7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
1/16
Evidentemente, como todas, a filosofia
de
Deleuze se r
sempre menos
do
que exigimos ou esperamos dela, mas
tambm
muito
mais do qu e lhe concedemos ou dizemos
da
mesma. No que tem de vivo,
de
vital, a
obra de
Deleuze n
o de
ixa de provocar fugas em todos os
comentrios
que
perseguem sua totalizao
conta de
uma
imagem
,
de
uma
dout
rina ou
de uma
data . No h
um
Deleuze, radicalizado fora de privileg iar o que
tem de irredutvel com relao aos diferentes horiz
ont
es
de
leitura.
Mas tambm
no existem dois Dele uze,
desdobrados segundo uma dialtica
de apropriao
que
requereria, para a salvao de um punhad o de
princpios, o
antema
de parte
de
sua filosofia .
iga-
mos, antes,
que
h pluralidade
de
conceitos, de pers-
pectivas e de textos,
que
associamos ao nome de Deleu-
ze
, mas sempre de um
modo
local, estratgico, essen-
cialmente aberto.
Na
sua
determinao
propr
iamente
deleuziana, a histria
da
f ilosofia
no
tem por
objeto
restaurar o sentido
profundo
do que os autores teriam
dito
para ns, mas apenas extrai r um
dupl
o .
E
com
os
duplos, j
se
sabe
como
nunca est
am
os seguros de
quem
quem
. Os desiguais textos q ue
compem
o
presente
volume no
pretendem desmasca
rar
imposto-
res, mas
multiplicar
os espelhos.
II
IIhI I (Ih' '
lIoh
II
, ,lvliI
I
d u r d o
Pellejero
.
.
enarlos
in)atJualidade da PilosoPia
Tr aduo
Susana Gue
rra
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
2/16
REITORA
ngela Maria Paiva Cruz
VICE REITORA
Maria de Frima Freire de Melo Ximenes
DIRETORA DA EDUFRN
Margarida Maria ias de Oliveira
VICE DfRETOR D EDUFRN
Enogue Pauli no de lbugueJgue
CONSELHO EDITORI L
Margarida Maria Dias De Oliveira presidenre
Andrea Cmara Viana Venncio Aguiar
Angela Luzia M ir
anda
Anronio Sergio Arajo Fernandes
Emerson Moreira
De
Aguiar
Eni lson Medeiros dos Sanros
Humberto
Hermenegildo de Araujo
Jones de ndrade
Marcus Andre Vareja Vasconcelos
Maria Aniolly Queiroz Maia
Maria da
Conceio
F,
B,
Sgadari Passeggi
Ricardo Oliveira Guerra
Rodr igo Pegado De Abreu Freiras
Sarhyabama Chel lappa
T n ia Cristina Meira Garcia
EDITOR
Helron Rubiano de Macedo
REVISOR
Madsa Mourinha
Nelson
Parriora
CAPA
He lron Rubiano de Macedo
EDITORA SSISTENTE
Pau la Frassinetri dos Sanros
DI GR M O
Michele de Olivei ra Mou ro Holanda
PRI IMPRESSO
Jimmy Free
SUPERVISAO EDITORIAL
Alva Medeiros da COSia
SUPERVISAo GRFICA
Francisco Guilherme de Santana
duardo
Pelle
ro
Traduo de
Susana Guerra
Mil cenrios
eleuze
e a in)atualidade
da
filosofia
4-''4 '
Editora dQ UFRN
Natal, 2014
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
3/16
Div iso de Servios Tcnicos
Catalogao da Publicao na Fome. UF RN r Biblioteca Central Zila Mamede
Pe
ll
ejero, Eduardo.
Mil cenrios: Oeleuze e a (in)a tua lidade da fi losofi ar Eduardo
Pel
lejero ;
rr
aduo de Susana
Guerra. - Nara l, RN : E
OUFRN
2014.
362 p
ISBN 978-85-425-0196-4
I . Filoso fi
a.
2. Oeleuze, G il lcs , 1925-1995 - Filosofia. 3. Filosofi a e historiografia . . Guerr
a
Susana.
11.
T tulo.
RN/
U
F/BCZM
2014/25
COO 100
CD U
1
Todos os dir e os desta edirio reservados EDUF RN - Editora da UFRN
Av Se nado r
Sa
lgado Filho 3000 I Campus Universitrio
la goa
Nova
I
59.078-970
I
Nara llRN \ Smil
c mai l:
cdufrn@cdirora
ufrn .brl .w w.edirora ufrn .br
Telefon
e:
84
32
15-
3236\
Fax: 84 3215-3206
Sumrio
Introduo _
7
A inatualidad
e
omo
programa filosfico
_
_ _ _ _
7
O q ue isso a inatualid
ad e
?_ _
_ _
9
A
inatualidade omo programa
_ _ _ _
17
A inatualidade
e a
redefinio da
filosofia
_ _ _ _ _
26
Filosofia e acontecimento: in tu lid de como
eventu liz o e contr efetu o
__________
Lgic a
do
acontec i
mento
_ _ _ _
35
A revoluo
omo
acontec imento _ _
47
Histria
e
devir _ _
_ _ _ _
60
Eventualizao e
contra
e
fetuao
_ _
75
II Filosofia e historiografia: in tu lid de como
pl no de coexistnci _______________
Borges e Kafka: a
al
egria da influncia
_
_ _
Os
precursores de
Deleu
ze _ _
_
_ _ _
Repetio e difere
n a
: a perspectiva
da
cria
o _ _ _
Metafsica
da
inatualidade o tempo omo
ord
em
de
co existnc io
III ilosofill (> rn t todo: in tu lid de como
94
1 3
113
132
33
89
pe
r pt
tlvi ) I
rlltl lrlatilao 145
II I II / 11111/ / i III 111/1 rll ,/ ' " 1 11 1 dCl pe rgunto 147
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
4/16
acrtica experimentao 16
Des)continuidade
do
mto
do
dramtico: LAnti-CEdipe
173
Mil cenrios (ou do teatro
da
filosofia)
18
V
Filosofia e posicionamento a in tu tid de como
desterritorializao
89
Fontes
e significao da terminologia
territorial
196
A filosofia
como
vetor de desterritorializao
209
Desterritorializao
e atopia
222
V Filosofia e menoridade a
in tu tid de
como devir
-
237
Devir
da
filosofia
239
o
que-como-quando
devir
?
245
Literatura
e
devir
253
Dev
ir
e
anomalia
271
VI Filosofia e povo a in tu tid de como t bul o
279
A necessidade de uma rela
o com o
povo
280
Prolegmenos ao conceito de fabulao
288
O
c
on
c
eito deleuziano
de
fobula
o
302
Micropolticas de al
c
ance
maior:
Nietzsc
he
go e
s
to Hollywo
od
321
A fabulao no um idealismo
342
VII Manifesto da filosofia a
in tu tid de como perspectiva
poltica gener liz d 47
Uma
perspe
c tiva
de
leitura, 348
Filos
ofia
e
programa 35
Referncias 357
Introduo
inatualidade como programa filosfico
Se
o volume ou o tom
da obra
podem levar a
crer que o autor tentou uma soma apressar
se a assinalar-lhe que est ante a tentativa
contrria a de uma subtrao.
