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Expedição ao Pico da Neblina (Eduardo Augusto)

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Livro de Eduardo Augusto, lançado pela Editora FTD (1993), em que narra sua aventura na conquista do pico da Neblina, ponto culminante do Brasil, com 3.014m, localizado na serra do Imeri, estado do Amazonas, a 687 metros da divisa com a Venezuela. A aventura ocorreu em dezembro de 1988, sendo a equipe formada pelo autor (na época, 2º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo), pelo Sargento Edson Sorrentino Séspede e pelo Cabo Aloisio Sabadin de Moura.

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Page 1: Expedição ao Pico da Neblina (Eduardo Augusto)
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93-0054 CDD-918.113

Todos os direitos de edição reservados àEDITORAFTD

Matriz Rua Rui Barbosa 156 São Paulo SPCEP 01326-01 Otel. 253-5011 Caixa Postal 8242

Telex 1130129 Fax 288-0132

Editoria de textoLafayette Megale

Assessoria editorialCélia Maria Delmont de Andrade

Preparação de originalReny Hernandes

RevisãoAlexandre Gomes Camarú

Rita de Cássia dos Santos SilvaUilson Martins de Oliveira

Edição de arte e projeto gráficoWilson Teodoro Garcia

FotosEduardo Agostinho Arruda Augusto

Edson Sorrentino SéspedeAloisio Sabadin de Moura

CapaWilson Teodoro Garcia

Coordenação de editoração eletrônicaCarlos Rizzi

Reginaldo Soares Damasceno

o sucessode nossa expedição deu-se graças aoapoio de poucas mas importantes pessoas e empresasque, desde o início, acreditaram nas possibilidades denosso projeto. São elas:

- Confecções Mara (bandeiras);- FAB - Correio Aéreo Nacional;- Nutrimental (comida desidratada);- Pantogravura (placa);- STC- Construtora;- Tenente Coronel Edson Faroro (PMESP);- Tenente Hildomar Jaime Regis (PMAM);- Tenente Edílson Matias Barbosa in memoriam

(PMAM);- Udo Krumer, da gráfica Eventos;- Paulo Sérgio Varella, fotógrafo e amigo.Um agradecimento especial a quem sempre

acreditou em mim e me apoiou durante todos osmomentos, dando-me a força necessária paraprosseguir sempre confiante - minha querida esposa,Suzana Vieira Arruda Augusto.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Cârnara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Augusto, Eduardo, 1966-Expedição ao Pico da Neblina / Eduardo Augusto.

- São Paulo: FTD, 1993. - (Coleção diário de bordo)

ISBN 85-322-0800-2

1.Arnazonas - Descrição de viagens 2. Neblina, Picoda - Descrição I. Título. 11. Série.

índices para catálogo sisternático:1. Neblina: Pico: Arnazonas: Descrição de viagens

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Lutando contra a civilização 11

2 O mundo dos ianomãmis 25

3 O encontro com a selva 39

4 O platô da serra da Neblina 54

5 O preço da riqueza 73

6 Aos pés do gigante nebuloso 82

7 Derrotados pela natureza 94

8 A cartada final 100

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À memória do capitão Edilson Matias Barbosa,da Polícia Militar do Amazonas, que, poucos meses apósnossa aventura, na qual teve papel importante, tombouheroicamente no cumprimento de sua árdua e perigosamissão.

"... os nossos esforços desafiem as impossibilidades. Lem-brando que as grandes proezas da História foram conquis-tadas do que parecia impossível. "

(Char1esChaplin)

É animador e gratificante perceber que, neste nosso mundomesquinho e egoísta, ainda há pessoas que apresentam seu carátermoldado na dignidade, honestidade, honra e, principalmente, brio.

O tenente Eduardo Agostinho Arruda Augusto é, sem dúvidaalguma, uma dessas pessoas, e mostra-nos, através de Expedição aoPico da Neblina, a importância da audácia bem conduzida,conseguindo provar que os "obstáculos existem porque todos têmmedo de ultrapassá-los".

Dificilmente alguém começará a ler este livro e interromperá sualeitura sem que chegue ao seu término. O estilo ágil, fluente e simplesque o tenente Eduardo Augusto apresenta cativa o leitor, transforman-do-o em co-participante da grande aventura, e obriga-o a devorar oconteúdo para, nele, aprender uma lição de vida: "Desistir jamais!"

Enfrentando todos os obstáculos que se lhe colocaram à frente("Infelizmente, em nosso país, quem procura andar corretamente sofremais"), o autor demonstra-nos que "o importante é o caráter doindivíduo e sua real vontade de fazer algo".

Leitor, inicie a leitura de Expedição ao Pico da Neblina eprepare-se para uma aventura repleta de desafios e decisões.

Prof. Oswaldo Beltramini JúniorAcademia de Polícia Militar do Barro Branco

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Localizado no extremo norte do país, em meio à imensa florestaamazônica, que o protege da aproximação de intrusos, o pico daNeblina, com 3014 metros de altitude, é o ponto culminante do Brasil.Está totalmente em solo brasileiro, no estado do Amazonas, a 687 metrosda divisa com a Venezuela.

Meu desejo de atingir o pico da Neblina surgiu em agosto de1985, quando o Brasil inteiro acompanhou pela TV a tentativa frustradado Exército de chegar a seu cume. A expedição foi liderada pelo Batalhãode Forças Especiais, tropa de elite formada por verdadeiros "Rambos",preparados para o cumprimento das missões mais complexas. Entretanto,mesmo com o apoio de helicópteros (que foram até a base do pico) e umainfra-estrutura própria, não conseguiram cumprir a missão, vencidos pelofrio e por ventos de mais de 100 quilômetros horários. Nessas tentativas,além de uns poucos estrangeiros, apenas uma equipe brasileira possuíao mérito de ter atingido o ápice do pico da Neblina, em fevereiro de1979. Esses pioneiros pertencem ao Clube Alpino Paulista. São eles:Adalbert KoIpatzik, Galba Athayde e Michel Bogdanovicz.

O "Projeto Neblina" começou a maturar em 1987. A idéia eraconseguir montar uma equipe para realizar uma expedição em dezembrodo mesmo ano. Foram meses de preparação e muito estudo, pesquisandotudo sobre a região, estudando a fundo sobrevivência na selva e tudo quetrouxesse informações sobre os índ ias, em especia Ios da nação ianomâm i,que vivem na região próxima à base do pico da Neblina.

Foi muito difícil escolher a equipe perfeita para compor a expedi-ção. No início procurei especialistas no assunto, pessoas de excelenteporte físico e saúde de ferro. Achava muito importante um currículoextenso, repleto de cursos de sobrevivência e operações especiais. Tudobobagem! Foi preciso quebrar a cara para chegar à conclusão de que oque realmente importa é que a pessoa, antes de mais nada, esteja muitodisposta a assumir os riscos e prazeres de uma aventura desse porte.

Apesar do esforço, faltou patrocínio, faltou entrosamento daequipe, e o projeto não aconteceu.

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Emfevereiro de 1988, quando no serviço de ronda do policiamen-to na área central de São Paulo, passei pelo Quartel do Comando doCorpo de Bombeiros para rever um colega, o tenente Del Rey. Ao chegarem sua sala, ele foi logo perguntando se eu já tinha conseguido escalaro pico da Neblina. Respondi que o projeto não havia dado certo e ele,então, começou a rir e a debochar, pois toda a divulgação que eu tinhafeito não dera em nada.

Sei que ele não fez por maldade, mas aquilo me deixou furioso.Saí dali bufando de raiva e um sargento recém-formado, que trabalhavacomigo havia apenas uma semana, perguntou-me se estava tubo bem.Olhei para ele fixamente e perguntei sem mais rodeios:

- Edson, vamos escalar o pico da Neblina?

- Vamos embora - respondeu ele entusiasmado. - Estou prontopara o que der e vier.

A partir daí os preparativos do "Projeto Neblina" recomeçaram,com a assessoria do Sargento Edson Sorrentino Séspede, uma pessoasimples, humilde, mas dotada de uma invejável força de vontade evibração. Baixinho, com 29 anos de idade, de porte compatível à suaaltura, não se destacava nas atividades físicas, sendo inclusive fraco emcorrida. Para piorar era fumante. Não tinha a experiência desejável nemaptidões especiais de alpinista, mas ao longo do planejamento ele foi serevelando o companheiro ideal.

Aloísio Sabadin de Moura, chegou bem depois, quando eu eEdson já estávamos pondo em prática as solicitações para o CAN, IBDFe Funai. Era o mais forte e brincalhão da equipe. Era o único que sabianadar, embora também não fosse muito experiente. Era cabo da PolíciaMilitar e tinha 24 anos.

Com 22 anos e um currículo que continha apenas uma formaçãode cinco anos na academia militar, cabia a mim aproveitar o que essesdois possuíam de melhor para, juntos, atingirmos com eficácia nossoobjetivo. Sabíamos que não seria fácil e era exatamente por isso queestávamos ali - tínhamos uma grande determinação. Chegar ao cumedo pico da Neblina, custasse o que custasse.

e~!

LUTANDO CONTRA A CIVILIZAÇÃO

[;1icw.a ~ na hrna do-~. O saguão da BaseAérea de Cumbica estava a cada minuto mais cheio. Erammilitares e parentes que esperavam uma vaga no pequeninoBandeirante do Correio Aéreo Nacional. Apesar de nossasvagas já terem sido confirmadas na data anterior, nós estáva-mos nervosos, pois era mais que evidente que não cabia tantagente no avião.

O cabo da Aeronáutica, responsável pela triagem dospassageiros, iniciou a chamada. Pesava cada bagagem,anotava numa prancheta, colava uma etiqueta e a colocava nocarrinho, chamando em seguida outro passageiro.

Logo fomos chamados. Nossa bagagem: quatro mochilasgrandes, uma média, uma pequena, duas bolsas médias, a bolsacom o equipamento fotográfico e dois sacos enormes, todosabarrotados: 180 quilos, exatamente o triplo permitido para nóstrês. Nossa bagagem foi etiquetada, mas posta de lado. Ficamospreocupados. Não podíamos deixar nada para trás. Tentamosexplicar a situação ao cabo, que nos aconselhou:

-Conversem com ocomandante, eleéo único que podeautorizar o embarque da bagagem.

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Após mais espera e muito nervosismo, obtivemos finalmentea permissão para embarcar com todo o nosso equipamento.

O avião, um Bandeirante, era pequeno e apertado. Porser de carga, os passageiros sentavam-se numa espécie debanco feito de fitas entrelaçadas, algo bastante rústico e poucoconfortável. O comandante ligou o motor e, durante aquelespoucos minutos até levantar vôo, disputamos as janelas para asúltimas despedidas. "Adeus, Suzana. Eu sei que voltarei a vê-Ia.Nós vamos conseguir ... "

Manaus, uma escala perigosa

A viagem não foi lá muito agradável, mas me distraífotografando. Edson cochilava, acordava, fumava um cigarro,fazia algum comentário e voltava a cochilar. Sabadin permane-ceu a viagem inteira escrevendo o que houve na base aérea edescrevendo os primeiros passos de nossa aventura.

Fizemos escala 'em Campo Grande, Cuiabá, Vilhena (umpequeno campo de pouso cercado de nada) e Porto Velho. EmVilhena, atrasamos duas horas os ponteiros de nossos relógios,tendo em vista a diferença de fuso horário. Lá conversei com ocomandante e seu co-piloto. Eles riram quando lhes contei sobrenosso objetivo de escalar o pico da Neblina. Duvidavam queretornássemos vivos, dizendo que isso era coisa de louco.

Era sempre assim. Ou nos chamavam de loucos oupensavam que era mentira. Praticamente ninguém acreditava eos poucos que diziam acreditar provavelmente faziam isso sópara nos agradar.

Algumas vezes isso me punha medo. E quando o coman-dante riu de nós, confesso ter suado um pouco ... de medo.

Após treze horas de vôo, estávamos sobre a imensafloresta amazônica, bem próximos de Manaus. A vista eramagnífica. A floresta era um tapete verde sem fim, recortado porinúmeros e tortuosos cursos d'água de tamanhos e formatosvariados. Pude identificar o rio Madeira, que despeja no

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Amazonas as águas vindas de Rondônia, onde fizemos a últimaescala. Contemplei maravilhado o encontro das águas do rioNegro, de coloração escura mas cristalina, com as do rioSolimões, de cor clara e barrenta, formando o rio mais cauda-loso e cheio de vida do planeta: o Amazonas, que permanecebicolor por muitos quilômetros, visto que as águas não semisturam facilmente.

Eram quase seis da tarde quando aterrissamos na BaseAérea de Manaus. Fomos recebidos por Malveira, Edílson ejoséCarlos, todos ex-colegas de academia. Foi muito bom revê-los.

Era primavera. A intensa umidade do ar me sufocava. Foimuito difícil acostumar-me com aquilo. A ternperofuro era alta eo sol imperava a maior parte do tempo. E típico da região. Nofim da tarde cai uma chuva forte, mas logo o sol volta impiedosoaté o final do dia.

Colocamos a bagagem no carro do Edílson. Meuscompanheiros ficaram no 4º Batalhão, e eu fui para a casa doEdílson, onde permaneceria até nosso embarque para SãoGabriel da Cachoeira no dia 14 de dezembro, dali a 3 dias.Aproveitamos para conhecer Manaus.

O povo de Manaus é muito hospitaleiro e alegre.Formado por uma mistura de raças, na qual predomina osangue indígena, são pessoas bem morenas, de olhos umpouco puxados e de cabelos bem lisos. Possuem sotaqueparecido com o do carioca e utilizam muitas gírias e costumesnordesti nos.

Na manhã seguinte fomos ao quartel do ComandoGeral. O capitão Bonates nos recebeu muito bem, levando-nosà presença do chefe do Estado-Maior, coronel Osório.

Quando relatamos nosso objetivo, o coronel se assustou.Disse que era uma grande loucura e que seria impossível realizara escalada porque na região do pico da Neblina estavahavendo um sério conflito entre garimpeiros e a Polícia Federal,e poderíamos acabar morrendo no meio dessa batalha.

Pacientemente, expliquei-lhe estar ciente de tudo isso eque nossa aventura fora minuciosamente preparada, fruto de

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anos de estudos e ensaios: muitos estágios, palestras, leituras eentrevistas com pessoas que conheciam a região e seus proble-mas. Ele, rindo zombeteiramente, perguntou que experiência demata possuíamos. Ao responder que fazíamos treinamento namata atlântica, seu deboche aumentou:

- Sua experiência em uma pequenina mata não seequipara às dificuldades de nossa floresta. Conheço-a muitobem, pois fui do C1GS (Centro de Instrução e Guerra na Selva)e sei que vocês não são páreo para ela. Além disso, como vocêsjá sabem, o Exército já tentou duas vezes atingir o pico daNeblina e não conseguiu nem chegar perto.

Apesar de não acreditar em nossaspossibilidades, ele prometeuajudar fazendo contato com o VII COMAR, para conhrrnor nossaspassagens no vôo para São Gabriel da Cachoeira.

Nas bancas de jornal as manchetes eram sempre asmesmas: "Invasão da serra da Neblina por garimpeiros","Ianomâmis exigem providências da Funci". "Garimpeiros XPolícia", "Tensão em área ianomâmi"

Na manhã do segundo dia em Manaus, pude finalmenteconfirmar nossos nomes no livro de passageiros do vôo paraSão Gabriel da Cachoeira. Havendo o vôo, embarcaríamos.Pronto. Estava tudo resolvido.

Resolvemos passar no quartel do Comando Geral everificar com o capitão Bonates o que o chefe do Estado-Maiorhavia acertado para nós. Lá chegando, encontramos o capitãologo na entrada e este, meio nervoso, nos conduziu rapidamen-.te para um canto dizendo:

- O comandante de vocês, lá de São Paulo, exige oretorno da equipe imediatamente. O coronel Osório está atrásde vocês.

Quase caí duro no chão.

- Mas por quê? O que fizemos?

- O negócio é o seguinte: ele telefonou para São Pauloe contou sobre os problemas da região. Disse que vocêsestavam loucos e que morreriam aqui. Aí o comandante de

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vocês exigiu o retorno imediato para São Paulo. E mais ... Eleentrou em contato com o comandante do VII COMAR e mandoucancelar as vagas de vocês no avião.

Era só o que faltava. E agora? O que fazer?

- Capitão, pelo amor de Deus, o senhor não viu a gente.Deixe-nos desaparecer do mapa. Mas desistir de nosso objeti-vo, nunca! Ninguém vai nos fazer desistir agora. Ninguém!

- Tudo bem. Eu não vi vocês. Tratem de sumir - disseo capitão apertando minha mão. - E boa sorte.

Saímos rapidamente dali. Estávamos arrasados. Nem anossa corporação acreditava em nós. Tudo era obstáculo. E euque sempre pensei que a maior dificuldade para escalar o picoda Neblina fosse apenas a selva com seus perigos naturais. Masnão. As dificuldades estão na burocracia, no descrédito e nainveja, existentes aqui mesmo na cidade. Na selva, certamenteisso não aconteceria. Lá estaríamos distantes de todos essesdefeitos da civilização.

De um orelhão, liguei para o 1 º Batalhão e chamei otenente Edílson. "Por favor, venha rápido!" Em menos de 30minutos ele chegou. Explicamos a situação para ele, que, deimediato, resolveu nos esconder em sua casa até o embarquena manhã seguinte. No caminho, passamos pelo 4º Batalhãopara pegar a maior parte da bagagem, coisa que fizemos demaneira bem discreta.

Da casa de Edílson, na primeira oportunidade, ligueipara o VII COMAR.

, - Tenente, eu já lhe falei. Amanhã às 7. Suas vagasestão garantidas. Saindo o avião, os senhores irão com certeza.

Agradeci e desliguei o telefone bem depressa, antes queele mudasse de idéia. Eu tremia inteiro.

- Será que o capitão não inventou aquela história? -supôs Edson.

- Só pode ter acontecido uma coisa. O coronel entrou emcontato diretamente com o brigadeiro. Só que ele não sabe que

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nosso pedido foi feito há mais de 2 meses, via documentaçãooficial. Isso porque meu comandante, o tenente-coronel EdsonFaroro, destinou o pedido ao chefe do Estado-Maior do COMARe não ao brigadeiro, que é o comandante. Portanto há umasolução. Amanhã cedo nós embarcaremos discretamente, esperan-do o avião escondidos num canto, sem nem passar perto doCOMAR. Com um pouco de sorte, logo estaremos longe daqui.

Aproveitei o telefone e liguei para a diocese salesiana deSão Gabriel da Cachoeira para conversar com o bispo DomWalter Ivan de Azevedo, que conheci em São Paulo, muitosimpático e educado. Mas nossa maré de azar estava em oltc.Não sei por que motivo, ele me tratou friamente, negoualojamento dizendo que nós deveríamos procurar os quartéis doExército e apenas nos desejou boa sorte, secamente.

Aquela noite foi terrível. Ninguém conseguiu dormir.

o difícil embarque

Às cinco e meia nos levantamos, vestimos nossos unifor-mes e preparamos o material que carregaríamos. Deixamos oresto para apanhar na volta da expedição.

Fomos até a calçada e ficamos esperando Edílson, que'nos levaria ao aeroporto.

Edílson chegou logo e nos levou no tático móvel da PMAM.Em menos de 15 minutos já estávamos em frente ao aeroporto e,muito agradecidos, nos despedimos de Edílson, que nos disse:

- Eu boto fé em vocês! Sei que vão conseguir!

Escolhemos um canto para colocar nossa bagagem, quenovamente nos traria problemas pelo peso, e ficamos esperando.Do lado de fora do saguão, colada numa parede, uma relaçãocontinha nossos nomes, relaxando um pouco nossa tensão.

Já eram 7 horas e nada da chamada para o embarque.

O tempo ia passando e nada de o avião chegar. Nósiríamos num Búfalo do Correio Aéreo Nacional, que faria escala

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em quase'todos os pontos do alto rio Negro, começando por SãoGabriel da Cachoeira e passando depois pela Missão Salesianade Maturacá, ponto final do nosso contato com a civilização.

Pelas informações obtidas, pernoitaríamos em São Gabriele na manhã seguinte iríamos para Maturacá. Isso melhoravamuito nossa situação, pois um contato anterior na cidadepoderia ser muito útil. Lá eu deveria procurar o tenente Hiltomar,delegado da cidade e amigo de Edílson e Malveira.

Já eram quase duas horas da tarde, quando um soldadodo CAN avisou-nos que o võo fora cancelado e que deveríamosvoltar no dia seguinte.

O que mais faltava acontecer? Tudo estava dandoerrado. Pegamos nossa bagagem e tomamos um táxi até a casade Edílson. Ele não estava.

Aproveitei para ligar ao COMAR. Falei com o caboPaulo, que me garantiu: "Tudo bem, vou anotar aqui e amanhãos senhores não terão problemas". Até que enfim algo começoua funcionar.

Quase à noite, Edílson chegou e lhe contamos nossasituação. Na manhã seguinte pegaríamos um táxi e tentaríamosoutra vez.

Acordamos cedo e rumamos para o aeroporto. Fomoschamados para o saguão de embarque. Entramos na pista doaeroporto e caminhamos em direção ao Búfalo, que estava auns 100 metros de distância. Só faltavam poucos metros paranos livrar daquela agonia.

Fomos os últimos a embarcar, mas finalmente decolamos.Expedição, avante!

Problemas em São Gabriel da Cachoeira

O vôo para São Gabriel foi magnífico. A rampa deacesso possuía um vão de pouco mais de 6 milímetros, que meproporcionou um ótimo observatório. Vi a mudança da floresta,

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da alagada para a de terra firme; observei as várias elevaçõesisoladas que se encontram perdidas no meio daquele tapeteverde e seus vários rios, todos desembocando no majestoso rioNegro. Este, de águas escuras mas transparentes, não escondeseu fundo arenoso e desenhado pela correnteza. Pena que dalinão dava para fotog rafar.

Foram duas horas e meia de viagem. Aterrissamos nopequenino aeroporto de Uaupés (antiga denominação dacidade), de pista já asfaltada e com uma infra-estrutura aceitávelpara a região. O avião partiria para Maturacá no dia seguinte,às 7 horas.-

Conversamos com o piloto do Búfalo e seu co-piloto. Nãozombaram de nossa aventura mas reconheceram ser muito difícilnosso sucesso.

Juntei-me à minhaequipe no saguão doaeroporto e fomos procu-rar carona, pois o aero-porto de São Gabriel daCachoeira ficava a maisde 10 quilômetros da ci-dade. Sabadin observa-va tudo e narrava paraseu gravador.

