ERS/049/08
PARECER
I.
Introdução
1. Por exposição recebida em 1 de Julho de 2008, o Centro Hospitalar do Porto, EPE,
entidade prestadora de cuidados de saúde com sede no Largo Professor Abel
Salazar, 4099-001 Porto, trouxe ao conhecimento da Entidade Reguladora da Saúde
(doravante ERS) as situações ocorridas com quatro utentes de clínicas privadas da
cidade do Porto.
2. Tais situações respeitam a utentes que terão sido objecto de intervenções cirúrgicas
realizadas por prestadores privados de saúde e que, subsequentemente e por virtude
de complicações pós-operatórias, deram entrada, em situação de emergência, nos
serviços do Centro Hospitalar do Porto e, in concreto, nos Serviços de Cuidados
Intensivos do Hospital Geral de Santo António, entre os meses de Fevereiro e Junho
de 2008.
3. Pretende, assim, o Centro Hospitalar do Porto que os factos assim transmitidos sejam
considerados, à luz das competências e atribuições da ERS, para os efeitos
entendidos por necessários.
II.
Enquadramento
II.1. Da competência da ERS
4. De acordo com o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro, a ERS
tem por objecto a regulação, a supervisão e o acompanhamento, nos termos previstos
naquele diploma, da actividade dos estabelecimentos, instituições e serviços
prestadores de cuidados de saúde.
5. As atribuições da ERS, de acordo com o artigo 6.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 309/2003,
de 10 de Dezembro, compreendem “a regulação e a supervisão dos
estabelecimentos, instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde, no que
respeita ao cumprimento das suas obrigações legais e contratuais relativas ao acesso
dos utentes aos cuidados de saúde, à observância dos níveis de qualidade e à
segurança e aos direitos dos utentes”.
6. Constituem objectivos da ERS, em geral, nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do
artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro “assegurar o direito de
acesso universal e igual a todas as pessoas ao serviço público de saúde”, bem como
“assegurar os direitos e interesses legítimos dos utentes”;
7. Mais se concretiza nas alíneas a) e b) do n.º 2 daquela norma, que, para efeito de
assegurar o direito de acesso dos utentes, incumbe à ERS não só “zelar pelo respeito
da liberdade de escolha nas unidades de saúde privadas”, como também “promover a
garantia do direito de acesso universal e equitativo aos serviços públicos de saúde”.
II.2. Objecto do presente parecer
8. Os factos expostos pelo Centro Hospitalar do Porto respeitam, como já referido, a
situações de utentes que se submeteram a intervenções cirúrgicas em unidades
privadas de saúde mas que, em resultado de complicações pós-operatórias, vieram a
dar entrada nos Serviços de Cuidados Intensivos do Hospital Geral de Santo António;
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9. Seja em resultado de solicitação de transferência expressa pelos próprios utentes,
seja por decisão dos profissionais responsáveis das referidas unidades privadas de
saúde.
10. Este Hospital presta, assim, aos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), os
cuidados necessários à recuperação do seu estado de saúde, na sequência das
intervenções realizadas por prestadores privados.
11. Ora, a análise da exposição do Centro Hospitalar do Porto suscita diferentes
questões, como sejam o enquadramento
(i) do próprio Centro Hospitalar do Porto - onde se inclui, por maioria de razão,
o respectivo serviço de urgência e de cuidados intensivos do Hospital Geral de
Santo António – no âmbito do SNS e sua relação com o direito de acesso
universal ao serviço público de saúde;
(ii) do princípio fundamental da liberdade de escolha nas unidades privadas de
saúde;
(iii) da responsabilidade civil (contratual e extracontratual) no exercício de
funções em unidades privadas de saúde; e
(iv) da responsabilidade, nos termos do Estatuto do SNS, pelos encargos
financeiros incorridos pelo Centro Hospitalar do Porto e decorrentes da
prestação dos cuidados de saúde nas situações em causa.
12. Desde já se refira que tais questões, insitamente complexas, possuem a característica
adicional da novação do seu tratamento conjunto e sistémico.
3
III.
Análise
III.1. O SNS e o direito de acesso universal ao serviço público de saúde
13. O Centro Hospitalar do Porto, EPE foi criado pelo Decreto-Lei n.º 326/2007, de 28 de
Setembro, e é resultado da fusão do Hospital Geral de Santo António, E. P. E., com o
Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia e a Maternidade de Júlio Dinis –
cfr. al. a) do n.º 1 do artigo 1.º do referido diploma.
