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1 Coleção TRANS Gilles Deleuze EMPIRISMO E SUBJETIVIDADE Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume Tradução Luiz B. L. Orlandi

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    Coleo TRANS

    Gilles Deleuze

    EMPIRISMO E SUBJETIVIDADE

    Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume

    Traduo Luiz B. L. Orlandi

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    EMPIRISMO E SUBJETIVIDADE

    Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume

    (1953)

    1. Problema do conhecimento e problema moral.................

    2. O mundo da cultura e as regras gerais..............................

    3. O poder da imaginao na moral e no conhecimento........

    4. Deus e o Mundo..................................................................

    5. Empirismo e subjetividade.................................................. 5. Os princpios da natureza humana....................................

    CONCLUSO. -- A finalidade..............................................

    ndice de nomes e correntes filosficas.................................................

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    A JEAN HYPPOLITE

    Homenagem sincera e respeitosa

    A paginao da primeira edio francesa [EMPIRISME ET SUBJECTIVIT (Essai sur la nature humaine selon Hume), Paris, PUF, 1953, 153 pp] est anotada entre colchetes ao longo desta traduo. No final do volume foi acrescentado um ndice de nomes e correntes, sendo que as pginas nele referidas correspondem quela paginao da edio original (NT).

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    1. PROBLEMA DO CONHECIMENTO E PROBLEMA MORAL

    [1] Hume prope-se fazer uma cincia do homem. Qual o seu projeto fundamental?

    Uma escolha se define sempre em funo daquilo que ela exclui, de modo que um projeto

    histrico uma substituio lgica. Para Hume, trata-se de substituir uma psicologia do

    esprito por uma psicologia das afeces do esprito ( ). A psicologia do esprito

    impossvel; ela no passvel de constituio, pois no pode encontrar em seu objeto

    nem a constncia nem a universalidade necessrias; somente uma psicologia das afeces

    pode constituir a verdadeira cincia do homem.

    Nesse sentido, Hume um moralista, um socilogo, antes de ser um psiclogo: o

    Tratado mostrar que as duas formas sob as quais o esprito afetado so,

    essencialmente, o passional e o social. E as duas se implicam, assegurando a unidade do

    objeto de uma cincia autntica. De um lado, a sociedade reclama, espera de cada um dos

    seus membros o exerccio de reaes constantes, a presena de paixes suscetveis de

    propiciar mbeis e fins, qualidades prprias coletivas ou particulares: Um soberano que

    impe um tributo aos seus sditos conta com sua submisso (1). Por outro lado, as

    paixes implicam a sociedade como meio oblquo de se satisfazerem (2). Na histria, essa

    coerncia do passional e do social se revela enfim como unidade interna: a histria tem

    por objeto a organizao poltica [2] e a instituio, estuda as relaes motivo-ao no

    mximo de circunstncias dadas, manifesta a uniformidade das paixes do homem. Em

    resumo, e de maneira extravagante, a escolha do psiclogo poderia exprimir-se assim: ser

    um moralista, um socilogo e um historiador antes de ser um psiclogo e para ser um

    psiclogo. Aqui, o contedo do projeto da cincia do homem rene-se condio que

    torna possvel um conhecimento em geral: preciso que o esprito seja afetado. Por si

    mesmo, em si mesmo, o esprito no uma natureza, no objeto de cincia. A questo

    [Traduziremos "esprit" -- termo com o qual os franceses traduzem a palavra inglesa "mind", isto , "mente" -- por "esprito", pois o objeto desta traduo um livro escrito em francs. NT] 1 David HUME [1711-1776], Trait de la nature humaine [ Treatise of Human Nature 1739-1740], traduo francesa de Andr LEROY. Paris, Aubier, 1946, pg. 513. [ Doravante Tr .seguida da paginao da tr. fr. ]. 2 Tr., 641.

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    que Hume tratar a seguinte: como o esprito devm uma natureza humana?

    verdade que a afeco passional e social somente uma parte da natureza

    humana. H outra parte, o entendimento, a associao de idias. Mas por conveno

    que se fala assim, pois o verdadeiro sentido do entendimento, nos diz Hume, justamente

    tornar socivel uma paixo, tornar social um interesse. O entendimento reflete o

    interesse. Se podemos consider-lo parte, isto , como parte separada, fazemo-lo

    maneira do fsico que decompe um movimento, mas reconhecendo que ele indivisvel,

    no composto (3). No esqueceremos, portanto, que dois pontos de vista coexistem em

    Hume: de uma certa maneira, a ser ainda tornada precisa, a paixo e o entendimento

    apresentam-se como duas partes distintas; porm, em si, o entendimento to-somente o

    movimento da paixo que devm social. Ora veremos o entendimento e a paixo formar

    dois problemas separados, ora veremos que aquele se subordina a esta. Eis a porque o

    entendimento, mesmo estudado separadamente, deve antes de tudo fazer-nos

    compreender melhor o sentido em geral da questo precedente.

    [3]

    Hume afirma constantemente a identidade do esprito, da imaginao e da idia. O

    esprito no natureza, no tem natureza. Ele idntico idia no esprito. A idia o

    dado tal como ele dado, a experincia. O esprito dado. uma coleo de idias,

    nem mesmo um sistema. E poder-se-ia exprimir assim a questo precedente: como uma

    coleo devm um sistema? A coleo de idias denomina-se imaginao, uma vez que

    esta designa no uma faculdade mas um conjunto, o conjunto das coisas, no mais vago

    sentido da palavra, que so o que parecem: coleo sem lbum, pea sem teatro ou fluxo

    de percepes. A comparao com o teatro no nos deve enganar... No temos o mais

    remoto conhecimento do lugar em que se representam essas cenas, nem dos materiais de

    que ele seria constitudo (4). O lugar no diferente daquilo que nele se passa; a

    representao no est em um sujeito. Precisamente, a questo pode ainda ser assim

    formulada: como o esprito devm um sujeito? Como a imaginao devm uma

    3 Tr., 611. 4 Tr., 344.

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    faculdade?

    Sem dvida, Hume constantemente repete que a idia est na imaginao. Mas,

    aqui, a preposio no marca a inerncia a um sujeito qualquer; ao contrrio, ela

    metaforicamente empregada para excluir do esprito como tal uma atividade distinta, a do

    movimento da idia, para assegurar, assim, a identidade do esprito e da idia no esprito.

    A preposio significa que a imaginao no um fator, um agente, uma determinao

    determinante; um lugar, que preciso localizar, isto , fixar, um determinvel. Nada

    se faz pela imaginao, tudo se faz na imaginao. Ela nem mesmo uma faculdade de

    formar idias: a produo da idia pela imaginao to-s uma reproduo da

    impresso na imaginao. Ela tem certamente sua atividade; mas essa prpria atividade

    carece de constncia e uniformidade, [4] fantasista e delirante, o movimento de

    idias, o conjunto de suas aes e reaes. Como lugar de idias, a fantasia a coleo

    dos indivduos separados. Como liame de idias, ela o movimento que percorre o

    universo ( 5 ), engendrando drages de fogo, cavalos alados, gigantes monstruosos ( 6 ). O

    fundo do esprito delrio, ou, o que vem a ser o mesmo sob outros pontos de vista,

    acaso, indiferena ( 7 ). Por si mesma, a imaginao no uma natureza, mas uma

    fantasia. A constncia e a uniformidade no esto nas idias que tenho. Tampouco esto

    elas na maneira pela qual as idias so ligadas pela imaginao: essa ligao efetua-se

    ao acaso ( 8 ). A generalidade da idia no um carter da idia, no pertence

    imaginao: no a natureza de uma espcie de idias, mas um papel que toda idia pode

    desempenhar sob a influncia de outros princpios.

    Quais so esses outros princpios? Como a imaginao devm uma natureza

    humana? A constncia e a uniformidade esto somente na maneira pela qual as idias

    so associadas na imaginao. Em seus trs princpios (contigidade, semelhana e

    causalidade), a associao ultrapassa a imaginao, algo distinto desta. A associao

    afeta a imaginao. Encontra nesta seu termo e seu objeto, no sua origem. A associao

    uma qualidade que une as idias, no uma qualidade das prprias idias ( 9 ).

    5 Tr., 90. 6 Tr., 74. 7 Tr., 206: A indiferena como situao primitiva do esprito. 8 Tr., 75. 9 Tr., 75, texto essencial: Posto que a imaginao pode separar todas as idias simples, e uni-las novamente sob qualquer forma que lhe apraza, nada seria mais inexplicvel que as operaes dessa

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    Veremos que, na crena e por causalidade, o sujeito ultrapassa o dado.

    Literalmente, ele ultrapassa aquilo que o esprito lhe d: [5] creio naquilo que nem vi

    nem toquei. Mas se o sujeito pode, assim, ultrapassar o dado, porque ele, no esprito,

    antes de mais nada o efeito de princpios que ultrapassam o esprito, que o afetam. Antes

    que possa haver a uma crena, os trs princpios de associao organizaram o dado como

    um sistema, impondo imaginao uma constncia que ela no tem por si mesma e sem a

    qual ela jamais seria uma natureza humana, atribuindo liames s idias, princpios de

    unio, que so as qualidades originais dessa natureza e no qualidades prprias da idia ( 10 ). O privilgio da causalidade est em que somente ela pode nos levar a afirmar a

    existncia, nos levar a crer, pois ela confere idia do objeto uma solidez, uma

    objetividade que essa idia no teria se o objeto estivesse associado somente por

    contigidade ou por semelhana impresso presente ( 11 ). Mas esses dois outros

    princpios desempenham com a causalidade um papel comum: eles j fixam o esprito,

    eles o naturalizam; eles preparam a crena e a acompanham. V-se o fundo nico do

    empirismo: porque a natureza humana em seus princpios ultrapassa o esprito, que

    nada no esprito ultrapassa a natureza humana; nada transcendental. A associao uma

    regra da imaginao, no um produto, no uma manifestao do livre exerccio desta. A

    associao guia a imaginao, torna-a uniforme e a coage ( 12 ). Nesse sentido, as idias

    so ligadas no esprito, no por ele ( 13 ). A natureza humana a imaginao, mas que

    outros princpios tornaram constante, fixaram. verdade que nessa prpria definio

    encontra-se uma dificuldade. Por que a natureza humana a imaginao regrada mais do

    que a regra apreendida em seu poder ativo? Como se pode dizer que [6] a imaginao

    devm uma natureza, visto no ter ela em si mesma uma razo do seu devir? A resposta

    simples. Por essncia, os princpios referem-se ao esprito que eles afetam, a natureza

    refere-se imaginao e todo o seu sentido qualifica-la. A associao uma lei da

    natureza; como toda lei, ela se define pelos seus efeitos, no por uma causa. Do mesmo

    faculdade se alguns princpios universais no a guiassem, princpios que, em certa medida, a tornam uniforme em qualquer tempo e lugar. Se as idias estivessem inteiramente destacadas de todo liame e de toda conexo, s o acaso as reuniria etc. 10 Tr., 75 e 315: o desaparecimento dos princpios traria imediatamente consigo a perda e a runa da natureza humana. 11 Tr., 147, 185, 187. 12 Tr., 75. 13 Tr., 78: ... Essa qualidade pela qual duas idias so ligadas na imaginao.

