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O Deodoro de Viriato Corrêa: uma narrativa da República
Laiz Monteiro Pessanha 1
1. Introdução
O presente texto é resultado de uma bolsa de iniciação científica concedida a mim pela
FAPERJ no período entre junho de 2009 e abril de 2010, com orientação da professora
Ângela de Castro Gomes, como parte de um projeto maior intitulado “Memória, história e
historiografia: Viriato Corrêa e o ensino da História do Brasil”.
Examinarei prioritariamente o processo de construção da figura de Deodoro da
Fonseca na narrativa de Viriato Corrêa do episódio da proclamação da República no Brasil. O
tema sobre quem teria assumido o protagonismo do acontecimento é bastante controverso e o
objetivo do texto é investigar como Deodoro emerge como ícone da República entre os
demais vultos ligados ao processo. Além disso, procuro identificar os mecanismos utilizados
pelo autor para empreender essa heroificação.
2. Viriato Corrêa
2.1 Biografia
Viriato Corrêa é um intelectual ainda pouco estudado, sobre o qual dispomos de
numerosas fontes, embora poucas relativas à sua trajetória. Tomaremos por base para a sua
apresentação os fatos contidos em sua única biografia intitulada “Viriato, a modo de
biografia” redigida por seu amigo Hércules Pinto2.
Viriato Corrêa nasceu na cidade de Pirapemas a 23 de janeiro de 1884. Iniciou o curso
de Direito da Universidade do Recife, o qual veio a finalizar no Rio de Janeiro. Na capital,
com o auxílio de uma carta de Fran Paxeco, foi introduzido no meio intelectual e no
jornalismo através do crítico literário Frota Pessoa. Logo faria importantes amizades, como a
travada com Medeiros e Albuquerque e com Paulo Barreto.
Com o auxílio de Medeiros e Albuquerque tornou-se redator da Gazeta, jornal onde
veio a assumir a seção “Fafazinho”, antes mantida por Rafael Pinheiro. Com essa seção
destinada a crianças, Viriato começava a dedicar-se com sucesso a um público para o qual
1 Aluna de graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). 2 Pinto, G. Hércules. Viriato Corrêa: A modo de biografia. Guanabara: Editora Alba Ltda., 1966.
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viria a destinar muitos trabalhos, como o que o levaria a ocupar uma cadeira na Academia
Brasileira de Letras.
A partir da década de 1910, Viriato afasta-se da capital, regressando ao Norte do país
onde teria lugar uma breve incursão na política. O início da carreira seria como deputado
estadual pelo Maranhão. Porém, após dois anos de mandato, Viriato renunciaria ao cargo,
devido à discordância política em relação ao governador do estado, Luiz Domingues. Mudou-
se então para o Amazonas, sendo nomeado pelo Dr. Jorge Morais, superintendente de
Manaus, como Diretor Geral da Secretaria da Superintendência de Manaus. Mas, devido a
novos atritos políticos, Viriato decide regressar ao Rio em 1914.
De volta ao Rio, Viriato faz parte do grupo fundador de A Rua, jornal que se tornaria
bastante popular. Durante o período como redator de A Rua, escreveu a peça de teatro
Sertaneja, de 1915. O autor já havia incursionado no gênero quando ainda aluno do Liceu de
São Luiz, escrevendo uma comédia chamada O Delgado da Roça. Diferente da peça destinada
à garotada, Sertaneja seria sua primeira peça encenada na capital, no teatro São José. Segundo
seu biógrafo, ele queria fazer um teatro diferente e para isso, partiu de motivos regionais para
idealizar algo absolutamente brasileiro. A partir de então, o teatro firmar-se-ia como uma das
atividades a que Viriato mais iria dedicar-se. Ele levaria à cena em seguida: Manjerona
(1916); Morena (1917); Sol do Sertão (1918); A Juriti (1919); Sapequinha (1920).
