1. INTRODUÇÃO
O objetivo do presente trabalho é delinear alguns pontos a respeito da filosofia
cristã de Hugo, da abadia de São Vítor, na França medieval. Grande expoente
enciclopédico da idade média, foi o primeiro a inserir dentro da filosofia as ciências
mecânicas, ou seja, o trabalho humano como parte da filosofia.
A obra que abordaremos chamase Didascálicon da Arte de Ler, que é a opus
magna de mestre Hugo. Dela utilizaremos apenas os livros I e II, pois são aqueles em
que ele explicita a respeito de suas ideias de filosofia, bem como a divisão dela em
quatro artes, cada uma com suas subdivisões, englobando tudo o que concerne à vida
humana.
O trabalho está estruturado em cinco partes. Na primeira, abordaremos o que é
a filosofia e o que é a alma para Hugo, assim como as divisões dela. A segunda parte
introduz brevemente as partes da filosofia. Na seguinte, adentraremos a obra iniciando
pelas primeiras artes que ele explicita, as teóricas. Assim, seguese a quarta parte,
sobre as artes práticas, a quinta sobre as artes mecânicas, e a sexta sobre a lógica.
Por conta da utilização de uma obra bilíngue LatimPortuguês, optamos por
utilizar algumas palavras em latim, como forma de fazer uma ponte entre a língua
portuguesa e essa língua clássica.
A seguir iniciaremos a primeira parte: o que é a filosofia?
2. O QUE É A FILOSOFIA
Hugo concebe a filosofia como sendo a busca da sapientia, identificando o
termo com o sophos de Pitágoras. Afirma que, pelas dificuldades em se chegar a uma
compreensão da totalidade da verdade como ela é realmente por estar bem
escondida, Pitágoras definiu a filosofia como “a doutrina daquelas coisas que fossem
verdadeiras e possuíssem uma substância imutável” . No entanto, para o mestre, além 1
disso, o ato de filosofar é, ao mesmo tempo, ato humano e divino, na medida em que a
sapientia faz parte da Mente de Deus, que ilumina a mente humana e recupera sua
integridade divina, e por isso a filosofia é uma amizade entre a mente humana e a
sapientia. E o que é a alma humana?
2.1. De Anima
A alma humana é dotada de uma tríplice potência. A primeira dá vida ao corpo,
auxiliandoo a nascer, crescer, alimentarse e manterse vivo; a segunda oferece a
capacidade de discernimento da percepção sensível; a terceira concede a capacidade
de adquirir conhecimento através da investigação com a razão, auxiliada pela Mente
divina. Com efeito, as plantas possuem apenas a primeira, nascendo, crescendo e
sobrevivendo; os animais, além da primeira, possuem a capacidade de perceber o
mundo sensível e conservar em si suas imagens, porém as veem de maneira confusa,
não conseguindo ordenálas sistematicamente, e nem ao menos retomar o que foi
esquecido, para então fazer conhecimento; já o homem, possui em si a capacidade de
subsistência, de conhecimento sensível, e da razão, que subordina as outras duas ao
se ocupar da dedução a partir das coisas presentes ou do conhecimento das ausentes
ou da pesquisa das coisas desconhecidas, tendo intrínseca relação com a sapientia.
No próximo capítulo, explicitaremos brevemente o que pertence à filosofia.
1 Cf. Didascálicon da Arte de Ler, p. 53
3. O QUE PERTENCE À FILOSOFIA
Hugo afirma que, devido à relação que há entre o homem e Deus através da
sapientia, toda e qualquer ação humana é guiada pela moderação que ela implica.
Assim, a filosofia deve investigar não só a natureza das coisas ou a moral humana,
mas também “as razões de todos os atos e esforços humanos” . Ora, a sapientia não 2
tem relação com a execução em si de uma tecnologia, mas sim em sua razão teórica.
Ou seja, o camponês pode exercitar a agricultura, no entanto seu estudo teórico é parte
da filosofia.
Dessa forma, o mestre divide a filosofia em teórica, prática, mecânica e lógica.
A teórica se divide em teologia, física e matemática. A matemática se divide em
aritmética, música, geometria e astronomia. A prática se divide em solitária, privada e
pública. A mecânica se divide em ciência da lã, ciência das armas, navegação,
agricultura, caça, medicina e teatro. A lógica se divide em gramática e arte da
argumentação. A arte da argumentação se divide em dialética e retórica.