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    modo, em plano totalmente distinto, Deus poder chamar-se Causa; de maneira frutfera,

    podero ser invocadas a harmonia preestabelecida e a finalidade ( 14 ). A concluso dos

    Dilogos, do Ensaio sobre os milagres e do Ensaio sobre a imortalidade coerente. Uma

    causa pode sempre ser pensada como algo em si, algo que transcende todas as analogias

    pelas quais lhe dado um determinado contedo na experincia e pelo conhecimento ( 15

    ). Nem por isso a filosofia, como cincia do homem, tem de procurar causa; ela deve

    escrutar efeitos. A causa no pode ser conhecida; no h uma causa dos princpios, uma

    origem do seu poder. O original seu efeito sobre a imaginao.

    Esse efeito da associao vai manifestar-se sob trs formas ( 16 ). Ou a idia

    apodera-se do papel que a torna capaz de representar todas as idias s quais ela

    associada por semelhana na imaginao: idia geral. Ou a unio das idias pelo esprito

    adquire uma regularidade que ela no tinha, posto que a natureza, de algum modo,

    indicaria a cada um as idias simples mais apropriadas para se unirem em uma idia

    complexa( 17 ): substncia e modo. Ou ento uma idia introduz nele uma outra idia ( 18

    ): relao ( ). Nos trs casos, o efeito da associao a cmoda passagem do esprito de

    uma idia outra; a essncia da [7] relao a transio fcil ( 19 ). O esprito, devindo

    natureza, tem tendncia.

    Mas no prprio momento em que a natureza se refere idia, visto que ela a

    associa no esprito, a idia no adquire qualidade nova alguma que lhe seja prpria e que

    ela possa atribuir ao seu objeto; nenhuma espcie de idias novas aparece. As idias so

    uniformemente reatadas, mas sem que as relaes sejam o objeto de uma idia. Hume

    adverte, assim, que a idia geral deve ser representada, mas to-somente na fantasia, sob

    a forma de uma idia particular que tem uma quantidade e uma qualidade determinadas (

    14 HUME, Enqute sur lentendement humain, [ An Enquiry concerning Human Understanding, 1748],tr. fr. de A. LEROY, Paris, Aubier-Montaigne, 1947, pg. 101. [ Doravante EEH, seguida da paginao da tr. fr.]. A finalidade o acordo dos princpios da natureza humana com a prpria Natureza: Eis, portanto, uma espcie de harmonia preestabelecida entre o curso da Natureza e a sucesso de nossas idias. 15 HUME, Dialogues sur la religion naturelle [ Dialogues concerning natural religion, 1751-1755], tr. fr. de M. DAVID, pgs. 244 e ss. [Doravante DRN, seguida da paginao da tr. fr.]. 16 Tr., 78. 17 Tr., 75. 18 Tr., 78. ["Relao" traduz "relation". Os vocbulos "nexo" e "vnculo" traduziro "rapport". NT] 19 Tr., 352.

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    20 ). Por um lado, a imaginao no pode devir em si uma natureza sem continuar sendo

    para si uma fantasia. Alm disso, a fantasia encontra aqui toda uma nova extenso; ela

    sempre poder invocar as relaes, tomar emprestada a roupagem da natureza, formar

    regras gerais que ultrapassam o campo determinado do conhecimento legtimo,

    estendendo o conhecimento para alm dos seus prprios limites. Ela far com que suas

    fantasias passem: um irlands no pode ser espirituoso; um francs no pode ter solidez ( 21 ). E para aniquilar o efeito dessas regras extensivas, para reconduzir a si o

    conhecimento, ser preciso o exerccio de outras regras, entendidas estas como corretivas.

    Em um grau menor de atividade fantasista, a imaginao no deixar de duplic-la

    quando apresentar-se uma relao, no deixar de refor-la com outras relaes, todavia

    indevidas ( 22 ).

    Por outra parte, o esprito no pode ser ele prprio ativado pelos princpios da

    natureza sem permanecer passivo. Ele sofre efeitos. A relao no o que liga, mas o

    que ligado; a causalidade, por exemplo, paixo, [8] impresso de reflexo ( 23 ),

    efeito da semelhana( 24 ). Ela sentida ( 25 ). uma percepo do esprito, no uma

    concluso do entendimento: No devemos contentar-nos em dizer que a idia da causa e

    do efeito nasce da unio constante de objetos; mas devemos afirmar que ela idntica

    idia desses objetos( 26 ). Em resumo, a relao necessria est certamente no sujeito,

    mas enquanto ele contempla ( 27 ). Eis a porqu Hume ora insiste no paradoxo de sua

    tese, sob um aspecto negativo, ora insiste em sua ortodoxia, sob um aspecto positivo,

    objetivo. Ao passo que a necessidade est no sujeito, a relao necessria , nas coisas,

    somente uma conjuno constante; a necessidade to-somente isso ( 28 ). Mas ela est

    no sujeito enquanto ele contempla, no enquanto age ( 29 ): a conjuno constante toda

    20 Tr., 103. 21 Tr., 231. 22 Tr., 328: Quando colocamos corpos em ordem, nunca deixamos de posicionar contguos uns aos outros aqueles que se assemelham ou que, pelo menos, sejam vistos sob pontos de vista correspondentes. Por que isso? S pode ser porque experimentamos uma satisfao em unir a relao de contigidade de semelhana, ou a semelhana das situaes semelhana das qualidades. Cf. Tr., 623 (nota). 23 Tr., 252. 24 Tr., 251. 25 Tr., 514. 26 Tr., 514. 27 Tr., 254. 28 Tr., 254, 256. 29 Tr., 517.

  • 10

    a relao necessria ( 30 ). Em Hume, a determinao no determinante, mas

    determinada. Quando Hume fala de um ato do esprito, de uma tendncia, ele no quer

    dizer que o esprito seja ativo, mas que ativado, que est em devir sujeito. O paradoxo

    coerente da filosofia de Hume apresentar uma subjetividade que se ultrapassa e que

    nem por isso menos passiva. A subjetividade determinada como um efeito, uma

    impresso de reflexo. O esprito devm sujeito ao ser afetado pelos princpios.

    A natureza s pode ser cientificamente estudada em seus efeitos [9] sobre o

    esprito, mas a nica e verdadeira cincia do esprito deve ter por objeto a natureza.

    A natureza humana a nica cincia do homem ( 31 ).

    Isso quer dizer, ao mesmo tempo, que a psicologia das afeces desqualifica a

    psicologia do esprito e que as afeces qualificam o esprito. Explica-se assim uma

    ambigidade. Em Hume, assiste-se ao desenvolvimento desigual de duas inspiraes

    muito diversas. De um lado, a psicologia do esprito uma psicologia da idia, dos

    elementos simples ou dos mnima, dos indivisveis: ela ocupa, essencialmente, a segunda

    parte do sistema do entendimento, as idias de espao e de tempo. o atomismo. Por

    outro lado, a psicologia da natureza humana uma psicologia das tendncias, ou, antes,

    at mesmo uma antropologia, uma cincia da prtica e, sobretudo, da moral, da poltica e

    da histria; finalmente, uma verdadeira crtica da psicologia, pois ela encontra a realidade

    do seu objeto dado em todas as determinaes que no so dadas em uma idia, em todas

    as qualidades que ultrapassam o esprito. Esta segunda inspirao o associacionismo.

    Confundir associacionismo e atomismo um contra-senso estranho. Mais precisamente:

    por que a primeira inspirao, sobretudo na teoria do espao, subsiste em Hume? Ns o

    vimos: se bem que a psicologia das afeces contenha em seu projeto a crtica e a

    excluso de uma psicologia do esprito como cincia cuja constituio impossvel, ela

    no deixa de conter em seu objeto a referncia essencial ao esprito como termo das

    qualificaes da natureza. Porque o esprito, por si mesmo, uma coleo de tomos, a

    verdadeira psicologia no imediatamente e nem diretamente possvel: princpios s

    30 Tr., 508: Todo objeto, em certo grau e certa direo de movimento, est determinado por um destino absoluto, e no pode contrariar essa linha precisa, segundo a qual ele se move, assim como no pode transformar-se em anjo, esprito ou substncia superior. Os exemplos da matria devem, portanto, ser considerados como exemplos de aes necessrias; e tudo alquilo que, a esse respeito, est em igualdade com a matria, deve ser tido como necessrio. (sublinhado por G. Deleuze). 31 Tr., 366.

  • 11

    fazem do prprio esprito um objeto de cincia possvel ao lhe darem, inicialmente, uma

    natureza objetiva. Portanto, Hume no faz uma psicologia atomista; ele mostra, no [10]

    atomismo, um estado do esprito que no permite uma psicologia. Assim sendo, no se

    poder censurar a Hume o ter negligenciado o importante problema das condies da

    cincia do homem. Pode-se mesmo indagar se os autores modernos no repetem o projeto

    da filosofia de Hume, quando pem em correspondncia cada momento positivo da

    cincia do homem com uma crtica assdua do atomismo, tratando a este, ento, menos

    como uma tese histrica e localizada e mais como a idia em geral daquilo que a

    psicologia no pode ser, e condenando-o em nome dos direitos concretos da

    caracterologia e da sociologia, do passional ou do social.

    O esprito, dizia Comte a propsito das psicologias impossveis, tornou-se o

    tema quase exclusivo de suas especulaes, e as diversas faculdades afetivas, alis, foram

    quase inteiramente negligenciadas e subordinadas inteligncia. Portanto, o conjunto da

    natureza humana foi retraado de maneira muito infiel por esses vos sistemas ( 32 ).

    Todos os bons autores concordam pelo menos quanto impossibilidade de uma

    psicologia do esprito. Eis porque criticam com tanta diligncia toda identificao da

    conscincia com o conhecimento. Diferem somente na determinao dos fatores que do

    uma natureza ao esprito. Ora esses fatores so o corpo, a matria, devendo ento a

    psicologia dar lugar fisiologia; ora so princpios particulares, um equivalente psquico

    da matria no qual a psicologia encontra, ao mesmo tempo, seu objeto possvel e sua

    condio cientfica. Com os princpios de associao, Hume escolheu esta ltima via, a

    mais difcil ou a mais audaciosa. Donde sua simpatia pelo materialismo e, ao mesmo

    tempo, sua reticncia.

