NO TETO DOMUNDO
Lançamento em setembro
de 2011
Leia com exclusividade um trecho do livro em que Rodrigo Raineri narrasua jornada rumoao cume doEverest.
212
Plaza Francia, face sul do Aconcágua, Argentina
26 de dezembro de 2001
22h
Meu querido filho,
Acabo de jantar e estou preparado para enfrentar o maior desafio da
minha vida! Mesmo concentrado nele, não paro de pensar em você um só
minuto. Todos os dias, olho nossas fotos. Isso me faz muito bem. Você é tão
pequeno ainda!
Às vezes penso que é egoísmo dedicar-me a expedições tão longas e sinto-
-me péssimo, mas sei que viajando terei muitas histórias para contar e muitos
lugares para lhe mostrar um dia. Acho que você me entenderá quando crescer.
Sinto muitas saudades!
Em alguns momentos penso no que seria de você se eu morresse, se eu
não voltasse mais. Tenho certeza de que você se sairia muito bem, apesar da
dor de não me ter presente...
Não imagine que seu pai é louco, maluco ou qualquer outro adjetivo que
talvez venha a escutar, porque não é verdade. Para algumas pessoas, desafios
são desafios, e, não importa quais sejam, elas têm de enfrentá-los: a vitória é
o enfrentamento, quer a gente saia ileso, quer não.
Por isso, quero deixar bem claro que meu amor por você é a coisa mais
importante da minha existência! Quero vê-lo crescer, e que possamos viver
muitas aventuras juntos. Quero acompanhar você em cada momento de sua
vida, todos muito especiais. Por tudo isso estou tentando esta escalada, e por-
que tenho 99% de certeza de que vou sair ileso.
Se eu não voltar, gostaria que você continuasse pensando em mim e ten-
do a certeza de que seu pai nunca quis que isso acontecesse. Eu nunca o aban-
donaria, em hipótese alguma! Você é a melhor coisa que me aconteceu na vida,
e nem mesmo escalar a face sul do Aconcágua ou qualquer outra montanha do
mundo é maior do que nossa ligação.
Se algo der errado, foi porque Ele (Deus) ou Ela (a montanha) quis assim.
Estarei sempre junto de você! Se não for assim, perdoe-me.
Amo muito você. Muito mesmo!
Rodrigo Raineri
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13
Estava deitado sobre meu colchonete isolante térmico, dentro do
saco de dormir. Acabara de escrever uma carta para meu filho
– ele completaria cinco meses de vida dois dias depois. A vida
inteira cruzava pela minha cabeça num turbilhão, as imagens pas-
sando ora muito rápidas, ora em câmera lenta. As memórias surgiam
e davam lugar a outras em alta velocidade. Revivia cada momento
da minha existência e me emocionava profundamente; até que um
estalo, um barulho de gelo quebrando, trouxe meus pensamentos de
volta ao presente. Era o impressionante ruído de uma avalanche na
face sul do Aconcágua.
Ansioso, desvencilhei-me do saco de dormir, abri o zíper da barra-
ca e tentei localizar o deslizamento. O vento gelado das grandes altitu-
des bateu no meu rosto. Na encosta à frente, de 3 quilômetros de altu-
ra, varrendo o que houvesse pelo caminho, despencavam milhares de
toneladas de gelo, grandes blocos misturados a pequenos fragmentos,
erguendo uma nuvem alva de beleza e destruição. Um espetáculo for-
midável e aterrador. Se alguém estivesse na trajetória da avalanche,
repousaria para sempre no seio do Aconcágua.
Deixei a carta, que escrevi com os dedos endurecidos pelo frio da
montanha, com Guilherme Setani, o Totó, para que ele a entregasse
ao meu filho caso algo saísse errado. Totó é um guia de montanha que
trabalhava em minha empresa de atividades outdoor, em Campinas.
