Mal-estar na Cultura / Abril-Novembro de 2010
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Fronteiras da cultura: o luto das sínteses (in)acabadas
Kathrin Rosenfield
Thus the society in which we live is one in which
bureaucracy and individualism are partners as well as
antagonists. And it is in the cultural climate of this
bureaucratic individualism that the emotivist self is
naturally at home. (Alasdair MacIntyre, After Virtue, p.
33, 1981)
Completam-se dois séculos sem obras como a Fenomenologia do Espírito de Hegel. E
ninguém se atreveria hoje de apostar na “educação estética” da humanidade, nem de
sintetizar uma lógica cíclica da cultura, como a vimos em O Declínio do Ocidente de
Oswald Spengler há pouco menos de um século. Nosso foco deslocou-se para os
temas “menores” dessas sínteses espirituais: o “fim da arte”, o “fim da história” ou a
proclamação do “fim dos grandes relatos” – a impossibilidade de sínteses abrangentes
que constituiria a “condição pós-moderna”. O que resta a fazer é observar (alguns dos)
múltiplos processos heteróclitos da sociabilidade moderna, onde o indíviduo
idiossincrático exige liberdade, mas participa dos mecanismos coercitivos da
organização burocrática.
Por mais que queiramos sínteses, narrativas, espírito comunitário e justiça social,
capitulamos diante da impossibilidade de combinar essas idéias com os fatos –
globalização e star-wars, fundamentalismo e imperialismo, novas mídias e
democracias de massas. No lugar de um todo narrativo que nos conte nossa condição
e nossa história, predomina o “instantâneo” e a expressão do momento na imagem –
não somente na mídia, também a literatura e o teatro trabalham doravante com o
recurso da imagem que fixa um sentimento do presente (mais ou menos enigmático).
A seriação de imagens no drama de Beckett, por exemplo, em Le Dépeupleur, parece
fixar um gesto cultural característico: a renúncia ao ardor da conquista, o abandono de
pontos de vista elevados, a indiferença criatural para com promessas metafísicas e
soluções utópicas. Os personagens vivem sem sequer perceber a abertura luminosa
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da gruta na qual rasteja um grupo de criaturas isoladas, acomodando-se em nichos,
frinchas e frestas cujos formatos cavernosos determinam as posturas larvares e os
movimentos rasteiros dessa população. No entanto, as tonalidades específicas das
peças de Beckett, embora sempre as suscitem, já dispensam esse tipo de
interpretação alegórica. A interpretação começa a pertencer, como um resíduo
anacrônico, ao universo dos grandes relatos. Essas peças são como hai-kais, elas nos
oferecem imagens e um espaço de contemplação. Mas esse espaço, que poderia ser
um presente precioso, é oferecido a uma cultura pouco experimentada na arte
(oriental) da concentração contemplativa. O Ocidente – tanto na Europa como na
América do Sul – compartilha hoje a fantasia da velocidade, da variedade e da
quantidade. Cabe assinalar que ainda há um século, essa característica não era
evidente: em 1914, Musil identificava seus sinais precursores nas grandes cidades
como Chicago e Nova York, onde homens eficazes “comem bife e arregaçam as
mangas para ações enérgicas”.
A crescente intensificação da eficácia pragmática produz, como sua contracorrente,
certa estagnação imaginária: não a falta de imaginação, mas um retardo cada vez
maior no que diz respeito à recuperação dos inéditos avanços científicos e
tecnológicos para os sentimentos individuais, para a espiritualidade e as sensibilidades
de uma cultura. Desde o renascimento, o espírito pragmático e positivo infiltrou-se em
todos os nossos hábitos (somente com Descartes ele se transforma em pensamento
filosófico). E esse longo hábito de confiar nos fatos mais que em idéias metafísicas
prolonga-se no atual apreço pela energia e a velocidade. O elã do conhecimento
positivo e os apetites pantagruélicos das conquistas tecnológicas, que certos
modernistas e futuristas acreditavam ainda poder transformar em ritmos poéticos,
tornaram-se totalmente avessos aos hábitos “culturais”. O lirismo de Mallarmé, uma
laca chinesa ou a Crítica do Juízo de Kant requerem uma lenta maturação, um espaço
próprio e elos mentais complexos com os “fatos”. Mais do que isto, a atmosfera pós-
moderna inviabilizou até mesmo a expressão romanesca, cuja forma híbrida era
adequada, ainda nos anos 1930 e 40, para conter a complexidade cultural.
