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O agregador do marketing.6 Abril de 2011

www.briefing.ptEntrevista

“A palavra-chave é ir ao encontro da vida real. Os investigadores têm de ser capazes de partilhar quotidianos com as pessoas, dizer o que acontece de segunda a domingo, dentro e fora de casa, perceber quantas histórias contém um agregado familiar, saber quantos ecrãs em casa o fragmentam, qual a importância de estarem juntos, o que acontece na selecção das marcas e dos produtos, a migração da vida social do exterior para casa… coisas que não se perguntam”, afirma Carlos Liz, 56 anos

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Ir ao encontro da vida realCarlos Liz, partner da Ipsos Apeme

Fátima Sousajornalista

[email protected]

Briefing I é pioneiro nos estudos de mercado em Portugal, tendo começado ainda antes do 25 de Abril. Que balanço faz dessa ex-periência?Carlos Liz I É, de facto, um percur-

so longo em termos de tempo, mas particularmente bem escolhido, se é que se pode dizer assim, porque coincidiu com as vésperas do nas-cer e desenvolver da sociedade de consumo em Portugal. É, na verda-

de, um privilégio. Comecei a fazer inquéritos em 1972, numa altura em que andar de porta de porta, de terra em terra, me levava inclusiva-mente a ser perguntado pelas au-toridades sobre o que andava a fa-

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“Em Portugal, as marcas são um fenómeno

bastante recente, só apareceram nos anos 80. A disponibilidade

dos portugueses se surpreenderem

está historicamente ligada à juventude da sociedade de

consumo no nosso país”

“Temos de passar da lógica de perguntar às pessoas o que

são e o que pensam para uma lógica de

as ver em acção. Não há outro remédio

para as empresas, organizações e

Estado senão estarem constantemente a

tentar perceber o que está a acontecer”

zer. Uma das primeiras sondagens, para o Expresso, tinha como tema a sexualidade. Era um tema es-quisito para a época… E mostrou como este exercício não é propria-mente um acto neutro. Em meados dos anos 80, inaugura-se simboli-camente a sociedade de consumo. Pude acompanhar a surpresa ex-traordinária do primeiro hipermer-cado, aquele espaço enorme, com preços realmente diferentes, onde os consumidores tinham muito por onde escolher. Esses tempos per-mitiram-me perceber que o mundo das marcas e dos consumidores é tema de mercado mas também de sociedade. E que aquilo que os portugueses aprenderam em ter-mos de cidadania, de capacidade de crítica, não o aprenderam na escola, mas na vida empresarial. Foi uma experiência interessante testemunhar como a sociedade de consumo tem esta função civiliza-cional. Hoje, chegámos a um ponto em que, curiosamente, estamos a pôr em causa essa mesma socie-dade de consumo. Os portugueses foram ganhando lucidez na aná-lise em matéria de consumo e de marcas. E os estudos de mercado constituíram um observatório privi-legiado desta evolução.

Briefing I O que motivou as em-presas a encomendar esses pri-meiros estudos de mercado? CL I Eram muito poucas as em-presas que os faziam. As multina-cionais que existiam em Portugal eram motivadas pela necessidade de ter procedimentos compará-veis com outros países em que a sociedade de consumo estava mais desenvolvida. E as empresas portuguesas, o que pretendiam era conhecer aspectos bastante objectivos dos produtos que co-locavam no mercado. Até porque a publicidade, como tudo nesse tempo, era vigiada e controlada. Uma das técnicas mais utilizadas era andar de porta em porta a falar com as donas de casa. Tínhamos de perguntar que produtos usavam e pedir para os ver, caso contrário o inquérito não ficava suficiente-mente validado. Ficavam de fora os aspectos que verdadeiramente

caracterizam uma sociedade livre e criativa, em que a publicidade faz sentido, em que as marcas fazem sentido porque permitem esco-lher. As marcas verdadeiramente só apareceram nos anos 80. É um fenómeno bastante recente em Portugal, não é uma evidência. E isso justifica que certos compor-tamentos dos consumidores ainda sejam inesperadamente excitados: abre um centro comercial e vamos todos ver, surge uma novidade e vamos todos à procura… A dispo-nibilidade para os portugueses se surpreenderem está historicamen-te ligada à juventude da sociedade de consumo em Portugal.