O ano de 1921 merece nossa atenção, por ter sido o ano de publicação de diversos
contos históricos tais como Terra de Santa Cruz, Histórias de Nossa História e Contos da
História do Brasil, o último destinado ao público infantil. O ano de 1921 marcaria também a
primeira tentativa de Viriato de ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Cadeira que deixava vaga seu amigo Paulo Barreto. A qualificação de primeira tentativa já
deixa entrever que haveria outras e, portanto, esta falha. A cadeira nº26 passa a ser ocupada
por Constâncio Alves.
Em 1922, Viriato funda uma companhia de teatro em São Paulo com a qual sairia em
tornée pelo Norte do Brasil. Em cada estado, no dia da estréia, Viriato fazia uma saudação aos
intelectuais da terra. Também em 1927, Viriato manteve, no jornal A Noite, a coluna
“Microlândia” na qual amigos seus, deputados ou senadores, protagonizavam anedotas. Em
1927, tem nova atuação política, dessa vez como deputado federal pelo estado do Maranhão.
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Em 1930, Viriato tomaria parte nos acontecimentos históricos pelos quais nutria tanto
interesse e estes iriam interferir em sua trajetória pessoal. Durante a Revolução de 1930, o
presidente Washington Luís conferiu a nosso autor uma delicada missão: Munindo-lhe de
telegramas provenientes de todos os cantos do país, Viriato deveria atestar, todas as noites,
através da Rádio Sociedade, a inexistência de qualquer agitação social. Os telegramas
indicavam que reinava a paz no país e o general Sezefredo Passos assegurava estar senhor da
situação.
O dono de A Noite, Geraldo Leal, proibira o envolvimento do nome do jornal nas
pronunciações de Viriato na rádio de Roquete Pinto. Porém, tal recado não lhe teria sido
transmitido pelos colegas de redação. Após o triunfo da Revolução de 1930, a seção
“Microlândia” passa a ser escrita por Armando Gonzaga e em seguida é suprimida. O período
posterior é de grande revés para Viriato, fugindo das forças repressivas instauradas, sua saúde
é fortemente abalada. Ao regressar ao Rio, sua família encontra-se em grande dificuldade
econômica e todos os jornais fecham-lhe as portas.
Sua colaboração é novamente aceita no Jornal do Brasil, mediante a adoção do
pseudônimo “Frei Caneco”. Ele passa a ser responsável pela coluna “Gaveta de Sapateiro” na
qual apresentaria, nas palavras de seu biógrafo, o que para ele representava a grande atração
na História: “os fatos miúdos que ocasionam os grandes”3. A dificuldade financeira acaba
gerando um período profícuo em obras publicadas motivadas pela busca de recuperação
econômica. Dele, somente em 1931 foram publicados os livros: No Reino da Bicharada;
Quando Jesus Nasceu; A Macacada; Meus Bichinhos, todos destinados a crianças. Mas, a
recuperação de seu nome viria com a encomenda de uma peça por Procópio Ferreira. Essa
seria Bombonzinho (1931) que seria um grande sucesso do autor e permitiria que seu nome
voltasse a aparecer nos cartazes.
Entre 1932 e 1934, Viriato encenaria ainda as peças Sanção (1932), Maria (1933) e
Coisinha Boa (1934) e publicaria os contos históricos Alcovas da História (1934) e Mata
Galego (1934) além do livro infantil História do Brasil para Crianças (1934).
Em 1934, Viriato faz nova tentativa de ingressar na Academia Brasileira de Letras.
Desta vez a cadeira a que se candidatava era a pertencente a seu grande amigo Medeiros e
Albuquerque. O antigo dono da cadeira compartilhava o humor de Viriato e sempre havia sido
3 Op. Cit.
4
grande incentivador do ingresso do amigo na Academia. Para garantir que tal acontecesse,
Medeiros e Albuquerque havia deixado uma carta na qual advogava o direito de votar após a
morte, voto que evidentemente seria de Viriato. Infelizmente para nosso autor, a carta de
Medeiros e Albuquerque não vem a público e ele vê frustrada mais essa tentativa de figurar
entre os imortais. Em 1937, Viriato voltaria a candidatar-se para a Academia com a vaga
deixada por Paulo Setúbal, ocupante da cadeira nº. 31, ainda sem sucesso.
