ANTONIUS IRAEO ESCOBAR
REFLEXES SOBRE MATERIALISMO E
EMPIRIOCRITICISMO DE LENIN
Tese apresentada ao Departamento de Filosofia
da FFLCH-USP como exigncia parcial para
a obteno do grau de Doutor em Filosofia.
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
2003
2
ORIENTADOR:
PROF. DR. JOS CARLOS ESTEVO
BANCA EXAMINADORA:
Prof.Dr. Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes
Prof. Dr. Antonio Carlos Mazzeo
Prof.Dra Maria das Graas de Souza
Prof. Dr. Milton Lahuerta
3
Revoluo,
aos comunistas histricos,
em particular a Jos Mariano de Souza e Ludovico Hagen Luedemann,
Aglae, minha paixo,
Raissa, minha esperana.
4
RESUMO
Nosso trabalho tem como ncleo central a anlise da primeira parte de
Materialismo e Empiriocriticismo, que constitui o prembulo filosfico
necessrio anlise da revoluo da fsica empreendida por Lenin no capitulo
V da mesma obra.
A tese central que possibilitou-nos detectar a estrutura de Materialismo
e Empiriocriticismo foi-nos sugerida por uma passagem de Lenin que nos pe
em guarda contra a subordinao, operada pelo idealismo, da questo
ontolgica fundamental (a da relao entre o ser e o pensamento) questo
gnosiolgica (relativa objetividade de nossos conhecimentos).
A estrutura de nossa tese segue a estrutura de Materialismo e
Empiriocriticismo. Assim o justo dispositivo filosfico requer primeiro a anlise
da questo ontolgica fundamental (captulo III de nossa tese), somente depois
e sob o comando dessa primeira questo cabe tratar da questo gnosiolgica,
da teoria do reflexo (captulo IV de nossa tese). Finalmente no capitulo V de
nossa tese (correspondente ao captulo III da obra leninista) detemo-nos nas
concepes ontolgicas do ser social e natural.
Tal anlise da obra precedida de um captulo (captulo I) onde
expomos os nossos pressupostos metodolgicos e da anlise da abertura, na
qual Lenin desmistifica a pretensa novidade do Empiriocriticismo (capitulo II).
5
ABSTRACT
The main part of this thesis is the analisys of the first part of
Materializm i Empiriokrititsizm which constitutes the necessary philosophical
introduction to Lenins study of the revolution in Physycs.
The central idea which made it possible for us to detect the structure of
Materializm i Empiriokrititsizm was suggested by a passage by Lenin himself.
In this passage, he warns us against the subordination performed by idealism of
the fundamental ontological question (about the relation between Being and
Thought) to the epistemogical question (about the objectivity of our knowledge).
The structure of our thesis is the same found in Materializm i
Empiriokrititsizm. Therefore the right philosophical approach demands we first
to examine the fundamental ontological question (chapter III in our text) and
only then, and always having this issue in mind, to look into the epistemological
question (reflex theory) (chapter IV in our text).
Finally, in chapter V (chapter III in Lenins work) we study the
ontological conceptions of the social and the natural beings. This analysis of the
text is preceded by a chapter (chapter I) in which we explain our methodological
assumptions, and by the study of the introduction in which Lenin demystifies the
alleged novelty of the Empiriocriticism.
6
SUMRIO
Agradecimentos ............................................................................................. 7
Introduo ...................................................................................................... 8
Captulo I: Questes metodolgicas ............................................................. 13
Captulo II: A iluso de novidade .................................................................. 29
Captulo III: O problema ontolgico fundamental: o ser e a conscincia ...... 37
1. As sensaes e os complexos de sensaes .................................................... 37
2. A descoberta dos elementos do mundo ........................................................... 47
3. A coordenao de princpio e o realismo ingnuo ........................................... 53
3. A natureza existiu antes do homem ................................................................... 55
4. O homem pensa com o crebro? ....................................................................... 65
5. Sobre o solipsismo de Mach e de Avenarius...................................................... 68
Captulo IV: A questo gnosiolgica: sobre a teoria do reflexo .................... 71
Captulo V: Ontologia geral (do ser natural e social) .................................. 109
1. Sobre a matria ........................................................................................ 109
2. Da noo de experincia ........................................................................... 119
3. Tendncias subjetivistas sobre a noo de causalidade ............................... 125
4. Princpio da economia de pensamento e realidade espao-temporal ............. 128
5. Necessidade e liberdade............................................................................ 129
Anexo I: Breves reflexes sobre o humanismo terico e suas conseqncias
polticas ...................................................................................................... 132
Anexo II: Sobre o Materialismo Histrico e a posio epistemolgica de
H. Lacey ..................................................................................................... 143
Referncias Bibliogrficas .......................................................................... 153
7
AGRADECIMENTOS
A meu orientador professor Jos Carlos Estvo, que alia ao fato de
ser uma figura humana impar uma slida formao terica e uma honestidade
intelectual inigualveis. Sem a sua orientao, esta tese no teria sido possvel.
Aos professores Joo Quartin e Maria das Graas de Souza, que
participaram da qualificao deste trabalho, em especial pelas criticas que
fizeram. Ao professor Hugh Lacey, pelos cursos crticos em relao as
inovaes cientficas recentes.
A meu irmo Escobar, iconoclasta e heterodoxo, que contribuiu para
tornar menos ortodoxa nossa tese. E pela grande ajuda na vida.
Ao meu mdico e amigo fraternal, profundo conhecedor da natureza
humana, Carlos Alberto Saad.
A Dina Lida Kinoshita e Khalil Dib, amigos que me propiciaram o
acesso obra de Lenin no original. Assim como aos professores No e Helena,
meus professores de russo. E tambm ao amigo Celso Luiz Alcantara, que me
auxiliou em rduas questes referentes lngua russa.
A minhas irms, Maria Helena e Tnia Maria, pelo incentivo e pela
ajuda.
Ao amigo Incio Venncio, pelas ricas discusses. Aos amigos Paulo
Srgio Marchelli e Maria Suley de Oliveira pelo incentivo e pelas sugestes.
Natlia Soriani de Andrade, pelo muito que tem me ajudado.
CAPES, pela bolsa.
8
INTRODUO
A tese central que possibilitou-nos detectar a estrutura de Materialismo
e Empirocriticismo nos foi sugerida por uma passagem de Lenin para a qual
Dominique Lecourt chama a ateno. Nela Lenin nos pe em guarda contra a
subordinao, operada pelo idealismo, da questo ontolgica fundamental (a
da relao entre o ser e o pensamento) questo gnosiolgica (relativa
objetividade de nosso conhecimento). No Captulo III nos determos neste ponto
e buscaremos mostrar que podemos encontrar j em Feuerbach uma denncia
desta subordinao. Cabe lembrar aqui que Kant, com sua revoluo
copernicana, ao invs de estabelecer a primazia do real sobre o conhecimento
(Tese Materialista), postula que os objetos devem se regular pelo nosso
conhecimento1, leva ao extremo subordinao em questo. No nosso III
Captulo enfocaremos o tratamento de Lenin da questo da ontologia
fundamental, sua anlise de como efetivamente Mach e Avenarius a resolvem,
e ao mesmo tempo mostraremos como Lenin demarca criativamente a posio
materialista dialtica sobre tal questo.
A estrutura de nossa tese segue pari passu a estrutura de Materialismo
e Empirocriticismo. Assim, o justo dispositivo filosfico estabelecido por Lenin
1 Cf. o comentrio de Lukcs ao Prlogo da Segunda Edio da Crtica da Razo
Pura de Kant. LUKCS, G., Historia y Conscincia de Classe. Mxico, Grijalbo, 1969, pg. 155.
9
requer primeiro a anlise da questo ontolgica fundamental (captulo I de
Materialismo e Empirocriticismo e captulo III de nossa tese), somente depois
cabe tratar da questo gnosiolgica, da Teoria do Reflexo (captulo II de
Materialismo e Empirocriticismo e captulo IV de nossa tese). Finalmente, no
captulo V (referente ao captulo III de Materialismo e Empirocriticismo) detemo-
nos nas concepes leninistas de ontologia do ser natural e social, bem como
nas polmicas de Lenin com seus interlocutores.
Tal anlise de Materialismo e Empirocriticismo precedida de um
breve captulo sobre questes metodolgicas (captulo I) e da anlise da
Abertura (captulo II). A anlise desenvolvida no nosso captulo II ganha
importncia quando consideramos que os discpulos russos de Mach so
vtimas de duas iluses solidrias:
a primeira acreditar na reconciliao possvel entre materialismo e empirocriticismo, a segunda, acreditar na novidade do
empirocriticismo2.
Mais ainda, destas duas iluses, consoante Lecour, a segunda que
estabelece a primeira: porque os discpulos crem, ingenuamente, que o
empirocriticismo uma filosofia sem precedentes que eles aceitam o ideal de
uma conciliao com o materialismo dialtico.
Fazendo jus ao subttulo de Materialismo e Empirocriticismo: Notas
Crticas sobre uma Filosofia Reacionria, e ao esprito leninista, acrescentamos
um Anexo sobre as conseqncia polticas do Humanismo Terico. Alm disso,
acrescentamos tambm um Anexo mais prximo do Materialismo Histrico do
que do Materialismo Dialtico, elaborado para dialogar com tendncias atuais
2 LECOURT, D., Une crise et son enjeu. Essai sur la position de Lenine em
philosophie. Paris, Maspero, 1973, pg. 19.
10
referentes ao nosso tema, abordando algumas questes levantadas por Hugh
Lacey3.
Vejamos mais de perto a estrutura da obra de Lenin. A primeira parte
de Materialismo e Empirocriticismo (at o captulo IV) constitui um prembulo
filosfico necessrio para a anlise da revoluo na Fsica (discutida no
captulo subseqente) e a anlise das relaes entre o Materialismo Histrico e
o Empirocriticismo (captulo VI). Tal desenvolvimento levanta algumas
questes concernentes relao entre a filosofia e as cincias. Liminarmente,
para indicar brevemente tais problemas, recorramos a uma clebre passagem
de Engels:
... O materialismo percorre uma srie de fases em seu desenvolvimento. Cada descoberta transcendental que se opera, inclusive no campo das cincias naturais, obriga-o a mudar de
forma4.
Althusser talvez tenha se inspirado nesta passagem e em outras do
livro de Engels em questo como, por exemplo, a seguinte:
Durante este longo perodo, de Descartes a Hegel e de Hobbes a Feuerbach, os filsofos no avanaram impelidos apenas, como julgavam, pela fora do pensamento puro. Ao contrrio. O que na realidade os impelia para frente eram, principalmente, os formidveis e cada vez mais rpidos progressos das cincias naturais e da
indstria5.
