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“Eu pensava que filho era bom, mas filho não é bom não”: articulações entre
maternidade, gênero e pobreza ( ou a história de Eni)
Tânia Maria Gomes da Silva1
Resumo: Este trabalho pretende uma discussão acerca da maternidade tomando como
suporte de reflexão os depoimentos de Eni, moradora da periferia de Mandaguari,
pequena cidade do noroeste do Paraná. O trabalho busca articular as categorias gênero e
classe social na tentativa de compreender como conciliar as dificuldades de ser mãe
numa situação de pobreza com os estereótipos valorativos da maternidade, tida como
“uma benção” na vida das mulheres. Mesmo que a fala de Eni caminhe na contramão
deste discurso enaltecedor, sua prática vivencial nos deixa perceber que gerar filhos é
quase uma “sina”, um destino colado ao corpo feminino. Ainda que novas conjunturas
sociais venham remodelando o papel da mulher, romper com o estereótipo que vincula
de maneira definitiva mulher e maternidade não é tarefa fácil.
Considerações Iniciais:
Em 2007, concluída a minha tese de doutorado sobre mulheres das camadas
populares que viviam em união conjugal não legalizada - também chamadas uniões
consensuais, uniões estáveis ou, mais comumente, amigamento - acreditei ter finalizado
um ciclo de discussões2. O término do doutoramento foi para mim, e suponho que o seja
para muitas e muitos, um período de ressaca. Parecia-me que tudo o que havia a ser
dito já o fora e embora não tenha deixado de sentir a inevitável sensação de vazio que
nos acompanha ao término de toda atividade de pesquisa, me dei por satisfeita com os
resultados. Era hora de “voltar à vida”. Reintegrada à rotina docente eu me confrontava
vez ou outra com questões que me instigavam a um olhar mais apurado, mas nada que
me tentasse a uma nova proposta investigativa até que, em 2012, num quase
“passatempo”, reli as antigas entrevistas coletadas para a pesquisa e que traziam, sem
qualquer alteração ou recortes, tudo o que me havia sido confidenciado por vinte
mulheres das camadas populares de Mandaguari, município localizado no eixo
1 Doutora em História pela UFPR, professora da Faculdade Metropolitana de Maringá e da Faculdade
Cidade Verde, presidente-fundadora da Comunidade Social Cristã Beneficente, entidade filantrópica que
atende famílias das camadas populares, desenvolvendo projetos nas áreas de educação e cultura. 2 Especialização em História (UEL, 1996) e Mestrado em História (UEM/UEL, 2000) discutindo uniões
consensuais entre casais das camadas populares. Doutorado em História (UFPR, 2007).
2
Maringá-Londrina, fundado na década de 1920, quando do processo de expansão da
economia cafeeira no chamado norte-novo paranaense.
Quanto mais me aprofundava nesta releitura, mais me surpreendia com o fato de
que, instadas a falar sobre aspectos ligados à conjugalidade, o que os depoimentos
dessas mulheres enfatizavam de maneira muito evidenciada eram suas experiências de
vivência da maternidade. Ali estavam as queixas sobre as dificuldades enfrentadas para
criar os filhos numa situação de pobreza; a pouca participação dos companheiros no
processo de maternagem; os métodos contraceptivos; a dor com a perda dos filhos,
fosse por um processo natural de morte, fosse por perca da guarda; as lembranças da
infância, os sonhos e as expectativas quanto ao futuro de suas crianças. Enfim, as
entrevistas, relidas, me mostraram histórias que eu não havia escutado. Julguei, pois,
procedente voltar a elas.
História oral e memória
A presente pesquisa, inserida numa perspectiva dos estudos de gênero3 e tendo
como suporte teórico-metodológico a história oral, objetivou investigar o que a
maternidade representava para um grupo de vinte mulheres, com idades variáveis dos
17 aos 71 anos, moradoras da periferia, com baixo grau de escolaridade e sem inserção
no mercado formal de trabalho4. Todas eram mães e a média foi de 3,4 filhos por
mulher. Aqui, optei por apresentar e discutir o depoimento de Eni, 66 anos à época da
última entrevista, viúva, analfabeta, mãe de sete filhos, moradora de um dos bairros
mais pobres da cidade e que embora recebesse uma pequena pensão também recorria à
mendicância para sobreviver.
