriedade deve atender sua função social se o Poder
Público municipal não toma as medidas necessárias para que tal mandamento se
concretize no município.
Ainda, no sentido de determinar o dever-poder da Administração
Pública de defender o consumidor em geral, dentre eles os que compram ou que se
comprometem a comprar lotes de terrenos, a Carta Política é expressa no Art. 5º,
XXXII, bem como no Art. 170, V, ao regular a ordem econômica fundada na livre
iniciativa, mas assegurando existência digna e justiça social, notadamente na defesa
do consumidor, parte frágil do voraz sistema econômico-financeiro.
Quando a Constituição Federal fala em Estado, ela não está se
referindo apenas aos estados-membros, mas o faz de uma forma genérica,
querendo, com isso, abranger, lato sensu, todos os níveis de Poder, quer seja
Federal, Estadual ou Municipal. Assim é que, constitucionalmente, o Município tem
sim o dever de defender o consumidor e quando não o faz está ferindo o próprio
princípio democrático estabelecido pela Carta Maior, cujo ápice é de que "todo poder
emana do povo e em seu nome deve ser exercido".
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 134
Atendendo a estes princípios constitucionais e ao seu papel legiferante
supletivo, as normas municipais têm disciplinado de forma eficaz a ocupação do solo
urbano de quase todos os municípios brasileiros. É preciso que se ressalte que,
geralmente, os empreendimentos são destinados à habitação da classe pobre,
motivo pelo qual as práticas ilegais devem ser duramente fiscalizadas e combatidas
pelo Poder Público.
Longe de cumprir todos esses deveres, as Administrações Públicas
Municipais, invariavelmente, mantêm-se o tempo todo totalmente omissas e/ou
coniventes, restando somente o Poder Judiciário para que, através de um comando
concreto, exija do administrador público que cumpra a lei, defendendo a coletividade
e o plano diretor de urbanismo.
É ainda previsão constitucional que a responsabilidade da
administração pública é objetiva, nos termos do Art. 37, § 6º, da Constituição da
República Federativa do Brasil, bastando ao lesado comprovar apenas que o nexo
de causalidade seja suficientemente demonstrado.
Mesmo que as leis acima citadas não tivessem fixado, com tanta
clareza, a responsabilidade do Município de regularizar, na omissão do loteador, o
Código de Defesa do Consumidor (CDC) impõe essa obrigação. O CDC estabelece
que são responsáveis solidários todos os que de alguma forma deram causa ao
dano. Nesse sentido, estão os artigos 7º, parágrafo único, e 25, § 1º.
É responsável pela causação do dano quando podia e devia agir para
evitá-lo e nada faz, além de que não deve permitir a venda de loteamentos
clandestinos feita ao consumidor leigo e vulnerável.
Assim, o CDC, para proteger o consumidor, determina:
a) notificação aos adquirentes, como prevê o art. 38, "caput", da Lei
nº. 6.766/79, para que suspendam o pagamento das prestações,
tão logo constatada as irregularidades na execução do loteamento;
b) prevenir os futuros compradores, a fim de evitar provável lesão aos
seus direitos;
c) exigir do loteador as garantias necessárias, com realização da
hipoteca prevista em lei;
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 135
d) promover, de pronto, a regularização do loteamento, como é do
seu dever, para minimizar, os prejuízos do consumidor.
Conforme afirmado que o Poder Público Municipal tem por dever a
obrigação de defender o consumidor, isto compreende, indubitavelmente, o dever de
prevenir os danos.
O Poder Público Municipal é responsável em, diretamente, resguardar
os direitos do cidadão e consumidor, preceitos protegidos, no caso, pela
Constituição Federal, artigos 1º, III; 3º, III e IV; 30, VIII, pelo Código de Defesa do
Consumidor, artigo 6º, X; pela Lei nº. 6.766/79, artigo 38.