    At agora, mostramos somente que o problema da filosofia de Hume era este:

    como o esprito [11] devm uma natureza? Mas por que esprito? preciso retomar tudo

    isso em outro plano. O problema de Hume concerne exclusivamente o fato; ele

    emprico. Quid facti? Qual o fato do conhecimento? A transcendncia ou o

    ultrapassamento; afirmo mais do que sei, meu juizo ultrapassa a idia. Em outros termos:

    sou um sujeito. Digo: Csar est morto, o sol se levantar amanh, Roma existe, falo em

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    geral e creio, estabeleo nexos, um fato, uma prtica. Qual o fato no conhecimento. O

    fato que no se pode exprimir essas prticas sob a forma de uma idia sem que esta

    deixe de ser imediatamente contraditria. Por exemplo, incompatibilidade de idia geral

    ou abstrata com a natureza de uma idia ( 33 ), ou de uma conexo real entre os objetos

    com os objetos aos quais ela aplicada ( 34 ). A incompatibilidade tanto mais decisiva

    quanto mais ela imediata, imediatamente decidida ( 35 ). Hume no chega a isso ao

    trmino de uma longa discusso; ele parte disso, de modo que o enunciado da

    contradio ganha naturalmente o porte de um desafio primordial, nica relao do

    filsofo com outrem no sistema do entendimento ( 36 ). Mostrai-me a idia que

    pretendeis ter. E o que est em jogo no desafio a psicologia do esprito. Com efeito, o

    dado, a experincia tem agora dois sentidos, e inversos. O dado a idia tal qual ela

    dada no esprito, sem nada que a ultrapasse, nem mesmo e muito menos o esprito, desde

    j idntico idia. Mas tambm o ultrapassamento dado, em sentido totalmente distinto

    [12] e de uma outra maneira, como prtica, como afeco do esprito, como impresso de

    reflexo; no se trata de definir a paixo, diz Hume (37 ); do mesmo modo, a crena um

    no sei que que cada um sente suficientemente ( 38 ). A subjetividade emprica se

    constitui no esprito sob o efeito dos princpios que o afetam; o esprito no tem as

    qualidades prprias de um sujeito prvio. Portanto, a verdadeira psicologia, a das

    afeces, vai se duplicar em cada um dos seus momentos com a crtica de uma falsa

    psicologia do esprito, sendo esta, efetivamente, incapaz de apreender sem contradio o

    elemento constituinte da realidade humana. Mas, finalmente, por que a filosofia precisa

    fazer essa crtica, exprimir o ultrapassamento em uma idia, produzir a contradio,

    manifestar a incompatibilidade como sendo o fato do conhecimento?

    que, ao mesmo tempo, o ultrapassamento dado no est dado em uma idia,

    mas se refere ao esprito, pois ele qualifica a este. O esprito , ao mesmo tempo, o objeto

    32 Cf. A. COMTE, Cours de philosophie positive, Schleicher, t. III, pg. 41. 33 Tr., 84: uma contradio nos termos; isso implica at mesmo a mais manifesta das contradies, a saber, que possvel uma mesma coisa ser e, ao mesmo tempo, no ser. 34 Tr., 255. 35 M. LAPORTE mostrou bem, em Hume, o carter imediatamente contraditrio tomado por uma prtica exprimida como idia. Neste sentido, a frmula impossvel da abstrao esta: como de 1 fazer 2? E a da conexo necessria esta: como de 2 fazer 1? Cf. Le problme de labstraction. 36 Tr., 356, sobre a solido desesperada do filsofo, e 244, sobre a inutilidade dos longos raciocnios. 37 Tr., 375.

  • 13

    de uma crtica e o termo de uma referncia necessria. essa a necessidade da crtica. Eis

    porque, nas questes do entendimento, o encaminhamento de Hume sempre o mesmo,

    indo da ausncia de uma idia no esprito presena de uma afeco no esprito. A

    negao da idia da coisa afirma a identidade entre o carter dessa coisa e a natureza de

    uma impresso de reflexo. assim no caso da existncia, da idia geral, da conexo

    necessria, do eu, do vcio e da virtude. Em todos esses casos, mais do que negar o

    critrio da idia, a negao da idia que serve de critrio; o ultrapassamento

    apreendido, sempre e primeiramente, em sua relao negativa com aquilo que ele

    ultrapassa ( 39 ). Inversamente, nas estruturas do ultrapassamento [13], o esprito encontra

    uma positividade que lhe vem de fora.

    Mas, ento, como conciliar o conjunto desse encaminhamento com o princpio de

    Hume, segundo o qual toda idia deriva de uma impresso correspondente e, por

    conseguinte, toda impresso dada se reproduz em uma idia que a representa

    exatamente? Se a necessidade, por exemplo, uma impresso de reflexo, h

    necessariamente uma idia de necessidade ( 40 ). A crtica, diz ainda Hume, no suprime

    o sentido da idia de conexo necessria, destruindo-lhe to-somente as ms aplicaes ( 41 ). H, certamente, uma idia de necessidade. Porm, basicamente, se devemos falar de

    uma impresso de reflexo, no sentido de que a relao necessria o esprito como

    afetado, como determinado (em certas circunstncias) a formar pela idia de um objeto a

    idia de um outro objeto. A impresso de necessidade no poderia produzir a idia como

    uma qualidade das coisas, pois ela uma qualificao do esprito. O prprio das

    impresses de reflexo, efeitos dos princpios, qualificar diversamente o esprito como

    um sujeito. Portanto, o que se desvela a partir das afeces a idia dessa subjetividade.

    A palavra idia j no pode ter o mesmo sentido. A psicologia das afeces ser a

    filosofia de um sujeito constitudo.

    38 Tr., 173. 39 A propsito das idias gerais, Hume nos diz claramente que preciso passar pela crtica, primeiramente, para compreender sua tese: Talvez essas reflexes podero servir para descartar todas as dificuldades da hiptese que propus a respeito das idias abstratas, em oposio quela que at aqui prevaleceu em filosofia. Mas, verdadeiramente dizendo, deposito minha confiana sobretudo naquilo que j provei sobre a impossibilidade das idias gerais, considerando o mtodo geralmente empregado para explic-las. Para compreender o que uma afeco do esprito, preciso passar pela crtica de uma psicologia do esprito. 40 Tr., 252. 41 Tr., 248.

  • 14

    essa filosofia que o racionalismo perdeu. A filosofia de Hume uma crtica

    aguda da representao. Hume no faz uma crtica das relaes, mas uma crtica das

    representaes, justamente porque estas no podem apresentar as relaes. Fazendo da

    representao um critrio, colocando a idia na razo, o racionalismo colocou na idia

    aquilo que no se deixa dar sem contradio em uma idia, a generalidade da prpria

    idia e a existncia do objeto, o contedo das palavras sempre, [14] universal,

    necessrio ou verdadeiro; ele transferiu a determinao do esprito aos objetos

    exteriores, suprimindo, para a filosofia, o sentido e a compreenso da prtica e do sujeito.

    De fato, o esprito no razo; esta que uma afeco do esprito. Nesse sentido, a

    razo ser chamada instinto ( 42 ), hbito, natureza ( 43 ).

    A razo to-somente uma determinao geral e calma das paixes, fundada em

    uma viso distante ou na reflexo ( 44 ).

    A razo uma espcie de sentimento. Desse modo, assim como o mtodo da

    filosofia vai da ausncia de uma idia presena de uma impresso, a teoria da razo vai

    de um ceticismo a um positivismo, de um ceticismo da razo a um positivismo do

    sentimento, o qual, finalmente, inclui a razo como uma reflexo do sentimento no

    esprito qualificado.

    Assim como se distinguiu atomismo e associacionismo, sero tambm

    distinguidos dois sentidos da idia e, portanto, dois sentidos da impresso. Em um

    sentido, no temos a idia de necessidade; em outro sentido, ns a temos. Apesar dos

    textos, nos quais as impresses de sensao e as impresses de reflexo e nos quais as

    idias de sensao e as idias de reflexo so apresentadas ao mesmo tempo e tornadas

    homogneas tanto quanto possvel ( 45 ), a diferena entre os dois sentidos de natureza.

    Isso testemunhado pela seguinte citao:

    Eis o que necessrio para produzir uma idia de reflexo; mesmo repassando

    1.000 vezes por todas as suas idias de sensao, o esprito nunca pode extrair delas uma

    nova idia original, a no ser que a natureza tenha modelado suas faculdades de tal sorte

    42 Tr., 266: A razo to-somente um maravilhoso e ininteligvel instinto em nossas almas, instinto que nos leva por uma certa seqncia de idias e as dota de qualidades particulares. 43 Tr., 274. 44 Tr., 709. 45 Tr., 72.

  • 15

    que uma nova impresso original parea nascer de uma tal contemplao ( 46 ).

    [15]

    As impresses de sensao so apenas a origem do esprito; as impresses de

    reflexo so a qualificao do esprito, so o efeito dos princpios no esprito. O ponto de

    vista da origem, segundo o qual toda idia deriva de uma impresso preexistente e a

    representa, no tem certamente a importncia que se pretendeu atribuir-lhe: ele somente

    d ao esprito uma origem simples, evita que as idias tenham que representar coisas,

    coisas com as quais se compreenderia mal a semelhana das idias. A verdadeira

    importncia est do lado das impresses de reflexo, porque elas qualificam o esprito

    como um sujeito. A essncia e o destino do empirismo no esto ligados ao tomo, mas

    associao. Essencialmente, o empirismo no coloca o problema de uma origem do

    esprito, mas o problema de uma constituio do sujeito. Alm disso, ele considera essa

    constituio no esprito como o efeito de princpios transcendentes, no como o produto

    de uma gnese. A dificuldade, portanto, ser estabelecer um nexo assinalvel entre os

    dois sentidos da idia ou da impresso, entre a origem e a qualificao. Vimos,

    anteriormente, sua diferena. Essa diferena aquela que Hume encontra ainda sob a

    forma de uma antinomia do conhecimento; ela define o problema do eu ( ). O esprito

    no sujeito, ele est sujeitado. E quando, sob o efeito dos princpios, o sujeito se

    constitui no esprito, este, ao mesmo tempo, apreende a si como um Eu, porque

    qualificado. Mas, justamente, se o sujeito se constitui apenas na coleo de idias, como

    pode a prpria coleo de idias apreender a si mesma como um eu, como pode ela, sob o

    efeito dos mesmos princpios, dizer eu? No se compreende como se pode passar das

    tendncias ao eu, do sujeito ao eu. Como, no limite, podem o sujeito e o esprito deixar de

    ser apenas um no eu? Ao mesmo tempo, o eu deve ser coleo de idias e tendncia,

    esprito e sujeito. Ele sntese, mas incompreensvel, e, sem concili-las, rene em sua

    noo a origem e a qualificao.

    H dois princpios que no posso tornar coerentes, e no est em meu poder

    renunciar a um ou ao outro: todas as nossas percepes distintas so [16] existncias

    46 Tr., 105 (sublinhado por G. D. Cf. Tr., 386. ["Eu" e "eu" traduzem "Moi" e "moi". "Eu" e "eu" traduzem "Je" e "je". NT].

  • 16

    distintas e o esprito jamais percebe conexo real entre existncias distintas( 47 ).