Briefing I Hoje os estudos de mercado são cada vez mais ne-cessários ou um luxo?CL I Digo sempre que o melhor é conhecerem. E não só pela cri-se. Passámos de uma sociedade relativamente previsível para uma sociedade complexa, onde as pessoas estão mais ligadas entre si, seja no real, seja no virtual. Os consumidores estão permanente-mente sujeitos a impulsos, pelo que qualquer tentativa de traçar perfis muito definidos, de prever comportamentos, é, muito prova-velmente, uma tentativa falhada. Temos de passar da lógica de perguntar às pessoas o que são e o que pensam para uma lógica de as ver em acção. Não há outro remédio para as empresas, orga-nizações e Estado senão estar constantemente a tentar perceber o que está a acontecer. Há outra razão para as empresas se darem ao luxo de investirem nesse co-nhecimento: é que muito do que há de novo não nasce de centros de inovação fechados, nasce da interacção directa com a realida-de. Quanto mais uma empresa estiver em cima dos consumido-res mais depressa percebe o que pode ser uma tendência e, se a captar a tempo, pode desenhar uma proposta de valor compatí-vel. Mais do que nunca, as em-presas precisam de se alimentar da vida real para desenharem propostas comercialmente com-petentes.

“Os consumidores estão permanentemente sujeitos a impulsos,

pelo que qualquer tentativa de traçar perfis muito definidos, de

prever comportamentos, é, muito provavelmente, uma tentativa falhada”

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“Quanto mais uma empresa estiver

em cima dos consumidores mais depressa percebe o que pode ser uma tendência e, se a captar a tempo,

pode desenhar uma proposta de valor

compatível”

“Se o consumidor perceber que a marca não se acomodou, a marca é remunerada;

se o consumidor desconfiar que a

marca vive à conta do seu passado, a marca

tem um problema”

Briefing I Se, como diz, a socie-dade de consumo é ainda jovem, isso faz de nós consumidores imaturos?CL I Claramente, embora estejamos agora a fazer, um pouco à força, um grande exercício de lucidez. A pa-lavra é mesmo esta - lucidez, a ca-pacidade de tomar decisões com base em informação racional mas também com uma certa interioriza-ção. Dizer que o consumidor está racional é apenas uma parte da his-tória: o consumidor está emocional-mente mais competente para jogar com a informação objectiva e fazer um julgamento lúcido.

Briefing I Mas essa lucidez não é contraditória ao impulso que nos faz correr sempre que abre um centro comercial?CL I Creio que não, mas se fosse também não fazia mal. Quando es-tamos a lidar com estruturas com-plexas como a sociedade não há uma lógica de causa-efeito muito óbvia. O consumidor pode querer duas coisas muito diferentes ao mesmo tempo, pode querer pro-dutos de marca global que dão um sentido de pertença alargado e querer coisas muito locais. Não se trata de escolher, há tensões que fi-cam sempre em aberto. Os consu-midores portugueses têm, de facto, uma predisposição favorável para o novo. E o primeiro movimento é de interesse, mas está a acontecer que esse tempo de encantamento pelo novo é mais curto. As pessoas encantam-se, mas depois aplicam sobre o novo uma análise que junta elementos emocionais e racionais. E a decisão é de lucidez. A em-presa tem de manter a capacidade de inovar e surpreender sempre: esse é o grande desafio, é a pro-va provada de que não se desligou do seu consumidor. Se o consumi-dor perceber que a marca não se acomodou, a marca é remunerada; se o consumidor desconfiar que a marca vive à conta do seu passa-do, a marca tem um problema.