Dessa forma, ao se omitir, o Poder Público produz danos aos
consumidores adquirentes, que dada sua omissão foram clandestinamente
parcelados e comercializados. E não é só, toda a sociedade também está sendo
atingida à medida que vê os impostos que recolhe sendo engolidos por uma
máquina administrativa ineficiente, perde também com os impostos que deixa de
arrecadar (IPTU), uma vez que estes lotes não existindo de direito, não são
passíveis de cobrança dos impostos devidos. Portanto, os danos advindos dessa
omissão são muitos e variados.
Os adquirentes das frações ideais do loteamento convivem desde
sempre com problemas de infra-estrutura: falta de saneamento básico, de energia
elétrica, de iluminação pública, de pavimentação, etc.
Dada a inexistência dos equipamentos urbanos os moradores sofrem
com a falta de transporte coletivo, com o mato, o lixo e, quando chove, com a lama.
Não possuem também qualquer equipamento comunitário de educação, cultura,
saúde, lazer ou similares; embora estando estes previstos na Lei nº. 6.766/79, art.
4º, I, § 2º.
Além da norma, a própria saúde e vida do consumidor estão sendo
lesadas.
Não têm esses consumidores a escrituração de seus lotes sob a
alegação de terem adquirido frações ideais de gleba clandestinamente parcelada,
então o prejuízo é certo. Dada a falta de documentação, esses lotes sofrem grande
depreciação e seus proprietários acabam não recebendo o preço justo, na hora da
venda. O dano material está mais que caracterizado.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 136
Decorre também, da falta de legalização dos lotes, problemas com o
endereço, entendendo-se neste caso com o sinônimo de cidadania, de ser
reconhecido na sociedade formal.
Assim, é incontestável a lesão de Direito Fundamental desses
consumidores: o de habitar com dignidade, e dignidade significa ter respeito e amor
próprios.
Nasce, destas ações e omissões, outro dano: o moral. Este decorrente
das insuficientes condições de habitação enfrentadas por esses moradores,
espoliados também de seu sonho de galgarem vida melhor. O preceito
constitucional, em seu artigo 5º, V e X, salvaguarda a reparação do dano moral,
elevando a obrigação da reparação do dano moral à posição de direito fundamental.
Então, este também deverá ser reparado, sem prejuízo dos danos materiais
supracitados (CDC, Art. 95).
O Município não está tão somente como fornecedor dos serviços
públicos, mas também como sujeito de obrigação, consistente em promover o bem
estar do povo, zelar pelos seus direitos básicos e cumprir e fazer cumprir a lei;
falhando neste mister nasce, inclusive, o dever de reparar os danos causados.
É entendido se tratar, destarte, de obrigação de fazer na hipótese do
art. 11 da Lei nº. 7.347/85 e do Codecon, em seu artigo 84.
Assim, o Município, em casos análogos, deve tomar todas as
providências administrativas para a regularização do loteamento (realização de:
diligências e vistorias na área; embargo do empreendimento; cientificação dos
responsáveis acerca de sua ilegalidade e cadastramento dos adquirentes de lotes,
com vistas à consignação do valor das prestações, com fundamento na norma do
art. 38, § 1º, da Lei nº. 6.766/79), propor, a princípio, Ação Cautelar com pedido de
medida liminar, com vistas à imediata paralisação do empreendimento e, em
seguida, Ação Condenatória a Obrigação de Fazer e de Não Fazer para, através do
Poder Judiciário, obrigar as empreendedoras a respeitar o direito dos consumidores
que foram e que seriam lesados.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 137
4.1 OS ASPECTOS PENAIS
4.1.1 A responsabilidade e o crime
O Art. 50 da Lei nº. 6.766/79 estabelece como crime contra a
Administração Pública dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento do solo
para fins urbanos sem autorização do órgão público competente ou em desacordo
com as disposições desta lei federal de parcelamento do solo urbano ou das normas
pertinentes dos Estados e Municípios.
O parágrafo único deste Art. 50 prevê a qualificação do crime acima se
ele for cometido por meio de venda, promessa de venda, reserva de lote ou
quaisquer outros instrumentos que manifestem a intenção de vender lote em
loteamento ou desmembramento não registrado no Registro de Imóveis competente.