Em 1938, Viriato publica o livro que, segundo o biógrafo, é o mais querido dentre suas
obras. Cazuza, destinado a crianças e baseado em dados biográficos, o livro remeteria a cenas
de sua infância, em Pirapemas. Com esse livro, nesse mesmo ano, Viriato alcançaria seu
objetivo maior: ingressar na Academia Brasileira de Letras. Em discurso proferido na ocasião
de sua posse ele descreveria a sua trajetória de tentativas sucessivas de ingresso na instituição
como “o mais longo e o mais penoso trabalho de (sua) vida”4. Ele conta que chegou a ser alvo
de chacota dos jornalistas da época, que o qualificaram de “Romeu sem escada” e de “tia da
Academia”, tia com sentido de solteirona. Seguindo a metáfora da solteirona, Viriato refere-se
às suas tentativas de ingresso como a um cortejo: “De onde em onde, queimado pela febre da
esperança, eu fazia um penteado novo (um novo livro que atirava ao público), punha pó no
rosto e carmim no lábio. Mas o noivado não vinha”5. Mas finalmente Viriato assumia o tão
sonhado posto na Academia Brasileira de Letras. Ironicamente, esse seria a cadeira de nº32,
pertencente a Ramiz Galvão, ex-presidente da instituição, mencionado por ele no referido
discurso como a pessoa que rasgara a carta de Medeiros e Albuquerque.
Em 1939 Viriato publica a crônica histórica O País do Pau de Tinta, o livro infantil
História de Caramuru, e leva à cena a peça Tiradentes com música de Villa Lobos e
patrocinada pelo Ministério da Educação.
Entre 1940 e 1943, encena as peças O caçador de esmeraldas (1940); O rei de
papelão (1941); Pobre diabo (1942); O Príncipe Encantador (1943), Gato Comeu (1943). Em
1944, convidado pelo governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, visita Araxá a fim de
fazer um estudo sobre D.Beija. O estudo rende uma crônica publicada na Gazeta de Notícias
4 Discurso proferido por Viriato Corrêa na Academia Brasileira de Letras e publicado no Jornal do Comércio. 30
de outubro de 1938. É possível ter acesso a publicação no IHGB. Arquivo Hélio Viana – Notação final DL
1416.002 5 Op. Cit.
5
(26/11/1944) e uma peça teatral intitulada À Sombra dos Laranjais (1944), segundo o
biógrafo, sua melhor comédia.
Em 1945 Viriato publica o livro A Bandeira das Esmeraldas e leva à cena a peça
Estão cantando as cigarras. Em 1946, em visita ao seu estado natal, é eleito por unanimidade
para a Academia Maranhense de Letras. Durante seu afastamento da capital, foi encenada no
Rio de Janeiro sua peça Venha a Nós. Em 1948, publicou o livro infantil As Belas Histórias
da História do Brasil e em 1949 o livro A Macacada, no mesmo ano lançou a peça Dinheiro
é Dinheiro. Em 1952 publica novo livro infantil, Curiosidades da História do Brasil.
Na década de 1950, Viriato Corrêa passaria a redigir um programa de rádio intitulado
História de Chinelos, irradiado pela Rádio Nacional durante o período de 1952-1955.
Anteriormente, havia apresentado um programa baseado em seu romance histórico A
Balaiada, mas o projeto não alcançara sucesso e foi logo abandonado. História de Chinelos,
ao contrário, duraria quatro anos e contaria com a apresentação de conhecidos locutores como
Floriano Faissal e Saint-Clair Lopes.
Viriato Corrêa morreu em 1967, aos oitenta e três anos. Para além de ser
homenageado, nomeando bibliotecas, e figurar na Academia Brasileira de Letras, o trabalho
de Viriato seria consagrado com uma grande forma de homenagem: No mesmo ano seu livro
História da Liberdade no Brasil (1962) seria tema de um samba-enredo apresentado pela
escola de samba Salgueiro6.
