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CAPITULO IV: CONCLUSAo:UM APRENDIZADO EM FILOSOFIA
CAPiTULO III: A PRATICA ESPINOSISTA:AFIRMA(:Ao E ALEGRIA
1. Ontologia 1732. Mirma,ao 1763. Pritica 1794. Constitui,ao 181
7Gilles Deleuze - Urn Aprendizado em Filosofia
AGRADECIMENTOS
Desejo expressar 0 meu reconhecimento, com respeito e afeic;ao,a dois professores, Charles Altieri e Antonio Negri.
186
Especular;ao -1. Subsrancia e Distin,ao Real: Singularidade 1052. Atributos Expressivos e Distin,ao Formal:
Umvocidade 110Nota: A Especular;ao Ontol6gica 115
3. Os Poderes do Ser 120
Expressao Ontol6gica -4. A Interpreta,ao dos Atributos: Problemas de uma
Onrologia Materialista 124Nota: Produr;ao Especulativa e Pratica Te6rica 127
5. Combatendo os Privilegios do Pensamento 131Nota: Da Forschung Ii Darstellung 139
Poder-6.0 Verdadeiro e 0 Adequado 1427.0 Que urn Corpo Pode Fazer............................................. 147Prdtica -8. No,6es Comuns: Os Agenciamenros do Ser
Componivel....................................................................... 1529. A Constitui,ao da Razao 158
Nota: Pratica Te6rica e Constituir;ao Pratica 16310. A Arte da Organiza,ao: Para urn Agenciamenro
Politico 167
Obras Cltadas ..
fala em nome de rada a sua corte: "0 que eu abominava acima detudo era 0 hegelianismo e a dialetica" ("Lettre a Michel Cressole"110). A fim de apreciar esse aotagonismo, devemos, cantucia, com~pr:ender que, no dominic cia teoria continental do periodo, Hegel era
U~lqUO. Como resultado de influentes interpreta
urn "outro" para Hegel pode redundar em sec urn "outro" em Hegel.Ha de fato uma bibliogtafia ctescente que amplia essa linha de atgu-mentar;ao, afirmando que a obra de anti-hegelianos contemponineosconsiste em meras repetir;oes inconscientes dos dramas hegelianos,faltando-lhes 0 podet do sujeito hegeliano e 0 tigot e clateza da 16gi-ca hegeliana 2.
o problema da tecupeta,ao com que se depata a funda,ao anti-hegeliana do p6s-estruturalisffio ofereee uma Dutra e mais importan-te justificativa para havermos escolhido Deleuze como tema desse es-tudo. Muito embora inumeros autores tenham realizado importan-res contribuic;6es anossa crftica de Hegel, Deleuze foi quem mais pro-fundamente desvencilhou-se dos problemas do anti-hegelianismo econstruiu urn terreno alternativo para 0 pensamento - que ja nao ep6s-hegeliano e sim sepatado do problema de Hegel. Se a ptimeitajustificativa para propormos Deleuze como pensador p6s-estrutura-lista exemplar era a de que ele erepresentativo do antagonismo aohegelianismo, a nossa segunda ea de que ele eanomalo com respeitoaextensao com que conduz 0 ptojeto de se afastat de Hegel em dite-
tao novas quanto a far~a destrutiva da guerra cantempod.nea e taovelhas quanta a ceticismo pre-crftico dos escohisticos.
A radicalidade da nega
A tematica do poder em Nietzsche prove a passagem teorica que arti-cula a ontologia bergsoniana a uma etica da expressao ativa. Espinosacobre essa mesma passagem e a estende ate a pratica. Da mesma for-ma que Nietzsche coloca a afirma~ao da especula~ao, Espinosa poe a
afirma~ao da pritica, ou da alegria, no centro da ontologia. Oeleuzeargumenta que a concep~ao de Espinosa e uma concep~aoontologicada pratica; Espinosa concebe a pratica como constitutiva do ser. Nomundo pre-crftico da filosofia pratica de Espinosa, 0 pensamento deOeleuze finalmente descobre uma autonomia real em rela~ao it pro-blematica hegeliana.
Uma li~ao a ser aprendida atraves desse projeto filos6fico e a dereal~ar as nuances que definem urn antagonismo. Uma vez que cessa-mos de obnublar a questao com oposi~6escruas, e reconhecemos, emtroca, a especificidade de urn antagonismo, podemos come~ar a pro-duzir nuances mais sutis em nossa terminologia. Por exemplo, quan-do coloco a questao das fundar;oes do pensamento p6s-estruturalista,tenciono contestar a afirma~ao de que esse pensamento eapropriada-mente caracterizado como antifundacionista. Por a questao como uma
oposi~ao exclusiva e, na verdade, creditar ao inimigo demasiada for-~a, demasiado terreno te6rico. 0 pos-estruturalismo de fato critica umacerta no~ao de funda~ao, mas apenas para afirmar uma outra no~aoque e mais adequada aos seus fins. Em oposi~ao a uma funda~aotrans-cendental encontramos uma imanente; contra uma funda~ao dada,teleol6gica, encontramos uma material e aberta4 Urn cuidado simi-lar deve nuan~ar nossa discussao da causalidade. Quando observamos
4 Alguns autores come
NOTA PRELIMINAR:a PRIMEIRO DELEUZE: ALGUNS PRINC!PIOSMETODOL6GICOS
Na introduc;ao a Instincts e Institutions, uma coletanea de tex-tos editada por Deleuze em 1953, vemos as linhas gerais de urn pro-jeto politico e filos6fico come,ando a ganhar forma como uma teo-ria cia instituic;:3.o. "Contniria as teorias do direito que poem 0 positi-vo fora do social (direitos naturais) e 0 social no negativo (limita,aocontratual), a teoria da institui,ao poe 0 negativo fora do social (ne-cessidades) a fim de apresentar a sociedade como essencialmente po-sitiva e inventiva (meios originais de satisfac;ao)" (ix). Essa apresen-ta
6 Mesmo sem urn exame acurado, os fatos mais gerais da biografia de De~leuze, particularmente das coisas que ele nao fez, marcam a sua diferen'ra em rela-
Quando observamos a obra inicial de Deleuze de uma perspectivahist6rica, como uma evolw;;ao, 0 fato mais importante e que ele escreveuseu primeiro livro quando era bastante jovem (tinha 28 anos em 1953quando Empiricism and Subjectivity apareceu) e esperou entao oitoanos ate publicar seu pr6ximo livro. Oito anos poderia nao parecerurn intervalo muito longo para alguns autores, mas para Deleuze, quedepois de 1962 publicou consistentemente urn livro a cada ano, oitoanos representam uma enorme lacuna. "E como urn buraco em mi-nha vida, urn buraco de oito anos. Isso e 0 que acho interessante nasvidas, os buracosque elas contem, as lacunas, algumas vezes drama-ticas, algumas vezes nao... Talvez seja nos buracos que 0 movimentoacontece" ("Signes et evenements", 18). Esse buraco de oito anos navida intelectual de Deleuze de fato representa urn periodo de movimen-to, uma reorientall;ao dramatica em sua abordagem filos6fica. Duran-te esse periodo, com efeito, ele migra do eixo Hume-Bergson que ca-racteriza seus primeirissimos estudos, para a identidade Nietzsche-Espinosa, que transporta sua obra amaturidade. Para ler esse buracona vida intelectual de Deleuze, devemos tentar interpretar 0 que podesignificar essa reorientall;aO, que novas possibilidades proporciona aDeleuze, e como caracteriza a evolull;ao de seu pensamento.
Esse foco na evolw;ao da educa,ao filos6fica de Deleuze explicamelhor porque escolhi, no estudo que se segue, lidar exclusivamentecom os seus primeiros escritos. Nesses trabalhos Deleuze desenvolveurn vocabulario tecnico e fundamentos conceituais que Ihe serao uteisdurante toda a trajet6ria de sua carreira. As posi,oes dos ultimos tra-balhos podem parecer obscuras, ate mesmo insustentaveis, quando naoas colocamos no contexte dessas primeiras investigall;oes. De fato, al-gumas das mais espetaculares inova,oes naquilo que se poderia cha-mar de sua obra madura - os principais textos filos6ficos indepen-dentes (Difference et repetition e The Logic ofSense), as colabora,oescom Felix Guattari, os estudos sobre cinema e os trabalhos mais re-centes sao em grande parte reelabora,oes do feixe de problemas de-senvolvidos nesse periodo formativo de pesquisa intensa e independen-teo A profunda originalidade da voz de Deleuze talvez seja devida aofato de que durante esses anos ele nao estava seguindo 0 mesmo cur-so que a maioria de sua gerall;a06. Esse e 0 periodo da pesquisa sub-
~ao a quase todas as outras grandes vozes filos6ficas francesas que emergiram emsua gera
1. A ONTOLOGIA BERGSONIANA:o MOVIMENTO POSITIVO DO SER
Na obra de Henri Bergson, pode-se esperar encontrar uma psi-cologia ou uma fenomenologia da percep
seu oposto, para 0 seu nao-ser, e completamente externo e pode ape-nas implicar uma rela~ao acidental. Alem disso, esse movimento entreos termos (Hegel os chama de "absolutos") reivindica alcan~ar umasintese determinada. "0 urn [0 urn que e urn so e nao muitos] e a ideali-dade realizada, posta no urn; ele esta em a~ao de atrair pela media~aoda repulsao; ele contem essa media~ao em si mesmo como sua determi-naqiio." (174) 0 simples fato da media,ao abstrata resulta em uma de-
termina~ao real. Como vimos, do mesmo modo que Deleuze denunciaque a media~ao externa implica uma rela~ao acidental, ele tambernrecusa, a uma dialetica da contradi~ao, 0 poder de uma sintese real: a"combinac;ao" e 0 "ajuntamento" de termos abstratos nao podem terurn resultado concreto e real. A esses dois ataques podemos acrescen-tar a acusa~ao de que os pr6prios termos que Hegel utiliza sao impre-cisos. Para esse argumento, Deleuze invoca Platao e a sua met.Hora doborn cozinheiro, que tern 0 cuidado de cortar nos lugares certos, deacordo com as articulac;5es da realidade (ver 0 Bergsonism, 45 e "Berg-son", 295). 0 que falta aterminologia hegeliana e uma aten,ao rnaisacurada aespecificidade e asingularidade do ser real: Hegel aparececomo urn a,ougueiro dialetico descuidado quando comparado ao finotalento de Platao. Para chegar a uma concep,ao singular da unidade eda multiplicidade no ser real, temos que come~ar perguntando, amodaplat6nica, qual ser, que unidade, que pluralidade? "0 que Bergson exige- contra a dialetica, contra uma concepc;ao geral dos opostos (0 Urneo Multiplo) - e uma percep,ao aguda do 'que' e 'quantos' daquiloque se chama de 'nuance' ou numero potencial" (Bergsonism, 45).