Ele havia ficado no acampamento base nos esperando e dando apoio
durante a escalada. Se tudo corresse bem, como todos nós esperá-
vamos, eu pegaria a carta de volta. Mal comparando, dei a Totó uma
tarefa parecida com a dos oficiais dos filmes americanos que levam a
notícia da perda de um soldado à família. Um toque de campainha,
uma saudação solene e respeitosa, a tristeza. A semelhança, porém,
termina aí, no ritual. Para mim, subir uma montanha nunca teve uma
conotação trágica, de sacrifício. Ao contrário. Aquele era um momento
de alegria e concentração. Estávamos a poucos dias de atingir o cume
de 6.962 metros de altitude, o mais elevado do continente americano,
utilizando a rota mais difícil e desafiadora. Seríamos os primeiros bra-
sileiros a fazê-lo. A carta nunca precisou ser entregue.
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Plaza Francia, face sul do Aconcágua, Argentina
26 de dezembro de 2001
22h
Meu querido filho,
Acabo de jantar e estou preparado para enfrentar o maior desafio da
minha vida! Mesmo concentrado nele, não paro de pensar em você um só
minuto. Todos os dias, olho nossas fotos. Isso me faz muito bem. Você é tão
pequeno ainda!
Às vezes penso que é egoísmo dedicar-me a expedições tão longas e sinto-
-me péssimo, mas sei que viajando terei muitas histórias para contar e muitos
lugares para lhe mostrar um dia. Acho que você me entenderá quando crescer.
Sinto muitas saudades!
Em alguns momentos penso no que seria de você se eu morresse, se eu
não voltasse mais. Tenho certeza de que você se sairia muito bem, apesar da
dor de não me ter presente...
Não imagine que seu pai é louco, maluco ou qualquer outro adjetivo que
talvez venha a escutar, porque não é verdade. Para algumas pessoas, desafios
são desafios, e, não importa quais sejam, elas têm de enfrentá-los: a vitória é
o enfrentamento, quer a gente saia ileso, quer não.
Por isso, quero deixar bem claro que meu amor por você é a coisa mais
importante da minha existência! Quero vê-lo crescer, e que possamos viver
muitas aventuras juntos. Quero acompanhar você em cada momento de sua
vida, todos muito especiais. Por tudo isso estou tentando esta escalada, e por-
que tenho 99% de certeza de que vou sair ileso.
Se eu não voltar, gostaria que você continuasse pensando em mim e ten-
do a certeza de que seu pai nunca quis que isso acontecesse. Eu nunca o aban-
donaria, em hipótese alguma! Você é a melhor coisa que me aconteceu na vida,
e nem mesmo escalar a face sul do Aconcágua ou qualquer outra montanha do
mundo é maior do que nossa ligação.
Se algo der errado, foi porque Ele (Deus) ou Ela (a montanha) quis assim.
Estarei sempre junto de você! Se não for assim, perdoe-me.
Amo muito você. Muito mesmo!
Rodrigo Raineri
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Estava deitado sobre meu colchonete isolante térmico, dentro do
saco de dormir. Acabara de escrever uma carta para meu filho
– ele completaria cinco meses de vida dois dias depois. A vida
inteira cruzava pela minha cabeça num turbilhão, as imagens pas-
sando ora muito rápidas, ora em câmera lenta. As memórias surgiam
e davam lugar a outras em alta velocidade. Revivia cada momento
da minha existência e me emocionava profundamente; até que um
estalo, um barulho de gelo quebrando, trouxe meus pensamentos de
volta ao presente. Era o impressionante ruído de uma avalanche na
face sul do Aconcágua.
Ansioso, desvencilhei-me do saco de dormir, abri o zíper da barra-
ca e tentei localizar o deslizamento. O vento gelado das grandes altitu-
des bateu no meu rosto. Na encosta à frente, de 3 quilômetros de altu-
ra, varrendo o que houvesse pelo caminho, despencavam milhares de
toneladas de gelo, grandes blocos misturados a pequenos fragmentos,
erguendo uma nuvem alva de beleza e destruição. Um espetáculo for-
midável e aterrador. Se alguém estivesse na trajetória da avalanche,
repousaria para sempre no seio do Aconcágua.