Mesmo assim, a permanente e necessária oscilação entre o fragmento e o relato que
vivemos hoje já estava claramente no horizonte nos anos 1910 e 1930, quando Robert
Musil esboçava suas idéias sobre filosofia, história e literatura. Rejeitando as
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demandas de “retorno” a relatos culturais ultrapassados e a fuga para “soluções”
falaciosas, o olhar desse escritor, cientista e matemático detecta os múltiplos eixos da
sociabilidade moderna que se organiza em torno de normas e valores heterogêneos,
manifestando-se muitas vezes de modo implícito, nos “detalhes” da vivência cotidiana.
Suas observações antecipam, num estilo mais irônico e positivo, a Mínima moralia de
Adorno, e também a análise da “condição pós-moderna” de Lyotard. Interpreta o novo
entusiasmo pelo esporte – boxe, corrida de cavalos ou a dança de Isadora Duncan –
não somente como fait divers, mas aponta a analogia – a intensidade do gesto, a
máxima concentração – que aproximam o cientista e o boxeador (com quase um
século de defasagem, o cinema explorou, nos últimos anos, o fascínio dessa
“intensidade focalizada” do matemático e do boxeador1). Ela é o corolário do espírito
objetivo que predomina nas grandes estruturas do sistema econômico e financeiro,
científico e tecnológico. O romance de Musil explora suas qualidades e seus defeitos,
a lucidez e a cegueira que ela introduz na vida intelectual e sentimental. Esse jogo
romanesco com inúmeras variáveis e possibilidades poderia ser um paradigma para
as discussões atuais sobre a pós-modernidade – não fosse o estigma do “liberal” ou
“burguês” que a esquerda dos anos 60 projetou sobre esse último representante de
cultura universal. Vale a pena redescobrir sua ousadia de debruçar-se sobre fatos e
realidades que – já então – exigiam novas formas (extremamente exigentes e
complexas) de reflexão.
Musil mostra como a aparente autonomia subjetiva se banaliza até a quase-impotência
pelo crescente domínio das instituições e associações burocráticas que regulam os
diferentes segmentos da sociedade. Apesar desta “impossibilidade” (que Kafka
elabora na mesma época em suas novelas), Musil critica o “ludismo melancólico” de
Kafka e focaliza as possibilidades de sustentar os ideais individuais que encontram
inúmeros novos espaços na sociabilidade moderna, deslocando-se para domínios
aparentemente triviais (esporte) ou prosaicos (ciência, tecnologia, aventuras
financeiras ou empresariais). Refletindo sobre uma manchete de jornal que proclama
“a genialidade de um cavalo de corrida”, Musil ilumina o que permanece impensado
nessas metáforas aparentemente triviais: o deslocamento dos tradicionais valores
espirituais para o domínio das habilidades quantificáveis. Essa substituição do
1 Cf. Million Dolar Baby, Proof (A Prova), A beautiful mind (Um mente brilhante).
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espiritual pelo quantitativo tem o mérito de absorver nas práticas cotidianas certos
hábitos mentais do cálculo matemático e das ciências exatas. No entanto, observa
Musil, enquanto essa absorção permanece impensada e automática, ela curto-circuita
elos vitais entre a operação intelectual, os sentimentos e as sensações corporais.
Nesse curto-circuito perdem-se diversas interfaces da vivência sensível e intelectual,
imaginária e espiritual dos indivíduos e dos coletivos.