o que conseguiu entao Oeleuze, nessa segunda fase do estudo sobreBergson, ao reajustar 0 foco de seu ataque, do problema da determina-,ao do Urn e do Multiplo, da discussao da qualidade para a passagemda qualidade aquantidade? Como sempre Hegel e muito claro com res-peito ao que esta em jogo na discussao. Descrevendo os defeitos da
concep~ao de rnais de urn atomista antigo, que da precedencia amul-tiplicidade, ele fornece uma analogia sugestiva: "Quando fala das rno-leculas e das particulas, a Fisica, nos atomos, sofre do principio da supre-ma exterioridade e, com isso, da suprema aconceitualidade, assim comocom a Ciencia do Estado, que parte da vontade singular dos individuos".(Science ofLogic, 167). A passagem da qualidade aquantidade revela,no fundo de urn problema ontologico, urn problema politico. A apostae muito alta. Para Hegel, estii. claro que a rela,ao entre 0 Uno e 0 Multiploe uma funda~ao (analogica) para uma teoria da organizaC;ao social, uma
base ontologica para a politica. Atacar a unidade dialetica do Uno e doMultiplo e, portanro, aracar a primazia do Estado na formac;ao da so-ciedade, insistir na pluralidade real da sociedade. Aqui comer;amos aenxergar trar;os do movimento que ocorreu durante 0 "buraco de oitoanos" de Oeleuze: a mudan,a quase imperceptivel de foco em seu ataquealogica hegeliana, do capitulo 2 ao capitulo 3 de "The Ooctrine of Being" ,traz a ontologia para a esfera da politica.
a que esse novo ataque ocasiona especificamenre e uma novaconcep,ao da multiplicidade. "A no,ao de multiplicidade nos resguardade pensar em termos de 'Uno e de Multiplo'" (Bergsonism, 43). Eaquique Deleuze consegue estabelecer sua configurac;ao triangular de ini-migos preferida, porque descobrimos que ha dois tipos de multiplici-dade. Os inimigos proximos sao G.B.R. Riemann e Albert Einstein;esses pensadores sao capazes de conceber multiplicidades, mas simples-mente multiplicidades numericas e quantitarivas que apenas conseguemapreender diferen,as de grau (32-34). Bergson, ao contrario, realizauma Multiplicidade qualitativa fundada em diferen,as de natureza. Aprimeira, a multiplicidade da exterioridade, e uma multiplicidade da"ordem"; a multiplicidade interna de Bergson e uma multiplicidadeda "organiza,ii.o" (Bergsonism, 38). A dialetica hegeliana, naturalmen-te, ocupa a terceira e mais extrema posic;ao, incapaz de pensar a mul-tiplicidade em quaisquer termos, porque nem reconhece diferenr;as denatureza nem diferenc;as de grau. A configurac;ao dos inimigos proxi-mos, entretanto, proporciona ao Bergson de Deleuze urn afastamentocom respeito ao terreno hegeliano. "Para Bergson, nao e uma ques-tao de opor 0 Multiplo ao Uno mas, ao contrario, de distinguir doistipos de multiplicidade" (39). Voltaremos a analisar esse projeto po-sitivo da mulriplicidade em seguida, mas e importante reconhecer,agora, a clareza da estrutura politica do projeto que resultou da criti-ca: Oeleuze criou uma posi,ao para defender urn pluralismo da orga-nizaC;ao contra urn pluralismo da ordem. E isso esta muito distante dafilosofia do Estado da Unidade do uno e do Multiplo de Hegel.
3. A EMANA
repetition (269-76). A critica do possivel edirigida a Descartes e assume formaligeiramente distinta em Expressionism in Philosophy: Spinoza (30-31, 38-39, 122-26). Voltaremos a essas passagens posteriormente.
11 Certamente, minha preocupac;ao nao eprovar que Deleuze foi buscar suaargumentac;ao nos escolasticos. Podemos muito bern atribuir as ressonancias es-coIasticas a Bergson e a seu interesse em Arist6teles. 0 que importa, contudo, equepodemos compreender essa questao no argumento de Deleuze mais daramente quan-do temos em mente os argumentos ecoIasticos ou outros com preocupa~oes similares.
pares (virtual-atual e possivel-real), Deleuze prossegue na observa
De1euze tao especial e que ele traz para cada urn de seus estudos filo-s6ficos uma questao muito especifica que focaliza e define a sua vi-sao. No caso dos estudos sobte Betgson, descobtimos que Deleuze sepreocupa principalmente em desenvolver uma critica adequada do mo-vimento onto16gico negativo da dialetica e em elaborar uma 16gicaaltemativa do movimento positivo e criativo do ser. A sele,ao impH-cita no foco preciso de Deleuze e que parece confundir alguns de seusleitores e irritar a outros. A critica de Gillian Rose ("The New Berg-sonism") e Madeleine Barthelemy-Madaule ("Lire Bergson") nos ofe-recem dois exemplos desse problema. Nessas criticas, podemos discer-nir dois metodos para ler Deleuze que dao lugar a dificuldades inter-pretativas. Em primeiro lugar, ao nao reconhecerem a seletividade deDe1euze, essas autoras confundem as posi\oes de Deleuze com aque-las dos filosofos de que ele trata, e, em segundo lugar, ao ignorar aevolu,ao do pensamento de Deleuze, confundem os diferentes proje-tos que guiam as suas varias obras. Ademais, a diversidade de pers-pectiva entre essas duas criticas servirao para ilustrar 0 deslize queresulta do fosso entre as tradi,6es anglofilas e francesas da interpre-ta,ao de Bergson.
Em todo 0 "The New Bergsonism" (capitulo 6 da Dialetic ofNih i-lism), Rose Ie a obra de Bergson e a interpreta,ao de Deleuze como sefossem urn continuo perfeito. Ela conclui, em sua discussao sumariado Bergsonism, com uma interpreta\ao ambigua que ilustra essa con-fusao muito claramente: "Na leitura de Deleuze, Bergson produz umaNaturphilosophie que culmina no ponto em que 0 elan vital 'torna-seconsciente de si mesmo' na mem6ria do 'homem'" (Rose, 101). Parafundamentar essa asser,ao ela cita a pagina final do Bergsonism (112na edi,ao em ingles), que em parte da sustenta,ao asegunda metadede sua senten,a, mas de modo algum da sustenta,ao aprimeira. Deleuzenao apenas nao menciona a Naturphilosophie nessa passagem, masdedica-se nas paginas anteriores (106-12) a argumentar que Bergsondemonstra como podemos ir alem do plano da natureza e criar umanova natureza humana. Nesse ponto Deleuze se baseia essencialmen-te na ultima obra de Bergson, Les deux sources de la morale et de lareligion (1932). Rose extrai a ideia de Naturphilosophie nao de Deleuzemas da primeira obra de Bergson, Essai sur les donnees immediatesde la conscience (1889), que ela interpreta como sendo consistente coma obras de Comte (Rose, 98). (Portanto, para tomar as coisas aindamais confusas, temos uma leitura completamente a-hist6rica de Berg-
son, que nao consegue distinguir entre as suas primeiras e as suas 61-timas obras.) 0 ponto central aqui, entretanto, nao e se 0 pensamen-to de Bergson constitui ou nao uma Naturphilosophie; ao contrario,a questao e que este aspecto nao constitui uma parte do projeto deDeleuze, que nao e isso que Deleuze extrai de Bergson.
Encontramos urn problema similar de interpreta\ao no ensaio deMadeleine Barthelemy-Madaule, uma especialista francesa em Bergson,e e interessante que em sua leitura sao precisamente as mesmas pagi-nas do Bergsonism que causam a maior irrita\:3.o. Sua rea\ao, contu-do, vern de uma perspectiva muito diferente da de Rose, uma vez queela se fundamenta em uma leitura espiritual francesa de Bergson, aoinves de 'em uma leitura anglo-sax6nica positivista. A principal obje-,ao de Barthelemy-Madaule e a de que Deleuze tenta ler Les deuxsources como urn texto nietzschiano e anti-humanista, quando na ver-dade ali se demonstra 0 carater profundamente religioso do pensamentode Bergson: "0 processo de 'ultrapassar a condi\=ao humana' que e,de fato, a voca,ao da filosofia para Bergson, nao pode ser formuladoem termos do 'inumano' ou do 'sobre-humano'... De qualquer modo,a principal conclusao que tiramos dessa interpreta\ao e a de que Berg-son nao e Nietzsche" ("Lire Bergson" 86,120). BartheIemy-Madauleeuma leitora muito cuidadosa de Bergson e tem-se que aceitar, ate certoponto, a sua critica. Bergson, de fato, nao e Nietzsche. Para os nossospropositos, 0 esfor,o de Deleuze (talvez exagerado e malsucedido), nosentido de aproximar os dois nestas paginas, indica 0 importante efeitoque 0 periodo de estudos sobre Nietzsche teve em seu pensamento e anecessidade de ultrapassar 0 referencial bergsoniano. A principal ques-tao em jogo no conflito com BartheIemy-Madaule, contudo, e a decomo se deve interpretar um filosofo. BartheIemy-Madaule reage an-tes de tudo ao principio de sele\=ao de Deleuze: "Interpretar uma dou-trina pressupoe que se considere todos os termos do conjunto. Naome parece que seja este 0 caso aqui. Eu contestaria quanto autiliza-,ao de Bergsonismo como titulo do estudo do Sr. Deleuze"(120). 0primeiro tipo de problema na leitura de Deleuze, que encontramos emRose e Barthelemy-Madaule, resulta, portanto, de uma incapacidadede reconhecer ou aceitar a seletividade de Deleuze e, assim, de umaconfusao, tanto com respeito ao uso que ele faz das fontes, quanto a.sua rela,ao com os filosofos que analisa.
o segundo tipo de problema resulta de uma interpreta,ao erro-nea dos projetos de Deleuze, de uma incapacidade de reconhecer a sua
L56 Michael Hardt Gilles Deleuze - Urn Aprendizado em Filosofia 57
via, nesse caso, a estrategia de triangula~ao de Deleuze, que discuti-mos anteriormente (sec;ao 1.1), torna-se mais complicada e mais am-bigua. Embora Nietzsche and Philosophy contenha algo da retoricaaspera contra Hegel, 0 foco da polemica ja se afasta de Hegel de modoimportante. Tal como nos estudos sobre Bergson, DeIeuze introduz ou-tros antagonistas que estao mais pr6ximos das posic;6es de Nietzschee que partilham algumas de suas preocupa,oes, a fim de manter-se auma vasta distancia de Hegel; Deleuze recusa-se a descer e a lutar nomesmo terreno de Hegel. Mais uma vez, descobrimos que Hegel her-da as falhas dos antagonistas mais pr6ximos e as leva ao extremo, comose fosse urn tipo de eleva~ao aenesima potencia.