Julio Cortzar
O jogo da
amarelinha
Evidentemente como todas as demais a filosofia de Deleuze ser
sempre menos do que exigimos ou esperamos dela mas tambm
e ao mesmo tempo muito mais do que lhe concedemos ou dize
mos da mesma. Nesse sentido e dadas as circunstncias o sculo
que passou pode no ter sido propriamente deleuziano o que no
implica que no chegue a s-lo alguma vez. A astcia de Foucau lt ao
lanar - como
uma
provocao - o seu panegrico ter apostado
tudo inatualidade da filosofia; isto potncia
do
devir e s foras
retroativas que subjazem histria do pensamento e que o lanam
sempre para alm da sua determinao total por uma institucionali
zao da opinio ou da crtica.
o
que tem de vivo de vital a obra de Deleuze no deixa
de escoar de provocar fugas em todos os comentrios que perse
guem sua totalizao conta de uma imagem de uma doutrina ou
7
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
5/16
Mil c
fJ
rlrios
de uma data (nem "pensamento de 68", nem "capitalismo digital",
nem
"autmato purificado"').
No h "um" Deleuze, radicalizado fora de privilegiar o
que tem de irredutvel com relao aos diferentes horizontes de lei
tura, sempre demasiado esquerda (Mengue), ou demasiado direita
(Lardreau), da perspectiva dos seus censores. Mas tampouco existem
dois" Deleuze, desdobrados segundo
uma
dialtica de apropriao
que requereria, para a salvao de
um punhado
de princpios, o an
tema de parte
da
sua filosofia (Badiou), ou das consequncias da sua
filosofia (Zizek). Digamos, antes, que h "pluralidade" de conceitos,
de perspectivas e de textos, que associamos
ao
nome de Deleuze, mas
sempre de
um modo
local, estratgico, essencialmente aberto.
So menos consideraes de ordem metodolgica que notas
para a assuno de uma perspectiva de leitura que, se pode chegar a
desconhecer, em alguma medida, os seus limites, no ignora o sis
tema
da
sua prpria parcialidade. Reler a obra de Deleuze do ponto
de vista da inatualidade, com efeito, implica muito especialmente
considerar o corpus textual associado segundo
um
princpio bsico
de no totalizao. Menos sistema de referncia que plano de varia
o contnua. Isso no significa que os conceitos deleuzianos no
retomem
ou
elaborem em distinta medida e segundo
uma
diver
sidade de linhas temticas a ideia de inatualidade (pelo contrrio,
estou convencido de que uma leitura a partir da mesma pode ser no
s produtiva, mas tambm altamente rigorosa); porm implica que,
na
sua singularidade, esses mesmos conceitos
podem
ir muito alm
da
perspectiva
da
inatualidade, prolongando outras linhas temticas
ou levantando questes de todo diferentes.
8
Cf. Ferry-Renam,
a
pense 68: essa i sur J'ami-humanisme comemporain.
Paris: Gallimard, 1985,
p. 11-13. Cf.
ZiZek,
Organs
without
bodies.
On
Deleuze
and
Consequences,
New
York
: Routledge, 2004,
p.
xii. Cf. Badiou,
DeLeuze:
La
clameur
de
J'E[re, Hacheue, Paris: 1997 p. 21.
I , II),
II
I, ) I
III
I
I )
ll l
l l l l l i l k l
de Illlla aproxima
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
6/16
MII I I ( I I I ( ' .
algumas das caractersticas trazidas luz nas onsideraes intem-
pestivas constituem o essencial do historicismo: objetivao genera
lizada do passado ou narrativa totalizante que apaga os traos da
sua narratividade, o historicismo expulsa a contingncia do devir em
detrimento dos impulsos vitais do presente.
Digamos, ento, que o historicismo sobre o qual Nietzsche
se debrua
se
caracteriza pela eliminao da contingncia
(e,
por
tanto, do que justifica a f na resistncia e na criatividade da vida
frente s condies que a determinam), pela aspirao do discurso
totalidade (e, portanto, a supresso dos elementos que denunciam a
sua origem num contexto existencial e poltico determinado), e, por
fim, pela extenso ilimi tada do interesse historiogrfico (e, portanto,
pela negao - pela proliferao ilimitada de dados histricos - da
ao, da criao e do pensamento em geral).
Todavia, o historicismo no se limita a inscrever-se na
ordem dos discursos, mas se desdobra numa srie de efeitos sobre a
sociedade e a cultura da poca, do mesmo modo que se reconhece
na apropriao de certos acontecimentos contemporneos, dos quais
parecera extrair a sua fora,
ao
mesmo tempo em que lhes oferece
uma justificao.
Por um lado, vemos que a Alemanha do sculo
XIX
est
saturada dessa cultura historicista: o nacionalismo nascente apela
histria para justificar a sua viso do mundo , a arquitetura toma os
seus modelos da histria para defini r o estilo dos seus edifcios, qual
quer bom alemo pretende, por fim, possuir uma educao histrica
(o que
lhe
facilitado por uma srie de obras populares, e, em ltima
instncia, pela mera leitura dos jornais). A Alemanha o pas da edu
cao, o pas das pessoas cultivadas (um lugar no qual tudo se v e
se interpreta atravs do filtro da histria), mas tambm, e na mesma
medida, como dir Nietzsche, dos amateurs da arte ou dos filisteus
da cultura (isto , daqueles que no vm na arte, no pensamento ou
na filosofia, seno
uma
distrao para a existncia).
10
I , II
II l l l ,
I , .11, 1
1
,
\
k,
I
do 111.1
1.
..
. N il ll:;lhc constata que a hipertrofia da
conscilH.:ia iI
a
1( (11
lugar no contexto de
um
certo triunfa
lismo,
moI
ivado ptb recente vitria militar alem sobre a Frana.
Mas tambm, em grande medida, esse desenvolvimento inusitado
da conscincia histrica coincide com a sensao, de travO hege
liano, de que a histria est prestes a realizar-se, de que o devir da
humanidade alcanou a sua meta. E, nesse sentido, o triunfalismo
duplo, porque se
d na
certeza de que a histria terminou.
O
orgu
lho despertado pelos progressos na unificao alem (promulgao
da constituio em 1867, institucionalizao do Reich em 1871) e
as recentes vitrias militares (na guerra franco-prussiana, de 1870-
1871) se traduzem nas academias pelo avano glorioso do processo
histrico mundial. E isso tambm o historicismo.
Voluntariosamente provocador, Nietzsche escreve:
Forma de considerao anloga acostumou os alemes a falar
do processo do mundo e a justificar a sua prpria poca
como o resultado necessrio desse processo [ ..
Com
escrnio,
chamou-se a essa histria, compreendida hegelianamente, o
caminhar
de
Deus sobre a terra; mas
um
Deus criado,
por
sua
vez, atravs da histria. Todavia, esse Deus tornou-se trans
parente e compreensvel para
si mesmo no interior da caixa
craniana de Hegel e saltou todos os degraus dialeticamente
possveis
do
seu vir a ser, at
sua autorrevelao: de modo
que, para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do pro
cesso
do
mundo confundir-se-iam
com
a sua prpria existncia
berlinense
(NIETZSCHE,
2003 , 8).
Nietzsche compreende que, de certo modo, a divinizao
da
histria e a declarao hegeliana
da
sua finalizao encontram a
sua sano nos fatos (em certos fatos particulares: vitrias militares,
avanos
na
unificao nacional), mas compreende tambm que essa
mesma histria promulga a dignidade dos fatos (legitimidade das
vitrias, fundamento da unidade). E tudo isso de forma tal que o
consentimento dado dialtica historicista parece implicar o con
sentimento perante os fatos em geral, como se a potncia
da
hist
ria fosse o melhor aliado dos poderes de turno.
