Nº 13
Textos para Discussão
UMA NOVA REALIDADE DO SETOR EXTERNO BRASILEIRO, EM MEIO À CRISE INTERNACIONAL
André Martins Biancareli
Dezembro, 2012
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UMA NOVA REALIDADE DO SETOR EXTERNO BRASILEIRO, EM MEIO À CRISE INTERNACIONAL 1
André Martins Biancareli 2
Introdução
Nas últimas semanas do primeiro semestre de 2012, o noticiário econômico trazia
manchetes negativas, nos planos doméstico e internacional. Ao lado de mais uma rodada de
deterioração da situação financeira na zona do Euro e de dados decepcionantes sobre o ritmo de
atividade interna, alguns fenômenos e tendências relativos ao setor externo da economia
brasileira forneciam importantes motivos para preocupação. De maneira resumida, uma crise
financeira internacional profunda (que, em mutação, já vai completando cinco anos) impõe um
cenário de baixo crescimento nos países centrais e no comércio internacional, dúvidas sobre os
preços de commodities e volatilidade dos fluxos internacionais de capital. Em momentos como
aquele tal volatilidade se manifesta na conhecida “fuga para a qualidade”. Em meio a tudo isso, o
Brasil apresentava déficit em Conta Corrente, uma dependência das exportações de produtos
básicos que faz lembrar a vulnerabilidade do período agro-exportador e, em comparação com os
primeiros meses do ano, saída de divisas e acentuada depreciação cambial.
A hipótese central deste trabalho é a de que não: esta não é a repetição de um mesmo
filme tantas vezes já visto na história brasileira. As tradicionais ameaças oriundas do setor externo
se apresentam, na atual situação do país, de maneira tão matizada e sujeitas a tantas
qualificações que não é exagero se falar em “nova realidade”. O que não quer dizer que não
existam desafios, nesta área, ao desenvolvimento. Mas o ponto a ressaltar (e explicar) é a
especificidade desses desafios, no que se refere às transações correntes, à situação internacional,
aos fluxos financeiros propriamente ditos e aos estoques de compromissos externos.
1 O trabalho se beneficia de um longo processo de discussão com toda a equipe do Cecon-IE/Unicamp, a quem sou
grato. Agradeço também os comentários e sugestões a uma versão anterior, sem comprometê-los com o conteúdo, de
Paulo Van Noije, Franklin Serrano, Bruno de Conti, Pedro Dutra Fonseca e Eduardo Mariutti. A este último devo ainda a
enorme paciência com meu atraso.
2 Professor do IE/Unicamp, pesquisador do Cecon-IE/Unicamp e coordenador da Rede Desenvolvimentista. E-mail:
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Antes de detalhar o raciocínio e os argumentos, no entanto, vale a pena observar com
cuidado os traços gerais mais importantes da situação.
Valendo-se das informações apresentadas na Figura 1, salta aos olhos a volatilidade das
contas externas desde 2007, no que se refere aos fluxos financeiros. Examinando apenas a
movimentação dos fluxos de não residentes (inflows, painel esquerdo), observa-se um exemplo
perfeito daquilo que Calvo e Reinhart (2000) denominaram sudden stop. Entre meados de 2007 e
o início de 2009, o total atraído sai de 10% do PIB para pouco mais de 1,5% no acumulado em 12
meses. Tão importante e tão surpreendente quanto, na sequência o que se verifica é uma
“retomada súbita”, levando a cifra, em termos absolutos, a patamares superiores aos picos
anteriormente verificados. Desde meados de 2011, mais branda, uma nova retração se
apreesenta.
Quando se acrescentam os fluxos de residentes e as desimportantes operações da Conta
Capital, o montante representado no painel da direita chega a ser, entre os meses de janeiro a
setembro de 2009, insuficiente para cobrir o déficit nas Transações Correntes. Essa situação não
inédita representa (em termos contábeis, e ignorando os Erros e Omissões) perda líquida de
divisas, e pode ser enquadrada em umas das definições possíveis de “crise cambial”. O inédito,
frise-se novamente, é a velocidade com que esse momento delicado é superado: passa-se de uma
“falta” de mais de US$ 15 bilhões (em maio de 2009, no acumulado em 12 meses) para um
“excesso” de quase US$ 59 bilhões exatamente um ano depois.
A relação entre os dois grandes agregados do Balanço de Pagamentos, aliás, mostra-se
complexa mesmo neste primeiro exame muito geral. Contrariando formulações mais
convencionais, que apresentam a movimentação financeira como um espelho da operação do
“lado real” da economia, os números brasileiros mostram um aumento do déficit corrente (e
portanto da “necessidade de poupança externa”) justamente quando os fluxos financeiros se
retraem, ao longo de 2008. No restante do período em tela, o máximo que se pode dizer é que os
dois lados parecem mover-se com elevado grau de independência.
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Figura 1
Fluxos privados de capital de não residentes (inflows)*; Conta Corrente; Conta Capital e Financeira, em US$ milhões e %
do PIB, jan/2007 – jul/2012
* Excluídas as “Operações de Regularização”
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria.
Fundamental para as ideias aqui apresentadas, uma rápida digressão teórica sobre as
relações entre as Transações Correntes e os fluxos financeiros é a tarefa da introdução deste
texto. Na sequência, são discutidos os números, os determinantes e as perspectivas da Conta
Corrente. Na seção 3, um panorama do quadro internacional é apresentado, para enfatizar os
condicionantes monetários e financeiros ao setor externo brasileiro. Na 4, os fluxos de capital
propriamente ditos são analisados e na 5 a dimensão dos estoques de passivos (e ativos) externos
é incorporada à explicação. Breves conclusões encerram o texto.
1 Conta Corrente, fluxos de capital, financiamento externo: contabilidade e determinações
No início de 1997, quando o Brasil apresentava um expressivo resultado negativo nas suas
Transações Correntes com o exterior (ver a Figura 2, a Figura A1 e a discussão da seção 2), uma
das principais vozes oficiais encarava assim tal resultado:
Eu acho que o déficit é um problema que está longe de ter a importância que as pessoas
atribuem. (...) Na verdade, eu acho que é melhor ter déficit do que superávit. (...) é melhor
ter poupança externa do que despoupança externa. (...) o Brasil ainda não se acostumou
com a ideia de ser um país normal. Parte da normalidade de uma economia emergente é
ter déficits (...) o Brasil não tem excesso de poupança interna. Tem é escassez. É esquisito
o Brasil exportar poupança3.
Esses argumentos não devem ser confundidos com opinião pessoal ou atribuídos à
retórica característica do personagem. Não haveria, também para outros analistas, motivo para
preocupação com o déficit em Conta Corrente: mais do que uma situação “normal”, ele era sinal
3 Gustavo Franco, então diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, em entrevista à Folha de São
Paulo em 09/03/1997 (Alves, 1997).
5
de êxito de uma estratégia de inserção externa e, indo além, de desenvolvimento. Apoiada no
financiamento externo, esta opção relançaria o país na competição internacional em bases muito
mais sólidas do que as herdadas do período anterior de fechamento comercial (Franco, 1998;
Mendonça de Barros e Goldstein, 1997).
Embasando esse raciocínio, algumas formulações teóricas bastante convencionais sobre
as relações econômicas internacionais, que vão muito além daquela conjuntura específica no
Brasil. Esta lógica tende, implícita ou explicitamente, a encarar os fluxos de capital como
decorrências da operação do “lado real” da economia (representado pelas Transações Correntes).
Um resultado negativo nesta conta ensejaria a “contribuição da poupança externa” ao
desenvolvimento de países que, dessa maneira, poderiam consumir e investir mais do que o
permitido por seus próprios esforços e recursos. A contrapartida seria a assunção de passivos
externos, que seriam saldados posteriormente com as divisas geradas pelo avanço da estrutura
produtiva, financiado desde fora.
Em termos mais técnicos, seria um perfeito exemplo de comércio intertemporal, com o
país deficitário importando consumo presente e exportando futuro (quando efetuaria a
liquidação dos passivos); e o país fornecedor da poupança fazendo a troca intertemporal no
sentido contrário. O resultado em Conta Corrente aparece portanto como parâmetro
determinante, ou balizador, dos fluxos de capital registrados na Conta Financeira. Ou, ainda: os
fluxos de capital são, por definição, fluxos de financiamento externo, que só se justificam,
obviamente, para países que precisam ser financiados4.
Este raciocínio está, desde o fim dos anos 1990, sob profundo questionamento no debate
internacional. O pano de fundo das críticas e revisões, mesmo internas ao mainstream economics,
é a sucessão de crises cambiais e financeiras que, a partir principalmente de 1997, atingiram
várias economias emergentes (deficitárias em Conta Corrente). No debate brasileiro mais recente,
esta visão convencional “puro sangue” sobre as relações entre Transações Correntes e
4 Mesmo em uma formulação alternativa dos determinantes dos fluxos de capital – a de que estes se guiariam pelos
diferenciais de taxas de juros, igualando-as no caso de integração financeira perfeita – a origem “real” do raciocínio é
clara. Só haveria tal diferencial em resposta a dotações distintas de poupança: o país seria deficitário em conta corrente
e teria juro alto (atraindo fluxos financeiros) pelos mesmos motivos. Anote-se que esta argumentação acompanha
quase que perfeitamente o raciocínio dos “benefícios teóricos” de uma ordem financeira internacional integrada
(Obstfeld; Taylor, 2004, seção 1.1). Esta lista, na apreciação crítica feita em Biancareli (2010), contém: (i)
compartilhamento e diversificação internacional de riscos; (ii) financiamento de desequilíbrios passageiros de balanço
de pagamentos; (iii) acesso à poupança externa para o financiamento do investimento e do desenvolvimento, e (iv)
disciplina sobre a política econômica.
6
financiamento externo – que poderia ser denominada de “favorável ao crescimento com
poupança externa” – também encontra uma ressonância muito menor do que na década de 1990.
Mais adaptada aos novos tempos, e felizmente com maior influência nas discussões, outra
linha de raciocínio sobre tais relações se assume como explicitamente “crítica ao crescimento com
poupança externa”. Desde o artigo de Bresser-Pereira e Nakano (2003), essa visão se consolidou
em uma série de trabalhos acadêmicos e de divulgação5, e ganhou destaque no período posterior
a 2008 – em que, como já adiantado, o Brasil volta a apresentar déficit nesta grande rubrica do
Balanço de Pagamentos.
Ao contrário da visão anteriormente resumida, esse resultado é encarado como algo
indubitavelmente negativo. Porém a crítica, tal como a defesa, parte do princípio que o déficit
seria uma opção, o resultado de uma estratégia que pretende conscientemente crescer com
financiamento externo. Na formulação de Bresser-Pereira e Gala (2007), o país escolheria a
importação de poupança mas esta, ao invés de contribuir para o aumento da produtividade e
financiar o desenvolvimento, substituiria poupança doméstica e, portanto, não ajudaria a elevar o
investimento nem o crescimento. Tal substituição, na forma de aumento do consumo, é
propiciada pela, e ao mesmo tempo contribui para, a apreciação da moeda nacional – tendência
para o qual os países em desenvolvimento em geral e o Brasil em particular teriam “propensão
crônica”. Ao longo do tempo, esta escolha comprometeria a estrutura produtiva, levando a uma
re-especialização em setores intensivos em recursos naturais e à aniquilação da indústria
doméstica.
A essa opção – em muitos textos associada a um “populismo cambial”, ou a um aumento
irresponsável do consumo às custas da indústria e das exportações – esses autores propõem
como alternativa a correção decidida da taxa de câmbio para patamares suficientes para eliminar
o déficit em Conta Corrente e viabilizar a indústria nacional no “estado das artes” da tecnologia
internacional. Em Nassif et al. (2011), por exemplo, um sofisticado exercício econométrico
estimava esse câmbio nominal “de equilíbrio” ou “ótimo” em torno de R$ 2,90 por dólar em abril
de 2011. Diante do patamar de R$ 1,60 naquele momento, seria necessária assim uma
maxidesvalorização de mais de 80% - que segundo algumas declarações deveria ser perseguida,
apesar dos previsíveis efeitos colaterais, “a frio”, à semelhança de episódios do início da crise da 5 Uma das primeiras apresentações formalizadas se encontra em Bresser-Pereira e Gala (2007), mas o raciocínio marca
presença em grande parte da produção do prof. Bresser-Pereira nos últimos anos (consultar o vasto material disponível
em seu website na Internet). Além disso, a “crítica ao crescimento com poupança externa” é parte fundamental das
formulações da corrente denominada “Novo Desenvolvimentismo”, que envolve economistas de diferentes
instituições. Ver o “dossiê” publicado na Revista de Estudos Avançados v. 26, n. 75, 2012.
7
dívida6. Mesmo que não fosse de tal magnitude, na maior parte das vezes defende-se que a
mudança de patamar do câmbio fosse acompanhada de outros esforços complementares: forte
queda nas taxas de juros, acompanhada de uma política fiscal contracionista ou “responsável”
(para aumentar a “poupança doméstica” e contrabalançar os efeitos inflacionários de uma
desvalorização cambial).
Há vários pontos a discutir sobre estas propostas (alguns dos quais são retomados na
seção 2). Mas o importante a destacar por enquanto é o fato de que a rejeição a qualquer
possibilidade de “importação de poupança” decorre não apenas dos efeitos deletérios que causa
sobre a estrutura produtiva, mas também porque inevitavelmente resulta em uma crise cambial
depois de certo tempo. Um resultado negativo em Transações Correntes seria garantia de
dificuldades para fechar o Balanço de Pagamentos em algum ponto futuro, exatamente pela
dinâmica que foi observada nos anos 1970 e, mais recentemente, nos anos 1990. A decorrência
do raciocínio também é importante: tais situações de “crise cambial”, apesar dos estragos,
restaurariam a competitividade da economia brasileira pela desvalorização, em uma espécie de
“crise salvadora”– que, aliás, é menos danosa quanto antes ocorrer. Nas palavras de um dos
expoentes dessa visão, ainda em meados de 2010:
se o Brasil tiver sorte, haverá uma crise no balanço de pagamentos em 2012, que poderá
resultar na mudança na orientação econômica.” E, de maneira mais geral: “No caso das
economias em desenvolvimento, uma meta operacional extremamente importante para a
sustentabilidade do padrão de crescimento no longo prazo é a meta de taxa de câmbio
real efetiva. Se o regime de política macroeconômica for inconsistente e o policy-maker
decidir sacrificar essa meta (...), então a sustentabilidade do crescimento no longo prazo
poderá ser ameaçada pelo estrangulamento externo e pela crise de balanço de
pagamentos7.