14. Assim, o Centro Hospitalar do Porto, EPE (e os estabelecimentos no mesmo
integrados, isto é, o Hospital Geral de Santo António, o Hospital Maria Pia e a
Maternidade de Júlio Dinis) acha-se integrado no SNS, o qual
“(…) abrange todas as instituições e serviços oficiais prestadores de
cuidados de saúde dependentes do Ministério da Saúde e dispõe de
estatuto próprio.” – cfr. n.º 2 da Base XII da Lei de Bases da Saúde – Lei n.º
48/90, de 24 de Agosto (publicada no DR, I Série, n.º 195, 24/08/1990),
com as alterações introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro;
15. E que é constituído, então, pelo conjunto de operadores1 – in casu públicos - que
garante a imposição constitucional de “garantir o acesso de todos os cidadãos,
independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina
preventiva, curativa ou de reabilitação” – cfr. alínea a) do n.º 3 do artigo 64.º da
Constituição da República Portuguesa.
16. Outrossim, o Centro Hospitalar do Porto, EPE desempenha um papel de elevada
relevância na prossecução de tal imposição.
1 O SNS é definido como o “(…) conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e serviços
oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou a tutela do
Ministro da Saúde” - cfr. artigo 1.º do Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15
de Janeiro de 1993.
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17. Na realidade, as instituições e serviços são classificadas, por Portaria, em função das
suas responsabilidades e valências efectivamente exercidas – cfr. n.º 1 do artigo 12.º
do Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro de 1993;
18. Sendo que cada um dos hospitais integrado no Centro Hospitalar do Porto (isto é,
Hospital Geral de Santo António, Hospital Maria Pia e Maternidade de Júlio Dinis) foi e
é considerado e classificado, no seio do SNS, como hospital central – cfr. Portaria n.º
567/2006, de 12 de Junho, com a última redacção resultante da Portaria n.º 110-
A/2007, de 23 de Janeiro;
19. Possuindo, consequentemente, o Centro Hospitalar do Porto uma extensa área
geográfica de influência, a qual abrange os Distritos de Bragança, Vila Real, parte do
Distrito do Porto, Área Ocidental do Porto e Concelhos a Sul do Rio Douro2.
20. E tendo a Lei de Bases da Saúde, na sua Base XXV, definido como beneficiários do
SNS “todos os cidadãos portugueses”, sejam eles residentes em Portugal, ou residam
no estrangeiro, mas também “[...] os cidadãos nacionais de Estados membros das
Comunidades Europeias, nos termos das normas comunitárias aplicáveis”; “[...] os
cidadãos estrangeiros residentes em Portugal”; e os “[...] os cidadãos apátridas
residentes em Portugal”, é então incumbência do Centro Hospitalar do Porto prestar
os seus serviços de saúde (e assim efectivar os seus direitos de acesso aos cuidados
de saúde) a todos os beneficiários do SNS, da sua área de influência, que deles
necessitem;
21. O que de sobremaneira releva quando tais necessidades de acesso à prestação de
cuidados de saúde se revistam de carácter emergente ou urgente;
22. E ainda que tais necessidades derivem de complicações pós-operatórias
subsequentes a intervenções cirúrgicas realizadas por prestadores privados
(independentemente de a procura dos seus serviços ser resultado de solicitação de
transferência expressa pelos próprios utentes, ou de a mesma se efectuar por decisão
dos profissionais responsáveis das referidas unidades privadas de saúde).
2 Cfr. informação disponibilizada pela ARS Norte no seu site (www.arsnorte.min-saude.pt).
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23. Ora, dos factos transmitidos pelo Centro Hospitalar do Porto à ERS resulta que o
mesmo deu cabal cumprimento a uma tal incumbência de garantir o direito de acesso
aos beneficiários do SNS que, por virtude das referidas complicações pós-operatórias,
foram transferidos de unidades privadas de saúde para o Hospital Geral de Santo
António.
III.2. A liberdade de escolha nas unidades privadas de saúde
24. O acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde é, como resultado da opção
constitucionalmente consagrada, assegurado através da criação de um serviço
nacional de saúde universal, geral e, tendo em conta as condições económicas e
sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito.
25. A Lei de Bases da Saúde, aprovada em concretização da referida imposição
constitucional, estabeleceu na sua Base XXIV como características do SNS
“a) Ser universal quanto à população abrangida;
b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;
c) Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as
condições económicas e sociais dos cidadãos;
(...)”.
26. Por outro lado, os cuidados de saúde a utentes do SNS podem ser concretamente
prestados não somente pelas instituições públicas oficiais integrantes do SNS (como,
por exemplo, o Centro Hospitalar do Porto), mas igualmente por outras instituições ou
entidades, designadamente privadas e com ou sem fins lucrativos.
27. Na realidade
“Com efeito, o texto constitucional não perfilhou um modelo de monopólio
do sector público de prestação de cuidados de saúde — tendencialmente
coincidente com o Serviço Nacional de Saúde —, antes admite a existência
de um sector privado de prestação de cuidados de saúde em relação de
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complementaridade e até de concorrência com o sector público.” – cfr.
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 731/95, de 14 de Dezembro.