Através de histórias leves e curtas, próprias ao formato de conto e à duração
dos programas de rádio que produziu (apenas cinco minutos), Viriato narra a História do
Brasil com o diferencial de torná-la acessível não apenas ao público letrado da capital, leitor
dos muitos jornais para os quais trabalhou, mas também ao vasto público da Rádio Nacional,
que atingia todo país alcançando os mais diferentes níveis de escolaridade. A Primeira
República foi um período em que a população passa a ter participação política, o que marca o
início de uma preocupação por parte das elites com a educação do povo. Com isso, é
importante difundir ideais de amor à pátria, no caso a nova pátria republicana, intuito que
deveria ser alcançado através do conhecimento da História da nação. Essa é uma chave para
6 GOMES, Ângela de Castro e CAVALCANTE, Vanessa Matheus. “História da Liberdade no Brasil, ou quando
uma história acaba em samba” IN: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos, RESNIK, Luís e MAGALHÃES,
Marcelo de Souza (orgs). A História na Escola. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
6
entender o trabalho de Viriato Côrrea que possuí características populares, quer pelo texto,
quer pelos veículos empregados.
Como ilustra a biografia que procuramos esboçar, Viriato era um homem de humor e
as anedotas eram freqüentemente pontos de partida para a sua abordagem da História.
Importava para Viriato captar o aspecto de curiosidade da História, as personalidades
destoantes, os hábitos exóticos de outrora, os detalhes estranhos e surpreendentes dos grandes
acontecimentos. Para Ângela de Castro Gomes esse aspecto do olhar de Viriato para a
História tem um caráter estratégico em seu trabalho voltado para o grande público. Para a
autora, Viriato acredita que é através desses fragmentos que a História tornar-se-ia atrativa
para os brasileiros.
É importante ressaltar, no entanto, que Viriato, pertencente a seu tempo, não escapava
dos temas que eram característicos da História escrita naquele momento, tais como os grandes
acontecimentos e os grandes homens, as batalhas e os aspectos relativos à história política em
geral. Contudo, dada à sua maneira singular de abordar esses temas, o trabalho de Viriato
Côrrea distingui-se por efetuar a mediação entre a História “científica” e o povo. A história da
produção intelectual de Viriato é também a história de alguém que procurava tenazmente
provar que as coisas exteriormente pequenas, assim como ele próprio, poderiam ter um valor
crucial na constituição da História.
2.2 O escritor jornalista
No período compreendido entre o século XIX e o início do XX era comum que os
intelectuais acumulassem tarefas em diversas áreas. As próprias áreas do saber não possuíam
uma definição clara entre si, havendo muita dificuldade para publicações. Assim, o espaço do
jornal acabava acolhendo intelectuais e áreas do conhecimento, sem que os textos produzidos
sofressem grande alteração.
Estabelecendo como parâmetros de institucionalidade o estabelecimento de uma
formação específica como condição de exercício da profissão e a existência de um controle
exercido pelos pares, temos como marcos no Brasil a criação da Associação Brasileira de
Imprensa em 1908, a criação do primeiro curso superior em 1947 na Pontifícia Universidade
7
Católica de São Paulo,7 e a instituição da obrigatoriedade do diploma, apenas em 19698. Em
17 de junho de 2009, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da
exigência de diploma para exercício da profissão de jornalista. O entendimento foi de que o
artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei 972/1969 feria a Constituição de 1988 e o direito à
liberdade de imprensa e à livre manifestação do pensamento reconhecidas pela Convenção
Americana dos Direitos Humanos9.
Segundo Rieffel,10 para a França temos a criação de um sindicato nacional em 1918
(SNJ - Syndicat National des Journalistes) e a definição da atividade no Código do Trabalho,
inserida em 1935, através do artigo L761.1. A definição, segundo o autor, é tautológica.