O romance e os ensaios musilianos exploram as possibilidades de reintegração
desses domínios que se isolaram com a perda de mediações. Sua mistura de ironia e
bondade, lucidez e simpatia distancia-se do tom profético e triunfal com o qual seus
contemporâneos cultivavam o “Declínio do ocidente”, ensaio que Oswald Spengler
publicou em 1917. A riqueza de idéias e sentimentos, de reflexão e sensibilidade
fornece uma contracorrente inédita que se opõe ao clima de saudosismo, então muito
popular, que lamenta a perda de vitalidade intuitiva e conjura ideais salvadores que
venham a conter a degeneração e o caos. Opondo-se a esse clima de estufa do
fascismo, Musil mostra que não há nenhuma contradição entre os métodos positivos e
o espírito, a razão e a intuição. Muito antes pelo contrário, ele considera o cálculo
científico-matemático, a estatística e as pesquisas de opinião como perfeitamente
adequados para a exploração da alma e dos grandes segredos “humanos” e vê nas
conquistas tecnológicas as realizações dos sonhos mais ousados da humanidade:
“Toda ousadia da alma está hoje nas ciências exatas. Aprenderemos cada vez menos
com Goethe-poeta, Hebbel, Hölderlin, e cada vez mais com Goethe-cientista, com
Lorenz, Einstein, Minkowski, von Couturat, Russel, Peano… Num novo manifesto
artístico ou cultural, o programa de uma obra poderia ser: ousadia matemática,
dissolver a alma em elementos concretos, mostrar a ilimitada permutação destes
elementos, tudo se relaciona aí com tudo e deixa-se construir a partir daí. Esta
construção não prova: é nisto que consiste a coisa, mas: é com isto que ela se
relaciona.”2
Quando Musil fala que “podemos aprender cada vez menos com Goethe-poeta ou
Hölderlin” ele não despreza as realizações desses artistas – muito pelo contrário. Ele
exige elos mais complexos entre os imaginários poéticos e científicos, éticos e
2 Robert Musil, Kleine Prosa, p. 1318.
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matemáticos. Rejeita tão somente a simplificação das receitas entusiásticas
(precursores dos manuais de auto-ajuda), os anúncios sérios de “desvelamento” de
um fundo originário ou os elogios da “intuição divinatória” que, já nos anos 1910 e
1920, esboçam a exploração ideológica de pensadores como Nietzsche, Hegel ou
Hölderlin. Com faro certeiro, Musil sentia que os tons sacerdotais de Maeterlinck,
George e Klages3, a promoção da “intuição” e da “vitalidade” na obra de Spengler e
suas reverberações na ontologia heideggeriana iriam legitimar programas ideológicas
– ora deliberadamente, ora contra vontade.
Em 1922, quando Klages ou Spengler e, logo depois, Heidegger consolidam sua
notoriedade com propostas relativamente vagas (pelo menos para um público leigo) de
uma nova ontologia4 ou com o elogio da intuição, Musil sublinha sua preferência pelos
esboços inacabados que emergem da complexidade confusa da sociabilidade
moderna. Rejeita em particular as sugestões sedutoras de um retorno ao “fluxo de
Heráclito”, à simplicidade dos arquétipos e dos poemas patrióticos de Hölderlin ou a
um novo “Reino de 1000 anos”, destacando sua perigosa aproximação com
programas políticos que inviabilizam a reflexão complexa exigida pelos tempos
modernos. É certamente impactante ler, nos seus diários, uma anotação do verão de
1938, logo após a anexação da Áustria por Hitler:
Muito tempo antes dos ditadores surgirem na realidade, nosso tempo já produziu sua
veneração espiritual. Vide Stefan George. [...] Vejamos ainda Klages e Heidegger. O
denominador comum [deste representantes da cultura] é provavelmente um desejo de
domínio e liderança, saudades pela essência do salvador. Será que há traços comuns
3 O poeta-filósofo Maurice de Maeterlinck teve imenso sucesso, inclusive no Brasil, com livros como A inteligência das flores e Le trésor des humbles. O poeta Stephan George iniciou um dos movimentos anti-racionais, cultivando uma sensibilidade alusiva, obscura e hiper-refinada, Ludwig Klages adquiriu fama com títulos como Ritmos e hieróglifos,O espírito como adversário d alma ou Do Eros cosmogónico. 4 As críticas de Musil captam instantaneamente certas implicações dúbias das atitudes pessoais, mas também tendências das grandes obras de Heidegger: Ser e Tempo de 1927, ou os ensaios de Holzwege escritos entre 1935 – 1946 ou ainda o espírito dos seminários sobre Hölderlin, que privilegiam menos a espantosa sutileza desse poeta pensador, do que temas patrióticos (análise de poemas como “Germânia” e “O Reno”, ou reflexões sobre o conceito do “retorno patriótico”) – em suma, temas bastante favoráveis à ideologia “gleba e sangue” do nazismo.