Deixei a carta, que escrevi com os dedos endurecidos pelo frio da
montanha, com Guilherme Setani, o Totó, para que ele a entregasse
ao meu filho caso algo saísse errado. Totó é um guia de montanha que
trabalhava em minha empresa de atividades outdoor, em Campinas.
Ele havia ficado no acampamento base nos esperando e dando apoio
durante a escalada. Se tudo corresse bem, como todos nós esperá-
vamos, eu pegaria a carta de volta. Mal comparando, dei a Totó uma
tarefa parecida com a dos oficiais dos filmes americanos que levam a
notícia da perda de um soldado à família. Um toque de campainha,
uma saudação solene e respeitosa, a tristeza. A semelhança, porém,
termina aí, no ritual. Para mim, subir uma montanha nunca teve uma
conotação trágica, de sacrifício. Ao contrário. Aquele era um momento
de alegria e concentração. Estávamos a poucos dias de atingir o cume
de 6.962 metros de altitude, o mais elevado do continente americano,
utilizando a rota mais difícil e desafiadora. Seríamos os primeiros bra-
sileiros a fazê-lo. A carta nunca precisou ser entregue.
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Seis anos e cinco meses depois, encolhido dentro de uma barraca
coberta de neve, a 8.000 metros de altitude, com os pulmões ardendo
e ofegante, tornei a sentir aquela sensação já conhecida: um estado de
alerta extremo e naufragado em lembranças, emoções e sentimentos
muito fortes. Estava no acampamento 4 do monte Everest, o último
antes do trecho final que se usa para atingir o cume da montanha pelo
lado sul, no Nepal. A data: 26 de maio de 2008. As condições climáticas
estavam ruins, e era preciso aguardar que elas melhorassem para ini-
ciar a escalada final. A espera já durava várias horas.
O pensamento da carta que eu escrevera logo após o Natal do
ano de 2001 não me deixava. Apesar de estar na encosta da montanha
mais alta do planeta, tinha consciência de que enfrentaria, desta vez,
riscos menores do que os superados naquele ano.
Toda montanha oferece mais de um caminho – em alpinismo,
dizemos “via” – para chegar ao seu topo. O percurso menos difícil até
o cume é chamado de via normal. Enquadra-se nessa categoria a face
noroeste do Aconcágua, onde existe uma rota de ascensão suave até o
ponto mais alto da montanha. Ou seja, chega-se ao pico caminhando.
Nesse caso, os maiores desafios a serem vencidos são o clima e o ar
rarefeito. Já a face sul é um paredão vertical de rocha e gelo de 3.000
metros de altura. Na primeira vez que vi aquele gigantesco penhasco,
em 1993, pensei: “Só doido para escalar isso aí”. Em alguns momentos,
é preciso literalmente avançar agarrado ao teto como uma lagartixa,
pois a já difícil subida em 90 graus dá lugar a trechos de rocha ou gelo
com inclinação negativa. Um passeio a pé de 3 quilômetros no terreno
plano do Parque Ibirapuera, em São Paulo, dura em média 30 minutos.
Para vencer a mesma distância na vertical, usando as mãos para se
apoiar nas frestas da rocha ou cravando a piqueta no gelo para puxar
o corpo para cima, são necessários cinco dias. É quase uma semana
sem sentir um apoio firme sob os pés e dormindo pendurado como
um casulo de borboleta, em barracas especiais afixadas por cordas e
pinos presos à pedra e ao gelo. Detalhe importante: durante boa parte
da escalada, sobem-se muitos metros sem ter onde prender a corda
de segurança. Quando enfrentei a face sul com meu parceiro, o mul-
tiatleta paulista Vitor Negrete, houve momentos em que o ponto de
apoio mais próximo da corda à qual estávamos presos estava 40 me-
tros abaixo de onde eu me encontrava. Se eu despencasse dali, sofreria
uma queda de 80 metros (40 até o ponto onde a corda estava presa,
segurada pelo freio de Vitor, mais 40 até ela esticar), o equivalente a
um prédio de 25 andares. No caso de eu cair, ficaria pendurado, mas
provavelmente sem vida. Além de tecnicamente difícil, a face sul é um
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percurso cheio de imprevistos naturais: vez ou outra, pedaços de ro-
cha podre (que se desmancha com o peso do corpo) ou blocos de gelo
do tamanho de uma Kombi se soltam e levam junto para o abismo o
que quer que esteja preso a eles. Tudo isso, somado ao frio intenso e
aos ventos fortes, faz da face sul do Aconcágua uma das escaladas
mais difíceis do mundo. Pouquíssimas pessoas venceram esse desafio.