Estabelece que o jornalista é aquele que exerce essa profissão, sem esclarecer em que consiste
o trabalho do profissional. O autor faz citação de um dicionário de profissões de 1880,
segundo o qual diferentemente da profissão do médico ou do advogado, a qual o indivíduo
permanece pertencendo tendo ou não clientes, o jornalista é jornalista, quando escreve para
um jornal. “Nada de aprendizagem, nem de diploma, nem de certificado”. A indefinição em
relação à atividade em si, ou mesmo de sua missão ou função social, levou o autor a referir-se
ao jornalista como possuidor de uma identidade social fluída. O autor também se refere à
figura do escritor para o século XIX como sendo o modelo de maior prestígio, modelo esse
que exerceria influência até hoje.
No caso do Brasil, segundo Lavina Ribeiro, o prestígio da atividade literária está
associado ao bacharelismo. Segundo a autora, a formação educacional herdada das escolas
jesuítas privilegiava o estudo da gramática, da retórica, da filosofia e de línguas. Os bacharéis,
assim como os clérigos, formariam a elite nacional.
Escritores como Viriato Corrêa, mas também como Joaquim Manuel de Macedo, José
de Alencar, Machado de Assis e Olavo Bilac e muitos outros, viram na atividade jornalística
uma maneira de ter acesso a recursos financeiros e, ao mesmo tempo, garantir visibilidade às
suas obras. Segundo Lavina Ribeiro “padrões oriundos da literatura foram incorporados sem 7 RIBEIRO, Lavina Madeira. Imprensa e Espaço Público -A institucionalização do Jornalismo no Brasil 1808-
1964. Rio de Janeiro: E-papers, 2004. 8 COSTA, Cristiane. Pena de Aluguel. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 9 Informações procedentes do site do Supremo Tribunal Federal
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=109717 Acesso em 26/04/2010. 10 RIEFFEL, Rémy. Sociologie des médias. Paris, Ellipses, 2005.
8
mutilações pela imprensa tornando-a, cada vez mais, a instância que conferia maior
visibilidade pública às práticas literárias”11.
Conforme Cristiane Costa12, na década de 1950, a situação dos direitos autorais no
Brasil e a falta de um mercado literário consolidado ainda levava escritores a procurar
complementar sua renda aceitando emprego em jornais. Este seria o caso de Nelson
Rodrigues e de Graciliano Ramos, que segundo a autora, mesmo após ter publicado sua obra-
prima, Vidas Secas, “ainda lutava para sobreviver”.
Até a constituição do primeiro curso superior em 1947, houve uma progressiva
transição da escrita literária para a escrita jornalística. Ou, talvez, poderíamos falar em termos
de uma transição da imprensa “francesa” dita mais opinativa, para a imprensa de matriz
americana, que professava a objetividade e a exigência de um texto conciso. Ainda segundo
Cristiane Costa, a modernização da imprensa levou ao declínio do ornamental. Haveria uma
identidade de projeto entre ficção e jornalismo para escritores modernistas e realistas que os
levava a atacar um inimigo comum, “a literatice, o beletrismo, o penduricalho, o adjetivo”.
Segundo a autora, “com a crescente industrialização, a partir dos anos 1920 o papel do
escritor nos jornais já não seria o de uma estrela. Ao homem de letras seria exigido que
escrevesse reportagens, fizesse entrevistas, corrigisse o texto dos repórteres, editasse páginas,
chefiasse redações”13. Os anos 1950 seriam para a autora o marco de instituição do manual de
redação regido pelos princípios da objetividade. Era, enfim, o afastamento entre técnica
jornalística e arte literária.
No início do século XX, tal separação, como já foi dito, ainda não tinha sido operada.