Contra
o arrivismo
generalizado e a impostura do orgulho nacional, que se traduzem
11
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
7/16
Mil r
I I
I III
\ ,
ou
se
escondem sob a sobrevalorizao
da
conscincia histrica, as
Consideraes
inatuais denunciam a estupidez dos fatos, assim como
a impossibilidade de extrair
um
saber,
uma
arte ou
uma
tica do
mero processo histrico.
A ideia de inatualidade implica um vnculo estreito - a
partir do seu contexto de criao
- , com
a crtica do historicismo.
Na
medida
em que as
Consideraes
passam muito especialmente
por uma
revalorizao ou transvalorao de
tudo
aquilo
em
que a
Alemanha
do sculo
XIX
se
compraz (comeando pela sua pretensa
cultura histrica), essa posio crtica constitui o sentido mais ime
diato
da
noo de inatualidade. Nietzsche (2003, Prefiicio escreve:
Esta considerao
tambm
inatual porque procuro compre
ender aqui, pela primeira vez, como um mal, como um preju
zo, como uma deficincia, algo de que a poca se ufana a justo
ttulo, a saber, a sua cultura histrica, porque creio que todos
padecemos de uma ardente febre histrica.
A aposta de Nietzsche de natureza difcil, no s por
que implica um desafio aberto a
um
estado de fato
empenhado
na
sua reproduo, mas
tambm
porque o prprio Nietzsche
se
formou
na
filologia e
na
tradio clssica humanista. A sua no
uma
luta
contra a sua poca sem ser
tambm
uma
luta contra
si
prprio e
sua prpria formao. Crtica imanente, portanto, que no apela a
um distanciamento ideal, e
na
qual se confunde a transvalorao do
objeto
da
crtica com a transmutao do sujeito que a realiza.
Ou,
melhor, a inadequao essencial do sujeito
da
crtica, que no difere
da
identidade de seu tempo sem diferir, por sua vez, de sua prpria
identidade. Ponto de vista a partir do qual, renegando o seu nome ("o
pretenso filho de seu tempo no seno
um
bastardo"), Nietzsche
denuncia a pretensa solidez do presente histrico ("a falsa soldadura
do atual"). Relao no dialtica entre o prprio e o alheio, entre
o adquirido e o espontneo, que implica de
alguma
maneira um
sujeito
atravessado
por uma
diferena irredutvel
sua fundao
na
histria, e que constitui o segundo sentido da inatualidade.
12
I I II
II
( L , I di Il II>
l'\Iil'll lh ' 01, n lama assim um herosmo que no seja
mais
t
t
( I ( do t
'mpu. essa vontade de contrariar a tendncia
hegemnica da cllltura alem
da
sua poca,
em
todo o caso -
cultura
da
qual, em princpio, faz parte
- ,
que estimula e motiva a vocao
mais
profunda
das Consideraes. Vontade crtica que concorre com
o desejo, absolutamente positivo,
de
redefinir a filosofia dum
ponto
de vista problemtico, "capaz de elevar algum acima das carncias
do
tempo presente e ensinar de novo a ser
simples
e
honesto
no pen
samento e
na
vida, e ento inatual no sentido mais profundo
da
palavra" (NIETZSCHE, 1990b, 2).
Terceiro sentido
da
inatualidade (elevar-se acima do
tempo
presente, a busca de uma honestidade superior), cujo corolrio nos
abre a
uma quarta
determinao do inatual enquanto coragem de
dizer o que
ningum
se atreve a dizer, de dizer a verdade,
ou
de
comprometer-se
na
sua (re)criao: "Faz
muito
tempo que
inatualo
que sempre pertenceu
atualidade, aquilo do qual, hoje mais
do
que
nunca
, temos necessidade: que
se
diga a verdade"
(NIETZSCHE,
1990, I 12).
Nietzsche sonha nas
Consideraes com
biografias exem
plares que,
em
lugar de
se
intitularem "Fulano de tal e sua poca",
levem na capa
uma
inscrio mais belicosa, do tipo um guerreiro
contra o seu tempo", e n o desconheam que a "ptria dos inatuais"
se encontra alm
do
tempo
presente. Esperana de
uma
Bayreuth
que, para alm
da ruptura
com
Wagner, Nietzsche manter viva
como estrutura ideal de resistncia ao presente.
Ao menos assim falar
Zaratustra
.
certo que Nietzsche
ainda
no
se
interna
no
deserto
quando
publica
as Consideraes
(ainda ocupa a sua ctedra universitria
em
Basel, vem da filologia e
formou-se em
cultura
clssica), mas no menos certo que j invoca
para
si
essa atitude crtica, poltica e vital, que define o essencial
de todo o pensamento que
se
queira intempestivo, extemporneo,
inatual. Isto
,
na acepo de maior alcance
e
de maior fama) do
conceito, "atuar contra o tempo,
e, com
isso, no tempo, e oxal, a
favor de um tempo
por
vir" (NIETZSCHE, 2003).
13
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
8/16
Mil cenrios
O carter polmico da inatualidade no deve ocultar-nos
a dimenso temporal ou metafsica que
comporta
o conceito nos
textos nietzschianos. Para alm de estabelecer claramente uma posi
o poltica a respeito desse movimento que o historicismo alemo
do sculo
XIX,
Nietzsche procura, ain da que mais no seja progra
maticamente, assentar
as
bases de
uma
teoria alternativa do tempo,
do passado e da histria. E ainda que Nietzsche no aprofunde a
questo nos textos, ou seja, ainda que no desenvolva os conceitos
temporais de forma satisfatria, nem tematize com sistematicidade
uma filosofia da histria, podemos afirmar que h nas Consideraes
(especialmente na segunda) uma espcie de assentamento das bases
ou das exigncias que uma metafsica do intempestivo deveria ter
em conta.
A filosofia
da
histria prpria do historicismo caracteriza
-se pela ideia de que o fim ou o sentido
da
existncia se encontram
inscritos na histria, com tudo o que isso tem de conformista e de
conservador. Variante de um cristianismo secularizado, tende a pen
sar o devir histrico co mo realizao de um fim, como a progressiva
realizao de um ideal (em princpio, no caso do historicismo alemo
do sculo
XIX,
a revelao do esprito na nao alem, mas tambm,
como
aponta Maresca, maior felicidde para o maior nmero, paz
perptua, reconciliao universal, sociedade sem classes). Como assi
nala Nietzsche, o historicismo tem o olhar posto no passado, mas
essa contemplao
impele para o futuro, acende a coragem para manter-se por
mais tempo
com
vida,
inflama
a esperana de que a justia
ainda est por vir, de que a felicidade se encontra detrs da
montanha
para a qual se dirige. Esses homens histricos acre
ditam
que o sentido
da ex
istncia se iluminar no decorrer de
um
processo. Assim, s olham para trs com o fim de compre
ender o presente e aprender a desejar o futuro impetuosamente
NIETZSCHE,
2003,
1).