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dos lideres? Por exemplo, [eles nos oferecem fórmulas que se parecem com] valores
firme, mas são tão vagos que, neles, podemos pensar coisas bem diversas.... 5
Já a primeira metade do século XX exigia, no entender de Musil, uma certa renúncia a
sínteses filosóficas demasiadamente vastas ou narrativas históricas centradas em
valores tradicionais vagos. Era preciso desdobrar o esforço de síntese, levando em
consideração os novos instrumentos do espírito (de novas tecnologias como o
concreto armado aos paradoxos lógico-matemáticos) que permitiriam pensar os atuais
problemas do pragmatismo e das práticas positivas:
“Quase sempre encontramos a errônea interpretação que toma como um sinal negativo
da nossa época o fato de que não há mais filosofia, como se os tempos atuais não
fossem capazes de produzi-la. Cabe ver o lado positivo desse sinal, pois o homem
pragmático e positivo que se sustenta nas rochas seguras dos fatos, deve achar
ridículo o que os curadores [da cultura de antanho] lhe oferecem como filosofia. A era
atual não tem mais filosofia, não porque nossa época não saberia produzi-la, mas
porque recusa propostas que não fecham com os fatos.” 6
O seu herói Ulrich, o homem sem qualidades, escandaliza sua douta prima, Diotima,
com a exigência de sonharmos com as asas do novo espírito matemático. O narrador
especula sobre as resistências que a imaginação do seu tempo (e do nosso) opõe às
possibilidades inauditas (e assustadoras) do mundo visto como uma grande equação.
O homem sem qualidades de Musil é provavelmente o derradeiro exemplo de um
“grande relato” romanesco – apesar de sua forma aberta e o estado fragmentar (a
morte prematura de seu autor deixou esse romance inacabado). Ele procura manter a
tensão dinâmica entre fragmento e síntese, a precisão nos resultados parciais e o
esboço de um corpo narrativo conjetural, cujas linhas convergem, como as hastes de
uma hipérbole, somente no infinito. É sintomático o misto de admiração e
esquecimento que com que a posteridade acolheu a obra deste pensador da cultura. A
ambivalência não se deve somente às exigências do conteúdo, mas às barreiras
emocionais e intelectuais criadas pela culpa coletiva do pós-guerra e pelo clima de
crescente ideologização da segunda metade do século XX. Sua sutil reflexão sobre os 5 R. Musil, Tagebücher, p. 896. 6 R. Musil, Kleine Prosa, p. 1085.
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pequenos elos entre triviais fenômenos cotidianos e grandes transformações
científicas, entre hábitos psicológicos e estruturas econômicas, entre esperanças
estéticas ou éticas e novas formas de liderança não se encaixava bem nos manifestos
da geração do pós-guerra. Os entusiasmos de 1968 e a identificação radical com os
slogans da contra-cultura não criaram afinidades com as utopias precisas, os sonhos
matemáticos e a imaginação realista e exigente de Musil, estigmatizado como
representante da cultura “burguesa”.
Nem mesmo a ressaca desse entusiasmo soube criar um clima favorável para o
pensamento complexo e imaginativo que Musil considerava indispensável para
enfrentar os desafios da modernidade. Nos anos 1980, quando os líderes ideológicos
se retiraram da cena da contestação e assumiram de novo postos invejáveis nos
escalões privilegiados do Estado, muitos dos seguidores jovens amarguraram a
marginalidade induzida pela retórica anti-cultural politizada. Suas opções e seus
padrões de excelência eram tão distantes dos dos líderes, resultando em posições
sociais tão díspares que um terrível ressentimento contra ídolos como Cohn-Bendit ou
Sartre derramou-se numa pequena onda de depoimentos. Esses livros marcam, num
registro complementar, a passagem para a consciência da pós-modernidade que
recebeu sua forma programática no relatório La condition post-moderne de Lyotard.