Os riscos do Everest são de outra ordem. A montanha fica exata-
mente na divisa entre o Nepal e o Tibete, território pertencente à China.
Há pelo menos oito vias conhecidas para chegar ao topo do mundo, mas
as mais populares são a aresta sudeste, do lado nepalês, e a aresta nor-
deste, do lado tibetano. Em ambas, as escaladas não são nem de longe
tão íngremes como a face sul do Aconcágua. Mas oferecem outros pe-
rigos. O primeiro é a altitude. O Everest é quase 2.000 metros mais alto
que o Aconcágua. O acampamento base do lado nepalês, por exemplo,
utilizado pelas expedições como ponto de apoio para a escalada, fica a
5.300 metros acima do nível do mar e 1.000 metros a mais do que a Pla-
za Francia, de onde se parte para a escalada da face sul do Aconcágua.
Esse dado é relevante porque a baixa concentração de oxigênio nessas
altitudes provoca um grande desgaste no corpo humano. Uma simples
caminhada de uma barraca a outra deixa a maioria dos alpinistas trei-
nados sem fôlego. Acima de 8.000 metros começa a chamada zona da
morte, onde a proporção de oxigênio é apenas um terço da encontrada
no nível do mar. Esse ar rarefeito já basta para causar diversas compli-
cações de saúde que podem levar à morte se a pessoa não for medicada
e levada a tempo para um lugar mais baixo. A melhor maneira de mini-
mizar esse problema é fazendo uma boa aclimatação, como é chamado
o processo de adaptação lenta do corpo à altitude. O segundo fator de
risco no Everest é o frio. A 8.000 metros, a temperatura dentro da bar-
raca pode ficar abaixo dos 20°C negativos. Fora do abrigo, a sensação
térmica pode ser de até 70°C negativos, se estiver ventando muito forte.
Submetido ao frio extremo, o metabolismo gasta cerca de 6.000 calorias
por dia apenas para manter o corpo aquecido (em condições normais,
um adulto precisa de pouco mais de 2.000 calorias diárias). Muitos alpi-
nistas relatam perda de peso só de ficar descansando no acampamento
base, por causa do frio e do ar rarefeito. O terceiro perigo da montanha
mais alta do mundo são as avalanches. Em alguns trechos, principal-
mente na cascata de gelo do Khumbu e na face do Lhotse (um pico de
8.516 metros de altitude ao lado do Everest), pedras e grandes massas
de gelo e neve podem movimentar-se e deslizar pela encosta a 190 qui-
lômetros por hora. Ser atingido por uma avalanche dessas é pior do que
ser atropelado por uma jamanta em alta velocidade.
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percurso cheio de imprevistos naturais: vez ou outra, pedaços de ro-
cha podre (que se desmancha com o peso do corpo) ou blocos de gelo
do tamanho de uma Kombi se soltam e levam junto para o abismo o
que quer que esteja preso a eles. Tudo isso, somado ao frio intenso e
aos ventos fortes, faz da face sul do Aconcágua uma das escaladas
mais difíceis do mundo. Pouquíssimas pessoas venceram esse desafio.
Os riscos do Everest são de outra ordem. A montanha fica exata-
mente na divisa entre o Nepal e o Tibete, território pertencente à China.