28. Assim, o sector privado de prestação de cuidados de saúde igualmente opera e
fornece os seus serviços, independentemente de qualquer acordo com o SNS;
29. Pelo que qualquer utente de serviços de saúde poderá, então e para satisfação das
suas necessidades concretas, optar por recorrer:
(i) aos prestadores de cuidados de saúde do SNS, beneficiando das suas
características de generalidade, universalidade e gratuitidade tendencial; e/ou
(ii) aos prestadores de cuidados de saúde, próprios, convencionados ou em
regime livre, de um dado subsistema (público ou privado) de saúde, caso seja
beneficiário de tal subsistema e nos termos definidos por este último; e/ou
(iii) aos prestadores de cuidados de saúde, próprios, convencionados ou em
regime livre, ao abrigo de um dado seguro de saúde, caso haja contratado uma
tal cobertura do risco de doença e nos termos acordados com a entidade
seguradora; e/ou
(iv) aos prestadores de cuidados de saúde, privados e com ou sem fins
lucrativos, mediante a contraprestação acordada com o concreto prestador
livremente escolhido.
30. Ora, em qualquer caso, urge garantir que o utente beneficia de uma efectiva liberdade
de escolha do concreto prestador a que pretende recorrer.
31. Concretamente, a liberdade de escolha nas unidades de saúde privadas constitui um
dos pilares fundamentais da relação utente-prestador de cuidados de saúde;
32. Muito embora deva ser assegurado que a assimetria de informação existente entre o
utente e os prestadores de cuidados de saúde não resulta em prejuízo, directo ou
indirecto, dos direitos dos utentes ou da satisfação das necessidades de cuidados de
saúde que os mesmos buscam.
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33. Na realidade, e tanto constitui entendimento assente, a oferta de cuidados de saúde
pode encontrar-se em situação que conduza à própria determinação, total ou parcial,
da procura;
34. Pelo que, desde logo, sobressai enquanto direito fundamental dos utentes de
cuidados de saúde o direito à informação plena, esclarecida e esclarecedora.
35. Isto porque, na verdade, o direito do utente à informação não se limita ao que prevê a
alínea e) do n.º 1 da Base XIV da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, para efeitos de
consentimento informado e esclarecimento quanto a alternativas de tratamento e
evolução do estado clínico;
36. Trata-se, antes, de um princípio que deve modelar todo o quadro de relações actuais
e potenciais entre utentes e prestadores de cuidados de saúde, públicos e privados,
com ou sem fins lucrativos.
37. Importa, por isso, garantir que a informação prestada ao utente é suficiente para dotar
o utente medianamente esclarecido e diligente dos elementos necessários ao livre
exercício da escolha da unidade de saúde à qual recorrerá.
38. Disto resulta, assim, que os utentes que pretendam ou necessitem de, por exemplo,
realizar intervenções cirúrgicas poderão recorrer às diferentes alternativas de acesso
que concretamente se lhe apresentem;
39. Sendo, contudo, essencial que o façam de forma esclarecida;
40. O que passará, necessariamente, pela informação prévia, cabal e completa dos riscos
ínsitos das intervenções ou actos a que se submeterão;
41. Das potenciais complicações pós-operatórias que poderão, em maior ou menor grau
de probabilidade, ocorrer; e
42. Dos meios humanos e técnicos existentes e disponíveis para assegurar a prestação
de tais cuidados de saúde.
43. Efectivamente, deve ter-se presente que
8
“Importa (…) ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o
catalogar a prioristicamente na dicotómica perspectiva obrigação de
meios/obrigação de resultado, devendo antes atentar-se, casuisticamente,
ao objecto da prestação solicitada (…) para saber se, neste ou naqueloutro
caso, estamos perante uma obrigação de meios – a demandar apenas uma
actuação prudente e diligente segundo as regras da arte – ou perante uma
obrigação de resultado com o que implica de afirmação de uma resposta
peremptória, indúbia.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
04.03.2008, proc. 08A183;
44. De onde também resulta, então, que a liberdade de escolha fundar-se-á em sólidas
bases quando, a priori, o utente tem conhecimento do objectivo, condicionantes e
riscos do acto que necessita para satisfação da sua necessidade de cuidados de
saúde;
45. Pelo que, igualmente a priori, deve desde logo ser possível identificar-se se o
prestador se comprometeu com uma obrigação de meios ou com uma obrigação de
resultado.
46. Ora, as situações expostas pelo Centro Hospitalar do Porto respeitam a complicações
pós-operatórias subsequentes a intervenções cirúrgicas realizadas por prestadores
privados, e por virtude das quais os utentes em questão houveram que ser
transferidos para os Serviços de Cuidados Intensivos do Hospital Geral de Santo
António.
47. Em nenhuma das situações identificadas pelo Centro Hospitalar do Porto surgem
indícios ou evidências que os utentes não houvessem optado pela realização dos
actos em causa em tais unidades privadas de forma livre e fundamentalmente
esclarecida.