Em tempo, as artes teóricas devem investigar a verdade, sendo especulativas;
as práticas devem estudar a disciplina dos costumes, sendo ativas e também
chamadas de ética ou moral; as mecânicas devem ordenar as ações da vida,
chamadas adulterinas pois tratam dos trabalhos humanos, a lógica deve ensinar o 3
falar correto e a disputar agudamente.
Iniciaremos a exposição das artes nos capítulos seguintes.
2 Ibid, p. 593 O termo adulterina deve ser entendido aqui como imitativa. Para Hugo, o mundo é separado em sublunar e supralunar, como em Platão. O mundo sublunar está na mente de Deus, onde as ideias são eternas. O mundo supralunar consiste em uma imagem de tais ideias, sendo perecível. Quando o homem exerce as artes mecânicas, não altera o real, mas sim a imagem.
4. AS ARTES TEÓRICAS
4.1. De Theologia
Hugo utiliza a concepção de teologia dos gregos, retomada por Boécio. O
termo provém do grego theos, significando Deus, e logos, significando discurso ou
razão. Ela é “atividade que comporta a indagação sobre a especulação de Deus,
sobre a imortalidade do espírito e sobre a consideração da verdadeira filosofia” . 4
Fazemos teologia quando discutimos, com “aplicação profundíssima, algum aspecto
da inefável natureza de Deus ou das criaturas espirituais” . Tal atividade pesquisa o 5
que está além do alcance dos sentidos, devendo ser alcançado pela mente e pelo
intelecto. Em Hugo, há uma separação entre a intelligentia e intellectum, esta
podendo especular o conhecimento divino por sua relação com a mente divina, aquela,
o conhecimento mundano.
4.2. De Mathematica
Hugo afirma que a matemática é uma “doutrina científica” (doctrinalis scientia),
sendo o ensino que “se ocupa da quantidade abstrata, [...] aquela quantidade que
tratamos só nos raciocínios, separandoa pelo intelecto da matéria ou dos outros
acidentes, como é o par, o ímpar, e coisas do tipo” . Ou seja, a disciplina não trata do 6
material em si, mas do abstrato como quantidade, que faz parte da imaginação, sendo
nela uma forma visível segundo uma dimensão linear. Esta arte pode possuir relação
com apenas uma substância, como a árvore ou o lápis, chamada contínua; e outra
com o abstrato múltiplo, como o rebanho ou o povo, chamada descontínua, e sendo,
portanto, uma pluralidade. Na pluralidade, Hugo enquadra o quadrívio: aritmética,
música, geometria e astronomia.
A palavra aritmética vem do grego aritmós, que significa “força do número”. A
disciplina trata da pluralidade quantitativa em si mesma, como o três, o quatro ou outro
número qualquer. Seu objeto é o número par e ímpar. O número ímpar tem três
4 Cf. Didascálicon da Arte de Ler, p. 875 Ibid, p. 876 Ibid, p. 87
espécies: o parpar, número primeiro e não composto; o parímpar, número segundo e
composto; e o ímparpar, número segundo e composto em si mesmo, mas,
relacionado com outros, primeiro e não composto.
Hugo concebe a música como tendo três formas de existência: mundana,
humana e instrumentalis (do universo, do homem, e dos instrumentos). Em cada 7
uma, ele estabelece, de certa forma, uma “trindade existencial”.