Dissemos que Althusser talvez tenha se inspirado nessas concepes
engelsianas, precisemos, para esposar a tese do atraso necessrio da filosofia
em relao s cincias, tese tambm de Hegel, que nos diz que a filosofia (a
coruja de Minerva) surge sempre ao cair da tarde, depois das cincias. Tal a
3 LACEY, H., Valores e Atividade Cientfica. So Paulo, Discurso, 1998.
4 ENGELS, F., Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clssica Alem in MARX &
ENGELS, Obras Escolhidas. So Paulo, Alfa-Omega, vol. 3, pg. 182.
11
concepo defendida por Althusser em Lenin e a Filosofia6 e em A Filosofia
como Arma da Revoluo7. Vejamos sua sucinta formulao em Lenin e a
Filosofia:
Para que a filosofia nasa ou renasa preciso que haja cincias. talvez por isso que a filosofia em sentido estrito no comeou seno com Plato, induzida a nascer pela existncia da matemtica grega; foi transformada por Descartes, induzida a sua evoluo moderna pela fsica de Galileu; foi refundada por Kant, sob o efeito do desenvolvimento newtoniano; foi remodelada por Husserl sob o
estmulo dos primeiros axiomticos, etc.8.
Se esta tese se sustenta, temos que, em conseqncia, que s
aparentemente a primeira parte de Materialismo e Empirocriticismo uma
propedutica filosfica para a anlise da revoluo na fsica. Ao contrrio,
somos forados a concluir que foi a revoluo na fsica que provocou os
desenvolvimentos filosficos leninistas. Deveramos, ento, proceder a um
exame detalhado da revoluo na fsica para compreender a filosofia leninista,
uma vez que so as cincias que comanda as filosofias. Entretanto, ocorre com
a obra de Lnin o mesmo que com a fundao do Materialismo Histrico,
comandada por uma revoluo filosfica. Esta a posio de Althusser que,
abordando a tese acima referida, nos diz, na Resposta a John Lewis:
A revoluo filosfica de Marx comandou o corte epistemolgico de Marx, como uma de suas condies de possibilidade ... preciso afirmar o contrrio [do que havia sido dito em Lnin e a Filosofia], e defender a idia de que na histria do pensamento de Marx a revoluo filosfica necessariamente comandou a descoberta
cientfica e lhe deu a sua forma: a de uma cincia revolucionria9.
5 ENGELS, op. cit., pg. 181.
6 ALTHUSSER, L., Lenin y la filosofia. Buenos Aires, Carlos Prez, 1971.
7 Id., La filosofia como arma de la revolucin, Cuadernos de Pasado y Presente,
Buenos Aires, 1972, no. 4, pp. 9-2O.
8 ALTHUSSER, L., Lenin y la filosofia, op. cit., pg. 33.
9 Id., Resposta a John Lewis, op. cit., pg. 60.
12
Desta perspectiva, em que as revolues filosficas aparecem em
primeiro plano, comandando as revolues cientficas, Materialismo e
Empirocriticismo (1908), assim como os Caderno Filosficos (1914-1916) foram
fundamentais para a elaborao da monumental obra do Materialismo Histrico
Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (1916).
A ttulo de concluso desta breve introduo, acrescentemos, para
sublinhar a importncia do Materialismo Dialtico, da Filosofia, contrariamente
a uma ideologia difusa, os seguintes dizeres de Lefebvre:
Lenin foi tambm um filsofo. E na nossa opinio, seu pensamento filosfico que nos d o fio condutor que atravessa toda a obra e a
torna compreensvel10
.
10 LEFEBVRE, H., O Pensamento de Lenine. So Paulo, Moraes, 1975, pg. 14.
13
CAPTULO I
QUESTES METODOLGICAS
No prembulo da anlise do item 4 do capitulo IV de Materialismo e
Empirocriticismo, relativo ao sentido em que evoluiu o empiriocriticismo, Lenin
enuncia trs proposies metodolgicas concernentes a analise do sistema
filosficos. Arrolaremos, primeiramente, esta passagem na integra e em
seguida objetivaremos explicit-las e mostrar como a pratica filosfica leninista
efetivamente aplica as referidas regras metodolgicas:
O empiriocriticismo , portanto, como qualquer outra tendncia ideolgica, uma coisa viva em vias de crescimento, em vias de evoluo, e o facto do seu crescimento nun dado sentido permitir, melhor que longos raciocinios elucidar a questo fundamental da verdadeira natureza desta filosofia. Julga-se um homem no por aquilo que diz ou pensa de si prprio, mas pelos seus actos. Os filsofos devem ser julgados no pelas etiquetas que arvoram (positivismo, filosofia da experincia pura, monismo ou empiriomonismo, filosofia das cincias da natureza, etc.), mas pela maneira como resolvem de facto as questes tericas fundamentais, pelas pessoas com que andam de mo dada, por aquilo que ensinam
e ensinaram aos seus alunos e discpulos11
.
Desta passagem destacaremos trs regras: 1a regra: Julga-se um
homem no por aquilo que diz ou pensa de si prprio, mas pelos seus atos.
11 LENIN, Materialismo e Empiriocriticismo. Lisboa, Estampa, pg. 194. No empiriokrititsizm, kk vsikoie idenoie tetchinie, iest vichtch jivia, rastchtchaia, rasviviuchtchaiasia, i fakt rest ievo v tom li inm napravlnii ltchche, tchm dlnnye rassujdinia, pomjet rejit osnovni vopros o nastoichtchei sti toi filosofai. O tchelovikie sudiat nie po tom tchto on o sibi govort li dmaet a po delam ivo. O Filosofakh nado suditnie po tiem vvieskam, kotryie on smi na sebi navichivaiut (pozitivzm, filosfia Tchstovo pyta, monzm ali empiriokrititsizm, filosfia estistvoznaniai t. p), a po tomu, kak uni na diele rchaiut osnovnyie teorettcheskie voprocy, s kiem on idt ruk b ruku, tchem oni utchat i tcheru on nautchli svoikh utchenikov i posfdovatelei. LENIN, Materializm
14
Os filsofos devem ser julgados no pelas etiquetas que ostentam
(positivismo, filosofia da experincia pura, monismo ou empirimonismo,
filosofia das cincias da natureza, etc..), mas pela maneira como resolvem na
prtica as questes tericas fundamentais. 2a regra: pelas pessoas com quem
compartilham as mesmas idias. 3a regra: por aquilo que ensinam e lograram
ensinar seus discpulos e adeptos.
Destas regras cabem alguns breves comentrios a cerca da traduo
da segunda. A edio espanhola de Obras Escogidas efetua a seguinte
traduo: ... pelas pessoas com quem fazem causa comum12. A edio
portuguesa de Materialismo Empiriocriticismo, efetua a seguinte traduo:
pelas pessoas com quem andam de mo dada13. Consultando o dicionrio
de C. I. Ojegov14, encontramos as seguintes variantes da passagem em
questo, isto , ... s kiem on idt ruk b ruku:
1a) Com quem eles cerram fileiras.
2a) Com os que seguem os mesmos ideais.
3a) Com os que abraam as mesmas idias.
Parece-nos que a opo pela traduo mais adequada no pode ser
feita de modo metafisico, mas sim pela contextualizao da passagem em
pauta, da segunda regra, no ao p da letra, mas atendo-se ao esprito da
obra. Nessa perspectiva parece-nos mais pertinente interpret-Ia como
significando o compartilhar idias filosficas em comum, e no uma afinidade
i Empiriokrititsizm. Vol. XVIII, pg. 228.
12 LENIN, Obras Escogidas em Doce Tomos. Moscou, Progresso, 1976; vol. IV, pg.
213.
13 LENIN, Materialismo e Empiriocriticismo. Lisboa, Estampa, 1975, pg. 194.
14 Moscou, Ed. Lngua Russa, 1984.
15
de matiz poltico. Objetivando alicerar esta interpretao consideremos, num
primeiro momento, Materialismo e Empiriocriticismo em seu conjunto. Nos
captulos anteriores ao IV Lenin no somente considera a maneira como os
filsofos resolvem na pratica as questes tericas fundamentais (1 regra),
mas tambm alem de desenvolver criativamente o Materialismo Dialtico,
demonstra a identidade de Mach e Berkeley na soluo da questo ontolgica
fundamental (a relao entre o ser e o pensamento), a adeso de Mach na
questo da causalidade a Hume, etc.... Enfim estabelece relaes de
proximidade, para no dizer de identidade, entre a filosofia de Mach e outros
sistemas filosficos (como os de Berkeley e Hume).
Desse modo, como assinalamos, a segunda regra refere-se no a
defesa de uma causa poltica comum, a um cerrar fileiras no sentido poltico,
se bem que como mostraremos mais adiante as teses filosficas tem efeitos
polticos, mas sim que uns dos elementos para compreender um filsofo
considerar os demais filsofos que abraam as mesmas idias filosficas.
Esta segunda regra, evidentemente, comandada pela primeira, pois
no se pode estabelecer afinidades e/ou identidades tericas entre os filsofos
sem antes analisar os seus efetivos fazeres tericos (1a regra). Vejamos
agora, em segundo lugar mais uma considerao que refora nossa
interpretao da segunda regra. Assim como na realidade brasileira atual
observvel a coexistncia, dentro de uma mesma organizao poltica, de
Lucksianos, Althusserianos e at de elementos catlicos ligados a teologia da
libertao, na realidade russa, aps a derrota da revoluo de 1905-1907,
conviviam na ala Bolchevique elementos que, filosoficamente inspiravam-se
em Mach (Bogdanov, Bazarov, Lunatcharski e outros), sendo que Lunatcharski
16
tentou mesmo fazer do Marxismo uma nova espcie de religio
(Bogostroitelstvo, isto , a construo de Deus), com quadros materialistas
dialticos.
No plano poltico os bolcheviques, que tentavam conciliar Mach e o
marxismo no plano filosfico, incidiam num desvio de esquerda: retirada dos
representantes da Duma, recusa as formas legais de ao, etc.... Lenin
mantinha com eles no s divergncias tticas, mas tambm filosficas. O que
importa aqui acentuar que em Materialismo e Empiriocriticismo Lenin trata
suas divergncias filosficas com este grupo bolchevique (Otzovistas),
deixando em segundo plano as mencionadas divergncias tticas. Portanto a
segunda regra metodolgica, enunciada na passagem acima arrolada, refere-
se s relaes de parentesco e/ou identidade entre sistemas filosficos, por
exemplo, a relao Mach-Bogdanov.