Desde então, observa-se uma certa estagnação nesse refluxo dos sonhos utópicos e
progressistas
Estaríamos então de novo numa era do ressentimento nietzscheano – como o indica a
insegura oscilação entre o gosto pela diversidade sem normas e a saudade de
narrativas e sínteses? Seja como for, a imensa força das convicções políticas de
esquerda e de direita impediu uma maior discussão do perigoso desprestígio que até
hoje pesa sobre uma educação exigente. Para fazer face à complexidade do mundo
moderno, essa deveria contemplar, simultaneamente, referências firmes (cálculo
matemático, experimentação científica, estatística, além do conhecimento das
tradicionais referências humanísticas) e observar as inúmeras variáveis e as
imprevisíveis relações entre os micro-sistemas da sociabilidade moderna. No estado
atual, entretanto, mal admitimos sequer a possibilidade de refletir sobre cânones
estéticos e éticos ou sistemas filosóficos ao lado de (senão integrados co) a pesquisa
científica e o desenvolvimento tecnológico. Nessas condições é impossível pensar a
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ordenação do conhecimento e da cultura geral que, bem ou mal, facilita a orientação
até mesmo na caótica sociedade de massas atual.
Enredados na polarização simplória de ideologias (direita, esquerda, neo-liberal,
progressista) perdemos de vista até mesmo problemas bastante simples, como a
sobriedade e a perícia analíticas na avaliação da cena artística. Um recente festival de
teatro pode servir como exemplo das confusas formas de enfrentamento, desafio e
agressão que se produzem nesse movimento oscilatório entre as demandas de
narrativa, síntese e pontos de referência, de um lado, a recusa desses padrões
culturais do outro – que resultam em pancadarias politizadas.
Avignon 2005: entre a palavra e a imagem
O renomado festival de teatro de Avignon foi, na sua edição de 2005, palco de
espetáculos tão diversos quanto o clássico Hamlet e a nada clássica Histoire de
larmes, peça na qual Jan Fabre exibe secreções do corpo humano (urina, suor,
lágrimas). A vida de Galileu encenado por Jean-François Sivadier ou Apollinaire lido
por Jean-Louis Trintignant entre outras peças “tradicionais”, destacavam-se como
“teatro burguês” – pelo menos, quando comparadas a Je suis sang, espetáculo no
qual ouvem-se os gemidos de homens que se arrastam sobre poças de sangue e
prepúcios que o espectador via sendo grosseiramente circoncizados com um
machado. A representação de canibalismo e excrementos, estupros, massacres e
assassinatos provocava, na maioria do público, uma repulsa que impedia qualquer
discussão sobre os modos (artísticos, bem ou mal sucedidos) da representação. A
impossibilidade de ultrapassar a fronteira do choque, deixou a maior parte dos
espectadores e críticos com sentimentos de “decepção, desencanto, indignação,
lassidão e desprezo”, escreve Carole Talon-Hugon na sua análise crítica do evento7.
O público enojado e a crítica nos mais renomados jornais parisienses fustigaram “essa
arte oficial que nos oferece um pouco de escândalo com muita subvenção pública”
(Armelle Héliot, Le Figaro, 21/07/2005). René Gonzáles, do L’Humanité, denuncia “a
mentira institucionalizada, imposta cinicamente a um público seqüestrado por
7 Carole Talon-Hugon, Avignon 2005. Le conflit des Héritages, Paris, du theatre, 2006, p. 3.
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verdadeiros atentados à verdade, à inteligência, à modéstia, à humildade, à dignidade
simplesmente.” (25/07/2005). Embora essas avaliações tenham sido publicadas tanto
em jornais “conservadores” (por exemplo o Figaro) como no “radical” L’Humanité, os
defensores das performances criticadas revidaram com as palavras chaves (ou
clichês) da esquerda. Acusaram os críticos de “raiva reacionária contra a
experimentação” e de “filistinismo da burguesia e das classes médias”, de anti-
intelectualismo e de fascismo ressentido.
O mais rarefeito eram sinceras tentativas para captar a relevância cultural e artística
do conflito. Entre elas, a abordagem de Olivier Py, crítico e participante moderado do
festival, aponta para a fronteira entre palavra e imagem. Ele resume o conflito entre os
defensores das peças clássicas e os que experimentam com os choques da violência,
do desgosto e do nojo na seguinte fórmula: assistimos, em Avignon, “à oposição
entre o teatro de texto e o teatro de imagem” e essa oposição seria, por sua vez, o
“sintoma do mais importante fenômeno civilizacional de nossa modernidade” (Olivier
Py, Le Monde, 30 de julho 2005).