Nietzsche chama aos partidrios desta filosofia
da
histria
os fanticos do processo , na medida em que o historicismo ava
lia de tal
modo
o devir histrico,
na
promessa de uma significao
I ,
II I > , I, 11
:1
I
da eXIstencia, que acaba, como
as
religies fundamentalistas, por
alienar o pensamento individual e coletivo num estado de fato san
cionado pela histria (ou,
se se
prefere,
numa
histria promovida
por um
estado de fato). O homem do historicismo deixa tudo his
tria; toda a responsabilidade, toda a iniciativa
e
isso com todas as
submisses ao poder que uma abstrao semelhante tende a ocul
tar): no precisa de fazer na da para alm d e continuar a viver como
viveu, continuar a amar o que amou e a
odiar
o que odiou, a ler os
jornais que leu, porque
para
ele,
s h
um nico pecado - viver de
maneira diferente da que sempre viveu
NIETZSCHE,
2003, 9).
Convertida
em
palavra hegemnica,
em
cincia pura e sobe
rana, a histria aparece como concluso
da
vida e conta da existn
cia. Balano final,
em
todo o caso, que projeta, como uma sombra,
a crena de que chegamos atrasados histria, de que constitumos
algo assim como a
coda
do rond histrico-mundial,
[ .. ]
ltima
prole empalidecida de geraes mais poderosas
e mais felizes [ ..) que deve ser interpretada pela profecia de
Hesodo segundo a qual
os
homens
um
dia nasceriam j
com
cabelos brancos e Zeus exterminaria essa gerao assim que
esse sinal se tornasse visvel. A cultura histrica tambm,
realmente,
uma
espcie de encanecimento inato e aqueles
que trazem consigo o seu sinal desde a infncia precisam de
chegar, certamente, crena instintiva no
envelhecimento da
humanidade,
mas por esse envelhecimento paga-se agora com
uma
ocupao senil, a saber,
olhar
para ([s, acertar contas,
encerrar-se, procurar um consolo no que foi , nas lembranas,
em suma, na cultura histrica NIETZSCHE, 2003, 8).
Uma alternativa a essa considerao historicista da histria,
que, no obstante, talvez no constitua propriamente
uma
filosofia
da histria, o que Nietzsche denomina de ponto de vista supra-his
trico, que, apesar de ser tratado
com
certo apuro nas Consideraes
sinalizava j O nascimento da tragdia. Para alm
da
histria, o
ponto
de vista supra-histrico faz um apelo s realizaes individuais, que
parecem escapar ao domnio do fluxo temporal, atravs de
uma
fora extraordinria, do gnio, ou
da f:
15
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
9/16
Mil
cenrios
Se algum estivesse em condies de inalar e respirar em in
meros casos essa atmosfera a-hisrrica na qual surgiram rodos
os grandes acontecimentos histricos, ento talvez lhe fosse
possvel, enquanto ser cognoscente, elevar-se a um ponto de
visra
supra histrico NIETZSCHE,
2003, 1).
Nietzsche cita Niebuhr, que redescobre, nesse modo de
considerar a histria, a presena fundamental da contingncia, cuja
ao pe a lgica do processo hisroricista em questo. Nesse sen
tido, o ponto de vista supra-histrico parece constituir um verda
deiro antdoto contra o veneno do historicismo a expresso de
Nietzsche), na medida em que desvia o olhar do devir, dirigindo-o
ao que d existncia
s
maiores realizaes da histria, e isso, justa
mente, na medida em que essas realizaes a superam e parecem ter
algo de eterno. Nietzsche (2003, 1) diz que
algum que assumisse tal pOnto de vista no poderia mais
sentir-se seduzido a conrinuar vivendo e colaborando com o
rrabalho da histria, uma vez que reconhec e
ri
a a condio de
rodo o acontecimento, aquela cegueira e injusria na alma
do
agente; esse esta ria curado, a partir de ento, do risco de levar
a histria exage rada mente a srio.
Esse deslocamento da perspectiva, portanto, desperta no
homem a conscincia de que a salvao no se encontra no processo,
ao mesmo tempo em que abre uma possibilidade de transcendncia
nos grandes exemplos
da
histria, na medida em que so alcanveis
em intensidade, em cada instante, sem considerao da sua posi
o na histria - do ponto de vista supra-histrico, o passado e o
presente so
um
e o mesmo, isto , em toda a sua multiplicidade,
tipicamente iguais: enquanto omnipresena de tipos imperecveis,
d-se inerte a composio de
um
valor igualmente imperecvel e eter
namente igual na sua significao NIETZSCHE, 2003,
1).
Se o Nietzsche das onsideraes pe de lado o supra-hist
rico - com o seu fastio e a sua sabedoria - porque, numa medida
anloga necessidade da lgica do processo historicista, a conscin
cia da contingncia radical em qualquer grande realizao, conduz
inao. O que no significa que no lhe reconhea algum valor.
16
duardo Pellcjf IC
Porque o ponto de vista supra-histrico serve a Nietzsche para recu
perar, contra o historicismo, um discurso sobre uma dimenso no
histrica da existncia.
Essa dimenso no histrica, contudo, pode adotar uma
forma diferente da adotada pela perspectiva supra-histrica, guar
dando
assim um lugar para o pensamento, para a arte, para a ao.
No
fundo, a perspectiva das
onsideraes
no nem a do histrico
nem a do a-histrico, mas a do inatual, do intempestivo, do extem
porneo. Perspectiva metafsica que dobra problematicamente o pro
grama poltico nietzschiano. Ponto de vista onde a filosofia encontra
um espao de pensamento
por
conquistar, contra a poca, certo,
mas sempre a partir da poca (de que outro lugar podi a ser?), espera
de outra poca, se possvel (mas ser por acaso possvel?), por vir.
A inatualidade como programa
Quando
falamos de
uma
aproximao obra de Deleuze
a partir de uma redefinio da filosofia da perspectiva da inatuali
dade, procuramos certamente deslocar a ateno para um conceito
secundarizado pela crtica na reconstruo do sistema deleuziano.
Pretendemos, assim, escapar sobredeterminao da sua obra pela
proliferao imoderada de comentrios de que foi vtima nos ltimos
dez anos. Mas no desconhecemos que a perspectiva da inatuali
dade j foi instrumentalizada por outros projetos contemporneos,
na hora de inscrever um determinado exerccio da filosofia para alm
das tradies institudas, ou simplesmente disponveis, no momento
da sua emergncia.
Apesar dos elementos comuns que oportunamente teremos
oportunidade de assinalar, a recepo deleuziana das onsideraes
implica um tom idiossincrtico nico. Se por um lado, como acre
ditamos, toda a sua obra pode ler-se como uma das recepes mais
ajustadas e mais produtivas da ideia de inatualidade, deparamo-nos,
por outro, e
s
para comear, com uma secundarizao do trabalho
especfico sobre os textos propriamente ditos. Essa secundarizao
1/
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
10/16
Mil cenrios
tanto ou mais significativa tendo
em
conta que Deleuze dedicou
um
dos seus principais estudos monogrficos
leitura da obra niet
zschiana. O que encontramos, contudo, em Nietzsche et l philoso
phie?
No pode deixar de chamar a nossa ateno constatar que
se
registam apenas quatro referncias explcitas
Segunda Considerao
Inatual.
Em
primeiro lugar, no pargrafo
10
da segunda parte - La
hirarchie - abordando a crtica nietzschiana da adorao dos fatos
pelo positivismo, no contexto da Genealogia da moral, Deleuze cita,
para reforar a ideia, um pequeno fragmento do pargrafo 8 que,
em Da utilidade e dos inconvenientes dos estudos histricos para a
vida , aponta na mesma direo: o fato sempre estpido, e sempre
se pareceu mais a
um
boi que a
um
deus (NIETZSCHE, 2003,
8).