A concepção que orienta o presente texto, contrária à visão “favorável à poupança
externa”, também se distingue de maneira importante de sua contraparte “crítica”, em uma
perspectiva menos categórica a respeito das relações teóricas entre Conta Corrente, fluxos de
capital e financiamento externo. Duas são as principais fontes de discordância conceitual: a
primeira tem origem contábil e a segunda parte da observação empírica. Ambas têm
consequências práticas para o desdobramento do texto.
6 Ver Mota (2011). Vale anotar que na história brasileira recente as duas maiores desvalorizações promovidas
intencionalmente pela política econômica, ambas por Delfim Netto em 1979 e 1981, foram de aproximadamente 30%.
7 J. L. Oreiro, citado por Lamucci e Villaverde (2010); e Oreiro (2012, p. 33). Um último exemplo, de Nassif et al. (2011,
p. 7): “As long as the real exchange rate appreciation movement persists, both structural forces and inconsistent short-
term economic policies end up driving the economy to generate increasing current account deficits that will only be
adjusted by a balance of payments crisis and a disruptive overshooting of the nominal and real exchange rate.”
8
Em primeiro lugar, não parece correto vincular diretamente qualquer déficit nas
Transações Correntes ao nível de atividade e às preferências intertemporais de gasto de um país
(a chamada “absorção”) e/ou ao patamar da taxa de câmbio. E muito menos concluir daí que sem
cortes de gastos públicos ou do consumo, uma crise cambial está contratada.
Englobando tanto os bens e serviços “reais” da economia quanto parte de seu lado
financeiro (Rendas, na contabilização padronizada atual), esta grande rubrica do Balanço de
Pagamentos sofre a influência de múltiplos determinantes e não deixa de ser apenas um
resultado contábil, que tal como a “poupança” macroeconômica é muito mais resíduo do que
determinante da renda nacional. Ou seja, teoricamente nada impede que a uma redução do
consumo (público ou privado) corresponda um aumento relativo do déficit em Conta Corrente,
desde que o PIB caia mais do que os gastos externos com bens, serviços e rendas. Do mesmo
modo, postular que a taxa de câmbio apreciada e a assunção de passivos externos “substitui
poupança doméstica” ampliando o consumo em detrimento do investimento, só é possível
quando se parte da renda nacional dada – o que, diga-se de passagem, não parece uma postura
muito keynesiana. Por último mas não menos importante, como a experiência dos anos 1970
mostra, muitas vezes são os próprios passivos externos que, por meio de seus serviços
financeiros, condicionam o déficit corrente, sem qualquer vinculação com o “lado real” da
economia e, portanto, com a “necessidade de poupança externa”.8
Destas primeiras observações, decorrem duas recomendações de ordem prática para os
objetivos deste texto. Por um lado, antes de qualquer previsão peremptória, parece mais
produtivo observar com certo cuidado os determinantes específicos do déficit em Conta Corrente
em cada momento, assim como a composição dos fluxos de capital e dos passivos externos
assumidos – tarefas realizadas nas seções III, V e VI, respectivamente. E por outro, talvez seja mais
adequado deixar de lado a categoria “poupança externa”, que se revela pouco útil para refletir
sobre os fenômenos em tela. Isto remete à segunda fonte de discordância.
Quando transportadas para o plano internacional, certas divergências conceituais em
macroeconomia têm suas implicações práticas multiplicadas. A associação dos fluxos financeiros
globais à movimentação de “poupanças externas” parece ignorar um “paradoxo da composição”
de tipo distinto: o contraste entre os resultados líquidos e os brutos nas transações
internacionais. A argumentação de Borio e Disyatat (2011) para desmistificar a tese do savings
glut para a crise financeira internacional é perfeita. Tomar um país ou região superavitária nas
8 As considerações de Cruz (1984, especialmente cap. 1) sobre este ponto seguem sendo referência obrigatória.
9
Transações Correntes (a China e/ou seus vizinhos) e por essa razão apontá-los como responsáveis
pelo “excesso de financiamento” para a economia deficitária (os EUA), explicando assim os seus
baixos patamares das taxas de juros, é ignorar: i) que do ponto de vista quantitativo a importância
dos fluxos financeiros orientais é marginal diante dos provenientes da Europa, notadamente do
Euromercado (um fato que os enormes fluxos saídos dos EUA na direção contrária não consegue
apagar); e ii) que não é preciso que um inglês, um chinês ou qualquer outro cidadão de qualquer
país deixe de gastar uma parcela de sua renda para que um ativo financeiro seja adquirido
externamente, assim como a criação do crédito doméstico independe de depósitos prévios no
sistema bancário.
De maneira mais direta e mais geral: a movimentação financeira internacional é muito
mais produto de decisões privadas de criação de moeda, da alavancagem, do Finance; do que do
Funding, da alocação internacional de uma “poupança” gerada pelas preferências individuais ou
pelas escolhas estratégicas de um país. A evidência empírica, longa, registra que jamais, nem
durante o auge do Padrão Ouro nem muito menos no período recente de globalização financeira,
verificou-se a migração de capital que se poderia prever pelas “dotações de fatores” ou pelas
remunerações relativas (que seriam sua consequência). Nas expressões insuspeitas de Obstfeld e
Taylor (2004, cap. 2), a integração financeira internacional é definida por um rich-rich affair, um
jogo de diversificação internacional de carteiras (diversification finance),e portanto de fluxos
brutos em várias direções, no qual a participação das economias periféricas é marginal. E o é
porque, acrescentando elementos teóricos mais adequados, suas moedas não desempenham de
maneira relevante suas funções no plano internacional, ou são inferiores na hierarquia
monetária9.
Volte-se, pela última vez e de maneira breve, ao terreno das definições. Quando uma
pessoa, física ou jurídica, compra ou vende um ativo em um país distinto daquele em que ela
reside, as convenções contábeis internacionais recomendam denominar essa ação de fluxo de
capital, um dos tipos possíveis de movimentação de recursos por entre as fronteiras nacionais, e
registrá-la na Conta Financeira do Balanço de Pagamentos10. O empréstimo concedido por um
banco a um cliente no exterior; o bônus soberano emitido por um país após um road show de
representantes do seu governo junto à “comunidade financeira internacional”; as ações de uma
companhia “emergente” adquiridas pelo fundo de pensão estrangeiro; a nova planta construída
pela empresa multinacional em uma região com mercados promissores. Nesses e em muitos 9 Estes conceitos são retomados adiante, na seção 3.1.
10 Ou, em casos mais específicos e menos relevantes, na Conta Capital.
10
outros casos, há um ativo novo sendo gerado e negociado, que para um lado significa a promessa
de algum tipo de rendimento futuro, e para o outro um compromisso com esses mesmos
rendimentos. No momento em que esse compromisso é desfeito – o empréstimo internacional é
pago; o título soberano vence; a ação é vendida e o fundo resgata os recursos para seus países de
origem; ou mesmo a empresa desativa ou vende a planta e repatria o seu capital investido
inicialmente – novos fluxos são gerados11.
Tais assertivas, corretas do ponto de vista contábil mas das quais não decorrem as
relações de causalidade implícitas na ideia de “poupança externa”, ajudam a evidenciar um fato
óbvio mas escondido nos labirintos da sabedoria convencional: não é preciso ter “excesso de
absorção” para receber caudalosos fluxos financeiros do exterior e sofrer dos seus efeitos, assim
como o resultado líquido da Conta Corrente não seve como parâmetro para a Conta Financeira.
No relacionamento entre essas duas partes do Balanço de Pagamentos, se há alguma ordem de
determinação, é da segunda para a primeira. No caso de um país como o Brasil, para o qual as
decisões de aquisição/alienação de ativos externos por parte de não residentes são comandadas
primordialmente por fatores alheios a seu controle, isso é ainda mais importante. Daqui o último
desdobramento prático destas breves considerações teóricas: não há como tratar do setor
externo nem avaliar as suas perspectivas sem examinar o cenário financeiro internacional,
particularmente na forma dos ciclos internacionais de liquidez. Assim se justifica o esforço
realizado na seção 3.
2 Transações Correntes: conjuntura e estrutura; passado, presente e futuro
Já foi enfatizada, na seção anterior, a inadequação de se atribuir a um resultado contábil –
um déficit qualquer nas Transações Correntes do Balanço de Pagamentos – relações de
causalidade unidirecionais ou consequências inevitáveis. Ao invés de tratá-lo como um produto
exclusivo da posição da taxa de câmbio ou de suas implicações sobre a absorção doméstica –
frutos de uma estratégia, defensável ou criticável, de “crescimento com poupança externa” – a
opção aqui é tomá-lo como uma variável de resultado, com múltiplas determinações e relações
bem mais complexas com a política econômica. Assim procedendo, a inevitável perda de
simplicidade no raciocínio é compensada por uma aproximação maior da realidade. E, o ponto a
11
Evidentemente, os tais rendimentos que ocorrem entre os dois momentos descritos também são fluxos
internacionais de divisas, mas não significam aquisição/assunção de ativos ou passivos externos e portanto são
registrados na Conta Corrente (em Rendas).
11
destacar, tal abordagem permite um exame mais preciso dos dilemas e opções envolvidos na
situação atual da economia brasileira, inclusive por contraste com outros períodos passados.
Começando com esta perspectiva histórica, é de se destacar o fato de os dados anuais do
Balanço de Pagamentos registrarem, nas mais de seis décadas de números disponíveis no formato
padronizado (desde 1947), apenas 12 episódios de superávit em Transações Correntes. Mais de
dois anos com resultados positivos em sequência é exclusividade do período 2003 a 2007.
Considerar que apenas nessa excepcionalidade histórica, fruto de uma conjuntura internacional e
doméstica muito particulares, o Brasil esteve na rota do crescimento sustentado parece
exagerado. Em outros períodos, o país também soube produzir superávits. Nas décadas finais do
século passado, os poucos anos em que se registrou saldo positivo nessa rubrica – 1984; 1988;
1989; 1992 – não configuram momentos particularmente brilhantes da economia brasileira, e as
suas causas dificilmente poderiam ser defendidas como elementos virtuosos de qualquer
estratégia.
A comparação com outras economias emergentes, mais exitosas e historicamente mais
sólidas do ponto de vista externo, sempre é útil. Porém, não deve ser feita de maneira parcial.
Certamente o saldo positivo em Conta Corrente faz parte, importante, da receita do sucesso das
economias asiáticas mais dinâmicas, mas não se deveria ignorar os outros ingredientes do
resultado – com destaque, na maioria dos casos, para baixos níveis de remuneração do trabalho e
a inserção virtuosa em cadeias produtivas globais (ou regionais) de setores tecnologicamente
avançados. Isso é ainda mais verdade no caso das plataformas de exportação, nas quais o
mercado interno é irrelevante para a dinâmica econômica. Mesmo que seja esse o caminho que
se pretenda para o Brasil, há dúvidas sobre a sua viabilidade, particularmente no que se refere à
estrutura produtiva, a curto ou médio prazos. Nem tudo está ao alcance da política
macroeconômica.
Mas de fato a melhor forma de refletir sobre a situação atual e as possibilidades futuras é
a observação detalhada dos dados recentes. Na Figura 2, sempre pelo critério do total acumulado
em 12 meses, fica claro o movimento geral desde o início da crise internacional, em contraste
com boa parte da década anterior: um superávit de pouco mais de 1% do PIB no início de 2007;
que se transforma em déficit já na passagem para 2008; tem sua trajetória de aumento revertida
quando os efeitos da turbulência se fazem mais presentes ao longo de 2009; e finalmente uma
piora adicional até o patamar pouco inferior a -2% do PIB, que se mantém estável há mais de dois
anos.
12
De partida, destaque-se portanto esta última informação: apesar da justificável
preocupação de vários analistas, a situação não é de deterioração nos últimos dois anos, e sim de
estabilidade. Qualquer comparação com outros episódios, que antecederam por exemplo a crise
de 1999 ou mesmo a de 2002, deveria atentar para isso. Além da trajetória, os montantes
envolvidos também são bastante distintos: o pior momento do déficit mais recente (-2,3% em
novembro de 2010) é exatamente a metade do maior registrado em 2001 (em agosto) e ainda
mais distante dos -4,8% de agosto de 1999. O número cheio da Conta Corrente, no entanto,
esconde outras diferenças mais importantes. Neste longo intervalo, mudam as magnitudes e a
importância também das grandes subcontas. Pela Figura 2, é fácil notar que as oscilações no saldo
da Balança Comercial, inclusive de sinal, são de fato as mais pronunciadas e determinantes, mas
seu resultado não é tudo. É menor atualmente, em módulo, aos da conta de Rendas e de Serviços
(o primeiro com sensível melhora desde 2002 e o segundo com lenta mas progressiva
deterioração).
Figura 2
Transações Correntes e seus principais componentes, acumulado em 12 meses em % do PIB,
jan/1996 – jul/2012 (*)
*Não está exibida a conta de Transferências unilaterais correntes, que ao longo do período
foi sempre positiva, variando na faixa entre os 0,5% do PIB em 2003/04 e os 0,1% mais
recentes.
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria.
Na trilha do maior detalhamento, a Tabela 1 apresenta as médias dos itens mais
importantes para quatro períodos desde 1996, divididos a partir de alguns pontos de inflexão no
somatório geral: deterioração do déficit até agosto de 1999; recuperação não contínua a partir de
13
setembro daquele ano (já com os efeitos plenos do câmbio flutuante); a fase de superávits entre
junho de 2003 e o fim de 2007; e o intervalo deficitário desde então. Na parte de baixo da tabela,
alguns dos fatores condicionantes desses resultados são resumidos. Saltam aos olhos trajetórias e
determinantes muito distintos em cada momento, nas três grandes contas.