9
III.3. Enquadramento legal da responsabilidade civil
48. As questões trazidas ao conhecimento da ERS devem, ainda, ser analisadas na
perspectiva da responsabilidade civil que, em qualquer caso, pode resultar no âmbito
do exercício de funções em unidades privadas de saúde3.
49. Efectivamente, os motivos das transferências dos utentes para o Centro Hospitalar do
Porto assentam em complicações pós-operatórias subsequentes a intervenções
cirúrgicas realizadas por prestadores privados;
50. Nas situações em apreço, os utentes terão celebrado, então e em regra, com a
unidade privada de saúde, um contrato de prestação de serviços médicos, que
pacificamente se considera como genericamente enquadrado no disposto no artigo
1154.º do Código Civil (CC), relativo ao contrato de prestação de serviço.
51. Ora, a este respeito atente-se que
“(…) a responsabilidade civil pode assumir tanto a modalidade de
responsabilidade contratual, quando provém da “falta de cumprimento das
obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”,
como a modalidade de responsabilidade extracontratual, também
designada de delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos
absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam
prejuízo a outrem” - cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol.
I, 10ª Edição, pág. 519.”;
Sendo que
“Também a responsabilidade civil médica pode apresentar - e será,
porventura, a situação mais frequente - natureza contratual, assentando na
existência de um contrato de prestação de serviço, tipificado no art. 1154º
do Código Civil, celebrado entre o médico e o paciente, e advindo a mesma
3 Na prestação de cuidados de saúde em entidades públicas, a responsabilidade civil do prestador
deverá considerar-se regida pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprova o regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.
10
do incumprimento ou cumprimento defeituoso do serviço médico. Mas
também pode apresentar natureza extracontratual, prima facie quando não
há contrato e houve violação de um direito subjectivo, podendo ainda a
actuação do médico ser causa simultânea das duas apontadas
modalidades de responsabilidade civil. A responsabilidade civil
extracontratual está prevista nos arts. 483º e segs. do Código Civil, sendo a
contratual tratada nos arts. 798º e segs. do mesmo diploma.
(…)
São os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil,
provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto
(controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo
de causalidade entre o facto e o dano.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça de 27.11.2007, proc. 07A3426.
52. Efectivamente, e sublinhando esta característica da possibilidade de verificação
simultânea e concorrente dos dois tipos de responsabilidade civil, refira-se que
“(…) podem coexistir a responsabilidade contratual e a responsabilidade
extracontratual, entendimento amparado no Estudo publicado, in BMJ 322-
21 e segs., da autoria de Figueiredo Dias e Sinde Monteiro (que aí se cita)
– “O mesmo facto pode constituir uma violação do contrato e um facto
ilícito…”” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.2008,
proc. 08A183, já citado.
53. Mas disto resulta, então, que um utente que haja celebrado com uma unidade privada
de saúde um contrato de prestação de serviços médicos poderá, caso entenda existir
fundamento, escrutinar a execução de tais serviços à luz dos critérios da
responsabilidade civil e que, como visto e quer se trate da contratual ou
extracontratual, assentam nos pressupostos do facto (controlável pela vontade do
homem); ilicitude; culpa; dano; e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
54. Aqui chegados, poder-se-ia desde logo invocar que, no que à responsabilidade
contratual respeita, a mesma funda-se e, consequentemente, balizar-se-á pelo vínculo
previamente estabelecido entre um utente a uma dada unidade privada de saúde;
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55. Pelo que apenas e somente o utente, enquanto parte no contrato, terá legitimidade
para assacar a alegada responsabilidade da sua contraparte por eventual
incumprimento (ou cumprimento defeituoso) da obrigação contratual e/ou dos deveres
de prestação primários, dos deveres de prestação secundários, ou ainda,
eventualmente, de outros deveres de conduta que devam ainda considerar-se como
possuindo fonte na relação obrigacional.
56. Tanto será, por princípio assim e, já concretamente quanto aos factos em análise, o
Centro Hospitalar do Porto é terceiro e alheio àquela relação contratual estabelecida
entre utente e unidade privada de saúde e no âmbito da qual seja realizada uma
intervenção cirúrgica ao primeiro;
57. Pelo que o ressarcimento de eventuais ónus ou encargos suportados pelo Centro
Hospitalar do Porto e resultantes da transferência de um dado utente por virtude de
complicações pós-operatórias subsequentes a intervenção cirúrgica realizada numa
dada unidade privada de saúde não encontrará, em lógica decorrência do princípio
basilar da eficácia relativa dos contratos, tutela jurídica em sede de responsabilidade
contratual.
58. Efectivamente, a violação daquele contrato, quer por falta de cumprimento, quer por
cumprimento defeituoso, dará lugar à responsabilidade civil dos contratantes, nos
termos do artigo 798.º do CC. Estar-se-ia, pois, perante uma estrita responsabilidade
contratual, segundo a qual “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da
obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”;
59. Norma que é, desde logo, susceptível de reconduzir o utente lesado à qualidade de
único titular do direito à indemnização a que haja lugar em virtude do incumprimento
do contrato.