A metodologia utilizada neste trabalho faz uma interação entre memória e
história. Segundo Seixas (2004), deixar que os excluídos falem de si é uma vertente
historiográfica que desde a década de 1980 tem conquistado cada vez mais adeptos,
desde que a historiografia tomou consciência de que a relação história-memória, embora
3 Gênero é aqui entendido seguindo definição de CONNEL e PEARSE (2015, p. 46): “o termo gênero
significa a diferença cultural entre homens e mulheres, baseada na divisão entre machos e
fêmeas”.Aposta, portanto, em diferença historicamente construídas e não biologicamente dadas. 4 Apenas uma era empregada doméstica, ainda que sem registro; as demais eram trabalhadoras rurais,
chamadas bóias-frias; coletoras de material reciclável; diaristas, pensionistas ou viviam de ajuda de filhos
e parentes.
3
não deixe de apresentar conflitos e tensões, é feita também de proximidades.
Guardávamos, pesquisadora e pesquisadas, muitas distâncias, é verdade, mas os
encontros foram sempre pautados pela busca de uma relação de respeito. Não busquei
em nenhum instante forjar com estas mulheres uma cumplicidade cultural que eu não
tinha. Elas, por sua vez, me receberam em suas casas com muito amor e carinho,
falando-me de suas vidas numa entrega quase infantil, como se buscassem na figura da
pesquisadora uma solução para alguns de seus conflitos. Como me disse certa vez uma
das entrevistadas, nós pesquisadores e pesquisadoras, por sermos da Universidade,
podemos fazer alguma coisa por eles, os pobres. Neste sentido, vale a pena refletir sobre
a importância de fazer com que pesquisas que se utilizam da história oral com
indivíduos das camadas subalternas, possam, efetivamente, servir para lhes trazer, de
algum modo, melhorias de vida5.
Não esperei encontrar uma “versão verdadeira” nas histórias que ouvi. Tive
sempre a consciência de que, trabalhando com a memória, eu estava,
incondicionalmente, lidando com discursos. Daí mais me importar captar as
representações que se ocultam (ou tentam se ocultar) nas entrelinhas das falas. Portanto,
o encontro entre informante e pesquisador não foi pautado pela busca do “real”, mas
antes um diálogo que permitiu o reconhecimento da diversidade dos sujeitos, com
assinalam Venson e Pedro (2012).
Ainda que eu não seja defensora de uma linha de interpretação “pós-moderna”6 no
qual o real é desconsiderado e a “verdade” tida como de menor importância, parti do
entendimento de que, no processo dialógico do “falar de si/ouvir”, estabelecido entre
entrevistador-entrevistado, há ocultações conscientes e inconscientes, repressões,
associações, contradições, tornando toda entrevista uma maneira do sujeito se
“inventar” e de se “recriar” (PORTELLI, 2010). Deste modo, não idealizei, de maneira
ingênua, que a imaginação estivesse de todo ausente dos depoimentos. Todo
5 Como presidente da Comunidade Social Cristã Beneficente, entidade filantrópica, iniciei um projeto de
literatura, esporte e cultura para atender crianças das camadas populares, muitas delas filhos ou netos de
algumas entrevistadas. 6 Pós-modernistas não concordam que haja uma verdade para ser descoberta ou uma maneira de se
encontrar respostas objetivas para as questões que envolvem a condição humana cf. VENSON, PEDRO,
2012.
4
entrevistado é antes de tudo um sujeito de carne, ossos e sonhos. Sonhos, esta palavra
perigosa que causa calafrios aos historiadores mais tradicionalistas.
Portelli (1997), numa reflexão certeira, assevera que o reconhecimento de
múltiplas narrativas nos protege da crença farisaica e totalitária de que a ciência nos
transforma em depositários de verdades incontestáveis. Estudioso das ciências, Japiassu
(2010), afirma que a verdade, entendida como uma conformidade entre ideia e mundo, é
tão somente uma miragem do espírito. Jamais podemos, diz ele, atingir uma verdade
que se possa acreditar absoluta, mas tão somente reconhecer verdades parciais cujo
alcance e utilidade são aceitáveis segundo o contexto.