Já o Art. 51 prevê que quem, de qualquer modo, concorra para a
prática dos crimes previstos no Art. 50 incide nas penas a estes cominadas e, com
vasta doutrina e jurisprudência dominante no sentido de se tratar de crime de
natureza permanente, consumando-se o ato no momento da realização da conduta
incriminada, postergando-se o momento consumativo ao longo do tempo que
perdura a infração.
A simples omissão de funcionários e representantes do Poder Público,
salvo outros mais graves, constitui crimes de prevaricação, na implantação de
loteamento clandestinos, irregulares e/ou não aprovados e invasões de qualquer
natureza.
A responsabilidade penal dos funcionários se dá principalmente em
função da omissão cometida por eles, já que ela foi relevante. Sem ela, o
consumidor não teria sido ludibriado pelo empreendedor.
Nesse sentido, já advertem diversos juristas que as Prefeituras e os
Administradores Públicos desprezam em absoluto as regras de urbanização e são
responsáveis, ao longo dos tempos, por inúmeros problemas que, em áreas
diferentes, têm recebido mínima atenção e afetado toda a coletividade quanto à
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 138
ocupação desordenada do solo, sendo causa de inúmeros problemas sociais,
ambientais e econômicos por todo o Brasil.
A limitação da poluição a resíduos das indústrias, tenta sanar um
problema que não deveria ter ocorrido: moradias em área estritamente industrial, ou
fontes poluidoras em área residencial. A revitalização de um manancial é correção
de sucessivos erros e omissões, todos impunes, inclusive com a facilitação e até o
incentivo à ocupação das regiões próximas de áreas públicas e de preservação
permanente.
A regularização de loteamentos irregulares, ou clandestinos, tem como
objetivo corrigir a omissão dos antigos (e atuais) administradores. Ou seja, nenhum
dos problemas urbanos surgiram sem o concurso das administrações públicas,
especialmente as municipais. Assim, os representantes do Poder Público,
concorrem de maneira preponderante para que os crimes de parcelamento irregular
ou clandestino do solo sejam praticados.
Esta forma de pensar está assentada no Art. 13, § 2º, a, c, e Art. 29, do
Código Penal, c.c.; Lei nº. 6766/79: Art. 50, I, III, Parágrafo único, I, e Art. 51; e no
Código de Defesa do Consumidor: Art. 66, § 2º, Art. 67 e Art. 75.
Em se tratando de agentes públicos e políticos (prefeito, secretários,
fiscais, etc.), bem como de cargo com as atribuições respectivas, a autoria será
facilmente estabelecida, bem como o dolo inerente ao tipo penal em comento devem
encontrar-se, pois, insofismavelmente demonstrados nas condutas específicas.
A intenção de omitir-se diante da conduta de somar esforços diretos e
aderir ao propósito delituoso de levar a efeito o parcelamento da área para fins
urbanos, em frações, em desacordo com o que preconiza a lei, eclode, com clareza,
a responsabilidade do poder público, do administrador público ou de seus
representantes, que espontaneamente se omitem.
A culpabilidade emerge da própria conduta perpetrada contra legem,
voluntária e conscientemente assumida pelo empreendedor, pelo Administrador e
representantes (com a certeza de impunidade), aderindo aos propósitos delituosos
externados por terceiros também envolvidos no loteamento, ciente da ilicitude da
conduta e assumindo, por conseguinte, as conseqüências do seu comportamento
que, mostrando-se extremamente reprovável e danoso à ordem urbanística
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 139
enquanto bem juridicamente tutelado, assume moldura específica nos contornos da
tipificação penal.
As consequências destas condutas eticamente permissivas dos
Administradores mostram-se graves e irreversíveis, em todo o território nacional,
porquanto o empreendimento não seja obstado pelas autoridades administrativas
responsáveis pela fiscalização, e que devem coibir tais atos ainda no seu
nascedouro zelando pelo implemento de uma política de expansão urbana ordenada
e subordinada aos ditames da lei, transforma-se no carrasco dos problemas sociais
urbanos.