60. No entanto, poderá existir, nestes casos, autonomamente, uma violação do direito à
vida, à saúde ou à integridade física dos utentes, susceptível de fazer incorrer as
unidades de saúde, in casu privadas, em responsabilidade extracontratual, na medida
em que nos termos do quadro legal supra exposto, impende sobre os profissionais de
saúde o dever de indemnizar o utente sempre que, em consequência da sua
intervenção, tenham resultado danos decorrentes da violação culposa daqueles
direitos.
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61. Também aqui o titular do direito à indemnização é, assim, em regra, o utente lesado.
62. Apesar disso, sublinhe-se desde já que, na realidade poderá assistir-se a solução
distinta no campo da responsabilidade extracontratual.
63. Nos termos do artigo 483.º n.º 1 do CC,
“aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado
a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
64. A responsabilidade civil extracontratual depende, assim e como já visto, da verificação
dos pressupostos enunciados naquele preceito legal: o facto voluntário do agente, a
ilicitude, a culpa, o dano e o nexo causal.
65. O facto voluntário do agente constitui um facto controlável pela vontade humana, o
que coloca fora do domínio da responsabilidade civil os danos causados por causas
de força maior ou pela actuação de circunstâncias fortuitas ou forças naturais. Este
facto poderá traduzir-se numa acção (facto positivo) ou omissão (facto negativo),
quando, nos termos do artigo 486.º do CC “havia, por força da lei ou do negócio
jurídico, o dever de praticar o acto omitido”.
66. Claro está, visam-se desde logo quaisquer acções praticadas no âmbito da prestação
de cuidados de saúde que se revelam, ou venham a revelar, como merecedoras de
censura ético-jurídica e consequente tutela e reacção no quadro do instituto jurídico da
responsabilidade civil;
67. Mas integrará, igualmente, um facto negativo como, por exemplo, a omissão do dever
de vigilância dos utentes internados em estabelecimentos ou unidades de saúde, bem
como dos deveres de protecção e segurança – cfr., nesse sentido, o Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 22.09.2005, proc. 03B2668.
68. O pressuposto da ilicitude, enquanto reprovação da conduta do agente no plano geral
e abstracto, integra, no âmbito da prestação de cuidados de saúde, a violação de um
direito absoluto de outrem, em regra, de direitos de personalidade, como o direito à
vida, à saúde ou à integridade física.
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69. Já a culpa ou nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante reporta-se a um
concreto comportamento, na medida em que só pode dizer-se que o agente actuou
com culpa quando, no caso concreto, podia e devia ter agido de outro modo. Na
realidade,
“Como ensina o Professor Antunes Varela, “para que o facto ilícito gere
responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa. Não
basta reconhecer que ele procedeu objectivamente mal. É preciso, nos
termos do art. 483º, que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou
mera culpa. Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do
agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante
é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias
concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro
modo” - ibidem, pág. 562.
(…)
A negligência consiste em deixar de fazer o que as legis artis impunham
que fosse feito ou em deixar de actuar de acordo com aquele grau de
cuidado e competência que seria de esperar de um médico da mesma
especialidade, actuando nas mesmas condições.” - cfr. Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2007, proc. 07A3426, já citado.
70. O juízo de censura abrangerá, assim, as diferentes modalidades de culpa previstas no
artigo 483.º do CC, a saber, o dolo (directo, necessário ou eventual) e a mera culpa ou
negligência (consciente ou inconsciente).
71. Por outro lado, nos termos do artigo 487.º do CC, sendo a culpa um elemento
constitutivo do direito à indemnização, “é ao lesado que incumbe provar a culpa do
autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”, devendo igualmente ser
apreciada em abstracto, ou seja, de acordo com a “diligência de um bom pai de
família, em face das circunstâncias de cada caso”;
72. Sendo certo que, e ainda que não possa deixar de considerar-se a distinta repartição
do ónus de prova estabelecido no âmbito da responsabilidade extracontratual face
àquele da contratual, deverá atender-se, como início de análise de uma qualquer
situação concreta, que
14
“Se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do paciente
são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapia
inadequada ou negligente execução profissional.” - cfr. Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2002, proc. 02A4757.
73. Reconduz-se, assim, o critério da culpa à diligência do profissional médio e à
conformidade da sua actuação aos deveres jurídicos que se lhe imponham, bem como
às leges artis em cada momento vigentes, devendo procurar aferir-se da conduta que
a generalidade dos profissionais com idêntica qualificação e meios teria tomado nas
mesmas condições.