Iniciando pela conta mais importante, em paralelo à tendência de ampliação estrutural da
parcela de exportações e importações no PIB, é bastante claro que os fatores conjunturais
sintetizados na parte inferior exercem aqui sua maior influência. Sobre alguns destes fatores – o
ritmo de atividade doméstico, a posição da taxa de câmbio –, o país tem algum controle no curto
prazo, enquanto que sobre outros – notadamente o dinamismo das trocas internacionais e os
preços – a posição é apenas a de vítima (ou beneficiário, dependendo do momento). São todos
eles, em complexa interação, que ajudam a entender a piora acentuada do saldo comercial depois
de 2008 (que se dá mais pela diminuição relativa das vendas do que pela ampliação da parcela
comprada do exterior), e também a excepcionalidade do intervalo 2003-2007, no que se refere às
receitas de exportação. O contraste com o tímido superávit do segundo período, já com uma
situação cambial muito mais competitiva, sugere no entanto que o câmbio pode ter sua
importância relativizada por outros fatores conjunturais, notadamente as cotações internacionais
de commodities.
Tabela 1
Brasil: Transações Correntes e principais subcontas, acumulado em 12 meses, em US$ milhões e % do PIB, médias por
período, jan/1996 – jul/2012
a: Média das cotações mensais para o intervalo relevante.
b: Média dos índices mensais para o intervalo relevante, calculados com base no INPC-exportações (média 2005=100).
c: Média dos índices mensais para o intervalo relevante, calculados pela Funcex (média 2006=100).
d: Média dos índices mensais para o intervalo relevante, calculados pelo IPEA (jan. 2002=100).
e: Média das taxas de expansão mensal anualizadas das exportações globais para o intervalo relevante.
f: Média das taxas de expansão trimestral anualizadas para o intervalo relevante.
Fonte: Banco Central do Brasil e Ipeadata. Elaboração própria.
US$ milhões % PIB US$ milhões % PIB US$ milhões % PIB US$ milhões % PIB
TRANSAÇÕES CORRENTES -26.929 -3,3% -20.378 -3,5% 9.929 1,2% -34.509 -1,7%
Balança comercial (FOB) -5.280 -0,6% 3.327 0,7% 37.676 4,5% 25.902 1,4%
Exportação de bens 50.010 6,1% 55.774 9,8% 111.680 13,2% 199.178 10,5%
Importação de bens -55.290 -6,7% -52.447 -9,1% -74.004 -8,7% -173.275 -9,1%
Serviços -9.281 -1,1% -6.805 -1,2% -7.547 -0,9% -25.317 -1,3%
Transportes -3.032 -0,4% -2.733 -0,5% -2.428 -0,3% -5.808 -0,3%
Viagens internacionais -3.671 -0,4% -1.415 -0,2% -676 -0,1% -8.714 -0,4%
Aluguel de equipamentos -765 -0,1% -1.388 -0,2% -3.636 -0,4% -11.481 -0,6%
Empresariais, profissionais e técnicos 759 0,1% 2.108 0,4% 3.482 0,4% 8.547 0,5%
Rendas -14.483 -1,8% -18.684 -3,3% -23.750 -2,9% -38.517 -2,0%
Renda de investimento direto -3.793 -0,5% -4.102 -0,7% -9.265 -1,0% -24.210 -1,3%
Renda de investimento em carteira -5.523 -0,7% -8.652 -1,5% -10.285 -1,3% -9.311 -0,5%
Renda de outros investimentos (juros) -5.182 -0,6% -6.026 -1,0% -4.404 -0,6% -5.536 -0,3%
Taxa de câmbio nominala
Índice de câmbio efetivo realb
Índice de termos de trocac
Índice de preços de commoditiesd
Crescimento do comércio globale
Crescimento do PIB domésticof6,2% 5,4% 15,9% 9,8%1,8% 1,8% 3,9% 3,9%
104,2 95,5 96,5 112,7110,6 107,1 160,8 261,2
Per. I: jan/1996-ago/1999 Per. II: set/1999-mai/2003 Per. III: jun/2003-dez/2007 Per. IV: jan/2008-jul/2012
R$ 1,15 R$ 2,27 R$ 2,59 R$ 1,8579,5 114,5 106,4 88,2
14
Neste sentido, é uma mudança mais permanente o fator a destacar aqui, e que ajuda a
refletir sobre o futuro. Não mostrada nas oscilações retratadas na tabela, a deterioração
qualitativa do intercâmbio comercial é muito mais intensa: o saldo dos produtos típicos da
indústria de transformação, que foi positivo em quase US$ 15 bilhões no primeiro semestre de
2005, fechava a primeira metade de 2012 com déficit de US$ 28 bilhões; e a trajetória é mais
negativa quanto mais alto o conteúdo tecnológico dos bens transacionados12. Tomando as
exportações por fator agregado, a participação dos “básicos” retornava ao fim de 2011 ao mesmo
patamar (quase 50%) de 1978, e a parcela dos “manufaturados” (36%) era a menor em 35 anos13.
O resultado é uma sensibilidade inédita na história recente do saldo comercial brasileiro em
relação aos preços de commodities.
O principal determinante desta re-especialização da pauta exportadora é a evolução
passada da taxa de câmbio, mas este movimento não se deu de maneira imediata. O tempo das
mudanças na estrutura produtiva não é o mesmo da oscilação dos preços relativos. E, mais
importante, esta influência tende a ser assimétrica e sujeita a histerese: uma desejada
depreciação da moeda nacional provavelmente levará mais tempo e terá menores efeitos
absolutos sobre a capacidade de exportação de manufaturados do que os observados ao longo da
tendência de apreciação dos últimos quase dez anos. Se for acrescentada à análise a situação
atual e prospectiva do comércio internacional de manufaturas – baixo dinamismo, forte elevação
da concorrência e riscos elevados de escalada protecionista, no contexto de crise internacional
continuada que será resumido na seção 3 – contata-se que as possibilidades de o Brasil se tornar
um grande exportador com alto conteúdo tecnológico, ou de vingar por aqui um modelo export-
led growth comandado por uma taxa de câmbio “ótima”, parecem bastante reduzidas. Pelo lado
das importações de manufaturados, provavelmente uma correção do patamar cambial tende a
produzir efeitos mais rápidos sobre a demanda final, mas dificilmente a necessária tarefa de
recomposição das cadeias produtivas dispensará o uso de outras ferramentas auxiliares de
política industrial.
Isto projeta para o futuro, pelo menos o futuro próximo, a situação de dependência crítica
da Balança Comercial em relação aos produtos básicos e à evolução de seus preços. O que
certamente é uma regressão estrutural e um dos maiores desafios para o processo de
desenvolvimento, mas não necessariamente significa, do ponto de vista do balanço quantitativo
12
Ver IEDI (2012).
13 Os dados são da Secex, disponíveis em http://www.desenvolvimento.gov.br/.
15
de divisas, um cenário de grandes dificuldades no curto prazo. A médio e longo, a situação tende
a ser ainda mais folgada.
Isto porque trabalha-se aqui com a hipótese de que a longa tendência de alta nos preços
de commodities dos últimos anos, que responde a dois grandes grupos de fatores, não deve sofrer
uma reversão completa no futuro próximo. O primeiro destes fatores é o processo de
“financeirização” dos mercados desses produtos, que assistiram ao aumento da presença de
investidores “estranhos” àquelas mercadorias, aumentando a especulação e a correlação com
outras variáveis financeiras (a aversão ao risco, as taxas de juros centrais, os índices de bolsas e
moedas emergentes etc.)14. O resultado é a elevação da volatilidade dessas cotações e a
exacerbação das tendências altistas que já vinham em curso desde, pelo menos, 2002. O cenário
financeiro atual e projetado, como será visto na seção seguinte, projeta mais volatilidade e
incentivos à especulação em tais mercados, principalmente diante da falta de avanços
regulatórios que disciplinem tal “financeirização”. Mas a perspectiva não é de alta contínua,
inclusive pelo segundo grupo de fatores – o chamado “lado real” – aqui julgado mais importante.
Já está fartamente documentado o fato de que a integração chinesa (e, em menor
medida, indiana) na economia global é o grande fator responsável por uma alteração no patamar
da demanda por produtos básicos, notadamente aqueles ligados à energia, alimentos e
minerais/metálicos15. Mas não se trata apenas de uma resposta às altas taxas de crescimento em
si, ou à progressiva liberalização de seu comércio exterior: a ascensão chinesa é intensiva em
commodities porque combina enorme salto industrializante com avanço sem paralelo na
infraestrutura e urbanização/migração da população rural para as cidades, em um país
relativamente pobre em recursos naturais. Uma parcela muito significativa da população mundial,
antes excluída, passou a fazer parte do mercado consumidor (ou do circuito mundial de produção
e distribuição) de commodities – e esse não é um processo que possa ser revertido
conjunturalmente, além de haver um longo caminho pela frente. Por outro lado, é fato que a
economia chinesa mostra nos dias que correm claros sinais de desaceleração e manifesta a
intenção de alterar os determinantes mais estruturais de seu crescimento (que se pretende mais
baseado na demanda doméstica e menos nas exportações e investimentos em infraestrutura).
Mas mesmo nesse cenário menos dinâmico a demanda chinesa por commodities (ou por algumas
14
Ver, entre outros, UNCTAD (2011) e Carneiro (2012).
15 Ver UNCTAD (2005). Outros fatores pelo “lado real”, como problemas pelo lado da oferta e desmontagem de
estoques reguladores, detalhados nos estudos aqui mencionados, são relevantes. Do mesmo modo, a trajetória longa
de depreciação da moeda americana também joga seu papel.
16
delas, particularmente alimentos, dos quais o Brasil é importante fornecedor) dificilmente se
reduzirá.
Tais considerações não pretendem, em absoluto, sugerir que a re-especialização em
commodities é o caminho para o desenvolvimento, ou que a mal definida “desindustrialização” é
processo indolor ou até positivo. O que se afirma é que parece haver fôlego mais longo para a
permanência dos preços de produtos básicos em patamares razoáveis, ainda que não crescentes a
taxas muito elevadas. Isso também significa que a necessária mudança estrutural virtuosa (ou
pelo menos a reversão da trajetória regressiva vigente nos últimos tempos) não deve contar com
o auxílio da evolução dos preços relativos no comércio internacional, nem da deterioração dos
termos de troca.
Numa palavra, a perspectiva de curto prazo é a de que o Brasil não se tornará potência
exportadora de manufaturados; tampouco se deve assistir a déficits sistemáticos na balança
comercial, comparáveis aos de meados dos anos 1990. Este cenário seria válido até o momento,
não definido ainda com precisão, em que as receitas do petróleo da camada pré-sal comecem a
influir decisivamente no resultado líquido da Balança Comercial – o que, em si, traz grandes riscos
de acentuar essa mudança qualitativa preocupante na estrutura do comércio exterior brasileiro,
mas que em termos quantitativos significaria elevação dos superávits.
A quantidade e a qualidade do óleo encontrado, e a sua importância estratégica no
mundo (que não desaparecerá num horizonte visível), certamente fazem deste o grande trunfo
externo da economia brasileira para as próximas gerações. A despeito das muitas dúvidas ainda
existentes, os grandes números já disponíveis impressionam: reservas novas estimadas de 50 a
100 milhões de barris, e aumento da produção (sem incluir o gás e a produção internacional) de
2,3 milhões de barris por dia em 2011 para 5,8 de barris por dia em 2020, nas áreas já
concedidas16. Ignorar tal realidade em uma análise prospectiva sobre o setor externo brasileiro é,
no mínimo, imprudente.
No entanto a quantificação dos seus efeitos, imediatos e defasados, sobre as contas
externas não é simples. Algumas poucas tentativas já realizadas podem ser citadas.
Barbosa e Barros (2009) citavam simulações provavelmente exageradas da Tendências
Consultoria, que chegavam a uma contribuição positiva para o resultado em Transações Correntes
de até 5% do PIB e, na média dos cenários (diversas combinações de preços do barril de petróleo
e níveis de produção) o impacto seria de 3,5% (maior do que o déficit atual), a ser atingido dez 16
Para um balanço quantitativo (e dos vários desafios trazidos pelo pré-sal), ver Schutte (2012).
17
anos após o início da extração a partir das novas reservas. No estudo da FRAM Capital (Mattos e
Furtado, 2010), a variável decisiva a determinar os resultados é o ritmo de investimentos no
setor, influenciado pela cotação internacional da commodity. O impacto final na balança
comercial setorial, em 2020, seria grande: o saldo, que atualmente apresenta um pequeno déficit,
iria a pouco mais de US$ 40 bilhões no cenário de preços menos dinâmicos (e exploração mais
lenta), e quase US$ 60 bilhões na simulação mais favorável (contra menos de US$ 20 bilhões no
cenário simulado sem o pré-sal). Em linha, o estudo mais recente da consultoria LCA (citado em
Machado, 2012), projetava um aumento de 40% na extração de petróleo nos próximos 4 anos,
que levaria a conta petróleo a um superávit de US$ 50 bilhões já em 2016 e acresceria US$ 20
bilhões ao saldo comercial geral a partir de 201517. Já o impacto final na Conta Corrente, mais
difícil de estimar, de acordo com Mattos e Furtado (2010) se situaria entre 0,5% e 0,3% do PIB
também em 2020, depois de um impacto negativo (de até 0,6% do PIB) durante a fase de maiores
investimentos.
Este aspecto – a previsão de uma piora nos agregados mais gerais antes da manifestação
de todos os efeitos positivos do pré-sal sobre as contas externas – merece destaque. Encarar
estas reservas de petróleo simplesmente como uma “dádiva” esconde o fato de que é muito
custoso, e vagaroso, explorá-las (além de omitir os enormes avanços tecnológicos e investimentos
das décadas anteriores, responsáveis por sua identificação). O Brasil é líder em tecnologia de
extração em águas profundas, e as políticas de conteúdo local e investimentos domésticos
implementadas contribuem fortemente para a atenuação dos impactos negativos desse enorme
bloco de inversões sobre as contas externas. Mas até pelos valores que serão exigidos, grande
parte do maquinário e da tecnologia terá que ser importada. Ou será feita com aportes de
Investimento Direto Estrangeiro. Aliás, já estão sendo.
Isso traz de volta a análise do comportamento recente das outras grandes rubricas da
Conta Corrente, mostrados na Figura 2 e na Tabela 1. A piora no resultado em Serviços (que é
mais recente, com os números voltando ao patamar dos anos 1990) envolve mudanças na
composição, com destaque negativo para Viagens Internacionais (0,4% do PIB) e Aluguel de
Equipamentos (0,6%)18. Enquanto o primeiro destes itens tem caráter mais conjuntural, é sensível
17
Para efeito de comparação: conforme a Tabela 1, o saldo comercial médio nos últimos 4 anos e meio foi pouco
inferior a US$ 26 bilhões, e o acumulado em 12 meses, em julho de 2012, era de US$ 23,6 bilhões.