    Hume diz ainda que uma soluo talvez seja possvel. Veremos mais tarde que

    sentido se pode dar a essa esperana.

    O verdadeiro objeto da cincia a natureza humana. Mas a filosofia de Hume

    apresenta-nos duas modalidades dessa natureza, duas espcies do gnero afeco: de um

    lado, os efeitos da associao; por outro lado, os efeitos da paixo. Cada uma delas a

    determinao de um sistema, sendo um o do entendimento e o outro o das paixes e da

    moral. Qual o nexo entre elas? Primeiramente, o paralelismo parece estabelecer-se entre

    ambas e prosseguir com exatido. Crena e simpatia correspondem-se. Alm disso, tudo

    o que a simpatia contm de prprio e que ultrapassa a crena , segundo a anlise,

    anlogo ao que a prpria paixo acrescenta associao de idias ( 48 ). Em outro plano,

    assim como a associao fixa no esprito uma generalidade necessria, uma regra

    indispensvel ao seu esforo de conhecimento terico, assim tambm a paixo fornece-

    lhe o contedo de uma constncia ( 49 ), torna possvel uma atividade prtica e moral, e d

    histria sua significao. Sem esse duplo movimento, nem sequer haveria uma natureza

    humana, e a imaginao continuaria sendo fantasia. As correspondncias no param a: a

    relao entre motivo e ao homognea causalidade ( 50 ), de modo que a histria deve

    ser concebida como uma fsica [17] do homem ( 51 ). Finalmente, tanto para a

    determinao do detalhe da natureza quanto para a constituio de um mundo da

    moralidade, as regras gerais tm o mesmo sentido, ao mesmo tempo extensivo e

    corretivo. No haver sequer o recurso de identificar o sistema do entendimento com a

    teoria, e o sistema da moral e da paixo com a prtica. Sob o nome de crena, h uma

    prtica do entendimento e, sob forma de organizao social e da justia, h uma teoria da

    moral. Alm disso, em todos os casos, a nica teoria possvel, em Hume, uma teoria da

    47 Tr., 760-761. [ Sublinhado por Hume ] 48 Tr., 421-422. 49 Tr., 418. EEH., 131. 50 Tr., 515: o prisioneiro, quando conduzido ao cadafalso, prev sua morte de maneira to certa como conseqncia da constncia e lealdade dos seus guardies quanto como efeito da operao do machado ou da roda. No h diferena de natureza entre a evidncia moral e a evidncia fsica. Cf. Tr., 258. 51 EEH, 131: Os relatos de guerra, de intrigas, de faces e de revoluo so outras tantas compilaes de experincias que permitem ao filsofo poltico ou moral fixar os princpios da cincia, da mesma maneira que o mdico ou o filsofo da natureza familiarizam-se com a natureza das plantas, dos minerais e dos

  • 17

    prtica: para o entendimento, clculo das probabilidades e regras gerais; para a moral e as

    paixes, regras gerais e justia.

    Mas, por mais importantes que possam ser, todas essas correspondncias so

    apenas a apresentao da filosofia, a distribuio dos seus resultados. O nexo analgico

    entre os dois domnios constitudos no deve levar-nos a esquecer qual dos dois

    determinou a constituio do outro como matria para a filosofia. Interrogamo-nos sobre

    o mbil da filosofia. Isso pode ser facilmente decidido, pelo menos quanto ao fato: antes

    de tudo, Hume um moralista, um pensador poltico, um historiador. Mas por que?

    O Tratado comea pelo sistema do entendimento e levanta o problema da razo.

    S que a necessidade de um tal problema no evidente; ele precisa de uma origem que

    se possa considerar como um mbil da filosofia. No porque resolve problemas que a

    razo ela mesma um problema. Ao contrrio, para que haja um problema da razo, um

    problema relativo ao seu domnio prprio, [18] preciso que um domnio escape razo,

    colocando-a primeiramente em questo. A frase importante e principal do Tratado esta:

    No contrrio razo preferir a destruio do mundo a uma arranhadela em

    meu dedo( 52 ).

    A contrariedade seria ainda um nexo excessivo. Por no ser coextensiva ao ser,

    porque no se aplica a tudo aquilo que , pode a razo colocar-se em questo e levantar o

    problema de sua natureza. Aqui, o fato que ela no determina a prtica: praticamente,

    tecnicamente insuficiente. Sem dvida, a razo influencia a prtica, informando-nos da

    existncia de uma coisa, objeto prprio de uma paixo, levando-nos a descobrir uma

    conexo de causas e de efeitos, meio de uma satisfao ( 53 ). Mas no se pode dizer que

    ela produza uma ao, nem que a paixo a contradiga, nem que ela combata uma paixo.

    A contradio implica, pelo menos, um desacordo das idias com os objetos que elas

    representam.

    Uma paixo uma existncia primitiva, ou, se se quer, um modo primitivo de

    existncia, e no contm qualidade representativa alguma que dela faa cpia de uma

    outra existncia ou de um outro modo( 54 ).

    outros objetos exteriores por meio de experincias que efetuam neles. 52 Tr., 525. 53 Tr., 574. 54 Tr., 525.

  • 18

    As distines morais tampouco se deixam engendrar pela razo, pois elas

    despertam as paixes, produzem ou impedem a ao ( 55 ). Para que haja contradio em

    furtar propriedades, em violar promessas, preciso ainda que promessas e propriedades

    existam na natureza. A razo pode sempre aplicar-se, mas ela se aplica a um mundo

    precedente, supe uma moral antecedente, uma ordem de fins ( 56 ). Portanto, porque a

    prtica [19] e a moral, em sua natureza (e no em suas circunstncias), so indiferentes

    razo, que esta vai buscar sua diferena. por ser negada do exterior que a razo se

    negar do interior e se descobrir como uma demncia, um ceticismo. E porque esse

    ceticismo tem sua origem e seu mbil no exterior, na indiferena da prtica, que

    tambm a prtica, ela prpria, indiferente ao ceticismo: pode-se sempre jogar gamo ( 57

    ). O filsofo se conduz como todo mundo: o prprio do ctico que seu raciocnio, ao

    mesmo tempo em que no admite rplica, no produz convico ( 58 ). Reencontramos,

    portanto, a concluso precedente, agora completada: ceticismo e positivismo implicam-se

    num mesmo raciocnio da filosofia. O positivismo da paixo e da moral produz um

    ceticismo sobre a razo; esse ceticismo interiorizado, tornado ceticismo da razo, produz

    por sua vez um positivismo do entendimento, concebido imagem do primeiro, como a

    teoria de uma prtica ( 59 ).

    imagem, mas no semelhana. Podemos agora compreender exatamente a

    diferena entre o sistema da moral e o do entendimento. No gnero da afeco,

    distinguimos dois termos: a afeco passional e moral; e o ultrapassamento, dimenso do

    conhecimento. Sem dvida, assim como os princpios de associao, tambm os

    princpios da moral e as qualidades originais e naturais da paixo ultrapassam e afetam o

    esprito; o sujeito emprico certamente constitudo no esprito pelo efeito de todos os

    princpios conjugados. Mas somente sob o efeito (alis, desigual) dos princpios de

    associao, e no dos outros, que o prprio sujeito pode ultrapassar o dado: ele cr. Nesse

    preciso sentido, o ultrapassamento concerne exclusivamente o conhecimento: ele leva a

    idia para alm [20] de si mesma, dando-lhe um papel, afirmando seu objeto,

    55 Tr., 572. 56 Tr., 584. 57 Tr., 362. 58 EEH, 210. 59 Inversamente, por uma justa compensao das coisas, o entendimento, ento, interroga-se a respeito da natureza da moral: Tr., 363-364.

  • 19

    constituindo seus liames; a tal ponto assim que, no sistema do entendimento, o mais

    importante princpio que afeta o esprito vai ser estudado, primeiramente, na atividade,

    no movimento de um sujeito que ultrapassa o dado: a natureza da relao causal

    apreendida na inferncia ( 60 ). Quanto moral, o caso totalmente distinto, mesmo

    quando ela, por analogia, toma a forma de exposio do ultrapassamento ( 61 ). A no h

    inferncia a ser feita.

    No inferimos que um carter seja virtuoso por nos ser ele agradvel, mas, ao

    sentir que ele nos agrada dessa maneira particular, sentimos efetivamente que ele

    virtuoso ( 62 ).

    A moral admite a idia apenas como um fator de suas circunstncias, e recebe a

    associao como um elemento constitudo da natureza humana. No sistema do

    entendimento, ao contrrio, a associao um elemento constituinte, o nico elemento

    constituinte da natureza humana. Para ilustrar essa dualidade, pode-se reportar distino

    que Hume faz entre dois Eu ( 63 ) e maneira diferente pela qual apresenta e trata os

    problemas correspondentes.

    H, portanto, dois tipos de prticas, devendo ambos apresentar imediatamente

    qualidades prprias muito distintas. A prtica do entendimento determina o detalhe da

    Natureza; ela procede em extenso. A Natureza, objeto da fsica, partes extra partes.

    essa sua essncia. Se consideramos os objetos em sua idia, possvel a todos eles

    tornarem-se causas ou efeitos uns dos outros ( 64 ), [21] pois a relao causal no uma

    de suas qualidades: logicamente, no importa o qu pode ser causa de no importa o qu.

    Se, por outro lado, observamos a conjuno de dois objetos, cada um dos casos

    numericamente distintos que a apresentam independente do outro e nenhum deles tem

    influncia sobre o outro; so inteiramente separados pelo tempo e pelo lugar ( 65 ). So

    60 Tr., 256: A ordem que temos seguido, a de examinar primeiramente nossa inferncia segundo a correlao, antes de ter explicado a prpria correlao, no teria sido desculpvel se tivesse sido possvel proceder de uma maneira diferente. 61 Tr., 584-586. 62 Tr., 587. Enqute sur les principes de la morale [An Enquiry concerning the Principles of Morals 1751], fr. de A. LEROY, Paris, 1947, pg. 150 [Doravante EPM, seguida da paginao da tr. fr.]. 63 Tr., 345: Devemos distinguir a identidade pessoal, por ela tocar nosso pensamento e nossa imaginao, e essa mesma identidade, quando ela tocar nossas paixes ou o interesse que temos por ns mesmos. 64 Tr., 260. 65 Tr., 250.

  • 20

    partes componentes de uma probabilidade ( 66 ); com efeito, se a probabilidade supe a

    causalidade, nem por isso a certeza que nasce do raciocnio causal deixa de ser um

    limite, um caso particular da probabilidade, uma convergncia praticamente absoluta de

    probabilidades ( 67 ). A Natureza certamente uma grandeza extensiva; ela se prestar,

    portanto, experincia fsica e ao clculo. O essencial determinar suas partes e esta a

    funo das regras gerais no domnio do conhecimento. No h um todo da Natureza, nem

    para se descobrir, nem para se inventar. A totalidade to-somente uma coleo. A

    unio dessas partes em um todo... efetuada simplesmente por um ato arbitrrio do

    esprito, e no tem influncia alguma sobre a natureza das coisas ( 68 ). As regras gerais

    do conhecimento, medida que sua generalidade concernente a um todo, no so

    diferentes dos princpios naturais do nosso entendimento ( 69 ); o difcil, diz Hume, no

    invent-las, mas pratic-las.