Briefing I A marca não pode an-dar distraída…CL I O consumidor contemporâ-neo tem sempre alguma coisa para

dizer, há sempre alguma coisa a acontecer e essa matriz de inte-ractividade tem de passar para as marcas. Uma marca que não se es-força, que não alimenta a conversa com o seu consumidor, não está a perceber o filme… Temos notado algumas marcas distraídas, mar-cas muito convencidas de que têm um património de grandes anún-cios, de lançamentos importantes e que não perceberam essa neces-sidade de ir ter com as pessoas. Há marcas que têm um excelente comportamento nos ecrãs, mas os consumidores, que hoje dominam completamente a gramática do di-gital, ficam mais agradados com as marcas que vão ter com eles na vida real. Quem tem a ilusão de que a criatividade se esgota numa conversa digital está enganado: os seres humanos precisam de fisica-lidade.

Briefing I Defende também que as marcas têm de ser humildes. O que implica essa atitude?CL I A marca tem de voltar a expli-car exactamente ao que vem, tem de refazer a sua razão de ser, tem de ser capaz de apresentar ele-mentos válidos para o consumi-dor, tem de ser capaz de se com-prometer. Humildemente. Mesmo que seja famosa, que tenha uma posição forte no mercado, tem de dizer ao seu consumidor que vai continuar a servi-lo, com qualida-de, não deixando de o surpreen-der. Tem de explicar por que custa o que custa, porque o preço não é uma abstracção, é uma expressão de valor. E as marcas que nasce-ram como marcas não estavam habituadas a isso.

Briefing I Conhece esta indús-tria há mais de 30 anos. O que é um estudo de mercado fide-digno?CL I Tem, desde logo, de ter uma grande capacidade de se aproxi-mar da realidade sem ideias pre--concebidas. Cada vez mais tem de desconfiar daquilo que é dito pelos consumidores e tentar des-codificar por que dizem umas coi-sas e não dizem outras. Precisa-mos de uma ligação orgânica com

“Mesmo que famosa, a marca tem de ser humilde e dizer ao consumidor que vai continuar a servi-lo, com qualidade, não deixando de o surpreender. Tem de explicar por que custa o que custa, porque o preço não é uma abstracção, é uma expressão de valor”

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“Temos uma predisposição

favorável para o novo. Mas o tempo de encantamento

pelo novo está cada vez mais curto. As

pessoas encantam-se, mas depois

aplicam sobre o novo uma análise que junta elementos emocionais

e racionais. E a decisão é de lucidez”

De si próprio, Carlos Liz afirma que é “perma-nentemente curioso, bastante insatisfeito e um bocado irritado”. Os três qualificativos são indis-sociáveis num homem que vive a inquietação de procurar o sentido das coisas. Católico pratican-te, encontra na Igreja um mundo fascinante de interrogações. Porque toca as pessoas, toca o futuro, até o eterno. É uma paixão que assume, convicto de que a proposta cristão pode contri-buir para dar sentido à sociedade portuguesa. Num exercício de comparação com as marcas, não tem dúvidas de que a Igreja tem de ser au-

têntica, de saber o que é e para o que vem. Se não tiver uma identidade muito forte, não há aproximação que resista. Aos 56 anos, casado há mais de 30 e com dois filhos já adultos, Car-los vive como trabalha: a estudar a vida. “Não vejo motivo nenhum para fazer um intervalo”. A insatisfação e a irritação nascem da consciên-cia de que nunca conseguirá perceber tudo, de que quanto mais avança mais peças entram na equação e mais difícil se torna fixar minimamen-te uma realidade que não se deixa fixar. Por isso, “não há monotonia possível”.