Ser ou não ser mãe: eis a questão
Em pesquisa com mulheres faveladas, Cardoso (2011) concluiu que filhos são
fonte de preocupação tanto quanto de alegrias, e é até possível que as mulheres pobres
admitam que talvez vivessem melhor e tivessem menos preocupações se não fossem
mães, mas nenhuma de suas entrevistadas achava que um casal sem filho forma
verdadeiramente uma família. Essa é uma mentalidade muito resistente, ancorada na
crença de que Deus ajuda na criação dos filhos, tidos como “a riqueza dos pobres”. Por
isso, também para Fonseca (2000), embora nas camadas populares ocorra um
movimento no sentido de controlar o número de filhos, isso não deve nos levar a pensar
que ser mãe deixou de ser um desejo e um sonho, porque a noção particular de honra
entre mulheres das classes populares mostra-nos que a sua imagem pública gira quase
exclusivamente em torno de dois pontos: ser uma mãe devotada e desempenhar bens
suas funções de dona de casa.
Minha compreensão é que, ainda que se estabeleça entre as mulheres diferenças
de classe, religião, raça, etnia, sexualidade, a maternidade se constitue num espaço em
que elas parecem comungar uma proximidade. Não se trata de referendar o
essencialismo, essa malfadada explicação para tanta injustiça contra as mulheres, mas
de não fechar os olhos para o fato de que a reprodução é um espaço de aproximação
entre as mulheres independente de outras distinções que possam singularizá-las. Não
por outra razão, a recusa da maternidade é algo que sempre estigmatizou a mulher. E
5
mesmo nos dias de hoje em que tantas conquistas foram feitas, ainda se cobra das
mulheres em idade reprodutiva que sejam mães.
Se o ser homem e o ser mulher são construções histórico-culturais importa pensar
porque em diferentes culturas e sociedades a maternidade tem tamanho peso na vida das
mulheres. É verdade que o lugar e a valorização da maternidade são variáveis,
atendendo a interesses mais amplos, como os econômicos, demográficos e políticos,
mas é também forçoso reconhecer que a despeito de aceitaramos que todo
comportamento é uma construção social, na cultura ocidental a mulher é considerada a
partir de sua natureza biológica e em função de sua capacidade de gerar e parir filhos
(VÉRAS, 2010).
A célebre frase “mãe é mãe” é capaz de levar muitas (e muitos) ao suspiro,
embora, quando friamente analisada, não queira dizer muita coisa. Ao discutir as
práticas de infanticídio e de aborto em Florianópolis, no século XX, Joana Pedro, por
exemplo, nos mostra o lado avesso desse discurso enaltecedor (PEDRO et al, 2003).
Também o aborto, “essa mancha que oxida o belo retrato das mães” (DEL PRIORE,
1993, p. 296), quebra com tanta idealização de que há na mulher uma essência materna
nata7. Sim, há mulheres que não querem ser mães, há mulheres que maltratam e até
matam suas crias, por mais que isto pareça assustador para quem ainda acredita existir
uma natureza feminina idealizada. Neste aspecto, a fragmentação trazida pelos estudos
de gênero8 é salutar no sentido de apresentar mulheres que saem do âmbito da
idealização para o mundo concreto, real. Scott (1990) por exemplo, validou gênero
como uma categoria útil de análise não por meramente descrever a opressão, mas por
trazer possibilidades de transformação na vida de homens e mulheres. Todavia, falar
cada vez mais em gênero não significa, infelizmente, que a crença na existência de uma
“natureza” feminina esteja sendo deixada de lado como gostaríamos. Embora se admita,
como o faz a filósofa Chanter (2011), que a natureza física, material e biológica das
mulheres não as determina, mas que são os costumes, crenças e preconceitos sociais que
prescrevem seus papéis, como esquecer os argumentos naturalizantes que por tanto
7 Estudos a respeito da ocorrência mundial de abortos estimam que cerca de 45 milhões e 500 mil
abortamentos foram realizados em torno de 1995. No Brasil estima-se que ocorreram cerca de 940.660
abortamentos não legais em 1998. Cf. ROCHA & ANDALAFT NETO, 2003.
8 Além de outras variáveis igualmente importantes, como raça/etnia, classe, religião, faixa etária, etc.
6
tempo deram a tônica das discussões sobre o masculino-feminino? Eles ainda têm força
imperativa.