As ambigiiidades da posi,ao de Deleuze, todavia, sao tadas aque-las relacionadas as concepc;6es de antagonismo e oposic;ao que desen-volve. Deleuze nos da indicac;6es aparentemente contraditorias sobrea melhor maneira de se escolher 0 inimigo e de se relacionar com ele.Em diversas passagens, descobrimos que ele ve 0 antagonismo funda-mental contra Hegel como urn elemento central e premente de sualeitura de Nietzsche: "Nos compreenderemos malo conjunto da obrade Nietzsche se nao observarmos 'contra quem' os seus principaisconceitos sao dirigidos. Os temas hegelianos estao presentes nessa obracomo 0 inimigo contra 0 qual ela luta" (162). "0 anti-hegelianismopercorre a obra de Nietzsche como a sua lamina cortante" (8). E, fi-nalmente, a filosofia de Nietzsche forma "uma antidialetica absolu-ta" (195). Nessas passagens, a necessidade de uma confronta,ao di-reta com Hegel e muito clara. Em outras passagens, contudo, Deleuzetenta deslocar a relac;ao com Hegel, para destruir 0 seu carater bina-rio com 0 mesmo tipo de configurac;ao triangular que encontramos nosestudos sobre Bergson:
A rela,ao de Nietzsche a Kant e como a de Marx aHegel: Nietzsche repoe a critica de pe, tal como Marx fazcom a dialetica (... ) a dialetica nasce da farma original kan-tiana da critica. Nao teria havido necessidade de por a dia-letica de volta sobre os pr6prios pes, nem de "produzir"qualquer forma de dialetica se a propria critica nao estivessede cabe,a para baixo desde 0 infeio (89).
Nesta passagem, parece que Hegel nao constitui uma preocupa-c;ao real para Nietzsche; a dialetica e urn falso problema. Em troca,
Nietzsche dirige-se a Kant como 0 seu inimigo mais proximo. Essas duasposturas formam urn paradoxo: 0 principal antagonismo de Nietzschee em rela~ao a Kant, 0 inimigo mais proximo, ou em rela~ao a Hegel,o inimigo fundamental? Deleuze tern que navegar entre Cila e Caribdis.Apresentar Nietzsche como urn anti-hegeliano radical e realmente pe-rigoso; Nietzsche aparece na posic;ao da nega~ao, da rea~ao, do ressen-liment. Alem disso, a oposi,ao absoluta parece (num esquema hegelia-no) implicar na detona~aode urn novo processo dialetico. Contudo, seao inves disso tentamos focalizar apenas urn inimigo proximo (comoKant) e nao reconhecemos 0 anti-hegelianismo como forc;a motriz funda-mental, "nao compreenderemos 0 conjunto da obra de Nietzsche" (162).
Podemos obter uma ideia preliminar do tratamento dado par De-leuze a esse problema com os inimigos, observando a sua leitura de anascimento da tragedia. Deleuze acha que esse texto primeiro apre-senta urn argumento "semidialetico", baseado na antftese Dioniso/Apolo (13) e da uma explica,ao elegante para esse problema, em ter-mos de uma evolu~ao do pensamento de Nietzsche, que resolve 0 parantinomico em duas dire
precisa ser uma negac;ao absolutamente destrutiva que nada poupa desua forc;a e nada recupera de seu inimigo; ela deve ser uma agressaoabsoluta que nao oferece perdao, nao faz prisioneiros nem saqueia mer-cadorias; ela deve marcar a morte do inimigo, sem ressurreic;ao. Estaea negac;ao radical e nao dialetica que a leitura de Nietzsche por De-leuze deve fazer.
2. a METODO TRANSCENDENTAL E A CRITICA PARCIAL
A grande contribui,aa de Kant afilasafia consiste em conceberuma Cfitica imanente que eao mesmo tempo total e positiva. Kant,entretanto, nao consegue desenvolver esse projeto, e assim 0 papel deNietzsche, de acordo com Deleuze, e corrigir os erros de Kant e salvara projelO (89). A principal falha da critica kantiana e a propria filasa-fia rranscendental. Em autras palavras, a descoberta feita par Kant deurn dominio alem do sensivel e a criac;ao de uma regiao fora das bor-das da critica, que na verdade funciona como urn refugio contra as forc;ascriticas, como uma limitac;ao dos poderes criticos. Vma critica total, aocontrario, requer uma perspectiva materialista e monista em que todoo horizonte unificado e aberto e vulneravel ainvestigac;ao desestabi-lizadora da Cfitica. Assim, e 0 proprio metodo transcendental que re-quer (au permite) gue a critica permane,a parcial. Cam as valares ide-ais protegidos e a salvo no supra-sensivel, a critica kantiana pode con-tinuar tratando das pretensoes averdade e amoralidade, sem por emrisco a verdade e a moralidade em si mesmas. Kant efetivamente con-cede imunidade aos valores estabelecidos da ordem dominante e "as-sim a critica total se torna uma poHtica de compromissos" (89). A cri-tica da razao kantiana funciona de modo a reforc;ar os valores estabe-lecidas da ardem daminante e nas tarna abedientes a ela: "Quandaparamos de obedecer a Deus, ao Estado, aos nossos pais, a razao surgee nas persuade a cantinuarmas senda doceis". (92) A propria colaca,aada plana transcendental e a canseguente parcialidade da critica, par-tanto, e 0 que permite ao kantismo ser conservador. Sob 0 manto dodesinteresse, Kant aparece como urn passivo funcionario do Estado, urnintelectual tradicional em termos gramscianos, legitimando os valoresdas paderes daminantes e protegenda-as das far,as criticas. Finalmente,a critica de Kant e par demais palida, reprimida pela "humilde reca-nhecimento dos direitos dos criticados" (89). Kant e muito gentil, muito
bern comportado e muito timido para questionar seriamente os valo-res estabelecidos fundamentais. Em troca, a critica total nao reconhe-ce qualquer restric;ao, nenhum limite ao seu poder e e por isso necessa-riamente insurrecional; a Cfitica total deve ser urn ataque fulminanteaos valores estabelecidos e aordem no poder que eles sustentam.
A Cfitica kantiana nao apenas nao consegue ser total, ela tam-pouco consegue ser positiva; na verdade, a incapacidade de ser totalobstrui a possibilidade de ser positiva. 0 momento negativo e destru-tivo da critica (pars destruens), que poe 0 horizonte total em questaoe desestabiliza previamente os poderes existentes, deve limpar a ter-rena para gue a mamenta pradutiva (pars construens) possa liberarau criar novos poderes - a destruic;ao abre 0 caminho para a cria-,aa. Assim, a dupla derrota de Kant e, de fata, apenas uma. Esta can-clusaa se desdabra diretamente da enfase de Nietzsche nas valores:"Urn das principais moveis para a obra de Nietzsche e a fata de Kantnao haver desenvolvido uma verdadeira critica em termos de valares"(1). A parcialidade da primeiro rna menlO destrutiva da critica permi-te que os valores estabelecidos essenciais sobrevivam, e assim deixa delimpar 0 terreno que e necessaria para 0 poder canstrutivo criador devalar. A "instancia ativa" (89), gue falta acritica de Kant, e precisa-mente aquela gue verdadeiramente legisla: legislar naa e legitimar aordem ou preservar valores, mas justamente 0 oposto, e criar novasvalares (91). Essa critica das valares nas far,a a cansiderar a questaado interesse e da perspectiva. Vma vez que nao podemas aceitar qual-quer ponto de vista transcendental exterior ao plano das forc;as quedeterminam e legitimam 0 conhecimento absoluto e os valores univer-sais, devemos localizar a perspectiva no plano imanente, e identificaros interesses a que ela serve. Assim, 0 unico principia possivel de umacritica tatal e a perspectivisma (90).
Esse ataque ao metodo transcendental de Kant, invocando 0 pers-pectivismo, caminha de mao dadas com 0 ataque de Nietzsche ao idea-lisma platonico. Deleuze abarda essa guestaa consideranda "a farmada questaa" gue anima a investiga,aa filasofica. A guestaa central paraa investigac;ao plat6nica, diz Deleuze, e "QuJest-ce que?": "Que eabeleza, que e a justic;a etc.?"(76). Nietzsche, entretanto, quer alterara questao central para "Qui"?: "Quem e bela?", ou melhar, "Qualdeles (as) e bela?". Mais uma vez a faca da atague e a metada trans-cendental. "Qu'est-ce que?" e a questao transcendental por excelen-cia, que busca urn ideal que esta aeima, coma urn principia supra-sen-
64 Michael Hardt Gilles Deleuze - Urn Aprendizado em Filosofia 65
e reacionarismo politico, quase todos centrados em torno de uma se-le~ao e interpreta~ao "personalista". 0 meu ponto de vista, ent~etanto, e que, embora essa sele\=ao possa ser necessaria a Deleuze, e !usta-mente esse aspecto "impessoal" que marca 0 limite do desenvolvlmen-to, por Deleuze, dos veios eticos e politicos em Nietzsche.
3. A L6GICA DO ESCRAVO E 0 PODER EFICIENTE
Ate agora consideramos os ataques nietzschianos de Deleuze aosinimigos proximos, Kant e Piatao. 0 ataque nietzschiano diretamen-te endere~ado a Hegel, 0 inimigo fundamental, aparece em sua formabergsoniana. Como nos trabalhos sobre Bergson, a acusa~ao inicial deDeleuze adialetica e, rnais uma vez, a de que esta e dirigida por urnmovimento negativo que nao pode chegar a uma concep\=ao concre~ae singular do ser. A contradi~ao e a oposi~ao podem apenas p~oduzlrresultados abstratos (157) e somente levar a uma determma~ao abs-trata do ser, cega as suas nuances sutis, as suas singularidades: ~'O serda logica hegeliana e urn mero ser do 'pensamento', puro e vazlO, qu~se afirma passando para 0 seu proprio oposto. Mas este ser nunca fmdiferente do seu oposto, nunca teve de passar para aquilo que ja era.o ser hegeliano e 0 nada pum e simples" (183). 0 nucleo desse ata-que e que 0 ser hegeliano e abstrato e nao difere realmente de seuoposto. Deleuze, contudo, nao fornece aqui qualquer fundamento s~bstancial para essas afirma\=oes e assim elas podem soar urn tanto vazlas,a menos que dentro delas leiamos a critica da determina~ao,de Bergson.Vimos que Bergson argumenta que a diferenc;a somente e concebldacomo oposic;ao atraves de uma abstrac;ao de diferenc;as reais,' por um~visao imprecisa da realidade; a diferenc;a real nao se encammha radl-calmente para a oposiC;ao. Alem disso, movimento qu~ esse ser he-geliano implica, "passando para 0 seu oposto", e urn movm~ento com-pletamente externo e, portanto, falso, que nunca chega mats per;o.deuma afirmaC;ao real e concreta. Portanto, 0 movimento ontologlcohegeliano permanece abstrato e acidental. Com efeito, 0 Nietzsche deDeleuze pressupoe essa analise bergsoniana do carater abstrato do mo-vimento ontologico negativo da determinaC;ao.