Naquele instantechegou uma pick-up e,dentro dela, pude identifi-car o bispo Dom Walter.Eledesceu rapidamente ecomeçou a ajudar as frei-ras que vieram conosco acoloca rsacos e encomen-das na caçamba.

o desembarque em São Gabriel.

Fui cumprimentar Dom Walter, que me recebeu comeducação mas frieza. Ofereceu-me de má vontade uma caronaque, por instinto ou orgulho, recusei. Dirigi-me a um tenente decomunicações do Exército, que estava sentado num banco, eperguntei-lhe como iria para a cidade. Ele me informou que umcaminhão [ó estava para chegar e que poderíamos aproveitara carona.

O caminhão chegou cheio de índios recrutas, de calçõesverdes e camisetas camufladas, que em poucos minutos carre-garam todo o material trazido no Búfalo para o quartel local.Subimos na caçamba junto com aquele tenente e os recrutas eseguimos por uma estrada de terra batida muito bem-feita atéSão Gabriel da Cachoeira.

O município de São Gabriel da Cachoeira, antigaUaupés, está situado no alto rio Negro. Seus limites cercam umaárea de grande potencial aurífero que atrai garimpeiros detodos os pontos do Brasil. Possui mais de 20 mil habitantes, namaioria índios, garimpeiros e militares.

São Gabriel da Cachoeira.

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Só se pode chegar a essa cidade de avião ou de barco,após dias de navegação, para ultrapassar 1037 quilômetrosdo rio Negro contra a correnteza.

Fomos deixados em frente à delegacia da cidade, de frentepara uma extensa praia, às margens do rio Negro. Nessa alturao rio encontra inúmeras pedras, formando corredeiras (para aregião, verdadeiras cachoeiras), e daí o nome da cidade.

Na delegacia encontramos apenas um cabo que nostratou muito bem e logo nos alojou num dos cômodos. Nãohavia camas. Aliás, na Amazônia, cama é algo raro. "Dormiré em rede, que é muito mais fresco e confortável."CoIocamosnossas coisas num canto e atravessamos a rua, onde, bemdefronte à delegacia, havia um bar em forma de quiosque.

O calor estava intenso e nos afundamos em refrigerantes. Ovisual era magnífico. Bem distante, do outro lado do rio, à nossa

esquerda, estava a serrade Curicuriari, a famosaserrada Bela Adormeci-da, assim chamada porseu contorno sersemelhan-te ao desenho de umamulher deitada.

As negras águas das...-::l!l ••• __ ••.•.•. ..I . corredeiras do rio Negro.

Serra de Curicuriari, aBela Adormecida.

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A cidode era linda e a visão daquela praia era uma tentaçãopara um banho nas águas negras daquele imponente rio.

- Dá vontade de pôr um calção e cair na água - disseSabadin.

- Tem carandiru aí,ah, ah! - brincou Edson.

- Carandiru? - perguntei. - Não é candiru, não?

Candiru é um pequeno peixe carnívoro, fino comoagulha, que penetra nos orifícios naturais do corpo, principal-mente ânus e uretra.

O pessoal do quiosque era bastante divertido e perguntouse estávamos fazendo turismo ou algum serviço especial. Nova-mente fornos alvo de risadas quando contamos nosso projeto.

- O quê? Pico da Neblina? Impossível, nem mesmo asForças Especiais conseguiram. Ninguém chega lá.

Contamos-lhes das expedições anteriores, mas eles con-tinuavam dizendo:

- Não é brincadeira, não. Vocês vão é pegar umamalária, lá, isso sim. Quando vocês chegarem lá para os 3000metros, vão olhar e dizer assim: O quê, meu amigo? Todaaquela cerração, aquela nuvem assim, debaixo de vocês. Seolharem por címa, só vão ver aqueles colchões de nuvens e ovento forte soprando ... vuschhhhhh ... vuschhhhh ...

Há muito misticismo criado em torno do pico da Neblina.Muitos dizem que o lugar é sagrado e que ir até lá significadesafiar os deuses.

- Não estamos querendo abater o moral de vocês, não ...

- Nós estamos escutando isso desde São Paulo -observou Edson. - Se vocês fossem os primeiros ...

Ali ficamos ouvindo muitas histórias da região. Um delesnos informou que em Maturacá, onde ficava a missão do padreGalli - um mito vivo do lugar -, havia "voadeiras", ou seja,barcos de alumínio movidos a motor de popa. Calculamos queprecisaríamos de mais de 300 litros de gasolina para a subidado rio Cauaburi. O pessoal do quiosque nos contou, ainda, que

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vários garimpeiros estavam na base do pico da Neblina, poishaviam conseguido fugir do cerco da Polícia Federal.

Após o almoço, retornamos à delegacia e encontramoso delegado jogando dominó com seus subordinados. O tenenteHiltomar Jaime Regis, pessoa simples e educada, recebeu-nosmuito bem e quis saber detalhes de nossa expedição. Porcoincidência, o sargento Ferreira, que era delegado antes deHiltomar, estava de licença e andava garimpando na serra daNeblina. Ele seria um contato muito importante, se o encontrás-semos naquele inferno verde.

- Aventura ousada, hein? Vocês vão precisar de muitasorte.

- E de muita gasolina também - disse eu. - Onde ficao posto?

O tenente Hiltomar fez uma careta e disse:

- Xii! Vocês estão com um sério problema: o único posto dacidade faliu e fechou. Ouern tem carro por aqui mantém umareserva de gasolina em casa. Eque, de vez em quando, uma balsachega com vários tambores e vende para o pessoal. Podemostentar comprçlr gasolina do BEC - Batalhão de Engenharia eConstrução. Esó conversar com o capitão Siqueira. Eleé muito meuamigo e sempre está aqui no quiosque, tomando uma cervejinha.

Hiltomar chamou um táxi (incrível imaginar um táxinaquela cidade, mas havia). Era um Corcel II vermelho, todoarrebentado e enferrujado. O taxista era um tal de De Castro,um garimpeiro da região que estava meio parado. Ele possuía,amarrada num cordão no pescoço, uma pequena pepita queele mesmo havia extraído.

Fomos até o centro comercial da cidade. Hiltomar melevou até uma loja de artesanato indígena, onde funcionava,nos fundos, um comércio de ouro. Lá conversamos com EduardoCristo, o Grego, conhecedor da região através de cartasdetalhadas e vôos de helicóptero.

Ele achou impossível a idéia de escalar o pico, dizendoentretanto não ser muito difícil chegar até suo base, onde muitos

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garimpeiros estavam. Engraçado, ele achava mais fácil a faseque nossa equipe considerava de maior dificuldade: a travessiada selva amazônica.

Saindo da loja, Hiltomar encontrou o chefe da Funai dacidade e, após contar-lhe nossa missão, principalmente apósmostrar-lhe a autorização concedida pela Funai em Brasília, eleescreveu uma carta endereçada ao funcionário Chico e aoíndio Júlio Góes, irmão dos tuxauas de Maturacá, solicitandoque fôssemos bem recebidos e auxiliados para que pudéssemosreclizcr nosso objetivo. Dali retornamos ao quiosque.

- Daqui a pouco o capitão Siqueira passa aqui eacertaremos o problema da gasolina.

Meia hora depois, o capitão João Marcos de Siqueirachegou, cumprimentou-nos, pediu logo uma cerveja e sentou-seà nossa mesa.

Apesar de achar a idéia meio maluca, ele ficou de·arrumar o combustível. Era só passar no quartel, na manhãseguinte, e retirar com ele o vale para pagar à tesouraria.

- Mas o avião decola amanhã às 7 horas! - disse eudesesperado.

- Tenho quase certeza de que ele fará mais de umaperna para Maturacá, pois tem uma quantidade enorme dematerial e muitos soldados que virão para cá amanhã, e, numaúnica viagem, não dá. Só não sei se ele vai querer transportaro combustível.

Às 8 da noite fomos a um bar dançante, onde encontra-mos o comandante. Hiltomar e eu nos apresentamos e explica-mos a situação.

- Tudo bem. Amanhã faremos duas pernas paraMaturacá. A segunda será ao meio-dia. Esteja lá no horário eeu levarei o combustível.

- E quanto aos meus amigos? - perguntei. - Poderãoir na primeira perna com todo o equipamento?

Ele respondeu que sim.

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Próxima parada: Maturacá

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Acordamos antes das 6 horas e vestimos nossas fardas.Tomamos café e, pouco depois, Hiltomar chegou com umCorcel emprestado, e fomos todos naquela lata barulhenta queandava movida a muita reza, rumo ao aeroporto.

No aeroporto troquei as últimas palavras com o comandantedo avião, que confirmou todo o combinado e levou meus compa-nheiros a Maturacá. De lá fomos rapidinho para o BEC. Procureio capitão Siqueira, mas ele chegou quase às 9 horas.

Providenciados todos os papéis, paguei na tesouraria os400 litros de gasolina e algumas latas de óleo para motor doistempos. Isso deveria ser o suficiente para o nosso gasto. Depoisacertei com ele em qual caminhão levaria e onde pegaria ocombustível. Antes das 1 1 horas já estávamos a caminho doaeroporto de Uaupés.

A essa altura Edson e Sabadin já deveriam estar conver-sando com o padre e os tuxauas. Espero que estejam se saindobem - pensei cruzando os dedos.

A espera no saguão do aeroporto foi breve. Logo o Búfaloaterrissou. Embarcamos o combustível. O Búfalo estava vazio;de passageiros apenas eu e um garoto, possivelmente índio.

Porvolta de uma da tarde, avistamos a missão, uma clareiraincrustada na floresta. Às margens do ca naI de Matu racá, afl uentedo rio Cauaburi, encontramos duas aldeias ianomâmis da tribokohoroxitari, abrigando cerca de 620 indígenas semi-aculturados.Situam-se uma de cedo lado da missão, a uma distância aproxima-da de 300 metros. A nossa frente erguia-se bastante imponente aserra do Imeri, um enorme maciço, onde, em algum ponto dentrodaquela espessa neblina, escondia-se nosso objetivo.

A serra do Imeri é uma fronteira natural entre o Brasil e aVenezuela. É dividida em três serras: Pirapucu, Baruri e Neblina.A serra da Neblina é a que possui as maiores altitudes, estandoali, além do ponto mais alto do Brasil, os picos 31 de Março edo Cardona, respectivamente o segundo e o nono na escalaaltimétrica do país.

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o MUNDO DOS IANOMÂMIS

4~fU1.#1.a..pUtack/.elvzakdda. Muitos índios, namaioria crianças, rodearam o avião. Ao descer, localizei Edsone Sabadin ao lado de um índio falante.

-Júlio, este é o tenente Eduardo Augusto, o comandanteda expedição - disse Edson quando me aproximei.

- Muito prazer, tenente. Seja bem-vindo à nossa terra.

- Este é Júlio Góes - Edson explicou. - Ele é orepresentante da nação ianomâmi.

- Ah, sim - lembrei-me. - Tenho uma carta do chefeda Funai de São Gabriel endereçada a você.

Depois fui apresentado ao tuxaua Daniel, líder da aldeiade Maturacá. Ali também estavaJosé Lima, funcionário da Funaidestacado em Maturacá, para quem fiquei de mostrar asautorizações expedidas pelo governo federal.

- Alguma novidade, Edson? - Perguntei.

- O pessoal aqui é bacana, sabe? Você precisa ver só opadre Carlos. Ele é o máximo! Você vai conhece-Io lá na missão.

Fundada em junho de 1954 pelo padre sergipanoAntônio Góes, que desde 1949 já mantinha contato com osianomâmis, a Missão Salesiana de Maturacá tem como objeti-

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vo a aculturação do índio, preparando-o para a integraçãocom a sociedade moderna. Instalada em um enorme galpão dequase 1 000 metros quadrados, de estrutura de ferro e cobertocom telhas de zinco. Possui uma modesto enfermaria, umbarracão com maquinário, barcos e motores de popa, umcampo de pouso para o Búfalo da FAB (que mensalmenteabastece a missão com produtos de sua necessidade), umacapela e uma escola, onde, além do ensino básico, proporci-ona um aprendizado técnico, como os métodos do preparo dosolo para o cultivo e noções de nivelamento para a construçãode palhoças. Hoje a missão é liderada pelo padre italianoCarlos Galli, que chegou em janeiro de 1979, vindo de lçana,outro município da região do alto rio Negro.

Fomos recebidos por ele.

- Como vai você? Tudo bem? - perguntou o padre numtom engraçado e com forte sotaque italiano. - Vamos arrumarum lugar para vocês se acomodarem. André! - O padrechamou um índio. - Leve-os até a enfermaria e depois traga-os para comer alguma coisa.

Seu André era um índio tucano de meia-idade, emprega-do da missão. Era o auxiliar direto do padre.

Na missão não víamos muitos índios. Eles ficavam nasaldeias, que dali também não conseguíamos avistar. Naprimeira oportunidade meu objetivo seria, além de batalharatrás de um guia, fotografar as aldeias, registrando os usos ecostumes de um povo a respeito do qual pouco se conhece.

A meu pedido, o padre determinou a seu André que noslevasse até Ariabu. A aldeia fica ao norte da missão, no rumoda cadeia de montanhas. Lá conhecemos o temido tuxauaJoaquim, que falava muito pouco nossa língua. Após pedir-lheautorização, comecei a fotografar a aldeia. Ela tem um formatomeio retangular, com as palhoças dispostas lado a lado, defrente para o centro da aldeia, fechando um enorme pátio queserve para reuniões e danças tribais.

As palhoças são feitas de troncos e barro, e cobertas desapé. No centro da aldeia há uma cantina (bazar) e um salão·

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de baile, marcas do aproximação com o civilizado. A palhoçado tuxaua e as de seus parentes possuem telha de zinco. Ládentro, um gerador, uma vitrola e uma geladeira, utilidades queapenas os tuxauas podem dar-se ao luxo de possuir.

A aldeia de Ariabu.

Tuxaua é O líder, o chefe supremo, dono, de todas asmulheres da tribo e das vontades de seu povo. E realmente apessoa mais respeitada de toda a aldeia; sua vontade é umaordem e os ianomâmis a cumprem espontaneamente, semreclamações. Joaquim é o tuxouo mais temido e respeitado detoda a nação ianomâmi. Descendente de uma linhagem degrandes líderes guerreiros, ele é constantemente procurado porlideranças de outras tribos, que via iam dias no meio da florestaem busca de seus conselhos.

Após as fotos e um pequeno passeio pela á1deia, seu Andrénos levou até o rio Ariabu, um afluente do canal de Maturacá.

Lá encontramos indiozinhos brincando na água escura etransparente. Segundo seu André e a minha leitura da cartatopográfica da região, aquele rio nasce exatamente no pico daNeblina.

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Page 15: Expedição ao Pico da Neblina (Eduardo Augusto)

I! .1

_ Ah riozinho! Quero conhecer sua nascente - pediaEdson àquel'as águas escuras e frias, que pareciam desprezar

qualquer um. .Voltamos à aldeia, agradecemos e nos despedimos do

grande chefe, retornando logo à missão.

Da porta pudemos avistar algo que a neblina nã.o noshavia deixado ver antes. As serras de Pirapucu e Barurl que;imponentes, davam um visual magnífico para aquela paisagemno final de tarde. Da [onelo do lodo oposto, contemplamos aserra do Padre, uma elevação cuio per:il lembra um padreorando, com os braços abertos para o ceu.

_ Meus filhos, hora de comer. Se não comerem ficam

fracos e não escalam pico nenhum.

Era padre Carlos nos chamando para o jantar. Ele erarealmente uma figurinha rara. Fomos até a mesa, feita ~e pa~teda fuselagem de um avião, e lá enc~n_tramos uma refelçao muitosaborosa e diversificada: arroz, fellao, arara a~s?da, mutum,banana-prata, tapioca, peixe e cucura, a deliciosa uva da

Amazônia.

A cucura, saboroso uva da- região amazônica.

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o padrinho dos ianomâmis

Após o jantar e um pequeno descanso na enfermaria,fomos até o pátio de terra batida na parte interna da missão.

Sabadin estava sentado na cadeira de balanço e nós nossentamos em banquetas. Uma chuva de perguntas invadiu anoite, e o padre, sem pressa, respondia a todas, a seu modo,incluindo piadas ou fazendo um pouco de suspense.

Nascido em novembro de 1910, na Itália, Carlos Gallié o padrinho das crianças ianomômis que, carinhosamente,rodeiam o missionário e pedem-lhe a bênção. Seu nome évenerado em toda a Amazônia e o Nordeste, visto ter sidocompanheiro do maior líder espiritual que o país conheceu, opadre Cícero Romôo Batista. Ele afirmou que, antes da morte depadre Cícero, recebera das mãos dele os quatro livros secretosque contêm profecias muito importantes e interessantes para oBrasil. Ele não revelou tais segredos, alegando que o país aindanão estava preparado para isso, mas adiantou que passaría-mos por uma grande transformação política, que seria inflama-da em Sôo Paulo pela classe operária.

Apesar de italiano, ele empunha a bandeira brasileiracom muito patriotismo, inclusive espalhando cuidadosamentevárias delas pela missão.

Ele falou sobre os índios e seus costumes. Explicou-nos oporquê da divisão em duas aldeias ali: Maturacá e Ariabu.Simples disputa de poder entre irmãos. Um mais velho, temidoe semi-aculturado, e outro mais jovem, com algum estudo.

A tribo Kohoroxitari engloba três aldeias: as duas deMaturacá e a aldeia de Maiá, localizada a mais de 40quilômetros dali. Por ser distante e incrustada na floresta, essaaldeia não mantém contato nenhum com a civilização, vivendopraticamente em estado primitivo. Para chegar lá, são necessá-rios dias de caminhada pela selva e, segundo o padre, detempos em tempos, sua população é dizimada pela fome.

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Perguntamos ao padre o porquê do nome Kohoroxitari, eele respondeu:

- Kohoroxitari ... - pronunciava cada sílaba pausada-mente. - Kohoro minhocaçu, um verme muito abu~da~teaqui na região; xii estrume; tari .... fedid? Kohoro-xi-tori ...estrume fedido do minhocaçu - explicou divertido.

- Esse nome - continuou - foi dado pelos antigosinimigos, quando a tribo vivia às margens do i~,a~apé Tucano,onde há abundância desse anelídeo. Mas eles la tiveram outrosnomes. Como Araribóia ... que significa habitante da terra dasararas. E arara é o que não falta aqui. E Inhewaitere, queconsidero bem mais apropriado, e que significa: os grandesderramadores de sangue.

Padre Carlos explicou o porquê da fama de serem elessanguinários.

- Simplesmente porque eles possuem <:sse instinto.Matam sem a mínima piedade. Numa hora estao calmos eamistosos, de repente estão nervosos e são inimigos de tudo ede todos. Mudam de temperamento facilmente.

- Uma tribo normalmente não se dá com a outra -contou ele -, sendo inclusive costume ianomâmi atacar outrastribos, matando os homens e raptando todas as mulheres.

-No início não foi fácil o relacionamento com os ianomâmis,cuja língua é por demais complexa e de 9ifícil entendimento. Hámuitos conflitos de idéias e interpretaçoes mal-elaboradas -explicou o missionário. - Eu não imponho n?~a aos índi~s -continuou - eu lanço a idéia católica, sem eXlgenClas, e deixo asemente qermínor por si só; aos poucos vão surgindo as opiniõese uma certa credibilidade e convicção.

Num dado instante, um indiozinho de uns 5 anos, filho deseu André, aproximou-se do padre:

- Padinho me dá uma lantéina?,

O padre emprestou-lhe a lanterna que segurava, e oindiozinho saiu feliz, correndo para a cozinha.

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Comentando com ele sobre o Parque Nacional do Picoda Neblina e o que ele achava da região, padre Carlos disse:

- A região é encantadora, insuperável e, certamente, amais bonita do Brasil.

Entretanto, a situação no parque estava bastante crítica. Aregião é o maior conjunto ecológico do planeta sob proteçãoambiental. São 2,2 milhões de hectares do Parque Nacional doPico da Neblina no lado brasileiro, somados a 1,3 milhão dehectares do lado venezuelano. Por ser um parque nacional, ~ umaregião restrita, onde caça, pesca e coleta são proibidas. E umaárea indígena, controlada pela Funai, onde o ingresso de qualquerpessoa depende de autorização do órgão. E é uma área defronteira, sob o rigoroso controle do Exército. Portanto é bastantevisada e controlada, não sendo fácil a penetração ali, pelo menoslegalmente.

Por causa de tudo isso, tivemos grande dificuldade emconseguir as autorizações para entrar na região. O DepartamentoNacional de Parques recusava nosso pedido.

As solicitações foram remetidas com mais de 3 meses deantecedência e, após muita briga, só fui receber a autorização doIBDF dois dias antes da data marcada para a viagem, e aautorização da Funai, apenas na véspera da partida.

O desespero que esses papéis me causaram até me revoltaquando penso que sem papel nenhum eu estaria ali da mesmaforma. Meu objetivo era apenas escalar o pico da Neblina, só isso.Por que então nos impedir? Estávamos fazendo tudo dentro da leie não prejudicaríamos ninguém. Infelizmente, em nosso país, quemprocura andar corretamente sofre mais. Muitos garimpeiros esta-vam por lá sem autorização, devastando a mata, extraindo metaispreciosos sem pagar impostos, mudando o curso de igarapés,pondo fogo na flora e,em alguns lugares, poluindo as águas como mercúrio.

Isso nos revoltava, mas tudo bem. Estávamos em Maturacáem condições de realizar nossa missão. E isso era o maisimportante.

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Na aldeia do luxaua Daniel

Na manhã seguinte fomos acordados pelo padre, que

deu o toque de alvorada:_ Vamos tomar café. Tá na hora de levantar.

Café, leite (em pó, pois na Amazônia leite de vaca éraridade), bolachas doce e salgada, tapioca e banana-prata.Esse era o cardápio, simples mas saboroso, principalmentelevando em consideração o lugar em que estávamos.

Após o café fomos dar uma volta ao redor da missão. Osol estava brilhando num céu praticamente sem nuvens; haviaapenas umas poucas encobrindo um trecho da serra de Baruri.

Na direção da cadeia de montanhas, pudemos ver parteda aldeia de Ariabu por trás das árvores. Seguindo a trilha queleva para a aldeia de Maturacá, atingimos um ponto ondehavia um galpão de uns 200 metros quadrados. Parecia maisum salão de forró inacabado.

Escutamos algumas risadas vindas de não muito longe. Atrilha agora descia; por entre as folhas de um [ornbeiro,identificamos o canal de Maturacá e, do outro lado, índiaslavando roupa e banhando-se.