Desde a década de 1980 a maternidade vem sendo estudada com o objetivo de
quebrar com os antigos tabus que insistem ainda em ver toda mulher como mãe em
potencial. Ainda mais, como uma mãe que é portadora de todas as virtudes, capaz de
todas as abnegações em funções de seus filhos e encontrando em Maria, a mãe de Jesus,
seu exemplo maior. Mesmo que trabalhos como os de Badinter (1985) e Forna (1999)
tenham desconstruido mitos, ainda há um largo caminho a ser percorrido antes que
possamos ver a maternidade entendida de maneira mais realista e que se possa,
inclusive, compreender o aumento no número de mulheres que vêm abrindo mão da
maternidade, o que é um fenômeno mundial.
No Brasil, os dados mostram que a taxa de fecundidade da mulher caiu para
1,9. Portanto, abaixo da taxa de reposição, que corresponde a 2,1 filhos, e que garante a
substituição das gerações (IBGE, 2010). Apesar desses números, a não-maternidade
voluntária ainda se caracteriza por uma condição não-normativa.
Deixando de lago a ingenuidade, seria o caso de questionarmos até que ponto
a opção por filhos não é resultado do desejo de se adequar a um modelo que, mesmo
nos dias de hoje, considera a maternidade a mais sublime missão a ser desempenhada
pelas mulheres? Ainda mais profundamente implica pensar se as mulheres conseguem
abrir mão da maternidade sem sofrer com isso uma verdadeira crise de identidade.
(Re) visitando memórias:
As mulheres que entrevistei eram todas mães e a visão delas acerca da
maternidade apresentou uma interessante distinção geracional. Enquanto a mais velhas
insistiam na afirmação de que os filhos tinham sido o que de melhor lhes havia
acontecido numa vida marcada pela pobreza e pelo sofrimento, as mais jovens, em
pleno trabalho da maternagem, foram menos enaltecedoras da experiência, ainda que
não tivessem em momento algum negado a maternidade. O que pude perceber é que
estas últimas, ao contrário das mulheres mais idosas, deram uma grande ênfase ao quão
trabalhoso é criar filhos: dar banho, comprar roupa, levar ao médico, arrumar para a
escola. Isto, somado aos cuidados com a casa e com os maridos/companheiros fazia
7
com que seus dias fossem inteiramente voltados ao cuidado com o outro e ao
esquecimento de si. Mas, o que pude notar é que elas não tinham força para sustentar
este discurso crítico e, portanto, após as lamentações, terminavam sempre por concluir:
“ah, mas meus filhos foram a melhor coisa que me aconteceu”. É como se ao falarem
sobre o lado duro da maternidade estas mulheres se vissem como traidoras da espécie.
Mary Wollstonecraft, em A Vindication of the Rights of Women (1791), mostrava
que a sociedade oitocentista fazia valer a ideia de que as mulheres eram inadequadas à
condição de governantes, embora, ambiguamente, estivessem aptas para exercer função
das mais importantes: criar os filhos (apud CHANTER, 2011).
Por isso é que optei por me deter na fala de Eni9, a única entre as mulheres que
compuseram o corpus documental a se afastar desse discurso valorativo; embora não em
termos concretos, pois é mãe de sete filhos. Deixemos que ela se faça ouvir:
“Não gostava de criança. Não gostava mesmo. E tive
tanto filho. Nunca sonhei ter filho. Aconteceu.
Quando eu ganhei eu falei: “Ah, meu Deus, eu pedi
tanto pro cê [para não engravidar].”
Perguntada se havia tentado algum método contraceptivo Eni informou que
tomava remédio, mas que passava mal. “As porcaria dos comprimido não valeu pra
mim”.
Segundo Vieira (2003), do ponto de vista histórico, a reprodução como uma
escolha só aconteceria mediante o desenvolvimento de tecnologias e ideias sobre a
contracepção. No final da década de 1950, foi introduzido o primeiro medicamento oral,
o Enovid, e, no início dos anos 60, foi aperfeiçoada a tecnologia para a esterilização
feminina, mas até 1970 o planejamento familiar não era uma questão no Brasil. Havia
uma preocupação em ocupar as fronteiras e, além disso, forte influência da Igreja
Católica. O que não impediu que desde 1965 o governo permitisse a proliferação de
clínicas privadas de planejamento e o comércio de contraceptivos. Essas clínicas foram
introduzidas no país por agências como a Sociedade Civil Bem-Estar Familiar
(BEMFAM), filiada à Internacional Planned Parenthood Federation, entre outras. Tais
entidades receberam muitas críticas das feministas, que consideravam que o alcance de
9 Entrevista realizada em 03 de maio de 2013.
8
metas demográficas e não a saúde das mulheres, eram seus verdadeiros objetivos.