Em seguida, no pargrafo 15 da terceira parte - Nouvelle
image du pense
-,
onde o texto de referncia a
Terceira Considerao
Inatual
(sem dvida a mais presente
no
livro
de
Deleuze), faz-se alu
so ao prefcio
da
Segunda, em razo
da
caracterizao da tempora
lidade propriamente filosfica como inatualidade.
Em terceiro lugar, na quarta seo, no pargrafo 5 - Est-il
bon? Est-il mchant? - Deleuze regressa ao tema do esquecimento
como faculdade vital, positiva, criativa, combinando o texto do pri
meiro pargrafo
da
Segunda Inatua l com alguns textos
da
Genealogia
da moral.
O esquecimento no aparece ento como
um
vis
iner
tiae,
mas como uma faculdade de entorpecimento, um aparato de
amortecimento,
uma
fora plstica regenerativa e curativa, sem o
qual
nenhuma
felicidade,
nenhuma
esperana,
nenhum
orgulho,
nenhum
gozo do estado presente poderia existir o homem
em
quem
essa faculdade de esquecimento est deteriorada comparado a um
dispptico: no consegue acabar nada) .
.-
inalmente, ainda na quarta seo, no pargrafo 13 - La
culture envisage
du
point de vue historique - , analisando a relao
aparentemente essencial que liga o homem histria, Deleuze assi
nala a possibilidade de uma linha de fuga nos elementos a-histricos
J8
, Lili, II ) u ' , I
e supra-histricos, fazendo referncia aos pargrafos 8 e 10 (quando
seria muito mais razovel apontar o pargrafo
1)
.
Isso tudo? Digamos que, no que respeita
referncia
direta ao texto, no muito mais. Haver que procurar noutros
textos para encontrar ecos da leitura efetiva de Deleuze. Ainda de
um modo explcito, por exemplo, encontraremos alguns livros que
retomam a imagem de
uma
atmosfera no histrica na ausncia
da
qual seria impossvel a vida, a arte e o pensamento. Rapidamente,
podemos assinalar:
1) uma
entrevista de 1990,
na
qual Deleuze traz memria
que Nietzsche dizia que nada importa nte se faz sem
uma
'nuvem
no histrica' (DELEUZE, 1990, p. 231);
2) a citao textual do primeiro pargrafo da
Segunda
Inatual, onde Nietzsche compara o no histrico com uma espcie
de atmosfera ambiente ,
na
dcima variao de Mille Plateaux, enri
quecendo a discusso do conceito de devir (por oposio
histria)
(DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 362-364);
3)
a repetio quase literal
da
citao desse mesmo frag
mento em Qu'est-ce que
l
philosophie?, onde podemos ler: O ele
mento no histrico , diz Nietzsche, assemelha-se a uma atmosfera
ambiente na qual s
p o ~
engendrar-se a vida, que desaparece de
novo quando esta atmosfera se aniquila . como um momento
de graa, e onde existem atos que o homem te nha realizado sem
que
se
tenha abrigado previamente nessa nebulosa no. histrica?
(DELEUZE;
GUATTARI,
1991,
p,
92);
4) por fim, chega-nos uma referncia verdadeiramente
i mportante, to explcita como inesperada, sobre uma das ques
tcs
da
Segunda Inatual que, central
na
leitura de Foucault, no
('Ilcontrava lugar
na
monografia dedicada por Deleuze a Nietzsche.
( :oncretamente, refiro-me a L mage-mouvement, onde, no final do
pri lIleiro pargrafo do captulo nove - T mage-action: la grande
lunlle - , abordando
os
filmes histricos (sobretudo no que respeita
19
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
11/16
Mil
cenrios
a Griffith e Cecil B. de Mille), Deleuze equipara essas concepes
hol1ywoodianas
da
histria aos mais srios pontos de vista do sculo
XIX. Pontos de vista como
os
que Nietzsche cunha na Segunda
Inatual atravs da tripla tipologia da histria monumental, a his
tria antiquria e a histria crtica: Esse texto - comenta Deleuze
em
nota
- sobre a histria na
Alemanha
no sculo XIX, parece-nos
guardar
plenamente o seu valor na atualidade, e aplicar-se notavel
mente a toda
uma
categoria de filmes histricos, do
peplum
italiano
ao cinema americano (DELEUZE, 1983, p. 206). A meno no
se limita simples referncia ilustrativa, mas antes, associao dos
tipos nietzschianos aos diversos tipos de filmes histricos; comporta
elementos de uma anlise concreta (sobre o texto propriamente dito:
pargrafos segundo e terceiro), que abarca quase quatro pginas.
Deleuze aproxima-se
da
tematizao
da
histria no cinema, efetiva
mente, segundo um esquema que segue,
ponto
por ponto, a tipolo
gia das Consideraes. Assim, enquanto que a histria
monumental
favorece
os
grandes momentos (cumes) da humanidade, fazendo-os
comunicar, por distantes que sejam, atravs de paralelos e analogias
no esprito do espetador, a histria antiquria ocupa-se dos indiv
duos, do incomparvel, do singular, substituindo em certo sentido
o monumental, e conservando, para alm da sua universalidade,
os
pequenos detalhes que fazem os grandes momentos. A histria cr
tica, por fim, vem a constituir, segundo Deleuze, uma espcie de
imagem tica que determ ina as tarefas dos outros dois modo s da
histria a
partir
de uma avaliao necessria e fundamental, que pre
cede todo o exerccio histrico.
Isso no que respeita a
uma
leitura estritamente analtica
das Consideraes. O que no significa que esteja
tudo
dito. Porque
ao reflexo explcito, literal dessa leitura, vem somar-se muito parti
cularmente a apropriao criativa do conceito de inatualidade por
parte
de Deleuze, assim como um uso liberal
da
definio progra
mtica da inatualidade na redefinio da filosofia que atravessa
toda a sua obra.
20
I
r
II
I li I I
) I
I
,
IJ' 1
Recurso figura do intempestivo, portanto, que volta con
tinuamente, como
um
leitmotiv ao iongo de to da a obra de Deleuze.
Desde Diffrence et rptition ( Seguindo Nietzsche, descobrimos o
intempestivo como algo mais profundo que o tempo e que a eter
nidade: a filosofia no nem filosofia da histria,
nem
filosofia do
eterno, mas intempestividade, simples e
contnua
intempestividade,
ou seja, contra o tempo, e a favor, espero, de
um
tempo
por
vir
(DELEUZE,
1968, p.
3
at
Mille Plateaux
( Nietzsche ope a
histria, no ao eterno, mas ao sub-histrico ou ao supra-histrico:
o Intempestivo
(DELEUZE;
GUATTARI, 1980, p. 502)), pas
sando
por uma
srie de conferncias sobre Nietzsche ( Conclusions
sur la volont de puissance et l'eternel retour , Teclat de rire de
Nietzsche ), a associao pontual a
um
tema especfico (redefinio
da temporalidade, por exemplo, nos Dialogues e o repertrio de arti
gos dedicados a Foucault ( Sur
les
principaux concepts de Michel
Foucault , Qu'est-ce
qu un
dispositif? ), onde a inatualidade se
denomina atualidade ( A atualidade o que interessa a Foucault,
tambm o que Nietzsche chamava o inatual ou o intempestivo
(DELEUZE, 1990, p. 130).