A mundana musica está presente nos elementos como peso, nos planetas
como posição espacial, e no tempo como horas, dias, meses e anos. A humana
musica existe no corpo, na alma, ou na relação entre eles. No corpo pode
relacionarse de três formas: como atividade vegetativa, que cresce como as plantas;
nos líquidos, relativo ao fluxo de continuidade; nas atividade produtivas, concernente
aos seres racionais . Na música da alma, há aquela que provém das virtudes, como: 8
justiça, piedade e temperança; e outra proveniente das potências, como: razão, ira e
concupiscência. A música que está entre o corpo e a alma consiste no “amor à carne”,
mas maior ainda no espírito, ampliado na sensibilidade dos afetos que não destruíram
as virtudes e reforçaram o corpo. A musica instrumentalis tem relação, como o nome
já diz, com instrumentos, havendo os de percussão, os de sopro, e a própria voz. Além
disso, Hugo, através de uma citação de Boécio, afirma haver três tipos de músicos: os
compositores, os tocadores, e os julgadores desses.9
A geometria, parte da pluralidade, é o conhecimento da grandeza imóvel, e
dividese em planimetria, altimetria e cosmometria. A primeira mede a superfície
plana, a segunda mede a altura, e a terceira é chamada de mensura mundi, a
“medição do mundo” . Nessa última, por considerar o mundo como uma esfera 10
perfeita, Hugo concebe a cosmometria como medição de qualquer corpo esférico,
enquanto a esfera do mundo é a mais digna.
A astronomia estuda a grandeza móvel, ou seja, a lei dos astros e a revolução
do céu. Ela investiga as órbitas dos planetas, os movimentos celestes de acordo com
o tempo.11
7 Ibid. p. 898 As atividades produtivas são as operações das quais preside a mecânica, que são boas quandomoderadas pela sapientia, para não haver fraqueza perante a ganância.9 Cf. Didascálicon da Arte de Ler, p. 10110 Ibid, p. 10311 Ibid, p. 97
Assim, sobre o quadrívio, define Hugo :12
“A aritmética é a ciência dos números. A música é a divisão dos sons e a
variedade das vozes. Em palavras diversas, a música ou harmonia é a
concórdia de muitos dissímiles reduzidos a um. A geometria é a ciência da
grandeza imóvel e a descrição contemplativa das formas, pelos quais
costumam ser definidos os limites de cada coisa. Em outras palavras, a
geometria é a fonte dos sentidos e a origem das palavras. A astronomia é a
ciência que investiga os espaços, os movimentos e as revoluções dos corpos
celestes em tempos determinados.”
4.3. De Physica
A física é o estudo das causas e seus efeitos, e dos efeitos a partir das causas.
Hugo retoma o conceito grego de physis, porém sem a noção de princípio, mas
apenas de algo presente na natureza, apesar de afirmar que ela versa sobre a
fisiologia. Ela trata das coisas, enquanto as outras ciências tratam dos conceitos
dessas coisas.
12 Ibid, p. 103
5. AS ARTES PRÁTICAS
As artes práticas subdividemse em solitariam, privatam e publicam.
Por solitária, é uma prática ética ou moral, o costume de cada um. É aquela
que, própria de um indivíduo, o leva a elevarse virtuosamente acima de tudo, não
fazendo nada que o impeça de alegrarse nem fazendo nada do qual venha a se
arrepender.
Como prática privada é econômica e administrativa. Dá trabalho ao servo,
através de ordens dadas através de um “comando moderado” .13
A prática pública é política ou civil.Cuida da coisa pública, provendo o bem de
todos com sabedoria, justiça, coragem e temperança.
6. AS ARTES MECÂNICAS
As ciências mecânicas como parte da filosofia é o grande diferencial de Hugo.
À maneira de Platão, ele entende o universo como tendo dois mundos: o supralunar e
o sublunar. O mundo verdadeiro é o supralunar, onde todas as coisas, por uma lei
primordial, existem como ideias na mente de Deus, sendo a própria natureza. O mundo
sublunar existe como imitação daquele, sendo entendido como “obra da natureza”.
Assim, o homem é, ao mesmo tempo, imortal e mortal. Imortal enquanto ideia na
mente de Deus, em comunhão com a sapientia; mortal enquanto vivente no mundo
material, corpóreo. Sendo mortal, está sujeito à mutabilidade, e portanto, suas ações
devem visar também suas necessidades no mundo material, como forma de proteger,
nutrir e manter a vida.14
Assim, Hugo aponta sete ciências mecânicas, que convergem para a
fabricação das coisas. Três são para a proteção do corpo quanto ao que é externo: a
ciência da lã (lanificium), a ciência das armas (armatura), e a navegação (navigatio).
As outras quatro são para o cuidado interno do corpo: agricultura, caça (venatio),
medicina e teatro (theatrica).