74. Isto porque os profissionais de saúde devem agir segundo o quadro legal aplicável, as
exigências das leges artis e os conhecimentos científicos existentes, bem como
devem actuar permanentemente de acordo com um dever objectivo de cuidado, assim
como de certos deveres específicos, como o dever de informar sobre tudo o que
interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que, não raras
ocasiões, prolonga-se mesmo após a alta do paciente.
75. Mas a este propósito releva, ainda e de sobremaneira, a já referida distinção entre
“obrigação de meios” e “obrigação de resultado”:
“Os actos cirúrgicos comportam alguma margem aleatória que pode
contender com o resultado; nestes casos o erro médico é mais dificilmente
descortinável. Mas é aí que o médico deve agir, com redobrada cautela,
observando os dados adquiridos pela ciência, ou seja, adoptando os
procedimentos mais evoluídos da técnica.
(…)
Importa, pois, ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o
catalogar a prioristicamente na dicotómica perspectiva obrigação de
meios/obrigação de resultado, devendo antes atentar-se, casuisticamente,
ao objecto da prestação solicitada ao médico ou ao laboratório, para saber
se, neste ou naqueloutro caso, estamos perante uma obrigação de meios –
a demandar apenas uma actuação prudente e diligente segundo as regras
da arte – ou perante uma obrigação de resultado com o que implica de
afirmação de uma resposta peremptória, indúbia.
15
(…)
No caso de intervenções cirúrgicas, em que o estado da ciência não
permite, sequer, a cura mas atenuar o sofrimento do doente, é evidente que
ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto
médico não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima
margem de risco, não podemos considerar que apenas está vinculado a
actuar segundo as legis artes; aí, até por razões de justiça distributiva,
haveremos de considerar que assumiu um compromisso que implica a
obtenção de um resultado, aquele resultado que foi prometido ao paciente.”
- cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.2008, proc.
08A183, já citado.
76. Na realidade, será com base na avaliação casuística dos casos concretos que haverá
que fazer uma tal avaliação criteriosa do acto realizado, riscos prováveis associados,
bem como do estado da técnica e da actuação concreta, que deverá sempre ser
consentânea com os deveres gerais de cuidado exigíveis ao profissional diligente e
atento;
77. O que implicará o dever de cumprimento, desde logo, das imposições legais
existentes, das regras da boa prática profissional, bem como o de não omissão de
diligências devidas, necessárias ou aconselháveis em face da natureza do acto
praticado – o que incluirá o dever de realização do acto com a garantia de existência
de condições adequadas à eventual prática de actos subsequentes que se venham a
revelar, segundo tais regras, como devidas, necessárias ou aconselháveis.
78. Assim, são múltiplas as situações que podem vir a serem consideradas como ilícitas
face à previsão do artigo 483.º CC;
79. Que, ademais, assenta nos conceitos latos de direito de outrem (que, como visto, se
refere desde logo aos direitos de personalidade e à tutela geral da personalidade
prevista no artigo 70.º do CC, que estabelece, no seu n.º 1, que
“A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de
ofensa à sua personalidade física ou moral.”;
80. Como igualmente assenta na violação de qualquer disposição destinada a proteger
interesses alheios.
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81. Consequentemente, podem vir a revelarem-se ilícitos aqueles actos cirúrgicos
praticados com violação do direito dos utentes à informação prévia e plena,
esclarecida e esclarecedora;
82. Uma vez que numa tal situação o acto pode vir a representar-se, efectivamente, como
uma lesão corporal que, por não previa e devidamente esclarecida, se revela como
não consentida e, logo, ilícita.
83. Por outro lado, e como já visto, serão também ilícitos aqueles actos cirúrgicos
praticados com violação clara ou grosseira das leges artis;
84. Tal como o serão quando praticados, por exemplo, com violação do quadro legal
aplicável;
85. Referindo-se, a este título e como exemplo, as regras relativas ao licenciamento das
unidades privadas de saúde previstas, entre outros diplomas, no Decreto-Lei n.º
13/93, de 15 de Janeiro;
86. Bem como as regras relativas aos requisitos mínimos exigíveis às unidades privadas
de saúde quanto a instalações, organização e funcionamento (cfr. Decreto
Regulamentar n.º 63/94, de 2 de Novembro);
87. E que estabelece, no que à situação aqui em análise melhor respeitará, no seu Anexo
II os requisitos relativos às instalações e equipamentos mínimos a considerar quando
uma unidade privada de saúde disponha de um bloco operatório.
88. Claro está, tal quadro legal visa estabelecer parâmetros mínimos de exigência e
qualidade que, com relativa certeza, constituam o patamar mínimo de qualidade na
prestação de cuidados de saúde em unidades privadas de saúde; e
89. Obviamente, enquanto disposições destinadas a proteger interesses alheios, a saber,
os potenciais utentes de tais unidades privadas de saúde.