Aps estas breves consideraes, que afiguram-se-nos um tanto
redundantes e bvias, explicitaremos mais detidamente as trs regras
metodolgicas em pauta. A primeira delas parece-nos inspirada na seguinte
passagem celebre do Prefcio a Contribuio para a Crtica da Economia
Poltica:
Assim como no se julga um indivduo pela idia que ele faz de si
prprio, no se poder julgar uma tal poca de transformao pela sua conscincia de si: preciso, pelo contrrio, explicar esta conscincia pelas contradies da vida material, pelo conflito que existe entre as foras produtivas sociais e as relaes de
produo15
.
Bem entendido, Lenin no condicionar mecanicamente, como fazem
15 MARX, Contribuio para a Crtica da Economia Poltica. Lisboa, Estampa, 1971,
17
os economicistas, o sistemas filosficos s contradies da vida material,
mas retm da proposio de Marx a idia de que um sistema filosfico, a
conscincia de si, no pode ser julgada pr ela mesma, do mesmo modo que
que no se julga um indivduo pela idia que ele faz de si prprio. bvio
que Lenin no desconsidera a importncia das contradies da vida material
na determinao da conscincia filosfica, to bem ilustrada pr Marx, no
incio da Introduo Crtica da Economia Poltica, aonde ele relaciona as
robinsonadas e o contrato social de Rousseau, o surgimento de sistemas
filosficos e da economia da poltica clssica, que partiam do indivduo
isolado, s condies econmicos sociais da sociedade burguesa que no
sculo XVIII caminhava as passos de gigante para sua maturidade16.
Objetivaremos efetuar uma leitura no economicista da primeira
regra metodolgica enunciada por Lenin. Vejamos inicialmente o mutatis
mutandi que Lenin parece-nos opera na proposio de Marx do Prefcio a
Contribuio para a Crtica da Economia Poltica, transcrita acima. O
significado real desta regra da prtica filosfica Leninista est em que na
anlise do sistema filosficos o essencial no , valendo-nos de uma
distino, efetuada por Ruy Fausto, o visar (meinen), mas sim o pr (setzen).
Em outros termos, freqentemente ocorre que o dizer (visar, meinem)
contraria o fazer terico (pr, setzen); que algum no discurso diz o contrrio
do que faz teoricamente17. Nesta perspectiva Lenin nos diz que o fundamental
considerar no as etiquetas, mas a maneira pela qual os filsofos
pg. 29.
16 Id., op. cit., pp. 211-212.
17 FAUSTO, R., Marx, Lgica & Poltica. So Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 69 e ss.
18
resolvem na prtica as questes tericas fundamentais18. Esta regra Leninista
no aplicada somente na anlise do sentido em que evoluiu o
empiriocriticismo, objeto do item 4 do captulo IV, mas tem um alcance geral,
permeando toda obra, na medida em que os trs primeiros captulos abordam,
respectivamente, como os empiriocriticistas resolvem efetivamente a questo
ontolgica fundamental (captulo 1), como resolvem realmente a questo
gnosiolgica (captulo 2), e como abordam teoricamente a questo da
ontologia da natureza (captulo 3). Acrescente-se ainda que essa mesma
considerao do efetivo fazer terico dos filsofos ocorre nos demais
captulos.
claro que a obra Leninista no se limita a uma anlise crtica
puramente imanente do fazer terico dos empiriocriticistas, sendo
simultaneamente positiva, isto , desenvolvendo criativamente o materialismo
dialtico. Neste ponto crucial considerar que Lenin no relaciona
mecanicamente (de modo economicista) os sistemas filosficos, como supem
alguns que Marx preceituaria na citao do Prefcio Contribuio feita
acima, s contradies da vida material, ou seja, no explica em Materialismo
e Empiriocriticismo, de modo mecnico, a conscincia filosfica pelo conflito
entre as foras produtivas e as relaes, o que fazem os economicistas
ancorados, na maioria das vezes, em uma postura anti-dialtica de
descontextualizao da tese de Marx em questo. Visando captar o sentido
preciso da regra metodolgica Leninista em considerao, efetuaremos duas
ordens de razes.
18 LENIN, op. cit, edio portuguesa, pp.194.
19
Em primeiro lugar observemos que o marxismo-leninismo no um
economicismo (ser ainda mister precisar isto!), que o nvel econmico
determinante em ltima instncia, sendo que o nvel terico possui uma
autonomia relativa. Althusser demonstrou isto a exausto em sua obra,
lembremos de passagem sua crtica contundente ao economicismo em Pour
Marx19 no captulo Contradiction et surdetermination. Entretanto, de
Althusser, reteremos aqui, a fim de fundamentar a autonomia do nvel
terico, somente uma passagem significativa da Sustentao de Tese em
Amiens20, aonde na seco A ltima Instncia ele efetua, valendo-se da
noo deste tipo de determinao em ltima instncia, a seguinte leitura
da tpica marxista do Prefcio Contribuio.
Na determinao da tpica, a ltima instncia exatamente a ltima instncia. Se ela a ltima, como na imagem jurdica que a sustenta, porque h outras que se figuram na superestrutura jurdico-poltica e ideolgica. A meno da ltima instncia na determinao tem, por conseguinte uma dupla funo: ela demarca radicalmente Marx de todo mecanicismo, e inaugura na determinao o papel das diferentes instncias, o lugar de uma diferena real onde se inscreve a dialtica. A tpica significa ento que a determinao em ltima
instncia pela base econmica s pode ser pensadas em um todo diferenciado, logo complexo e articulado (a Gliedefung), onde a determinao em ltima instncia fixa a diferena real das outras instncias, sua autonomia relativa e seu prprio modo de eficcia
sobre a base21
.
Correndo o risco de ser redundante, o que no entanto parecenos
pertinentes na medida em que mostramos em nossa tese de mestrado
muito corrente confundir o marxismo-leninismo com certos determinismos
sociolgicos burgueses, arrolaremos mais duas passagens: a primeira de
19 ALTHUSSER, L., Pour Marx. Paris, Maspero, 1967.
20 Id., Sustentao de tese em Amiens in Posies, Graal, 1978.
21 Id., op. cit., pg. 141.
20
Engels, em uma carta a Joseph Bloch, datada de 21 de setembro de 1890,
aonde ele nos adverte contra o economicismo recorrendo a categoria de
ao recproca, e a segunda de Gramsci onde ele enfatiza a autonomia do
nvel terico, considerando que o marxismo no exclu a histria tico -
poltica:
Cabe a Marx e a mim mesmo, parcialmente, a responsabilidade pelo fato de que os jovens, muitas vezes, dem mais peso do que o devido ao lado econmico. Diante de nossos adversrios, que o negavam, era-nos necessrio sublinhar o princpio essencial negado por eles, e ento ns no encontrvamos sempre o tempo, o lugar nem a ocasio para dar seu lugar aos outros fatores que participam na ao recproca. Mas, a partir do momento em que se tratava de apresentar um perodo da Histria, isto , de passar aplicao prtica, a coisa mudava e no havia erro possvel. O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte, de Marx, fornece uma ilustrao exemplar de anlise histrica apresentada em toda a sua
complexidade dialtica22
.
Portanto, como os textos acima citados evidenciam, se bem que uma
leitura mecanicista do marxismo seja possvel a partir de certas passagens da
Ideologia Alem, existe uma autonomia relativa do nvel terico, o que
possibilita o tratamento relativamente autnomo das obras tericas. Este
tratamento relativamente autnomo dos fatos culturais foi claramente
assinalado por Gramsci na seguinte passagem:
... a filosofia da prxis exclui ou no a histria tico-poltica, isto , reconhece ou no a realidade de um momento de hegemonia, d ou no importncia direo cultural e moral, julga ou no os fatos da superestrutura como aparncias? Pode-se dizer que no s a filosofia da prxis no exclui a histria tico-poltica, mas, ao contrrio, sua mais recente fase de desenvolvimento consiste precisamente na reivindicao do momento de hegemonia como essencial sua concepo estatal e valorizao do fato cultural, da atividade cultural, de uma frente cultural como necessria, ao lado
das frentes meramente econmicas e polticas23
.
22 ENGELS, Carta a Joseph Bloch in MARX & ENGELS, Antologia Filosfica. Lisboa, Estampa, 1971, pp. 198 ss.
23 GRAMSCI apud WERNECK SODR, Fundamentos do Materialismo Histrico. Rio
21
Em segundo lugar, embora Materialismo e Empiriocriticismo realize
uma anlise aparentemente imanente do empiriocriticismo no dizer de Lenin,
tomado em separado (vziatyi v otdielnosti), nos trs primeiros captulos
iniciais, veremos ao considerar a segunda regra metodolgica que a prtica
filosfica Leninista no se limita somente este aspecto. A partir do captulo
IV Lenin, retomando uma tradio filosfica que remonta Engels que distinguia
a ala esquerda e ala direita dos hegelianos24, formula de modo mais
explcitos as relaes da filosofia com a poltica, distinguindo posies
filosficas de esquerda e de direita em relao Kant. Dissemos de modo
mais explicito, pois a relao da filosofia com a poltica permeia toda a
obra. Como veremos mais adiante Lenin coloca a filosofia como uma luta
poltica entre dois campos fundamentais (materialismo e idealismo).
Este conceito de filosofia desenvolvido por Lenin foi formulado por
Althusser, que, superando sua fase teoricista que reduzia a filosofia a uma
epistemologia (Teoria da prtica terica), define, em junho de 1972, a
filosofia como sendo em ltima instncia, luta de classe na teoria25.
Faamos um rodeio necessrio a fim de explicitar mais
detalhadamente esta tese, digamos, Leninista-Althusseriana, e,
simultaneamente compreender mais precisamente o significado real da
regra metodolgica leninista que privilegia o fazer terico (Setzen), na
anlise dos sistemas filosficos que, como procuraremos mostrar no
de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1968, pp. 21-22.
24 Cf. ENGELS, Ludwig Feurhach e o Fim da Filosofia Clssica Alem in MARX &
ENGELS, Obras Escolhidas, So Paulo, Alfa-Omega, vol. III, pp. 176-177.
25 ALTHUSSER L., Resposta a John Lewis. Lisboa, Estampa, 1973, pg. 17.
22
pode ser confundida com uma anlise imanente de tipo estruturalista.
somente aps haver demonstrado na abordagem da questo ontolgica
fundamental (cap. I), na anlise da questo gnoseologica (cap. II), na
considerao da ontologia da natureza (cap. III), no enfoque das relaes
do empiriocriticismo com outras correntes filosficas e no seu
desenvolvimento histrico (cap. IV), enfim nas questes filosf icas postas
pela nova fsica (cap. V), em suma somente aps demonstrar que em
todos esses passos existe uma batalha entre dois campos fundamentais -
idealismo e materialismo - que Lenin pode concluir no item 4 do cap. VI,
captulo este dedicado s relaes de oposio entre empiriocriticismo e
materialismo histrico, a importncia fundamental do espirito de partido
em filosofia.