Como veremos, Da utilidade e dos inconvenientes dos
estudos histricos para a vida marca muito mais
profundamente
o
pensamento de Deleuze d o q ue a escassa preocupao pelo com en-
trio do texto deixar supor. E, mesmo que no contemos - como
no caso de Foucault - com uma leitura estratgica do texto para
pr a sua empresa sob o signo das Consideraes, no nos resultar
difcil provar que o essencial
da
redefinio deleuzianada filosofia
pode ser produtivamente lido como
uma
reformulao dos princi
pais problemas e conceitos das Consideraes, isto
,
como uma ela
borao
da
perspectiva metafsica e histrica, filosfica e poltica,
da
inatualidade.
A importncia da inatualidade na obra de Deleuze no
passou de todo desp9tcebida
crtica. E, se no provocou uma lei
tura sistemtica a partir desta particular perspectiva nietzschiana,
21
Mil . . 1 l l u ~
I r li < II I ) I , J
I
( I r
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
12/16
certamente no deixou de ser tida em conta nas principais aproxi
maes sua obra.
Sem pretender ser exaustivo, assinalaria algumas das
alternativas mais importantes para a nossa tentativa de leitura.
Respeitando uma ordem vagamente cronolgica, ento, deveramos
ter em conta:
1)
O reconhecimento de
um
denominador
comum
na
redefinio do pensamento como experimentao ou produo do
novo, do qual, em 1990, d conta Jean Lacoste, na ocasio da publi
cao de Pourparlers: pensar experimentar, falar em nome prprio,
tomar o nascente, o novo, o atual, isso mesmo a que Nietzsche cha
mava, ao contrrio, de inat ual' (LACOSTE, 1997, p. 216).
2) A sugesto - a primeira sugesto - de extrapolar a ideia
de inatualidade totalidade da obra de Deleuze, que a partir de um
horizonte de leitura diferente faz Roberto Machado, em cujo livro
Deleuze e a filosofia
publicado ainda durante 1990, podia ler-se:
Essa referncia ao intempestivo nietzschiano [ ..] aparece em vrios
livros. Nietzsche t la philosophie defende que o filsofo forma con
ceitos que no so nem eternos nem histricos, mas intempestivos e
inatuais.
Diffrence
t
rptition
desclassifica a alternativa temporal
-intemporal, histrico-eterno, particular-universal, considerando
o intempestivo mais profundo que o tempo e a eternidade. Mille
Plateaux identifica claramente o geogrfico ao intempestivo, procu
rando dar a
partir
deste termo
um
sentido oposio da geografia
histria
(MACHADO,
1990, p. 13).
3)
A postulao anloga de
um
princpio de sistematiza
o que, quatro anos mais tarde, em 1994, praticada por Philippe
Mengue, quem assinala o carcter intempestivo da obra de Deleuze.
Provavelmente Mengue leva a apropriao deleuziana da inatuali
dade mais longe que ningum. Em princpio, vendo na inatualidade
uma linha de fuga com respeito aos problemas que
as
filosofias da
histria ainda faziam pesar sobre o pensamento francs: Inovadora,
[a
filosofia] intempestiva, inatual, dirigida contra este tempo com
22
v iSI a :1
11111 l l l p
n
P '
v
II.
{
:0
111 1
kkuze,
essa inocncia criadora,
juvenil,
Ill'rt ada dl'
Nielzsche, escapa-se, em todo o caso, ao tema
da morte (begcliau:l, heideggeriana etc.) da filosofia
(MENGUE,
1994,
p. 9).
Em seguida, explicando apoiado na inatualidade
as
incurses de Deleuze na histria da filosofia, como transvalora
o dos critrios a partir do ponto de vista da criao: Deleuze, que
comentou tambm
os
grandes filsofos (Plato,
Hume,
Nietzsche,
Kant, Leibniz, Bergson .. ), deve ser considerado
um
grande filsofo
porque
se
serviu da histria em proveito de outra coisa. E,
por
fim,
o que ainda mais significativo para ns, reconhecendo na inatu
alidade o princpio da politizao deleuziana da filosofia
2
, mesmo
quando deixe j entrever que essa filiao constitui o calcanhar de
Aquiles
da
mesma, tese que retomar quase dez anos depois, com
propsitos assumidamente crticos, ora referindo a filosofia poltica
deleuziana a uma modernidade superada, ora remetendo-a tica,
ora reduzindo-a inefetividade
3
4) O pequeno artigo sobre a especificidade
da
historio
grafia deleuziana que,
um
ano mais tarde, publica Pierre Zaoui no
nmero 47 de Philosophie - '''La grande identit' Nietzsche-Spinoza.
Quelle identit? - ,
no
qual a inatualidade aparece j caracterizada
seguindo
as
trs linhas da segunda das Consideraes que, em diversa
medida, vo ser retomadas por Deleuze. Em primeiro lugar, como
conceito metafisico alternativo s filosofias do histrico e do eterno.
Em segundo lugar, como
ponto de vista historiogrfico an-histrico
oposto ao da cincia histrica. E, em terceiro lugar, enquanto atitude
crtica radical
a respeito da poca
(ZAOUI,
1995,
p.
43).
2 Intempestiva, a filosofia dirige-se
contra tudo
o que poderia
fundar um
acordo,
um
repouso,
uma
paz conceptual. O modelo nietzschiano do
fil
sofo aventureiro e guerreiro, que rejeita a inrcia do 'verdadeiro', ento, est
sempre vivo (MENGUE, 1994,
p.
9).
3 O intempestivo, ora est condenado ao i s o l m e n t o ~ o trabalho de reflexo
[ ..] e perde qualquer lao direto com a prtica poltica, ora sai do campo
intel ectual [ .. ] e resolve ligar-se aos grup os que efetivamente travam uma
luta
(MENGUE,
2003, p. 153).
23
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
13/16
il
enrios
5)
A assimilao da filosofia deleuziana ao programa bsico
da inatualidade, que pratica, em 1988, Alberto Gualandi: h algo
que faz a filosofia de Deleuze quase intempestiva e inatual, compro
metida num desafio com um tempo que est fora do tempo, e tudo
se passa como
se,
imerso no nosso tempo, tentasse arrancar-lhe um
fragmento de eternidade (GUALAN DI, 1998, p. 12).
6) A reavaliao
da
importncia
da
inatualidade
na
elabo
rao
da
filosofia deleuziana que, entre 1998 e 1999, novamente no
Brasil, Peter Pl Pelbart
faz
jogar marginalmente em O tempo no
reconciliado e, j em lugar central, numa comunicao que se inti
tulava Deleuze, um pensador intempestivo . Pelbart inscreve, por
uma parte, a lgica do acontecimento como alternativa ao temporal
e ao intemporal, na linha do Nietzsche das Consideraes: dois polos
temporais ganham destaque: o instante (que afirma) e o futuro (que
afirmado). A interface entre ambos o Intempestivo (PELBART,
1998, p. 173). E, por ourra,
num
desenvolvimento interessantssimo
da
sugesto que Machado fazia anos antes, estende a recepo deleu
ziana da inatualidade a certos conceitos que no deixavam prev-lo.