As borboletas amarelas de Matucará.

Era a entrada da aldeia de Maturacá, que ficava do outrolado do canal. Aproximamo-nos e fomos até a margem. As águaseram mais escuras do que as do rio Negro, mas transparentes ecristalinas. Na outra margem, uns 30 metros adiante, índiaslavavam roupas e panelas ao mesmo tempo que se banhavam. Asmais idosas não usavam camisetas, deixando o busto nu. Criançasbrincavam na água, pulando de grandes pedras. Acenamos eperguntamos pelo tuxaua. Logo ele apareceu no alto do barrancoiunto a uma palhoça, com duas araras nos ombros. Fez um sinale um indiozinho, remando com as mãos, levou até nós umavoadeira, atravessando o canal. Subimos na voadeira e ele nostransportou até a outra margem. Ali onde as mulheres cuidavam desuas tarefas, centenas de borboletas amarelas desfilavam em voltapousando quase todas e ao mesmo tempo numa e noutra pedra:Parecia que o local era encantado.

Daniel nos levou para conhecer sua aldeia. Mais novaque Ariabu, a aldeia de Maturacá possui palhoças mais bemconstruídas. A disposição das mesmas é meio irregular econfusa, demonstrando uma certa desorganização. TuxauaDaniel explicou que o motivo disso foi o grande crescimento desua população, que forçou o avanço mais para o interior daselva, fazendo com que as antigas palhoças ficassem no interiordo pátio central.

O tuxaua nos mostrou o cemitério da aldeia. Era muitopequeno, com no máximo 12 sepulturas.

- Todo mundo é enterrado aqui? - perguntou Edsondesconfiado.

- É - respondeu o tuxaua.

- Não cremam mais? - perguntei.

- Não. Com a chegada do padre, esse costume mudou.Agora começaram a enterrar - explicou ele. .

Antes da chegada do padre Carlos, o tratamento dado aosmortos seguia a regra ianomâmi. Transformados em pó, os ossosdo falecido eram misturados com mingau de banana-comprida eservidos aos parentes e amigos, que comiam sem hesitaçâo. Era a

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·No chão havia um potinhocheio de um pó marrom. Ao lado,um tubo comprido de madeira.

-Isto é ebena, um extratoda planta paricá. É o pó do pajé.Vejam como funciona ...

Ele deu ordens em sua lín-gua para o pajé que se aproxi-mou rapidamente. Ele vestia ape-nas uma sunga, tinha na cabeçauma cobertura feita de pele de'macaco e no braço, um arranjode penas de arara.

Família ianomâmi à porta de sua palhoça.

o pajé aspira ebena,erva alucinógena.

A paca domesticada da indiazinha ianomâmi.

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forma de transferir a força e a sabedoria daqueles que se forampara aqueles que continuavam no dia-a-dia a lutar peja sobrevivên-cia, caçando, pescando e cultivando o solo. E a tradiçãoianomâmi, retrato de uma cultura milenar ainda presente, quemantém intactos muitos de seus usos e costumes.

Dali fomos até a entrada da casa dele. Conversamossobre os costumes da aldeia, sua subsistência, seu artesanato.

Ele nos mostrou palhoça por palhoça. Mostrou uma índiatecendo rede de algodão e outra preparando a mandioca-brava para fazer o beiju. Mais ao fundo da aldeia encontramosuma das cenas mais interessantes até então: o pajé, completa-mente drogado, dizendo palavras sem sentido.

O tuxaua nos explicou que a missão do pajé é espantar 0S

maus espíritos e que a tradição deles, neste ponto, ainda é forte.

- Que droga ele toma para ficar assim e conversar comos espíritos? - perguntou Sabadin.

- Venham comigo - chamou Daniel nos levando até aporta de uma das palhoças.

O pajé ajoelhou-se. Danielrecolheu com as mãos um poucode ebena, colocou no tubo eencaixou a ponta deste numa dasnarinas do pajé. Num forteassopro, só se viu fumaça esca-par pelas narinas do velho índioque quase caiu atordoado. Danie'lrecarregou o tubo, encaixou naoutra narina e repetiu a dose. Opajé levantou e saiu murmurandofrases mágicas que o levam àpresença dos deuses. Dessa for-ma ele entra em contato com osespíritos, parime em ianomâmi, eclama por uma colheita mais ren-dosa e pelo afastamento dos malesque adoecem o índio.

Os animais domésticos estavam presentes em toda a aldeia.Eram cães, gatos, galinhas, patos, periquitos, araras e papagaios.

Uma indiazinha nos trouxe uma pacadomesticada, mansinha e bastantedelicada, que logo conquistou nossasimpatia. Uma mucura (gambá) desfi-lava livremente pelo aldeia, e os cãesdeitavam -se em qualquer lugar.

Terminada a visito, otuxauadeixou-nos à margem do canal,próximo à aldeia, e agradecemossuo atenção e hospitalidade.

Page 19: Expedição ao Pico da Neblina (Eduardo Augusto)

Esperando pelo guia

Na missão perguntamos pelo índio Mílton, que haviaconduzido a tropa do Exército até próximo do pico em 1985.Descobrimos que ele trabalhava para o padre na missão, masque não se encontrava no momento, pois tinha saído paracaçar. O ianomãmi, quando vai caçar, costuma passar de doisa três dias no meio da floresta.

Não se sabia quando Mílton voltaria. O padre insistia emque saíssemos naquele mesmo dia, procurando outro índio paranos acompanhar.

Com o auxílio de seu André, padre Carlos conseguiu umguia. Era um índio jovem, de menos de 18 anos. Ele não pareciaconfiante e, ao perguntar-lhe se conhecia a região, respondeuque nunca tinha ido até lá, mas que poderia achar o caminho.De cara recusamos aquele guia. Decidimos partir somente como índio Mílton.

Padre Carlos estava um pouco impaciente. Perguntamoso porquê daquilo, daquela pressa. Ele explicou que os tuxauassão desconfiados e, a qualquer momento, poderiam mudar deidéia e impedir a nossa viagem. Um frio correu pela minhaespinha naquele instante. Afinal estávamos nas terras deles. Eraum risco real.

Almoçamos um pouco tarde. Estávamos nervosos com asituação, mas não queríamos demonstrar. Após a refeição,fomos ao alojamento e iniciamos a arrumação das mochilas,preparando também a mochila camuflada poro ser usada peloíndio Mílton. Muita coisa ficaria na missão.

Resolvemos passar a tarde ali, imaginando como seria aviagem pela selva. Será que nosso treinamento havia nosproporcionado condição suficiente para desbravar aquelemundo desconhecido?

De toda a Amazônia, certamente aquela era a áreamenos explorada, temida devido à fúria ianomâmi e aomisticismo que envolve o lugar. A serra é um imenso maciço

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vulcânico e uma das regiões mais belas e hostis do planeta. Ograu de umidade é altíssimo, as chuvas são intensas, atemperatura é baixa e os ventos são constantes, proporcionan-do uma sensação térmica bastante singular.

A selva, que margeia toda a base do pico, com a médiade 35 graus centígrados à sombra, é superúmida e repleta deanimais e insetos. O formigão tocandira, os mosquitos piuns eos mais variados tipos de doenças e males tropicais são apenasalguns dos guardiães do pico.

Antes do jantar, Edson veio me chamar, eufórico:

- Mílton está aí. Ele acabou de chegar da floresta!

Corremos até o pátio. E lá estava ele. Mílton, o "GrandeMílton", que fizera o maior sucesso na televisão ao participarcomo guia da não vitoriosa expedição do Exército.

Ele não falava bem o português. Mas mesmo assimconfiávamos nele. Seria nosso guia. Seu André nos levaria devoadeira até a foz do igarapé Tucano, numa viagem de 41quilômetros subindo o rio Cauaburi.

Percebemos que o padre ficara mais aliviado. Ele acon-selhou:

- Saiam amanhã bem cedo.

Levamos Mílton até o alojamento e lhe passamos suamochila.

Acertamos o horário da saída e Mílton foi à aldeiadescansar ao lado de sua família.

Mais tarde, padre Carlos chamou-nos para o jantar.

Depois de uma maravilhosa refeição (estávamos muitoanimados), tivemos a honra de receber a visita do temido tuxauaJoaquim e seu filho mais velho, Miguel, que logo o substituiriano comando da aldeia.

O tuxaua dirigiu a palavra a mim, enquanto seu filho e opadre traduziam o que ele tinha a dizer.

Começou dizendo que não precisa ríamos ma issubi r a serra.Aquilo soou como um tiro em meu coração e logo uma taquicardia

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invadiu meu peito. Explicou que já havia mandado um mensageiroaté o alto da serra e determinado que todos os garimpeirosretornassem à aldeia e posteriormente a São Gabriel, sendoportanto desnecessária nossa viagem montanha acima.

Não era possível. Por incrível que pareça, aquele sábioguerreiro imaginava que estávamos ali para prender os garim-peiros que extraíam ouro no parque. Coitados de nós! Seriamais fácil eles nos assarem numa fogueira do que a gente intimarum bando de garimpeiros sedentos por ouro a desistir de seusnegócios.

Até padre Carlos ficou boquiaberto. De imediato, rebateuas afirmações do tuxaua, explicando nossa verdadeira inten-ção. Foi muito difícil, mas tudo indicava que ele finalmente haviacompreendido.

O tuxaua retornou a sua aldeia. Padre Carlos nos encaroupreocupado:

- Eu não disse? Os tuxauas são muito desconfiados.Criam suas próprias preocupações. Amanhã, tratem de viajarbem cedo.

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o ENCONTRO COM A SELVA

4~ ~ r:t:u 6~. O céu ainda estava escuro.Tomamos o café e logo surgiu o nosso guia, vestido apenas comum calção surrado e uma camisa bem velha. Estava descalçoe não trazia nem uma blusa.

- Você não tem sapatos, Mílton? - perguntou-lheSabadin.

- Não. - Sua résposta era direta e de uma humildadeque dava até pena.

- Pode deixar que nós arrumamos roupa para você -disse Edson.

Fizemos os acertos finais para a viagem. Padre Carlos nosauxiliava com conselhos e ordens para o índio. Ele pareciabastante aflito para nos ver partir.

Às 8 horas estávamos prontos. Seu André [ó estava navoadeira, na margem do canal de Maturacá, preparando omotor para a viagem. Era um motor de 15 HP num barco de 5metros de comprimento.

Sabadin ligou seu gravador:Dezoito de dezembro ... 8,05 h... Estamos saindo daqui da

Missõo Salesiana de Maturacá ... Agora nós vamos seguir uma trilha

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Page 21: Expedição ao Pico da Neblina (Eduardo Augusto)

aqui, pegar uma voadeira e ir até o igarapé Tucano, ondeiniciaremos a ;ornada pela floresta.

Ho;e é domingo, dia de missa aqui na missão. Cada um de nósestá levando, aproximadamente, 22 quilos em sua mochila. Osuficiente para a gente passar 10 dias no mato.

As águas do canal de Maturacá eram negros. Suas margenseram puro floresta, com enormes árvores, cujos copos cobriam océu. Predominava o sombra, com umas poucos brechas por ondeo sol conseguia passar. Muitos cipós pendiam pelo cominho,dando um aspecto sombrio e interessante 00 local.

Após uns 10 minutos chegamos 00 rio Cauaburi, ondesuas águas de cor barrento recebem, sem misturar, os águasnegros daquele canal. Seu leito tem uns 40 metros de largurae o correnteza é bem forte, o que forçava bastante o motor dovoadeira. O Cauaburi é muito traiçoeiro. Ali, segundo soube-mos, poderiam ser encontrados jacarés e piranhas, mos não emabundância.

Seu André conhecia cada ponto do rio e sabia ondehavia pedras submersos, desviando no último instante, impedin-do que o hélice do motor atingisse alguma e se partisse.

Após 30 minutos de viagem, atingimos o território doaldeia Maiá" do outro lodo de uma pequeno serro, o muitosquilômetros. E o terceiro e último aldeia dos Kohoroxitaris.

São 8,31 h. Acabamos de avistar um ciemari ... ciemari ... t umtipo de peixe-espada.

Agora são 8,48 h. Estamos ávistando três araras. Ararasamarelas ... Agora são quatro! Estão todas voando ... Mais três, sãosete ... Que beleza, está cheio de araras aqui. Mais duas! Muitobonito.

Possamos pelo serro de Carriá, à nosso esquerdo, e, dooutro lodo, sempre imponente, estava o serro do imeri, oroencoberto pelo neblina, oro mostrando parte de suo magnitude.

Subindo o rio Cauaburi.

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Eu estava curioso para saber qual era a serra da Neblina, masa resposta de seu André era sempre a mesma:

- É por detrás da serra de Baruri, ainda não dá para verdaqui.

Agora são /0,45 h. Há alguns minutos nós vimos um pássaro,um grande pássaro preto... E copari o nome, e agora estamosvendo aqui um... como é que é o nome? ... Coró-coró, pássaro coró-coró.

E assim nossa viagem prosseguia Cauaburi acima. O rioé bastante sinuoso, com muitos bancos de areia, e, a cadaquilômetro, sua largura vai diminuindo, dificultando ainda maisa navegação.

São //,05 h. Estamos saindo do rio Cauaburi e entrando noigarapé Tucano... É um riozinho bem pequeno e raso. Dá para vero fundo, as águas são clarinhas... tipo água de serra mesmo. Omato aqui chega quase a fechar o rio inteirinho... quase que formaum túnel.

Foram 3 horas de viagem. Seu André desligou o motor e,com o auxílio de alguns galhos, conduziu o barco até a margem.

Era o início do caminho para o alto da serra. Ali havia umtapiri parcialmente montado, restos de fogueira e alguns indí-cios da civilização, como latas vazias e sacos plásticos. Era olugar conhecido por Boca do Tucano.

Ponto fjnal das mordomias. A partir daquele momento, sódependeríamos de nossas atitudes e, para conseguir qualquercoisa, teríamos que batalhar ainda mais.

- É, falaram que aqui chove muito, mas até agora nãovi chuva - comentou Sabadin reclamando do calor.

- Aqui é o melhor lugar para acampar, Mílton, ou temmais pra frente? - perguntou Edson.

- Tem, tem por aí ...

- Então, mais pra frente é melhor, não?

- É - respondeu Mílton.

Edson estava cometendo um dos piores erros na regra deconversação com índio: induzi-lo à resposta. Todo índio é

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assim. Se a gente pergunta se ele concorda com alguma coisa,sua resposta sempre é positiva, porque ele quer agradar.

Colocamos as mochilas nas costas e já sentimos que nãoestávamos em boa formà. Ficamos ofegantes só em ficar de pé,sem dar um único passo. Aquilo significava que iríamos terproblemas e que o sofrimento não seria pequeno.

Até Mílton reclamou do peso. O índio trouxe umaespingarda emprestada do padre. Na verdade um trambolhodesnecessário. Em questão de armamento estávamos razoavel-mente seguros, cada um com seu revólver calibre 38 no coldre,além de uma reserva considerável de munição. Sinceramentenão acreditava precisar de minha arma. Não considerava osgarimpeiros uma ameaça.

Antes de nossa partida selva adentro, armei a máquinafotográfico no tripé e juntei todos os presentes para uma foto.

- O senhor vai ficar por aqui ou já vai embora? -perguntou Edson a seu André.

- Não, eu vou caçar por aqui.

- Quais as caças que tem aqui? - perguntou Sabadinque, desde São Paulo, dizia querer caçar junto com um índio.

- Tem mutum, tem cujubim, porquinho, porco, queixada.Tem macaco, conhece macaco-cotá? Tem macaco-prego, temanta, paca.

- Tem onça?

- Também aparece, mas é arisca, né?

- Mílton, mais pra frente tem água? - perguntou Edson,com o cantil na mão.

- Tem, tem por aí ... - Esta era a resposta pad rão dele.

Combinamos o retorno para o dia 28 de dezembro. SeuAndré prometeu chegar ali dia 27 à noite e fic~r caçando.Sabadin preparou um cigarro de palha para o Md.ton e. outropara ele. Estávamos prontos para a jornada. A partir dali seriatudo ou nada.

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o primeiro dia na mata

Na floresta amazônica, não há como sentir-se sozinho.Cantos de pássaros de toda espécie tomam conta do ambiente,transmitindo-nos alegria e a sensação de vida.

Nossa jornada pela selva começou às onze e meia damanhã. Realmente não estávamos em boa forma, realizando aprimeira parada depois de apenas 10 minutos de caminhada.O caminho era por demais tortuoso e repleto de grandes raízesque, freqüentemente, derrubavam um de nós no chão. Míltondisparava na frente. Muitas vezes ele desaparecia no meio damata e nós perdíamos a trilha, ficando completamente desori-entados e alarmados. Mílton nos ensinara um modo de chamaro co~panheiro no meio do mato. Era um grito curto e agudo,parecido com o pio de uma coruja. "Uuh!"

Por mais que chamássemos a atenção dele, não adian-tava; mais alguns minutos de caminhada juntos e ele começavaa se distanciar até sumir de vez.

Fazíamos uma parada a cada 15 minutos de caminha-da ..Era uma média péssima e nós não estávamos progredindo~ratlcamente nada. Para piorar, o relevo ali era plano, nãotínhornos começado a subir ainda. Estávamos a uns 350 metrosem relação ao nível do mar e pretendíamos chegar até os 3014metros de altitude!

A trilha não era ruim. Era a estafa que mexia com nossosreflexos, deixando-nos lentos, e fazendo com que um ou outrotropeçasse numa raiz. Eu já estava aloprado com tudo aquilo.Nos pontos mais baixos e úmidos, havia inúmeras saliências debarro, d~menos de 10 centímetros de altura. Pareciam peque-nos vulcoes.

Após muita trilha, raízes, buracos, troncos e piuns, atraves-samos o igarapé Tucano, que, naquele ponto, tinha uns 20 metrosde largura e uma profundidade não superior a 1 metro. Do outrolado havia uma área descampada, que seria nosso primeiroacampamento na selva amazônica.

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São 15,56 h. Chegamos aqui no acampamento. Fica ao ladodo rio Tucano ... Está todo mundo cansado, fatigado ... só o índioque não. Ele nem suou, é incrível!

Ali havia um tapiri semimontado. Faltava apenas cobri-locom folhas de palmeira. Era o local ideal para Mílton armar suarede. Tapiri é uma espécie de abrigo feito de galhos, cipós efolhas, aproveitando tudo que a natureza possa oferecer.

Abrimos as mochilas, escolhemos um ponto adequado emontamos nossa barraca modelo iglu.

Havia ali um enorme tronco caído, um verdadeiro bal-cão, ponto excelente para cozinhar, e comecei logo a prepararnossa primeira refeição. Essa seria a rotina, fazia parte doplanejamento. Eu cozinhava e eles se revezavam na lavagemdas panelas.

O cardápio seria arroz com passas, creme de ervilhascom bacon e primavera de legumes. Para refrescar, sucoartificial de laranja e, de sobremesa, um delicioso curau.

Enquanto preparava a comida, Sabadin tentava acenderuma fogueira. Mílton havia saído para pescar, levando consigoum pedaço de linha de náilon e um anzol.

Antes do anoitecer, Mílton retornou com três aracus, queforam colocados na fogueira para assar, enquanto íamosjantando. Sabadin ficou bravo com o índio por não tê-loconvidado para pescar.

Com o estômago cheio, nosso ânimo melhorou. Sabadinpegou uma lanterna e saiu decidido a pegar um peixe. Comeceia me sentir um pouco melhor. Como estava calor e o céuabsolutamente limpo e estrelado, retiramos a parte impermeávelda barraca, deixando exposto o mosquiteiro. Dessa forma,deitados, pudemos contemplar aquele céu maravilhoso e atépedir-lhe forças para levar adiante nosso objetivo.

Mal cochilamos, fomos atacados por um exército demosquitos piuns. Os desgraçados eram tão pequeninos quepassavam facilmente pelo mosquiteiro da boneco. a qual, sema parte superior, ficou completamente exposta. Levantamo-nos

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rápido, recolocamos o impermeável na barraca e nos lambuza-mos de repelente. Mas o repelente não adiantou. Fomos~brigados a nos cobrir por completo numa noite quente, quetinha tudo para proporcionar um descanso fabuloso. Masapesar disso, dormimos bem. Ou melhor, caímos num sonoprofundo, dominados pelo cansaço.

Segundo dia: caminho errado!

Dia 19 de dezembro. São exatamente 8,05 h. Já levantamos oacampamento aqui e vamos seguir em frente, em nosso segundo diade viagem. O azimute é de 320 graus.

Seguimos a trilha, que não diferia em nada da anteriorMuitas r?í~es,. buracos e troncos caídos. A floresta possuía urnocorocteristico Interessante. As árvores eram extremamente altase es~~çadas, deixando a mata bastante transponível, aocontrario da mata atlântica, onde a gente se enrosca a todomomento em cipós e espinhos.

Logo à frente, encontramos a cachoeira onde Míltonhavia pescado os aracus. Tivemos que atravessá-Ia. Não foimuito fácil, pois, além do peso das mochilas, a correnteza aliera bastante forte e, naquele ponto, o rio era um pouco maisfundo. Tivemos que fazer uma corrente com as mãos e atravessarcom todo o cuidado.

Nem caminhamos 50 metros e atravessamos outro rio oTucaninho, mais raso e de extensão menor. Ali paramos porodescansar.

Caminhamos mais um longo percurso. Agora começa-mos realmente a subir. A inclinação era bem baixa mas [ó erabom sinal. '

São 13,24 h... Estamos mortos. Aqui está muito difícil. Muitomato, muito cipó. Acabei desenvolvendo minha parte selvagem~quJ. InclUSiveeu me perdi do índio e fui seguindo o rumo por.mstmto... e estamos chegando. Esta viagem está sendo umaloucura!

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p:z

Aqui os cipós são bem mais grossos do que os que tínhamos vistoantes e parece que as árvores também são maiores. E nós sóestamos subindo ...

Mais algumas horas de sofrimento, atravessamos nova-mente o Tucaninho e chegamos ao acampamento de mesmonome.

Bem, chegamos aqui no acampamento por volta de 15,30 h. Oacampamento fica às margens do, Tucaninho e, pelo ieilo, ele seencontra habitado. Vamos ver... E, realmente há três garimpeirosaqui e uma grande fogueira.

Estávamos receosos. Era o nosso primeiro contato comgarimpeiros no meio da selva e não sabíamos qual seria areação deles. Aproximamo-nos com certa precaução.