Com o advento da Lei nº. 6.766/79 houve consideráveis modificações
no aspecto criminal do parcelamento do solo urbano. Nos anteriores Decreto-Lei nº.
58 e Decreto nº. 3.079 não haviam normas reguladoras que definissem sanções aos
loteadores ilegais, clandestinos ou irregulares, e estes proliferavam em todas as
partes, isentos de qualquer responsabilidade perante a sociedade. Na Lei do
Parcelamento do Solo Urbano (como crimes contra a Administração Pública), o
agente passivo é o Estado (coletividade – ordem jurídica) e o adquirente, em
loteamento ilegal.
Entretanto, grave é a omissão das administrações, no caso de direito
urbano público protegido, tendo em vista o poder/dever de regular desempenho de
seu poder de polícia urbanística, pois é deste que se vale o Estado para exercer sua
atividade regulamentar do ordenamento das cidades, a fim de evitar os crimes
contra a Administração Pública que ofendem exatamente bens e interesses jurídicos
públicos referentes à atividade administrativa do Estado.
As seis figuras delituosas (Art. 50, da Lei nº. 6.766/79), tipificadas como
crimes contra a Administração Pública, objetivam tutelar a boa-fé dos que procuram
comprar terrenos loteados e tencionam proibir o logro por parte de quem deseja
parcelar o solo urbano de maneira desonesta.
Entretanto, o concursus delinquentium, do Art. 51, procura exasperar a
conduta de quem age na qualidade de terceiro, sendo meramente exemplificativas.
Entende-se que os agentes públicos (todos os que mantêm vínculo com a
Administração Pública), de qualquer esfera de governo, podem ser co-autores
desses crimes por ação ou omissão.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 140
Discorda-se, aqui, de doutrinas e jurisprudências que insistem na teoria
de impunidade aos terceiros que auxiliam na implantação de parcelamentos de solo
e/ou qualquer forma de comercialização de lotes entendendo não constituir crime,
pois caso contrário todos os corretores e intervenientes nas vendas de lotes
clandestinos seriam co-autores.
Não se trata de punir inocentes. O que se pretende é demonstrar que a
maioria dos empreendimentos ilegais, clandestinos e/ou irregulares, não prosperaria
se não fosse a omissão dos administradores, na implantação, e a ativa ação dos
corretores, na comercialização. A impunidade, destes, é o resultado do caos urbano
atualmente constatado.
A iniciativa da ação penal cabe ao Ministério Público (Código Penal -
art. 100), concluindo-se que nos casos de crimes previstos na Lei nº. 6766/79, a
deflagração processual fica a cargo do Ministério Público, podendo a vitima não
apenas intervir como assistente, como também propor a ação penal de iniciativa
privada, subsidiária da de iniciativa pública, consubstanciada no art. 5º, LIX, da
Constituição Federal de 1988.
A lei que regula o parcelamento do solo urbano deveria ser o
instrumento apto ao Poder Público para dispor acerca do espaço urbano, por meio
de divisão em partes destinadas ao exercício das funções urbanísticas, disciplinando
a ocupação urbana, de forma harmônica, em busca do bem estar da população.
Entretanto, em face da banalização da legislação penal no País, a Lei
nº. 9.099/95 e a Lei nº. 9.714/98 provocaram novamente a isenção quase total de
pena, ou seja, em decorrência dessas mudanças no direito penal, adota-se, nos
crimes de loteamento clandestino, a substituição da pena privativa de liberdade por
distribuição de cestas básicas à população carente.
A solução seria, em uma possível futura alteração na legislação, a
elevação da pena mínima do crime qualificado, com a finalidade precípua de defesa
da coletividade.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 141
4.2 O PODER DE POLÍCIA NO CAMPO URBANÍSTICO
Diante da lacuna institucional quanto ao exercício do poder de polícia
urbanística, temos que, por ser o Município o ente da federação responsável pelo
controle do uso do solo (CF/88, Art. 30, VIII), a competência da guarda municipal
para a repressão às infrações urbanísticas deve ser considerada plenamente viável,
notadamente em áreas públicas.