O inatual, o intempestivo, aparece ento, para alm da sua dimenso
rigorosamente metafsica, associado a uma redefinio
da
filosofia
que passa pela repetio dos temas nietzschianos: ficamos surpre
endidos ao constatar at que ponto a presena [das
Consideraes]
marcante
na
obra de Deleuze. Tudo o que se nomeou aqui foi
retomado por Deleuze, de uma maneira ou de outra, ao longo do
seu percurso: a tarefa da filosofia, a relao entre pensamento e vida,
a funo vital
da
interpretao, o paradigma esttico ( criador ),
a insistncia em desprender-se do crculo
da
memria, o privilgio
do instante, a injustia e a impiedade do novo, a tica do futuro, a
raa do porvir, a crtica ao efeito esterilizante do balano histrico
daquilo que apenas est em vias de nascer, a diferena entre Histria
e Acontecimento (ou Histria e Devir), a suspeita com relao
Histria, ou dialtica que pressupe,
ou
prioridade
da
Histria
sobre a vida etc. (PELBART,
1999,
p. 69).
24
7) Tendo em conta a importncia
dada
inatualidade
nessas duas leituras, h que lamentar o lugar secundrio que lhe
concedido
na
crtica posterior. o que acontece muito especial
mente quand o confrontamos o livro que, em
1999,
publica Manola
Antonioli, de cujo ttulo - eleuze et
la
histoire da philosophie
-
se
esperava, ao menos, uma considerao da influncia que a Segunda
Inatual poderia ter exercido sobre a historiografia deleuziana. Nada
disso temos. Apenas a recursividade do
leitmotiv
das
Consideraes
(sem referncias concretas aos textos de Deleuze) e uma vaga assimi
lao do m smo na descrio do exerccio da filosofia: A estupidez
e a baixeza tm uma histria e a filosofia que as combate tem
uma
relao essencial com o tempo:
o
filsofo forma conceitos que no
so nem eternos nem histricos, mas intempestivos e inatuais . A
atualidade da filosofia sempre intempestiva, esfora-se por criar,
por inventar verdades que superem as verdades histricas, sem ser
eternas. por isso que a histria da filosofia no uma cadeia inin
terrupta nem uma cadeia eterna, mas
uma
linha quebrada, descon
tnua, inscrita
numa
temporalidade atpica: a filosofia no
nem
eterna, nem histrica, mas sempre por vir, intempestiva e inatual
(ANTONIOLI,
1999,
p. 47).
8) Tambm no muito o que somam os comentrios em
lngua inglesa. Destaquemos, contudo, o reconhecimento do tema
por Keith Ansell Pearson, enquanto tonalidade essencial do momento
crtico, na linha da dialtica negativa de Adorno (PEARS ON, 1999,
p. 19); a referncia de John Rajchman apropriao do conceito em
iffrence et rptition como crena que no se preocupa com as
regularidades do presente
ou
as
indeterminaes do passado, mas
antes com o futuro ou o que est por vir (RAJCHMAN, 2002,
p. 148); e, muito especialmente, a nfase posta por Paul Panon no
carter inatual da redefinio deleuziana
da
filosofia como ativi
dade inerentemente poltica - Deleuze e Guattari dividem com
Marx, Nietzsche e muitos outros a convico de que a tarefa dos
filsofos a de ajudar a fazer o futuro diferente do passado. Por
(ssa
razo, abordam a filosofia com uma explcita vocao poltica,
25
Mil cenrios
I
l 1 ) I , l q 1 /11
IL IC'
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
14/16
definindo-a como criao "intempestiva" de conceitos" PATTON,
2000,
p.
132).
Em todo o caso, digamos, antes de seguir, que para alm
do assinalado, a presena de Nietzsche em geral, e da perspectiva da
inatualidade em particular, sem lugar para dvidas imediatamente
sensvel ao longo de toda a obra de Deleuze (incluindo, muito espe
cialmente, a paJ1ite da mesma que tem a sua origem na colaborao
com Guattari).
Como
assina laya ,Fou-cauIt
numa
entrevista de 1983,
o assombroso no caso de Deleuze a seriedade com a qual toma
Nietzsche. Mesmo se, para alm da notria ausncia de referncias
explcitas, no estamos to convencidos de que Deleuze no levante
a bandeira do seu nome programaticamente, para efeitos de retrica,
de sano terica ou poltica, na hora de legitimar o exerccio efetivo
da
sua filosofia (FOUCAULT, 1994, v.
IV, p.
444).
inatualidade e a redefinio da filosofia
Na
introduo a Qu est-ce que la philosophie?, Deleuze e
Guattari escrevem que provavelmente no possvel colocar a per
gunta sobre a essncia da filosofia seno quando j no resta nada
mais por perguntar. "Momento de graa", "quando todos os gatos
so pardos", e no qual o pensador encontra a "liberdade soberana" e
a necessria "sobriedade" para questionar o que significa fazer filo
sofia - "Simplesmente nos chegou a hora de perguntar o que a
filosofia" (DELEUZE; GUATTARI, 1991,
p. 8 .
o que no significa, certamente, que a pergunta no atra
vesse a obra conjunta de Deleuze e Guattar i, nem que desconhea um
lugar - e um lugar de excepo - na obra "individual" de Deleuze.
O problema da definio da filosofia praticamente
uma
obsesso
do pensamento deleuziano, ao mesmo tempo que
um
territrio de
variaes, de filtraes e de fugas, onde
as
figuras da historiografia
propriamente filosfica aparecem continuamente transbordadas e
26
r 'coI1juga
das
a pa
J
t i dos l '1I
'olllros
com a psicanlise, a lit eratura, a
poltica c a cillcia .
Nesse sentido, se no certo que Deleuze tenha esperado a
velhice para formular a pergunta, ainda menos certo que a resposta
no varie ao longo da sua obra. Sempre se poder dizer que a inven
'to ou construo de conceitos faz o essencial da obra deleuziana
(conceito de diferena, conceito de repetio, conceito de agencia
mento, conceito de dobra), mesmo quando tal no parece claro do
ponto de vista programtico. Mas a verdade que nisso se esconde
uma espcie de iluso retrospectiva.
Evidentemente, j em Nietzsche et la philosophie, sob a
forma de um estudo monogrfico, Deleuze abordava explicitamente
a questo da filosofia, mas ento a redefinio passava menos pela
revalorizao do conceito que pela in troduo das noes de sentido
e de valor. E ainda, se em Diffrence et rptition e em Logique du
sem a crtica da imagem do pensamento e a pergunta pelo sentido
da
filosofia encontravam certa complementaridade, a resposta pare
cia implicar um deslocamento do trabalho filosfico da elaborao
de conceitos determinao de problemas (ou da representao de
conceitos dramatizao de ideias). Por fim, nos Dialogues, Deleuze
chega a abordar a questo da filosofia a partir de uma perspectiva
radical, enquanto disciplina sem especificidade alguma, isto
,
sem
necessidade intrnseca, da qual necessrio fugir, sair, se que se
quer produzir qualquer coisa. O projeto de redefinio atravessa a
obra de Deleuze de uma ponta outra, mas no um pOnto de vista
to especfico
ou
estreito, como o de
Qu est-ce que la philosophie?
que
vai permitir-nos a aproximao empresa no seu conjunto, isto
,
na sua continuidade superficial e nas suas variaes profundas. A
crtica das filosofias da histria, o exerccio de certa historiografia
no convencional, o distanciamento a respeito das concepes meto
dolgicas tradicionais, o posicionamento no seio da atualidade e a
politizao do pensamento, do conta de
uma
viso mais alargada
da atividade filosfica que,
se
nas suas diversas dimenses d conta
27
M '
I I
duardo Pellejero
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
15/16
Je uma relao mais
ou
menos estreita com o conceito, no se reduz
ao conceito sem mais.