Em outros termos a tese da filosofia como sendo uma luta entre
dois partidos fundamentais uma concluso que decorre das
demonstraes efetuadas em desenvolvimentos anteriores da obra, vindo,
portanto, no justo lugar na ordem expositiva. Podemos dizer que Lenin realiza
uma verdadeira prtica terica, pois como diz Althusser falando da verdadeira
cincia: ... podemos empregar a admirvel frmula de Espinosa, quando dizia
que a cincia das meras concluses no cincia; que a verdadeira cincia
das premissas (princpios) e das concluses, no movimento integral da
demonstrao de sua necessidade26. Observemos, de passagem, que
demonstraes destes gneros abundam nas obras cientficas de Marx, por
exemplo, no Capital, aonde a compreenso da forma dinheiro do valor
26 ALTHUSSER L., Prctica terica y Lucha Ideolgica, Cuademos de Pasado y Presente, n 4, pg. 69.
23
pressupe a teoria do valor trabalho, teoria esta que possibilita em seguida a
compreenso das diferentes formas de valor, a saber, a fortuita ou simples, a
extensiva ou total, a geral, para finalmente desembocar nas searas do
fetichismo da mercadoria e do dinheiro.
O papel fundamental na diviso da filosofia em dois partidos ou
campos desempenhado principalmente, mas no somente, pela soluo
dada ao problema ontolgico fundamental, que por isso mesmo, mas tambm
por razes referentes justa disposio filosfica das questes, objeto do
primeiro captulo, problema este que comporta duas solues:
Deve-se conceder a primazia natureza, matria, ao fsico, ao universo exterior e considerar como elemento secundrio conscincia, o espirito, a sensao (a experincia segundo a terminologia divulgada dos nossos dias), o psquico, etc.., tal a questo capital que continua na realidade a dividir os filsofos em
dois grandes campos27
.
O que est em jogo na filosofia , portanto, a luta entre as tendncias
fundamentais (materialismo e idealismo) que se manifestam numa dupla
dimenso: com as cincias e com a poltica. Trata-se, em ltima instncia de
uma luta de classes na teoria relacionada com esses dois domnios.
Explicitemos essas relaes.
Primeiramente vejamos a luta entre materialismo e idealismo no que
concerne ao conhecimento cientfico. Esta luta como procuraremos mostrar
em nossa tese, percorre todo Materialismo e Empiriticismo, principalmente o
capitulo V dedicado anlise filosfica da revoluo da fsica. Por ora
consideremos, a titulo de ilustrao, a anlise de leninistas dessas posies
27 LENIN, Materialismo e Empiriocriticismo, op. cit., pg. 302.
24
conflitantes relativamente a um problema ainda no resolvido pelas cincias.
O materialismo coloca claramente este problema incitando, por isso mesmo,
sua soluo e a novas investigaes experimentais28. A doutrina de Mach
obscure esse problema, desservindo s cincias.
Vejamos mais de perto este problema. Ele consiste na questo de
saber at que ponto esto espalhadas as sensaes no mundo orgnico e
inorgnico. Em outros termos trata-se da questo da origem das sensaes.
Mach, aferrado s sensaes como dado primeiro confunde esta questo. Ele
nos diz:
... a sensao deve aparecer imprevistamente a partir de um certo grau de complicao da matria ou deve existir, por assim dizer, nas prprias bases do edifcio. Esta questo, a nosso ver, errnea quanto ao fundo. Para ns, a matria no o dado primeiro. Este dado primeiro de preferncia representado pelos elementos (a que
se chama sensaes num certo sentido bem determinado)29
.
Como vemos, a concepo de Mach relativamente ao dado primeiro
que o impede de formular claramente a questo em causa. A concepo
Leninista, ao contrrio, serve as cincias.
... de pleno acordo com as cincias da natureza considera a matria como o dado primeiro, e a conscincia, o pensamento, a sensao
como o dado secundrio, porque a sensao s est ligada, na sua forma mais ntida, a formas superiores de matria (a matria orgnica), e apenas se pode supor nos fundamentos do prprio edifcio da matria a existncia de uma propriedade anloga sensao
30.
Atravs da anlise desse problema, Lenin nos mostra como o
materialismo dialtico relaciona-se com as cincias, incentivando as
28 LENIN, op. cit., pg. 37.
29 Mach apud LENIN, op. cit, pg. 36.
30 Id., ib..
25
investigaes experimentais no sentido de solucionar os problemas ainda
pendentes. Em sentido contrrio trabalha o idealismo, obscurecendo os
problemas e desviando as cincias das investigaes pertinentes.
Althusser tratando da relao da filosofia com as cincias considera,
em A Filosofia como arma da revoluo, esta relao como o aspecto
principal da luta filosfica. Com efeito, ele nos diz:
O que, em ltima instncia, est em jogo na luta filosfica a luta pela hegemonia entre as duas grandes tendncias das concepes do mundo (materialista, idealista). O principal campo de batalha desta luta o conhecimento cientfico: a favor ou contra ele. Assim, pois, a batalha filosfica n 1 se d na fronteira entre o cientfico e o
ideolgico. As filosofias idealistas que exploram as cincias lutam aqui contra as filosofias materialistas que servem as cincias
31.
Parece-nos, ao contrrio, como o prprio subttulo de Materialismo e
Empiriocriticismo indica (notas crticas sobre uma filosofia reacionria), que se
o aspecto poltico no o principal pelo menos equivalente em importncia
relao filosofia - cincias. Concebendo o aspecto poltico como principal
compreende-se, em grande parte porque Lenin mostra exaustivamente, na
obra em questo, principalmente no captulo IV, a relao de parentesco
terico seno de identidade dos empiriocriticistas com os imanentes, que so
reacionrios explicitamente assumidos. A esse respeito Lenin observa:
... os imanentes so os reacionrios mais calejados, pregadores comprovados do fidesmo, conseqentes no seu obscurantismo. No
se encontra nem um entre eles, que no tenha abertamente consagrados os seus trabalhos tericos, mais completos sobre a gnoseologia defesa da religio e justificao desta ou daquela
sobrevivncia da Idade Mdia32
.
31 ALTHUSSER, L., La Filosofia: Arma de Ia Revolucion in Para leer El capital. Buenos Aires, Siglo Veintiuno, pg. 9, grifo de Althusser.
32 LENIN, op. cit., pp. 189-190.
26
Alm das relaes com os imanentes, Lenin trata das relaes de
proximidade e/ou identidade entre os empiriocriticistas e a filosofia de
Berkeley, Hume, Kant, etc.. Este procedimento metodolgico constitui o
segundo preceito da prtica filosfica leninista, ou seja, julga-se os filsofos
tambm pelas pessoas com quem compartilham as mesmas idias. Em outros
termos esta regra estipula a necessidade de considerar, na anlise filosfica
as relaes de parentesco, identidade, ou filiaes tericas entre os diferentes
filsofos. baseado neste preceito que Lenin demonstra no captulo 1 a
repetio textual de Berkeley efetuada por Mach, a repetio do esse est
percipi, ou seja, a reduo do ser as sensaes, sendo a matria considerada
como um puro smbolo abstrato33.
Voltemos agora questo do vnculo entre filosofa e poltica,
ponto essencial para uma adequada compreenso da primeira regra
metodolgica. A este respeito remetemos o leitor a brilhante
demonstrao dos efeitos cientficos, e, principalmente dos efeitos
polticos das teses filosficas que Althusser desenvolve em Resposta a
John Lewis34.
Nosso objetivo abordar em nossa tese, alm das relaes da
filosofia com as cincias, o campo de batalha especificamente poltico da
filosofia. De momento, objetivando alicerar o predomnio da luta poltica,
que est contido na definio da filosofia como sendo, em ltima
instncia, a luta de classes na teoria vejamos, a ttulo de ilustrao, mas
33 LENIN, op. cit., pg. 34.
34 ALTHUSSER, L., Resposta a John Lews, op. cit., pp. 47 ss.
27
no de modo to breve, pois afigura-se-nos foroso evidenciar na relao
filosofia - poltica os efeitos polticos das teses filosficas. Nesse sentido
esboaremos em anexo alguns traos que nos parecem fundamentais do
humanismo terico e subseqentemente consideraremos alguns dos seus
efeitos polticos.
At aqui enfocamos as duas primeiras regras metodolgicas
Leninistas de anlise de sistemas filosficos. Detivemo-nos mais na
primeira a fim de evitar possveis desvios, que poderiam advir de sua
descontextualizao, quer seja, considerando-a como prescrevendo uma
anlise puramente imanente de tipo estruturalista, isto , interpretando-a
como certa ideologia estruturalista que durante muito tempo foi dominante
do Departamento de Filosofia da USP, quer seja, os desvios derivados de
leituras economicistas e/ou mecanicistas do marxismo.
Esclarecido esse ponto, acrescentemos que simultaneamente
a formulao das duas primeiras regras, traamos alguns parmetros que
devero orientar nossa tese, na medida em que baseando-se no
instrumental terico Leninista-Althusseriano privilegiaremos a relao da
filosofia com a poltica e com as cincias, na nossa anlise de
Materialismo e Empiriocriticismo.
Finalmente, a terceira regra metodolgica refere-se ao
desenvolvimento dos sistemas filosficos uma vez que o
empiriocriticismo ,... como qualquer outra tendncia ideolgica, uma
coisa viva em dias de crescimento, em vias de evoluo, e o fato do
seu crescimento num dado sentido permitir, melhor que longos
28
raciocnios, elucidar a questo fundamental da verdadeira natureza
desta filosofia35. Mas precisamente deve-se julgar os filsofos por
aquilo que ensinam e ensinaram seus alunos e discpulos, ou seja,
considerar seu desenvolvimento como corrente filosfica.
E este o ltimo preceito que Lenin enuncia e aplica no item
4 do captulo IV. Nesta perspectiva antes de encetar a anlise do
sentido que evoluiu o empiriocriticismo, Lenin efetua a seguinte
especificao:
Mach e Avenarius disseram tudo que era essencial h mais de vinte anos. Este lapso de tempo permitiu que nos apercebssemos da maneira como estes chefes foram compreendidos por aqueles que os quiseram compreender e que eles prprios consideram (Mach pelo menos, que sobreviveu ao seu confrade) como continuadores da sua obra. No indicaremos para sermos exatos, seno aqueles
que se dizem os alunos (os discpulos) de Mach e de Avenarius, e aos quais Mach reconhece esta qualidade. Teremos assim uma
corrente filosfica, e no uma coleo de casos literrios36
.