A área do acampamento era pequena. Havia ali umabrigo, com cobertura de plástico, de uns 15 metros quadra-dos. As redes estavam estendidas e no chão, por cima detroncos cuidadosamente colocados, ficavam os mantimentos eos diversos materiais. de trabalho.

Estavam todos deitados, descansando e escutando a RádioNacional de São Gabriel da Cachoeira. Cumprimentaram-nos ecomeçamos a conversar. Elesestavam voltando da grota da Pepita,que, segundo eles, ficava na base do pico da Neblina.

A alguns metros do abrigo, eles montaram uma fogueiraenorme, onde havia um quarto de veado moqueando. Foi ogarimpeiro Davi que caçou o animal com um tiro de espingarda,no dia anterior. Experimentamos a carne, já com bastante fome,pois nossa última refeição tinha sido um ralo café da manhã.

O líder do grupo era Guilherme, um gari mpeí ro experien-te, que já passara por muitos garimpos pelo Brasil. Fomos muitobem recebidos por eles.

Montamos nossa barraca num plano mais elevado, a uns5 metros do abrigo deles, onde Mílton conseguiu um espaçopara montar sua rede.

Ali ficamos conhecendo a situação do garimpo da região.Desde que o projeto Radam-Brasil detectou a presença de metais

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preciosos - em particular o ouro - na área do Parque Nacionaldo Pico da Neblina, em 1975, algumas pessoas passaram aestudar a fundo o relevo da região e toda a sua geologia, abrindotrilhas mata adentro e pesquisando pontos realmente longínquos.

Com isso, São Gabriel da Cachoeira, a capital do altorio Negro, passou a viver momentos de fartura. Sendo a cidademais próxima da serra da Neblina, grupos de pessoas ali sereuniam, abastecendo-se com centenas de quilos de suprimen-tos para desbravar aquele mundo perdido com um únicoobjetivo na mente: o ouro.

Em decorrência disso, foram surgindo as áreas de garim-po, sendo as principais: igarapé Aliança, na serra do Padre;cabeceiras dos igarapés Anta e Tucano, no alto Cauaburi, e amais recente e de grande potencial aurífero, o alto Ariabu, nabase do pico da Neblina.

Imaginar que a vida de garimpeiro é fácil é pura ilusão.As dificuldades começam pela formação do grupo, onde osfatores confiança, vigor físico e seriedade são fundamentais.Muito dinheiro é gasto (ou promissórias assinadas) na comprade suprimentos suficientes para passar cerca de 3 mesesisolados naquele mundo inóspito. Com o grupo formado, deve-se pedir permissão aos tuxauas, que controlam toda a área. "Aregião é dos ianomãmis e, sem a nossa permissão, ninguémentra!", afirmava tuxaua Daniel.

Para conseguir tal concessão, o preço não é nada baixo,atingindo porcentagens muito altas de todo o serviço do garimpei-ro, quando não é exigido algum tipo de adiantamento. Elestambém utilizam outros meios para conseguir a permissão. Dênis,um dos garimpeiros, ali presente, de apenas 19 anos, casou-secom a filha do tuxaua Daniel, tendo portanto livre acesso à área semdever porcentagem alguma pelo produto extraído.

Conseguida a permissão dos tuxauas, inicia-se a fasedura do trabalho: o transporte de centenas de quilos deferramentas e alimentos selva adentro. Esse transporte segue omesmo caminho que fazíamos. Vêm de voadeiras até a Boca doTucano e, dali, tudo é carregado nas costas, numa trilha tortuosa

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paz

de mais de 35 quilômetros, em região de selva e montanha,demorando mais de 10 dias para que todo o "rancho" sejatombado montanha acima.

- Vocês querem ir até o pico da Neblina? Mas vocêsestão no caminho errado! - declarou Guilherme.

- Como?! - Fiquei paralisado.

- O caminho correto sai da Cachoeira para lá. Vocêsestão na trilha do garimpo, que dá a volta por trás do pico. Aoutra é bem mais rápida.

Não era possível. Um dia inteiro de caminhada e tudo porágua abaixo. Teríamos que voltar tudo e seguir a outra trilha.Uma enorme raiva apoderou-se de mim e uma vontade deestrangular Mílton quase me fez perder a cabeça. Edson eSabadin me acalmaram.

- Mílton, você não sabia que era por lá? - perguntouGuilherme a ele.

-Caramba! -gritei. -Não foi por lá que você conduziuo Exército? Por que nos trouxe aqui, pelo caminho errado?

Mílton tentava explicar com as poucas palavras quesabia. O problema foi que o filho do tuxaua Joaquim, Miguel,lhe disse para fazer aquele caminho. Eo pior foi que ele resolveuseguir tal conselho sem nos consultar. Nós estávamos nocaminho errado e teríamos de retornar. Ou seja, dois dias deviagem jogados fora e energia preciosa desperdiçada.

Apesar de tudo, sabíamos que Mílton não tinha culpa.

Peguei a carta da região e passei a estudá-Ia. Guilherme,apesar de não saber ler bem um mapa, ajudou-me cominformaçôes sobre o relevo e as denominaçôes dadas por eles.A partir daquele momento eu estava reossurnlndo a posição delíder e guia da expedição. Mílton passaria a andar atrás,cuidando de nossa segurança, de olho nos perigos da selva, eservindo de mensageiro, ficando encarregado de voltar corren-do à missão para pedir socorro, no caso de algum acidentegrave conosco.

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A ajuda do garimpeiro foi muito valiosa. Nós nãoestávamos tão errados. A trilha era mais longa mas chegava atéo pico, e isso é que interessava.

Preparei o jantar: arroz, creme de champignon ao leite epassas, farinha grossa de mandioca e veado moqueado. Umsemi-estrogonofe. Fui consagrado como cozinheiro, pois ojantar agradou a todos.

Guilherme preparou um mapa para nós com a trilha e ospontos de acampamento e garimpo. A partir dali nosso trojetoseria mais ou menos este: subiríamos a serra do Barro, queiniciava ali mesmo no acampamento, desceríamos um poucopela crista, atingindo a grota do Açúcar ... Continuando a trilha,atravessaríamos umas três grotas (talvegues pequenos comcurso d'água) e subiríamos uma delas, atingindo o acampamen-to da Pica do Baiano.

- Pica do Baiano? Por que esse nome? - perguntouSabadin ligando o gravador.

Guilherme ficou sem graça. Enrolou, enrolou, mas aca-bou contcndo..

- Tem um garimpeiro aqui, o Baiano, que estavaacampado lá. Eaí colocaram ... os índios colocaram o nomedePica do Baiano.

- Mas por que os índios colocaram esse nome? -insistiu Sabadin.

Dênis ajudou:

- É que viram ele tomando banho. Viram ele tomandobanho e se assustaram com o tamanho ...

Todos rimos. Sabadin brincou com Mílton:

. - É que de índio deve ser pequenininho. Quero ver vocêtomar banho, Mílton.

Mílton riu.

- Esse Mílton só ri ... E depois da Pica do Baiano vemoquê? - perguntou Sabadin, retomando o assunto.

- Depois vem o acampamento do Vento, mas antesvocês passam pela grota da Merenda, onde a gente costuma

parar para cor;ner. Desviando do Vento, à direita, está a grotado Homero. E pertinho dali. Daí você chega na s~rra daMontilla. A serra da Montilla é a mais falada por aqui. E que osíndios foram para o garimpo, levaram um litro de Montilla ebeberam tudo lá em cima. Por isso colocaram esse nome ...

- Esses índios são gozadores mesmo - comentouSabadin. - Esses índios são fogo!

- ... e deram o nome mais bonito da região: serra daMontilla. Ela fica de frente para o pico. A serra de um lado e opico de outro. De lá você avista todo o pico. Mas 031 de Marçovocês não vão conseguir ver, não. Por essa trilha, só se podeavistar o 31 de Março da base do pico da Neblina.

Segundo ele, após subir a Pica do Baiano, atinge-se oplatô da serra, onde a vegetação é completamente diferente. daselva. Mais alguns quilômetros adiante dali, se o tempo estiverbom, pode-se avistar o pico da Neblina, nosso tão sonhadoobjetivo.

Fomos dormir um pouco mais esperoncosos. Precisáva-mos descansar bastante, pois no dia seguinte começaríamos asubir. Até ali era só plano e já estávamos bem desgastados. Odia seguinte não seria brincadeira.

Serra do Barro, um martírio

São 8,05 h do dia 20 de dezembro. Agora nós vamos sair daquido acampamento onde se encontram os garimpeiros e vamos subir aserra do Barro. Vai ser uma caminhada e tanto. A previsão é chegardaqui a 5 horas na grata do Açúcar.

Despedimo-nos de Guilherme, Davi e Dênis, e atravessa-mos novamente o Tucaninho, encontrando na outra margem oinício da subida da serra do Barro, uma vertente bastanteíngreme e escorregadia, apesar de não chover há dias naregião.

As mochilas pesavam mais ainda. Dávamos alguns passose parávamos escorando o corpo numa árvore. A respiração estavaofegante e o coração batia forte e rapidamente.

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Continuamos a dura jornada. O topo da serra nãochegava. Muitas vezes tivemos a falsa impressão de quefaltavam apenas poucos metros para chegar no alto. Masquando chegávamos àquele ponto, víamos que faltava maisuma rampa, outra, e mais outra. Era uma subida sem fim, queestava acabando conosco. Pelo meu altímetro, estávamos a1100 metros, após 3 horas de marcha.

Depois de muita subida atingimos finalmente o alto da .serra. A trilha continuava seguindo sua crista, que era um levedeclive. Ali a vegetação rasteira começou a aparecer com maisfreqüência, atrapalhando a passagem de nossas mochilas emdeterminados pontos.

Mílton de repente parou e ficou atento. Pensávamos quefosse uma onça ou outra fera e sacamos, todos, nossas armas.O índio apontou sua arma para cima e disparou.

- O que era, Mílton? - perguntou Edson assustado.- Gavião. Gavião.

- Você gastou seu único cartucho num gavião e nem aomenos acertou? - reclamou Edson.

Por incrível que pareça, Mílton trouxe uma espingarda eapenas um cartucho. Era o primeiro e último tiro daquela arma,durante toda a expedição ..

De repente um barulho de algo caindo próximo. Eu nãopodia acreditar ... ele acertou o gavião.

Caramba, Mílton é bom de tiro. Acabou de buscar um gavião,num tiro só. O gavião demorou mais ou menos um minuto e caiupróximo de nossa posição. Eh, lasqueira! Esse índio é bom mesmo.Vamos ter gavião assado hoie

O tiro acertou na cabeça da ave. Era um gavião brancode porte médio. Seria realmente bem-vindo em nosso jantar.

Após uma forte descida, alcançamos a grota do Açúcar porvolta das 5 horas. Estávamos atrasados quase 4 horas em relaçãoà previsão feita no Tucaninho. Acamparíamos ali mesmo.

Armamos a barraca num ponto elevado e fui cuidar dojantar. Sabadin e Edson montaram uma fogueira com grande

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sacrifício, enquanto Mílton ia retirando as penas do gavião eguardava uma por uma num saco plástico que lhe havia dado.

- É para usar na festa da pupunha - ele dizia contente.

Todo mês de janeiro, época em que tal fruta abarrota aregião de Maturacá, realiza-se a festa da pupunha, umatradição que o padre não soube dizer quando começou, masé considerada uma das melhores festas da tribo.

Descobrimos ali o porquê daquele nome: grota do Açúcar.As evidências nos faziam pensar assim. O local estava repleto deabelhas, tendo uma, inclusive, picado a mão de Edson.

Nosso jantar foi novamente engrossado com farinha demandioca, o xibé, que Mílton conseguira com os garimpeiros.A farinha era simplesmente horrível, parecendo serragem comalgumas pedrinhas no meio. Mas na situação em que nosencontrávamos e com a escassez de nossa comida, aquilodesceu como um maravilhoso banquete.

O gavião só ficou pronto horas depois do jantar. Suacarne era bastante escassa e dura. Era arrancar um pedaço eficar mascando. Mílton não quis comer. Ele matou a avesomente para retirar suas penas.

Mílton armou sua rede entre duas órvores de frente para aentrada de nossa barraca, e fomos dormir bastante cansados, mascom o estômago satisfeito. No meio da noite caiu uma chuvarepentina e Edson, preocupado com o índio, jogou-lhe um plásticogrande. Era a primeira chuva que pegávamos na selva e, por sorte,estávamos bem protegidos dentro de nossa barraca.

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I I II1

I IIII o PLATÔ DA SERRA DA NEBLINA

Cipó é aqui, inclusive nosso grande tenente está agora bebendo suaágua cristalina.

Não poderíamos parar ali por muito tempo. Nossacadência era muito lenta e eu estava preocupado em chegarlogo ao acampamento do Vento. Eu já tinha decorado o mapafeito pelo garimpeiro, tentando adequá-lo à carta da região eestimar melhor as distãncias a percorrer.

Iniciamos a subida da Pica do Baiano. Estávamos deixan-do para trás a floresta latifoliada e nos aproximando doscampos de altitude da serra da Neblina. A inclinação davertente era bem superior à da serra do Barro e, para complicar,uma forte tempestade [errou do céu, encharcando nossasroupas pela primeira vez nessa expedição.

A trilha transformou-se num lamaçal que logo foi lambu-zando nossas roupas. Em alguns trechos, sua inclinação era tãoacentuada que os garimpeiros tinham fincado troncos paraservir de degraus. Nosso ritmo diminuiu muito e, molhadas, asmochilas passaram a pesar mais.

Olhando para trás, quando a neblina permitia, davapara ver a floresta, que ia ficando para baixo. Dava aimpressão de que lá não chovia, parecendo até que o tempoestava bom. Mas ali no alto, a intempérie aumentava a cadametro que subíamos.

Encontramos um paredão de puro barro, de uns 15metros de altura. A chuva forte não permitia olhar para cima.Havia alguns galhos e pequenos troncos ancorados nele emuitas bromélias revestiam sua superfície.

Agarrando raízes, apoiando os pés em galhos e troncose, principalmente, sendo empurrados pelo companheiro de trás,vencemos aquele obstáculo, atingindo o alto bem fatigados.Ventava muito e, num determinado instante, parte da neblina alidissipou-se, mostrando que nada mais havia a subir. Estávamosno platô da serra da Neblina, em seus campos de altitude, ondea visão perdia-se em infinitos horizontes.

São 14,05 h. Altitude: 1850 metros. Temperatura: 25 graus.o Acabamos de atingir o cume da Pica do Baiano. Muito difícil

/lia ~~, ao levantar, vi Mílton todo encolhidodentro da rede, totalmente encharcado. Sabadin também nãoacred.itava .no que via: o índio havia guardado o plóstico namochila e ficara a noite inteira debaixo de chuva.

. Tomamos o café da manhã, que se resumia em poucornois de dOIS copos de café com leite para cada um, comalgumas colheres de aveia.

São 8, 1~ h do dia 21 de dezembro. Estamos saindo agora dagrota do Açucar, a caminho da Pica do Baiano. Vamos ver se dápara fazer a caminhada ho;e. Bom, nós reclamamos da chuva néEduardo? E ela veio. Sabe a que horas?Ouas e mei; d~madrugada

Nosso objetivo era caminhar até o acampamento doVento, passand? dir.eto pela Pica do Baiano. A previsão,segundo os garimpeiros, seria de uma jornada de 7 horas,chegando ao Vento, portanto, lá pelas 4 horas da tarde.

Onze e dez. Chegamos ao acampamento da Pica do Baiano.o ~stamos a 1540 metros de altitude, temperatura de 21 graus. Aquie uma enorme clareira aberta na floresta. Muitas árvores caídas ehá um enorme tapiri coberto com plástico A nascente da grota do

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mesmo, dificílimo. Tivemos que agarrar nas raízes, o peso damochila iogando a gente para trás... Muito perigoso.

Ali no chão havia alguns troncos de palmeira, postos ladoa lado, formando um tipo de assoalho. Aquilo era usado pelosgarimpeiros para colocar o rancho, protegendo-o do sololamacento. Sabadin, Mílton e Edson sentaram-se ali.

Ali pude ver como o coitado do Mílton sofria. Comocivilizado, sempre vi o índio como um Tarzan na floresta. Aimagem dos livros e filmes nem sempre é real. Eles são humanose, como nós, sentem dor, frio e fome. Mílton estava descalço,de calção e camisa. A chuva e os ventos eram intensos egelados, contrastando terrivelmente com a temperatura do ar.Parecia que estávamos debaixo de um forte sol recebendo umjato de água fria. A sensação era esquisita e desagradável.

Mílton entrou por debaixo do poncho de Sabadin e ficouali, duro como um picolé, tremendo dos pés à cabeça. Fiqueicom muita pena dele. Mas não adiantava preocupar-me comisso. Os pontos de vista do índio são bastante estranhos. Edson,que era do tamanho dele, deu-lhe um uniforme camufladocompleto para a viagem, entretanto ele resolveu guardar namochila para não estragar.

- Vamos embora, vamos embora. A hora está passando.

Não sei o que se passava comigo. Estava exausto, masnão queria parar.

Reiniciamos a jornada caminhando pela primeira veznaqueles campos. O solo era esponjoso, encharcado, repletode pedras, liquens e bromélias gigantes. Caminhar ali era ummartírio. Atolávamos a cada passo dado, e o perigo de quebraruma perna ali era grande.

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No platô da serrada Neblina, o solo

esponjoso e encharcadomais a chuva constante

dificultavam a caminhada.ill/

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. São /5,30 h. Parou de chover aqui em cima. Estamos avistandodois pICOSbem altos. Acreditamos ser um deles o pico da Neblina.De vez em quando a nuvem sai da frente e dá para enxergá-los.Agora estamos em dúvida.

- É ele, sim - disse Mílton.

A alewia invadiu nossas almas. Começamos a brincar ea ~os,c~mprlmentar. ~st?vamos vendo o ponto mais alto do país,p~,vdeg'o que pouqurssirnos pessoas tiveram. Até fotos em livrossao raras, sendo freqüente a utilização da imagem da serra doP~dre para !epresentar o pico da Neblina. Preparei minhacamera e nao economizei ~ilme. Cada nuvem que passavadava um ?:p~cto novo ao pico e era motivo para registro. Euestava lelicissirno. Mas tínhamos de continuar a caminhada. .

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o platô parecia um enorme vale ondulado, cercado porpequenos e grandes montes nas bordas. Toda a água da regiãodesembocava no pequeno rio Ariabu, que ia aumentando devolume até atingir o canal de Maturacá, lá embaixo. Olhandode longe, o platô parecia um enorme gramado macio, de fácilprogressão. Mas na verdade era uma esponja gigante,encharcada, cheia de pedras pontudas. Aqueles garimpeirosdeviam retirar muito ouro dali. Somente muita ambição podialevar um homem a ficar meses instalado num lugar assim.

Às cinco da tarde, atingimos com muito sacrifício a grotada Merenda, numa altitude de 1740 metros. Era uma pequenagrota de água gelada, onde, 20 metros adiante, havia espaçopara montar acampamento.

Havia uns galhos já cortados no meio da lama. Monta-mos uma espécie de palafita, cobrimos com folhagem depalmeira e bromélias, disfarçando um pouco aquela superfícieretorcida. Armamos a barraca em cima e verificamos seuinterior. Uma droga! O chão da barraca estava todo cheio desaliências e em alguns pontos cedia ao nosso peso. Comcerteza aquela seria a pior noite de nossa expedição.

Enquanto todos trocavam a roupa molhada, fui prepararo jantar, que só foi servido às nove e meia da noite, devido àdificuldade de se fazer qualquer coisa naquela lama.

Eu ainda não tinha trocado de roupa. O uniformemolhado congelou meus ossos.

Edson me ajudou a desamarrar as botas e tirar as roupaslambuzadas daquela lama preta e fedida. Vesti toda a roupaseca que tinha. Entrei em meu saco de dormir, me acomodei omelhor que pude, mas continuava a tremer sem parar.

Sabadin abriu seu diário e começou a escrever os fatosdo dia. Aos poucos minha tremedeira ia passando.

...A escada feita de uma árvore, foi o maior 'sacrifício para subirnela ... aliás foi o maior sacrifício fazer tudo ... Aqui em cima, ummundo de barro ... Barro para tudo quanto é lado ... e hoie ninguémtomou banho.

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Sentindo-me melhor, retirei da bolsa de equipamentofotográfico as anotações e mapas da região e comecei aestudá-los, tentando localizar nossa posição.

- Se tivéssemos uma carta precisa, tudo estaria resolvi-do. Mas confiar num mapa manuscrito de um garimpeiro e emoutro feito por um integrante do Batalhão de Forças Especiaiscoloca a gente numa situação incerta - desabafei.

, - ~e~, se o pico está ao norte, como foi conferido pelabussola, e so seguir a direção e pronto - disse Sabadin.

. - O problema, Sabadin, não é saber onde é o pico daNebll,na. O que eu realmente quero saber é a via certa paraescal.a-Io. Lembrem-se de que estamos com equipamento dealpinismo reduzido e que o vento e as chuvas não estão a nossofavor. O lado correto - continuei - é por onde o Exército haviatentado em 1985.

- Mas não seria melhor escalar por outro lugar? -perguntou Edson. - Assim marcaríamos pioneirismo.

- Tudo bem. Mas nossa comida está no fim e, nessamarcha, logo estaremos sem nada para comer. Preciso desco-brir como alcançar a trilha original. Assim nosso retorno poderáser reduzido para, no máximo, 3 dias.

Enquanto discutíamos, recomeçou a chover. As saliênciasdo piso não deixaram ninguém dormir direito.

Hoie é 22 de dezembro. São exatamente 9, 40 h. Já desmon-tamos o acampamento e pretendemos avançar mais um pouquinho.

. Aq uela noite foi horrível. Todos os ossos do corpo doía m.O pior de tu.do foi tirar o agasalho e recolocar as roupasmolhadas e frias. Com o corpo ainda frio, meio duro, recome-çamos a caminhada, já atolando o pé na lama nos primeirospassos. Uma brisa forte e gélida nos acompanhava.

Por vezes, um buraco mais fundo fazia um de nós afundaratéo joelhoecair, lambuzando toda a roupa. Devido às chuvasconstantes, Sabadin utilizava um poncho impermeável; Edsone eu, capas de chuva amarelas, daquelas usadas por funcioná-rios de limpeza urbana.

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Nós estávamos contornando uma pequena elevação queimpedia a visualização do pico. Faltava pouco para atingirmosuma linha de cumeada que dividia o rumo das águas do platô,as bacias do alto Ariabu e alto Cauaburi.