Há pelo menos oito vias conhecidas para chegar ao topo do mundo, mas
as mais populares são a aresta sudeste, do lado nepalês, e a aresta nor-
deste, do lado tibetano. Em ambas, as escaladas não são nem de longe
tão íngremes como a face sul do Aconcágua. Mas oferecem outros pe-
rigos. O primeiro é a altitude. O Everest é quase 2.000 metros mais alto
que o Aconcágua. O acampamento base do lado nepalês, por exemplo,
utilizado pelas expedições como ponto de apoio para a escalada, fica a
5.300 metros acima do nível do mar e 1.000 metros a mais do que a Pla-
za Francia, de onde se parte para a escalada da face sul do Aconcágua.
Esse dado é relevante porque a baixa concentração de oxigênio nessas
altitudes provoca um grande desgaste no corpo humano. Uma simples
caminhada de uma barraca a outra deixa a maioria dos alpinistas trei-
nados sem fôlego. Acima de 8.000 metros começa a chamada zona da
morte, onde a proporção de oxigênio é apenas um terço da encontrada
no nível do mar. Esse ar rarefeito já basta para causar diversas compli-
cações de saúde que podem levar à morte se a pessoa não for medicada
e levada a tempo para um lugar mais baixo. A melhor maneira de mini-
mizar esse problema é fazendo uma boa aclimatação, como é chamado
o processo de adaptação lenta do corpo à altitude. O segundo fator de
risco no Everest é o frio. A 8.000 metros, a temperatura dentro da bar-
raca pode ficar abaixo dos 20°C negativos. Fora do abrigo, a sensação
térmica pode ser de até 70°C negativos, se estiver ventando muito forte.
Submetido ao frio extremo, o metabolismo gasta cerca de 6.000 calorias
por dia apenas para manter o corpo aquecido (em condições normais,
um adulto precisa de pouco mais de 2.000 calorias diárias). Muitos alpi-
nistas relatam perda de peso só de ficar descansando no acampamento
base, por causa do frio e do ar rarefeito. O terceiro perigo da montanha
mais alta do mundo são as avalanches. Em alguns trechos, principal-
mente na cascata de gelo do Khumbu e na face do Lhotse (um pico de
8.516 metros de altitude ao lado do Everest), pedras e grandes massas
de gelo e neve podem movimentar-se e deslizar pela encosta a 190 qui-
lômetros por hora. Ser atingido por uma avalanche dessas é pior do que
ser atropelado por uma jamanta em alta velocidade.
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A logística escolhida por mim para as escaladas do Aconcágua e
do Everest também foram distintas. Para subir a face sul da montanha
argentina, Vitor e eu utilizamos o “estilo alpino” – um método purista
de atingir um pico que, como o próprio nome diz, foi popularizado
nos Alpes, a principal cordilheira da Europa. Trata-se de uma escalada
minimalista, em que se utiliza o mínimo de equipamento possível, e
não há ninguém para carregá-lo além do próprio atleta. Ou seja, não
há apoio externo. Vitão e eu subimos o paredão do Aconcágua com
apenas uma corda, poucos equipamentos de segurança, uma pequena
barraca, um fogareiro e alguns pacotes de comida pronta. Só isso. Um
ano antes, havíamos tentado vencer o desafio com duas cordas e mui-
tos equipamentos de segurança: ficou pesado demais, e, para piorar, o
gelo estava derretendo além do normal, possivelmente como efeito do
aquecimento global. Acabamos desistindo.