Concluiremos aqui nossa reflexo deixando para outra ocasio
a anlise que Lenin desenvolve de Hans Cornlius, Hans Kleinpeter,
Tziehen e P. Carus, todos eles, discpulos reconhecidos de Mach e
Avenrius, todos eles idealistas, alguns beirando as raias do
obscurantismo religioso como, por exemplo, P. Carus. Enfim a
considerao do desenvolvimento de uma corrente filosfica essencial
para elucidar a questo fundamental da verdadeira natureza desta
filosofia.
35 LENIN op. cit., pg. 194.
36 LENIN, op. cit., pp. 194-195, grifo de Lenin.
29
CAPTULO II
A ILUSO DE NOVIDADE: COMO CERTOS MARXISTAS REFUTAVAM O
MATERIALISMO EM 1908 E CERTOS IDEALISTAS O FAZIAM EM 1710
Lenin desfaz, na abertura de Materialismo e Empiriocriticismo37, a
iluso de novidade dos discpulos russos de Mach em relao ao
empiriocriticismo recorrendo Histria da Filosofia. Este recurso Histria da
Filosofia, principalmente a Berkeley, no casual, mas necessrio na
introduo da obra, pois como assinala Lenin:
Teremos por mais de uma vez, no desenvolvimento da nossa exposio, de nos referir a Berkeley e a corrente que este fez nascer na Filosofia, porque os discpulos de Mach apresentam erradamente tanto a atitude de Mach em relao a Berkeley como a essncia da
filosofia deste ltimo38
.
Podemos dizer que a introduo da obra tem uma dupla funo:
desfazer a iluso de novidade dos discpulos de Mach no que tange ao
empiriocriticismo e delinear, num esforo preambular necessrio, alguns temas
fundamentais da obra. Esta dupla funo realizada atravs da demonstrao
da seguinte tese, que Lenin enuncia na concluso dessa abertura:
os discpulos modernos de Mach no apresentaram contra os materialistas nenhum, mas literalmente nenhum, argumento que no
se tivesse podido encontrar j no Bispo Berkeley39
.
Lenin inicia a demonstrao dessa tese abordando o problema
37 LENIN, Materialismo e Empirocriticismo. Lisboa, Estampa, 1975.
38 Id., op. cit., pg. 16.
30
ontolgico fundamental, isto , a questo da relao entre o ser e o
pensamento, entre a matria e a conscincia. O primeiro passo dessa
demonstrao consiste em formular o argumento dos discpulos de Mach
contra o materialismo. Vejamos esta compacta enunciao:
Os materialistas, dizem-nos, reconhecem o impensvel e o incognoscvel, a coisa em si, a matria colocada para alm da experincia, para alm do nosso conhecimento. Caem num verdadeiro misticismo admitindo qualquer coisa para alm, que est situada fora dos limites da experincia e do conhecimento. Quando declararam que a matria agindo sobre os rgos dos nossos sentidos suscita sensaes, os materialistas baseiam-se no desconhecido, no nada, pois que eles mesmos, dizem, reconhecem os nossos sentidos como a nica fonte do conhecimento. Os
materialista caem no kantismo...40
.
Aparentemente essa argumentao visa to somente Plekanov, que
admite a existncia da coisa em si. Na realidade dirigi-se contra o materialismo
em geral, pois, todos materialistas admitem a existncia da coisa em si,
somente que esta conceituada no no sentido Kantiano, mas Leninista, e,
mister recorrer a Berkeley para desfazer a pretensa novidade desses
enunciados. A anlise leninista do Tratado sobre os Princpios do
Conhecimento Humano considera a soluo de Berkeley ao problema
ontolgico fundamental e sua polemica com os materialistas. Reproduziremos
este recurso leninista a Berkeley.
No pargrafo 1 do Tratado est o ponto de partida de Berkeley, que
consiste nas
idias (1) atualmente impressas nos sentidos, ou (2) percebidas considerando as paixes e operaes do esprito, ou finalmente (3) formadas com auxlio da memria e da imaginao, compondo, dividindo ou simplesmente representando as originariamente apreendidas pelo modo acima referido.
39 Id., op. cit., pg. 30.
40 Id., op. cit., pg. 16.
31
Desse modo as coisas consistem em colees de idias.
Por exemplo, um certo sabor, cheiro, cor forma e consistncia observados juntamente so tidos como uma coisa, significada pelo nome ma. Outras colees de idias constituem uma pedra, uma rvore, um livro etc., e, como so agradveis ou desagradveis, excitam as paixes de amor, alegria, repugnncia, tristeza e assim
por diante41
.
No pargrafo 2, Berkeley introduz a noo de Eu, de alma. Alm das
idias ou objetos do conhecimento existe aquilo que as percebe; o eu ou alma.
No pargrafo 3, aparece a clebre mxima, Esse est percipi, tese
fundamental do idealismo subjetivo. A partir da, j no pargrafo 4, Berkeley
investe contra os materialistas e contra a opinio do senso comum da maioria
da humanidade, que admitem a existncia das coisas independentemente das
sensaes. Lenin cita na ntegra este pargrafo, convindo, pois, arrol-lo:
Entre os homens prevalece a opinio singular de que as casas, montanhas, rios, todos os objetos sensveis tm uma existncia natural ou real, distinta da sua perceptibilidade pelo esprito. Mas, por mais segura aquiescncia que este princpio tenha tido no mundo, quem tiver coragem de discuti-lo compreender, se no me engano, que envolve manifesta contradio. Pois que so os objetos mencionados seno coisas percebidas pelos sentidos? E que percebemos ns alm das nossas idias ou sensaes? E no repugna admitir que alguma ou um conjunto delas possa existir
impercebido?42
.
Desse modo, para Berkeley, absurdo ir alm das sensaes e idias,
absurdo admitir a existncia das coisas exteriores a ns, por detrs dos
dados dos sentidos no h, como julgam os materialistas, a matria. Berkeley
ironiza a posio materialista dizendo:
Podem, se assim o quiserem, usar a palavra matria onde outros
41 BERKELEY, Tratado sobre os Princpios do Conhecimento Humano. So Paulo, Abril, 1973, 1.
42 BERKELEY, op. cit., 4.
32
empregam a palavra nada43
.
Depreende-se dessa compulso dos textos de Berkeley, nos diz Lenin,
que
os argumentos de Bazarov contra Plekanov sobre a existncia possvel das coisas exteriores a ns, sem ao sobre os nossos sentidos, no diferem em nada, como o leitor v, dos argumentos de
Berkeley contra os materialistas...44
.
Lenin refora ainda que a noo de coisa em si no uma noo
exclusivamente kantiana, tem sido j elaborada por Berkeley, como podemos
verificar recorrendo ao pargrafo 24 do Tratado onde o autor sublinha que a
opinio que ele refuta (a dos materialistas) reconhece a existncia absoluta
das coisas sensveis em si (objects in themselves) ou exteriores ao esprito45.
As longas citaes de Berkeley, arroladas por Lenin, visam no
somente desfazer a iluso de novidade do empiriocriticismo, partilhada pelos
discpulos russos de Mach, mas tambm, como dissemos anteriormente,
delinear temas essenciais a compreenso da obra. Desse modo, ao tratar da
soluo que Mach d ao problema ontolgico fundamental relao entre o ser
e o pensamento , no captulo primeiro, Lenin nos remete a Berkeley
constatando um ponto de partida comum a Mach: ambos partem das
sensaes como dado fundamental e no, com faz o materialismo, do universo
exterior para as sensaes.
Lenin prossegue mostrando que a eliminao das idias de substncia
e matria, no tem nada de novo, j tendo sido efetuada por Berkeley. Assim
no pargrafo 37, Berkeley sentencia:
43 BERKELEY apud LENIN, op. cit., pg.19.
44 LENIN, op. cit., pg.18.
45 BERKELEY, op. cit. 24.
33
Se se entende a palavra substncia no sentido vulgar combinao de qualidades sensveis como extenso, solidez, peso e outras no podem acusar-me de neg-la. Mas, tomada no sentido filosfico suporte de acidentes ou qualidades fora do esprito , ento concordo que a rejeitei, se pode falar-se em rejeitar o que nunca teve
existncia nem na imaginao46
.
Uma outra pretensa novidade dos discpulos de Mach investir contra
a duplicao do mundo efetuada pelos materialistas. Lenin desfaz essa iluso
de novidade compulsando a seguinte passagem de Berkeley:
O nosso conhecimento foi obscurecido, perturbado, desviado at ao excesso na via dos erros mais perigosos pela hiptese da dupla existncia das coisas sensveis, particularmente da existncia inteligvel ou da existncia na inteligncia, por um lado, e por outro
lado, da existncia real, exterior inteligncia47
.
O princpio da Economia do Pensamento e a Filosofia como concepo
do mundo fundamentada no princpio do menor esforo, enunciados,
respectivamente por Mach e Avenarius, j se encontram na obra de Berkeley,
como depreende-se do pargrafo 96 do Tratado:
Expulsa da natureza a matria, varrem-se muitas noes mpias e cticas e um nmero incrvel de disputas e enigmas, que foram espinhos no lado de telogos e filsofos, e deram humanidade tanta obra intil que se os nossos argumentos em contrrio no forem demonstrativos (como a mim me parecem), estou certo de que os amigos do conhecimento, paz e religio tm razo para desejar
que o fossem48
.
Encontramos ainda uma analogia, para no dizer identidade, entre a
manobra dos positivistas modernos, que tentam apresentar sua filosofia como
aceitvel pelo senso comum e pelas cincias e a manobra berkeleyana
efetuada no pargrafo 34, onde respondendo a acusao de solipsismo o
Bispo Berkeley no diz que sua filosofia No nos priva de coisa alguma na
46 BERKELEY, op. cit. 37.
47 Berkeley apud LENIN, op. cit., pg. 20.
48 BERKELEY, op. cit., 96.
34
natureza. Mais ainda, em outro passo, Berkeley afirma:
No contexto de maneira nenhuma a existncia de uma coisa, qualquer que seja, que possamos conhecer por meio dos nossos sentidos ou do nosso entendimento. Que as coisas que vejo com os meus olhos e toco com as minhas mos existem, que existem na realidade, no tenho disso menor dvida, A nica coisa que negamos a existncia a que os Filosfos chamam matria ou substncia
material49
.
Outra teoria que remonta a Berkeley o emprio-simbolismo do
positivista moderno P. Iuchkevitch. Anotemos que as concepes referentes a
causalidade, bem como o princpio da economia do pensamento sero tratados
no terceiro captulo de Materialismo e Empiriocriticismo, aonde Lenin ope a
ontologia da natureza marxista s concepes idealistas. A concepo de
causalidade de Berkeley, que ser retomada pelos emprio-simbolistas,
aparece claramente exposta no pargrafo 66 do Tratado, onde se l:
... as coisas quando abrangidas na noo de causa cooperadora ou concorrente na produo dos efeitos so inexplicveis e conduzem a absurdos grandes; e, quando vistas apenas como marcas ou sinais para informao nossa, se explicam simplesmente e tm uso prprio e bvio; procurar eses sinais institudos pelo Autor da Natureza, tal deve ser o esforo do filsofo natural; e no o pretender explicar
coisas por causas corpreas...50
.