As medidas administrativas de embargo e demolição de obras, que são
aquelas mais eficazes e imediatas, têm sido executadas com apoio das Polícias
Militares. Essas, entretanto, são estaduais e não consideram tais ações prioritárias,
preocupadas que estão com a criminalidade em geral.
A Constituição Federal de 1988 determina, "os Municípios poderão
constituir guardas municipais destinadas à proteção dos seus bens, serviços e
instalações, conforme dispuser a lei" (Art. 144, § 8º). Esta redação não impede a
atribuição, às guardas municipais, de competência para atuarem no exercício do
poder de polícia municipal, caracterizando a fiscalização do uso do solo como um
serviço municipal, para cuja proteção ela pode ser utilizada.
O poder de polícia urbanística é o exercício indispensável à
consecução das normas imperativas do Plano Diretor. Não há dúvidas de que é a
Guarda Municipal quem exerce o Poder de Polícia Urbanística, especialmente para
coibir novos assentamentos e invasões, auxiliando a regular a fiscalização. Esta
conjugação entre a fiscalização e o apoio das Guardas Municipais poderia e pode
evitar agravamento da situação fundiária urbana, desde que responsabilizada a sua
omissão, permitindo aos Municípios terem maior agilidade na sua atuação
fiscalizadora.
Outro grave obstáculo ao controle do uso do solo consiste na não
aplicação pelos tribunais do princípio da auto-executoriedade dos atos
administrativos, segundo o qual estes independem de autorização judicial para
serem executados. Discordando de muitos Tribunais, Hely Lopes Meirelles, também
afirma que:
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 142
[...] nenhuma procedência tem a objeção de que a ação sumária da Administração Pública pode lesar o indivíduo, na sua liberdade ou no seu patrimônio. Exigir-se prévia autorização do Poder Judiciário equivale a negar-se o próprio poder de polícia administrativa, cujo ato tem de ser direto e imediato, sem as delongas e complicações de um processo judiciário prévio.
73
Embora universalmente aceito pela doutrina, tal princípio é
frequentemente ignorado pelo Poder Judiciário, o que resulta na concessão de
liminares contra o Poder Público, quando este age diretamente na repressão dos
ilícitos urbanísticos. Além disso, as Polícias Militares recusam-se a obedecer
diretamente ao Município, exigindo ordem judicial para a realização dos atos de
embargo e demolição.
Na prática, raros são os Municípios que dispõem de uma Procuradoria
própria para o acionamento do Poder Judiciário. A maioria meramente comunica a
existência do ilícito ao Ministério Público, para que este promova a Ação Civil
Pública; com isso, sobrecarrega-se a Justiça e perde-se um tempo precioso durante
o qual o assentamento se consolida.
Assim, a auto-executoriedade dos atos administrativos, pelo menos na
esfera urbanística, é medida que reduziria a demanda sobre o Poder Judiciário e o
Ministério Público e permitiria uma atuação imediata das Prefeituras desde os
primeiros atos de ocupação irregular do solo.
O parcelamento irregular do solo está na raiz dos principais problemas
urbanos brasileiros. Embora a responsabilidade direta pela fiscalização do uso do
solo seja dos Municípios, estes não utilizam seu amplo espectro de ações à sua
disposição para aperfeiçoar as instituições existentes. Atitudes e ações concretas
visam contribuir para esse objetivo, corrigindo ambiguidades, preenchendo lacunas
e racionalizando a atuação dos órgãos públicos.
73
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 93.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 143
4.3 A CARACTERIZAÇÃO COMO IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA DA OMISSÃO DAS AUTORIDADES MUNICIPAIS NA FISCALIZAÇÃO DO USO DO SOLO
Como desrespeito à legislação urbanística que é, o loteamento
clandestino constitui, evidentemente, ilícito administrativo sujeito às sanções
previstas na legislação de cada Município. Dentre estas, destacam-se as de multa,
embargo e demolição, tradicionais em nosso direito administrativo.