Atingimos a linha de cumeada. À nossa frente, umabaixada de uns 100 metros de desnível, por onde a trilhacontinuava e, mais à frente, desviava para a esquerda. Paramospara um descanso. Fiquei observando o terreno, pois queriaentender o porquê de a trilha descer por ali e não continuar pelacrista da elevação, na direção exata do pico. A resposta veiocom a saída da neblina, que descobriu uma elevação de purarocha, não muito alta, mas bem íngreme, impedindo a progres-são por ali.

Uma espessa camada de neblina chegou repentinamente,com um vento fortíssimo, cobrindo toda aquela baixada e trazendoconsigo uma chuva forte e gelada. A chuva, apesar de forte, nãodurou mais do que 2 minutos; foi-se com o vento e a neblina,deixando novamente limpa a paisagem que contemplávamos.

- Vamos embora, senão não chegamos a tempo nagrota do Gelo. Na grota do Homero só vamos pegar informa-ções. De lá teremos que partir rapidamente - eu disse, semacreditar que faríamos tanto. .

Descemos a vertente com muita dificuldade. Era muitoíngreme e de puro barro, o que me fez escorregar alguns metros,lambuzando ainda mais a mochila. Chegamos embaixo. Umafloresta de pequenas árvores, palmeiras, cipós e todo o tipo deplantas rasteiras formava um exército que procurava nos barrarde toda maneira.

Mais à frente, a trilha subia uma vertente. Era o desvio àesquerda que tínhamos visto de lá de cima. Fomos deixandopara trás e para baixo aquela floresta e, após alguns minutos,já estávamos num plano razoável. Olhei para a esquerda e ,<ia elevação escarpada, responsável pelo desvio da trilha. Adireita, o terreno ia perdendo altitude aos poucos e a coberturavegetal ia mudando de bromélias para floresta. A neblina

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impedia de ver mais adiante, mas sabíamos que lá embaixoestava o rio Cauaburi e, à frente, do outro lado do pico daNeblina, a trilha que deveríamos ter tomado.

São 12,00 h. Chegamos a um acampamento. Talvez seia oacampamento do Vento.

- Não dá nem para sentar para descansar - reclamouEdson.

- Aqui não dá para ficar de jeito nenhum - observei.- O que vocês acham de esperar aqui, enquanto eu e o Míltondescemos aquela trilha, para ver se encontramos a grota doHomero e os índios garimpeiros?

Colocamos nossas mochilas em cima de uma pedra cheiade líquens. e então Mílton e eu prosseguimos por uma trilha quedescia na direção do Cauaburi. Uns 20 metros à frente jáestávamos dentro de uma mata fechada, igual à que havíamospassado minutos antes.

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Stanislau, O índio garimpeiro

A trilha ia avançando mata adentro, cada vez maisfechada. Era cipó para todo lado e iolhcqorn de toda espécie.Não se via nada além de 5 metros. A medida que progredía-mos, a trilha ia se transformando num riacho e logo já estávamoscom água acima da cintura. A chuva engrossava mais e acorrenteza ia aumentando, o que dificultava ficarmos em pé.Mas, logo adiante, a trilha desviou do riacho e pisamos terrafirme. Continuamos seguindo o riacho pela margem esquerdae, mais à frente, encontramos uma clareira.

A trilha foi se tornando mais aberta e a vegetação, maisrala. Havia muitas árvores e galhos cortados. Mas aquilo nãopodia ser chamado de devastação, comparado ao que se viaadiante: a floresta que margeava o riacho estava totalmentedevastada, reduzida praticamente a zero. O leito do riacho foratotalmente revolvido e peneirado, sendo jogado às suas mar-gens todo o cascalho retirado. Era uma cena de total destruição.

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II

A destruição da grata da Mucura.

Boquiaberto, fui avançando naquele terreno "lunar".Mílton estava mais à frente e, de repente, começou a dar seusgritos, isto é, a usar seu código de comunicação ianomãmi, quelogo foi respondido por alguém. Logo um outro índio veio emnossa direção. Mílton ficou muito feliz em vê-lo. Sua cara decontentamento era até um pouco infantil.

- Boa tarde. - Cumprimentei o índio, meio preocupado.

- Boa tarde, tenente - respondeu ele. - Meu nome éStanislau.

Como esse índio sabe que sou tenente? Lá em São Paulomuitos me confundem com sargento, capitão, sei lá. Eaqui nessefim de mundo, um índio ianomãmi reconhece minha patente?Essa é boa!

Stanislaú era um índio culto. Estudou em São Gabriel daCachoeira, sendo um dos poucos que sabiam escrever. Tinha19 anos de idade e havia servido o Exército, em Manaus, noCentro de Instrução e Guerra na Selva (C1GS), o que facilitouainda mais o nosso relacionamento. Ele estava liderando umgrupo de índios, em busca de ouro.

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- Vamos tomar um café, tenente - convidou Stanislau.

Fomos até um tapiri feito de madeira e coberto por umenorme plástico azul. Lá fui apresentado a outros três índios.todos adolescentes. Apesar de muito forte e com pouco açucar,aquele café quente desceu gostoso. Mílton gostou tanto querepetiu duas vezes a dose, o que lhe custou uma bronca emianomâmi dada por um dos índios.

Já eram duas e meia da tarde. Segundo Stanislau, nâoseria muito fácil alcançar a grota do Gelo antes do anoitecer.O ideal seria pernoitar ali mesmo. Ele e outro índio voltaramconosco ao acampamento do Vento para nos ajudar a trazer omaterial. A chuva havia parado e a trilha estava um pouco maistransitável.

Com a mochila nas costas e toda a equipe unida,retornamos à grota do Homero. Segundo Stanislau, o nomecorreto era grota da Mucura, devido à quantidade dessesanimais existente ali.

Na margem contrária ao tapiri dos índios, havia umabancada de cascalho, local ideal para montar nossa barraca.

Nunca montamos a barraca com tanto carinho. Tambémpudera, depois de tanto desconforto, encontrar um lugar planoe perfeito como aquele, junto a uma água pura e gelada, eraum privilégio digno de comemoração.

o confortável acampamento em Mucura.

Tudo arrumado, fomos tomar banho. Na outra margem,de frente para a nossa bancada, havia uma grande bica,jorrando água da altura de um metro e meio. Foi o local idealpara um banho completo e a lavagem de nossas sofridasroupas. A água estava geladíssima, mas a sensaç-ão de estarlimpo compensava aquele sacrifício.

Depois de tomar banho e trocar de roupa, fomos conhe-cer melhor a vida no garimpo. Stanislau e seus companheirosnos levaram para ver toda a área revolvida com enxadões epicaretas e entender um pouco como aquilo funcionava.

Com o acampamento montado às margens de um dosriachos da região, vem a primeira fase do trabalho propriamen-te dito: o teste aurífero com a cuia. Esseteste consiste em escolherpontos aleatórios do terreno, numa distância aproximad?de 1Ometros um do outro, encher uma cuia de cascalho e verificar sehá ouro misturado ali.

Encontrados alguns grãos, vem a segunda fas.e, queconsiste na quebra do cascalho do ponto em que o ouro foidetectado. Essecascalho é jogado às margens do riacho, ondeé montada uma bancada, com armação de troncos e galhos.Nessa bancada eles espalham o cascalho moído e aí vem afase final e de maior expectativa para o garimpeiro: "a hora dacobra fumar". Consiste numa caixa, em forma de cocho,montada junto à bancada. Sobre ela é jogado todo o cascalhoque escorre com o auxílio de água jogada por baldes. Essecocho é forrado com saco de estopa preso por algumas ripastransversais, cuja função é reter a parte mais pesada docascalho, ou seja, o esmeril e o ouro.

É aí que o garimpeiro vê se todo o seu sacrifício valeu ounão a pena. Não encontrando o ouro, ou ele tenta outro pontodo terreno, ou muda para outra grota. Via de regra nuncadesistem, pois a febre do ouro é contagiosa e incurável.

. A chuva já tinha parado há mais de uma hora e surgiramsinais de sol naquele final de tarde. Já estávamos começandoa cuidar da comida quando Stanislau gritou de longe:

- Venham aqui! O pico está visível agora!

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Corremos em disparada até o outro lado da margem, deonde contemplamos um dos ângulos mais impressionantes dopico da Neblina.

Comecei a fotografá-lo de todas as formas que pudeimaginar. Euestava maravilhado. Lá estava nosso objetivo, todoimponente, sozinho naquele ponto elevado, mas ainda muitodistante de nós. Em linha reta, devia estar a uns 8 quilômetros.

Desse ângulo, parecia realmente impossível escalá-lo. Eera exatamente isso que Stanislau repetia constantemente.

- É impossível chegar lá em cima. Eu lembro quando oExército foi até lá perto. Não dá, não.

Realmente dava medo só de olhar. Estava escurecendo esua imagem ficava a cada minuto mais misteriosa. Sentia um friona espinha só de pensar em estar pendurado naquele enormeparedão, debaixo de chuva e à mercê dos ventos fortíssimos queassolam a região. Um simples descuido e tudo acabado. Eusentia que o fantasma da morte rondava o pico.

Stanislau colaborou com o jantar oferecendo algunsgêneros. Depois conversamos longamente com o índio, que noscontou sobre os costumes de sua tribo e a tradição guerreira dosianomâmis.

Segundo ele, os kohoroxitaris viviam às margens doigarapé Tucano. Por volta de 1949, tiveram contato com padreAntônio Góes, que, após muita insistência, conseguiu conven-cer toda a tribo a se mudar para as margens do canal deMaturacá e do rio Ariabu, onde vivem até hoje. Entretanto, pormotivos políticos, em meados de 1975, os irmãos Joaquim eDaniel brigaram, dividindo a aldeia em duas partes: Ariabu eMaturacá, que permanecem até hoje separadas dessa forma,mas [ó sem conflitos.

Stanislau contou também que os índios se interessam porquase tudo que o homem branco traz da cidade, desde que nãosejam ferramentas e máquinas para trabalhar.

"É impossível chegar lá em cima."

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- o que eles querem mesmo é conforto e muitas armase munições. - Ele falava como se também não fosse um índio.

Stanislau e Mílton foram dormir no tapiri; nós aindaficamos mais umas duas horas discutindo nossas possibilidadese estudando o velho mapa manuscrito. Tinha que haver umaforma de contornar o pico e encontrar a trilha original. Essa eraa nossa esperança. Senão estaríamos numa fria, pois nossacomida já estava acabando.

Com a altiva visão do pico da Neblina em nossas mentes,caímos no sono. Aquela imagem impressionante penetrou emmeu subconsciente e encheu minha noite de sonhos estranhos esem nexo, onde ele era sempre o protagonista.

o desafio da serra da Montilla

Mucura. O melhor acampamento de toda a expedição,apesar de ter sido a noite mais fria da viagem. Desarmamosrapidamente a barraca sob os olhares curiosos dos índios,impressionados com o seu formato.

Dia 23 de dezembro, 8,25 h. Vamos sair daqui da grata daMucura em direção à grata do Gelo, subindo a serra da Montilla.Será que conseguiremos? Não percam a próxima gravação!Estamos com IÓ graus agora.

Reiniciamos a caminhada voltando até o acampamentodo Vento para retomar a trilha, rumo à tão comentada serra daMontilla, nosso próximo desafio.

Não havíamos caminhado nem 20 minutos quando doisgarimpeiros passaram por nós, cada um com uma cesta debambu nas costas e um facão na mão. ~

- Bom dia! Como vai, tenente? - cumprimentou umdeles, acertando em cheio minha patente. Eu era mais reconhe-cido ali do que em meu próprio bairro.

Perguntamos como é que eles conseguiam andar tão bemnaquela lama e ficamos assustados quando eles disseram que

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pretendiam retornar da Merenda naquele mesmo dia, fazendona metade do tempo o dobro do percurso que fizemos em quasedois dias de penosa viagem. Chamavam-se Lourival e Ivo, e seustrojes resumiam-se a um calção grosso, botas impermeáveis ecamiseta, levando à mão o facão para abrir caminho.

- O sargento Ferreira? Está lá conosco, sim - respon-deu Lourival. Aquela notícia foi estimulante para nós. Elesseguiram viagem rumo à Merenda, e nós continuamos a duracaminhada, atolando a cada passo naquela esponja nojenta.

A trilha aos poucos foi ficando mais inclinada, até setornar uma subida íngreme e interminável. A chuva e o ventovoltaram a castigar, deixando o caminho ainda mais escorrega-dio. A fadiga era tanta que parávamos a cada 100 metros, coma respiração ofegante e os ombros amortecidos pelo peso damochila. Não víamos nada além de neblina.

Lourival tinha dito que, mais à frente, encontraríamos umaformação de pedras que nos protegeria da chuva.

Andamos muito tempo ainda até atingir uma enormepedra. Em um de seus lados, uma pequena área seca, bemestreita, nos aguardava. Deitamos ali de mochila e tudo. Agaroa foi ficando ainda mais forte e logo virou tempestade, comum vento forte e gelado.

Eu estava congelando. Estava ficando impaciente denovo. Minha preocupação com o horário era uma constante,pois não queria passar novamente pela experiência de pernoi-tar em local impróprio, como a grota da Merenda.

Com a chuva forte, inúmeros filetes de água escorriampela pedra molhando aquele pequeno espaço que nos abriga-va. Os filetes foram aumentando em número e volume, impedin-do que continuássemos deitados. Em pouco tempo ficou tudodebaixo de chuva.

O desespero foi geral. Nossa situação estava crítica. Alirealmente não dava mais para ficar. Mesmo debaixo de fortechuva, levantamos e prosseguimos. Nossas capas estavam bastan-te iudiadas. Muitos rasgos e furos, que iam molhando aos poucos

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a gandola e nosso corpo. A única vantagem era que mantinha umpouco aquecida a água ali dentro. Caminhando, o frio nãoincomodava muito, mas havia o cansaço, as dores nas costas, nosombros e pés, e os passos atolados até quase o joelho.

Contudo, caminhar ainda era a melhor opção, poisdiminuía a distância entre nós e o pico. Na trilha, eu procuravapisar exatamente nas marcas deixadas pelos passos dos garim-peiros. Deveria ser o melhor lugar, pois caminhavam ali numavelocidade incrível e com grande performance.

Num trecho do cominho encontramos enormes pedrassobrepostas que formavam um longo corredor, uma autênticacaverna. Esseera o lugar que Lourival indicou e não aquele quequase nos matou de frio. Mas não era o caso de pararnovamente para descansar. Tínhamos que continuar, pois jáestava ficando tarde.

A chuva foi diminuindo até parar. A inclinação docaminho aumentava e, com a dissipação da neblina, pudemosavistar o cume da serra da Montilla. Embaixo ainda não se vianada, mas olhando a oeste e a noroeste voltamos a contemplara imensidão do platô da serra da Neblina.

Olhei para trás e não pude acreditar no que via. Os doisgarimpeiros que haviam passado por nós há menos de 3 horasjá estavam nos alcançando. Nós demoramos quase dois diaspara realizar o percurso e eles menos de 3 horas!

Lourival nos alcançou antes de Ivo, carregando a mochilalotada de suprimentos. Ele parecia bastante disposto.

- Quantos quilos você está carregando nas costas?-perguntou Sabadin ao outro garimpeiro.

- Uns 30 quilos - respondeu Ivo.

- Como vocês conseguem caminhar tão rápido comtodo esse peso?

Os garimpeiros foram aos poucos desaparecendo pelatrilha, apesar de continuarmos caminhando na mesma direção."Esses caras são uns touros. Nem se cansam. Para tantadedicação, deve haver muito ouro aqui em cima!"

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A inclinação aumentou tanto que só nos restou à frenteuma rampa de menos de 200 metros para atingir o topo. A visãoera magnífica. Ao longe, alguns trechos do platô estavamensolarados. Um bando de araras vermelhas cruzava os céusnaquele instante, dando um pouco mais de vida à paisagem atéentão sombria e misteriosa.

Os últimos 30 metros foram os piores, com muita lama epedras, inclinação quase máxima. Tive de me agarrar em raízese bromélias para subir. Parecia que meu coração ia sair pelaboca. Edson, Sabadin e Mílton estavam todos em pé, olhandopara o outro lado da serra, e nem me viram chegar. Levantei-mee, ao olhar em frente, fiquei paralisado com o que vi. Erasimplesmente tenebroso. Daquele lado, a serra era um enormeabismo de mais de 300 metros de altura. Lá embaixo, umenorme vale, repleto de bromélias e outras plantas típicas doscampos de altitude. Do outro lado, alguns quilômetros adiante,uma enorme montanha se elevava bem alto, muito acima donível em que estávamos; seu cume estava totalmente coberto poruma camada espessa de neblina.

Era uma visão medonha. Apesar da distância, suaimponência era incrivelmente assustadora. Aquele era o pico daNeblina, o ponto mais alto e misterioso do país. .

São 12,53 h. Conseguimos atingir o topo da serra da Monti//a.Muito sacrifício! Cheio de pedras! Foi praticamente uma escaladao que fizemos.

Dá para ver quase que a região inteirinha. O pico estátotalmente encoberto. Altitude: 2500 metros. Temperatura: 20graus.

- Os caras desceram por aqui - disse-me Sabadin,apontando para a continuação da crista da serra, que descia anoroeste. - Quando cheguei deu para vê-los bem lá embaixo.

Peguei os mapas para estudar a região. Tudo indicavaque uma pequena serra à esquerda do pico era a serra do Ouro.Olhando com bastante atenção dava para ver o local ondegarimpava a turma do Guilherme. Uma enorme lona azul

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cobrindo o tapiri, contrastando com as cores da vegetaçãO,identificava o ponto exato da grota da Pepita.

A grota do Gelo não era visível dali; só conseguiríamosavistá-Ia quando estivéssemos bem próximos. Essa era a infor-mação dada por Guilherme e confirmada por Lourival.

Muitos pontos do platô estavam queimados. Eram.enor-mes áreas, em forma de círculo, onde a vegetação apresentavacor amarelada e negra. Tudo indicava ser obra dos garimpeirospara facilitar a abertura de trilhas e a remoção do cascalho dasgrotas.

Pensávamos que a partir dali seria mais fácil e rápida aprogressão, pois era apenas descida. Decepção novamente. Alama era tanta e tão mais funda, que o perigo de cair montanhaabaixo não era pequeno. A nossa passada era irregular.Descíamos devagar, pisando em tufos de bromélias e de um tipodiferente de capim. Escorregávamos, ou caíamos de vez nalama, ou descíamos quase que correndo montanha abaixo,procurando segurar em qualquer coisa que aparecesse.

Às 4 horas da tarde, finalmente, alcançamos a grota doGelo. Menos de 50 metros por ali e atingimos o acampamento,onde alguns garimpeiros descansavam após um dia inteiro detrabalho.

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o PREÇO DA RIQUEZA

- Po.a:a/ Va.cêd. ~ ~ - disse Lourival, queestava sentado em cima de uma lata.

- Que caminho mais desgraçado é esse! - desabafei.- Não sei como vocês conseguem caminhar aqui.

- A gente está acostumado - respondeu ele.

Ali estavam seis garimpeiros: Lourival, Ivo, Goiano,Ferreira, Jacinto e Manoel, um índio tucano. Goiano era o líderdo grupo e também o mais experiente. Seu nome era Sebastião,tinha 32 anos de idade e já havia passado por inúmerosgarimpos pelo Brasil.

- Eugarimpo desde 1980. Sul do Pará foi onde primeirogarimpei. No alto Tapajós, em Itaituba, Mato Grosso, Macapá,Rondônia. Já estive em Rondônia uns tempos, entende?

- Então vocês vivem disso aí, não? - perguntouSabadin.

- Vivo disso. Vivo de garimpo. De uns tempos pro cá minhaprofissão é garimpo, mesmo; e todo o tempo dentro do garimpo.

- Vocês passam quanto tempo no mato, assim?

- Às vezes passamos 90 dias, passamos 60, ós vezespassamos mais, passamos menos. Conforme a sorte. As vezes

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a gente vem com Sl sorte boa, arruma logo o produto e vaiembora, entende? As vezes chega meio ruim e a gente tem queficar muito mais dias, entende?

- Essacaminhada que nós fizemos - começou Sabadin -,vocês fazem com quantos quilos?

- O normal é 30 quilos, entende? Agora tem uns quecarregam 35, outros 40, entende? A média é 30, é a base devir de lá e chegar aqui no garimpo.

Isso é que é vida sofrida. É muita luta. Dormem em rede, embaixode uma tenda esticado sobre um tapiri de troncos de palmeiras. Umafogueira para fazer a comido e esquentar as noites frias. Muitadedicação e sofrimento por um único obietivo: a riqueza!

O acampamento ficava na margem direita da grota doGelo, desembocando num riacho maior, que, segundo Goiano,era o rio Ariabu. "Olá, Ariabu. Lembra-se de nós, lá perto daaldeia? Logo estaremos na sua nascente, bebendo de sua águalímpida e cristalina, que jorra do ponto mais alto do país."

Com Goiano e seus amigos pudemos entender o que eraa vida de garimpeiro. José Ferreira da Silva, o ex-delegado deSão Gabriel e sargento da Polícia Militar do Amazonas, estavalicenciado e, em vez de procurar lazer e descanso, estava ali,naquele mundo cruel e inóspito, longe da família e dos amigos,com um único objetivo na mente: o ouro.

Entretanto, todos ali foram unãnimes em dizer: "Escalar opico é impossível. Aquilo é só paredão!" Nem por isso procu-ravam nos desanimar, mostrando muita boa vontade em passaras informações sobre a região.

- O melhor que vocês fazem é retornar até a Mucura epegar um desvio até a trilha tradicional. Por lá pode até ser quedê para escalar. Mas, poraqui ... nãosei, não-disseGoiano.

Por causa dos problemas com nosso material, como botase mochilas arrebentadas, resolvemos passar o dia seguinte ali,colocando tudo em ordem e recuperando um pouco as energiasdespendidas. Assim, enquanto arrumássemos o material, pode-ríamos decidir que rumo tomaríamos.

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Montamos nossa barraca perto do tapiri deles, bem nabeira da grota do Gelo. Antes de colocar a roupa limpa e seca,resolvemos lavar a roupa sujo e tomar banho nas águas geladasdoAriabu. Depois improvisamos um varal para estendera roupamolhada e fomos para junto da fogueira tomar um café bemquente.

Sabadin aproveitou o resto da tarde para gravar umaentrevista com Goiano, o garimpeiro mais experiente de todo oalto rio Negro e responsável pela abertura de todas as trilhasexistentes ali nas proximidades do pico da Neblina.

- Goiano, como é que faz mesmo o processo lá? Vocês[oqorn o cascalho em cima da bancada e depois ...