Para chegar ao cume do Everest, optei, como quase todo mundo
faz, pelo “estilo expedição”. Nessa forma de escalada, os atletas têm o
respaldo logístico de diversos profissionais, de cozinheiros a carrega-
dores e guias auxiliares de montanha, e algumas centenas de quilos
de equipamentos. A equipe de apoio monta vários acampamentos ao
longo da rota que será utilizada para chegar ao pico. Assim, quando
um alpinista ou sherpa sai de um acampamento para outro, já en-
contra lá sua barraca montada, com fogareiro e comida. No percurso
entre os acampamentos, é bem provável que ele possa utilizar cordas
e escadas que foram colocadas pelos alpinistas sherpas, um povo ne-
palês conhecido por sua força e sua resistência à altitude, para vencer
os trechos mais complicados. Nos lugares mais íngremes onde já há
corda fixa, é possível prender-se a ela e puxar o corpo para cima, como
o Batman, com um equipamento chamado de blocante ou, popular-
mente, “jumar”. Trata-se de um aparelho de alumínio que, ao ser em-
purrado para cima, desliza na corda e, ao ser puxado para baixo, trava.
Escalar o monte Everest no estilo alpino, contudo, sem nenhuma das
“mordomias” citadas acima, exige quase tanta técnica quanto subir a
face sul do Aconcágua.
O vento de 70 quilômetros por hora sacudia a barraca e jogava
gelo em meu rosto, aguçando meu estado de alerta extremo. No dia
anterior, 25 de maio de 2008, eu tinha presenciado a volta da expe-
dição que levou Min Bahadur Sherchan, um nepalês de 76 anos, ao
cume do Everest – o homem mais velho a conquistar esse feito. Um
dos alpinistas contratados para acompanhá-lo teve todos os dedos das
mãos congelados, e, por isso, teriam de ser amputados. As condições
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A logística escolhida por mim para as escaladas do Aconcágua e
do Everest também foram distintas. Para subir a face sul da montanha
argentina, Vitor e eu utilizamos o “estilo alpino” – um método purista
de atingir um pico que, como o próprio nome diz, foi popularizado
nos Alpes, a principal cordilheira da Europa. Trata-se de uma escalada
minimalista, em que se utiliza o mínimo de equipamento possível, e
não há ninguém para carregá-lo além do próprio atleta. Ou seja, não
há apoio externo. Vitão e eu subimos o paredão do Aconcágua com
apenas uma corda, poucos equipamentos de segurança, uma pequena
barraca, um fogareiro e alguns pacotes de comida pronta. Só isso. Um
ano antes, havíamos tentado vencer o desafio com duas cordas e mui-
tos equipamentos de segurança: ficou pesado demais, e, para piorar, o
gelo estava derretendo além do normal, possivelmente como efeito do
aquecimento global. Acabamos desistindo.
Para chegar ao cume do Everest, optei, como quase todo mundo
faz, pelo “estilo expedição”. Nessa forma de escalada, os atletas têm o
respaldo logístico de diversos profissionais, de cozinheiros a carrega-
dores e guias auxiliares de montanha, e algumas centenas de quilos
de equipamentos. A equipe de apoio monta vários acampamentos ao
longo da rota que será utilizada para chegar ao pico. Assim, quando
um alpinista ou sherpa sai de um acampamento para outro, já en-
contra lá sua barraca montada, com fogareiro e comida. No percurso
entre os acampamentos, é bem provável que ele possa utilizar cordas
e escadas que foram colocadas pelos alpinistas sherpas, um povo ne-
palês conhecido por sua força e sua resistência à altitude, para vencer
os trechos mais complicados. Nos lugares mais íngremes onde já há
corda fixa, é possível prender-se a ela e puxar o corpo para cima, como
o Batman, com um equipamento chamado de blocante ou, popular-
mente, “jumar”. Trata-se de um aparelho de alumínio que, ao ser em-
purrado para cima, desliza na corda e, ao ser puxado para baixo, trava.
Escalar o monte Everest no estilo alpino, contudo, sem nenhuma das
“mordomias” citadas acima, exige quase tanta técnica quanto subir a
face sul do Aconcágua.