(CARVALHO & BRITO, 2006; PEDRO, 2003).10
No que diz respeito à introdução dos contraceptivos hormonais, Joana Pedro
(2003) informa que embora as mulheres das camadas médias tenham aderido
largamente a eles não foram elas o alvo das políticas natalistas e sim as mulheres
pobres. Curiosamente, embora desde os primeiros anos da década de 70 a diminuição da
família brasileira tenha se tornado um fato inconteste, nas camadas mais empobrecidas e
em situação de maior vulnerabilidade, o “crescei-vos e multiplicai-vos”, para desespero
dos tecnocratas, teimava em ser seguido, obrigando esforços no sentido de conter a
explosão populacional. Vale lembrar que embora o debate sobre desigualdade e pobreza
não tivesse muita importância até pelo menos o início da década de 1980, vivíamos,
nesses momentos, com um percentual acima de 50% da população abaixo da linha de
pobreza (CORRÊA, ÁVILA, 2003), o que tornava imperativo, ao menos para alguns, o
controle populacional.
O depoimento de Eni se distingue dos demais à medida em que ela afirma
nunca ter desejado ser mãe e, especialmente, por não recuar desta afirmativa até certo
ponto vista como desabonadora: “Nunca quis ter filhos. Minha mãe até ficava brava
comigo. Fora de brincadeira. Acho que Deus me deu esse castigo (grifo nosso). Queria
ficar livre”.11 Achamos que, ao usar a palavra castigo para se referir aos filhos, ela
desconstrói noções naturalizadas do amor materno e pluraliza formas de significados da
maternidade. Mas, tendo sido mãe sete vezes, evidencia que esse rompimento se faz
mais a nível simbólico do que na prática vivencial.
A vida de Eni é, como ela mesma diz, uma novela. Dos sete filhos, três
nasceram em casa, três no hospital e um teve o nascimento iniciado com parteira, mas
houve complicações e a levaram para o hospital. A primeira filha é resultado de uma
união consensual, o segundo é de pai desconhecido e os demais são de um homem que
ela conheceu quando se tratava num hospital para tuberculosos, em Curitiba. Era com
10 Esta discussão faz parte do trabalho intitulado “Mulheres, maternidade e identidade de gênero”,
apresentado no ST 062- Gênero, Cuidado e Assistência, coordenado pelas professoras Dra. Ana Paula
Vosne Martins (UFPR) e Dra. Maria Martha de Luna Freire (UFF,) no Fazendo Gênero 10: Desafios
atuais dos feminismos, em setembro de 2013, na UFSC. 11 Entrevista realizada em 03 de maio de 2013.
9
ele que vivia no momento da primeira entrevista. Nos encontros ocorridos em 2004 o
companheiro já havia falecido.
Reiteradas vezes ouvimos de Eni: “Minha vida foi de sofrimento. Sofri muito,
sabe?”. O primeiro companheiro e pai da filha mais velha foi preso e a deixou com a
criança ainda pequena. Ela diz que, nesta época, começou a trabalhar duro e vendeu
parte de um terreno que tinha para pagar advogado que o libertasse. Quando ele se viu
livre, fugiu com a irmã de Eni tinha e em quem ela muito confiava. “Aí caí na vida,
entende?”. Neste período ela começou a beber muito e a se prostituir. Foi quando teve o
seu segundo filho.
A identidade do pai da criança é desconhecida, o que tem sido razão de brigas
com o filho, hoje rapaz, que insiste em querer saber quem é o seu pai. “Não sei, falar a
verdade. Minha vida é um livro aberto. Vou falar que sei quem é o pai? Não sei porque
eu tinha três amantes e eu ficava com os três”. É interessante observar as estratégias
que ela usava para, numa cidade pequena, conseguir levar adiante uma relação assim.