    O mesmo no acontece na prtica da moral. Ao contrrio. Nesse caso, as partes

    esto imediatamente dadas, sem inferncia a ser feita, sem aplicao necessria. Porm,

    em vez de extensivas, elas so mutuamente exclusivas. Nesse caso, as partes no so

    parciais, como na natureza; so participantes. Na prtica da moral, o difcil desviar a

    parcialidade, obliqu-la. O importante aqui inventar: a justia uma virtude artificial e

    o homem uma [22] espcie inventiva ( 70 ). O essencial constituir um todo da

    moralidade; a justia um esquema ( 71 ). O esquema o prprio princpio da sociedade.

    Considerado em si mesmo, um ato isolado de justia pode ser quase sempre

    contrrio ao bem pblico; s vantajoso o concurso de todos os homens em um esquema

    ou em um sistema geral de aes ( 72 ).

    No se trata de ultrapassamento, mas de integrao. Contrariamente razo, que

    procede sempre de partes a partes, o sentimento reage a todos ( 73 ). Por isso, no

    domnio da moral, as regras gerais tm um outro sentido.

    66 Tr., 219. 67 Tr., 213. 68 DRN, 258. 69 Tr., 262. 70 Tr., 601. 71 Tr., 615. 72 Tr., 705. 73 EPM, 151.

  • 21

    2.

    O MUNDO DA CULTURA E AS REGRAS GERAIS

    [23]

    preciso explicar essas determinaes da moral. A essncia da conscincia moral

    aprovar, desaprovar. Esse sentimento que nos faz louvar ou repreender, essa dor e

    esse prazer que determinam o vcio e a virtude, tm uma natureza original: so

    produzidos pela considerao de um carter em geral, sem referncia ao nosso interesse

    pessoal ( 74 ). Mas, o que que pode fazer-nos abandonar sem inferncia um ponto de

    vista que nos prprio e, a uma simples inspeo, fazer-nos considerar um carter em

    geral ou, dito de outra maneira, fazer-nos apreend-lo e viv-lo como sendo til a outrem

    ou prpria pessoa, agradvel a outrem ou prpria pessoa? A resposta de Hume

    simples: a simpatia. Porm, h um paradoxo da simpatia: ela nos abre uma amplido

    moral, uma generalidade, mas essa prpria amplido sem extenso, essa generalidade

    sem quantidade. Com efeito, para ser moral, a simpatia deve ampliar-se em direo ao

    futuro, no limitar-se ao momento presente, deve ser uma dupla simpatia, isto , uma

    correspondncia de impresses [24], que se dobra com um desejo pelo prazer de outrem,

    com uma averso pelo seu penar (75). A simpatia tambm um fato: ela existe, ela se

    estende naturalmente. Mas essa extenso no se afirma sem excluso: impossvel

    dobrar a simpatia sem a ajuda de uma circunstncia presente que nos toque de maneira

    viva (76), excluindo os casos que no a apresentam. Em funo da fantasia, essa

    circunstncia ser o grau, a enormidade da desventura ( 77 ); em funo da natureza

    humana, ser a contigidade, a semelhana ou a causalidade. Segundo as circunstncias,

    aqueles que amamos so nossos prximos, nossos semelhantes, nossos familiares ( 78 ).

    Em suma, nossa generosidade por natureza limitada; o que nos natural uma

    generosidade limitada ( 79 ). A simpatia estende-se naturalmente em direo ao futuro,

    74 Tr., 588: Somente quando um carter considerado em geral, sem referncia ao nosso interesse particular, que ele produz essa conscincia e esse sentimento que permitem cham-lo moralmente bom ou mal. 75 Tr., 487. 76 Tr., 492. 77 Tr., 493. 78 Tr., 600. 79 Tr., 712.

  • 22

    mas na medida em que as circunstncias limitam sua extenso. O reverso da prpria

    generosidade a que ela nos convida uma parcialidade, uma desigualdade de afeco

    que ela nos confere como carter de nossa natureza, a ponto de nos fazer olhar como

    viciosa e imoral toda transgresso notvel de um tal grau de parcialidade pela ampliao

    ou estreitamento muito grande dessas afeces (80). Condenamos os pais que, em vez de

    seus filhos, preferem estranhos.

    Assim, no nossa natureza que moral, nossa moral que est em nossa

    natureza. Uma das idias mais simples de Hume, porm uma da mais importantes, esta:

    o homem muito menos egosta do que parcial. Acreditamo-nos filsofos e bons [25]

    pensadores ao sustentarmos que o egosmo o ltimo impulso de toda atividade. Isso

    muito fcil. No vemos, pergunta Hume, que s poucos homens deixam de destinar a

    maior parte de sua fortuna aos prazeres de sua esposa e educao dos seus filhos,

    reservando to-somente a menor parte para seu uso prprio e sua diverso pessoal? (81).

    A verdade que o homem sempre o homem de um cl, de uma comunidade. As

    categorias famlia, amizade, vizinhana, antes de serem tipos da comunidade para

    Tnnies, so, para Hume, determinaes naturais da simpatia. Justamente, porque a

    essncia da paixo, porque a essncia do interesse particular no o egosmo, mas a

    parcialidade, que a simpatia, por sua vez, no ultrapassa o interesse particular e nem a

    paixo. Nosso sentido do dever segue sempre o curso habitual e natural de nossas

    paixes (82). Vamos at o fim, com o risco de, aparentemente, perder o benefcio de

    nossa distino do egosmo e da simpatia: esta no deixa de opor-se sociedade tanto

    quanto aquele.

    Uma afeco to nobre, em vez de preparar os homens para formar vastas

    sociedades, quase to contrrio a isso quanto o mais estreito egosmo (83).

    Ningum tem as mesmas simpatias tidas por outrem; a pluralidade das

    parcialidades assim definidas a contradio, a violncia ( 84 ). esse o arremate da

    natureza; nesse nvel, no h linguagem razovel entre os homens.

    Todo homem particular tem uma posio particular a respeito dos outros; seria

    80 Tr., 606. 81 Tr., 604. 82 Tr., 600. 83 Tr., 604.

  • 23

    impossvel que pudssemos conversar em termos razoveis se cada um de ns

    considerasse as qualidades prprias de outrem e as pessoas unicamente como aparecem

    desde seu ponto de vista particular ( 85 ).

    [26]

    Todavia, se a simpatia como o egosmo, que importncia tem a observao de

    Hume segundo a qual o homem no egosta, mas simpatizante? De fato, embora a

    sociedade encontre tanto obstculo na simpatia quanto no mais puro egosmo, o que,

    entretanto e absolutamente, muda o sentido, a prpria estrutura da sociedade, conforme

    seja ela considerada a partir do egosmo ou da simpatia. Com efeito, egosmos teriam

    somente que se limitar. Com respeito s simpatias, o caso outro: preciso integr-las,

    integr-las em uma totalidade positiva. O que Hume, precisamente, critica nas teorias do

    contrato, apresentarem-nos uma imagem abstrata e falsa da sociedade, definirem a

    sociedade de maneira apenas negativa, verem nela um conjunto de limitaes de

    egosmos e interesses, em vez de compreend-la como um sistema positivo de

    empreendimentos inventados. Eis porque to importante lembrar que o homem natural

    no egosta: tudo depende disso em uma concepo da sociedade. O que encontramos

    na natureza, a rigor, so famlias; assim, o estado de natureza j desde sempre algo

    distinto de um simples estado de natureza ( 86 ). A famlia, independentemente de toda

    legislao, explicada pelo instinto sexual e pela simpatia, simpatia dos pais entre si,

    simpatia dos pais pela sua progenitura ( 87 ). Compreendemos a partir da o problema da

    sociedade, pois esta encontra seu obstculo nas prprias simpatias e no no egosmo. Sem

    dvida, em sua origem, a sociedade uma reunio de famlias; mas uma reunio de

    famlias no uma reunio familiar. Sem dvida, as famlias so unidades sociais; porm,

    o prprio dessas unidades no se adicionarem; elas se excluem, so parciais e no

    partcipes ( ) . Os familiares de um so sempre os estranhos para outrem: na natureza,

    explode a contradio. Nesse sentido, o problema da sociedade no o de [27] limitao,

    mas de integrao. Integrar as simpatias fazer com que a simpatia ultrapasse sua

    84 Tr., 709, 730. 85 Tr., 707. 86 EPM, 45. 87 Tr., 603. ["Parciais" traduz "partiales", no sentido de parte presa sua parcialidade, como quando se diz 'juiz parcial'; e "partcipes" traduz "partielles", no sentido de parte participante de algo mais completo. NT]

  • 24

    contradio, sua parcialidade natural. Tal integrao implica um mundo moral positivo e

    se efetua na inveno positiva de um tal mundo.

    Isso quer dizer que o mundo moral irredutvel a um instinto moral, s

    determinaes naturais da simpatia ( 88 ). O mundo moral afirma sua realidade quando a

    contradio se dissipa efetivamente, quando a conversao possvel e substitui a

    violncia, quando a propriedade substitui a avidez, quando, a despeito da variao de

    nossa simpatia, damos s mesmas qualidades morais a mesma aprovao, estejam essas

    qualidades na China ou na Inglaterra, quando, em uma palavra, a simpatia varia sem

    que varie nossa estima ( 89 ).

    A estima a integral das simpatias. este o fundo da justia. Esse fundo e essa

    uniformidade da estima no so o resultado de uma viagem imaginria, pela qual nos

    transportaramos em pensamento a pocas e a pases os mais distantes, para constituir as

    pessoas que a julgaramos como nossos prximos, nossos semelhantes e nossos

    familiares possveis: no se pode conceber que uma paixo e um sentimento reais

    nasam de um interesse conhecido como imaginrio ( 90 ). O problema moral e social

    consiste em passar das simpatias reais, que se excluem, a um todo real que inclui as

    prprias simpatias. Trata-se de ampliar a simpatia.

    [28]

    Vemos a a diferena entre a moral e a natureza, ou melhor a inadequao da

    natureza moral. A realidade do mundo moral a constituio de um todo, de uma

    sociedade, a instaurao de um sistema invarivel; essa realidade no natural,

    artificial.

    Em razo de sua universalidade e de sua inflexibilidade absoluta, as leis da

    justia no podem provir da natureza, nem ser criaes diretas de uma inclinao e de um

    motivo naturais ( 91 ).