A ciência da lã está relacionada à arte de tecer, costurar e fiar. Pode ser
13 Ibid, p. 11114 Ibid, pp. 65, 67, 73
executada com qualquer instrumento passível de manipular todo tipo de linho ou lã,
retirados de todo tipo de peles com ou sem pelos, ou até mesmo a manipulação de
palha. Resulta na produção de peças de vestuário e decoração, cobertores, panos,
cordas para instrumentos, chapeus, cestos, etc.
A ciência das armas compreende desde a fabricação de instrumentos para a
guerra, seja para ataque ou defesa, quanto àquilo que é feito com a massa que sobra
da criação dos instrumentos, ou seja, pedras, madeiras, metais, areias e argilas. Hugo
ainda coloca dois gêneros dentro dessa ciência: a arquitetônica, relacionada ao corte
de pedras, aos pedreiros, carpinteiros e marceneiros; e a fabril, que se divide na
feitura através da moldagem por marteladas, e na fundição.
A navegação tem como partes a compra, venda e troca de mercadorias
domésticas e estrangeiras. É considerada, por Hugo, como uma retórica em sua
singularidade, devido à uma necessária eloquência. Também ligada ao conhecimento
e reconciliação das nações, pois estabelece relações humanas com outros povos e
línguas desconhecidas.
A agricultura dividese, de acordo com os tipos de plantações, em quatro tipos
de terreno ou campo: arável, pronto para a semente; arbóreo, destinado às plantas já
formadas, como vinhedo, pomar e bosques; pastoril, que são os prados, campinas e
vales; e o florido, com hortas e roseirais.
A caça é dividida em caça selvagem, passarinhagem e pesca. Hugo se utiliza
do conceito de caça não apenas pela prisão do animal, mas por ser essencial para se
conseguir alimento, como era na antiguidade e em alguns lugares de sua época ainda
é, quando não se tem pão. Dentro da caça se incluem as tarefas de padeiros,
açougueiros, cozinheiros e bodegueiros, por estar relacionada diretamente à
alimentação.
A medicina contempla as ocasiões ou causas determinantes, e as operações.
As causas determinam não só as doenças, mas também a cura. Podem ser o ar, o
movimento e o repouso, esvaziamento e enchimento, alimento e bebida, sono e vigília.
Além delas, mestre Hugo inclui algo como uma psicologia, que vai estudar o que
influencia na alma. Essas influências estão relacionadas à temperatura, como quando
a ira provoca um calor intenso, ou o medo, que provoca o frio. As operações podem
ser externas ou internas.
Ainda na medicina, Hugo inclui atributos da agricultura, como o alimento e a
bebida, explicando como eles se dividem nos estudos. Enquanto o vinho é produzido
na agricultura e vendido na cantina, quem estuda o sabor é o médico.
A ciência do teatro não está relacionada à atuação, como poderíamos intuir
pelo nome, mas aos jogos de todos os tipos. O termo latim theatro tem relação com
um espaço onde as pessoas se reuniam para brincar. São consideradas ações
legitimamente humanas, e servem para recuperar o espírito através da alegria.
Também como um espaço em contrapartida ao boteco, onde as pessoas cometem
ações de moralidade duvidosa.
7. A LÓGICA
Hugo afirma que, apesar da lógica estar em último lugar na sua explicitação,
devese apenas ao fato de que foi estruturada depois das outras. Contudo, possui
grande importância porque, para se discutir sobre todas as outras coisas, é
necessário saber a maneira de falar de forma correta e verdadeiramente.
Uma das divisões da lógica é a grammatica (gramática), que é uma “ciência
das letras”, estudando, além das letras particulares, também as palavras. A letra é uma
figura escrita, sendo que a palavra pronunciada é seu elemento. O conceito de letra,
para Hugo, também compreende as sílabas, palavras e frases. Ou seja, tudo que diz
respeito àquilo que é escrito e falado faz parte do estudo da gramática.
Outra divisão é a ratione disserendi (teoria da argumentação), que compreende
partes integrais, que são inseparáveis do todo, e divisíveis. As integrais são: a
invenção, que é a procura de argumentos, e o juízo, que julga a verdade e a falsidade
das proposições. As divisíveis são: a demonstração, que pertence aos filósofos, o
raciocínio provável, pertencendo aos dialéticos e retóricos, e a sofística, coisa de
golpistas e zombadores.