18 O déficit em Serviços só não é maior por conta do significativo aumento do superávit em Serviços Empresariais,
profissionais e técnicos (que atinge em média mais de US$ 8 bilhões no último intervalo, quase igualando o déficit de
viagens). O principal determinante desta evolução é o aumento pela exportação de serviços de engenharia por parte de
construtoras brasileiras (principalmente na América do Sul), além dos serviços técnicos do setor de petróleo.
18
ao nível corrente de atividades e à taxa de câmbio, além de poder ser compensado por um
esforço maior de atração de turistas, o segundo parece mais estrutural. Ele decorre basicamente
do aluguel de máquinas, aeronaves e sondas para exploração de petróleo – movimento que,
como visto no parágrafo anterior, só tende a se ampliar com a exploração do pré-sal.
Dito de outra forma: enquanto o déficit com turismo pode (e deve) ser reduzido, não
faltando instrumentos de política e alterações conjunturais para tanto, não é provável nem
desejável que o saldo negativo decorrente de aluguel de equipamentos seja cortado no curto
prazo. Pelo contrário, ele é sintoma de processos importantes em curso na economia brasileira,
que tendem a se aprofundar e gerar resultados positivos, inclusive sobre o setor externo, no
longo prazo.
Raciocínio semelhante pode ser feito em relação à conta de Rendas. Os números mostram
tendência longa bastante positiva (de -3,7% do PIB no último trimestre de 2002 para -1,6% na
metade de 2012, número já inferior ao déficit de Serviços), conduzida principalmente pela
melhora substancial nas Rendas de Investimento de Carteira e no pagamento de juros da dívida
externa (Rendas de Outros Investimentos). Comparando os valores destas duas rubricas no
segundo período da Tabela 1 com a fase mais recente, nota-se que os déficits se reduziram a
praticamente um terço: de 1,5% para 0,5% no primeiro caso e de 1,0% para 0,3% no segundo.
Esse ganho é resultado de importantes mudanças, quantitativas e qualitativas, na composição do
estoque de passivos externos brasileiros, que será detalhada na seção 5. Como lá argumentado,
tais mudanças parecem mais estruturais e, tomados alguns cuidados, é de se prever a
continuidade de uma situação mais folgada relativa a esses itens.
No entanto, nem tudo é melhora no que se refere a Rendas. O déficit nas remessas de
lucros de empresas transnacionais aqui instaladas (Rendas de Investimento Direto) apresenta
tendência estrutural e contínua de piora (ao longo dos quatro períodos da Tabela 1), com alguns
momentos de saídas mais agudas e resultado líquido quase sempre abaixo de 1% do PIB desde
200619. A explicação mais óbvia para esse resultado é o contínuo processo de aumento do IDE no
país, atualmente a forma predominante de financiamento do déficit em Conta Corrente (como
será visto na seção 4)20. Este também é um fator estrutural e positivo da economia brasileira, que 19
Nos dados do fim do primeiro semestre de 2012, o somatório ficou pouco acima de -1% por conta de uma elevação
atípica das receitas com Rendas de IBDE.
20 Fatores conjunturais também têm impactos importantes, sem anular a característica mais permanente. Na segunda
metade de 2007 e ao longo de quase todo o ano de 2008, a diferença de ritmo de dinamismo entre o Brasil e o mundo
desenvolvido, bem como o patamar da taxa de câmbio, fizeram essa conta registrar saldos cada vez menores que
bateram em -1,7% do PIB. Em menor escala (o ponto mais baixo foi -1,3% do PIB) o mesmo processo se verificou em
2010. Para efeito de comparação, o fluxo líquido de Investimento Direto, como será visto adiante, atingiu no período
mais recente um máximo de 3,2% do PIB.
19
tende a se ampliar, mas que acarreta saídas cada vez maiores de dólares e amplia o déficit em
Conta Corrente.
Em suma, é possível a partir de todos esses números desenhar um quadro razoavelmente
complexo, e suficientemente específico, para a Conta Corrente brasileira. O déficit atual, em sua
magnitude, composição ou fatores determinantes, guarda poucas semelhanças com aquele
verificado na segunda metade dos anos 1990 e que terminou em uma crise cambial (ou duas).
Procurou-se argumentar que a taxa de câmbio, apesar de fundamental, não é a única culpada
pelo resultado global negativo (e que, também por isso, ela não seria a única solução). Indo além,
identificou-se que há fatores estruturais explicando o déficit, em primeiro lugar uma regressão
estrutural com a qual o país não deve nem pode se conformar. Mas, em segundo, ocorrem
também outros movimentos (intensivos em bens, serviços ou fatores de produção importados)
que são positivos e promissores. Uma eventual atuação da política econômica para reverter tais
processos é, no primeiro caso, certamente necessária porém com resultados lentos. No segundo,
indesejável.
Nestas condições, e diante das hipóteses levantadas para a evolução das variáveis
internacionais (retomadas na próxima seção), o cenário para a Conta Corrente é o de persistência
do déficit, muito provavelmente com uma piora moderada nos próximos anos. Até que – em um
momento difícil de precisar mas não distante a ponto de ser ignorado – a exploração do petróleo
da camada pré-sal provoque alterações de natureza permanente na Balança Comercial brasileira,
tornando-a estruturalmente superavitária em um patamar significativamente superior ao atual,
quiçá suficiente para compensar os déficits em Serviços e Rendas (que também devem se elevar).
Assim, recoloca-se a dúvida que não existe para o raciocínio “crítico ao crescimento com
poupança externa”: um déficit corrente com estas características, e com tal cenário à frente, é em
si incompatível com o desenvolvimento? Estará o país condenado, se não reverter imediatamente
esse resultado negativo, a repetir os episódios de crise cambial? Na trilha aqui seguida, o próximo
passo na busca pelas respostas é indagar, diante do cenário internacional turbulento que se
apresenta, acerca das possibilidades de atração de fluxos financeiros suficientes para cobrir a
saída líquida de divisas pela Conta Corrente.
3 O mundo ainda em crise: incerteza e volatilidade mas não escassez21
Um dos pontos de partida – e ao mesmo tempo uma das principais conclusões – deste
texto é o fato de que o Brasil reduziu indubitavelmente seu grau de vulnerabilidade externa nos 21
Esta seção se utiliza de trabalhos anteriores do autor, particularmente Biancareli (2011a; 2011b).
20
últimos anos. Esta realidade não anula, no entanto, outra verdade mais perene: a de que as
possibilidades e limites ao desenvolvimento nacional são fortemente condicionados pelos
processos e tendências no plano global, sobre os quais o país tem pouca ou nenhuma influência.
A relação, que já ficou clara na vinculação do resultado em Conta Corrente com o ciclo de preços
de commodities, também é patente nos vínculos entre os fluxos financeiros e o ciclo internacional
de liquidez. É sobre este último fenômeno, e seus contornos atuais bastante específicos, que se
faz necessário um olhar mais atento agora.
Como pano de fundo para este ciclo, no entanto é necessário antes localizar a crise
financeira internacional ainda em curso. Não há aqui, evidentemente, espaço para uma discussão
detalhada da crise, mas importa apontar seu caráter mais estrutural, do qual decorre sua longa
duração e os dilemas no seu enfrentamento. E entender como um “arranjo” econômico global
vigente até 2007/08 – que produzia muito dinamismo e fortes desequilíbrios – foi substituído por
um outro mundo em que falta dinamismo e sobram incertezas.
De um lado – como resultado de processos longos de reorganização produtiva e de
relações favoráveis das taxas de câmbio – vigorou até 2008 em escala planetária uma poderosa
engrenagem comercial marcada por três elos principais de dinamismo. O primeiro ligando o
consumo exacerbado da economia líder (os EUA) ao centro ascendente da produção
manufatureira global (a China); o segundo ligando a produção chinesa com as cadeias regionais de
insumos e componentes de alto conteúdo tecnológico; e o terceiro ligando essa fábrica asiática
ampliada aos centros fornecedores de produtos básicos, notadamente commodities energéticas,
minerais/metálicas e agrícolas. De outro lado – também fruto de mudanças estruturais (a
liberalização crescente das relações financeiras domésticas e externas) e de posicionamentos
conjunturais de preços macroeconômicos (principalmente as taxas de juros nas economias
centrais) – armou-se uma fase ascendente do ciclo de liquidez internacional de proporções
inéditas, como será visto abaixo. Repetindo outras fases similares, caudalosos fluxos de riqueza
financeira privada saíram à caça de rendimento em praças financeiras emergentes; como relativa
novidade, fluxos oficiais também muito volumosos, tomaram o sentido contrário: a aplicação dos
crescentes estoques de reservas internacionais dos países em desenvolvimento (notadamente os
asiáticos) nos títulos emitidos nos Estados Unidos. Isso sem contar o movimento, em muito
ampliado, de diversificação de carteiras entre os países centrais, quantitativamente muito mais
importante do que aquele que envolve os em desenvolvimento.
21
Essas duas dimensões do arranjo pré-crise, evidentemente, apresentavam vários
elementos de vínculo entre si e de retroalimentação. Os baixos patamares das taxas de juros
centrais, influenciados pela aplicação das reservas emergentes em títulos oficiais nos Estados
Unidos (mas, principalmente, pelos fluxos brutos que tinham origem em outras praças financeiras
centrais, notadamente Londres22) incentivavam não apenas as operações de carry-trade em
direção a países e moedas periféricas, mas também a especulação que acentua a alta dos preços
de commodities que explicam a situação mais robusta das contas externas de várias partes do
mundo em desenvolvimento. Tal melhora, por sua vez, também incentivava mais fluxos privados
de capital nessa direção, acrescentando pressão altista sobre as moedas das economias
receptoras, em detrimento do dólar. Apesar desses desequilíbrios – ou justamente por causa
deles – o resultado foi uma sequência de vários anos de crescimento econômico global em ritmo
que fez lembrar os “anos dourados”, taxas de expansão do comércio global impressionantes e
abundante liquidez internacional. Estes são os processos gerais que explicam a melhora
generalizada da situação externa de um vasto e heterogêneo conjunto de países em
desenvolvimento, entre os quais o Brasil, no período até 2007.
A grande crise financeira iniciada nos Estados Unidos naquele ano, e que atinge seu ápice
em setembro do ano seguinte, não decorreu diretamente desse arranjo internacional
desequilibrado – apesar de os vínculos indiretos serem óbvios e importantes. Mas o fato é que,
tendo se iniciado como uma crise no sistema de financiamento imobiliário daquele país, ela
evoluiu para a mais grave crise financeira sistêmica em muitas décadas, e inevitavelmente abalou
a economia global, alterando o cenário benigno acima resumido. Seus impactos imediatos sobre o
crescimento e, igualmente importantes, as medidas de política anticíclica para impedir estragos
ainda piores, tiveram consequências tanto do lado produtivo/comercial quanto do financeiro.
O abalo na confiança, a destruição de riqueza financeira e a paralisação das operações de
crédito contraem a atividade econômica nos Estados Unidos, fenômenos que se repetem em
outros países importantes. Sobre as relações econômicas internacionais, isso significa em
primeiro lugar uma brusca interrupção do primeiro elo do dinamismo comercial – inclusive pela
virtual paralisação das operações de crédito comercial – e que se transmite aos demais elos. Pelo
lado financeiro, a elevação da aversão ao risco dos investidores para patamares inéditos provoca
um episódio típico de sudden stop nos fluxos de capital para países em desenvolvimento,
provocando desvalorizações acentuadas das taxas de câmbio e, nos casos de maior
22
Como já apontado com base em Borio e Disyatat (2011).
22
vulnerabilidade, crise cambial aberta. Ainda, a brusca contração da liquidez internacional faz com
que os excessos especulativos no mercado internacional de commodities sejam corrigidos de
maneira dramática, também prejudicando as receitas externas dos países especializados nestes
produtos.
O cenário que se anunciava, muito semelhante ao dos anos 1930, era de prolongada
recessão e enfraquecimento do comércio internacional (com riscos de escalada protecionista), e
de uma duradoura fase de escassez de financiamento externo para a periferia. À diferença das
reações à crise de 1929, no entanto, desta feita a condução da gestão macroeconômica em
praticamente todos os países relevantes (ainda que em graus variados) foi decididamente
anticíclica, com fornecimento de toda a liquidez possível para controlar a deflação de dívidas,
queda acentuada das taxas de juros e expansão fiscal. Tais medidas certamente ajudaram a
amenizar e abreviar a recessão, mas – diante de avanços muito tímidos na dimensão estrutural
(particularmente no campo da re-regulação financeira) – não foram suficientes para repor as
condições anteriores, nem muito menos reorganizar a economia internacional de uma maneira
dinâmica e sustentada.
O PIB global se recuperou já a partir de meados de 2009, mas não teve fôlego para se
manter. Isso se deu em primeiro lugar pelo fato de a recuperação ter sido muito mais expressiva
nas grandes economias emergentes do que nos países centrais (abreviando a vida útil da teoria do
decoupling). O dinamismo do comércio internacional também foi retomado, ainda que com
menos vigor e em meio ao acirramento da concorrência, principalmente nos produtos
manufaturados, diante da maior agressividade chinesa. A segunda razão da efemeridade da
recuperação tem a ver com as políticas. Temores diante de acelerações conjunturais da inflação, e
principalmente bloqueios (de natureza política, ideológica ou até moral) ao uso ativo da política
fiscal levam a uma reversão precoce das ações anticíclicas nesse campo.
E aqui chega-se ao aspecto mais importante, para os objetivos deste trabalho, dos
desdobramentos da crise: a sobrecarga da política monetária como único instrumento de
incentivo à recuperação econômica, ensejando inclusive inovações na condução desta política,
diante de seus fracos resultados. Mesmo que esse único instrumento, principalmente no caso
europeu (por conta das peculiaridades do arranjo institucional e de um grau maior de
conservadorismo) seja bastante limitado. Faz parte deste quadro não apenas a queda e a
manutenção das taxas de juros centrais em patamares muito próximos de zero (no caso da moeda
mais importante, com a garantia de que lá ficará pelo menos até meados de 2015), mas também
23
cumulativos e cada vez mais amplos esforços de compra de ativos financeiros, de qualidade
duvidosa, pelos Bancos Centrais, com o objetivo de injetar liquidez na economia. As três rodadas
de quantitative easing nos Estados Unidos (até setembro de 2012) levaram o ativismo da política
monetária a níveis antes inimagináveis, com resultados decepcionantes na reativação do crédito e
do consumo, mas impactos externos importantes.