    Todos os elementos da moralidade (simpatias) so dados naturalmente, mas, por

    si mesmos, so impotentes para constituir um mundo moral. As parcialidades, os

    88 Tr., 748: Aqueles que reduzem o senso moral a instintos originais do esprito humano podem defender a causa da virtude com uma autoridade suficiente, mas carecem da vantagem que possuem aqueles que explicam esse senso por uma simpatia ampliada humanidade. 89 Tr., 706. 90 EPM, 72. 91 Tr., 600-601.

  • 25

    interesses particulares no podem se totalizar naturalmente, pois se excluem. Um todo s

    pode ser inventado, assim como a nica inveno possvel a de um todo. Essa

    implicao manifesta a essncia do problema moral. A justia no um princpio da

    natureza, uma regra, uma lei de construo, cujo papel organizar em um todo os

    elementos, os princpios da prpria natureza. A justia um meio. O problema moral o

    do esquematismo, isto , do ato pelo qual os interesses naturais so referidos categoria

    poltica do conjunto ou da totalidade, que no dada na natureza. O mundo moral a

    totalidade artificial, na qual se integram e se adicionam os fins particulares. Ou ainda, o

    que quer dizer a mesma coisa, o mundo moral o sistema dos meios que permitem ao

    meu interesse particular, assim como ao de outrem, satisfazer-se e realizar-se. A

    moralidade pode ser igualmente pensada como um todo em seu vnculo com as partes,

    como um meio em seu vnculo com os fins. Em resumo, a conscincia moral

    conscincia poltica: a verdadeira moral a poltica, como o verdadeiro moralista o

    legislador. Ou ainda: a conscincia moral uma determinao da conscincia psicolgica

    [29], a conscincia psicolgica exclusivamente apreendida sob o aspecto do seu poder

    inventivo. O problema moral um problema de conjunto e um problema de meios. As

    legislaes so as grandes invenes; os verdadeiros inventores no so os tcnicos, mas

    os legisladores. No so Esculpio e Baco, so Rmulo e Teseu ( 92 ).

    Um sistema de meios orientados, um conjunto determinado chama-se regra,

    norma. Hume diz: uma regra geral. Uma regra tem dois plos: forma e contedo,

    conversao e propriedade, sistema dos bons costumes e estabilidade da posse. Estar em

    sociedade antes de tudo substituir a violncia pela conversao possvel: o pensamento

    de cada um representa para si o dos outros. Mas quais so as condies? Com a condio

    de que as simpatias particulares de cada um sejam ultrapassadas de uma certa maneira, e

    que sejam sobrepujadas as parcialidades correspondentes, as contradies que elas

    engendram entre os homens. Com a condio, pois, de que a simpatia natural possa,

    artificialmente, exercer-se fora dos seus limites naturais. A funo da regra determinar

    um ponto de vista estvel e comum, firme e calmo, independente de nossa situao

    presente.

    Quando se julga caracteres, o nico interesse ou prazer que parece o mesmo

    92 Essays (ed. Routledge): Of parties in general, pg. 37.

  • 26

    para todo espectador o interesse da prpria pessoa cujo carter se examina, ou o das

    pessoas que esto em relao com ela ( 93 ).

    Sem dvida, um tal interesse nos toca mais fracamente do que o nosso, do que o

    dos nossos prximos, dos nossos pares e dos nossos familiares; veremos que ele deve,

    alis, receber uma vivacidade que lhe falta. Mas, pelo menos, ele tem a vantagem prtica,

    mesmo quando o corao no o segue, de ser um critrio geral e imutvel, um terceiro

    interesse, que no depende dos interlocutores, um valor ( 94 ).

    [30]

    Tudo aquilo que, nas aes humanas, produz uma contrariedade de um ponto de

    vista geral se chama vcio ( 95 ).

    Por ser artificial, a obrigao assim produzida se distingue essencialmente da

    obrigao natural, do interesse natural e particular, do mbil da ao: ela a obrigao

    moral, no sentido do dever. No outro plo, a propriedade supe condies anlogas.

    Observo que ser do meu interesse deixar o outro na posse dos seus bens, contanto que

    ele aja da mesma maneira a meu respeito ( 96 ). Nesse caso, o terceiro interesse um

    interesse geral. A conveno de propriedade o artifcio pelo qual as aes de cada um se

    relacionam com as dos outros. Ela a instaurao de um esquema, a instituio de um

    conjunto simblico ou de um todo. Hume tambm v na propriedade um fenmeno

    essencialmente poltico, e o fenmeno poltico essencial. Propriedade e conversao se

    juntam finalmente, formando os dois captulos de uma cincia social ( 97 ); o sentido geral

    do interesse comum deve expressar-se para ser eficaz ( 98 ). A Razo se apresenta aqui

    como a conversao dos proprietrios.

    J vemos a partir dessas primeiras determinaes que o papel da regra geral

    duplo, ao mesmo tempo extensivo e corretivo. Ela corrige nossos sentimentos, fazendo-

    93 Tr., 717. 94 Tr., 731. 95 Tr., 617. 96 Tr., 607. 97 Tr., 724: Portanto, anloga maneira pela qual estabelecemos as leis de natureza, para garantir a propriedade na sociedade e prevenir a oposio do interesse pessoal, a maneira pela qual estabelecemos as regras dos bons costumes para prevenir a oposio do orgulho humano e para tornar agradvel e inofensiva a conversao. 98 Tr., 607.

  • 27

    nos esquecer nossa situao presente ( 99 ). Ao mesmo tempo, e por essncia, a regra

    geral transborda os casos dos quais nasceu. Embora o senso do dever derive

    unicamente da contemplao dos atos alheios, no deixaremos, todavia, [31] de at

    mesmo estend-lo s nossas prprias aes ( 100 ). Por ltimo, a regra o que

    compreende a exceo; leva-nos a nos simpatizar com outrem, mesmo quando ele no

    experimenta o sentimento que corresponde em geral a essa situao.

    Um homem no abatido pelos infortnios se compadece mais em razo de sua

    pacincia. Embora o caso presente seja uma exceo, a imaginao, porm, tocada

    pela regra geral. Um assassinato agravado quando cometido contra um homem

    adormecido em perfeita tranqilidade ( 101 ).

    Temos de perguntar como a inveno da regra possvel. essa a questo

    principal. Como se podem formar sistemas de meios, de regras gerais, de conjuntos ao

    mesmo tempo corretivos e extensivos? Mas, desde j, podemos responder a isso: o que

    que se inventa, exatamente? Em sua teoria do artifcio, Hume prope toda uma

    concepo dos nexos entre a natureza e a cultura, entre a tendncia e a instituio. Sem

    dvida, os interesses particulares no podem se identificar, se totalizar naturalmente. Mas

    no menos verdadeiro que a natureza exige sua identificao. Caso contrrio, jamais a

    regra geral poderia se constituir e nem mesmo poderiam ser pensadas a propriedade e a

    conversao. A alternativa em que as simpatias se encontram a seguinte: estender-se

    pelo artifcio ou destruir-se pela contradio. E a alternativa em que se encontram as

    paixes esta: satisfazer-se artificialmente, obliquamente, ou negar-se pela violncia.

    Como Bentham mostrar mais tarde, de maneira ainda mais precisa, a necessidade

    natural, mas a satisfao da necessidade ou, pelo menos, a constncia e durao dessa

    satisfao s podem ser artificiais, industriais e culturais ( 102 ). A identificao dos

    interesses, portanto, artificial, mas no sentido em que ela suprime os obstculos naturais

    identificao natural [32] deles. Em outros termos, a significao da justia

    exclusivamente topolgica. O artifcio no inventa algo distinto, um princpio distinto da

    99 Tr., 708: A experincia logo nos ensina esse mtodo de corrigir nossos sentimentos, ou pelo menos de corrigir nossa linguagem quando nossos sentimentos so mais obstinados e imutveis. 100 Tr., 618. 101 Tr., 475-476. vezes, a paixo comunicada pela simpatia adquire fora pela fraqueza do seu original e chega mesmo a nascer por uma transio a partir de disposies afetivas que de modo algum existem. 102 Tr., 601-602.

  • 28

    simpatia. Os princpios no so inventados. O que o artifcio assegura simpatia e

    paixo naturais uma extenso na qual elas podero se exercer, se desenvolver

    naturalmente, liberadas apenas de seus limites naturais ( 103 ). As paixes no so

    limitadas pela justia, so dilatadas, ampliadas. A justia a extenso da paixo, do

    interesse, dos quais s negado e coagido o movimento parcial. nesse sentido que, por

    si mesma, a extenso uma correo, uma reflexo.

    No h paixo capaz de controlar a disposio interessada, mas capaz, isto sim,

    de mudar a orientao dessa mesma disposio. Porm, essa mudana deve

    necessariamente intervir menor reflexo ( 104 ).

    preciso compreender que a justia no uma reflexo sobre o interesse, mas

    uma reflexo do interesse, uma espcie de toro da prpria paixo no esprito que ela

    afeta. A reflexo uma operao da tendncia que se reprime a si prpria.

    O remdio se extrai, no da natureza, mas do artifcio; ou, para falar com mais

    propriedade, a natureza fornece no juzo e no entendimento um remdio ao que h de

    irregular e de incmodo nas afeces ( 105 ).

    A reflexo da tendncia o movimento que constitui a razo prtica, e a razo

    to-somente um momento determinado das afeces do esprito, uma afeco calma ou,

    melhor dizendo, acalmada, fundada em uma viso distinta ou na reflexo.

    Em Hume, a verdadeira dualidade no est entre a afeco e a razo, entre a

    natureza e o artifcio, mas entre o conjunto da natureza, no qual est compreendido o

    artifcio, e o esprito que esse conjunto afeta e determina. Assim, [33] a irredutibilidade

    do senso da justia a um instinto, a uma obrigao natural, no impede que haja um

    instinto moral, uma obrigao natural e, sobretudo, uma obrigao natural para com a

    justia uma vez constituda ( 106 ). Que a estima no varie quando varia a simpatia, que

    ela seja ilimitada quando a generosidade naturalmente se limita, nada disso impede que a

    simpatia natural ou a generosidade limitada seja a condio necessria e o nico elemento

    103 Tr., 610, 748. 104 Tr., 610. 105 Tr., 606. (Sublinhado por G. D.; no captulo seguinte, veremos como preciso compreender no juzo e no entendimento). 106 Tr., 748: Embora a justia seja artificial, o senso de sua moralidade natural. a combinao dos homens em um sistema de conduta que torna um ato de justia vantajoso para a sociedade. Porm, uma vez que um ato tenha essa tendncia, naturalmente que ns o aprovamos.