90. Por último, refira-se que o cumprimento de tais parâmetros mínimos pode não
constituir, sem mais, garantia da licitude do acto, uma vez que as próprias leges artis,
o dever de cuidado e de diligência podem impôr a realização de um determinado acto
apenas e somente reunidas condições humanas, científicas, técnicas e materiais que
ultrapassam o tal patamar mínimo legalmente exigível;
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91. Pelo que também aí, isto é, aquando da prática sem a reunião de tais condições, se
deverá aferir da sua eventual ilicitude, mormente por eventual violação de leges artis.
92. Outro pressuposto do dever de indemnizar é a existência de um dano ou lesão
causada no bem ou interesse juridicamente tutelado.
93. Nas situações típicas, importarão a este título, essencialmente, os danos patrimoniais
e não patrimoniais sofridos pelo utente eventualmente lesado;
94. Devendo, por último, verificar-se o nexo de causalidade entre o facto do agente e tais
danos, sendo que nos termos do artigo 563.º do CC, que consagra a teoria da
causalidade adequada, só são indemnizáveis os “danos que o lesado provavelmente
não teria sofrido se não fosse a lesão”.
95. O estabelecimento do nexo de causalidade consiste na demonstração do
encadeamento entre o estado de saúde do utente em momento anterior à realização
da cirurgia e a lesão que configura o dano alegadamente resultante da conduta do
profissional de saúde em causa.
96. Finalmente, importa referir que, por aplicação do artigo 500.º do CC, sempre que os
profissionais de saúde actuem no exercício de funções em unidades privadas,
poderão estas responder, independentemente de culpa, pelos danos causados pelos
primeiros, sem prejuízo do eventual direito de regresso a que haja lugar.
97. O que significa que poderá sempre ser demandado, directamente e em primeira linha,
o prestador colectivo.
98. Dir-se-á, neste momento, que o quadro legal vindo de (sumariamente) expor será apto
a tutelar eventuais lesões, designadamente de direitos de personalidade, que os
utentes hajam sofrido;
99. Pelo que o dano patrimonial do Centro Hospitalar do Porto, traduzido nas despesas
(não cobertas pelas taxas moderadoras cobradas) relativas aos cuidados de saúde
prestados aos utentes que vieram a sofrer complicações pós-operatórias na sequência
de intervenções cirúrgicas realizadas em unidades privadas e cuja gravidade conduziu
a que dessem entrada nos serviços de urgência ou de cuidados intensivos do Hospital
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Geral de Santo António, também não encontraria, em sede de responsabilidade
aquiliana, tutela.
100. Tanto não será, contudo e uma vez preenchidos os pressupostos legais, assim,
como seguidamente se verá.
III.4. A responsabilidade pelos encargos financeiros incorridos pelo Centro Hospitalar do Porto: aplicabilidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do Estatuto do SNS e do n.º 2 do artigo 495.º n.º 2 do CC
101. Quanto à responsabilidade pelos encargos financeiros decorrentes da prestação
dos cuidados de saúde em causa, recorde-se que a alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do
Estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro, estipula que
“respondem pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde
prestados no quadro do SNS (…) as entidades que estejam a tal obrigadas por
força de lei ou de contrato”.
102. Já supra se concluiu que, por princípio, o Centro Hospitalar do Porto será terceiro
e alheio a qualquer relação contratual estabelecida entre utente e unidade privada de
saúde e no âmbito da qual seja realizada uma intervenção cirúrgica ao primeiro;
103. Nem tampouco tais unidades privadas de saúde contrataram com o SNS a
assunção de uma tal responsabilidade4.
104. Consequentemente, será por força de lei que se deverá verificar da possível
responsabilidade pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde
prestados no quadro do SNS.
4 O exemplo de uma tal situação será aquela dos subsistemas, designadamente privados, que
acordem a assunção da responsabilidade, designadamente financeira, pelos custos decorrentes da
prestação de cuidados de saúde aos beneficiários de um tal subsistemas.
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105. Desde já se esclareça que o Centro Hospitalar do Porto, enquanto instituição
integrada no SNS, apenas pode cobrar aos utentes as competentes taxas
moderadoras;
106. As quais, fundando-se na característica da gratuitidade tendencial do SNS,
possuem uma função de moderação da procura de cuidados de saúde e não
representam nem têm por subjacente, ou por totalmente subjacente, quer o “preço”
pelos serviços, quer os próprios custos aos mesmos inerentes,
107. Pelo que deverá atender-se a que os custos efectivamente incorridos pelo Centro
Hospitalar do Porto e decorrentes de transferências de utentes provindos de unidades
privadas de saúde por motivos de complicações pós-operatórias serão, claro está,
manifestamente superiores às preditas taxas moderadoras que eventualmente sejam
cobradas.
108. E a este título deverá chamar-se à colação o n.º 2 do artigo 495.º do CC, que
estipula que
“Neste caso [de lesão de que proveio a morte], como em todos os outros de
lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o
lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras
pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou
assistência da vítima”.