- Depois a gente vai lavar tudo. Ou seja, fazer a "cobrafumar" - disse ele.

- Fazer a cobra fumar?

- Sim, primeiro a gente tira o barro que tem o ouro. Àsvezes tem até um pouquinho de ouro, mas não compensa agente ficar procurando manualmente. Aí a gente quebra ocascalho com as marretas, joga o ccscolho em cima dabancada e depois a gente faz a cobra fumar. E um cocho e umacaixa. Enquanto um vai jogando o cascalho em cima do cocho,outro vai [oqondo água, com um balde. Aí você pega o produtoque ficou retido pelas ripas do cocho, leva para a bateia, vaibatear ele, vai limpar o ouro e depois leva co fogo.

- Para que queimar?

- Queimar para enxugar. É porque ele está molhado esó seca no fogo ou com sol muito quente.

- Então nesse processo da cobra fumar o lance é [oqoro cascalho dentro do caixote?

- É só jogar dentro do caixote e passar pela cobrafumando.

- Tirando o cascalho daqui e jogando lá dentro, tudo o,que pára dentro do cocho nas ripas transversais, de pequenini-nho assim, é ouro?

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- Não. Nem tudo é ouro! Tem outros materiais, fica oesmeril, fica o ferro ...

- Ferro? Aqui tem ferro?

- Tem, sim.

- Ferro vem junto com o ouro?

- Vem junto com o ouro.

- Esseesmeril é igual ao ferro?

- Não, o esmeril é um material que não vale nada e sempreacompanha o ouro, entende?

- Então os três mais pesados são o ouro, o esmeril e o ferro?

. - É, sendo que o ouro é o mais pesado de todos.

- Ecomo vocês fazem para separar oourodoesmeril e do ferro?

- A gente tem ieito. A gente usa a bateia para separar os três.

Para descobrir em que local existe ouro, Goiano utilizauma cuia para o teste aurífero.

-Agente vai vendo um ponto, outro, de metro em metro.A gente vai testando. A gente vai vendo o que tem, se compensajogar para cima, na bancada, ou se é melhor abandonar e irpara outro lugar.

- Qual é o número de pessoas necessário para fazeresse processo?

- No mínimo três. Mas a equipe boa mesmo é de seis.Assim trabalha bem, sem parar.

O garimpeiro pegou uma cuia e um enxadão. Levou-nosaté a beira do rio Ariabu; escolhemos um ponto qualquer, elecavocou, colocando um pouco de areia dentro da cuia. Aí elecomeçou a mexer a cuia mergulhando-a nas águas do Ariabu,fazendo com que o material mais leve fosse levado pelacorrenteza. Após uns 4 minutos de operação ele nos mostrou acuia e, dentro dela, pudemos observar algumas fagulhas deouro junto com areia fina, esmeril e ferro.

Goiano conseguiu tirar algumas fagulhas de ouro h Ele nosdisse que deve ter uns três pontos, que não chega nem a um décimode grama ... mas é sinàl que tem. .

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Um garimpeiro mostro como achar ouro.

Ficamos sabendo também que as cantinas que havia nasaldeias foram montadas por Goiano, em troca da permissãopara garimpar na área. Ele gastou uma fortuna com elas e, porisso, era bastante respeitado pelos tuxauas.

Naquela noite, jantamos arroz com jabá, feijão e muitoxibé, refeição que nos foi oferecida pelos garimpeiros.

Fomos dormir tarde, por volta de 1 1 horas da noite,depois de muita conversa com os garimpeiros. Estávamos bemalimentados e já recuperados da fadiga. Nosso único problemaera a dúvida que nos atormentava: continuar por ali ou retornaraté a trilha tradicional?

Véspera de Natal

Acordamos tarde no dia seguinte, 24 de dezembro,véspera de Natal. Já eram quase 10 horas e o sol dominava umcéu azul, quase sem nuvens.

- Bom dia! - cumprimentou Ferreira, enquanto prepa-rava o café junto do fogo.

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Os outros já estavam trabalhando no Ariabu, jogandoccscclho sobre uma bancada que havia na margem oposta.

Ferreira preparou café com leite e nos ofereceu umsaquinho de milharina (flocos de milho pré-cozido) para engros-sar o leite. Eu nunca havia provado aquilo, mas era uma delícia.Colocava um punhado dentro do copo, punha um pouco maisde açúcar e parecia que eu estava comendo um delicioso bolode fubá feito pela minha mãe. Foi o café mais gostoso desde quesaímos de São Paulo. Superou até o de Manaus!

Sentamos com nossas mochilas sobre os troncos depalmeira. Cada um começou a consertar suas coisas. Sabadintinha dois grandes problemas: a alça da mochila e suas botascom as solas totalmente descosturadas. Edson se ocupava comalgumas costuras de sua mochila, e eu estava ficando malucotentando costurar a sola da minha bota.

Eu estava usando a única agulha grossa que tínhamos eempurrando-a com minha faca. A sola era tão grossa que aagulha logo quebrou. Fiquei uma fera e comecei a gritar deraiva. Naquele instante aconteceu algo que me deixou perple-xo. Mílton, que até então não tomava parte em nada do quefazíamos, chegou perto de mim e disse: "Calma! Calma!"; foiaté o outro lado do abrigo, junto à fogueira, pegou uma lata dequitute do lixo, arrancou seu abridor e me trouxe:

- Agulha! Boa agulha!

Eu mal podia acreditar. Aquele índio, em questão desegundos, improvisou uma superagulha para costurar bota que,além de inquebrável, tinha olhai!

- Edson! Sabadin! Olhem isto! Foi o Mílton que fez.

- Poxa! Depois vê se me empresta para costurara minha,hein? - Sabadin virou para o índio: - Grande Mílton!

Durante toda a manhã, ficamos discutindo nossa situaçãoe, após muita conversa, decidimos continuar por ali mesmo. Namanhã seguinte iríamos até a grota da Pepita e de lá seguiría-mos o azimute até a base do pico.

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Ferreira chamou para o almoço. Depois do almoço,Lourival e Ivo foram à grota da Pepita buscar alguns materiaislá deixados.

Com O mapa aberto, estudamos nosso percurso. O picoestava logo à frente e isso era um ponto positivo: não haviacomo se perder ali. Era seguir o azimute ou, se a neblinapermitisse, seguir aquela imponente elevação. O problema eradescobrir por onde escalar. Outra preocupação era encontrara trilha tradicional e voltar por ela.

Resolvemos seguir até a Pepita e de lá rumar até o alto deuma linha de cumeada que une o pico da Neblina a um outro,possivelmente o do Cardona. Atingindo essa cumeada, iríamospor ela até a base do pico e lá escolheríamos o melhor pontopara escalá-lo.

Quanto à volta, encontrando a trilha tradicional, voltarí-amos para o Cauaburi por lá. Nossa grande preocupação,realmente, era a escassez de suprimentos.

Depois de discutir nosso trajeto, fomos para perto dosgarimpeiros, que trabalhavam duro. Não tinham um minuto defolga.

Observamos algo curioso. Desde cedo o sol castigavatoda a região. O solo continuava encharcado como sempre,mas tudo que se encontrava a mais de 10 centímetros dele jáestava seco e quebradiço. Era só acender um fósforo e pronto:toda a folhagem poderia incendiar-se rapidamente. Era por issoque vimos do alto da Montilla áreas queimadas. O garimpeiro,para abrir uma clareira, apenas espera o sol sair e, algumashoras depois, com um único palito de fósforo, provoca grandedestruição.

. Às 4 da tarde, um vento forte, repentino, trouxe umacamada de nuvens negras. Nem um minuto decorreu e uma fortetempestade começou a cair. Parecia que o mundo ia desabar.Todos os garimpeiros abandonaram o trabalho e buscaramabrigo no tapiri. Montaram suas redes e deitaram-se rapidamen-te, aproveitando a folga imposta pelo temporal.

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Meia hora depois a chuva parou e saímos da barraca.O rio Ariabu estava incrivelmente cheio, com uma correntezatão forte que, se um de nós caísse ali, chegaria em menos deuma hora ao canal de Maturacá. A grota do Gelo estavainvadindo aos poucos o chão do abrigo dos garimpeiros e afrente de nossa barraca. Aos poucos a água foi alagando tudo,chegando a atingir 5 centímetros acima das folhas de palmeira,que eram nosso colchão improvisado.

Mas isso não foi o pior. A força da correnteza destruiu otrabalho de semanas dos garimpeiros. Ela levou todo o cascalhojogado às margens e, com ele, o ouro que procuravam extrair.

- É, vamos ter que começar tudo de novo - disseGoiano meio chateado.

Aos poucos o nível da água foi descendo e, em menos deuma hora, voltou ao normal.

No jantar, contamos aos garimpeiros nossa decisão deprosseguir por ali mesmo.

- Eaí, Mílton? - perguntei. - Vamos subir a montanha,então?

- Devagar, bem devagar - disse ele.

Não compreendi o que ele quis dizer. Devagar por quê?Estaria ele cansado? Não, esse realmente não seria o motivo.Mas como entender o que se passa na cabeça de um índio?

Após o jantar, Goiano contou que todos os garimpeirosda região sabiam que estávamos subindo a serra. TuxauaJoaquim havia escrito uma carta a todos, determinando retornoimediato à aldeia, pois a Polícia Militar e a Federal estavamsubindo a serra para prender todos os garimpeiros. Ele até nosmostrou a carta, trazida por um índio mensageiro.

Aquilo era incrível. Fiz questão de fotografar a carta. Era porisso que todos me chamavam de tenente e nem se assustavam comnossa chegada. Estava tudo explicado. Mas também tivemos muitasorte. A carta podia ter surtido efeito contrário. Muita riqueza estavaem jogo e, se nos matassem ali no meio da selva, dificilmentealguém acharia nossos corpos. Foi muita sorte.

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Acabamos rindo da situação. Ficamos imaginando o quepassou pela cabeça do Guilherme e sua turma ao nos verchegar. Deviam estar esperando um pelotão armado até os

. dentes e depararam com três famintos, quase mortos de :::ansa-ço, e mais um índio inocente com uma espingarda enlerrujodoe um único cartucho. Fomos dormir rindo.

O alarme de meu relógio disparou um pouquinho antesda meia-noite. Edson e Sabadin acordaram espantados comminha contagem regressiva:

- Três... dois ... um... Feliz Natal pra nós!

! '~ I

II

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eapiiuk 6

AOS PÉS DO GIGANTE NEBULOSO

IV atai. $ão- 8.36 k. Já tomamos um cafezão iunto com Ferreiroe suo turma e agora vamos prosseguir. Talvez hoie chegaremos oum marco próximo 00 pico.

Uma de minhas suposições, ao ler a carta da região, eraque, ali no alto, havia um marco da divisa Brasil-Venezuela.Era certa a existência de um entre nosso objetivo e o pico 31 deMarço, que vimos pela televisão quando da tentativa doExército. Não sabíamos ao certo se, por aquele caminho,atingiríamos o mesmo marco, mas torcíamos por isso.

Os garimpeiros foram muito bacanas conosco. O queparecia ser o maior perigo transformou-se em nossa salvação.Ferreira, sabendo de nossos problemas com suprimentos, nosdeu dois saquinhos de milharina, uma lata de leite em pó e maisum pouco de xibé.

Ivo e Lourival vão nos levar até o grato do Pepita, no boca docominho poro o base do' pico. O dia está bonito. Está um solmaravilhoso. A previsão de chegado lá é por volto dos 10, 15 h.

Ivo e Lourival caminhavam ali com extrema facilidade.Parecia que eles adivinhavam onde se podia pisar.

A trilho era praticamente plana e acompanhava o cursodo Ariabu. A nossa esquerda a serra do Ouro, um enorme

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paredão que apontava para o rumo certo. Já não havia comoperder o caminho. Nem 15 minutos tinham passado quandoavistamos o pico da Neblina, enorme, magnífico, mas com umapequena camada de neblina exatamente no seu ponto culmi-nante. Não era à toa que tinha esse nome.

São 9, 10 h. Novamente avistamos o pico. Desta vez temoscerteza de que é ele. É dividido em duas partes, s~ndo que seucume, daqui de nosso posição, fico mais à direito. A esquerdo háuma depressão em formo de corcunda. O pico mesmo estáencoberto pelo neblina. Parece uma elevação vulcânico.

Outro ângulo do pico da Neblina.

Olhando para aquela montanha eu sentia, ao mesmotempo, satisfação e medo. Ela parecia tão grande e intocávelque me fazia tremer. Como escalar seus paredões de pedra nascondições em que estávamos? Nem material técnico suficientepara isso a gente tinha. Alpinismo não é um esporte simples querequer apenas disposição; também implica responsabilidade.

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É preciso conhecer os limites e respeitá-los, fazendo tudo dentrodas regras fundamentais de segurança.

Para a escalada, dispúnhamos de uma corda de perlonde 45 metros, 6 mosquetões, 4 entaladores de tamanhosvariados, 6 fitas tubulares, 3 pitons, 2 baudriers e um cordirn de16 metros de comprimento.

O tempo estava esquisito. Uma brisa um pouco mais fortetrouxe de repente nuvens que, em poucos minutos, encobriramtodo o céu. Parecia que ia chover.

- Só faltava outro temporal igual ao de ontem! -reclamou Ivo.

Chegamos na grata da Pepita às 10,50 h. A grata, que é opróprio rio Ariabu, é bastante larga aqui, devido às escavaçõesfeitas pelos garimpeiros. Há um buraco enorme na grata. Elesdevem ter tirado bastante ouro daqui. Estamos no sopé do pico daNeblina.

A grata da Pepita.

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TA chuva começou a cair e todos corremos para debaixo

de um abrigo. Ali eles eram mais bem montados que emqualquer outro lugar. Eram verdadeiras palafitas, com pisosuspenso do solo uns 50 centímetros. Cobertura de lona azul,a mesma que tínhamos avistado do alto da Montilla.

A linha de cumeada, nosso próximo objetivo, poderia serdescrita como um muro que une o pico da Neblina com outroà esquerda, que suspeitávamos sero do Cardona. Através dela,atingiríamos facilmente um ponto mais próximo do cume e,possivelmente, de fácil ascensão. Se fôssemos direto para opico dali, enfrentaríamos um paredão de mais de 200 metrosde altura, praticamente intransponível.

A chuva havia passado; Ivo e Lourival despediram-seretornando ao Gelo. Antes, porém, nos mostraram o início deuma trilha que possivelmente nos levaria até próximo do pico.Seguimos porela. Era bem aberta e de solo firme. Naquele ritmopoderíamos chegar ao alto antes das 3 horas e talvez até fazerum reconhecimento na base do pico.

Enquanto caminhávamos, o sol oporecio por uns momentose tornava a desaparecer atrás das nuvens. As vezes uma rajada devento mais forte trazia uma camada grossa de neblina, limitandoa visibilidade. O clima ali era totalmente imprevisível.

A certa altura a trilha se dividiu em 3 variantes' umaseguia em frente e as outras iam para a' direita e poro aesquerda. Pelo azimute a direção correta era a que seguia emfrente, mas, por precaução, experimentamos um trecho daslaterais, que apresentavam sinais de maior uso.

Mas o caminho certo era mesmo aquele que obedecia aorumo indicado pela bússola, apesar de parecer pouco freqüen-tado. Prosseguimos por ali; só que, 50 metros depois, a trilhadesapareceu, transformou-se em puro mato, com galhos retorci-dos, pedras enormes e muito espinho.

Nosso ritmo diminuiu muito. As mochilas se enroscavama todo momento. Era uma vegetação esquisita, formada porpequenas árvores, arbustos e bromélias. O solo era o mesmo de

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toda a região, uma esponja lamacenta e malcheirosa; e agora,além das pequenas pedras submersas, apareciam outras, tãograndes que, às vezes, passávamos por baixo, como seformassem cavernas. Num trecho fomos seguindo por cimadelas dezenas de metros, até chegar a um ponto de onde nãohavia como descer. Tivemos que voltar e contorná-Ias por baixo.

Aquela tarde foi horrível. Sem trilha para seguir, tínhamos deconsultar a bússola a cada minuto e corrigir o rumo. Caímos váriasvezes, atolando na lama ou escorregando de cima de uma pedra.Os espinhos machucavam nossas mãos. O nervosismo foi tomandoconta de todos, e tudo era motivo para xingar e gritar.

Olhávamos à frente e parecia que não tínhamos progre-dido quase nada. Já estava entardecendo e a neblina colabo-rava para a escuridão cair mais cedo. Edson encontrou um lugarrazoável para acampar e montamos ali a barraca, no alto deumas pedras enormes junto a algumas árvores. Desde que nãoventasse muito forte, ali estaríamos protegidos.

Seis da tarde. Temperatura: 17 graus. Faz mais ou menos umahora que chegamos aqui no alto, nas proximidades do pico daNeblina.

Aquele era o primeiro acampamento sem água. Sabadine Mílton pegaram os cantis vazios e as canecas e foram procurarágua. Retornaram uns 20 minutos depois, com uma águaescura, um pouco suja. "Tivemos que catar do chão." Mas foio suficiente para fazer a comida e o refresco de laranja, que nempor isso sobrou.

A noite estava bem fria e uma garoa fina caía o tempotodo. Antes de dormir, Sabadin colocou em ordem seu diário.Aproveitei a luz da lanterna e, fiquei tirando os espinhos damão. Aquele foi o Natal mais cansativo de nossas vidas.

Primeiro contato com o pico

Acordei com uma forte claridade que ultrapassava acobertura amarela da barraca. Lá fora estava uma manhã linda,

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ensolarada, quase sem nuvens. O pico da Neblina estava alià nossa frente, completamente descoberto e brilhando à luz dosol. Sua imagem era magnífica e assim, completamente livre daneblina, não tinha nada de assustador.

Mais um ângulo do pico da Neblina.

Hoje é 26 de dezembro. Acordamos às 7 horas. Estamos nospreparando para mais uma caminhada em direçõo ao pico.Estamos com 16 graus. Altitude de 2300 metros, mas nõo estamosconfiando muito no aparelho. Está duro de vestir a roupa molhadapor causa do frio. Deveremos estar prontos lá pelas 9 horas parainiciar a caminhada. Esperamos que seja definitiva até a base dopico, para acamparmos e, amanhõ, tentar escalá-lo.

Reiniciamos nossa jornada. Uma garoa fina começou acair. Rajadas de vento deslocavam camadas de neblina quetraziam chuva forte e encobriam a visão. Mas durou pouco, elogo estávamos avistando grande parte da região que iaficando para trás.

Faltava pouco mais de 100 metros para atingirmos alinha de cumeada. A inclinação da vertente ia diminuindo aospoucos e também a dificuldade de locomoção. À direita, cadavez mais perto, aquele enorme maciço vulcânico, coberto por

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uma camada de neblina, voltou a ter uma aparência assustado-ra, mas sabíamos que era só fachada para espantar osinvasores.

Fomos atingindo o alto. Ali havia uma pequena elevaçãorochosa. Contornamos pela direita e, alguns passos adiante,contemplamos uma paisagem fria, assustadora, bastante dife-rente da que esperávamos. A neblina impedia que víssemosmuito. Estávamos sobre o enorme colo que une o pico daNeblina ao do Cardona. Do lado de lá um precipício cojo fimnão dava para ver.

O pico da Neblina estava logo ali à frente. Não resisti.Tinha que alcançar sua base naquele instante, não podia maisesperar. Sabadin concordou em vir comigo.

A base do pico estava a uns 150 metros de distância. Erasó seguir a crista e logo alcançaríamos o paredão da majestosamontanha.

- O lado que o Exército tentou escalar deve ser um poucoatrás daquele - observei, apontando para o canto esquerdodo maciço.

- Será que teremos de ir até lá para escalar opico?-perguntou Sabadin.

- Vai depender do que veremos ali à frente. Tomara quedê para escalar por aqui. Será uma conquista nova. Umpioneirismo que levará nosso nome.

Ventava muito, e a neblina ia ficando cada vez maisespessa, aumentando nossa ansiedade. Será que conseguiría-mos ver o local onde o helicóptero pousara em 1985? Eo marcoda divisa Brasil-Venezuela? Era o que faltava para comple-mentar meu mapa e desvendar a trilha que nos conduziria devolta, quem sabe, com menos sacrifício.

Estávamos bem próximos do paredão. Um tipo de capimalto, de hastes duras como taquaras finas, forçou-nos a fazer umpequeno desvio. "Estamos chegando. Poucos metros ... tt Atingi-mos a base do pico. Era um paredão liso, por onde escorriamfiletes de água, formando um chuveiro gelado.

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- Q,ue paredão! - exclamou Sabadin. - Como subirisso aqui? E praticamente impossível!

- Vamos descer à direita e ver se alcançamos aquelabrecha por onde desce a nascente do Ariabu. Quem sabe porlá dá para subir.

Seguimos o paredão descendo pela direita. Não sabiaprecisar quantos metros à frente, mas tinha absoluta certeza deque logo alcançaríamos o talvegue. No chão, um piso rochosoe repleto de liquens nos forçava a redobrar o cuidado para nãoescorregar. Muitas pedras e galhos barravam o caminho,diminuindo nosso ritmo e aumentando nossa aversão pelo lugar.Escutamos barulho de água correndo. Estávamos chegando ànascente do Ariabu.

Ali estava ela, uma modesta grota de um metro de largurae de profundidade desprezível em sua maior parte. Dali nãopodia ver o talvegue, pois eu estava ao lado do paredão.Precisava avançar mais alguns metros para observar melhor,mas não estava fácil. Eu estava a mais de um metro e meio dealtura em relação à água e, naquele momento, pular ali seria aúltima opção. Sabadin tentava dar a volta, mas a vegetação eramais fechada e embaraçada ainda. Tivemos que derrubar nopeito.

Atingimos o leito do Ariabu e olhamos para o interior daenorme fenda da montanha. Grande decepção! A neblina nãonos permitia ver muito. Tentamos avançar pelo leito da grota,mas as pedras estavam tão escorregadias e nossos reflexos tãoamortecidos que não foi possível continuar. Eu estava sentindouma estranha ojeriza por tudo aquilo. O jeito era voltar.

Contamos o que tínhamos visto. O cansaço nos venceu,e a decisão surgiu rápida e sem maiores considerações.

- Vamos contornar o pico pela esquerda e temorencontrar o local por onde o Exército tentou escalar e por ondea equipe do Clube Alpino Paulista conseguiu chegar. E a nossaúnica chance.

Montamos a barraca bem atrás da pequena elevaçãoque tínhamos contornado.

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•- Bem, o cardápio de ho]e é arroz tradição com passas,

estrogonofe de queijo com primavera de legumes, muito xibe esuco de abacaxi - declarei a todos.