Intencional ou não, o efeito colateral do sinal extremamente expansionista das políticas
monetárias centrais é o excesso de liquidez global que desestabiliza as taxas de câmbio por meio
da renovação do movimento de search for yield em ativos e moedas com maior rendimento ou
potencial de valorização, grande parte deles nas economias emergentes. Esta é a grande
novidade, já a partir de meados de 2009: a fase ascendente do ciclo de liquidez internacional,
abruptamente interrompida no último trimestre de 2008, se remonta de maneira muito rápida,
assim que a aversão ao risco volta a patamares razoáveis. Tal estado de coisas configura a “guerra
cambial” ou o “tsunami monetário”, nas expressões com que autoridades brasileiras criticaram a
falta de coordenação internacional nesta área e os efeitos sobre o Brasil.
Os graves problemas – fiscais, “federativos”, financeiros e, crescentemente, políticos e
diplomáticos – vividos pela União Europeia e pela zona do Euro surgem neste contexto como
ingredientes adicionais de incerteza, pressões deflacionárias (principalmente pelo teor das
políticas adotadas e recomendadas) e maior sobrecarga da política monetária. Pensando no
mundo como um todo, ainda mais diante de uma importante desaceleração chinesa já em curso,
não se vislumbra uma nova fonte de crescimento ou qualquer alteração mais profunda que
permita projetar um quadro muito distinto para os próximos anos.
O cenário financeiro, assim como o comercial, é portanto distinto mas não totalmente
oposto ao do pré-crise. Falta dinamismo pela não superação dos problemas de fundo que levaram
à crise, o comércio internacional segue cambaleante e elevam-se os riscos do protecionismo,
sobram fontes de incerteza e especulação, mas se recuperaram duas características essenciais
daquele arranjo, acrescidas de muita volatilidade: a especulação com preços de commodities e o
excesso de liquidez global. O primeiro aspecto já foi comentado, o segundo será detalhado na
sequência.
3.1 Ciclos de liquidez e as especificidades atuais
Nos últimos anos, dentro do mainstream economics, em lugar das previsões de
financiamento externo constante, vem ganhando espaço um amplo reconhecimento da
24
ocorrência de fases ou ciclos na disponibilidade de financiamento externo para países em
desenvolvimento, em uma série de trabalhos encadeados23. Começando pelo já citado
reconhecimento dos sudden stops por Calvo e Reinhart (2000) e do caráter “pró-cíclico” dos fluxos
de capital (Kaminsky et al., 2004), essa tendência passa pela teorização sobre as fases de bonanza
(Reinhart e Reinhart, 2008) e chega nos conceitos de “surtos”, “episódios” ou “ondas” (IMF, 2011;
Cardarelli et al., 2010; Furceri et al., 2011). Avança-se bastante no tratamento estatístico e na
definição precisa dos ciclos, mas poucas explicações abrangentes para sua ocorrência são
oferecidas. Até muito recentemente, tais descrições tampouco eram acompanhadas de
recomendações de política para proteger as economias destas reversões bruscas nas condições
financeiras externas24. Mesmo algumas análises críticas (como as de Akyuz, 2011; UNCTAD, 1999
e 2006) tendem a priorizar a descrição e as implicações de política dos ciclos, aqui sempre na
direção da prudência e autodefesa.
A abordagem seguida no presente texto parte de alguns conceitos heterodoxos, mesmo
que dispersos, para compreender de maneira mais integrada os fenômenos em tela. Em tal
abordagem, os ciclos de liquidez não são casualidades, que necessitem de explicações ad hoc, e
sim uma decorrência de duas características estruturais definidoras das relações financeiras
contemporâneas: o seu caráter instável e as suas assimetrias.
Em primeiro lugar, os fluxos internacionais de capital na era da “globalização financeira”
tendem a ser intrinsecamente voláteis e movidos pela busca de rendimentos (search for yield),
em uma época marcada não apenas pela maior integração financeira global promovida por
processos nacionais de abertura, mas também por mudanças qualitativas na direção das “finanças
de mercado” (ou securitização), da disseminação dos instrumentos derivativos e da
institucionalização das poupanças individuais25. Em tal ambiente, a especulação – no sentido
keynesiano do termo: a tentativa de antecipar as tendências do mercado – como regra de
conduta se dissemina por um vasto espectro de agentes que inclui bancos, firmas e famílias. No
que se refere às relações financeiras internacionais, as possibilidades de diversificação de carteira,
ampliadas pela abolição de controles de capital, ensejam volumosos fluxos especulativos na
23
Se considerados os benefícios prometidos da abertura financeira (diversificação internacional de risco; comércio
intertemporal; disciplina macroeconômica), tais oscilações não seriam uma questão teórica relevante: o capital deveria
fluir de modo contínuo para onde ele é escasso, onde as taxas de juros são mais altas e as oportunidades de
investimentos são melhores e, enfim, para onde a política econômica é “correta”. Ver, novamente, Biancareli (2010).
24 Neste sentido, o posicionamento mais explícito do FMI a favor de controles de capital (Ostry et al., 2010 e 2011; IMF,
2011), é um outro sinal importante dos tempos.
25 Tais elementos são enfatizados por uma ampla e variada literatura abrigada sob o genérico título de “financeirização”
ou “capitalismo financeirizado”. Para um dos bons balanços dessa abordagem, ver Guttmann (2008).
25
forma de operações bancárias, compra e venda de títulos e ações e, em menor medida, IDE.
Como já discutido, o grosso dessa movimentação se dá a partir de operações alavancadas, são
criação de moeda, finance, e não distribuição da poupança existente, funding. A lógica é sempre a
busca de ganhos de capital de curto prazo, em diferentes praças e moedas. Quando se acrescenta
a falta de regras claras e a natureza fiduciária que caracterizam a ordem monetária internacional
contemporânea, o espaço para especulação e bruscas reversões de expectativas se amplia.
Em segundo lugar, a posição dos países em desenvolvimento nesse quadro é entendida
como ainda mais suscetível à instabilidade, por conta de três assimetrias desfavoráveis que
também caracterizam o ambiente internacional contemporâneo: a financeira (diminuta
importância nas carteiras de aplicadores globais e pouca relevância na determinação do
movimento geral dos fluxos); a macroeconômica (limites à execução de políticas monetárias
domésticas, mesmo sob câmbio flutuante); e monetária (Prates, 2005; Ocampo, 2001). Esta
última é a mais importante, e decorre do não exercício efetivo, por parte das moedas periféricas,
de nenhuma das três funções monetárias no plano internacional. Ativos nelas denominados
tendem a ser, por essa razão, sempre posições provisórias; tais moedas não seriam suficientes, na
linguagem keynesiana, para “acalmar a inquietude” dos aplicadores globais. Logo, são moedas
menos líquidas, e fases de maior interesse por elas podem ser interpretadas como de redução na
preferência pela liquidez no plano internacional, ou de redução na aversão ao risco26.
Seria essa a explicação do ciclo de liquidez para economias em desenvolvimento. Como
em um ciclo minskyano estilizado, pode ser identificada aqui uma fase ascendente – ou seja, um
período de otimismo, no qual as expectativas sobre rendimentos futuros autorizam a celebração
de contratos financeiros com margens de segurança cada vez menores – caracterizada por
algumas crenças comuns sobre as economias receptoras dos fluxos, seus riscos e oportunidades
futuras. Na formulação original, a crescente fragilidade financeira se transforma em crise a partir
de um choque de expectativas, que reverte o otimismo e gera aumento súbito na preferência pela
liquidez (Minsky, 1982). Transportado o raciocínio para as relações internacionais, um evento que
induzisse à reavaliação das combinações de risco e retorno dos ativos denominados em moedas
inferiores seria capaz de provocar uma “fuga para a qualidade” – a elevação na aversão ao risco
ou na preferência pela liquidez no plano internacional.
Observando-se as trajetórias dos fluxos de capital para as economias em
desenvolvimento, medidos na Figura 3 pelos dados de inflows (não residentes) desde 1995, não é
26
Ver sobre a hierarquia monetária e a liquidez das moedas, entre outros, Carneiro (2008) e Conti (2011).
26
difícil localizar as fases de otimismo e pessimismo, ou de “cheia” e “seca” dos ciclos de liquidez
que seguem esta lógica descrita. E também fica claro o caráter bem mais volátil das modalidades
de Carteira e Outros Investimentos (operações bancárias) nas diferentes conjunturas. Depois de
uma longa fase de escassez que durou toda a “década perdida” dos 1980 (que por usa vez
sucedeu a fase de abundância dos anos 1970), a disponibilidade de financiamento é crescente até
as crises cambiais e financeiras em 1997 na Ásia, que inicia o período de turbulência que duraria
até 2002. De 2003 em diante, com a operação dos mecanismos já descritos acima, o mundo em
desenvolvimento assiste à mais expressiva (sob qualquer critério) fase de cheia, que se encerra
em 2008 com o auge crise internacional originada no financiamento imobiliário nos Estados
Unidos.
Como também já comentado essa fase de seca foi, apesar de intensa, curta, com os
números absolutos retornando já em 2010 para patamares próximos aos recordes anteriormente
atingidos. Quando este número geral é separado por regiões a recuperação aparece ainda mais
forte e rápida: a “Ásia Emergente” e a América Latina já sofrem a “retomada súbita” em 2009, e
novos recordes são atingidos na sequência; a continuidade da escassez em 2009 e a recuperação
ainda muito tímida só em 2010 é uma característica da “Europa Emergente” (IMF, 2011; IIF,
2012).27 São estas novidades que requerem algumas considerações adicionais sobre os ciclos e os
fatores que os influenciam.
Figura 3 Fluxos privados de capital de não residentes (inflows) para economias emergentes, % do PIB e US$ milhões, 1995-2012
e: estimativas em outubro/2012
p: previsões em outubro/2012 Fonte: IIF, elaboração própria.
27
No agrupamento do IIF, esta última região é composta por: Bulgária, Hungria, Polônia, República Tcheca, Romênia,
Rússia, Turquia e Ucrânia.
27
O debate teórico e empírico sobre os determinantes dos fluxos de capital – a disputa
entre os pull e push factors – é antigo, e também presente entre os economistas mainstream,
mesmo quando não assumem a existência de ciclos28. Ao contrário da visão ortodoxa, a
interpretação crítica aqui privilegiada tende a dar mais ênfase às condições externas aos
receptores (como as taxas de crescimento e de juros nos países centrais e o grau de aversão ao
risco) do que aos “bons fundamentos”, como políticas macroeconômicas “corretas” e seus
resultados.
O momento da reversão da “cheia” pode ser explicado em grande parte por fatores
psicológicos (como o era o “momento Minsky” original): parece claro que crises financeiras têm
capacidade de reverter muito rapidamente fases de otimismo com os “mercados emergentes”,
independente do estado dos “fundamentos” e outras condições domésticas. Também já foi
enfatizada a importância das condições monetárias excepcionais nos países centrais na
compreensão do cenário financeiro pós-2008. Porém, a extensão da “fase de seca” anterior (1998
a 2002), em contraste com sua brevidade e maior seletividade agora, joga luz sobre outros
aspectos da complexa interação entre fatores internos e externos. Especificamente, a duração de
um período de dificuldades, ou a probabilidade de uma “fuga para a qualidade” ser rapidamente
revertida ou persistir, parece associada com o tamanho e as condições dos compromissos
assumidos durante o período de abundância. Mas esse tipo de fragilidade financeira, por se tratar
de passivos assumidos no plano internacional, também requer alguns acréscimos em relação ao
conceito original minskyano. O principal deles se refere não aos juros ou garantias do
compromisso financeiro, mas à sua moeda de denominação.
No já citado texto de Akyuz (2011), são elencadas algumas das mais recorrentes fontes de
vulnerabilidade dos países em desenvolvimento a uma reversão nos fluxos de capital: a criação de
bolhas de crédito e ativos nos períodos de euforia; a concomitância com o ciclo de preços de
commodities (que torna vulnerável também a Conta Corrente); a expansão descontrolada do
crédito doméstico com funding externo (especialmente quando direcionado para o consumo e a
produção de bens não comercializáveis); e a acumulação de passivos em moeda estrangeira,
produtos da apreciação cambial e de déficits em Conta Corrente.
28
Os examples vão desde a discussão sobre o retorno dos fluxos para a América Latina no início dos anos 1990 (Calvo et
al., 1993; El-Erian, 1992) até exames recentes dos movimentos ocorridos depois de 2008 (Fratzcher, 2011).
28
É para estes dois últimos fenômenos que importa chamar a atenção, notando que têm
sido enfatizados nos últimos tempos também por economistas do mainstream, desde a
identificação das “crises gêmeas” durante os anos 1990: crises cambiais que, por conta dos
passivos dolarizados acumulados pelo setor público, famílias, companhias e bancos, se transforma
numa crise financeira e muitas vezes também fiscal (Kaminsky e Reinhart, 1999). De fato, a
abordagem denominada balance-sheet approach para analisar as vulnerabilidades dos países em
desenvolvimento – cujos melhores exemplos são os conceitos de “descasamento de moedas”
(Goldstein eTurner, 2004) e “pecado original” (Eingengreen e Haussman, orgs., 2005) – é capaz de
incorporar vários elementos fundamentais. Mais importante, enfatizam os pontos chave para
compreender os novos contornos dos ciclos de liquidez. E aqui pode-se voltar à diferenciação
regional no período pós-2008, bastante reveladora.
Durante a fase de “cheia” dos fluxos, até 2008, economias emergentes europeias –
notadamente Hungria e Ucrânia, mas com outros exemplos na região – experimentaram uma
dinâmica semelhante à vivida pelos asiáticos e latino-americanos até meados da década anterior.