109. Ou seja, se e uma vez verificados os pressupostos da responsabilidade civil
extracontratual previstos no artigo 483.º n.º 1 do CC, as complicações pós-operatórias
que motivam o encaminhamento de utentes para os serviços de urgência do SNS
poderão traduzir-se na responsabilização das unidades privadas de saúde pelos
respectivos encargos financeiros;
110. Tal qual uma qualquer outra situação em que haja uma lesão ilícita de um qualquer
direito subjectivo do lesado que motive, enquanto dano, o recurso à prestação de
cuidados de saúde, em que o autor da mesma será responsabilizado, também, pelo
ressarcimento quer dos danos do lesado, quer das entidades (públicas ou privadas)
que hajam prestado tais cuidados.
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111. Mas refira-se, a este respeito, que não constituem obviamente situação de lesão
ilícita aquelas complicações pós-operatórias que se devam considerar como
integradas na margem aleatória (de insucesso) que tecnica e cientificamente se
reconhece como podendo contender com o resultado, apesar da actuação prudente e
diligente segundo as regras da arte.
112. Tais situações, recorde-se, tanto poderão ocorrer em unidades privadas de saúde
como, claro está, no próprio Centro Hospitalar do Porto ou qualquer outra instituição
do SNS, sendo que também nessas situações devem ser providos todos os cuidados
de saúde necessários em resultado de tais complicações decorrentes do risco normal
e ínsito ao acto cirúrgico praticado.
113. O recurso aos serviços de urgência de um Hospital do SNS, enquanto efectivação,
em qualquer circunstância, do direito de acesso universal ao serviço público de saúde,
espoleta um conjunto de encargos financeiros, correspondentes a todos os cuidados
de saúde necessários à recuperação do estado de saúde dos utentes;
114. E que são a concretização da referida imposição constitucional do direito
fundamental dos cidadãos de acesso aos cuidados de saúde.
115. Assim, se o lesante tem o dever de colocar o ofendido na mesma situação em que
estaria sem a lesão;
116. Ele terá igualmente o dever de ressarcir terceiros das despesas em que incorreram
para “o tratamento ou assistência da vítima”.
117. In casu, os prestadores de saúde de natureza privada que realizaram intervenções
cirúrgicas com violação do direito à vida, à saúde ou à integridade física dos utentes
respondem perante os Hospitais do SNS onde os mesmos venham a ser assistidos;
118. Os quais são, por aplicação do citado artigo 495.º n.º 2 do CC, beneficiários por
direito próprio da referida indemnização.
119. Ou seja, uma vez verificados os pressupostos de que depende a responsabilidade
extracontratual das unidades privadas de saúde onde os utentes hajam sido objecto
de intervenções cirúrgicas, o Centro Hospitalar do Porto poderá demandar aqueles
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prestadores pelos encargos financeiros resultantes da prestação de cuidados de
saúde;
120. Sendo que o poderá fazer por interesse e legitimidade próprias, ou seja,
independentemente da eventual reacção do próprio utente lesado;
121. Para o que, ademais e pelo facto de possuir os conhecimentos técnicos, científicos
e de expertise para proceder à análise casuística das situações com que venha a ser
confrontado, reunirá as melhores condições.
IV.
Conclusão
122. Em conclusão, o Centro Hospitalar do Porto
(i) acha-se incumbido de prestar os seus serviços de saúde (e assim
efectivar os seus direitos de acesso aos cuidados de saúde) a todos os
beneficiários do SNS da sua área de influência que deles necessitem e
independentemente das razões de tais necessidades, como efectivamente
tem efectuado;
(ii) verificando in concreto que as complicações pós-operatórias que
motivam o encaminhamento de utentes para os seus serviços de urgência
podem constituir o resultado de uma lesão ilícita de um qualquer direito
subjectivo do utente, e uma vez verificados os remanescentes
pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, poderá accionar,
conjuntamente com o próprio utente ou de forma autónoma, os
mecanismos legais existentes com vista à responsabilização das unidades
privadas de saúde em causa e consequente ressarcimento dos encargos
financeiros por si incorridos;
(iii) deve considerar, para o efeito e a título de exemplo, que podem
revelar-se como lesões ilícitas aquelas decorrentes dos actos cirúrgicos
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a) praticados com violação do direito dos utentes à
informação prévia e plena, esclarecida e
esclarecedora, uma vez que, numa tal situação, o
acto pode vir a representar-se, efectivamente, como
uma lesão corporal não consentida e, logo, ilícita;
b) praticados com violação clara ou grosseira das leges
artis;
c) praticados com violação do quadro legal aplicável,
que estabelece as condições humanas, científicas,
técnicas e materiais mínimas;
d) praticados com desrespeito do dever de cuidado e de
diligência, que concretamente imponham parâmetros
superiores às condições humanas, científicas,
técnicas e materiais mínimas legalmente exigíveis,
de onde igualmente resultará uma violação das
próprias leges artis.
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