Lenin, repitamos, considerar no terceiro captulo a questo da
causalidade. Por hora, ele somente demonstra-nos que de novidade a
concepo emprio-simbolista deste problema no tem nada, tratando-se de
mera adaptao da concepo de Berkeley.
Concluindo esse retorno a Berkeley, Lenin considera mais dois
aspectos de suas concepes. Primeiramente a questo da distino entre
realidade e fico, e, em segundo lugar, a definio das tendncias
49 Berkeley apud LENIN, op. cit., pg. 21.
50 BERKELEY, op. cit., 66
35
fundamentais da Filosofia.
No que se refere ao primeiro aspecto, Berkeley, recusando-se a
reconhecer a existncia das coisas fora da conscincia, relaciona o conceito de
real percepo de sensaes idnticas por vrias pessoas simultaneamente.
Assim o modo de ajuizar da realidade da transformao da gua em vinho
se todos os que estavam mesa tivessem visto o vinho, se lhe tivessem sentido o cheiro, se tivessem bebido e lhe tivessem sentido o gosto, se tivessem experimentado o seu efeito, a realidade desse
vinho estaria para mim fora de dvida51
.
No que concerne a definio das tendncias fundamentais da filosofia,
Berkeley formula, em Trs Dilogos entre Hilas e Filonous52, da seguinte forma
a diferena entre sua concepo e a dos materialistas:
Afirmo como vs (os materialistas) que se alguma coisa atua de forma sobre ns, temos de admitir foras existindo exteriormente (a ns), foras pertencentes a um ser diferente de ns. O que nos separa aqui o problema de saber de que ordem esse ser poderoso. Afirmo que o esprito; vs, que a matria ou no sei que (posso acrescentar que tambm no o sabeis) terceira
natureza53
.
Esta definio de Berkeley pertinente quando se trata de idealismo
objetivo, que reconhece uma realidade alm da conscincia e das sensaes,
mas de carter espiritual. A definio de Engels, consoante a leitura de Lenin
de Ludwig Feuerbach, mais ampla, aplicando-se tanto ao idealismo objetivo
como ao subjetivo. Engels divide, neste livro, a filosofia em dois grandes
campos: os materialistas que consideram a matria, a natureza como
primordial, sendo a conscincia derivada, e, os idealistas que consideram o
inverso. Lenin termina, dessa forma, o recurso a Berkeley nessa abertura, que
51 Berkeley apud LENIN, op. cit., pg. 24.
52 Cf. BERKELEY, Trs dilogos entre Hilas e Filonous em oposio aos cticos e ateus, So Paulo, Abril, 1973, pp. 51-125.
36
objetivou, como dissemos anteriormente, desfazer a iluso de novidade
compartilhada por Mach e seus discpulos, bem como delinear alguns temas
fundamentais da obra. Os demais momentos desta introduo consistiro em
considerar Hume e depois Diderot como ilustraes das tendncias
fundamentais da filosofia, que sero tratadas constantemente em toda obra54.
A ttulo de concluso, e correndo o risco de ser redundante, frisemos
que a tarefa de desfazer a iluso de novidade dos discpulos russos em relao
ao empiriocriticismo seguiu uma marcha necessria. Foi mister recorrer a
longas citaes da obra de Berkeley para comprovar textualmente como,
parafraseando o ttulo da introduo, certos idealistas refutavam o materialismo
em 1710, e, certos marxistas o fazem em 1908.
53 Berkeley apud LENIN, op. cit., pp. 24-25.
54 LENIN, op. cit., pp. 25-26.
37
CAPTULO III
O PROBLEMA ONTOLGICO FUNDAMENTAL: O SER E A CONSCINCIA
1 As sensaes e os complexos de sensaes
O problema central, atacado por Lenin, no captulo primeiro a
questo ontolgica fundamental, a relao entre o ser e o pensamento. O
captulo inicia-se (item I) por uma anlise das concepes de Mach em 1872 e
de Avenarius em 1876 acerca desse problema. No item 2, desse primeiro
captulo, tratar-se- das posteriores modificaes que esses autores efetuaram
em suas concepes, em particular da introduo do termo elementos por
Mach.
Se Lenin recorre, neste primeiro item, Mecnica55, que data de 1883,
e a Conhecimento e Erro56, trabalho recapitulativo e final de Mach, somente
na medida em que servem para esclarecer as posies filosficas iniciais de
Mach (1872).
Lenin considera, primeiramente, que os dados fundamentais para Mach
no so as coisas ou os corpos mas as cores, os sons, as presses, os
espaos, as duraes...57, numa palavra, as sensaes. Em seguida observa-
se uma pequena digresso de Lenin acerca da Teoria do Reflexo, cuja
abordagem, entretanto, remetida para a devida ocasio e lugar58, ou seja,
55 March apud LENIN, op. cit., pg. 24.
56 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 30.
57 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 31.
58 LENIN, op. cit., pg. 33.
38
para o segundo captulo. No momento trata-se das duas vias fundamentais de
filosofia no que concerne ao problema ontolgico fundamental, isto , ser
preciso partir das coisas para a sensao e o pensamento? Ou ser melhor ir
do pensamento e da sensao para as coisas?59. A primeira perspectiva
constitui o materialismo, enquanto que a segunda, escolhida por Mach, a via
idealista.
considerando essa problemtica que se impe um retorno as fontes
de Mach. Ambos, Berkeley e Mach, consideram que, sendo as sensaes os
dados fundamentais, os corpos so complexos de sensaes, ou, como dizia
Berkeley combinao de sensaes. Segue-se dessas premissas o esse est
percipi, e, conseqentemente no se pode admitir a existncia das coisas e de
outros homens, mas somente de si prprio, puro solipsismo.
Lenin considera o idealismo subjetivo, o solipsismo, como uma
decorrncia lgica de considerar-se as sensaes e no as coisas como o
ponto de partida. Lenin assinala, vrias vezes, esses pontos de partida
diametralmente opostos, essas duas vias fundamentais da filosofia. A ttulo de
exemplo ilustrativo arrolaremos a seguinte passagem:
... preciso substituir a tendncia da vossa filosofia (que consiste em partir das sensaes para o universo exterior) pela tendncia materialista (que consiste em partir do universo exterior para as
sensaes) ...60
.
As longas citaes de Berkeley efetuadas na abertura justificam-se
plenamente, elas evidenciam que no s os discpulos russos de Mach, mas
tambm ele prprio, so vtimas da iluso de novidade. O esse est percipi de
Berkeley consiste em reduzir o ser percepo, ou, como faz Mach, em
59 Id., ib..
39
declarar sensao tudo que , os verdadeiros elementos do mundo. Nesse
sentido a doutrina de Mach ... apenas idealismo subjetivo, cpia da teoria de
Berkeley61.
Dissemos nesse sentido, pois Lenin no ignora as diferenas,
absolutamente secundrias, de Mach em relao a Berkeley. A ttulo de
exemplo, no pargrafo 2 do Tratado Berkeley considera que alm dos objetos
do conhecimento existe aquilo que os percebe: a inteligncia, o esprito, a
alma ou o Eu, enquanto que Mach, seguindo Hume, considera o Eu, o sujeito,
um feixe de sensaes.
Lenin insiste em evidenciar este elemento fundamental da filosofia de
Mach, o idealismo subjetivo, recorrendo a seguinte passagem da anlise das
sensaes:
Temos diante de ns um corpo pontiagudo S. Quando tocamos a ponta, pondo-a em contato com o nosso corpo, sentimos uma picada. Podemos ver a ponta sem experimentar a picada. Mas quando experimentamos a picada, encontramos a ponta. Assim, a ponta visvel o elemento constante, e a picada um elemento acidental que pode, segundo as circunstncias, estar ou no estar ligado ao elemento constante. A freqncia de fenmenos anlogos habitua, finalmente, a considerar todas as propriedades dos corpos como aes emanado desses elementos constantes e atingindo o nosso Eu por intermdio do nosso corpo, aes a que chamamos
sensaes62
.
Aps esta caracterizao dos elementos constantes (coisas) e das
sensaes, Mach empreende a eliminao dos primeiros:
Mas, por isso mesmo, os elementos constantes perdem todo o seu contedo sensvel e tornam-se puros smbolos de pensamento
63.
A argumentao de Lenin relativamente a essas passagens de Mach
60 LENIN, op. cit., pg. 46.
61 LENIN, op. cit., pg. 33.
62 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 33.
40
desenvolve-se em trs planos. O primeiro ponto que Lenin, contrariamente a
Mach, se apia nas cincias da natureza e no materialismo espontneo da
humanidade:
os homens habituam-se a colocar-se no ponto de vista do materialismo, a ver nas sensaes os resultados da ao dos corpos, das coisas, da natureza, sobre os nossos rgos dos sentidos. Este hbito nefasto para as filosofias idealistas (adotado por toda a humanidade e por todas as cincias da natureza!) desagrada muito a
Mach64
.
O segundo plano consiste em mostrar a iluso de novidade da filosofia
de Mach comparando-a com Berkeley. Lenin nos diz, a respeito da
considerao de Mach acerca dos elementos constantes como puros smbolos
do pensamento: repetio textual dos ditos de Berkeley, segundo o qual a
matria um puro smbolo abstrato65.
Finalmente, o terceiro plano o argumento de Mach em si mesmo e de
sua cada no idealismo subjetivo.
[Mach] no reconhece que a realidade objetiva existindo independentemente de ns muito simplesmente o nosso contedo sensvel, s lhe resta o Eu puramente abstrato, o Eu com uma maiscula, e em itlico, o cravo em delrio imaginando-se nico no mundo. Se o contedo sensvel das nossas sensaes no o mundo exterior, pois porque no existe nada fora desse Eu
completamente nu...66
.
Desse modo, como Lenin procurou evidenciar, analisando a passagem,
acima arrolada, da Anlise das sensaes, o solipsismo de Mach uma
repetio do de Berkeley. O mundo s feito de nossas sensaes, tornando-
se intil a hiptese de elementos constantes, isto , das coisas, da matria.
Lenin considera inapropriado dizer nossas sensaes, antes preciso dizer
63 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 34.
64 LENIN, op. cit., pg. 33.
65 LENIN, op. cit., pg. 34.
41
que para Mach o mundo feito s das minhas sensaes. E isto porque
se a hiptese do mundo exterior intil, a da agulha existindo independentemente de mim e de uma interao entre o meu corpo e a ponta da agulha, se toda essa hiptese verdadeiramente intil e suprflua, , em primeiro lugar, intil e suprfluo por a hiptese da existncia dos outros homens. Apenas Eu existo, enquanto que os outros homens assim como todo o mundo exterior caem na categoria
dos elementos constantes inteis67
.