“Eu ficava com estes três que me ajudava, porque o
sr.... até me deu dinheiro para mim construir uma
casinha. Até meu irmão fez a casinha prá mim e eu
saí para morar na minha casinha. Ele era casado,
não podia morar junto, mas ele vinha. Vinha todo
final de semana e nós ficava junto. (...) Não, eu não
saia com os três ao mesmo tempo. Quando o sr.....
vinha, ele ficava no sábado. Na segunda ele ia
embora. Aí o veião ficava mais. O... só vinha de vez
em quando e já ia embora. Nenhum sabia do outro.
O véio ... nem podia saber porque se ele soubesse
não me ajudava, porque o que mais me ajudava era
ele, entende? Aí eles perguntava: “Você está
sozinha mesmo?” “Tô, não tenho ninguém, só
tenho você”. E o outro perguntava. Aí eu falava:
“não, não tem ninguém”. Aí o véio falava: “mas tem
certeza?” “Certeza!”12
Podemos sugerir aqui que duas razões se mesclam para explicar o comportamento
de Eni. Talvez o fato de ter sido traída pela própria irmã, em quem confiava, e o
companheirom no qual depositava esperanças para o futuro a tenha feito, mais tarde,
12 Entrevista realizada em 03 de julho de 2004.
10
sentir um inegável prazer (perceptível na sua fala) de também trair, também enganar.
Contudo, não devemos desconsiderar o fato de que ela estivesse buscando, de maneira
racional e pragmática, o apoio de um provedor que lhe desse sustento para criar seus
filhos numa hora tão difícil.
Vivendo nas noites, quando praticava a prostituição, Eni acabou contraindo
tuberculose e teve de ser levada para Curitiba, onde ficou seis meses em tratamento:
“Quem ficou cuidando da menina foi meu pai e minha mãe. Ela ficou cuidando dela e
do menino. Foi aí que eu conheci esse homem que é o pai dos meus filhos”.
Ao retornar a Mandaguari, agora já com o novo companheiro, ambos curados da
tuberculose, Eni logo engravidou mais duas vezes e resolveu fazer laqueadura, mas diz
que a operação não funcionou e ela engravidou novamente.
“Trabalhei (...) na cana. No domingo tomei bastante caipirinha.
Eu bebia bastante, não vou mentir minha vida. Aí, no outro dia,
trabalhei, trabalhei e na hora do cafezinho comecei a vomitar.
Me levaram para o hospital da Cooperval e o doutor veio: “A
senhora diz que está com problema no fígado? “É”, respondi. “A
senhora tem problema de perna. A senhora está de quatro
meses”.
A vida tornou-se mais difícil. O companheiro retornou à Curitiba: “Abandonou
com as criança tudo pequena. Voltou depois, doente”. Assim foi criando os filhos. Ora
trabalhava, ora dependia da ajuda de parentes, amigos e até de desconhecidos que se
sentiam penalizados com a situação dela e das crianças. Foi criando os filhos com
parcos recursos e em meio a muitas necessidades.
Quando as filhas cresceram Eni lhes deu muito conselho para que não
engravidassem, mas nenhuma lhe deu ouvidos, nos conta. Dorothéa, a mais velha, aos
16 anos arrumou um namorado e teve dois filhos. Depois de separada teve ainda outros
três. No momento da entrevista ela vivia com Eni e tinha pouco contato com os filhos,
pois alguns foram dados para adoção e outros perdeu a guarda. Eni diz que sofreu muito
com a perca dos netos.
“Eu fico triste. (...) Foi que o Conselho Tutelar veio aqui e
levou as criança. Diz que eu não posso cuidar das crianças, eu
11
já estou de idade e que é a mãe que tem responsidade (sic). Eu
acho errado, porque eu posso sim, eu tenho saúde, graças a
Deus. (...) Eu me sinto ofendida. Ofende. Eu acho assim... que
eles assim..., que eu sou um...como é que eu falo? Minha língua
não dá para falar ... um nada, né? Não tem força, não tem
capacidade prá nada, me sinto humilhada, é isso.
Para Rodrigues (apud SANTOS, 1996), a entrevista é uma maneira de as pessoas
darem significado às suas experiências, e, para os indivíduos das camadas populares,
articular um discurso sobre si mesmo se constitui em uma tarefa emocionalmente árdua,
pois a construção biográfica as obriga a ver, a lembrar, a tomar conhecimento mais
global sobre o vivido. Não nos pareceu ser esse o caso de Eni. Sendo analfabeta, ela
constrói as frases com dificuldade, mas não é tímida na entrega de suas confidências.