O vento de 70 quilômetros por hora sacudia a barraca e jogava
gelo em meu rosto, aguçando meu estado de alerta extremo. No dia
anterior, 25 de maio de 2008, eu tinha presenciado a volta da expe-
dição que levou Min Bahadur Sherchan, um nepalês de 76 anos, ao
cume do Everest – o homem mais velho a conquistar esse feito. Um
dos alpinistas contratados para acompanhá-lo teve todos os dedos das
mãos congelados, e, por isso, teriam de ser amputados. As condições
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climáticas eram realmente ruins. Por causa delas, eu precisava tomar
uma decisão vital: manter ou não meu plano de subir os 850 metros
verticais restantes até o pico sem o auxílio de cilindros de oxigênio.
O sherpa que acompanhou o senhor Bahadur tivera a vantagem de
contar com oxigênio suplementar, e, apesar disso, suas extremidades
congelaram. Sem esse equipamento, o risco de isso acontecer comigo
era ainda maior, porque o meu ritmo de ascensão seria mais lento, e
eu teria menos energia e ficaria mais tempo exposto às baixíssimas
temperaturas da montanha.
Eu estava certo em pensar que já havia enfrentado perigos maio-
res em minha carreira. Nem por isso estava menos tenso e apreen-
sivo. As certezas racionais nem sempre se sobrepõem às certezas da
emoção. E isso é bom, porque se trata de uma expressão do nosso
instinto de sobrevivência. A situação em que me encontrava naquele
momento não dava espaço para excesso de confiança. Algum passo
em falso ou qualquer fenômeno incontrolável, como um movimen-
to do gelo sob a minha barraca, poderia significar o meu fim. Muitas
vezes, a confiança excessiva na própria experiência arrastou bravos
escaladores montanha abaixo: um erro que não durou mais do que
décimos de segundo, uma decisão entre se agarrar um palmo mais à
direita ou à esquerda, um bloco de gelo que se desprende... A natureza
ou os meus próprios atos, portanto, poderiam conspirar contra mim.
Minhas conquistas passadas não serviam como garantia de que tudo
sairia como o esperado.
Outra sensação já conhecida era a de estar mais sozinho do que
nunca naquela imensidão branca, apesar de eu liderar uma equipe que
incluía o meu parceiro, o cirurgião plástico paulista Eduardo Keppke,
e quatro alpinistas sherpas. Na escalada de uma montanha como o
Everest ou o Aconcágua, temos de cuidar de nós mesmos e também
estar prontos para ajudar alguém da equipe sempre que possível. O
sentimento de solidão se explica porque, sendo o mais experiente e o
chefe da expedição, eu era em grande medida responsável por todos.
Eu tinha de ser autossuficiente e, ao mesmo tempo, tomar decisões
pelos outros. Nem a companhia de centenas de amigos faria diminuir
o desamparo inerente àquela situação. Talvez por isso, também, tan-
tas lembranças do Brasil, da minha carreira, da minha infância e da
minha família me viessem à mente.
A memória mais persistente, que brotava em meio às outras,
lembrança sim, lembrança não, era a da minha última expedição ao
Everest, em 2006. Foi quando perdi para sempre Vitor Negrete, o meu
melhor parceiro e amigo por 18 anos.
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Um dos alpinistas mais experientes e bem-sucedidos do Brasil, Rodrigo Raineri, narra, com Diogo Schelp, suas experiências nas quatro expe-dições (em 2005, 2006, 2008 e 2011) para alcançar o cume do monte Everest, a 8.848 metros de altitude. Em No teto do mundo, o leitor vivenciará em detalhes todas as dificuldades enfrentadas por Raineri em sua escalada, como as dificuldades climáticas extremas, com o frio intenso; e a infraestrutura precária, responsável muitas vezes por pro-blemas de saúde. Mais do que apenas um relato, o livro fala sobre ven-cer os próprios limites; de superar as adversidades; da dor de perder o companheiro Vitor Negrete — parceiro de muitas escaladas — para a montanha; de saber que o Everest não é uma montanha qualquer, é Cho-molungma, a Deusa Mãe do Mundo, e pode ser implacável com aqueles que a desafiam. É, sobretudo, um livro sobre a perseverança, a coragem e a amizade para superar os desafios e conquistar o teto do mundo!