  • 29

    da estima: por simpatia que se estima ( 107 ). Que a justia, enfim, seja em parte capaz

    de coagir nossas paixes no significa que ela tenha outro fim que a satisfao destas ( 108

    ), que tenha outra origem que a determinao destas ( 109 ): simplesmente, ela as satisfaz

    obliquamente. A justia no um princpio da natureza; ela artifcio. Porm, tendo-se

    em vista que o homem uma espcie inventiva, o artifcio ainda natureza; a estabilidade

    da posse uma lei natural ( 110 ). Como diria Bergson, os hbitos no so da natureza,

    mas o que da natureza o hbito de contrair hbitos. A natureza s atinge seus fins por

    meio da cultura; a tendncia s se satisfaz atravs da instituio. nesse sentido que a

    histria a histria da natureza humana. Inversamente, a natureza encontrada como o

    resduo da histria ( 111 ); ela o que a histria [34] no explica, o que no pode ser

    definido, o que at mesmo intil descrever, o que h de comum em todas as mais

    diferentes maneiras de satisfazer uma tendncia.

    Natureza e cultura, portanto, formam um conjunto, um complexo. Hume recusa

    tambm as teses que atribuem tudo ao instinto, a compreendida a justia ( 112 ), e, ao

    mesmo tempo, as teses que atribuem tudo poltica e educao, a compreendido o

    senso da virtude ( 113 ). Aquelas, esquecendo a cultura, nos oferecem uma falsa imagem

    da natureza; estas, esquecendo a natureza, deformam a cultura. Hume centra sua crtica

    sobretudo na teoria do egosmo ( 114 ). Esta nem mesmo uma psicologia da natureza

    humana, pois negligencia o fenmeno da simpatia, igualmente natural. Se se entende por

    egosmo o fato de que toda tendncia persegue sua prpria satisfao, est-se apenas

    colocando o princpio de identidade, A = A, o princpio formal e vazio de uma lgica do

    homem, e ainda de um homem inculto, abstrato, sem histria e sem diferena.

    107 Tr., 709. 108 Tr., 641: Tudo o que os moralistas e os polticos podem fazer nos ensinar aquilo que, de maneira obliqua e artificial, pode satisfazer nossos apetites melhor do que pelos movimentos precipitados e impetuosos destes. 109 Tr., 646: Seja qual for a coero que possam impor s paixes humanas, (as regras gerais) so efetivamente as criaes dessas paixes e so apenas um meio mais artificial e mais refinado de satisfaz-las. Nada h de mais vigilante e inventivo do que nossas paixes. 110 Tr., 601: Se bem que as regras de justia sejam artificiais, elas no so arbitrrias. No uma impropriedade de termos cham-las leis da natureza se, por natural, entendemos o que comum a uma espcie. 111 o tema de Un Dialogue (em EPM). 112 Tr., 748. 113 Tr., 618. 114 EPM, seo 2.

  • 30

    Concretamente, o egosmo s pode designar certos meios que o homem organiza para

    satisfazer suas tendncias, por oposio a outros meios possveis. Ento, eis a o egosmo

    colocado em seu lugar, que no o mais importante. a que podemos apreender o

    sentido da economia poltica de Hume. Assim como introduz na natureza uma dimenso

    da simpatia, Hume agrega muitos outros mbeis ao interesse, freqentemente contrrios

    (prodigalidade, ignorncia, hereditariedade, costume, hbito, esprito de avareza e de

    atividade, de luxo e de abundncia). Nunca a tendncia se abstrai dos meios que se

    organiza para satisfaz-la. Nada mais distante do homo oeconomicus do que a anlise

    de Hume. A histria, verdadeira cincia da motivao humana, deve denunciar o duplo

    erro de uma economia abstrata e de uma natureza falsificada.

    Nesse sentido, a concepo que Hume tem da sociedade muito [35] forte. Ele

    apresenta uma crtica do contrato a ser to-apenas retomada no s pelos utilitaristas

    como tambm pela maior parte dos juristas que se oporo ao Direito natural. A idia

    principal esta: a essncia da sociedade no a lei, mas a instituio. A lei, com efeito,

    uma limitao dos empreendimentos e das aes, e retm da sociedade um aspecto to-

    somente negativo. A falha das teorias contratuais apresentar uma sociedade cuja

    essncia a lei, que s tem como objeto apenas garantir certos direitos naturais

    preexistentes e que no tem outra origem a no ser o contrato: o positivo posto fora do

    social; o social posto em outro lado, no negativo, na limitao, na alienao. Toda a

    crtica que Hume faz do estado de natureza, dos direitos naturais e do contrato eqivale a

    mostrar que preciso reverter o problema. Por si mesma, a lei no pode ser fonte de

    obrigao, porque a obrigao da lei supe uma utilidade. A sociedade no pode garantir

    direitos preexistentes: se o homem entra em sociedade, justamente porque ele no tem

    direitos preexistentes. Na teoria que Hume prope da promessa, v-se bem como a

    utilidade devm um princpio que se ope ao contrato ( 115 ). Onde est a diferena

    fundamental? A utilidade da instituio. A instituio no uma limitao, como a

    lei, mas , ao contrrio, um modelo de aes, um verdadeiro empreendimento, um

    sistema inventado de meios positivos, uma inveno positiva de meios indiretos. Essa

    concepo institucional reverte efetivamente o problema: o que est fora do social o

    negativo, a falta, a necessidade. Quanto ao social, ele profundamente criador, inventivo,

  • 31

    positivo. Sem dvida, dir-se- que a noo de conveno conserva uma grande

    importncia em Hume. Porm, preciso no confundi-la com o contrato. Colocar a

    conveno na base da instituio significa apenas que o sistema de meios representado

    pela instituio um sistema indireto, obliquo, inventado, que , em uma palavra,

    cultural.

    [36]

    da mesma maneira que as lnguas se estabeleceram gradualmente, por

    convenes humanas, sem promessa alguma ( 116 ).

    A sociedade um conjunto de convenes fundadas na utilidade, no um

    conjunto de obrigaes fundadas em um contrato. Socialmente, portanto, a lei no

    primeira; supe uma instituio que ela limita. Do mesmo modo, o legislador no quem

    legisla, mas, antes de tudo, quem institui. O problema dos vnculos entre natureza e

    sociedade encontra-se a subvertido: j no se trata dos nexos entre direitos e a lei, mas

    entre necessidades e instituies. Essa idia nos impe todo um remanejamento do direito

    e, ao mesmo tempo, uma viso original da cincia do homem, concebida agora como uma

    psicossociologia. A utilidade, vnculo entre instituio e necessidade, , pois, um

    princpio fecundo: o que Hume chama de regra geral uma instituio. Todavia, se

    verdade que a regra geral um sistema positivo e funcional que encontra seu princpio na

    utilidade, preciso ainda compreender de que natureza o liame que a une a esse

    princpio.

    Embora as regras da justia sejam estabelecidas unicamente por interesse, sua

    conexo com o interesse algo singular e difere do que se pode observar em outras

    ocasies ( 117 ).

    Que a natureza e a sociedade formem um complexo indissolvel no deveria

    fazer-nos esquecer que no se pode reduzir a segunda primeira. Que o homem seja uma

    espcie inventiva no impede que as invenes sejam invenes. Por vezes, atribui-se ao

    Utilitarismo uma tese denominada funcionalista, segundo a qual a sociedade se

    explicaria pela utilidade, a instituio, pela tendncia ou necessidade. Talvez tenha sido

    sustentada essa tese, o que nem mesmo certo; em todo caso, no o foi por Hume,

    115 Tr., 635-636. 116 Tr., 608.

  • 32

    seguramente. Que uma tendncia se satisfaa em uma instituio, um fato. Falamos

    aqui de instituies propriamente [37] sociais, e no de instituies governamentais. No

    casamento, a sexualidade se satisfaz; na propriedade, a avidez. A instituio, modelo de

    aes, um modelo prefigurado de satisfao possvel. S no se pode concluir disso que

    a instituio se explique pela tendncia. Sistema de meios, diz Hume, mas esses meios

    so oblquos, indiretos; eles no satisfazem a tendncia sem coagi-la ao mesmo tempo.

    Tem-se uma forma de casamento, um regime de propriedade. Por que tal regime e tal

    forma? Mil outros so possveis, e que se encontram em outras pocas, em outros pases.

    essa a diferena entre o instinto e a instituio: h instituio quando os meios pelos

    quais uma tendncia se satisfaz no so determinados pela prpria tendncia, nem pelos

    caracteres especficos.

    As palavras hereditariedade e contrato representam idias infinitamente

    complicadas; para defini-las exatamente, vemos que no bastaram 100 volumes de leis e

    1.000 de comentrios. A natureza, cujos instintos so todos simples nos homens, abarca

    temas to complicados e artificiais e cria uma criatura razovel sem nada confiar

    operao de sua razo? [...] Todos os pssaros da mesma espcie, em toda poca e em

    todo pas, constrem seus ninhos de maneira anloga: nisso que vemos a fora do

    instinto. Os homens, em diferentes pocas e em diferentes lugares, constrem

    diferentemente suas casas; vemos aqui a influncia da razo e do costume. Uma

    inferncia anloga pode ser tirada de uma comparao entre o instinto de gerao e a

    instituio da propriedade ( 118 ).

    Se a natureza o princpio da semelhana e da uniformidade, a histria o lugar

    das diferenas. A tendncia geral; ela no explica o particular, por mais que ela

    encontre nesse particular a forma de sua satisfao.

    Embora a instituio da regra sobre a estabilidade da posse seja no s til mas

    at mesmo absolutamente necessria sociedade humana, a regra no pode servir a fim

    algum enquanto permanecer em termos to gerais ( 119) .

    [38]

    Em suma, a utilidade no explica a instituio: nem a utilidade privada, pois a

    117 Tr., 615. 118 EPM, 58.

  • 33

    instituio a coage, nem a utilidade pblica, porque esta j supe todo um mundo

    institucional que ela no pode criar, ao qual ela est apenas ligada ( 120 ). Ento, o que

    que explica a instituio em sua essncia, em seu carter particular? Hume acaba de

    dizer: a razo e o costume. Em outra passagem, ele diz: a imaginao, isto , as mais

    frvolas propriedades de nosso pensamento e de nossa potncia de conceber ( 121 ).

    Por exemplo, para ser proprietrio de uma cidade abandonada, basta ou no cravar

    seu dardo em suas portas? ( 122 ). No simplesmente invocando as tendncias e as

    necessidades que se responde questo, mas examinando o nexo entre a tendncia, as

    circunstncias e imaginao. O dardo, eis a circunstncia...

    Quando as propriedades de duas pessoas esto unidas de tal maneira que elas no

    admitem nem diviso nem separao, o todo deve pertencer ao proprietrio da parte mais

    importante... Uma s dificuldade, a de saber qual parte requereremos chamar de mais

    importante e de mais atraente para a imaginao... A superfcie submete-se ao solo, diz a

    lei civil; a escrita ao papel; a tela pintura. Essas decises no concordam bem umas com

    as outras; a est uma prova da contrariedade dos princpios dos quais elas procedem ( 123 ).

    Sem dvida, as leis de associao, que regram esse jogo da imaginao, so ao

    mesmo tempo o mais frvolo e o mais srio, o princpio da razo e o benefcio da fantasia.