Uma vez que aceitemos que os argumentos bergsonianos funcio-nam como a base para essa discussao, nao nos deve surpreende~,entao, que Deleuze encontre uma alternativa em Nietzsche: "Substl-
tui 0 elemento especulativo da negac;ao, oposic;ao ou contradir;ao, peloelemento pritico da difference" (9). Esta e uma afirma~ao que lembraBergson, exceto pelo fato de podermos observar que os termos doconfhro tornaram-se mais concretos - agora 0 "elemento especula-tivo" e contrastado ao "elemento pratico". Na verdade, 0 advento deNietzsche no pensamento de Deleuze transforma a cena teorica berg-soniana com uma contribuir;ao muito importante. Nao temos maiscategorias puramente logicas (diferenr;a interna vs. diferenr;a externae movimento ontologico negativo vs. positivo), mas agora a logica eapresentada em termos de volir;ao e valor (negar;ao vs. afirmar;ao einterioridade vs. exterioridade). Essa mudan~a em rela~ao ao horizon-te de for~as marca a mesma tendencia do pensamento de Deleuze, queobservamos anteriormente na segunda fase dos estudos sobre Bergson.A transposir;ao para 0 terreno dos valores marca 0 inicio de nossa tra-jetoria, da ontologia aetica e apolitica.
A complexidade desse novo terreno e a importancia da transfor-mar;ao de Nietzsche tornam-se evidentes quando Deleuze aborda a po-lemica de Nietzsche contra a logica do escravo e, atraves dessa abor-dagem, desenvolve urn novo ataque adialetica hegeliana: "Nietzscheapresenta a dialetica como a especula~ao da plebe, como a maneirade pensar do escravo: 0 pensamento abstrato da contradir;ao prevalece,entao, sobre 0 sentimento concreto da diferen~a positiva" (10). Sobreesse novo terreno nos temos personae dramciticas representando os doismetodos filosoficos: 0 escravo da especula\=ao abstrata versus 0 senhordo pathos e da pratica concretos. Penetramos agora, entretanto, numapassagem bastante dificil e devemos ter 0 cuidado de reconhecer, des-de 0 inicio, 0 foco espedfico e 0 conteudo polemico do argumento deDeleuze. Sem duvida, Deleuze esra lendo On the Genealogy ofMoralscomo urn ataque aspero contra Hegel, mas contra que Hegel? Uma vezque lidamos com 0 senhor e 0 escravo, parece obvio que 0 alvo deDeleuze e a Phenomenology of Spirit, ou talvez a versao populariza-da por Kojeve dessa obra. Contudo, se a pomos como foco, 0 ataquede Deleuze parece urn tanto desorientado. Nurn estudo muito inteli-gente e cuidadoso do Nietzsche and Philosophy, Jean Wahl registraos defeitos desse ataque: "Nao haven., na Phenomenology of Spirit,algo mais profundo, capaz de resistir acritica nietzschiana?" (364).Wahl sem duvida tern razao ao observar que 0 Nietzsche de Deleuzenao enfrenta diretamente 0 argumento central de Hegel na Phenome-nology; mas isso deveria nos indicar que talvez tenhamos interpreta-
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do erroneamente 0 alvo principal. Epreciso entao refinar 0 primeiroprindpio metodologico que apresentamos na "Nota Preliminar": enecessario reconhecer nao apenas "contra quem" a polemica e dirigida,mas tambem contra qual argumento espedfico.
Obtemos uma perspectiva mais adequada do ataque nietzschianoapresentado aqui se 0 lermos como uma continuac;ao da polemica con-tra a Science of Logic de Hegel. Com efeito, Deleuze tomou a ofensi-va 16gica desenvolvida por Bergson e acrescentou a questao da vonta-de _ "Quem quer urn movimento ontol6gico negativo?". Este e 0 me-todo da dramatiza
i:i
senhor de Nietzsche, entretanto, insiste em que a potencia existe 50-mente en acte e naG pode sec separada de sua manifesta~ao: "A fort;aconcreta e aquela que vai ate as ultimas conseqiiencias, as bordas ciapotencia ou do desejo" (53). 0 senhor coneebe uma rela~ao interna enecessaria entre a for
so sobre 0 poder e uma avalia,ao - ele classifica de nobre a potenciaque einterna asua manifestat;ao4
Tal analise da natureza da potencia ja e bastante sugestiva deuma erica. Deleuze extrai as implicac;6es politicas e eticas dos dais ti-pas de potencia com uma comparac;ao interessante entre Nietzsche eCalicles:
Calicles se esfon;a por distinguir natureza e lei. Tudaque separa uma for,a daquilo que ela pode fazer ele chamade lei. A lei, nesse sentido, expressa 0 trjunfo do fraco SO~bre 0 forte. Nietzsche acrescenta: 0 trjunfo cia reac;ao sabrea ac;ao. De fato, tudo 0 que separa uma forc;a ereativo, comoreativo e 0 estado de uma for,a separada daquilo que podefazer. Tocla forc;a que vai ate 0 limite de sua potencia e, aocontnhio, ativa. Nao euma lei que rada forc;a va ate 0 seulimite; e, ao contd.rio, 0 oposto de uma lei (58-59).
Esta passagem apresenta urn terrena que emuito proximo da-quele dos escritos polfticos de Espinosa. Primeiro, Espinosa afirma:potencia; virtude; direito, e em seguida contrapoe jux a lex. Tal for-mula~ao ajusta-se a Espinosa como uma extensao de sua etica e comoa fun~ao para uma poHtica democd.tica viavel. Contudo, nesse pon-to de nossa leitura deleuziana de Nietzsche, nao temos ainda os ele-mentos praticos e construtivos necessarios para elaborar essa baseetica e poHtica. Temos uma teoria substancial do poder que pode nosauxiliar como uma ofensiva ao juridismo (baseado na concep~ao depotencia que ole implica), mas nao ternos ainda qualquer alternativapositiva para complementar essa ofensiva. Para conquistar essa alter-nativa, teremos de esperar ate que possamos elaborar uma concep-
~ao da pratica etica. Por enquanto, entao, podemos apenas ler a ana-lise nietzschiana da potencia como sugestiva de uma etica e de umapolitica futuras.
Fizemos urn razoavel progresso ao dar corpo a logica e ao valorda distin,ao de Nietzsche entre a potencia do senhor e a potencia do
4 Essa avalia~ao das duas naturezas do poder e urn elemento que muito apro-xima 0 Nietzsche deleuziano de Espinosa: "Por virtude e potencia [potentia] enten-do a mesma coisa" (Etica,IVD8).
escravo. Contudo, fica bastante claro que 0 senhor e 0 escravo de Hegelnao trilham diretamente esse mesmo terreno. 0 escravo de Hegel estainteressado em consciencia e independencia; por demais preocupadocom a sua morte e por demais envolvido com 0 seu trabalho paracolocar a questao do valors. Evidentemente, a discussao anterior naose referia aPhenomenology. Deleuze nolo dirige 0 ataque nietzschianocontra 0 senhor e 0 escravo de Hegel, mas, sim, contra uma extra-pola,ao da Science of Logic de Hegel. Nao fazemos rnais a pergunta"Que e a logica dialetica do ser?" e sim "Quem quer essa logica"? Essae a linha de raciocinio que nos encaminha para a avalia~ao do senhore do escravo,e para as duas concep~6esde poder. Assim, Deleuze con-duz uma critica de segunda ordem de Hegel que se constroi sobre a16gica bergsoniana e avan,a ate a politica de Espinosa. Devemos ob-servar que a tatica de Deleuze para promover 0 ataque a Hegel mu-dou ligeiramente. Mesmo que a retorica tenha se intensificado, a po-lemica nao mais se aplica diretamente ao argumento de Hegel; dirige-se a uma deriva,ao de Hegel, a uma implica,ao de sua dialetica. Essanova tatica concede a Deleuze maior autonomia em rela~ao a termi-nologia hegeliana e, na verdade, transporta a dialetica para 0 terrenode Deleuze (neste caso, do sentido e do valor) de modo que ele pode,ali, presidir 0 combate.
NOTA: 0 RESSURGIMENTO DA NEGATIVIDADE
Urn parentese sobre a resposta de Steven Houlgate as acusa,oesde Deleuze contra a 16gica do escravo, em Hegel, Nietzsche and theCriticism of Metaphysics, pode nos auxiliar a caracterizar a impor-tancia dos argumentos ate aqui apresentados. 0 projeto de Houlgatee 0 de defender Hegel contra as recentes acusa~6es assestadas pelosnietzschianos franceses (Deleuze em particular) e, como urn bornhegeliano, voltar a ofensiva, demonstrando que nao apenas eHegelinvulneravel as criticas nietzschianas, como ele de fate completa 0 pro-
5 Mario Tronti observa que 0 que falta precisamente na dialetica senhor-es-cravo de Hegel e a questao do valor. :E par isso que Marx precisa combinar umacrftica de Hegel com uma crftica de Ricardo para chegar a sua no~ao de valor dotrabalho (Operai e capitale, 133-43).
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escapa da crftica nietzschiana? au, ao contnirio, Deleuze ja nos for-neceu as armas para urn ataque nietzschiano adequado? Tentemosverificar 0 desafio nietzschiano de Deleuze, trazendo-o para 0 proprioterreno de Hegel. a escravo de Hegel nao raciocina, "0 senhor e mau;portanto eu sou born"; ao inves disso, podemos colocar 0 silogismodo escravo de Hegel como: "Eu temo a morte e sou fon;ado a traba-lhar; portanto, eu sou consciencia de mim por mim mesmo, indepen-dente". A logica deste silogismo toma duas rotas - urn caminho im-plfcito em relac;ao ao senhor e urn caminho explicito em relac;ao aoobjeto do trabalho do escravo, caminhos que estao articulados comouma progressao para descrever a educac;ao do escravo.
o caminho implicito se funda na confrontac;ao do escravo coma morte, "0 Senhor absoluto". Nesse encontro, 0 escravo experimentaa negac;ao de tudo que e solido e estavel em seu ser: "Mas esse puromovimento universal, 0 fluidificar-se absoluto de todo 0 subsistir e aessencia simples da consciencia-de-si, a negatividade absoluta, puro'ser-para-si que e implfcito nessa consciencia" (Phenomenology, 194).Numa primeira observac;ao, 0 processo implicito parece desenvolvera seguinte logica: a consciencia-de-si inicial do escravo, urn simples ser-para-si, e negada na morte e depois e ressuscitada como uma afirma-c;ao da vida e como urn puro ser-para-si. Contudo, nao podemos com-preender a logica dessa passagem a menos que observemos que esse"fluidificar-se absoluto de todo 0 subsistir", nao e, propriamente fa-lando, uma negac;ao absoluta ou total, porque preserva a "naturezaessencial" da consciencia sob assedio. A mone do eSCravo nao servi-ria aos propositos de Hegel: ele quer destruir tudo 0 que e inessencialno escra_vo, e parar no lim~ar da essencia. Essa agressao parcial, essaconten,aa da far,a destrutlva da nega,ao dialetica, ea que permite aconservac;ao - e a negac;ao "que suprassume de tal forma que pre-serva e mantem 0 que e suprassumida" ( 188).