Da mesma forma, no nos parece que uma noo genrica
como
a de criao baste
para
dar conta
da
peculiaridade da empresa
deleuziana. Porque se a ideia de criao parece capaz de abarcar a
totalidade das tentativas de Deleuze no que respeita a determinar
a natureza do exerccio
da
filosofia criao de valores, criao de
modos de existncia, criao de problemas, criao de linhas de fuga,
criao -
por
fim - de conceitos), a amplitude do seu
campo
semn
tico torna difcil, se no impossvel, a determinao da sua especi
ficidade, no que
se
distingue de outras prticas criativas, como a
arte, a cincia, a poltica (e o mesmo haveria que dizer, certamente,
da
noo
de
crtica; porque
se
a filosofia diz o melhor
de
si como
crtica , no diz tudo).
A especificidade da filosofia, a problematizao das suas
prticas na obra de Deleuze, em todo o caso, tem que conjugar todas
estas coisas numa perspectiva consistente. o que parece fazer o
prprio Deleuze, por uma vez explicitamente, numa carta de 1984
dirigida a Arnaud Villani, na qual sujeita a existncia de um livro a
trs requisitos fundamentai s ou condies sine qu non
1)
a crtica
ou o combate do institudo;
2)
a redeterminao do que impor
tante como reparao de
um
esquecimento; e 3) a criao de con
ceitos DELEUZE pud VILLANI, 1999, p. 56). Trs elementos
bsicos, mas essenciais, que com diferentes matizes e diversas fun
es parecem concorrer sempre na procura deleuziana da definio
de
um
exerccio efetivo
da
filosofia. Trs elementos,
por
outra parte,
que Deleuze encontra na ideia nietzschiana de inatualidade, onde a
reavaliao crtica) e a transvalorao problematizao) concorrem
com a inveno do novo criao).
Praticar uma aproximao redefinio
da
filosofia que
atravessa a obra de Deleuze a partir da perspectiva da inatualidade,
portan to, significa privilegiar a recorrncia de certas estruturas , cer
tos motivos e certo
tom
na crtica,
na
problematizao e na cria
o de conceitos, sobre a elevao a critrio de leitura de alguma
28
definio particular.
No
implica a destituio total do valor dessas
definies, mas desloca o princpio de sistematizao para um
ponto
de
vista que permite a sntese no necessariamente convergente) das
mesmas. A inatualidade, nesse sentido, desempenha o papel de um
plano privilegiado, sobre o qual se situa Deleuze na hora de proble
matizar a natureza, o objeto, a funo e os fins
da
filosofia. Plano
de variao, sobre o qual se conjugam diversamente
os
diferentes
pontos de vista, mas
tambm
plano de consistncia, sobre o qual se
articulam as diferentes linh as do pensamento deleuziano na expec
tativa, claro est, de que no diste demasiado do desejado plano de
imanncia sobre o qual seria possvel pensar tudo
isso de um
modo
absoluto).
Vimos como essa perspectiva no s no arbitrria, mas
inclusive slida e fatvel, a partir do triplo ponto de vista da pro-
venincia relao da inatualidade nietzschiana com o problema da
redefinio da filosofia), do surgimento presena dos motivos da ina
tualidade nietzschiana
na
problematizao deleuziana
da
filosofia), e
da sedimentao importncia concedid a filiao e ao conceito pela
crtica especializada). Fica,
para
ns, o desafio de levar a mesma
para
alm da sua sobredeterminao por
um
exerccio demasiado restrito
da histria da filosofia. Isto , no nos limitarmos simplesmente a
procurar uma correspondncia entre as determinaes nietzschianas
da inatu alida de historiogrfica, metafsica e poltica) e a
sua
apro
priao deleuziana, mas valermo-nos do que de novo e revolucion
rio tem o ponto de vista de Nietzsche ruptura com as filosofias
da
histria, proposio de um certo perspectivismo, politizao do p en
samento)
em
ordem a propiciar
uma
abertura
de certos problemas e
conceitos da filosofia de Deleuze.
De
certo modo, ento, a
pergunta
de antes, agora e sempre:
o que a filosofia? vem a ser: o que a inatualidade? Ou melhor: 1)
de que modo constitui a inatualidade
uma
alternativa s filosofias
da
histria?;
2)
em que medida e segundo que princpios implica
uma
revisitao dos critrios historiogrficos?; 3) quais so as suas conse
quncias metodolgicas do ponto d e vista
da
forma, mas tambm do
M l ;e
nurim
duardo Pellejero
7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)
16/16
da potncia?; 4) como se inscreve na ordem da atualidade?; 5 que
concepo da ao poltica tem por resultado?, e 6) em que sentido,
um programa filosfico, histrico e poltico semelhante,
fundado
sobre a inatualidade, pode produzir efeitos, j no
s
sobre o pensa
mento, mas diret amente sobre a sociedade?
Questes que, por fim, repetindo o gesto subversivo da
apropriao foucaultiana das perguntas crticas fundamentais, bem
poderamos r eformular da seguinte forma: 1 que posso conhecer,
ou
de que invenes somos capazes?; 2 que devo fazer,
ou
por qu e para
quem escrever?; e 3 que me da do esperar, ou, mais claramente, de
que ordem so
as
mudanas
s
quais ainda podemos aspirar?
No estou convencido de que uma obra como a de Deleuze,
que sistematicamente prope conceitos contra todas
as
formas de
totalizao, possa ser totalizvel
alguma
vez, de
alguma
maneira.
e
todos os modos, procurei trabalhar os conceitos e os temas do seu
pensamento dando-lhes o mx imo de consistncia possvel. E se no
posso afirmar taxativamente que os diversos problemas e
as
diver
sas linhas de desenvolvimento que pus em jogo sejam por completo
compatveis isto , no s no contraditrias, mas tambm compos
sveis), a verdade que tentei dar
conta
das divergncias intrnsecas
obra cada vez que me pareceram de alguma importncia quer
remetendo-as ao contexto de criao, quer pondo de relevo as suas
variantes valorativas ou conceituais).
Ao mesmo tempo, procurei ocasionalmente expor os con
ceitos deleuzianos a encontros com figuras literrias, polticas, arts
ticas e filosficas, que a inscrio histrica do seu pensamento coibia
ou, pelo menos, no deixava prever. Pretendi somar assim, ao tra
tamento crtico da obra avaliao das suas pretenses e determi
nao do seu alcance), a abertura problemtica dos seus conceitos
variao).
o resultado menos
uma
determinao completa d ideia
deleuziana da filosofia a partir do conceito nietzschiano de inatu
alidade, que a abertura
ou
a recapitulao de alguns conceitos que
30
parecem prolongar essa perspectiva, e cuja fecundidade poderia levar
mais longe que nunca a determinao
da
filosofia como exerccio
efetivo de um pensament o ativo.
Um
conjunto, po r fim, pa ra retomar a frmula de
Mallarm
popularizada por Derrida, sem outra novidade que
um
espaamento
da
leitura.
II