Lenin evidencia, dessa forma, a conexo lgica entre as premissas
berkeleyanas de Mach e o solipsismo. Entretanto Mach vacila na manuteno
do idealismo subjetivo, como Lenin ilustra recorrendo a seguinte passagem da
Anlise das Sensaes:
Se eu pudesse ou se algum pudesse, com a ajuda dos diversos processos fsicos e qumicos, observar o meu crebro na altura em que experimento uma sensao, seria possvel determinar a que processos que se efetuam no organismo esto ligadas estas ou
aquelas sensaes...68
.
A hiptese de que as nossas sensaes esto ligadas determinados
processos que se do no organismo humano em particular no crebro
formulada do ponto de vista das cincias da natureza. Lenin no descarta, mas
aponta a contradio entre as premissas Berkeleyanas de Mach e tal hiptese:
Comea-se por decretar que as sensaes so os verdadeiros elementos do mundo, e constri-se nesta base um berkeleysmo original; depois introduzem-se dissimuladamente idias opostas, segundo as quais as sensaes esto ligadas a determinados
processos que se efetuam no organismo69
.
Lenin, antes de concluir essa primeira anlise de Mach, relativamente
ao problema ontolgico fundamental, aborda um problema ainda no resolvido
pelas cincias. O materialismo coloca claramente este problema incitando, por
66 Id., ib..
67 Id., ib..
68 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 35.
69 LENIN, op. cit., pg. 35.
42
isso mesmo, sua soluo e a novas investigaes experimentais70. No
repetiremos aqui, a explicitao desse problema e da atitude de materialismo
dialtico em relao ele.
Lenin conclui, finalmente, esta primeira anlise de Mach enfocando a
seguinte passagem de Conhecimento e Erro:
Enquanto no existe nenhuma dificuldade em construir (aufzubauen) qualquer elemento fsico com sensaes, quer dizer, com elementos psquicos, absolutamente impossvel imaginar-se (Ist Keine Moglichkeit Abzusehen) a possibilidade de se representar (Darstellen) um estado psquico com a ajuda dos elementos, quer dizer, com a ajuda de massas e de movimentos, em uso na fsica
moderna...71
.
O que Lenin ressalta nesta passagem o evidente idealismo de Mach,
apesar de j utilizar uma terminologia nova (a palavra elementos, cujo
significado ser esmiuado no item II deste captulo). Esse idealismo est em
admitir que se pode construir elementos fsicos com sensaes, com
elementos psquicos. Tais construes, observa Lenin, so
certamente fceis, porque so puramente verbais, porque so apenas escolstica oca servindo para introduzir fraudulentamente o
fidesmo72
.
Aps esta anlise das concepes iniciais de Mach, Lenin enfoca a
primeira obra de Avenarius, publicada em 1876, a saber, A Filosofia,
Concepo do Mundo Segundo o Princpio do Menor Esforo. Prolegmenos
Crtica da Experincia Pura73. O idealismo dessa obra reconhecido pelo
prprio Avenarius, que em a Concepo Humana do Mundo74 escreve:
70 LENIN, op. cit., pg. 37.
71 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 37.
72 LENIN, op. cit., pg. 38.
73 Apud LENIN, op. cit., pg. 31.
74 Apud LENIN, op. cit., pg. 32.
43
o leitor do meu primeiro trabalho sistemtico, A filosofia, etc, pensar imediatamente que vou tentar tratar os problemas que comporta a crtica da experincia pura partindo antes de mais nada do ponto de vista idealista, mas a esterilidade do idealismo filosfico fez-me duvidar de que meu primeiro caminho fosse o bom
caminho75
.
Lenin observa, antes de adentrar nos meandros da primeira obra de
Avenarius, que o idealismo desta geralmente admitido na literatura filosfica.
Lenin ilustra esta observao recorrendo a Cawelaert, autor francs que
qualificava o ponto de vista de Avenarius, tal como aparece nos Prolegmenos,
de idealismo monista . Entre os autores alemes Lenin apela para o
testemunho de Rudolf Willy, discpulo de Avenarius, que considera que
na sua juventude e sobretudo na sua primeira obra de 1876, Avenarius estava inteiramente subjugado (ganz im banne) por aquilo
a que se chama o idealismo gnosiolgico76
.
Com efeito, prossegue Lenin, o idealismo dos Prolegmenos,
evidencia-se quando consideramos suas formulaes explcitas. Nele
Avenarius sentencia que s a sensao pode ser concebida como existente77.
No pargrafo 116 da obra em questo, Avenarius reduz o ser a sensao:
Reconhecemos que o ser (das selende) uma substncia dotada de sensibilidade; retirada a substncia... Resta a sensao: o ser ser, ento, concebido como uma sensao desprovida de qualquer
substrato estranho sensao (nichts empfindungsloses)78
.
Aps comprovar compulsando o prprio texto do autor, a concepo
idealista do primeiro Avenarius, Lenin cita uma longa passagem da obra em
questo, onde o autor investe contra a concepo materialista de sensao
como ligao da conscincia com o mundo exterior, como transformao da
75 Avenarius apud LENIN, op. cit., pp. 38-39.
76 Willy apud LENIN, op. cit., pg. 39.
77 Avenarius apud LENIN, op. cit., pg. 39.
78 Avenarius apud LENIN, op. cit., pg. 39.
44
excitao num fato de conscincia, considerando-a, ao invs disso, como o
nico dado existente, o que lembra, de imediato, Berkeley. Esta longa citao,
nos diz Lenin, proposital para que o leitor possa ver verdadeiramente de que
pobres sofismas se serve a filosofia empiriocriticista moderna79. Antes de
desmacarar o sofisma de Avenarius, Lenin ope a ele a concepo de
Bogdanov, quando este era materialista, e escrevia a respeito das sensaes:
Desde a antigidade at os nossos dias, o costume, em psicologia descritiva, consiste em dividir os fatos de conscincia em trs grupos: as sensaes e as representaes, os sentimentos, os impulsos... O primeiro grupo comporta as imagens dos fenmenos do mundo exterior ou interior, tomadas em si mesmas pela conscincia... Semelhante imagem chamada sensao quando diretamente suscitada, por meio dos rgos dos sentidos, por um fenmeno exterior correspondente. Um pouco mais adiante Bogdanov precisa: a sensao... surge na conscincia a seguir a um impulso do meio exterior, transmitido pelos rgos dos sentidos. Ou ainda em cada momento do processo da sensao, a energia da excitao exterior
transforma-se num fato da conscincia80
.
baseado nesta concepo materialista da sensao como
transformao da energia da excitao exterior num fato de conscincia,
transformao esta observada milhares de vezes por cada pessoa e
efetivamente observada a cada instante, que se pode desmascarar o sofisma
Avenarius, na longa passagem citada por Lenin, que consiste em considerar
a sensao no como um lao entre a conscincia e o mundo exterior, mas como um tabique, como uma parede separando a conscincia do mundo exterior; no como a imagem de um fenmeno exterior correspondente sensao, mas como o nico
dado existente81
.
Mais ainda, o sofisma de Avenarius baseia-se tambm no fato da
cincias psicolgicas de ento possurem um conhecimento insuficiente das
79 LENIN, op. cit., pg. 40.
80 Bogdanov apud LENIN, op. cit., pg. 41.
81 LENIN, op. cit., pp. 41-42.
45
condies das ligaes observadas entre a sensao e a matria organizada,
fato este que leva Avenarius a admitir somente a existncia da sensao.
Antes de passarmos a concluso deste primeiro item, observemos que
a questo gnosiolgica, a questo da considerao da sensao como reflexo,
no constitui para Lenin, consoante a leitura que Dominique Lecourt faz de
Materialismo e Empiriocriticismo82, uma questo propriamente filosfica, mas
sim da alada das cincias psicofisiolgicas e da cincia da histria
(Materialismo Histrico), pertencendo regio da histria que tem por objeto o
processo de produo de conhecimentos. Lecourt fundamenta esta tese
arrolando a seguinte passagem de Lenin:
Uma coisa saber como que, com a ajuda dos diferentes rgos dos sentidos, o homem percebe o espao e como que durante um longo desenvolvimento histrico, se forma a partir das percepes, a idia abstrata de espao; outra coisa saber se uma realidade objetiva, independente da humanidade, corresponde a essas percepes e a essas idias humanas. Esta ltima questo, se bem que seja a nica questo filosfica propriamente dita, no foi notada nela por Bogdanov sob uma confuso de investigaes de detalhe respeitante a primeira questo; em conseqncia, este no pode opor nitidamente o materialismo de Engels doutrina confusa de
Mach83
.
Este texto , para Lecourt, decisivo: ele evidencia que a questo da
aquisio de idias abstratas no propriamente filosfica, levando a
concluso que um problema que cabe as ciencias psicofisiolgicas, e, em
especial, ao materialismo histrico. Diferentemente dessa perspectiva,
Althusser considera, em Pour Marx84, a questo do processo de produo de
conhecimentos como sendo a prpria filosofia. O materialismo dialtico , para
ele, a teoria do processo de produo de conhecimentos, a teoria da prtica
82 LECOURT, D., Une crise et son enjeu, op. cit.
83 LENIN, op. cit., pg. 166.
84 ALTHUSSER, Pour Marx, op. cit., pp. 163 ss.
46
terica. Limitemo-nos por ora, a constatar estas duas posies aparentemente
conflitantes, deixando para uma anlise posterior, quando abordarmos o
segundo captulo, que versa sobre a questo gnosiolgica (teoria do reflexo),
seu exame mais detalhado.
Mas, antes de voltarmos a nossa anlise, convm notar, de modo
breve, que a concepo de Lecour no impede de formular teses filosficas
acerca da teoria do reflexo, de procurar demonstrar que o reflexo leninista um
reflexo sem espelho85. Algum poderia ler nisto uma contradio pois,
segundo Lecourt, a questo gnosiolgica, pertence ao domnio das cincias. A
contradio desaparece na medida em que concebermos como imprescindveis
s cincias uma propedutica filosfica.
Finalmente, para terminar esta digresso, observemos que Lenin
estabelece a justa ordem das questes, tanto na ordem expositiva como na
lgica, colocando em primeiro lugar a questo ontolgica, objeto do primeiro
captulo, e situando a questo gnosiolgica em seu papel subordinado
relativamente a primeira questo. (A teoria do reflexo ser tratada no segundo
captulo). Veremos, mais adiante, que o dispositivo filosfico idealista
caracteriza-se por operar uma inverso da justa ordem leninista, subordinando
a questo ontologica questo gnosiolgica.