Ora, presumindo que aceitemos que e a oposic;ao (embora par-cial) amorte que afirma a vida do escravo, ja podemos nos aventurara dar uma resposta bergsoniana a esse processo implicito. Se a dife-renc;a que anima a vida esua oposic;ao amorte, quer dizer, se a dife-renc;a da vida e absolutamente externa, entao a vida aparece como me-ramente insubstancial, como urn resultado do acaso e da sorte uma"exterioridade subsistente". Alem disso, quando pomos a mor~e emgeral como uma contradic;ao da vida em geral, estamos lidando comtermos por demais abstratos e imprecisos para chegar asingularidade
e concretude da diferen,a que define a vida e a subjetividade reais. Comefeito, estamos vestindo a vida em roupas frouxas. A vida e a morteem sua oposic;ao abstrata sao indiferentes. Por isso, a afirmac;ao da vidaque 0 escravo alcanc;a "em princfpio", atraves da confrontac;ao coma morte, pode ser apenas abstrata e oca.
Hegel, entretanto, fornece imediatamente uma resposta a essedesafio: "Esse momento do puro ser-para-si e tambem explicito parao escravo, pois, no senhor, ele existe como seu objeto. Alias, sua cons-ciencia nao es6 esta dissoluc;ao de todas as coisas meramenteestaveisem principia; no seu servir ela realmente se efetua" ( 194). Aqui 0escravo nao rnais encara 0 "Senhor absoluto", a morte abstrata, masse defronta cam urn senhor particular e e far,ado a trabalhar. Essa ne-gaC;ao explicita assume duas formas que estao interligadas nUID mo-vimento progressivo: uma negac;ao formal na relac;ao do escravo como senhor, e uma negaC;ao efetiva na relac;ao do escravo com 0 seu tra-balho. No senhor, 0 escravo e confrontado por uma consciencia-de-siindependente que onega. Contudo, 0 escravo nao pode ganhar reco-nhecimento do senhor, e assim essa forma de oposic;ao pode apenasproparcionar-Ihe "0 come,o da sabedaria". A segunda rela,aa explicitarevela a essencia natural do escravo, permitindo-Ihe tornar-se "cons-ciente do que ele verdadeiramente e" ( 195).0 escrava sai de si mes-mo ao incorporar a coisa como objeto de seu trabalho; ele se perdeau se nega a si mesmo e se encontra na coisa; finalmente, ele recuperaa essencia natural de si mesmo atraves da sua negaC;ao ou transforma-,ao da caisa. Atraves desse trabalha far,ada, partanta, 0 escravo negaurn outro especifico (0 aspecto de si mesma que dele exilou-se) elabo-rando-o ou transformando-o, do mesmo modo que 0 senhor nega 0objeto de seu desejo consumindo-o. A diferenc;a principal entre essasduas nega,oes (0 deseja do senhar eo trabalha da escrava) repausasabre a fata de que 0 objeta do desejo do senhar aparece cama urnoutro dependente e transit6rio e assim s6 pode fornecer uma satisfa-c;ao passageira; 0 objeto do trabalho do escravo, contudo, resiste asuanegac;ao, e aparece, assim, como permanente e independente: "0 tra-balha (... ) edeseja refreado, desvanecer contida" ( 195). 0 desejo dasenhor, como a morte, e par demais profunda, em sua negac;ao, paraas prop6sitas de Hegel: e a destrui,ao total do autro e 0 fim da rela-,aa. 0 trabalha, contuda, como a quase-marte que Hegel poe no medo,e uma negac;ao "dialetica" au parcial que permite a"natureza essen-cial" do outro sobreviver e, assim, perpetuar a relac;ao. Podemos en-
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ge vitoriosamente da dialetica e a essencia universal do ser: pura cons-ciencia-de-si. A interioridade e a essencia do ser hegeliano: aqui po-demos ohservar Hegel e Nietzsche no mesmo terreno, marchando em
dire~oes precisamente opostas. Ambos buscam localizar a essencia nomovimento do ser, mas Hegel descobre uma for~a refletida para den-tro de si mesma (consciencia-de-si ou interioridade) e Nietzsche pro-poe uma for~a que emerge inexoravelmente para fora de si mesma (avontade de potencia ou a exterioridade). A discussao volta-se maisuma vez para a natureza do poder. Se, nos dois casas, a essencia doser e potencia, elas sao duas concep,oes diferentes de potencia. Anossa expressao e desajeitada mas a distin
"essencia" estabelecida pode permitir a cria~ao genuina. 0 Nietzschede Deleuze parece 0 profeta daquilo que Lenin chama de "a arte dainsurrei~ao"ll.
NOTA: A VONTADE DE POTENCIA DOS TRABALHADORES E ASfNTESE SOCIAL
Sera 0 Nietzsche and Philosophy urn hino prematuro aos traba-Ihadores de 68? Pela leitura de Deleuze, descobrimos uma confluen-cia surpreendentemente forte entre Nietzsche e Marx (e mesmo Lenin)em termos do poder, da radicalidade e da criatividade da critica pra-tica. Contudo, nao estamos preparados aqui para enfrentar a questaoNietzsche-Marx em toda a sua complexidade. Nesta "Nota", desejoapenas mencionar a questao, urn tanto indiretamente, considerandoos argumentos nietzschianos de Deleuze em termos do Vogliamo tutto(Queremos tudo) de Nanni Balestrini, urn bela e simples romance ita-liano que reconta a hist6ria de urn trabalhador da FIAT no final dosanos 60 e 0 seu envolvimento na formac;ao do movimento politicoPotere operaio (poder dos Trabalhadores)12 0 que me interessa ini-cialmente nessa compara~ao e0 ataque radical a no~ao estabelecidade essencia como uma pre-condi~ao para a mudanc;a e a cria~ao. Emtermos nietzschianos, Deleuze freqiientemente expressa isso como sen-do 0 ataque sobre 0 "homem", ou como urn momento no esfor~o para
11 Com respeito ao tema do ataque aessencia e a alegria da destrui
cer" nietzschiano, a destruic;ao ativa e liberadora que deve ser distin-guida da passividade do "ultimo homem", 0 PCIsista que aceita com-pletamente 0 trabalho (Nietzsche and Philosophy, 174).
o protagonista do Vogliamo tutto, entretanto, somente ganhapotencia real para levar adiante 0 seu projeto destrutivo quando elecomec;a a reconhecer a sua comunalidade com os outros trabalhado-res. A voz da narrativa assume uma dimensao cada vez mais ampla,mudando da primeira pessoa do singular para a primeira pessoa doplural amedida que a massa de trabalhadores come
tibilidade e a eminencia da multiplicidade em termo logicos e claros;mas, coofocme vimos, nesse contexto Deleuze apenas consegue colo-car 0 momento complementar da organiza,ao do Multiplo em termosmuito debeis. Na verdade, parece que a irredutibilidade da multipli-cidade proibe qualquer ideia de organiza,ao. Nos argumentamos quea incapacidade de prover uma no,ao adequada de organiza,ao e 0 quetarna 0 Bergson de Deleuze extremamente vulned.vel a urn contra-ataque hegeliano. Enesse ponto que Nietzsche proporciona a Deleuzeurn enorme avanc;o.
"0 jogo tern dois momentos que sao os de urn lance de dados- os dados que sao lan,ados e os dados que caem" (25). Os dois mo-mentos do lance de clados constituem os elementos basicos cia alter-nativa de Nietzsche para a dialetica do Uno e do Multiplo. 0 primei-ro momento do jogo e 0 mais facil de compreender. 0 lance de da-dos corresponde aafirma,ao do acaso e da multiplicidade precisamen-te porgue ea recusa do controle: exatamente como vimos nos estu-dos sobre Bergson, esta nao e a multiplicidade da ordem; nao ha nadaformado por antecipa,ao na possibilidade desse momento - e 0 in-determinado, 0 irnprevisivel. Essa ea evoluc;ao (ou emanac;ao) criati-va do ser de Bergson, e em termos nietzschianos esse e0 clevir do ser:pura multiplicidade. 0 momento da queda dos dados, entretanto, emais obscure e complexo: "as clados lanc;ados 56 uma vez sao a afir-mac;ao do acaso, a combinac;ao que eles formam na queda e a afir-mac;ao cia necessidade. A necessidade e afirmada atraves do acaso, nomesmo sentido em que 0 ser e afirmado no devir e a unidade e afir-mada na multiplicidade" (26). A queda dos dados nao e meramenteuma confirma,ao da necessidade da realidade multipia e dada; issoseria simplesmente urn determinismo, que arriscaria negar ao inves deafirmar 0 primeiro momento do jogo. Ao contnirio, a queda dosdados e urn momento de organiza
mos tao substancialmente momentos antes. Com efeito, a vontade depotencia e 0 principio do eterno retorno, dado que faz 0 pape! de umacausa primaria, definindo a necessidade e a subsrancialidade do ser. 0terreno de Nietzsche, contudo, logo transforma essa questao logicalontol6gica numa etica. 0 eterno retorno da vontade euma etica porser uma "ontologia seletiva" (72)13. Eseletiva porque nem toda von-tade retorna: a negaC;ao vern somente uma vez; Somente a afirmac;aoretorna. 0 eterno retorno e a selec;ao da vontade afirmativa enquantoser. 0 ser nao e dado em Nietzsche; 0 ser precisa ser querido. Nessesentido, a etica vern antes da ontologia em Nietzsche. A vontade eticae a vontade que retorna; a vontade etica e a vontade que quer 0 ser. Enesse sentido que 0 eterno retorno euma sfntese temporal de forc;as:ele requer que a vontade de potencia queira a unidade no tempo. Deleuzeformula a selec;ao etica do eterno retorno COmo uma regra pnitica paraa vontade: "0 que quer que tu quiseres, queira-o de tal forma que tam-bern queiras 0 seu eterno retorno" (68). Devemos observar aqui, en-tretanto, que quando lemos a regra de Deleuze para 0 eterno retorno,devemos ter 0 cuidado de nao dar enfase apalavra "tambem". Esse "tam-bern" pode ser muito enganoso, visto que 0 eterno retorno nao esta se-parado_da vo~tade,mas the e interior. "Como 0 eterno retorno operaa selec;ao aqUl? E 0 pensamento do eterno retorno que seleciona. Eletorna 0 querer algo completo" (69). A vontade etica e inteira, internaao seu retorno: "Faz sempre 0 que tu quiseres" (Nietzsche and Philo-sophy, 69, citado de Thus Spoke Zarathustra, 191). 0 principio do eter-no retorno enquanto ser e a vontade eficiente enquanto vontade etica.