O comentário sugere que Avignon teria transformado em representação teatral os
novos padrões – e tensões culturais – da inovação midiática. Seguindo a sugestão,
percebemos que tanto as performances como a mídia nos “falam” em imagens, de
modo imediato, quase sem mediação discursiva. Tanto na TV como na internet e nos
vídeo-games perfilam-se novos padrões de violência grosseira e brutalidade primária,
mal e mal disfarçada sob o pretexto de reportagem “Aqui e Agora” ou como remake de
certos temas míticos isolados (massacres, canibalismo, incesto, etc.) que estimulam
formas desenfreadas de voyeurismo e uma inédita avidez de violências sofisticadas e
compulsivas. Não há ai nenhuma grande novidade, mas o problema está ainda na
avaliação e na elaboração do fenômeno teatral que se enxerta nos fenômenos
produzidos pela mídia.
Entre os teóricos dessa nova dimensão de nossa civilização está Giovanni Sartori,
cujo Homo videns – Televisão e pós-pensamento, denuncia, em tons cataclísmicos, a
destruição daquele espaço estético e reflexivo da cultura que passava por inalienável
para Kant (e também para Hannah Arendt, que o considerava vital para o exercício da
liberdade). Seria necessária e inevitável a destruição do pensamento pela hipertrofia
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da imagem que Sartori anuncia agora como iminente? Em Homo videns, as novas
mídias aparecem como o Big Brother de Orwell, exerceriam automatismos e
manipulações impedindo qualquer elaboração (narrativa, interpretativa, cognitiva e
ética) do visto:
“Diante da tela da televisão está acontecendo uma mutação profunda e radical:
desaparece o homo sapiens e nasce o homo videns. Junto com o primeiro, porém,
desaparece também a capacidade de conceber idéias claras e distintas.” (contracapa)
E Sartori afirma que haveria dois sentidos distintos do termo cultura, contrariando
deliberadamente o pluralismo indiscriminado das últimas décadas. Um diz respeito ao
“contexto relativo de valores, crenças, concepções e, enfim, de simbolizações que
constituem a sua cultura. Nessa acepção genérica... também o homem primitivo ou o
analfabeto possuem cultura. [Assim] falamos de cultura de lazer, cultura da imagem ou de
cultura juvenil. Mas a palavra cultura é também sinônimo de “saber”: uma pessoa culta é
uma pessoa que sabe, formada por meio de boas leituras ou, em todo o caso, bem
informada. E esta é a acepção que nos permite de falar ... de atrofia e pobreza cultural.”8
A perspectiva de Sartori levaria a considerar as performances atuais como reflexos da
“atrofia e pobreza cultural”. A não ser que elas usem deliberadamente, enquanto
ícones imediatos, as imagens degradadas e voyeuristas que surgem constantemente
na TV ou na realidade violenta que vivemos. Nesse sentido, os ícones encenam
diretamente, sem mediação narrativa o “ser assim” de certas realidades que
dispensam comentários.
Para além da atitude bastante rígida e normativa de Sartori, seria importante
aprofundar a reflexão de Olivier Py, aplicando-a a outras manifestações nas artes
visuais atuais: por exemplo, as instalações de Mônica Fleischmann9, nas quais não há
escândalos primários, mas, pelo contrário, impressiona o uso de uma sofisticada
tecnologia. Sua arte reproduz, com meios inteiramente novos, tópicos mitológicos
como o espelho aquático de Narciso, desdobrando a antiga inércia das figuras
8 G. Sartori, loc. cit., p. 26 9 A artista plástica Monica Fleischmann liciona no famoso Frauenhofer Institut em Berlim, onde desenvolve programas específicos para uso artístico.
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poéticas e iconográficas. Uma tela de computador transforma-se em “água virtual” que
interage com a aproximação e o toque do espectador: reproduz sua imagem, reage ao
toque e calcula os efeitos “reais-virtuais” dessas interações, mostrando numa tela de
cinema as imagens do que aconteceria com um espelho d´água real.. Representariam
essas instalações bobagens meramente tecnológicas que demonstrariam a atrofia
cultural? Kim Veltman10 não pensa isso, mas assinala o desenvolvimento de um novo
meio que precisa, como as tintas na antiguidade ou a imprensa no século XV, de
décadas para o aprimoramento tecnológico e de séculos para sua plena absorção
imaginária.
É significativo, portanto, que esse tipo de discussão não se produziu. O que
inviabilizou a avaliação objetiva da lógica intrínseca das performances de Avignon?