Voltemos a nossa anlise. Lenin conclui este item inicial, que consistiu
em dois momentos, a anlise das concepes de Mach em 1872 e as de
Avenarius em 1876, com breves consideraes sobre representantes ingleses
e franceses de tendncias afins ao empiriocriticismo.
Do lado ingls, destaca-se Karl Pearson, do qual Mach declara
85 LECOURT, op. cit., pp. 42 e 55.
47
explicitamente aprovar em todos os pontos essenciais as suas concepes
gnosiolgicas86. Pearson considera as impresses dos sentidos como a
nica realidade, no reconhecendo para alm delas coisa alguma. A
genealogia de Pearson provm, como observa Lenin, de Berkeley e Hume.
Mais adiante ver-se- que a filosofia de Pearson distingue-se da de Mach por
uma coerncia muito maior e mais profunda87.
Do lado dos franceses, cabe mencionar Pierre Duhen e Henri Poincar,
com os quais Mach se solidariza. Estes dois autores sero analisados no
captulo V, consagrado Nova Fsica. No momento basta mencionar que para
Poincar as coisas so srie de sensaes e que Duhen emite opinio
anloga.
2 A descoberta dos elementos do mundo
Neste item Lenin analisa, inicialmente, a pretenso de Mach de superar
a contradio materialismo-idealismo atravs da introduo do termo
Elementos. Lenin enfoca as consideraes de Mach sobre os Elementos na
Mecnica:
As cincias da natureza s podem representar os complexos de elementos a que chamamos vulgarmente sensaes. Trata-se das ligaes existentes entre esses elementos. A ligao entre A (calor) e B (chama) do domnio da Fsica; a ligao entre A e N (nervos)
do domnio da Fisiologia88
.
Desse modo, se consideramos a cor
do ponto de vista da sua dependncia da retina [...] estamos em presena de um objeto psicolgico, de uma sensao, mas essa mesma cor ser um objeto fsico, por exemplo, quando a estudamos
86 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 42.
87 LENIN, op. cit., pg. 42.
88 Mach, Mecnica, apud LENIN, op. cit., pg. 43.
48
do ponto de vista da sua dependncia da fonte luminosa89
.
Essa longas citaes eram necessrias para mostrar como Mach, com
a palavra elementos, a exemplo dos anarquistas, no dizer de Engels,
pretende modificar as coisas modificando-lhe os nomes. Pretende, como nos
diz Lenin, com palavras afastar
a contradio entre o fsico e o psquico, entre o materialismo (para o qual a matria, a natureza o dado primeiro) e o idealismo (para o qual o esprito, a conscincia, a sensao que o dado
primeiro)90
.
Lenin no desconhece que a terceira via de Mach baseia-se na
considerao de uma suposta neutralidade de elementos da experincia em
relao as definies do fsico e do psquico, que dependeriam apenas das
ligaes da experincia. O que Lenin questiona justamente a utilizao da
palavra elementos, que designa na realidade as sensaes, enquanto que
Mach pretende superar o exclusivismo do idealismo reservando o termo
sensaes penas para o aspecto psquico. A terceira via de Mach peca, como
dissemos, por tentar modificar as coisas modificando-lhe o nome. Lenin insiste
neste ponto:
seria pueril acredita que se possam ladear graas inveno de um novo vocbulo as principais corrente da filosofia
91.
A soluo do problema ontolgico fundamental da filosofia comporta
duas vias: primado do ser sobre a conscincia (materialismo) , ou primado da
conscincia sobre o ser (idealismo). Uma pretensa terceira via que postula,
no dizer de Bogdanov que a verdade no se encontra entre as correntes que
89 LENIN, op. cit., pg. 44.
90 Id., ib..
91 LENIN, op. cit., pg. 45.
49
se entrechocavam, mas fora delas, leva inevitavelmente ao ecletismo92.
Lenin demonstra o ecletismo de Mach e Avenarius apoiando-se na
literatura filosfica da poca e numa anlise percuciente das semiconcesses
de Mach e Avenarius ao materialismo.
A concepo de Avenarius sobre as sries dependente e independente
da experincia introduz sub-repticiamente o materialismo em sua filosofia.
Bogdanov explicita esta concepo de Avenarius nas seguintes termos:
Os dados da experincia criam na medida em que dependem do estado de um dado sistema nervoso, o mundo psquico de uma dada personalidade, e na medida em que tomamos os dados da experincia fora dessa dependncia, estamos perante o mundo fsico. Por isso, Avenarius designa estes dois domnios da experincia como a srie dependente e a srie independente da
experincia93
.
Ora, no diz Lenin:
esta doutrina da srie independente (das sensaes humanas) introduz sub-repticiamente o materialismo na praa, de maneira ilegtima, arbitrria e ecltica do ponto de vista da filosofia para a qual os corpos so complexos de sensaes, sendo as prprias sensaes idnticas aos elementos do fsico. Com efeito, desde o momento em que se reconhece a existncia das fontes luminosas e das ondas luminosas independentemente do homem e da conscincia humana, sendo a cor condicionada deste modo pela ao destas ondas na retina, adota-se de fato a concepo materialista e destroem-se at aos alicerces todos os fatos indubitveis do idealismo, com todos os complexos de sensaes, de elementos descobertos pelo positivismo moderno e outros
absurdos do mesmo gnero94
.
Quanto ao ecletismo de Mach, Lenin enfoca passagens de
Conhecimento e Erro, ltima obra deste autor. Lenin aponta, em primeiro lugar,
a inconsistncia entre as seguintes proposies de Mach:
No h nenhuma dificuldade em construir qualquer elemento fsico
92 LENIN, op. cit., pg. 51.
93 Bogdanov apud LENIN, op. cit., pg. 49.
94 LENIN, op. cit., pg. 49.
50
a partir de sensaes, quer dizer dos elementos psquicos.
As relaes independentes do U (Umgrenzung, quer dizer os limites espaciais do nosso corpo) constituem a fsica no sentido mais lato da palavra.
Para definir estas relaes no estado puro necessrio excluir tanto quanto possvel a influncia do observador, quer dizer, dos
elementos situados no interior do U95
.
A inconsistncia est entre a afirmao inicial de construo dos
elementos fsicos com os elementos psquicos e a proposio de que os
elementos fsicos se encontram fora dos limites dos elementos psquicos
situados dentro do nosso corpo96.
A inconsistncia apontada acima est relacionada ao problema
ontolgico fundamental, objeto deste captulo, entretanto a seguir Lenin analisa
uma passagem de Mach referente a questo gnosiolgica, que ser objeto do
segundo captulo. Esta sbita mudana de plano justifica-se na medida em que
no momento trata-se de demonstrar o ecletismo de Mach, suas
semiconcesses ao materialismo. A seguinte passagem de Mach, referente a
questo gnosiolgica, uma ilustrao de sua vacilao em relao ao
idealismo:
No existe um gs perfeito (ideal), um lquido perfeito, um corpo perfeitamente elstico; o fsico sabe que as suas fices s correspondem aproximadamente aos fatos, que os simplificam arbitrariamente; conhece este afastamento que no pode ser
evitado97
.
Nesta passagem Lenin enxerga uma semiconcesso a teoria do reflexo
pois Mach
ao tratar das questes de fsica esquece a sua prpria teoria, raciocina com simplicidade, sem sutilezas idealistas, quer dizer como
95 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 53.
96 LENIN, op. cit., pg. 53.
97 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 53.
51
materialista: ento todos os complexos de sensaes e todas estas sutilezas Berkeley desaparecem. A teoria dos fsicos torna-se um reflexo dos corpos, dos lquidos e dos gases existindo exteriormente a ns, e este reflexo tem, claro, um valor aproximado, sem que se possa, no entanto, qualificar como arbitrria esta aproximao ou
esta simplificao98
.
A dmarche Leninista mostra o ecletismo de Mach e Avenarius
valendo-se, como dissemos anteriormente, de um duplo recurso: a anlise
direta das concepes desses autores e considerao da literatura filosfica da
poca. Vimos o primeiro aspecto desta demonstrao, vejamos agora o
segundo.
Antes de nos determos nos filsofos considerados por Lenin, convm
observar que o contedo dos dois primeiros itens desse primeiro captulo, que
primeiramente enfoca as concepes idealistas iniciais de Mach e Avenarius
(item I), para somente depois analisar suas concepes maduras no item II
(que so eclticas e fazem semiconcesses ao materialismo), encontra apoio
na literatura filosfica da poca. Como nos diz Lenin
Assim como o idealismo primitivo de Mach e Avenarius universalmente reconhecido na literatura filosfica, assim se reconhece que o empiriocriticismo se esforou em seguida por se
orientar no sentido do materilaismo99
.
Vejamos agora os filsofos a quem Lenin recorre.
Lenin arrola, primeiramente, o autor francs Cauwelaert que constata
o fato inegvel de nos Prolegmenos (1876) de Avenarius a sensao ser considerada como a nica realidade, a substncia eliminada [...] e, na Crtica da Experincia Pura, o fsico ser considerado como a srie independente, o psquico e, por
conseqncia as sensaes, como a srie dependente100
.
Em seguida Lenin recorre a Rudolf Willy, aluno de Avenarius,
98 LENIN, op. cit., pg. 54.
99 LENIN, op. cit., pg. 50.
100 Cauwelaert, sintetizado por LENIN, op. cit., pg. 50.
52
que admite tambm que este ltimo completamente idealista em 1876, trabalhou mais tarde na conciliao desta doutrina com o realismo ingnuo, quer dizer com o ponto de vista materialista, instintivo e inconsciente, da humanidade que admite a existncia do
mundo exterior independentemente da nossa conscincia101
.
Na seqncia, aparece Oscar Ewald, autor de um livro sobre
Avenarius, Fundador do Empiriocriticismo, que considera que o
empiriocriticismo alia os elementos contraditrios do idealismo e do
realismo102.
Finalmente, em apoio de sua tese, Lenin considera W. Wundt. A
opinio desse autor apresenta um interesse maior, pois foi o que analisou,
talvez, o empiriocriticismo com maior ateno103. Lenin descreve a estrutura
da obra desse autor e nos aponta sua concluso que
o empiriocriticismo no seu conjunto uma mistura variada (Bunte Mischung) em que as diferentes partes constituintes no tm nenhum
lao entre si (Ansich Einander Vollig Hetergensid)104
.
Trata-se, portanto, de um ecletismo, de uma mistura de idealismo e
materialismo. Cabe perguntar qual o sentido dessa corrente, desse ecletismo,
dessa terceira via. Lenin conclui esse segundo item com uma resposta a esta
questo:
... As correes feitas por Mach e Avenarius ao seu idealismo prim