Depois de comer, as fisionomias eram sempre as mesmas."Estou quase satisfeito!" Mas não podíamos comer mais, poisnosso estoque estava no fim.

Por volta das 5 da tarde, a chuva parou de vez. Saímosda barraca e deparamos com uma das visões mais belas eimpressionantes que eu já registrei. Lá embaixo estava o cânionvenezuelano, uma enorme depressão em plena serra do Imeri,cercada por uma grande barreira de montanhas.

o cânionvenezuelano.

O pico31 de março.

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Aquela depressão deveria ter mais de 1000 metros dedesnível. Era impressionante e até um pouco assustador. Bem ànossa frente, uma montanha se projetava em direção ao centrodo cânion. Mais à direita, uma outra, de cume ovalado e bemalto. Não havia dúvida, era o pico 31 de Março.

Do pico da Neblina só se via aquele paredão. Do altodele descia uma forte cachoeira. Parecia impossível aquilo. Aparede terminava num cume ovalado e, alguns metros abaixo,como que por mágica, jorrava toda aquela água, formandouma grande cachoeira de mais de 50 metros de altura.

Ela era magnífica. Nada tem a ver com o rio Ariabu, quêcorre do ápice do pico da Neblina e desce a montanha maisà direita, abaixo da linha de crista em que estávamos, correndoportanto para o lado brasileiro da serra do Imeri. A cachoeiracai exatamente em cima da linha de crista, só que suas águasencontram passagem para o outro lado, escorrendo para onorte, bem ao fundo do cânion venezuelano. Se aquelacachoeira estivesse alguns metros mais à direita, toma'ria umrumo completamente diferente.

Uma cachoeira de mais de cinqüenta metros de altura.

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Voltando à barraca, peguei o mapa da região, quecopiei de uma revista do Batalhão de Forças Especiais doExército, num artigo que citava a tentativa de escalada do picoem 1985. Era o único mapa em que constava com mais clarezao pico da Neblina, mas tudo indicava ter sido desenhado aolho, desconsiderando detalhes, o que me impedia de identifi-car com exatidão o ponto onde estávamos.

Não estava mencionada no mapa, por exemplo, adireção exata do norte magnético. As curvas de nível descre-viam uma montanha bastante regular, em nada parecida como pico, que praticamente se divide em duas montanhas, cortadopelo talvegue nascente do rio Ariabu. Isso nos colocava emeterna dúvida quanto à localização da outra trilha por ondeprecisaríamos voltar.

Eu supunha que, contornando a montanha à esquerda,alcançaríamos a face tradicional e o marco da divisa Brasil-Venezuela, situada a 687 metros do pico, entre este e o 31 deMarço. E minha suposição fazia sentido, pois o 31 de Marçoestava logo ali à frente. Restava saber se o trajeto era possível.

- Afinal, nós estamos na Venezuela ou no Brasil? -perguntou Sabadin.

- Estamos no Brasil. Lembram-se daquela montanha quenão sabíamos dizer se era o 31 de Março ou o Cardona ououtra qualquer? - Agora tenho certeza de que aquele é o picodo Cardona. Bem no ápice dele há um marco da divisa Brasil-Venezuela, sendo portanto um pico binacional. Aquela outramontanha que vimos bem aqui à frente, que se projeta pelocânion adentro, deve ter também um marco de divisa interna-cional. Portanto, se unirmos os marcos com uma linha retaveremos que a Venezuela fica mais à esquerda, dorninondotodo o cânion. Só uma pequena faixa, em forma de bico, queinvade a sudoeste até um ponto entre o pico da Neblina e 031de Março é território venezuelano.

- Não entendi - disse Edson. - Então o marco quevimos na televisão não fica sobre uma linha reta, como elesdisseram?

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T - O marco fica exatamente no ponto em que as duaslinhas se unem. Isto é, dali partem duas linhas formando umângulo agudo, uma em direção ao cume do Cardona e outraem direção àquela outra montanha, que vimos aqui à frente.Tanto o pico da Neblina como o 31 de Março ficam totalmenteem solo brasileiro. E aqui onde estamos, podem conferir,também é o Brasil. A linha divisória deve passar a mais ou menos1 quilômetro à frente, bem por cima dessa enorme depressão.

Mas o mapa desenhado só fazia aumentar nossasdúvidas. O pico do Cardona não era citado, e toda a regiãopor onde tínhamos passado nem constava no mapa, quedescrevia apenas o outro lado do igarapé Tucano, por ondepassa a trilha tradicional. Fazendo a triangulação do terrenocom a bússola, aproveitando que o 31 de Março era visível econstava no mapa, eu chegava à conclusão de que ele tinhasido feito apenas para uma noção geral. Baseando-se nelenossa posição estaria bem no meio do cânion.

No dia seguinte, porém, tudo ficaria esclarecido. Contor-naríamos o pico pela esquerda, encontraríamos sua facetradicional de escalada e lá armaríamos acampamento. Namanhã do outro dia, com o mínimo necessário para executar aascensão do cume, partiríamos para a batalha final. Não haviacomo errar. Contornando o pico, encontraríamos o marco dadivisa e de lá só teríamos de seguiros mesmos passos da equipedo CAP e da tropa do Exército. Tudo parecia ter ficado maisfácil e a esperança de chegar embalou nosso sono.

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DERROTADOS PELA NATUREZA

dlGje é 27 de~, 8,40 h. O pico continua encoberto.Nós vamos tentar contorná-lo, iunto ao paredão. Está muito frio edaqui dá para ver o grande cânion venezuelano. Vamos ver seconseguimos uma vitória hoie.

Estava chuviscando. Colocamos as roupas molhadas egeladas, socamos todo o material na mochila e saímos.

Como choveu pouco durante a noite, a cachoeira voltoua ser uns poucos filetes de água escorrendo do alto damontanha. Não parecia ser muito difícil contornar aquelaelevação.

- Vejamos ... Eu calculo meia hora de caminhada. Picoda Neblina, aí vamos nós!

Uma espessa camada de neblina chegou encobrindotudo. Mal dava para ver o companheiro da frente. Com muitosacrifício atingimos a cachoeira. Nossos cantis estavam vaziose, no chão, a água escorria por baixo de líquens. não sendorecomendável pegá-Ia dali. Sabadin foi para debaixo dacachoeira e, com as mãos por dentro do poncho, improvisouuma canaleta, por onde a água caía como numa bica. Edsonpegou sua caneca e com ela encheu todos os cantis.

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Iniciamos o contorno do paredão. Nos primeiros metrostudo parecia fácil, mas logo as dificuldades foram aparecendo.O relevo nos forçava a subir, não havendo como contorná-lonum mesmo nível. A neblina estava ainda muito forte e desloca-va-se ao sabor do vento. De repente não podíamos ver umpalmo diante do nariz. E a chuva caía. Foram muitos tombos etropeços em pedras e raízes. Nosso ritmo de progressão foidiminuindo muito, chegando ao extremo de ficarmos maistempo parados do que andando. O desespero começou ainvadir nossa equipe, eram os primeiros sintomas.

Descansamos um pouco, sentados no chão encharcado.

- Vamos continuar, gente, é nossa única chance. Vocêsvão ver, nós vamos conseguir - disse, sem acreditar em minhaspróprias palavras.

Levantamo-nos. Sabadin me ajudou a escalar outrapedra. Minha bota estava com a sola totalmente solta, causan-do um grande incômodo. As mãos doloridas e o excesso deumidade dificultavam a escalada. Mas o principal estorvo eramesmo a mochila, que desequilibrava o corpo aumentando orisco de queda. Quanto mais subíamos, menores eram aspossibilidades de desvios, e o espaço ia ficando mais estreito.A inclinação da encosta do cãnion aumentava à medida quecontinuávamos, e o medo se agravava na mesma proporção.

Escalando uma pedra, escorreguei batendo o queixo.Gritei amaldiçoando tudo.

- Calma, calma! - disse Mílton, surpreendendo agente. - Vamos devagar. Bem devagar ...

Mílton nunca nos dirigia a palavra. Ele apenas respondiaàs nossas perguntas. Era a segunda vez que ele interferia.Estávamos com os nervos à flor da pele. Nosso amigo índio nosacalmou:

- Calma. Vamos bem devagar. Ninguém deve semachucar.

- Então eu vou subir sem a mochila. Depois vocêspassam todas para mim - sugeri.

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- Vamos lá. - Sabadin tomou a iniciativa. - Vouajudó-Io a subir.

Eu estava convicto de que, subindo por ali, atingiria alinha de crista do outro colo, que unia o pico da Neblina ao 31de Março. Apesar de toda a tensão, a esperança de confirmarminha suposição e visualizar o tão desejado objetivo meempurrava para cima.

Não havia em que segurar além de umas frágeis bromélias.Mas, sem o peso da mochila e utilizando as técnicas dealpinismo, alcancei o alto. A neblina estava bastante forte e caíauma garoa fina e irritante. Fiquei em pé e avancei alguns metros;O paredão à minha direita continuava enorme e invencível. Aesquerda, o perigoso precipício do cânion e por todo lado ocinzento da neblina. Mais alguns metros, mais outra pedra. Noalto, vi algo em que não queria crer. Aquele era o ponto final.Eu estava sobre uma pedra em forma de mirante. Um passo amais e eu despencaria num abismo. O paredão do pico desciapor ele, em pura pedra, totalmente lisa. Não havia comoprosseguir. Estava tudo perdido. A missão fracassara.

Eu estava arrasado. Admitir que todos estavam certos emduvidar de nossas possibilidades era por demais doloroso. Masera verdade. Nós fracassamos e teríamos que carregar essafrustração para sempre. Tanta gente nos aconselhou a abando-nar o projeto. Era loucura. Tinham razão, nós não éramos páreopara tanto. Subestimamos a natureza e, por isso, recebíamos ocastigo.

Meus pensamentos viajavam para longe, na velocidadeda luz. Vi toda a retrospectiva do Projeto Neblina, imagem porimagem, situação por situação, sofrimento por sofrimento.Foram muitos estudos, pesquisas, dias e noites de dedicação.Também foram muitas as pessoas que riram de nós, chamandoa gente de malucos, desmiolados. Que droga! Estava mesmotudo perdido.

Eu não devia satisfações a ninguém. Ao inferno todos!Riam quanto quiserem, mas saibam que nós tentamos até oúltimo minuto.

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- Eduardo! Aconteceu alguma coisa?

Olhei pela última vez para aquele precipício e para oparedão do pico. Fiz meia-volta, despedindo-me friamente doponto final da expedição. Na beirada da pedra onde meusamigos me esperavam, parei e fiquei olhando para eles, mudo.

- Vamos voltar para São Paulo - murmurei a custo. -Vamos voltar. Falhamos.

Impossível descrever a fisionomia de cada um ao ouvir anotícia. Só Mílton não se alterou muito, apesar de um certo arde compaixão. Edson se sentou de novo no chão e enrolou maisum cigarro. O silêncio durou um momento eterno. Até o ventosilenciou.

Meus pensamentos continuavam a perambular pelo pas-sado, trazendo-me à mente todos os fatos relacionados com aexpedição. A Funai não queria autorizar nossa passagem pelaárea ianomâmi, o IBDF não permitia nossa entrada no ParqueNacional, meu comandante fez de tudo para me dissuadir daaventura. Lembrei-me em detalhes da última reunião de oficiaisdo 2Q Batalhão de Polícia de Choque, onde fizeram a minhadespedida. Meu comandante desejondo-me boa sorte, apesarde dizer que, se eu fosse seu filho, não me deixaria ir por nadadeste mundo. Outros oficiais diziam que eu não retornaria.Naquele dia, só uma pessoa me encorajou e me fez sentirorgulhoso: o major Getúlio Gracelli. Meu comandante pergun-tou-lhe se ele me deixaria seguir adiante, se eu fosse seu filho.O major surpreendeu a todos levantando-se da poltrona edizendo, entusiasmado: "Se fosse meu filho, não só deixaria,como faria questão de ir junto! Augusto, boa sorte! Sei queconseg uirão!"

É bem verdade que, durante todo o planejamento epreparação, houve muitos momentos de alegria. Nem todosprocuravam nos ridicularizar. Muitos nos ajudaram com bastan-te satisfação. O Dr. João Luiz, diretor do Hospital Vital Brasil, eo Dr. Álvaro, venezuelano que estagiava naquele hospital,foram alguns dos que se dedicaram de boa vontade à nossacausa. O tenente Edílson, nosso grande amigo, também não

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poupou esforços. Lembro-me exatamente das suas palavrasquando nos deixou no aeroporto: "Eu boto fé em vocês! Sei quevão conseguir!"

-Nãodá mesmo para continuar?-perguntou Sabadin.

Expliquei-lhes o que havia visto. Sentei-me num canto ecalei-me.

- Vamos voltar - disse Edson. - Vamos voltar até SãoGabriel da Cachoeira, comprar mais mantimentos e retornarpara cá pelo caminho correto. Voltar para São Paulo, semescalar o pico, nunca!

Euestava abatido demais. Tudo de novo? Só de imaginarsentia o corpo todo doer. Eu estava me sentindo muito mal.

O retorno foi ainda mais penoso.

- Vamos voltar até a grota da Pepita - disse Edson.

Grota da Pepita. Lá embaixo, bem lá embaixo.

- Não seria melhor acampar no mesmo lugar de ontem?- perguntei. - Acho que não dá tempo de chegar à Pepita.Dessa forma amanhã podemos seguir direto para o Gelo, sesairmos bem cedo daqui.

- Negativo. Vamos embora daqui - disse Sabadinnervoso. - Vamos até a Pepita, custe o que custar.

O nervosismo impunha aspereza em todas as falas.Qualquer coisa era motivo para discutirmos. Mílton estavapreocupado conosco:

- Calma! Calma! Vamos bem devagar ...

O trajeto junto ao paredão estava bem mais difícil,devido ao nosso baixo moral.

Atingimos a pequena elevação, local de nosso últimoacampamento.

- Sabadin, vamos raciocinar juntos - disse-lhe impon-do uma falsa calma. - Se acamparmos aqui, teremos hoje atarde inteira para descansar e recuperar as energias. Assim,amanhã podemos ir diretamente para a grota do Gelo. - Fizuma pausa. - Se prosseguirmos hoje. chegaremos, no máxi-

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mo, na Pepita. Chegaremos tarde e supercansados. E, nopróximo dia, teremos que parar obrigatoriamente no Gelo, poisda Pepita até a Mucura é impossível ir direto, por causa da serrada Montilla, que é terrível.

- É verdade, Sabadin - disse Edson. - Continuar hojenão vai adiantar nada. De qualquer maneira estaremos no Geloamanhã à tarde. O ideal é ficar aqui e descansar bastante.

Sabadin concordou meio a contragosto. Mílton pareciater ficado mais contente. O coitado também devia estarbastante cansado e com muito frio, tremendo sem parar com osbraços cruzados e as pernas bem juntas.

É, não conseguimos ... No final do paredão, tinha uma subidoenorme em puro rocha. Conseguimos escolar até um certo pontodela. Lá em cimo, Eduardo verificou que não era possível continuarpor ali. Voltamos poro o mesmo acampamento em que estávamos.Amanhã, o gente verá o que vai fazer.

Armamos a barraca no mesmo local. Como era cedo,preparamos melhor o chão com folhas de bromélias. Precisáva-mos do máximo conforto naquela noite. Toda a região estavacoberta pela neblina, não dava para ver nem a cachoeira dopico, que continuava a jorrar incessantemente. Ventava umpouco e a ga roa voltava a ca ir.

Mal terminamos de ojeitor as coisas dentro da barraca e,por volta de meio-dia, caímos num sono profundo, de purocansaço.

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A CARTADA FINAL

:J)~~epteatvu1eioda. Tive pesadelos horríveis.Acordei agitado, com o coração batendo rápido. Os outrosainda dormiam. Voltei a fechar os olhos e fiquei pensando napossibilidade de uma última tentativa de salvar a expedição.Lembrei-me da manhã do dia anterior, quando fotografei o pico,completamente limpo da neblina, debaixo de um sol maravilho-so. Daquele ângulo, o talvegue por onde corriam as primeiraságuas do Ariabu parecia ser de pouca inclinação e semobstáculos maiores. Será que não conseguiríamos escalar poraquele caminho?

Não parecia má idéia. No dia anterior, quando fui comSabadin até o início do talvegue, podíamos ter avaliado malaquela área, devido ao nosso estado emocional.

- O que vocês acham da minha idéia? - comecei. -Já estamos aqui mesmo, junto do pico da Neblina, após 9 diasde sofrimento. Vocês não acham que, antes de voltar, a gentepodia dar uma cartada final? Vamos tentar escalar o picoatravés da nascente do rio Ariabu. Lembram-se de ontem demanhã? Não parecia tão difícil.

Embora sem muita esperança, eles concordaram. Dormi-mos mais um pouco e, por volta das 4 horas, acordei e fui

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preparar nossa refeição. Caprichei, pois começava a ver umpontinho de luz no fundo do túnel.

. Após o jantar, combinamos de levantar às 5,30 damanhã seguinte, para, antes das 7, começar a última tentativade escalar o pico.

Durante a noite, acordei várias vezes, preocupado como tempo. Como eu dormia no fundo da barraca, não haviacomo abrir o zíper da entrada e olhar para fora. Mas o barulhodo teto continuava. Chovia ainda bastante.

Piimmmmmm, piimmmmm, piimmmmm ... Acordei numsobressalto. Era o alarme do relógio. Cinco e meia. Desliguei-o e percebi que ainda estava escuro e que chovia. Olhei parao lado: todos dormindo. Acertei o alarme para 5,50 h e volteia dormir.

Cinco e cinqüenta: mesma situação. Seis horas: mesmasituação. Seis e dez: o dia clareava aos f?oucos, mas o som dachuva continuava. Seis e meia: chega! E agora ou nunca!

Acordei um por um. Era incrível a cara de desânimo detodos. Ao abrir a barraca percebi meu engano em relação aotempo. Não estava chovendo. A umidade da elevação, juntode onde montamos a barraca, escorria e pingava bem em cimado teto, dando a impressão de que chovia. E o barulho que euouvia era da cachoeira do pico, que continuava jorrando. Aneblina ainda dominava, mas já dava para ver a cachoeira eo paredão que nos derrotara no dia anterior.

Preparei o café. Já passava das 7 horas. O primeiro furodo dia, sair com atraso. Sorte que não precisaríamos desmontara barraca nem preparar as mochilas. Faríamos a escalada como mínimo necessário: material de alpinismo e equipamentofotográfico.

- Hoje é 28 de dezembro. Seu André deve estar lá n~Boca do Tucano esperando a gente - disse eu. - Que seraque ele está pensando que aconteceu com a gente?

Separei o material que iríamos levar: uma placa comemo-rativa dos 157 anos de existência da Polícia Militar do Estado

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de São Paulo, a Bandeira Nacio-nal e os Estandartes do 2º Bata-lhão de Polícia de Choque (minhaunidade) e do 7º Batalhão Poli-ciai Militar Metropolitano (unida-de de Edson e Sabadin). Separeitambém o material de alpinismoque eu considerava mais impor-tante: uma corda de perlon, ocordim de 16 metros, 2mosquetões e uma fita tubular paracada um, um freio 8 e 2entaladores. Eu e Edson iríamoscom nossos baudriers e Sabadinusaria uma cadeirinha improvisa-da com fita.

Mílton não Iria conosco.Muitos dizem que os ianomãmistêm medo da montanha, pois acre-

ditam que lá é a morada do deus Poré.

Às 9,30 h nos despedimos de Mílton e tomamos nossorumo. Atingimos a cachoeira. Paramos para encher os cantis.Foi mais fácil do que no dia anterior. Contemplamos a imponênciado paredão - o que me fez sentir um arrepio profundo - eviramos à direita, acompanhando a base da montanha. Era omesmo caminho que eu e Sabadin havíamos feito dois diasantes. Algumas pedras no caminho, muitos cipós, taquaras e umdesvio à direita, por dentro do capim. Atingimos a nascente doAriabu.

. Desta vez, deixei de lado as frescuras e já pisei direto dentrod'água. Avançamos um pouco mais e olhamos para dentrodaquela enorme fenda. A neblina estava fraca e podíamos ver bemadiante. Eram duas elevações separadas por um talvegue nãomuito pronunciado. Somente ali no início havia aqueles enormesparedões, tanto à esquerda como à direita do talvegue, formandoum enorme portal, barreira contra invasores.

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De repente me lembrei das palavras de uma amiga dafamília de minha noiva, dona Francisca, uma senhora muitoalegre, da Igreja Seicho-No-Ie. Ao contar-lhe sobre a expedi-ção, na festa de despedida, ela me disse: "Ao chegar perto damontanha, peça licença a Deus. Peça licença também a Poré,o deus dos índios. Peça licença à natureza e também à própriamontanha. Assim eu sei que vocês conseguirão passar".

Nunca fui muito religioso nem ligava para crendices ousuperstições. Mas, por tudo que tínhamos passado, senti quedevia fazer aquilo e, olhando diretamente para o cume,murmurei várias vezes:

- Com licença, Deus, com licença, Poré ... Deixem-nossubir, por favor ...

Progredimos pelo leito do Ariabu, cuja largura variava de1 a 2 metros. Deparamos com uma cachoeira de 2 metros dealtura, que não apresentou muita dificuldade para ser transpos-ta. Eu subi primeiro, depois ajudei Sabadin estendendo-lhe amão. Edson subiu por último, com grande performance.

À medida que subíamos, os paredões que nos rodeavamiam diminuindo de altura. Passamos por outras cachoeiras. Umadelas deu bastante trabalho pois, além de alta, estava todacoberta de lodo, e escorregava muito. Quando consegui subir,joguei o cordirn para que Edson e Sabadin subissem sem perdermais tempo, pois não sabíamos precisar a duração daquelaescalada.

Por incrível que pareça, o tempo começou a melhorar.Olhando para trás, por entre os dois paredões, víamos a serrado Ouro inteira. A neblina estava se dissipando e dando lugara um tempo bonito e ensolarado. A ansiedade e a emoçãocomeçaram a transformar nossas fisionomias. Será que final-mente estaríamos chegando? Parecia que sim. Olhando paracima, víamos o cume, ou algo próximo dele. Não parecia difícilchegar lá.

- Nós vamos conseguir! Nós vamos conseguir!

Uma força interior me fazia subir aquela montanha numavelocidade incrível. Eu disparava na frente e parava para

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fotografar a paisagem que, a. cada metro que subíamos,tornava-se mais ampla. Eu esperava Edson e Sabadin mealcançarem e novamente disparava na frente, parando deze-nas de metros adiante. .