Como já mencionado, a discussão descambou, quase que instantaneamente, para
injúrias ideológicas mútuas – com a exceção do artigo de Olivier Py, cuja peça Les
vainqueurs associa ou concilia os dois princípios opostos da palavra e da imagem. A
forma mista do espetáculo de Py alerta para a mudança de estatuto da imagem nas
outras performances. Nelas, a redução do texto transforma as imagens em “ícone
imediato”: revelando, sem mediação narrativa, o que é, ela pode vir a significar
qualquer coisa, dependendo do espectador que a integra no seu próprio contexto. O
forte viés repulsivo e hediondo das temáticas é mais um sintoma do pendor para a
descontextualização. O nojo subverte claramente o espaço da contemplação e do
prazer especificamente estético sobre o qual Kant constrói a comunicabilidade
universal do sentimento estético (corolário sensível do juízo de gosto que diz “isto é
belo”). O único sentimento que Kant excluía como fronteira da sensibilidade cultural é
precisamente o nojo. Também para Freud, o nojo constitui a barreira do trabalho
cultural que traça limites entre o demasiadamente natural (incesto, sangue,
excrementos, etc.) e a cultura da “natureza” humana.
Nessa perspectiva, revela-se um paradoxo irônico: os artistas das performances
chocantes encenam, com o gesto do gênio kantiano que dá as regras, a desativação
da regra mínima de Kant: fazendo do nojo e do opróbrio o objeto mesmo da
10 Diretor científico do McLuhan Institute em Maastricht.
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contemplação, eles atropelam o respeito da condição sine qua non do “gosto estético”
e exigem, no seu lugar, reflexão (e aprovação) intelectual. Não é de se surpreender
com a violência do conflito ideológico que passou pelos jornais. Ele é o resultado da
subtração dos pressupostos mínimos de uma avaliação estética consensual (daquilo
que Kant chama de “comunicabilidade universal”) e da reivindicação unilateral do
privilégio do “gênio” kantiano.
Carole Talon-Hugon tocou nesse ponto (embora chegue a uma avaliação diferente da
nossa) quando vê neste festival duas maneiras radicalmente inconciliáveis de
compreender a arte. Por parte do público, persiste a expectativa da “estética da
recepção” que encontrou na obra de Kant sua expressão mais complexa. Nela, a
apreciação da obra de arte é tributaria de uma disposição originária do homem: um
sentimento subjetivo abre, com o juízo estético, um espaço favorável à contemplação.
É dessa disposição livre que surge a admiração pela beleza que a humanidade
compartilha e que funda a possibilidade de comunicarmos o sentimento (não o juízo
racional) de um valor estético ou da genialidade de uma obra. Mas Kant previa ainda
que a inovação do gênio tivesse que surgir do contexto dos conhecimentos, técnicas e
preceitos éticos tradicionais.
Ora, é nesse último ponto que a concepção moderna e, sobretudo, pós-moderna
afastou-se de Kant. Já Duchamp tinha uma visão mais radicalmente soberana da
criação artística, dispensando o inovador das obrigações “acadêmicas” de virtuosismo
técnico e também da inscrição da obra num contexto “narrativo”. A partir deste passo,
instala-se, na opinião de Carole, uma radical “metafísica do artista” que subverte, por
assim dizer, a autoridade estética do espectador, ditando-lhe novos valores.
Não entramos nos problemas da concepção do gosto e do prazer que essa metafísica
artística coloca (ela elimina a sutil distinção entre o prazer interessado ou determinado
e o prazer contemplativo que é o único a viabilizar uma comunicação universal).
Assinalemos tão somente que as duas concepções da arte recortam e completam a
oposição da palavra e da imagem. Pois o acirramento da liberdade criativa e a ruptura
com todos os padrões de apreciação técnica (que implica configurações simbólicas e
legibilidade de códigos -cromáticos e de desenho, pictoriais e plásticos) isola
necessariamente de seu contexto narrativo a imagem e as figuras (sejam elas ainda
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esquemas geométricos, anatômicos ou meras manchas). Se Aristóteles e Kant podem
afirmar que objetos feios ou desprazerosos podem suscitar prazer na representação,
eles aludem precisamente à inscrição da imagem num contexto de práticas e códigos
que constituem o sistema narrativo ou o mito de origem da cultura deste objeto
artístico. As exorbitantes violências dos quadros de Hieronymus Bosch, seu
exibicionismo sexual e excremental não chocam porque estão sutilmente entrelaçados
com imagens da alquimia, com símbolos e metáforas familiares aos membros da
confraria de Herzogenbosch e compartilhados pela clientela internacional que
comprava e admirava os altares preciosos deste artista.