    Mas, no momento, no temos de nos preocupar com esse problema. Seja como for, basta-

    nos pressentir isto: o que explica a instituio no a tendncia, mas a reflexo da

    tendncia na imaginao. [39]. Criticou-se muito depressa o associacionismo; de bom

    grado, esquece-se que a etnografia nos reconduz a ele e que, como diz ainda Bergson,

    encontramos entre os primitivos muitas interdies e prescries que se explicam por

    vagas associaes de idias. Isso no verdadeiro apenas para os primitivos. As

    associaes so vagas, mas no sentido de que elas so particulares e variam segundo as

    circunstncias. A imaginao se revela como verdadeira produo de modelos

    extremamente diversos: as instituies so determinadas pelas figuras que traam as

    tendncias, segundo as circunstncias, quando elas se refletem na imaginao, em uma

    119 Tr., 620. 120 Tr., 597. 121 Tr., 622. 122 Tr., 626.

  • 34

    imaginao submetida aos princpios de associao. Isso no significa que a imaginao,

    em sua essncia, seja ativa, mas apenas que ela repercute, que ela ressoa. A instituio

    o figurado. Quando Hume define o sentimento, atribui a este uma dupla funo: o

    sentimento coloca fins e reage a todos. Mas essas duas funes so to-somente uma: h

    sentimento quando os fins da tendncia so, ao mesmo tempo, todos, aos quais a

    sensibilidade reage. Como se formam esses todos? Eles se formam quando a tendncia e

    seus fins se refletem no esprito. Porque o homem no tem instintos, porque no est ele

    submetido pelo prprio instinto atualidade de um presente puro, ele liberou a potncia

    formadora de sua imaginao, colocou suas tendncias em um vnculo imediato e direto

    com a imaginao. Assim, no homem, a satisfao das tendncias no se d na medida da

    prpria tendncia, mas da tendncia refletida. esse o sentido da instituio em sua

    diferena com o instinto. Podemos, enfim, concluir: natureza e cultura, tendncia e

    instituio, fazem to-somente um, dado que uma se satisfaz na outra, mas fazem dois,

    pois a segunda no se explica pela primeira.

    [40]

    No tocante ao problema da justia assim definido, os termos esquema e totalidade

    se justificam tanto melhor quanto a regra geral jamais indica pessoas particulares; ela no

    nomeia proprietrios.

    Em suas decises, a justia nunca olha se objetos so ou no adaptados a pessoas

    particulares. A regra geral, segundo a qual a posse deve ser estvel, no se aplica por

    meio de juzos particulares, mas por meio de outras regras gerais que devem se estender

    ao conjunto da sociedade e no podem se curvar, nem por malevolncia, nem por favor ( 124 ).

    Vimos que a regra estabelecida por interesse, por utilidade, e que determinada

    por imaginao. Nesse sentido, ela no determina pessoas reais; ela se determina e se

    modifica no enunciado das situaes refletidas, das circunstncias possveis. assim que

    a estabilidade da posse se detalha em direitos diversos: a posse imediata, a ocupao, a

    prescrio, o acesso, a sucesso. Mas como corrigir a inadequao da pessoa real e das

    situaes possveis? Essa prpria inadequao pode ser considerada como uma

    123 Tr., 631. 124 Tr., 621, 678.

  • 35

    circunstncia, uma situao. Ento, a mobilidade das pessoas ser regrada pela

    transferncia consentida, quando o objeto sobre o qual incide a transferncia est presente

    ou particular, e pela promessa, quando o prprio objeto est ausente ou geral ( 125 ).

    Portanto, devemos distinguir trs dimenses, alis simultneas, da regra geral: seu

    estabelecimento, sua determinao, sua correo.

    Resta uma dificuldade: graas s regras gerais, a simpatia [41] ganhou a

    constncia, a distncia e a uniformidade do verdadeiro juzo moral, mas ela perdeu em

    vivacidade o que ganhou em extenso.

    As conseqncias de cada dano causado eqidade so, parece, muito remotas e

    no so de natureza a contrabalanar uma vantagem imediata que se pode recolher dessa

    injustia ( 126 ).

    J no se trata, como h pouco, de atribuir regra geral uma determinao, mas

    uma vivacidade que lhe falta. J no se trata de detalhar, mas de apoiar, de avivar a

    justia ( 127 ). No bastaria detalhar pela imaginao situaes possveis na extenso da

    justia; preciso agora que essa prpria extenso devenha uma situao real. preciso,

    de uma maneira artificial, que o mais prximo devenha o mais longnquo e que este

    devenha o mais prximo. este o sentido do governo.

    Os homens no podem mudar sua natureza. Tudo o que podem fazer mudar sua

    situao e fazer da justia o interesse direto de alguns homens particulares e, de sua

    violao, seu mais fraco interesse ( 128 ).

    Reencontramos aqui o princpio de toda filosofia poltica sria. A verdadeira

    moral no se dirige s crianas na famlia, mas aos adultos no Estado. Ela no consiste

    em mudar a natureza humana, mas em inventar condies artificiais objetivas tais que os

    maus aspectos dessa natureza no possam triunfar. Para Hume, assim como para todo o

    sculo XVIII, essa inveno ser poltica, somente poltica. Os governantes, satisfeitos

    com sua condio presente no Estado, captam o interesse geral sob o aspecto do

    imediato, compreendem a justia como o bem de sua vida; para eles, o mais distante

    deveio o mais prximo. Inversamente, os governados vem o mais prximo devir o mais

    125 Tr., 640 (nesse sentido, a promessa nomeia pessoas: pg. 678). 126 Tr., 656, 659. 127 Tr., 665. 128 Tr., 658.

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    longnquo, pois eles [42] colocaram fora de seu poder toda transgresso das leis da

    sociedade ( 129 ). Portanto, o governo e a propriedade mantm entre si quase que o

    mesmo nexo existente entre a crena e a abstrao; trata-se, no segundo caso, de atribuir

    papis e, no primeiro, de conferir uma vivacidade. Assim, a lealdade vem completar a

    lista das regras gerais. Tambm nesse nvel a teoria do contrato acha-se criticada. A

    questo no fundar o governo na promessa, porque a promessa um efeito da

    determinao da justia e a lealdade um apoio. Justia e governo tm a mesma fonte;

    so inventados para remediar inconvenientes semelhantes: a justia inventa somente

    uma extenso, o governo inventa uma vivacidade. Submetida justia, a observao da

    lei das promessas , por isso mesmo e em outro plano, o efeito da instituio do governo,

    no sua causa ( 130 ). O apoio da justia , portanto, independente da determinao, e se

    faz de outra parte. Mas, justamente e tanto mais deve ele, por sua vez, se determinar, se

    detalhar por sua conta e, depois, como a prpria determinao, deve suprir, corrigindo-a,

    uma inadequao que o concerne. As determinaes da soberania sero a longa posse, o

    acesso, a conquista, a sucesso. Em casos raros e precisos, a correo da soberania ser

    um certo direito resistncia, uma legitimidade da revoluo. de se observar que as

    revolues permitidas no so polticas: com efeito, o problema principal do Estado no

    um problema de representao, mas de crena. Segundo Hume, o Estado no tem de

    representar o interesse geral, mas fazer do interesse geral um objeto de crena, dando-lhe,

    mesmo que por meio do aparelho de suas sanes, essa vivacidade que s o interesse

    particular tem naturalmente para ns. Se os governantes, em vez de mudar sua situao,

    em vez de adquirir um interesse imediato na execuo da justia, submetem a execuo

    de uma justia [43] falsificada s suas prprias paixes tornadas imediatas, ento, e

    somente ento, a resistncia legtima em nome de uma regra geral ( 131 ).

    No ponto em que nos encontramos, uma primeira srie de regras deu uma

    extenso ao interesse, uma generalidade que ele no tinha por si mesmo: nesse

    movimento, a posse deveio propriedade, estabilidade da posse. Uma segunda srie de

    regras deu a esse interesse geral uma presena, uma vivacidade que ele no tinha por si

    mesmo. Mas os obstculos que a sociedade tinha de vencer no eram apenas a

    129 Tr., 677. 130 Tr., 667-671.

  • 37

    instabilidade dos bens, o carter abstrato do interesse geral. Havia tambm a raridade dos

    bens ( 132 ). E a estabilidade, longe de transpor esse obstculo, confirmava-o, consignando

    posse condies favorveis formao de grandes propriedades. Hume desenvolve

    freqentemente a idia de que, por uma dialtica interna, a propriedade engendra e

    desenvolve a desigualdade ( 133 ). preciso, portanto, uma terceira srie de regras, que

    disfarce a desigualdade e a raridade ao mesmo tempo. Essas regras sero o objeto da

    economia poltica. estabilidade da posse e lealdade ao governo acrescenta-se, enfim,

    a prosperidade do comrcio; este incrementa a atividade, transportando-a prontamente

    de um membro do Estado a outro e no permitindo que ningum soobre ou devenha

    intil ( 134 ).

    Indicaremos apenas o tema principal da economia de Hume. Como ocorre com os

    dois precedentes tipos de regras, tambm a prosperidade do comrcio se determina e se

    corrige. Suas determinaes (circulao monetria, capital, lucro, exportao) nos

    mostram sua relao com a propriedade. Suas correes nos mostraro sobretudo seu

    vnculo com o Estado, vnculo acidental e que vem de fora. O comrcio supe a

    propriedade, implica uma propriedade [44] preexistente: economicamente, a renda

    fundiria primeira. A significao do comrcio em geral assegurar para a propriedade

    fundiria, fenmeno poltico, um equilbrio econmico que ela no tem por si mesma. A

    taxa de juro nos d um exemplo preciso disso. Por si mesma, nas naes civilizadas e

    populosas, a propriedade coloca frente a frente uma classe de proprietrios e uma classe

    de camponeses, de tal modo que uns criam uma demanda contnua de emprstimos e os

    outros no tm o dinheiro necessrio para atender a essa demanda. o progresso do

    comrcio que ultrapassa essa contradio entre elevada demanda de emprstimos e

    poucas riquezas, formando um juro capitalista ao dar nascimento a um grande nmero

    de prestamistas e ao determinar, assim, uma baixa taxa de juro ( 135 ). Quanto ao vnculo

    entre o comrcio e o Estado, compreende-se o seu princpio quando se pensa que a

    prosperidade do comrcio acumula um capital de trabalho que d comodidade e

    felicidade aos sditos, mas que o Estado, em caso de necessidade, pode sempre

    131 Tr., 672-676. 132 Tr., 605. 133 EPM, 50; Essais conomiques (d. Guillaumin), pg. 46. 134 Essais conomiques, 52.

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    reivindicar, reclamar para si.

    um mtodo violento e muito geralmente impraticvel o de obrigar o lavrador a

    fatigar-se para obter da terra mais do que o suficiente para sua famlia e para si mesmo.

    Dai-lhe manufaturas e mercadorias, e por si s ele trabalhar mais. Ento, ser-vos-