As altas taxas de crescimento econômico, turbinadas pela forte entrada de fluxos de capital de
não residentes (principalmente na forma de dívida bancária de curto prazo), foram
acompanhadas por apreciação das moedas nacionais, grandes e crescentes déficits em Conta
Corrente, significativos estoques de dívida em moeda estrangeira. Boa parte de tal dívida foi
repassada como crédito doméstico pelo sistema financeiro local. Mesmo com situações nacionais
bastante distintas em vários indicadores chave (preços de imóveis, inflação, contas públicas), o
impacto da crise foi forte e disseminado por várias economias da região, e o descasamento de
moedas nos balanços dos bancos (e outros agentes) foram os ingredientes principais das
dificuldades quando da ocorrência da “parada súbita”. Acompanhando uma crise cambial clássica
(que exigiu o recurso ao FMI em vários casos), sobreveio uma financeira, agravando os estragos29.
Não é difícil de compreender porque, mesmo em um ambiente global muito propício à “caça de
rendimentos”, os fluxos de capital custaram a retornar para essa região.
29
As cifras são impressionantes. O déficit em Conta Corrente do agregado Central and Eastern Europe da base de dados
do IMF-WEO era inferior a -8% do PIB em 2007 e 2008. Na Bulgária ele foi de -30% em 2007 e na Letônia girava em
torno de 20% em 2006 e 2007. Como seria de se esperar, os efeitos da crise foram devastadores: o crescimento do PIB
regional cai de mais de 6% entre 2004 e 2007 para -3,6% em 2009. Individualmente, as maiores perdas se verificaram
na Letônia (-18%), Lituânia e Ucrânia (ambos ao redor de -15%).
29
Sob este prisma, também é possível compreender o contraste com a volta dos fluxos para
Ásia e a América Latina. Em que pesem as enormes diferenças entre estas regiões, alguns
processos comuns parecem ter desempenhado papel importante, antes e depois de 2008. A
começar das contas correntes, superavitárias ou levemente deficitárias (pelas mais diferentes
razões como já comentado), e que permitem forte acumulação de reservas e portanto de
proteção contra movimentos bruscos nas taxas de câmbio. Outra consequência é a melhora na
situação patrimonial das economias (em termos da “posição internacional de investimento”)
e, ainda mais relevante, a redução no descasamento de moedas entre ativos e passivos. Também
fundamental é outra peculiaridade desta fase de cheia, quando comparada com o dos anos
1990: a maior presença de investidores estrangeiros nos mercados locais de títulos e ações, e
uma menor parcela de dívida bancária e securitizada negociadas no exterior (em moeda
estrangeira)30, 31.
É com base nestas mudanças de fundo, verificadas em boa parte dos países em
desenvolvimento, aliadas aos impasses e tendências globais acima resumidas, que se projeta a
continuidade desta nova configuração dos ciclos de liquidez para países em desenvolvimento.
Mesmo levando em conta todas as possíveis fontes de turbulência presentes no cenário atual,
capazes de gerar nova elevação da aversão ao risco e mesmo uma nova rodada de “fuga para a
qualidade”, é difícil projetar uma “fase de seca” duradoura diante de uma combinação tão
peculiar entre os fatores internos ou externos que influenciam estas movimentações (e
criações/destruições) da riqueza financeira. Ainda que pareça paradoxal, os reflexos de um
mundo ainda mergulhado na crise e nas suas incertezas não se traduzem necessariamente em
escassez de financiamento externo para a periferia (ou para boa parte dela). Com especificidades
importantes, este é o caso do Brasil.
30
Outros fatores internos – os melhores “fundamentos” fiscais e de inflação; uma melhor gestão macroeconômica,
taxas de crescimento verificadas e projetadas maiores que a do mundo quase estagnado, em alguns casos os altos
diferenciais de taxas de juros – também podem ter seu papel explicativo na “retomada súbita”. Mas parecem estar
subordinados a essa mudança de fundo verificada no tamanho e na composição dos ativos e passivos externos.
31 Outro aspecto da volta dos fluxos e da previsão para uma fase de cheia mais duradoura se refere ao comportamento
do IDE (que tem alguns determinantes mais específicos). Como pode ser visto no painel direito da Figura 3 e é discutido
nas últimas edições do World Investment Report da UNCTAD, a reação deste tipo de fluxo à crise foi atrasada em
relação às modalidades mais voláteis. Mas principalmente para destinos com melhores perspectivas de crescimento do
mercado interno (em meio ao baixo crescimento do PIB e do comércio globais), os fluxos já retomaram seu patamar
pré-2008 e tendem a se manter fortes.
30
4 Fluxos para o Brasil: volatilidade, abundância e melhora
Desde que os passos decisivos no processo de abertura financeira foram dados, ainda no
início dos anos 1990, pode-se dizer que a economia brasileira engatou-se de maneira bastante
estreita a à dinâmica cíclica dos fluxos de capital abordada acima, ainda que com algumas
peculiaridades, como retratado na Figura 4. A primeira “fase de cheia”, no início da qual foram
implementadas as alterações regulatórias que facilitaram a livre movimentação de aplicadores e
recursos não residentes, teve como impacto uma certa “folga” no Balanço de Pagamentos, que
passa a se verificar principalmente a partir de 1992, encerrando a longa escassez dos anos 198032.
Uma das consequências foi a acumulação progressiva de reservas internacionais, que por sua vez
são fundamentais para a viabilização da estratégia de estabilização com âncora cambial
implementada com êxito em 1994. De modo análogo, o abandono forçado do câmbio fixo no
início de 1999 é impossível de se compreender sem levar em conta a reversão do ciclo
internacional de liquidez a partir de 1997 (que atinge o país em um momento de déficit em Conta
Corrente grande e crescente, como já visto). A segunda “crise cambial” desse período, em 2002,
também é em parte reflexo de processos mais gerais para todos os países em desenvolvimento,
ainda durante a “fase de seca” do primeiro ciclo (ver Figura A1).
Já o segundo ciclo atinge seu ápice, para os países em desenvolvimento em geral e o
Brasil em particular, no ano de 2007. Sempre pela métrica aqui privilegiada (fluxos acumulados
em 12 meses), o total de inflows é um recorde absoluto, tanto em termos nominais (pouco menos
de US$ 125 bilhões) quanto em participação no PIB (quase 10%) em julho/agosto daquele ano.
Tratou-se, como pode ser observado na Figura 4, da combinação de valores muito expressivos nas
três principais modalidades, mas é decisiva a escalada dos Investimentos de Carteira e Outros
Investimentos, assim como tinha se verificado em outros momentos anteriores de pico: maio de
1996 e julho de 199833. Nestes dois casos, assim como em 2007, ao auge se seguiram quedas
pronunciadas e rápidas, também lideradas por estas duas modalidades, que confirmam assim, nos
registros brasileiros, a condição de muito maior volatilidade do que o IDE.
É este movimento de reversão nos inflows em 2007/08, e a retomada rápida já no ano
seguinte, que interessa destacar aqui, inclusive com olhos para o futuro. Quanto à “parada 32
O saldo na Conta Financeira deste ano foi de quase US$ 10 bilhões, em forte contraste com a média de US$ 2,5
bilhões verificada nos 10 anos anteriores.
33 O outro momento destacado no gráfico (maio de 2001), deve-se muito mais à contribuição, lenta e crescente, dos
fluxos de IDE, ainda colhendo os frutos do processo de privatização (e desnacionalização) de importantes estatais.
31
súbita”, não devem restar dúvidas em relação às suas causas, exclusivamente externas e ligadas à
crise originada no segmento subprime das hipotecas nos Estados Unidos e espraiada por boa
parte do sistema financeiro global. Não por acaso, são os fluxos de carteira e operações bancárias,
tipicamente mais sensíveis aos push factors, que dão forma à “fuga para a qualidade” (ver o
detalhamento na Figura 5). Enquanto isso, a economia brasileira ostentava um considerável leque
de fatores de atração, que se mantinham presentes em 2008: retomada do crescimento e novas
oportunidades de investimentos, valorização dos mercados de títulos e ações, apreciação cambial
e elevado diferencial de juros.
Já a volta dos fluxos responde a uma interação mais complexa entre fatores internos e
externos, que se combinam de maneiras diferentes ao longo dos últimos quase quatro anos. O
resultado – que resulta da observação conjunta das Figuras 4 e 5 – é uma recuperação pós-2008
em duas etapas, com importantes diferenças quanto ao perfil do financiamento atraído.
Figura 4
Fluxos de capital de não residentes (inflows) para o Brasil, total e por tipos*, acumulados em 12 meses
em % PIB, jan/1996-jul/2012
*Tanto para o valor total quanto para o de Outros Investimentos, estão excluídas as “Operações de
Regularização”.
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria.
A primeira fase, que no acumulado em 12 meses é clara só a partir de agosto de 2009
(mas nos registros mensais já se identifica a partir de março), corresponde a uma ascensão
32
vertical dos investimentos em Ações (principalmente), Títulos e Outros Investimentos, e não
esconde seu caráter curto-prazista ou especulativo. Afastados (ou adiados) os riscos sistêmicos
mais graves, reduzida a aversão global ao risco e configurado o ambiente de excepcional liquidez
nos países centrais, a retomada da busca por rendimento encontra nos ativos brasileiros (parte
deles denominada na moeda que mais se valoriza naquele período) um refúgio muito lucrativo.
Aqui também não devem restar dúvidas: o principal determinante doméstico dessa volta é a
combinação entre o diferencial de juros (que inclusive se eleva naquele momento) e as
perspectivas de apreciação cambial.
É fato que também jogam um papel importante melhoras estruturais, relativas aos
estoques de ativos e passivos externos – apontados na seção anterior como decisivos para a
velocidade e seletividade da retomada do ciclo de liquidez para economias em desenvolvimento
como um todo, e que serão detalhadas para o caso brasileiro na seção seguinte. Mais verdadeira,
porém, é a afirmação de que o Brasil recuperava a “folga” no Balanço de Pagamentos (já sob
déficit em Conta Corrente) por meio dos piores tipos de fluxos, cujas mostras de volatilidade (e
“não-confiabilidade”) tinham acabado de ficar claras. E a principal motivação disso era a deletéria
combinação câmbio-juros doméstica.
Contribuiu ainda para esse perfil problemático do financiamento uma retração dos fluxos
de IDE, atrasada diante da velocidade das outras modalidades, e que não é exclusiva para o caso
brasileiro, como já visto. O auge deste padrão inferior, sempre ressalvada as defasagens inerentes
à mensuração pelos acumulados em 12 meses, se dá em entre junho e agosto de 2010, quando já
em patamar bastante significativo (pouco mais de US$120 bilhões ou 6% do PIB) o total de inflows
atraídos pelo Brasil era composto em cerca de 80% por Carteira e Outros Investimentos. Além de
bastante reduzida, a parcela do IDE naquele momento cobria apenas 60% do déficit em
Transações Correntes, revelando a dependência dos fluxos mais voláteis.
A partir de então, uma segunda fase se configura, e desde meados de 2011, o montante
total de inflows sofre nítida redução, dos 7,5% do PIB que chegou a atingir para algo em torno de
4,5%, patamar que ainda segue bastante confortável. Mais importante, no entanto, é a melhora
qualitativa dos fluxos atraídos, com forte aumento do IDE, um movimento quase espelhado nos
Investimentos de Carteira e também retração dos empréstimos bancários. As cifras do parágrafo
anterior se invertem completamente: as modalidades mais voláteis não ultrapassam mais 50% do
financiamento externo desde outubro de 2011 e, principalmente, o IDE cobre com folgas (em
alguns momentos de até 50%) o déficit em Conta Corrente.
33
Figura 5
Fluxos de capital de não residentes (inflows) para o Brasil, por tipos*, em US$ milhões e % PIB, jan/2007-jul/2012
*Excluídas as “Operações de Regularização”.
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria.
Os determinantes destas tendências são múltiplos, mas desta feita essencialmente
domésticos – já que o ambiente externo favorável à fase de cheia do ciclo permanece, ainda que
pontuado por muito mais volatilidade diante do agravamento progressivo da situação europeia.
Um primeiro aspecto é a retração nas aplicações de Carteira (anterior nas Ações mas
igualmente intensa nos Títulos de Renda Fixa) e nos Outros Investimentos. Ainda que alguns
episódios de elevação da aversão ao risco global possam ter tido influência, passageira, esta
retração parece responder mesmo ao enfraquecimento das duas principais fontes de valorização
deste capital mais arisco: o diferencial de juros e a apreciação cambial. O primeiro deles, que
influencia Títulos e Outros Investimentos, decorre não apenas do movimento de queda do preço
do dinheiro no Brasil – que se faz presente apenas a partir de agosto de 2011 (tendo aumentado
até então) e demora para afetar diretamente esta diferença – mas também dos controles de
capital, na forma da tributação sobre este tipo de ingresso. A partir de outubro de 2009, o
governo progressivamente institui ou amplia as alíquotas do IOF incidente em títulos de bancos e
empresas, e também sobre empréstimos externos (de prazos cada vez maiores), em trajetória
34
justificada oficialmente pela necessidade de conter o excesso de divisas e a decorrente apreciação
cambial34.
Se é verdade que tal estratégia – pelo menos enquanto não envolveu taxações e limites
sobre as posições dos agentes nos mercados futuros de câmbio – não foi capaz de conter a
valorização do real, os dados sugerem que foram sim eficientes em reduzir a entrada de um tipo
indesejável (e desnecessário) de financiamento externo. O que é coerente com a argumentação
de Rossi (2012) e Prates (2012), de que há (ou havia) no Brasil um elevado grau de independência
da determinação da taxa de câmbio em relação aos fluxos registrados no Balanço de Pagamentos.
De qualquer modo, quando às medidas disciplinadoras impostas no próprio mercado cambial se
soma a queda da Selic (de 12,50% a.a. em agosto de 2011 para 7,25% a.a. em outubro de 2012), o
movimento de apreciação finalmente é contido e, a partir do segundo trimestre de 2012, o preço
do dólar sobe e passa a oscilar pouco acima de R$ 2,00, entendido informalmente como um piso.