Podemos agora trac;ar uma bela trajet6ria com essa ideia funda-mental de eficiencia e internalidade: da centralidade logica da diferen
Ao longo de nossa leitura do Nietzsche de Deleuze exploramosdais pontos que poderiam constituir respostas adequadas aproposi-,ao de Butler. A elabora,ao que faz Deleuze da critica total nos for-neee uma resposta direta ao mostrar que existem dais generos de opo-
si~ao. A oposi'.;a.o dialetica eurn ataque restrito e parcial que procu-fa "preservar e manter" 0 seu inimigo; eurn tipo de guerra de baixaintensidade, que pode ser prolongada indefinidamente numa "nega-
Foi com Espinosa que eu trabalhei mais seriamente se-gundo as normas da historia da filosofia - mas foi Espi-nosa, mais do que qualquer outro, que me deu a sensacs:aode uma rajada de vento que nos empurra pelas costas a cadavez que 0 lemos, a vassoura de uma bruxa em que ele nosfaz montar. Ainda nao comecs:amos a compreender Espinosae eu nao mais que os outros. (Dialogues, 15)
Espinosa permanece urn enigma.Nossa tarefa e discernir como a leitura de Espinosa contribui para
o desenvolvimento e a evolU';ao do projeto de Deleuze. Voltemos aosnossos prindpios metodol6gicos do inicio. N6s apresentamos, comouma hip6tese preliminar, e a confirmamos nos dois primeiros capitu-los, que ha uma evolucs:ao no pensamento inicial de Deleuze. Suas mo-nografias historicas aproximam-se da obra de filosofos individuais deacordo com as demandas de seu proprio projeto intolectual. Com Berg-son, Deleuze desenvolve uma ontologia. Com Nietzsche ele poe essaontologia em movimento para constituir uma etica. Com Espinosa da-remos urn passo mais largo nessa evolucs:ao, em direcs:ao a politica,construindo uma nova ramificacs:ao na estrutura de urn ontologia berg-soniana e de uma etica nietzschiana. Urn aspecto particular e impor-tante da evolucs:ao de Deleuze e que esta nao envolve a troca de umaperspectiva teorica por outra, mas, sim, e urn processo de acumulacs:aoe constituics:ao. Em outras palavras, cada passo, cada novo terreno deinvestigac;ao e uma construcs:ao que nunca abandona ou nega, mas, aoinves disso, repropoe os termos de seu predecessor. Deleuze leva a suabagagem com ele. A etica nietzschiana e a ontologia bergsoniana trans-portada para 0 campo do valor; a politica espinosista e a ontologiabergsoniana e a etica nietzschiana transportadas para 0 campo da pra.-tica. A ontologia e inerente aetica, que por sua vez einerente apoli-tica. A politica de Espinosa e uma politica ontoI6gica uma vez que,atraves de uma analise substancial do poder e uma elaborac;ao con-ceitual da pra.tica, os prindpios que animam 0 ser sao aqueles mes-mos que animam uma etica e uma constituir;ao pdtica da organiza-c;ao politica.
No estudo de Espinosa, contudo, Deleuze nao ultrapassa imedia-tamente os seus resultados anteriores; ao inves disso, ele volta algunspassos para preparat 0 saito afrente. Com efeito, no Espinosa de Deleu-ze podemos encontrar urn sumario de toda a evolur;ao. Na primeira
metade de seu estudo, correspondendo grosseiramente asua leitura dosdois primeiros volumes da Etica, encontramos a reelaboracs:ao do ter-reno que ele considera em seu estudo sobre Bergson (a plenitude doser, a positividade da diferenc;a, 0 problema da emanac;ao etc.); na se-gunda metade da leitura de Deleuze, tratando-se dos livtos restantesda Etica, encontramos uma reelaboracs:ao e uma extensao do terrenonietzschiano (a afirmac;ao do ser, a etica do poder e da atividade etc.).Bergson e Nietzsche ganham vida em Espinosa, pontificando comopredecessores fundamentais. Na historia da filosofia invertida de De-leuze, Espinosa parece poder olhar para tris ever que ole tambern naoesta sozinho no topo da montanha2.
o nosso foco nessa evolucs:ao deleuziana nos permite reconheceruma outra tese que eimportante no contexto dos estudos de Espinosa.Por todo 0 Expressionism in Philosophy: Spinoza, podemos observarque Deleuze trata 0 sistema espinosista como dais momentos distin-tos, como duas perspectivas de pensamento, uma especulativa e a outrapratica. Essa distincs:ao entre a especulacs:ao e a pra.tica, que permaneceimplfcita na obra de Deleuze, e tanto uma afirmacs:ao teorica quantouma estrategia interpretativa. Em outras palavras, embora Deleuze noloreake essa distinr;ao, podemos ver que ela constitui, claramente, urndesafio aos comentarios tradicionais sobre 0 pensamento de Espinosa.Por exemplo, Ferdinand Alquie, urn dos leitares mais agudos, man-tern que, diferentemente de Descartes, Espinosa nao e urn "fil6sofo dometodo" que parte do ponto de vista humano para construir umaperspectiva divina, mas, sim, urn "fiI6sofo do sistema" partindo dire-tarnente do ponto de vista de Deus: a Etica e, principalmente, urn tex-to sistematico em vez de metodol6gico (Nature et verite, 34). Deleuze,todavia, apresenta a Etica como urn texto duplo que se desenvolve apartir das ~uas perspectivas identificadas por Alquie: 0 primeiro mo-mento da Etica, especulativo e analitico, prossegue numa direr;ao cen-trffuga, de Deus acoisa, a fim de descobrir e expressar os prindpios
2 Nietzsche reconheceu que tinha uma companhia espiritual em Espinosa.Ele escreveu ao seu amigo Franz Overbeck: "Fico absolutamente estupefato, ab-solutamente encantado. Tenho urn precursor, e que precursor! Eu mal conheciaEspinosa: foi por 'instinto' que justamente agora me voltei para ele. (... ) A minhasolidao, que tal como as montanhas muito altas, sempre me fizera respirar comdificuldade e 0 sangue ferver, agora ao menos euma doislidao" [twosomeness](Cartao-postal a Overbeck, 30 de julho, 1881, em The Portable Nietzsche, 92).
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que animam 0 sistema do ser; 0 segundo momento da Etica, pnitico esintetico, move-se numa direc;ao centripeta da coisa para Deus, for-jando urn metodo etico e uma linha de conduta politica. Os dois mo-mentos estao fundamentalmente articulados: 0 momento da pesqui-sa, a Forschung, prepara 0 terreno para 0 momenta da apresentac;aoe da pnitica, a Darstellung. Os dois momentos cobrem 0 mesmo ter-reno do ser, mas de diferentes perspectivas. Vma das importantes con-seqiiencias do reconhecimento desses dois momentos do pensamentode Espinosa, cooforme veremos, e que ha nuances substanciais nosconceitos principais de Espinosa (universal, absoluto, adequado, ne-cessario, racional etc.) quer sejam considerados de uma perspectiva oude outra. Ao ler as obras anteriores de Deleuze, nos insistimos aexaus-tao sobre a importancia de seu procedimento critico: pars destruens,pars construens. Aqui nos defrontamos com urn procedimento simi-lar; porem, 0 momento da oposic;ao, do antagonismo, da destruic;ao,mudou. Nos ainda encontramos uma oposic;ao deleuziana no Expres-sionism in Philosophy: Spinoza (a Descartes, a Leibniz, aos escolasticosetc.), mas essa oposi,ao nao rnais desempenha urn papel fundamental.Ao inves de urn momenta destrutivo seguido de urn momento cons-trutivo, 0 Espinosa de Deleuze apresenta uma investigac;ao especula-tiva e logica seguida de uma constituic;ao etica e pratica: Forschungseguida de Darstellung. as dois momentos, entao, a especulac;ao e apratica, estao fundamentalmente articulados, ernbora permanec;am au-tonomos e distintos cada urn com 0 seu proprio metodo e espiritovivificador. "A sensac;ao de alegria aparece como a sensac;ao propria-mente etica; ela e, para a pratica, aquilo que a afirmac;ao e, ela pro-pria, para a especula,ao. (...) Uma filosofia de pura afirma,ao, a Eti-ca e tambern uma filosofia da alegria correspondendo a tal afirma,ao"(Expressionism in Philosophy: Spinoza, 272, modificado). A afirma-,ao da especula,ao e a alegria da pratica sao os dois fios que se entre-la,am para formar 0 desenho geral da Etica.
Podemos sentir continuamente, na leitura deleuziana da Etica, atendencia de urn movimento que passa do primeiro momento para 0segundo, da especula,ao it pratica, da afirma,ao it alegria. 0 catalisadorque perrnite a Deleuze fazer essa passagem e a analise espinosista dopoder. No dominio ontologico, a investigac;ao da estrutura de poderocupa uma posic;ao privilegiada, porque a essencia do ser e sua dina-mica causal produtiva. Causa sui e a coluna essencial que sustenta 0ser, na medida em que 0 ser e definido em sua potencia de existir e
produzir. Todas as discussoes sobre 0 poder, a produtividade e a cau-salidade em Deleuze, tal como em Espinosa, nos levam de volta a essafundac;ao ontologica. Aanalise do poder, entretanto, e nao apenas urnelemento que nos traz de volta aos primeiros prindpios, etambern apassagem que favorece a discussao que nos permite avanc;ar no novoterreno. No estudo sabre Nietzsche, descobrimos que, aa identificara distinc;ao dentra da pader entre a ativa e 0 reativo, eramos capazesde transformar a discussao ontologica numa etica. Nesse estudo so-bre Espinosa, a mesma passagem pelo poder ganha uma fun,ao rnaisrica e mais extensiva. Aqui encontramos todo urn sistema de distin-,6es dentro do poder: entre a espontaneidade e a afetividade, entreac;oes e paixoes, entre alegria e tristeza. Essa analise estabelece os ter-mos para uma conversao real em meio acontinuidade da estruturatearica. A investigac;ao do poder canstitui 0 fim da especulac;ao e 0comec;o da pratica: ela chega na hora da meia-noite, como uma trans-mutac;ao nietzschiana. 0 poder ea conexao crucial, 0 ponto de pas-sagem da especula,ao it pratica. A elabora
sempre, as id6ias de Deleuze sobre a historia da filosofia sao muito sugesrivas, mas,do ponto de vista filologico ou historiografico, nao plenameme desenvolvidas. Parauma explica~ao da teoria da distin~ao formal em Duns Scot, ver Etienne Gilson,La philosophie au Moyen Age, pp. 599 ss.
levou mais longe que qualquer outro a empreitada de uma teologiapositiva. Ele denuncia de pronto a eminencia negativa dos neoplato-nicos e a pseudo-afirma,iio dos tomistas" (63). A teologia positiva deDuns Scot e caracterizada pela teoria da distinc;ao formal. Esse con-ceito fornece urn mecanismo 16gico pelo qual ele pode manter tantoas diferen,as entre os atributos quanto a comunalidade dentro de cadaatributo: os atributos sao formalmente distintos e ontologicamenteidenticos: "Ha aqui como que duas ordens, a da razao formal e a doser, com a pluralidade de uma perfeitamente de acordo com a simpli-cidade da outra" (64). A expressiio positiva dos atributos formalmentedistintos constitui, tanto para Espinosa quanto para Duns Scot, umaconcep,iio da univocidade do ser. Univocidade significa precisamen-te que a ser se expressa sempre e em todo lugar na mesma voz; em ou-tras palavras, cada urn dos atributos expressa 0 ser de uma forma di-ferente mas num mesmo sentido. Assim, a univocidade implica umadiferenc;a formal entre os atributos, mas uma comunalidade ontol6gicareal e absoluta entre os atributos.