É precisamente essa integração da imagem nos símbolos e códigos tradicionais que
as vanguardas afrouxaram e distorceram, perturbaram e destruíram no intuito ou de
fazer ver a imagem enquanto imagem (sem contextualização semântica prévia) ou
com fins reflexivos e ideológicos (fazendo saltar, com a dissonância ou o choque, uma
contradição, um problema, um enigma). Os desafios e as experimentações nesse
sentido foram inicialmente um diálogo com as normas estéticas e éticas, ou com os
padrões semânticos – mesmo quando resultavam em escândalo (voluntário ou
involuntário, como no caso de Manet, Déjeuner sur l’herbe). Com a crescente
autonomia da arte e do artista, há inúmeros deslocamentos, negações e afirmações.
O que chama atenção nos últimos desenvolvimentos é, com certeza, o uso da imagem
impactante que se aproxima dos special effects cinematográficos e do “voyeurismo”
banal da TV (em programas como Big Brother ou Aqui e Agora), que suspendem a
função narrativa no simulacro da “verdade” imediata do próprio “real”. Ao mesmo
tempo, a escolha dos conteúdos residuais também contribui para o estrangulamento
das possibilidades de elaboração. Observa-se na lista das performances de Avignon a
predominância de temáticas que apontam para o grau zero da cultura e o limite que
separa a sensibilidade natural do espaço estético. É bom lembrar que qualquer
comunicação depende, no mínimo, da aceitação das proibições fundadoras da cultura.
Elas pesam, na cultura humana, sobre o assassinato e o incesto, os excrementos e o
sangue, exigindo tradicionalmente sua supressão ou seu recalque. A cultura permite o
ressurgimento desses elementos apenas na forma do velamento ou da transfiguração
estética de sua natureza “crua”. Para Kant e para Freud, o nojo – culturalmente
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induzido – constitui a fronteira separando do não-valor os objetos socialmente
relevantes.
Ora, com os objetos representados e o modo abrupto ou cru da sua representação, as
últimas performances estilhaçam precisamente essa fronteira do gosto e da decência
mínima. O que caberia debater é a questão se essa crueza é ainda um símbolo de um
imaginário compartilhado (ela o é na TV e nos videogames) e porque ela não poderia
sustentar-se como símbolo artístico. Esse tipo de debate, por mais que desgostemos
dessas obras primárias, não pode ser substituído por injúrias, nem por um didatismo
demasiadamente simples que aparece na obra coletiva de 2005, Le cas Avignon. Os
defensores justificam a apresentação e os objetos da representação desses
performances com os velhos ideais de conscientização e do estranhamento
brechtiano: as obras devem “interrogar” e “questionar”, elas “convidam a refletir” e “dão
a pensar o mundo” ou “colocam em crise nossas consciências e nos obrigam a aceitar
um questionamento crítico face ao mundo”. “Revirar o fundo, coloca perguntas e
perturba estereótipos”.
Estamos longe do ideal de Musil que exigia precisão matemática não somente na
ciência e nos negócios, mas também no universo dos sentimentos e das sensações,
da alma e do espírito. Mas sem este “idealismo realista” será difícil avançar no labirinto
das inúmeras fronteiras que segmentam o mundo atual.
BIBLIOGRAFIA
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- Holzwege, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1977 - Hölderlins Hymnen Germanien und Der Rhein (1923-1944), Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1980 Immanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro, Forense, 1993. Jean François Lyotard, A Condição Pós-Moderna, Alasdair MacIntyre, After Virtue, London, Duckworth, 1981. Robert Musil, Kleine Prosa, Rowohlt, Reinbeck bei Hamburg, 1978.
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Giovanni Sartori, Homo videns – Televisão e pós-pensamento, Bauru, EDUSC, 1997. Oswald Spengler, O Declínio do Ocidente, Rio de Janeiro, Zahar, 1973. Carole Talon-Hugon, Avignon 2005. Le conflit des Héritages, Paris, du théatre, 2006.