Raros são os Municípios, no entanto, que fiscalizam adequadamente o
uso do solo. Quando ocorre a fiscalização, há grande dificuldade em fazer valer o
poder de polícia. As notificações de infração são solenemente desconsideradas
pelos infratores.
Uma das principais causas da fragilidade do poder de polícia municipal
é a omissão das autoridades, que muitas vezes são pressionadas por políticos
locais, articulados com os empreendedores ou apenas desejosos de constituir um
eleitorado junto aos ocupantes dos terrenos.
A omissão das autoridades na fiscalização do uso do solo deve ser
caracterizada explicitamente como uma hipótese de improbidade administrativa, o
que permitiria a punição dos administradores coniventes com os loteamentos
clandestinos, cuja conduta é tão ou mais grave que a dos próprios empreendedores.
A presente questão cinge-se a definir sobre a ocorrência ou não de ato
de improbidade administrativa decorrente da omissão do administrador público
municipal e seus agentes em cumprir as disposições da legislação referente ao
parcelamento do solo urbano e do Estatuto da Cidade, permitindo a formação de
parcelamentos clandestinos e irregulares no solo urbano e de expansão urbana
municipal, previsto no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, com a incursão nas sanções
previstas no artigo 12, inciso III, da mesma lei.
O art. 11, caput e inciso I, da Lei nº 8.429/92 preconiza:
Art. 11 – Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente:
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 144
[…];
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
[…].
Conforme se entende a norma possui caráter aberto. Isso exige que a
sua interpretação seja orientada por uma atenção especial. Nas palavras de Mauro
Roberto Gomes de Mattos:
[…] Há que se ter temperamentos ao interpretar a presente norma, pois o seu caráter é muito aberto, devendo, por esta razão, sofrer a devida dosagem de bom senso para que mera irregularidade formal, que não se configura como devassidão ou ato ímprobo, não seja enquadrado na presente lei, com severas punições. […].
74
Neste sentido o STJ já decidiu:
No caso específico do art. 11, é necessária cautela na exegese das regras nele insertas, porquanto sua amplitude constitui risco para o intérprete induzindo-o a acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público e preservada a moralidade administrativa.
75
O art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa versa sobre os atos que
atentam contra os princípios administrativos. Condutas ímprobas, nas quais se
identificam imoralidades. Atentar contra princípios da administração pública por
conduta comissiva exige que se descreva e se indique a natureza volitiva para tanto,
o que, embora contrário a maioria doutrinária, entende-se ser perfeitamente
possível, diante de uma omissão pela implantação de invasões e parcelamentos do
solo de maneira irregular ou clandestina independente do dolo ou má-fé do
administrador, caracterizar-se como ato ímprobo.
Deverá, portando, ser indicado ou comprovado que tal omissão deriva
de um elemento volitivo de caráter negativo por parte do Prefeito, a indicar violação
aos princípios norteadores da Administração Pública, pois simples omissão,
74
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 382.
75 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 480387 / SP, 1ª Turma. Relator: Min.
Luiz Fux. Diário de Justiça da União, 24 maio 2004, p. 163.
A tutela coletiva penal, civil e administrativa de ocupações clandestinas e irregulares 145
infelizmente, com poucas doutrinas contrárias, desacompanhada de vontade
orientada ao descumprimento da lei não caracteriza ato ímprobo.
Entretanto, em determinadas circunstâncias, de risco a pessoas e a
comunidade, principalmente em áreas sensíveis, de notório conhecimento e ciência
das autoridades públicas, constantes dos Planos Diretores, bem como a indicação
direta, objetiva e calcada em elementos dos fatos que caracterizariam tal elemento
de vontade livre, consciente e deliberada em não cumprir a lei, poderá o mesmo ser
enquadrado com ato de improbidade, mesmo na modalidade culposa.
De mesma forma, podemos elencar os princípios norteadores da
própria lei como o do interesse público, da motivação e da finalidade, da
proporcionalidade e da razoabilidade, porquanto incidem eles tanto na
individualização de uma conduta como ímproba quanto na aplicação das sanções
cominadas a tal ato; tudo com vista a demonstrar que o foco dos atos tem de estar
voltado para o respeito aos princípios constitucionais da boa administração pública.