Deleuze tern 0 cuidado de assinalar, contudo, que a teoria do serunivoco de Espinosa ultrapassa em muito a de Duns Scot, grac;as aconcep,iio espinosista da expressividade dos atributos. Em Duns Scottodos os assim chamados atributos - justi,a, bondade, sabedoria eassim por diante - siio na verdade meras propriedades. No final dascontas, Duns Scot tern muito de teologo e assim nao pode abandonaruma certa eminencia do divino: "Porque sua perspectiva teologica, istoe, 'criacionista', forc;ou-o a conceber 0 Ser univoco como urn concei-to neutralizado e indiferente" (67). Para Duns Scot, Deus, 0 criador,nao ea causa de todas as coisas no mesmo sentido em que ecausa desi. Vma vez que 0 ser univoco de Duns Scot nao e absolutamente sin-gular, ele permanece urn tanto indiferente, urn tanto inexpressivo. Adistinc;ao real de Espinosa, todavia, leva a univocidade ao nivel da afir-ma,iio. No atributo de Espinosa, a expressiio do ser ea afirma,iio doser: "Atributos sao afirmac;6es; mas a afirmac;ao em sua essencia esempre formal, real e univoca: nisso repousa sua expressividade. Afilosofia de Espinosa euma filosofia da pura afirma,iio. A afirma,iio
NOTA: A ESPECULA
como perda progressiva" (539). Deleuze oferece uma resposta a essacritica hegeliana na forma de uma longa analise da rela~ao entre ema-
na~ao e imanencia na hist6ria da ftIosofia. Como se poderia esperar,essa historia deleuziana da filosofia desconsidera completamente a tra-di,ao hegeliana e dialetica, considerando apenas os processos ontolo-gicos positivos. Esse movimento positivo e precisamente 0 que as fi-losofias da emana~ao e da imanencia tern em comum: ambas sao ani-madas por causalidade interna. "Sua caracteristica comum e que elasnao saem de si mesmas: elas {icarn ern si rnesrnas para produzir (Ex-pressionism in Philosophy: Spinoza, 171). Uma vez que 0 ser e singu-lar, a sua produ~ao nao pode envolver nenhum outro. Nao obstante,ha uma importante diferen~a no modo pelo qual a causa emanativa ea causa imanente produzem. "Vma causa e imanente (... ) quando seuefeito e 'imanado' [irnmane] na causa, ao inves de emanar da causa.o que define uma causa imanente e que 0 seu efeito nela esta nela, semduvida, como em algo, mas nela esta e permanece" (172). A diferen-~a entre a essencia da causa imanente e a essencia do seu efeito~ por-tanto, nao pode nunca ser interpretada como uma degrada~ao: no nfveldas essencias ha uma igualdade ontol6gica absoluta entre causa e efeito.Num processo emanativo, por outro lado, a externalidade do efeitocom respeito acausa permite uma sucessiva degrada~ao na cadeiacausal e uma desigualdade de essencias.
Podemos ver elaramente nesse ponto que a ontologia de Espinosaeuma filosofia da imanencia, nao da emana~ao. A qualidade essencialcia imanencia exige urn ser univoco: "0 ser nao e apenas igual em simesmo, mas esti igualmente presente em todos os seres" (173). A ima-nencia nega toda forma de eminencia ou hierarquia no ser: 0 principioda univocidade dos atributos requer que 0 ser seja expressado igual-mente em todas as suas formas. Por conseguinte, a expressao univocae incompativel com a emana,ao. 0 que a explana,ao de Deleuze mos-tra claramente e que a ontologia de Espinosa, uma combina,ao de ima-nencia e expressao, nao e suscetivel acritica hegeliana da dispersao, a"perda progressiva" do ser. Deleuze explica essa materia com os ter-mos da filosofia medieval, citando Nicolau de Cusa: "Deus e a compli-
ca~ao universal, no sentido de que nele tudo esta; e a explica~ao universal,no sentido de que ele esti em tudo" (175). A imanencia como expressaodo espinosismo apresenta, segundo Deleuze, uma versao moderna dessepar medieval, complicare-explicare. Ao mesmo tempo em que a expres-sao e urn movimento explicativo ou centrifugo, e tambem urn movimento
"complicativo" ou centripeto, recolhendo 0 ser de volta para dentra desi. A analise de Deleuze, porranto, nao apenas apresenta Espinosa comouma 16gica alternativa da especula~ao onrol6gica, mas tambem nOs daos termos para responder acrftica hegeliana de Espinosa.
Tratamos, ate agora, da leitura feita por Deleuze da introdu~aoda Etica (grosso modo ate IP14), que apresenta de forma compactadaos princfpios cia especula~ao ontol6gica. Devemos ser muito elarosquanto il simplicidade do que vimos desenvolvendo ate 0 momento:"uma constitui~ao 16gica da subsrancia, 'composi~ao' que nada ternde fisico" (79). Essa constitui,ao logica desenvolvida na introdu
Isso e tudo 0 que sabemos sobre 0 ser (sobre Deus) a essa alturacia analise: e singular e eunivoco. Hci uma polemica implicita nessa
afirma~ao sabre a natureza e as limites cia especula~ao. As verdadesque podemos aprender atraves cia especula~ao sao muito poucas emuito simples. A especula'rao nao constitui 0 muncio nem constr6i 0ser; a especula
Espinosa, mas, para ele, tal naturalismo representa apenas metade doquadro. Com efeito, Deleuze complementa a referencia ao naturalis-mo da Renascen~a com uma segunda referencia, uma referencia a urnnaturalismo moderno (Hobbes, em particular). A cancep,ao espi-nosista de poder nao e somente urn principio de a~ao, argumentaDeleuze, mas tambern, na mesma extensao, urn principio de afec~ao.Em outras palavras, a essencia da natureza enquanto potencia impli-ca sempre uma produ~ao e uma sensibilidade: "Toda potencia trazconsigo urn correspondente e insepanivel poder de ser afetado" (93).o poder em Espinosa tern dois lados que sao sempre iguais e in-divisiveis: 0 poder de fazer e 0 poder de ser afetado, produ,ao e sen-sibilidade. Conseqiientemente, Espinosa pode acrescentar urn segun-do aspecto Ii afirma,ao de uma prova a posteriori de Deus: Deus naotern somente uma potencia absolutamente infinita de existir, Deustambern tern 0 poder de ser afetado em urn numero absolutamenteinfinito de maneiras.
Este e precisamanente 0 ponto em que, no Nietzsche and Phi-losophy, Deleuze idemificou uma liga,ao entre Espinosa e Nietzsche(62). A vontade de potencia esempre acompanhada de urn sentimen-to de potencia. Alem disso, esse pathos nietzschiano nao envolve urncorpo "sofrendo" paix6es; ao inves disso, 0 pathos assume urn papelativo, produtivo. A dupla espinosista potencia-afetividade ecoa algunsdesses elementos nietzschianos. Nosso uso do termo "sensibilidade"para temar descrever 0 poder de ser afetado pode muito bern ser en-ganoso. Vma afec~ao, na terminologia espinosista, pode ser uma a~aoou uma paixao, dependendo de a afec~ao resultar de uma causa ex-terna ou interna. Assim, a potencia de existir de urn modo semprecorresponde a urn poder de ser afetado, e esse poder de ser afetado "esempre preenchido, seja por afec~6es produzidas por coisas externas(chamadas de afec,oes passivas), ou por afec,oes explicadas pela pro-pria essencia do modo (chamadas afec,oes ativas)" (Expressionism inPhilosophy: Spinoza, 93, modificado). A plenitude do ser, em Espinosae em Nietzsche, significa nao somente que 0 ser esempre e em todaparte plenamente expressado sem qualquer reserva transcendental einefavel, mas tambem que 0 poder de ser afetado, que corresponde apotencia de existir, e completamente preenchido por afec~6es ativas epassivas. Essas duas distin~6es constituem nossa tentativa inicial dediscernir a estrutura interna do poder.
poder/ ".
potencia de existir = poder de ser afetado/ ".afec~6es ativas afec~6es passivas
Podemos come~ar a perceber nesse ponto como a proposi~aoespinosista da equivalencia entre a potencia de existir e 0 poder de serafetado pode nos conduzir a uma teoria pratica. Para entender a na-tureza do poder, temos que descobrir as estruturas internas do poder;mas quando investigamos 0 primeiro lado da equa,ao, a potencia deexistir, 0 poder aparece como espontaneidade pura. Sua estrutura eopaca para nos, e nossa analise e bloqueada. Contudo, uma vez queEspinosa propos a equivalencia entre a potencia de existir e 0 poderde ser afetado, podemos passar a investigar 0 outro lado da equa,ao.Aqui encontramos uma estrutura verdadeiramente diferenciada e urnrico terreno para a nossa analise. Quando colocamos a questao da cau-sa nesse contexto, encontramos uma distin~ao real: nosso poder de serafetado econstituido por afec~6es ativas (causadas internamente) e
afec~6es passivas (causadas exrernamente). De pronto essa distin~aosugere as linhas gerais de urn projeto etico, e fundamentalmente pra-tico: como podemos favorecer as afec~6es ativas de modo que nossopoder de ser afetado seja preenchido em maiar propor,ao com afec,oesativas do que passivas? Nesse ponto, contudo, somos incapazes deassumir essa tarefa, porque sabemos muito pouco ainda sobre a es-trutura do podeL
Nao obstante, devemos observar que 0 principio de potencia es-pinosista apresenta-se sempre como urn principio de conversao - umaconversao da especula~ao apratica, da analise do ser aconsritui~aodo ser. 0 poder de Espinosa entra em cena no horario da meia-noite,no momenta da transmuta~ao de Nietzsche. Essa conversao e possivelporque a analise de Espinosa da estrutura imerna do poder, destacandoa questao da dinamica causal em cada ponto, ilumina os verdadeirospassos que podemos dar no sentido de nos constituirmos e ao nossomundo atraves da pratica. Devemos ser pacientes, entretanto, e naodar urn passo muito Ii frente. Com a proposi,ao de Espinosa do prin-cipio da potencia, apenas abrimos a porta (ou, como diria Althusser,"nous avons ouvert des voies") para 0 desenvolvimento de uma pra-tica ontologica. No momento, ha mais trabalho a ser realizado para
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preparar esse terreno; devemos voltar aos tres principios ontol6gicosque identificamos - a singularidade, a univocidade e a potencia - edesenvolve-los em uma 16gica do ser plenamente especulativa.