Bastante insatisfeito e um bocado irritadoPERFIL

a vida dos consumidores. Muito mais do que preencher um inqué-rito, muito mais do que os grupos em ambiente protegido, a palavra-chave é ir ao encontro da vida real. Os investigadores têm de ser capa-zes de partilhar quotidianos com as pessoas, dizer o que acontece de segunda a domingo dentro e fora de casa, perceber quantas histó-rias contém um agregado familiar, saber quantos ecrãs em casa o fragmentam, qual a importância de estarem juntos, o que acontece na selecção das marcas e dos produ-tos, a migração da vida social do exterior para casa… coisas que não se perguntam…

Briefing I é um verdadeiro estudo sociológico…CL I Tal como acontece com as marcas, que são cada vez mais ac-tores sociais, também os estudos de mercado cada vez mais são so-ciológicos. Os estudos de mercado são úteis se ajudarem as empresas a ter diagnósticos para serem mais competitivas. Mas essa utilidade tem de corresponder à realidade: se a realidade é mais sociológi-ca do que mercadológica, é esse processo que temos de seguir. Se calhar o nome “estudos de merca-do” está mal, temos de mudar para ‘estudos de mercado e sociedade’.

Briefing I Esse critério também se aplica às sondagens políti-cas? O que as diferencia dos es-tudos de mercado?CL I Em primeiro lugar, o tema da política é ideologicamente sobre-carregado, é socialmente muito trabalhado, o que gera uma des-consideração de base. Por isso, quando se fala de questões polí-ticas e eleitorais, há uma enorme pressão sobre quem investiga. Do ponto de vista técnico, este exces-so de ideologia obriga a introduzir uma forte dimensão qualitativa, de maneira a compreender a fundo o que aquilo quer dizer. Muitas res-postas são demasiado previsíveis, as pessoas alinham por ideias es-tabelecidas, pelo que, se para to-marmos decisões, acreditarmos apenas nesses inquéritos estru-turados provavelmente tiraremos

conclusões erradas. É muito im-portante perceber melhor como é a relação dos cidadãos com os acto-res políticos, com o sistema, per-ceber de onde vêm as irritações. É preciso tempo para que a pessoa se contradiga, para ver o ritmo das ideias, os silêncios. São análises bastante mais sofisticadas.

Briefing I As sondagens servem de matéria-prima aos políticos como os estudos de mercado servem para as empresas e as marcas?CL I As sondagens permitem dese-nhar de uma forma muito interessan-te o sentimento das pessoas relati-vamente ao político A ou ao político B e, sobretudo, perceber onde esse sentimento se foi construindo, o que esteve na sua origem, que discursos, que presenças, que história dita pelo adversário… Podem ajudar a cons-truir um discurso, sempre com a perspectiva de descobrir coisas no-vas que possam ser conversa com os eleitores e que os surpreendam. Se o emissor do discurso não com-preende isso, quer dizer que não se está a esforçar por captar a minha atenção. Um político que está a dizer sempre as mesmas coisas ou não percebeu que eu já percebi, ou pen-sa que eu não oiço os outros e isso não faz sentido. A repetição é fatal no discurso político.

Briefing I Fundou a Apeme em 1989, que entretanto se fundiu com a Ipsos. O que o levou a dar esse passo?CL I A principal razão tem a ver com o facto de eu gostar muito de estudos de mercado, de tentar mesmo perceber o consumidor. Por isso, quis ter comigo o que há de melhor, procurei subir um bo-cadinho no conjunto de saberes e competências para compreen-der esta sociedade complexa. A Apeme era uma empresa voca-cionada para os estudos quali-tativos, com alguma capacidade de pensar estrategicamente mas com limites, desde logo o de po-der comparar a realidade portu-guesa com outras. A fusão com a Ipsos permitiu-nos aceder ao que de mais avançado se vai fazendo sobre a forma de compreender consumidores cada vez mais di-fíceis de perceber. Ajudou-nos a redesenhar o que sabemos e, sem perder o que de mais inte-ressante há na proximidade com a vida portuguesa, a sermos ca-pazes de nos integrarmos na for-ma de pensar e funcionar de uma empresa verdadeiramente global. Conseguimos perceber mais de-pressa coisas que não estávamos a dimensionar suficientemente. Ganhámos outra massa crítica de conhecimento.


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