Vale repetir: mais importante do que um “desencanto” dos aplicadores globais com os
papéis brasileiros de renda fixa e variável (que decorreriam do excesso de intervenção estatal na
economia), a queda forte nestas modalidades de financiamento decorre do fim dos ganhos certos
com a combinação câmbio-juros, perversa para o crescimento e a indústria nacional e formidável
para tais agentes. Um suposto “encantamento” alternativo com outros países (como o México)
deve ser entendido, na perspectiva aqui adotada, como tendência positiva. O Brasil
contabilmente não necessita de grande volume de Investimentos de Carteira ou Outros
Investimentos – ainda que em uma necessidade conjuntural a atratividade possa ser ampliada por
meio do relaxamento das alíquotas e prazos do IOF, como aliás foi feito no primeiro trimestre de
2012. Também por este lado – o de ganhar margem de manobra – a adoção dos controles de
capital revela-se importante.
O segundo aspecto da melhora qualitativa no financiamento externo no período mais
recente é a recuperação dos fluxos de IDE, sobre o qual também houve intensa controvérsia. Ao
longo de 2011, quando ao mesmo tempo se reforçava o IOF sobre as modalidades mais voláteis, e
os fluxos de investimento direto subiam, não foram poucos os observadores a associar os dois
movimentos. Estaria havendo um “disfarce” de fluxos especulativos por meio do IDE, o que não
apenas comprovaria a ineficácia dos controles de capital mas também negaria qualquer melhora
no perfil dos fluxos atraídos. As evidências principais para essa associação seriam: as taxas de
crescimento (entre junho e agosto de 2011, os fluxos de IDE acumulados em 12 meses foram mais 34
A Tabela A1 no Anexo sintetiza a evolução recente da taxação via IOF, para essas e as outras modalidades
comentadas abaixo.
35
de 170% superiores aos do mesmo período de 2010), um aumento da volatilidade e alto
crescimento de operações com valores reduzidos (IPEA, 2011) e uma elevada participação dos
Empréstimos intercompanhia nos montantes totais atraídos (naquele momento, ao redor de
20%). Os mecanismos jurídicos e operacionais para esse “drible” na classificação do tipo de fluxo e
na tentativa de controle chegaram até a ser detalhados na imprensa (Luchesi, 2011), ainda que
também ficassem claros a complexidade, os riscos e o alto custo envolvido nas operações que
transformavam em IDE aplicações interessadas no diferencial de juros.
É possível, até provável, que em um sentido bem geral – a antecipação do ingresso de
recursos de projetos de investimentos com cronograma originalmente espaçado no tempo – e
para algumas operações volumosas e arriscadas, esse movimento tenha ocorrido. Porém, alguns
detalhes estatísticos e operacionais, e principalmente a passagem do tempo, deixam claro que o
ocorrido em 2011 não invalida o sentido geral de melhora aqui apontado. Em primeiro lugar, a
magnitude dos números de IDE em 2011 (que incentivam a busca por alguma explicação fora do
comum) se deve muito mais à baixa taxa de comparação de 2010. A Figura 5 mostra que se
tratava de uma recuperação para patamares próximos aos de meados 2009, e a 4 apresenta a
perspectiva histórica mais longa, a relativizar a excepcionalidade daquele momento. Em segundo,
a importância dos Empréstimos intercompanhia no argumento se enfraquece quando se
considera que a parcela de 20% não é característica apenas daquela conjuntura (em 2008/09 essa
cifra superava os 30%) e principalmente pelo fato, ignorado em muitas análises, de que essa
modalidade de ingresso também está sujeita à tributação do IOF nas mesmas condições que os
empréstimos bancários. Mas a evidência definitiva é o que ocorre ao longo de 2012: a
persistência – que surpreendeu – dos fluxos de IDE em patamares bastante elevados mesmo em
um ambiente muito menos atrativo para fluxos de curto prazo indica que existiam, e existem,
fortes motivos “reais” para a entrada de IDE no Brasil.
Os eventuais problemas decorrentes dos fluxos muito volumosos nesta modalidade, como
já apontados na seção 2, têm relação com as remessas de lucros, não com uma eventual saída dos
estoques. E, para os fins que mais interessam aqui: a melhora qualitativa no financiamento
externo brasileiro, definitivamente, não é especulação disfarçada.
Assim, se o ambiente financeiro internacional, mesmo diante das incertezas e
turbulências muito mais presentes, permanece amplamente favorável à busca por rendimento
em praças periféricas; se as condições da economia brasileira, no que se refere a grandes projetos
de investimentos e perspectivas de expansão, seguem promissoras e tendem a seguir atraindo
36
IDE; e se o país conseguiu reduzir significativamente as fontes “perversas” de atração do capital
mais especulativo sem qualquer sobressalto (pelo contrário, ganhou-se raios de manobra para
voltar a atraí-los se necessário), fica difícil imaginar um período continuado de “fuga de capital”
ou dificuldades para “fechar” o Balanço de Pagamentos, similar ao experimentado, por exemplo,
entre 1998 e 2002. Inclusive porque, se ela vier, tende a causar muito menos estragos e ser muito
mais rapidamente superada (como foi em 2009). Isto remete ao último aspecto aqui considerado.
5 Os estoques e a proteção ampliada
As seções anteriores examinaram de maneira sucessiva diferentes dimensões do setor
externo da economia brasileira, e em todas elas destacaram-se as especificidades do momento
atual e das perspectivas, que configuram um quadro complexo mas não necessariamente
negativo. Pelo menos não no sentido que caracterizou vários períodos históricos precedentes.
Resta uma última dimensão para completar o quadro, a dos estoques de ativos e passivos
externos, e aqui a situação pode ser definida em termos mais diretos: por razões nem sempre
levadas em conta no debate nacional, a posição do país é significativamente melhor do que no
passado, com alguns aspectos de mudança estrutural.
Já foi destacada na seção 1, e o exemplo histórico dos anos 1970 torna impossível
esquecer, a importância do tamanho e da estrutura de passivos externos na definição do
resultado da Conta Corrente. Quando a assunção de compromissos externos, consequência
contábil da ocorrência de um déficit nas Transações Correntes, se dá na forma de dívida externa,
a implicação sobre as Rendas é imediata: um cronograma inescapável de despesas, que tende a se
agravar em situações difíceis. No caso da maioria absoluta dos países em desenvolvimento, que
não se endividam externamente na sua própria moeda, esses compromissos de pagamento são
suscetíveis às variações da taxa de câmbio e, em grande parte das vezes, têm outras cláusulas de
correção que protegem o credor internacional (sendo o exemplo mais trágico, na história
brasileira, as taxas de juros flutuantes e seus efeitos após 1979). Por esse caminho, ou o passivo
externo (no caso, a dívida) se eleva por conta de seu próprio serviço ou, diante de dificuldades de
levar esse processo adiante, a economia tem que se ajustar, sofrendo os sintomas típicos de uma
crise cambial: desvalorização acentuada da moeda nacional, empréstimos junto ao FMI, recessão
para diminuir as importações etc. A desvalorização, neste caso, eleva o estoque e o serviço da
dívida quando medidos em moeda nacional. Para piorar, em alguns casos (recorrentemente no
Brasil), esta dívida acaba sendo transferida ao setor público, adicionado um caráter fiscal à crise.
37
Em outras palavras, a acumulação continuada de passivos na forma de dívida em moeda
estrangeira é o mais perfeito exemplo de “vulnerabilidade externa” decorrente dos estoques,
para o qual uma desvalorização cambial não traz alívio, muito pelo contrário. Neste aspecto, não
pode haver dúvida de que a situação brasileira melhorou de maneira muito significativa ao longo
dos anos 2000. A dívida externa total atingia ao fim do primeiro semestre de 2012 menos de 13%
do PIB (contra, por exemplo 45% em 2002); era 1,2 vezes o volume das exportações anuais
(contra 3,5 vezes); e as reservas internacionais representam mais de 123% do seu valor (contra
menos de 20%). Esse último número também indica que o Brasil tem (desde 2007) dívida externa
líquida negativa (já que estes ativos do país são mais do que suficientes para honrá-la). Houve,
principalmente em 2010, um crescimento em algumas rubricas que, principalmente diante das
baixíssimas taxas de comparação, chamou a atenção de alguns analistas (ver, por exemplo, IEDI,
2010). Mas está claro que em termos relativos (ao PIB, às exportações etc.) aquele movimento
passava longe de invalidar a tendência geral de ampla melhora. Que fica mais importante quando
se considera que a propriedade deste estoque de compromissos: a parcela pública do estoque de
dívida, que na primeira metade da década passada superou os 65%, é hoje de 35%.
Ou seja, mesmo apresentando déficits correntes quase sempre, o Brasil se desendividou
externamente de maneira inequívoca nos últimos anos. A razão para isso é óbvia: não existe
apenas uma forma de passivo externo, e avaliar a vulnerabilidade a partir apenas dela é desprezar
as mudanças das últimas décadas nas relações financeiras internacionais, marcadas justamente
pelo ganho de importância da securitização em detrimento dos tradicionais empréstimos
bancários. Mesmo que não haja impacto significativo destas formas de passivo sobre a Conta
Corrente (as Rendas de Investimento de Carteira não têm uma data certa nem a certeza de serem
remetidas), o risco aqui se localizaria na própria Conta Financeira. Volátil por natureza (como já
visto para o caso brasileiro na seção anterior), este tipo de compromisso é passível de liquidação
imediata, bastando (a princípio) o detentor não residente se desfazer do título ou ação emitido
por um residente. A ameaça seria de uma fuga de recursos de não residentes, mais elevada
quanto maior for o seu estoque de passivos dessa natureza.
Por isto é que conceitos e indicadores mais amplos de vulnerabilidade externa, como os
desenvolvidos por Prates (2003), avançam na compreensão desta realidade modificada. Ao invés
de medir a solvência (capacidade de pagamento de longo prazo) do país dividindo apenas o
estoque de dívida externa pelas exportações, inclui-se no numerador também os passivos na
forma de IDE e Carteira (ações e títulos de renda fixa). Do mesmo modo, o indicador de liquidez
leva em conta não apenas a dívida de curto prazo, mas também todo o estoque de Investimento
38
Estrangeiro de Carteira. Assim avaliada, a vulnerabilidade externa brasileira é muito maior, tendo
de maneira geral aumentado ao longo dos anos 2000, principalmente no conceito liquidez.
Observando a evolução trimestral dos estoques de passivos externos brasileiros desde 2001, no
painel esquerdo da Figura 6, de fato há um sensível ganho de importância dos compromissos de
carteira (ao lado do IDE), enquanto o crescimento em termos absolutos do estoque de Outros
Investimentos é muito menor35.
Tabela 2 Brasil: Posição Internacional de Investimento, Ativos e Passivos externos, em US$ milhões, 2001-2012
* até junho/2012
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria.
Raciocínio semelhante leva autores como Gonçalves (2011) e Cano (2012) a comparar o
total de passivos de Carteira e o estoque de reservas internacionais para concluir sobre a
fragilidade da posição externa brasileira, ou o potencial de ameaça de uma fuga de capital.36 Com
os números atualizados até o terceiro trimestre de 2012 mostrados na Tabela 2, observa-se que
de fato o estoque total destes compromissos era de US$ 585,7 bilhões, mais de 50% maior do que
as reservas no mesmo momento. Seria portanto a melhora na situação patrimonial externa do
pais uma ilusão, fruto de um exame inadequado e ultrapassado do que seja a vulnerabilidade?
35
Como se verifica na Tabela 2, do final de 2001 à metade de 2012, os passivos na forma de Outros Investimentos
crescem 22% (enquanto a evolução do IDE e dos passivos de Carteira são, respectivamente, de 442% e 518%). Em
termos relativos, Outros Investimentos caem de 28% para apenas 8%.
36 Gonçalves (2011) calcula o “passivo externo financeiro líquido” (total do passivo, menos IDE, menos as reservas), e
alerta para seu aumento. Pelos números da Tabela 2, esse indicador de fato passa de US$ 212,8 bilhões ao final de 2001
para US$ 403,2 bilhões na metade de 2012. Cano (2012, p. 15-6), por sua vez, afirma com todas as letras: “...há que
considerar que grande parte do investimento externo se constitui hoje de títulos em carteira, mais facilmente
mobilizáveis e passíveis, portanto de fuga mais rápida. Como superam as reservas, a vulnerabilidade ainda se mantém.”
39
Argumenta-se aqui que não, e a justificativa se encontra nos fenômenos já identificados,
na seção sobre os ciclos de liquidez, como importantes para a “retomada súbita” dos fluxos de
capitais para os países em desenvolvimento em geral. E que se relacionam com os aspectos da
vulnerabilidade enfatizados pela literatura do “balance-sheet approach”. Sua identificação, no
caso brasileiro, requer um degrau a mais de detalhamento da composição dos passivos,
particularmente os de carteira.
Além dos fatos já destacados, observa-se na Tabela 2 e no painel direito da Figura 6 que o
local de negociação tanto de Investimentos em ações quanto de Títulos de renda fixa vem
sofrendo uma mudança fundamental ao longo dessa última década. Somadas as duas categorias,
a parcela desses passivos negociadas no país – e portanto em moeda nacional – passa de 16% ao
fim de 2001 (ou 8% no ano seguinte) para quase 60% no último dado disponível. Há um claro
processo de “des-dolarização” dos passivos em carteira, mas não só deles. Considerando que
também os Investimentos Diretos na forma de Participação no capital são necessariamente em
moeda doméstica, contata-se que o grau de currency mismatch reduziu-se drasticamente: do
total dos passivos externos, 32,6% era denominado em reais no fim de 2001, e pelo último dado
somam 62,1%.
Figura 6 Brasil: passivos externos, por tipos, em US$ milhões, IV.2001-II.2012
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria, elaboração própria.
As implicações desta mudança são bastante relevantes na análise de vulnerabilidade
externa. Como o Brasil vive sob regime de câmbio flutuante desde 1999 (apesar das necessárias
intervenções oficiais), qualquer momento de “crise externa” se faz sentir na cotação da moeda
estrangeira. Nestas situações, ao contrário do que ocorre com os passivos dolarizados, a situação
patrimonial decorrente dos compromissos negociados no país melhora, reduz-se a
40
vulnerabilidade – e quanto maior for a desvalorização, maior a queda nos passivos. É de se
esperar que, em uma situação de crise, uma tentativa de venda aflitiva de boa parte do passivo de
carteira negociado no país provoque (antes mesmo da “fuga de capital” se verificar) uma forte
elevação da cotação do dólar, fazendo automaticamente desinflar boa parte do “potencial de
ameaça às reservas”, sem que estas mudem de valor.