Esta assertiva, inclusive, é o conteúdo da dissertação de Cláudio Dutra
Fontella, na qual procedendo a uma interpretação sistemática do artigo 11 da Lei n.
8.429/92, concluiu pela possibilidade de cometimento de improbidade administrativa
por violação de princípios na modalidade culposa, apesar de o dispositivo a ela não
se referir. 76
76
FONTELLA, Cláudio Dutra. Improbidade por violação dos princípios da administração: uma abordagem sistemática do art. 11 da Lei n. 8.429/92. 2008. 148 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
Conclusão 146
CONCLUSÃO
Existem conflitos dos princípios da nossa Constituição Federal com o
Código Civil Brasileiro e entre esses princípios e a vivência concreta de uma
ocupação de terras urbanas. Esse confronto, entre princípios de racionalidade social
nacional com a realidade existencial de grupos humanos sem-teto, é de valor
inestimável para o entendimento da natureza complexa do fenômeno de ocupação
de terras urbanas.
A questão da moradia deve ser discutida integrada a discussões
contemporâneas de urbanismo e planejamento territorial, como os conceitos de
cidade compacta e cidade periférica, funções do cinturão verde e áreas agrícolas.
A questão ambiental se apresenta por meio do conceito de
sustentabilidade ambiental dos assentamentos humanos, da equidade das
condições de vida, qualidade de vida e biodiversidade. Os métodos respectivos se
embasam em pesquisas recentes sobre habitação, meio ambiente urbano e
sustentabilidade.
De modo geral, do estudo se extraiu um consenso tácito quanto ao
prejuízo público já ocorrente em função dos assentamentos irregulares. Tratou-se de
levantar questões importantes a serem consideradas na busca de soluções de
regularização, com o cuidado de não se perder na discussão estéril de que tais
ocupações são, em sua maioria, incompatíveis com a preservação do meio-
ambiente. Este argumento, não obstante constituir constatação da realidade, não
enfrenta o problema, quedando-se inerte diante da situação posta e,
paradoxalmente, termina por agravar ainda mais o próprio meio-ambiente – base de
sua sustentação. Desta forma, a preocupação com a realidade esteve presente em
praticamente todos os autores pesquisados.
Foi, portanto, com esta responsabilidade, vislumbrando a diretriz do
desenvolvimento sustentável da cidade, que a questão da regularização fundiária foi
tratada durante todo este trabalho.
Conclusão 147
As novas leis alteraram diversos dispositivos legais, conforme
mencionado no trabalho, acrescentaram outros e criaram novos institutos e outras
diversas formas de aquisição da propriedade. Finalmente, instituiram a gratuidade
no Registro de Imóveis, específicos para regularizações fundiárias de interesse
social e para a primeira averbação de construção residencial.
Assim, sem sombra de dúvidas, o advento dos novos institutos legais
destinados a operacionalizar a regularização fundiária em zonas especiais de
interesse social representa um avanço para a organização das cidades e das zonas
rurais em todos os recantos do país. As ações dos Programas Estaduais e Federais
concretizam um avanço derradeiramente revolucionário na instituição de
instrumentos destinados à regularização imobiliária incidente, também, sobre a
propriedade privada, levando-se em consideração, especialmente, as dificuldades
enfrentadas pela população economicamente mais carente para o desenvolvimento
regular de processos de usucapião que, mesmo na modalidade constitucional (CF,
artigos 183 e 191), demandam estrutura de assistência judiciária disponível,
contratação de serviços técnicos de planimetria nem sempre disponíveis, além da
geração de uma natural sobrecarga de trabalho e outros custos para o desempenho
da atividade jurisdicional.
Estes novos instrumentos poderão contribuir para a regularização
fundiária de inúmeros loteamentos clandestinos e irregulares como efetivação da
função social da propriedade, do direito a moradia regular e o resgate da cidadania e
da dignidade.
Referências 148
REFERÊNCIAS
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