EXPREssAo ONTOL6GICA-
4. A INTERPRETA
portanto, ontologicamente posterior aos atributos. "De fato, se os atri-butos tivessem que resultar da ideia que 0 inteleeto tinha da substan-cia, 0 intelecto seria anterior a eIes e, consequentemente, anterior aoatributo do qual e urn modo, 0 que e absurdo" (50). 0 proprio Hegelreconhece essa eontradic;ao, mas pareee credita-la a urn erro no siste-ma espinosista, ao inves de a uma falha de sua interpretac;ao (Scienceof Logic, 537). Contudo, a questao principal aqui em pauta, reafir-mo, nao e a contradic;ao 16gica da leitura subjetivista, mas sim a prio-ridade que ela concede ao intelecto. A questao, repito, e a importan-cia reIativa da ratio essendi e da ratio cognoscendi no sistema comourn todo. 0 que esta em jogo, em outras palavras, sao os pr6priostermos de uma ontologia materialista, uma ontologia que nao fundao ser no pensamento.
DeIeuze nos oferece uma leitura alternativa dos atributos espino-sistas - uma interpretac;ao objetivista, ontol6gica. De acordo comDeleuze, quando Espinosa apresenta 0 atributo meramente COmo umamaneira de conhecer ou de conceber, como na Carta 9, ele esta. forne-cendo apenas uma explica,ao parcial ou simplificada do verdadeiropapel do atributo (61). 0 atributo nao depende do intolecto; ao con-tra.rio, a inteIecto tern apenas urn papeI secundario no funcionamen-to dos atributos, COmo urn agente objetivo e invisiveI da representac;ao."Todos os atributos formalmente distintos sao reIacionados, peIo in-telecto, a uma substancia ontologicamente unica. Mas 0 inteIecto ape-nas reproduz objetivamente a natureza das formas que apreende." (65)Em outras palavras, a relaC;ao dos atributos asubstancia e anterior ae independente da apreensao que faz 0 intelecto dessa relac;ao; 0 inte-lecto meramente reproduz em termos objetivos ou cognitivos a rela-c;ao ontol6gica primaria. A ratio essendi e anterior aratio cognoscendi.Essa interpretac;ao objetivista consegue preservar a integridade onto-l6gica do sistema, e resolve a contradiC;ao posta ao conceder urn pa-pel fundamental ao intolecto na teoria dos atributos. Nao obstante,devemos reconhecer que nao podemos sustentar essa tese sem algumesforc;o. Retornemos, por exemplo, adefiniC;ao dos atributos: "Entendopar atributo aquila que 0 intelecta percebe da substancia, como cons-tituindo a essencia dola" (Etica 104, grifos meus). Como pode a in-terpreta,ao objetivista dar conta desse "quod intellectus de substantiapercipit" sem atribuir urn papel fundamental ao intolecto? (E devemosobservar que a referencia ao original em latim nao nos oferece qual-quer saida para esse dilema). Alem disso, mesmo que aceitemos 0 in-
telecto como secundario na fundac;ao do atributo, como devemos en-tender aquilo que Deleuze descreve como a sua "reprodw;ao objetiva"da natureza das formas que apreende? Essa "reproduc;ao" e certamenteuma concep,ao muito debil da expressao.
Deleuze nao parece se incomodar com esses problemas (ou tal-vez esteja determinado a nao se deixar desencaminhar por des) e naotrata dessa questao em profundidade. 0 que fica claro, entretanto, ea insistencia do seu esfor~o no sentido de preservar a integridade on-tologica do sistema e combater qualquer prioridade do pensamentosobre todos os outros atributos, meSillO quando esse esfon;o parecese contrapor a afirmac;6es muito claras no texto. 0 desafio aqui vaimuito alem do dominio dos estudos de Espinosa e se refere, ao invesdisso, a natureza radical do retorno aontologia, que ecentral na filo-sofia de Deleuze, e adiferenc;a que ela marca com respeito as outrasposi,6es filosoficas contemporaneas. A filosofia de Ooleuze tern queser reconhecida em sua diferen,a tanto da tradi,ao ontologica idea-lista quanto de qualquer abordagem deontologica da filosofia; em vezdisso, atraves da interpretac;ao dos atributos, Deleuze elabora as di-mens6es de uma ontologia materialista ..
NOTA: PRODU
do intelecto, da ratio cognoscendi; consideremos, por exemplo, a im-portancia do discurso amplamente difundido sobre a "visao", sobreo visto e 0 nao visto, ou antes, 0 foco sobre a "interpretac;ao" comourn campo privilegiado de invesriga~ao. A proposi~ao de Deleuze, deuma especula~ao ontol6gica objetivista em Espinosa vai de encontroa toda essa corrente de pensamento. A tendencia geral, na verdade,parece ser a de uma ataque encarnic;ado aposic;ao de Deleuze.
Para nao cair em generalizaC;ao abstrata, investiguemos brevementea leitura de Marx por Althusser como urn exemplo - talvez nao urnexemplo representativo, mas que sem dlivida foi muito influente. Urnelemento que Althusser quer focalizar, e questionar, e 0 ate de leituraem si mesmo: a leitura do Capital, de Marx, a leitura dos economistaschissicos, a leitura da sociedade capitalista. Althusser quer que identi-fiquemos, em Marx, uma revoluc;ao na teoria do conhecimento: "De-vemos refazer completamente a ideia que temos do conhecimento, de-vemos abandonar os mitos especulares da visao e da leitura imediata econceber 0 conhecimento como uma produ~ao" (Reading Capital, 24).Podemos distinguir dois elemenros nesse esfor~o de Althusser de con-ceber 0 conhecimento como produc;ao. Primeiro, temos que compreenderque h" uma distin~ao entre 0 objeto do conhecimento e 0 objero realou, para acompanhar Althusser num exemplo espinosista, que ha umadistin~ao entre a ideia de urn dtculo de fato existente (40 ss.). Comourn segundo passo, entretanto, devemos reconhecer que a imporranciadessa distinc;ao repousa sobre 0 fato de que os dois dominios existemsob diferentes condi~6es: enquanro 0 objeto real e dado, 0 objeto pen-sado e produzido numa rela~aoespedfica com a realidade. "Sem duvi-da, ha uma relac;ao entre 0 pensamento-sobre-o-real e esse real, mas euma rela~ao de conhecimento" (87). A insistencia de Althusser na im-portancia central da ratio cognoscendi e uma caracterfstica central aespeculac;ao fenomeno16gica. Antes de podermos considerar as coisasreais nelas mesmas, segundo os fenomenologistas, devemos considerarcomo essas coisas sao apresentadas anossa consciencia, ao nosso inte-lecto. Eaqui que 0 atributo espinosista reaparece no nlicleo da discus-sao: "quod intellectus de substantia percipit". A estrategia de leiturade Althusser, junto com a especulac;ao fenomenol6gica em geral, coin-cide perfeitamente com uma interpretac;ao subjetivista do atributo. Aleitura subjetivista poe urn fim ao mito da especulac;ao pura, da espe-culac;ao "especular": nao ha qualquer leitura inocente ou objetiva domundo, da sociedade, da economia polftica.
A primeira vista, a critica de Althusser, que nesse respeito e re-presentativa de urn movimento intelectual geral, parece desabar, di-reta e vigorosamente, sobre a Ieitura objetivista dos atributos que fazDeleuze. Deleuze atribui ao intelecto precisamente 0 papel "especu-lar" que Althusser denuncia: "0 intelecto somente reproduz objeti-vamente a natureza das formas que apreende" (Expressionism inPhilosophy: Spinoza, 65). Como e possivel que Deleuze mantenha ateoria de,um intelecto especular e objetivo? Como, quando roda a co-munidade filosofica francesa focaliza a natureza produtiva do conhe-cimento, pode Deleuze relegar a apreensao do intelecro a urn papelreprodutivo? Certamente nos defrontamos, aqui, com posic;oes con-flitantes. A filosofia de Deleuze nao euma fenomenologia. Contudo,quando e~aminamos 0 assunto mais de perro, observamos que emcertos aspectos a critica althusseriana nao se dirige, de fato, direta-mente ao argumento de Deleuze. Antes de tudo, Deleuze nao ignoraa centralidade da produ~ao; ao contrario. Ele atribui urn papel re-produtivo ao funcionamento do intelecto na teoria do atributo, por-que a prodw;:ao primaria esra em outro lugar. Vimos enfatizando, emnossa leitura das varias obras de Deleuze, que a sua ontologia se fun-damenta na concepc;ao de que 0 ser e uma dina-mica produtiva. Noestudo sobre Bergson, relacionamos essa concepc;ao ao discurso cau-sal dos escolasticos e, em Espinosa, podemos trac;a-Ia ate 0 naturalis-rno renascentista. Foi-nos possive! resumir a ontologia de Deleuze pre-cisamente nos seguintes termos: 0 ser e produtivo em termos diretos,imediatos e absolutamente positivos. Toda a discussao da causalida-de e da diferen~a se baseia nessa funda~ao. Tendo isso em mente, po-demos interpretar a posi~ao de Deleuze sobre 0 papel reprodutivo dointelecto como sendo, principalmente, uma afirmac;ao do papel pro-dutivo do ser. Assim, podemos arriscar uma resposta deleuziana pre-liminar anossa primeira critica althusseriana: trazer a produc;ao cog-noscitiva para a centro do palco significa, em filosofia, mascarar a di-na-mica produtiva fundamental do ser, que na verdade antecede 0 in-telecto, em termas 16gicas e ontol6gicos.
A primeira respasta, cantuda, pode servir apenas parcialmentepara desviar a critica, nao para responde-lao Podemos fornecer umaexplica~ao rnais adequada da posi~ao de Deleuze se chamarmos a
aten~ao para 0 dominio proprio it especula~ao. A especula~ao deDeleuze nao pretende ser uma representac;ao objetiva mas se aplicameramente a urn terreno muita especifico. A sociedade, 0 capital e a
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sua economia nao sao objetos apropriados aespeculac;ao; ao contra-rio, em Deleuze, a especulac;ao e levada a sustentar apenas questoesontologicas e, conforme ja enfatizamos, chega-se com ela a poucos esimples principios ontol6gicos. Contra a especula,ao fenomenol6gica,Deleuze propoe uma especula,ao puramente ontol6gica. 0 que po-deria significar conceber-se a especulac;ao ontologica como produc;ao?Teriamos forc;osamente que responder, em sintonia com uma onto-logia subjetivista, que a singularidade, a univocidade e a potencia naosao prindpios do ser (como objetos reais), mas sim produto denossaatividade intelectual (como objeto de nosso conhecimento). Em ou-tras palavras, terfamos que dizer que elas nao sao efetivamente prin-dpios do ser, mas sim "quod intellectus de substantia percipit". Essasubjetiviza,ao do ser solaparia 0 fundamento ontol6gico do sistemaespinosista em sua totalidade. A interpreta,ao objetivista dos atribu-tos declara simplesmente que ha certos prindpios do ser que sao an-teriores ao poder produtivo do pensamento e dele independem; essesprindpios constituem 0 campo da especulac;ao. Deleuze, entao, tentapreservar a especificidade da ontologia dentro de seu dominio espe-cifico. Aquilo que resta fora do campo da especula,ao ontol6gica etratado por Deleuze em termos empiricos -