Seu vocabulário é limitado e não é raro que ela pare uma frase para nos pedir ajuda com
expressões do tipo “como é que fala isso?” ou “eu não sei falar dessas coisas”, mas é só
lhe dar tempo e ela se transforma em uma interlocutora das mais generosas.
Informa-nos, por exemplo, que além dos filhos de Dorothéa perdeu também as
crianças das outras duas filhas. Inclusive uma neta que havia criado desde os 3 meses,
quando a mãe “saiu pelo mundo” (sic) e deixou a criança sob seus cuidados.
Nos fundamentos da história oral temos que esta, desde o seu início, esteve
preocupada com o compromisso social, marcado pela “voz dos excluídos”,
especialmente a denúncia do sofrimento de grupos maltratadosos por situações diversas
(MEIHY, HOLANDA, 2010). Contudo, não é minha pretensão fazer uma história
militante. Tampouco desconhecer que a situação em que filhos e netos de Eni foram
criados pouco condizem com as atenções que uma criança merece, mas não posso me
furtar ao comentário sobre a violência que consiste no fato de uma criança ser tirada do
seio de sua família. Parece-me que mais acertado do que tal medida seria antes ajudar
esta família a se organizar.
Como bem ressaltou Jerusa Vieira Gomes (2000), sempre tendemos a pensar a
criança abandonada, a criança de rua, a miséria, a vida deplorável de um grupo familiar
e o abandono de crianças como sendo fruto da irresponsabilidade da família. Porém, diz
a autora, “(...) à criança abandonada, objeto da violência alheia, civil ou militar,
correspondem famílias abandonadas, objeto primeiro da violência social,
institucionalizada” (GOMES, 2000, p. 61).
12
Importante ressaltar que Eni, à época das primeiras entrevistas, isto é, em 2004,
não era beneficiária do programa Bolsa Família. É sabido que os programas brasileiros
de transferência condicionada de renda têm as mulheres como foco prioritário, sendo
elas objeto primeiro de intervenções para combate à pobreza (MARIANO, CARLOTO,
2009). Ocorre que Eni, além de já receber a pensão do marido, não tinha filhos
pequenos, e, por isto, estava excluída de tal benefício. Quando suas crianças mais
precisavam de apoio, não havia programas desta natureza.
Finalizando a história de Eni, gostaria de deixar ao leitor uma indagação. O que
exatamente nos quer dizer esta mulher ao nos afirmar de maneira bastante enfática que
“(...) pensava que filho era bom, mas filho não é bom não”? Quer nos demonstrar que,
ao contrário do que ocorre nas camadas populares, em que o desejo por filhos emerge
como um dos únicos projetos de vida realizáveis, e, por isso mesmo, perseguido, esta
mulher consegue fugir ao senso comum e admitir, sem rodeios e sem culpas, que não
desejava ter sido mãe? Eni quebra estereótipos? Ou, para desaponto das feministas que
lutam para desconstruir a ideia do essencialismo, no qual a maternidade é um dos
pontos frucrais, sua negativa da maternidade é apenas uma consequência das agruras
que a miséria lhe impôs? Acredito que fato de Eni não desejar ser mãe nada tem a ver
com compreensão mais aprofundada das questões de opressão levantadas pelo
Movimento Feminista. Vivendo na pobreza, sem apoio efetivo de um companheiro,
morando na periferia da cidade, sem qualquer apoio de políticas públicas eficientes, esta
mulher compreendeu que filhos, longe de ser uma benção, eram uma responsabilidade e
um trabalho a mais numa vida já tão cheia de sacrifícios. No entanto, frente ao
bombardeio de informações sobre a idealização da maternidade, aos quais todas as
mulheres se encontram submetida, Eni terminou por se adequar ao que dela se esperava
e deu à luz a sete filhos.
Que nos interessa a história de Eni? A muitos talvez nada, mas a mim,
historiadora-moradora de uma pequena cidade do interior, pensar a relação entre
mulher, maternidade e pobreza a partir dos depoimentos dessa mulher comum, pareceu-
me questão das mais instigantes. Como disse Fernando Pessoa, encobertado em Alberto
Caiero:
13
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o
Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
O Tejo tem grandes navios e navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce da Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia.
Eni é rio da minha aldeia!
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