Uma brisa suave trazia e levava pequenas camadas deneblina. Com isso, o sol surgia e sumia em questão de segundos.Olhando para o alto, surgia uma dúvida: o pico da Neblinaseria o da esquerda ou o da direita? Tentei me lembrar do picovisto do penúltimo acampamento. De lá parecia ser o da direita.Mas eu não tinha muita certeza.

Edson e Sabadin me alcançaram e sentaram nas pedras.Estavam bastante cansados, por causa do ritmo que eu estavaimpondo. Focalizei-os com minha câmera e registrei, na mesmafoto, a grota da Pepita, bem pequenina no canto direito.

- Vamos mais devagar - pediu Edson. - Para quecorrerf Vamos chegar todos juntos! - advertiu Edson.

Discutimos sobre qual dos dois cumes seria o pico daNeblina. Fomos unânimes em dizer que eroo da direita, mastodos com uma pontinha de dúvida.

- Se descobri rmos que é o outro, a gente va i até lá e pronto.

Recomeçamos a escalada. As dificuldades começaram asurgir. Tivemos que abandonar o talvegue e subir por umaencosta de pura pedra de inclinação superior a.45 graus.Retiramos a corda de perlon da mochila, encordamo-nos e fuiguiando a cordada. A encosta não apresentava muita dificulda-de técnica, mas, se algum de nós caísse, sem estar devidamenteencordado, sem observar as regras básicas de segurança,encontraria a morte com certeza.

Em alguns trechos, nossa progressão foi muito rápida. Detudo que fizemos durante a expedição, aquele estava sendo odia mais fácil e emocionante de todos. A paisagem vista dali eramagnífica. A serra da Montilla, a serra do Ouro, o pico doCardona, o cânion venezuelano e a nossa própria barraca, umminúsculo ponto amarelo, perdido naqueles imensos campos dealtitude. Do outro lado do cânion, em solo venezuelano,enormes elevações e cachoeiras altíssimas, de centenas demetros. Por trás dessas elevações era possível visualizar afloresta latifoliada do vale do Orenoco, a floresta amazônica da·Venezuela. Um panorama lindíssimo, privilégio de poucos.

A difícilescalada. o cânion venezuelano - detalhe do fundo da depressão.

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lá embaixo, a nossa barraca: um minúsculo ponto amarelo.

Ao longe, por trás da serra da Montilla, a serra de Barurie a de Pirapucu e, mais à esquerda, bem pequenina, a serra doPadre, que continuava a rezar pelo nosso destino.

Eu estava maravilhado com tanta beleza. Descrever asemoções que senti, por mais que tentasse, não denotaria nemparte do estado emocional em que me encontrava.

Olhando à esquerda, pude confirmar que o outro cumenão era o ápice, pois eu já me encontrava acima de seu nível."Oba! Estamos no caminho certo! Agora nada mais segura agente!" Olhei para o alto e percebi que o pico ficava a poucomais de 20 metros. Continuamos a progressão, mas, chegandomais perto, vimos que aquilo era apenas uma saliência. O picoficava mais adiante ..

O sol estava abrasador e o tempo totalmente aberto,proporcionando uma das visões mais amplas que eu já tivera.O cume do outro lado já estava bem abaixo de nós, derrubandotodas a dúvidas sobre qual seria o verdadeiro pico. Atingi umasaliência de pedra bem grande e, ao ultrapassá-Ia, vi, poucosmetros adiante, uma haste. Ou melhor, era um mastro! Parei e,com o coração a mil por hora, sentei-me esperando meuscompanheiros.

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- Edson! Sabadin! Olhem ali - disse apontando parao alto. - Aquilo não é um mastro?

Assim como eu, eles ficaram paralisados e tremendo deeuforia e emoção. Os olhos começaram a marejar. A compen-sação estava chegando, a vitória estava a poucos passos,vamos vencer ...

São 1223 h do dia 28 de dezembro de 1988. Estamos aqui,quase que no alto do pico da Neblina, após uma escalada muitolouca mesmo, cheia de pedras, cachoeiras, tudo que podíamosimaginar à nossa frente. E, agora, estamos aqui, a quase 10 metrosdo pico ... Nós vamos agora chegar e cada um vai gritar aquilo quevier na cabeça ...

Apesar de tudo de ruim que aconteceu, da tensão que,por vezes, nos fez gritar ~ xingar um ao outro, naquele momentoestava tudo esquecido. Eramos a equipe; a vitória final suplan-tou tudo.

Passo a passo, bem lentamente, fomos caminhando emdireção ao ponto culminante de nosso país. Seríamos asegunda equipe brasileira e a primeira militar a realizar talfaçanha. O mastro foi aumentando de tamanho e, abaixo dele,foi surgindo um amontoado de rochas que o firmavam naposição. Cinco metros ... quatro metros ... três... apenas doismetros ... um.

Estávamos lá. Ao pisar o pico da Neblina, cada um denós gritou extravasando sua emoção e dedicando a vitória aseus entes mais queridos.

Conseguiiiimos! luupiiiii! laauuu! O sonho tornou-se realidade!Braaasil!!! Nossa, que loucura! Isto aqui é super-emocionante,impressionante! Nós estamos no ponto mais alto do Brasil: no picoda Nebliiina!

Eu ainda não estava acreditando. O pico da Neblinasem neblina alguma, totalmente limpo, proporcionando a plenavisão do panorama completo da região. Pela primeira vezpudemos apreciar o vale do alto Cauaburi e toda a flore~ta queo margeia. Um imenso tapete verde que se perde no horizonte ..

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A nordeste, o 31 de Março, quase escondido atrás do cumemenor do pico da Neblina. Daquele lado estava a outra trilha,mas já não nos interessava mais.

O pico da Neblina poderia ser descrito como umpequenino platô, de forma mais ou menos retangular, de uns200 metros quadrados. No centro, uma formação rochosa depouco mais de um metro e meio de altura. Ao redor, outraspedras pouco menores, de formatos variados. Seu formatoretangular acompanha a linha de crista que o une ao cumemenor, distante pouco mais de 500 metros. A face pela qualefetuamos a ascensão é a menos íngreme. A face leste e a sulconstituem um enorme precipício de pura rocha, que termina jádentro da floresta equatorial lotifoliodo, centenas de metrosabaixo, sendo portanto de conquista praticamente impossível.

- Caramba! Aqui é um abismo - disse Sabadin.

Numa pedra havia restos de cimento que fixara por muitotempo uma placa, que não encontramos. Na formação princi-pal, ao centro, uma placa de metal comemorativa da ForçaAérea, com os seguintes dizeres: "Pico da Neblina, fevereiro de1986. 13º aniversário dos falcões. Voar na Amazônia é umaopção de coragem e determinação. Eaqui estamos nós sempre.Força Aérea Brasileira. 1º/8º GAV - Esquadrão Falcão".

- Então nós não somos os primeiros militares a chegaraqui? - perguntou Sabadin um pouco desapontado.

- Espere um pouco ... - disse eu.

No chão, próximo a uma outra pedra, havia duasenormes latas, bem enferrujadas e, em seu interior, alguns rojõesjá queimados e bastante destruídos pelo tempo. Sinais de festa.Era evidente que os responsáveis pela fixação daquela placacomemorativa não escalaram o pico, mas sim foram ali deixa-dos e depois resgatados por helicópteros. O pioneirismo erarealmente nosso.

- Soltaram rojões aqui. E ninguém escalaria uma mon-tanha com latas tão grandes. Usaram helicópteros, com certeza.

O mastro era de alumínio, de pouco mais de 1 metro,inclinado em relação ao solo. Não havia nele resto de bandeira

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nem vestígios de que ali fora deixada alguma. A umidade e osventos constantes se encarregaram de sumir com as provas.

Por baixo das pedras onde estava o mastro, Edsonencontrou um pote de plástico e, em seu interior, um lápis e umcaderno.

- Olhem o que eu encontrei! - gritou ele.

Retirou o caderno do pote e abriu. Sentamo-nos juntospara ler:

"Pico da Neblina, 3014 metros, Amazonas, Brasil. Estecaderno destina-se ao registro dos nomes de pessoas que, comonós, tiveram o prazer e a glória de atingir o ponto culminantedo Brasil. Solicitamos ao montanhista que preencher a últimafolha a restituição deste caderno para o endereço de qualquerum dos membros da expedição austríaca, relacionados naprimeira folha. Gratos."

Aquilo estava escrito na contracapa. Virei o caderno ecomecei a ler a primeira página. Ventava forte e o barulho eraintenso.

"Expedição austríaca ao pico da Neblina - 1988, 14 dejaneiro, 15h30. Georg Zens, Alois Indrich, Franz Weiss, EwaldRossback. Muito obrigado, capitão Delphino, de Serac 7."

Registrei ali a nossa conquista, realizada exatamente às12 horas e 30 minutos, aos vinte e oito dias do mês dedezembro do ano de 1988. Registrei os nomes dos integrantes,batizei a via escalada de Via Garimpo e reservei uma páginapara cada um registrar aquilo que achasse conveniente.

Era tanta a alegria que não me ocorriam as palavras. Sóconsegui escrever, após meu nome e endereço: "Dedico a todosque colaboraram: Suzana, família etc. E também a todos quenão acreditaram. Obrigado". E assinei embaixo.

Retiramos a placa e as bandeiras da mochila e posamospara inúmeras fotos, junto ao mastro.

Para garantir que as bandeiras não fossem arrancadasfacilmente pelo vento, tratei de cortar um pedaço de cordim e

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efetuei inúmeros nós nos ilhoses, de forma que pelo menos estessobrassem fixos ao mastro.

A poucos metros do mastro, havia uma grande pedra quese encaixava perfeitamente para fixar nossa placa. Uma placabastante modesta, mas muito significativa para nós. Ali ela seriavisível até do alto, por helicóptero. Com o cordim, efetueiamarras em volta da pedra também. Assim prestamos nossahomenagem à Polícia Militar de São Paulo.

Emocionados no topo. Da esquerda para a direita: Eduardo, Sabadin e Edson.

Camadas de neblina encobriam temporariamente trechosda região. Os ventos iam e vinham. Olhei para o mastro e vi asbandeiras tremulando, marcando a presença de nossacorporação num dos lugares mais bonitos e inacessíveis doplaneta. Contemplamos uma das visões mais belas que ohomem pode ter: ver o Brasil de seu ponto mais alto, ver ohorizonte infinito desta grande nação e sentir no peito a emoçãode um sonho realizado.

Nossa barraca era um pontinho amarelo perdido lá embai-xo. Mílton deveria estar dormindo. Ou estaria olhando para cimapara ver nossa vitória? IIMílton! Grande Mílton! Vencemos!"

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A emoção de um sonho coroado de êxito.

São 13,40 h. Já tiramos muitas fotos. Aqui tá ventando muito, aneblina está cobrindo tudo temporariamente e nós vamos fazer umlanche. Vamos ver o que temos aqui.

Sentamo-nos no chão e Sabadin retirou da mochila umaenorme barra de chocolate, que fora reservada desde o iníciopara a comemoração da vitória. Balas de caramelo e banana-da também foram guardadas para aquele momento.

Observando o cume menor da Neblina, uma dúvida meocorreu. A equipe do CAP, antecessora nossa na conquista dopico, ao relatar sua aventura à Revista Geográfica Universal(páginas 74 a 87 da publicação de agosto de 1979), narrouo seguinte:

110 relógio [ó marcava 15 horas e, segundo o altímetro,faltavam ainda 150 metros para atingirmos o cume. A neblinanão nos permitia enxergar além de 30 metros. Apressamos asubida, nervosos por não encontrar o paredão. De repente,chegamos a um ponto onde [ó não havia mais o que escalar.A neblina se abrira e, ao olharmos em torno, fomos tomados deuma alegria irreprimível. Estávamos no topo da mais altamontanha do Brasil - o pico da Neblina, com seus 3014metros de altitude."

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Subindo pela face tradicional, o alpinista fatalmenteatingiria o cume menor da Neblina, necessitando seguir a linhade crista até o cume maior, caminhando uns 200 metros emdeclive e mais uns 400 em aclive bem suave. Eu calculava queo cume menor estava a uns 80 metros de desnível em relaçãoao pico, ou seja, mais abaixo ainda que o 31 de Março. Alémdisso, a foto deles ao lado da bandeira mostrava um chão quasesem pedra, enquanto no pico verdadeiro havia aquela forma-ção bem nítida e destacada no terreno.

-Acho que eles se enganaram -supôs Edson. - Tenhoquase certeza de que eles subiram e atingiram apenas aquelecume.

- É possível. Se a história fOi'a que eles contaram mesmo,com certeza não chegaram aqui. Mas, ainda assim, eles sãovitoriosos. Vieram para cá em 1979, quando aqui era menosexplorado ainda.

- Lá deve haver algumas placas de outras equipes que seenganaram - disse Edson. - Será que não daria para ir até lá?

- Já são duas e dez. Acho que não daria tempo. Nãoconvém arriscar.

Padre Carlos lembrava-se muito bem da equipe do ClubeAlpino Paulista com seus três integrantes. Falava deles commuito carinho, pois, segundo ele, um dos alpinistas tinha sidobatizado pelo Papa João Paulo 11. Eles realmente foram unsheróis, mesmo que não tivessem atingido o ponto culminante dopaís.

A visão global dali me permitiu redesenhar o mapa daregião, com uma precisão bem maior, corrigindo as falhas eadicionando informações complementares.

- Gastaremos uns 5 dias para voltar, não? - perguntouEdson.

- Mais ou menos - respondi. - E seu André? O queestará pensando?

- Sei lá. Precisamos pensar numa forma de avisá-lo Raranos apanhar na Boca do Tucano - disse Sabadin. - E só

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mandar Mílton pela trilha que liga o Tucaninho a Maturacá. Elechega lá rapidinho, enquanto a gente continua até a Boca doTucano.

Três da tarde. Preparamos o equipamento, contempla-mos pela última vez aquela belíssima paisagem e nos despedi-mos das bandeiras e da placa. Hora de partir. Missãocumprida.

Só para notificar, nós subimos o pico em 3 horas e 20 minutose realizamos a descida em 2 horas e 10 minutos. Agora estamosquase chegando ao nosso acampamento, onde deixamos Míltonvigiando. Vamos gravar nossa chegada. Agora sôo 17, 45 h.

Estamos nos aproximando do acampamento, vamos ver areaçõo do índio ao contar-lhe que conseguimos ... Pico da Neblina,uma subida bastante interessante. Subimos por uma cachoeira atémetade do caminho. Pedras lisas... No caminho muitas árvorespequenininhas, algumas bromélias, lama e alguns lugares muitoperigosos. Droga! Acabei de afundar o pé na lama!

- Acorda, Mílton! Nós conseguimos! Vamos comemo-rar, Mílton. Nós conseguimos! Poré deixou a gente passar -Sabadin dizia todo contente.

Abraçamos o índio, que também demonstrou alegria pelonosso sucesso. Ele sorria e dizia: "Pois, é".

Aquele final de tarde foi o mais belo que presenciamosdesde o início da aventura. O pico estava totalmente limpo,imponente e nos proporcionou fotos muito bonitas. A noite foiavançando, noite de lua cheia. E como se já não bastasse todaa maravilha vista durante o dia, a Lua foi postar-se bem atrás doápice de nosso protagonista, criando um contorno luminoso,que nos oferecia uma imagem de beleza indescritível. Ficamoshoras apreciando aquele troféu oferecido pela natureza.

Durante a madrugada, ao olhar para fora, vi o céucompletamente estrelado, sem luar. Nosso protagonista conti-nuava em evidência, cercado por inúmeras e brilhantes estrelas.Acordei Edson, Sabadin e até Mílton para ver aquilo. Todosficaram maravilhados com o espetáculo. Foi a nossa despedidado pico.

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o retorno à aldeia

Ho;e é dia 29, quinta-feira. Acordamos às 7 horas, levantamosrapidamente o acampamento e descemos a vertente até a grota daPepita. O caminho foi muito difícil porque nossa trilha havia sumido.Muitas pedras, lama, espinhos, galhos, chuva, mas com muitocusto, conseguimos chegar à Pepita. De lá, pegamos a trilha dosgarimpeiros até aqui na grata do Gelo, onde está a turma doGoiano. Chegamos aqui por volta das /7,45 h.

Eles se encontram por aqui ainda e vieram mais quatro garim-peiros. Aumentou a família. Jantamos com eles e amanhã seguire-mos o nosso caminho de volta.

Dia 30 de dezembro. Saímos às 9,40 h da grota do Gelo,seguimos subindo a serra da Montilla e em duas horas conseguimosatingir seu cume. Descemos pelo outro lado da serra, e uma chuvamuito forte nos pegou pelo caminho. Alagou tudo. Viemos atoladosaté o ;oelho na água, na lama. No caminho, Mílton recuperou suaespingarda. Agora são 5 horas e estamos aqui na Mucura, grotada Mucura. Stanislau e sua turma não estão mais aqui. Está tudodeserto.

Saímos da grota da Mucura às 10,50 h e fomos até a Pica doBaiano. No caminho a chuva e o sol revezavam-se, castigando-nosora um, ora outro. Num determinado ponto a última visão do pico,que logo foi coberto pela neblina. Do alto da Pica do Baiano,descemos livrando-nos das bromélias, e atingimos a floresta. Foi amaior alegria encontrar a mata e estamos agora no acampamentoda Pica do Baiano, onde chegamos às 5 da tarde. O tempo estábom e ho;e é 3 / de dezembro, último dia do ano.

Primeiro de ;aneiro de /989. Passamos o réveillon acordadosEsperamos a meia-noite e simulamos uma festinha, estourando umchampanhe fictício, fingindo tomar e comer alguma coisa. Foidivertido. Eu não consegui dormir, chamei Edson para fazer um cafée ficamos batendo papo ao redor da fogueira até por volta dasquatro e meia da madrugada, quando resolvemos descansar.Cozinhamos também fei;ão numa latinha e coamos o café numlenço. Não foi um dos melhores réveillons de minha vida, mas foigostoso. Pelo menos estávamos tranqüilos, longe das bromélias elonge das chuvas. Durante a noite quase ocorreu uma tragédia.Enquanto eu e Edson fazíamos o café, um galho enorme caiu do altode uma árvore, atingindo o chão a poucos centímetros da barraca,

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onde Eduardo estava. Aquilo foi por um triz. Hoje acordamos porvolta das 6,30 h, levantamos acampamento e saímos às 8,30 h.Caminhamos sem parar um longo trecho, descendo pela grota doCipó, com inúmeras pedras lisas. Levei uns três escorregões, mastudo bem, não me machuquei. Atingimos a grota do Açúcar e, apósum breve descanso, subimos a crista da serra do Barro. Não foimuito difícil desta vez, visto que já conhecíamos o caminho e suaextensão. Logo atingimos o alto da serra e descemos pela outravertente, que na ida foi para nós um dos piores martírios. Após horasde descida, atingimos o acampamento do Tucaninho. Era por voltadas 4 horas. Aqui encontramos sete garimpeiros que estão acaminho da Pepita. Foram muito gentis conosco e daqui a poucovamos bater um papo com eles.

Dois de janeiro. Saímos do Tucaninho às 9,25 h. Estamossozinhos, pois Mílton seguiu pela outra trilha até Maturacá. Apósbastante tempa de uma caminhada leve, devido ao relevo plano etrilha bem aberta, atingimos o acampamento da Cachoeira. Nasproximidades, encontramos mais alguns garimpeiros com bastantecomida, e Eduardo conseguiu alguns gêneros. Chegamos às 2,30 h.Fui pescar, peguei seis peixes, quatro lambaris e dois carás, e, como mantimento que o Eduardo conseguiu, tivemos um belo almoço.

Três de janeiro. Refeição matinal: cappuccino com bolo demilho e muita bolacha. E agora, às 8, 15 h, estamos de saída emdireção à Boca do Tucano, onde esperamos encontrar seu Andrépara que possamos ir até Maturacá, final da expedição.

Depois de sairmos do acampamento da Cachoeira, perdemosa trilha. Seguimos o azimute por quase uma hora até atingir umigarapezinho. Descemos pelo igarapé, af/uente do Tucano, eencontramos mais à frente a trilha novamente. Agora são 13, 15 h.Chegamos à Boca do Tucano, local onde a voadeira nos deixou 16dias atrás. AqUi começou nossa jornada a pé e aqui também,acredito, ela vai terminar. Até o momento seu André ainda nãochegou. Nós mandamos Mílton na frente dar o recado para queviessem buscar a gente hoje cedo. Estamos descansando. Jáestamos nos sentindo praticamente em casa.

São 14,35 h. Nossa voadeira chegou. Mílton está junto e trouxeum cacho de bananas, como Eduardo havia pedido. Agora a gentevai para Maturacá. Terminou nossa caminhada.

OCEANOATLÂNTICO

Amazonas

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Eduardo Agostinho Arruda Augusto nasceu em 26 de agosto de 1966. Formado pelaAcademia de Polícia Militar do Barro Branca, hoje ele é:• Oficial da Policio Militar do Estado de São Paulo

• Oficial supervisor do Grupo de Operaçães Especiais do APMBB

• Ostento a láureo de mérito pessoal em Primeira Grau

• Cursos que realizou:Curso Preparatário de Formação de OficiaisCurso de Formação de OficiaisGraduando em Administração de Empresas pelo Instituto MockenzieSalvamento em Montanha pelo Corpo de Bombeiros do Estado do Rio deJaneira (lo. colocado)Direção Defensiva (10. colocado)liderança Politica, pelo Instituto de Estudos Contempôraneos - Espaço liberalOfidismo - Herpetologio e Soroteropia pelo Instituto ButontanFotografia 35 mm pelo KodokCurso básico de Sobrevivência e Orientação em Matas (do qual foi instrutor)

• Integrante do Clube Alpino Paulista

Alpinista Guia de Montanha, pelo Clube Alpino Paulista e pelo Corpo deBombeiros do Estado do Rio de Joneira

Realizou mais de BOescaladas, tendo superado o 50. grau de dificuldade

• Conhecimentos práticos:Topografío e Orientação em MatasTécnicos de Primeiros SocorrosTécnicas de Resgate em Matas e MontanhasSalvamento em AlturaSobrevivência no Selvaliderança e Chefio

Está se preparando para, entre dezembro de 1992 e janeiro de 1993, realizar aescalada do Aconcágua, ponto culminante dos Américas.

Nota do editorRecebemos no inicio de janeiro, do Tenente Eduardo Augusto, a carta ao lodo, na qualele nos dá noticias de suo escolada 00 Aconcágua.

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