Isto não significa, no entanto, que o total de passivos de carteira em moeda estrangeira
possa, este sim, ser tomado como potencial de ameaça às reservas37. Certamente essa venda
aflitiva de ativos financeiros não mexeria apenas no câmbio, mas também no próprio valor de
mercado das ações e títulos de renda fixa. E este é um segundo efeito decorrente da acumulação
de passivos de carteira: seu valor depende das oscilações de mercado, para o bem e para o mal.
Em meio a uma queda generalizada das bolsas e mercados de títulos, para que os não residentes
se desfaçam dos seus ativos emitidos por brasileiros e provoquem grande saída pela Conta
Financeira, terão que aceitar grande redução nos valores, o que por si só já reduz o tamanho
potencial desta saída. Ressalte-se que esse segundo efeito afeta também os passivos de carteira
negociados no exterior, desde que a queda no valor das cotações não seja exclusividade do
mercado nacional.
Dito de outra maneira: se é verdade que os passivos de carteira são potencialmente
exigíveis no curto prazo (ao contrário do IDE), também o é que para serem desfeitos, esses
compromissos precisam ser vendidos, e seus valores são definidos a cada momento pelas
compras e vendas nos mercados. Além disso, a moeda em que estão sendo negociados estes
passivos importa, já que as oscilações na taxa de câmbio também sofrem a influência das compras
e vendas, e definem o valor total dos compromissos externos.
As considerações e conjecturas dos últimos parágrafos não precisam ficar no campo das
hipóteses; basta observar o que ocorreu quando no momento mais agudo da crise internacional –
quando se verificou uma forte desvalorização da moeda nacional e uma queda igualmente
intensa dos mercados de títulos e ações, no Brasil e no exterior. Como se visualiza na Figura 6,
“desapareceram” do estoque total de passivos externos brasileiros, entre o segundo e o quarto
trimestres de 2008, nada menos do que US$ 346 bilhões. Trata-se de montante em muito
superior ao total de reservas detidas pelo país na época, mas o abalo nesse escudo de proteção
foi bastante suave: de US$ 200 bilhões em junho elas passam para US$ 194 bilhões em dezembro.
Por outro ângulo, essa queima total de passivos representou, do ponto de vista dos fluxos de não 37
O que, pelos últimos dados disponíveis representaria um montante de quase US$ 240 bilhões, inferior às reservas
mais ainda assim significativo.
41
residentes (ver os dados mensais no painel esquerdo da Figura 1), um saldo ainda positivo de
quase US$ 2 bilhões no período, que se torna negativo apenas nos últimos três meses e, aí sim,
acumula saída líquida de US$ 24 bilhões. Mas mesmo nessa pior fase a variação total no estoque
de compromissos foi seis vezes maior: US146 bilhões. Quando observados apenas os valores
relativos ao Investimento de Carteira, a desproporção entre fluxos e estoques é ainda mais
patente: uma perda nos dois trimestres de US$ 278 bilhões nos passivos é simultânea a uma saída
líquida de menos de US$ 14 bilhões, ou 5%38.
O painel esquerdo da Figura 6 explicita que essa variação patrimonial decorreu em grande
parte da desvalorização cambial naquele momento, mas não só: a queda no valor dos passivos
negociados no exterior é igualmente significativa, e responde à perda de valor de ações e títulos
mundo afora. Movimento semelhante, ainda que em menor magnitude, acontece no último
trimestre de 2011 e, novamente, no segundo de 2012, com impactos maiores sobre os ativos
negociados no país.
Ou seja, o tamanho que assumiu e as mudanças em sua composição tornaram o estoque
de passivos externos do país uma variável com dinâmica que guarda grande independência em
relação aos fluxos no balanço de pagamentos. A situação guarda paralelo com a do estoque de
dívida pública no Brasil e suas relações com a política fiscal, em que as variações decorrentes da
estrutura de indexação são de magnitude muito maior do que as provocadas pelos fluxos de
receitas e despesas públicas. A explicação da trajetória de crescimento da relação DLSP/PIB até
2002, e depois sua contínua melhora, apenas pelo tamanho do superávit primário é insuficiente,
para dizer o mínimo. O rabo não balança o cachorro, como gostam de dizer os economistas. No
caso do setor externo, pode haver – ou melhor, houve – grande variação no estoque sem
contrapartida sequer comparável nos fluxos.
Tanto para a melhora no perfil da dívida pública (em que se reduz a parcela indexada ao
câmbio, e depois a atrelada à Selic) como para a aqui enfatizada melhora na composição dos
passivos externos (diminuindo a dolarização destes), o determinante principal é a própria
evolução do preço da moeda estrangeira ao longo do período retratado na Figura 6. Foi
extremamente vantajoso para o investidor não residente possuir ativos denominados em reais,
enquanto este ganhava terreno frente ao dólar. Cabe portanto observar com atenção a situação,
38
Considerando apenas os últimos três meses, tal relação sobe para 17% (variação de estoques de US$ -106 bilhões e
fluxos acumulados de US$ -17 bilhões). É útil, para reforçar o ponto, a comparação com as alterações no estoque que
ocorrem com a desvalorização (muito mais acentuada) ocorrida na segunda metade de 2002.
42
e cuidar para que os ganhos estruturais se preservem, em um ambiente em que a trajetória de
apreciação parece ter sido interrompida de maneira mais permanente.
De qualquer modo, o fato a destacar é essa mudança mais estrutural que vem se
acrescentar às demais “novidades” do setor externo destacadas ao longo do texto. E que, como já
discutido na sessão IV, é fundamental para entender porque a “parada súbita” no financiamento
externo no fim de 2008 foi tão breve e pôde ser sucedida por uma retomada súbita. A mudança
de ambiente que agravava, às vezes fatalmente, as situações externa e fiscal do país, agora se faz
no sentido contrário: em meio a uma crise, mesmo com saída de investimentos de não residentes
e desvalorização cambial (que inevitavelmente são acompanhadas de perda de valor nos
mercados de títulos), a solvência e a liquidez melhoram, mais quanto maior for a intensidade do
movimento negativo. E isso tende a limitar o movimento de fuga de capitais.
Em suma, é mais um elemento, pouco destacado no debate nacional, a sustentar o
quadro geral aqui traçado para o setor externo brasileiro, problemático muito mais por conta do
excesso de divisas do que por uma eventual escassez, mesmo em meio às turbulências que
caracterizam a economia internacional em crise.
Considerações finais
Já expressa no título e na introdução deste texto, a característica que mais se pretendeu
destacar aqui foi a especificidade, as novas configurações, do setor externo brasileiro no
momento presente, em várias das suas dimensões. Muito brevemente, elas podem ser
recapituladas.
A Conta Corrente, apesar de deficitária, guarda pouca semelhança com a situação dos
anos 1990, por conta de sua magnitude, trajetória, composição e perspectivas futuras.
Estabelecidas as diferenças de concepção em relação às visões centradas na “poupança externa”,
defendeu-se aqui que um esforço decidido para reverter esse resultado negativo, fazendo uso
exclusivo de instrumentos de gestão macroeconômica (notadamente o câmbio), pode ser
extremamente custoso e relativamente ineficaz, por conta dos processos mais estruturais,
positivos e negativos, que explicam o déficit. Um velho chavão – o do risco de “jogar fora a criança
com a água do banho” – aqui se aplica. As possibilidades de crescimento com base no mercado
interno e um esboço de retomada do desenvolvimento seriam a criança; e a água uma ameaça de
crise cambial que, esta a principal especificidade, está muito distante.
43
Em primeiro lugar pela própria dinâmica dos fluxos internacionais de capital. Aqui não se
trata de “confiar” numa fonte de financiamento que tantas vezes já deu mostras de seu caráter
volátil e pró-cíclico, mas sim de compreender que, no peculiar cenário de crise global ainda em
curso, a resultante da volatilidade é o excesso, e não a falta, de “dinheiro à caça de rendimentos”
nas praças financeiras emergentes. A dinâmica do ciclo internacional de liquidez, em um contexto
único e mais duradouro de push factors extremamente favoráveis, passa a ser fortemente
influenciada também pelos pull factors, particularmente os efeitos da fase anterior de
abundância.
Em segundo lugar, as necessidades, os fatores de atração e até algumas tímidas mudanças
de política no Brasil também são peculiares. Ao longo do período de crise internacional, o país
passou sucessivamente por uma fuga de capital, por uma “retomada súbita” de caráter
nitidamente especulativo, pela melhora qualitativa no financiamento e atualmente se encontra
em posição bastante confortável do ponto de vista dos inflows. Além dos movimentos mais
promissores que tendem a continuar atraindo fluxos de IDE, importa levar em conta que parte
desta melhora foi provocada por alterações de política (controles e, mais recentemente,
alterações na combinação câmbio-juros) e que, portanto, novos raios de manobra foram
conquistados diante de dificuldades de atração à frente.
Por fim, a terceira frente de peculiaridades diz respeito aos estoques de ativos e passivos.
Aqui a novidade não é apenas a proteção trazida por um inédito montante de reservas
internacionais – que apesar de seus custos são um item de segurança obrigatório para a
sobrevivência de economias como o Brasil na globalização financeira. Destacou-se uma mudança
adicional, escondida no crescimento dos passivos de carteira (que, em si, seria um movimento
preocupante): a crescente “desdolarização” destes compromissos externos. Se o risco dos
passivos em formas mais voláteis é uma “fuga de capital” consumindo rapidamente as reservas,
quando estes estão em moeda local e com valor negociado no mercado, o potencial de ameaça se
dissipa antes dos estragos serem feitos.
A realidade do setor externo parece, portanto, nova e muito mais favorável do que no
passado, recente e remoto. Pensando para além do setor externo, isto significa objetivamente
uma ampliação do raio de manobra para políticas e ensaios de desenvolvimento. Este quadro não
autoriza (ou não deveria autorizar), porém, uma postura de tranquilidade ou passividade. A
importância histórica, no Brasil e em quase todas as economias, do setor externo como obstáculo
às possibilidades de desenvolvimento, sempre recomendará cautela. Três observações de ordem
44
prática, relativas à política econômica (em sentido amplo), podem ser extraídas da situação aqui
descrita.
A primeira delas é a busca constante por novas fontes de riscos e vulnerabilidades, não
identificadas. Quase toda crise, e não só em economia, revela fragilidades antes ignoradas;
provavelmente a reversão do cenário financeiro global ora montado ampliará a lista delas. Um
exemplo perfeito se observou no auge da crise em 2008: a exposição de empresas e bancos a
operações atreladas a derivativos cambiais foi a grande ameaça sistêmica no Brasil, e apesar de
indiretamente vinculada ao setor externo, não era possível identificá-la nem nos fluxos nem nos
estoques aqui observados.
A segunda seria o cuidado para garantir ou aprofundar as mudanças positivas que
configuram esse novo quadro do setor externo, ainda que a maior parte delas não tenha sido
decorrência de ações deliberadas do governo. Destacam-se a necessidade de medidas para
reduzir o déficit em rubricas “manejáveis” da Conta Corrente (notadamente Viagens
internacionais e a administração cuidadosa do ritmo e intensidade das importações necessárias
para a exploração do pré-sal), o monitoramento e controle do grau de “dolarização” dos passivos
externos e, acima de tudo, a postura de selecionar os influxos de capital mais adequados. Do
ponto de vista das políticas, um dos maiores avanços dos últimos tempos foi a quebra do tabu em
relação aos controles de capital. Ainda tímidos e restritos ao instrumento tributário, os controles
devem estabelecer-se definitivamente como parte do rol de instrumentos possíveis de utilização
pelas autoridades, ainda mais em uma situação (observada e projetada) de excesso de
financiamento externo.
Por último, e mais importante, a principal questão de política não parece ser de natureza
regulatória nem macroeconômica, mas sim relativa à estrutura produtiva. Se o cenário aqui
desenhado faz sentido, estão em muito ampliadas as tarefas e dificuldades da política industrial,
obrigada a lutar por uma mudança estrutural na direção contrária àquela ensejada pela
configuração atual dos preços internos e externos. Este parece ser um dos principais desafio do
desenvolvimento brasileiro à frente, e ele tem sim relação com o setor externo, mas não na forma
do passado39.
Correndo o risco de simplificação, pode-se dizer que as formulações originais do
estruturalismo latino-americano, e mesmo suas derivações e superações posteriores, eram
39
Neste sentido, as ideias centrais aqui defendidas são convergentes com as de Frenkel e Rapetti (2011) para a América
Latina como um todo.
45
indubitavelmente favoráveis à atuação do Estado na direção da industrialização e da sofisticação
da estrutura produtiva. Mas o fato a destacar é que esta tarefa era em geral vista como
inevitavelmente auxiliada pelo setor externo da economia de tempos em tempos – a deterioração
dos termos de troca que redundava em crise cambial e, na formulação mais simples e original,
ondas substitutivas de importações. Mesmo com os necessários acréscimos que estas ideias
foram recebendo – da relativa autonomia das economias domésticas à incorporação da dimensão
financeira à dinâmica do Balanço de Pagamentos, entre vários outros avanços – as ligações
teóricas entre mudança estrutural e setor externo acabavam conservando essa espécie de
fatalismo com bons resultados a longo prazo (a despeito dos estragos das crises periódicas). Em
termos mais restritos, isso pode ser identificado na já citada esperança paradoxal de que uma
desvalorização cambial forçada restaure (ou instaure) a competitividade da indústria nacional.
É nesse sentido que o quadro aqui traçado do setor externo brasileiro é no geral otimista,
mas algumas de suas implicações mais profundas não o são. Ou, por outro ângulo, só o serão se
as instituições e políticas de intervenção estatal na estrutura produtiva forem capazes de
enfrentar as enormes pressões pela especialização regressiva, que tendem a aumentar. A postura
pessimista, ao negar os novos contornos da situação externa, pode estar subestimando não os
seus efeitos estruturais, mas as dificuldades para revertê-los e o necessário papel do Estado nesta
tarefa. A “crise cambial”, desta feita, não parece que virá nos salvar.
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Anexo
Figura A1
Fluxos privados de capital de não residentes (inflows)*; Conta Corrente; Conta Capital e Financeira, em US$ milhões e
% do PIB, jan/1996 – jul/2012
** Excluídas as “Operações de Regularização”
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria.
Tabela A1 Medidas recentes de controle sobre os fluxos de capital e sobre o mercado de câmbio
Fonte: Ministério da Fazenda (2012).