Assim devemos observar que Viriato teve participação intensa como colaborador de diversos
jornais da época tais como o Correio da Manhã, A Noite, A Rua, A Manhã, Jornal do Brasil,
O Malho, O Tico-Tico, Ilustração Brasileira, entre outros. Essas colaborações garantiam, por
um lado, a obtenção de recursos para sua sobrevivência pessoal e, por outro, permitiam a
difusão de seu trabalho como escritor. Aproveitamos para mencionar a prática da divulgação
de romances sob o formato de folhetim que, importada da França, fez notórios no século XIX
11 RIBEIRO, Lavina Madeira. Imprensa e Espaço Público -A institucionalização do Jornalismo no Brasil 1808-
1964. Rio de Janeiro: E-papers, 2004. 12 COSTA, Cristiane. Pena de Aluguel. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 13 Op. Cit.
9
os romances de Vitor Hugo e de outros grandes literatos. Sobre Viriato, examinaremos em
seguida seu trabalho no Jornal do Brasil que será analisado no presente texto.
3. Jornal do Brasil
3.1 Apresentação e trajetória até o início da década de 1930.
No período de 1889 a 1890 em que ainda não havia sido convocada uma Assembléia
Nacional constituinte após a proclamação da República,14 houve muita insatisfação e críticas
políticas ao governo. Nesse contexto, antigos monarquistas, capitaneados por Rodolfo de
Sousa Dantas, contactaram Joaquim Nabuco em Londres objetivando a criação do Jornal do
Brasil. Após a instalação da Constituinte e do início do governo de Deodoro da Fonseca, o
jornal foi lançado em 9 de abril de 1891, data comemorativa do 60º aniversário do Te Deum
celebrado pela ascensão de dom Pedro II ao trono imperial, o que por si só sinalizava o
posicionamento político do jornal.
No entanto, as críticas que Joaquim Nabuco tece na coluna “Ilusões republicanas”
após tornar-se chefe de redação, em julho do mesmo ano, de tal maneira agridem os
republicanos, que boa parte da opinião pública posiciona-se contra ele e o jornal. A situação
tem seu ápice com a invasão da redação por uma multidão em 16 de dezembro de 1891 que a
depreda aos gritos de “Mata Nabuco!”.
Em abril de 1892 o jornal é transferido para novos donos e estabelece-se como
sociedade anônima. No entanto, o caráter monarquista do jornal, assim como de seus donos
(entre os quais estão o conde de Figueiredo, Manuel Buarque de Macedo e o conselheiro
Manuel Pinto de Sousa Dantas) segue inalterado. Joaquim Nabuco volta a escrever sob
pseudônimo no mesmo ano. Apesar dos esforços, as dificuldades levam o jornal a privilegiar
o noticiário policial, implicando em perda significativa de qualidade.
O caráter e a situação do jornal mudarão radicalmente quando, em 1893, passa a ser
controlado por uma sociedade comanditária sob a responsabilidade de Joaquim Lúcio de
Albuquerque Melo e a ser dirigido por Rui Barbosa. Os compromissos do jornal passam a ser
14 As informações aqui utilizadas são provenientes de FERREIRA, Marieta de Morais e MONTALVÃO, Sérgio.
Jornal do Brasil (verbete) em ABREU, Alzira e BELOCH, Israel (orgs.) DHBB, vol III, Rio de Janeiro , Ed.
FGV, p. 2866-75.
10
com a defesa do regime republicano e com o combate da ditadura de Floriano Peixoto.
Assumindo um tom inflamado, a nova perspectiva impacta profundamente a opinião pública.
Com a eclosão da Revolta da Armada em 6 de setembro de 1893, Floriano Peixoto
ordena a prisão de Rui Barbosa vivo ou morto. A sua atuação, divulgando no jornal o caso
Wandenkolk, irritara o presidente da República profundamente, a ponto de já o haver
intimado a deixar o jornal, o que Rui Barbosa descumpriu. Com a ordem de prisão, Rui
Barbosa resolve fugir e a responsabilidade pelo jornal passa ser de Joaquim Lúcio de
Albuquerque Melo.
Durante a Revolta da Armada, o Jornal do Brasil mantém seu caráter combativo,
sendo o único periódico a noticiá-la. Em represália Floriano ordena a suspensão das
publicações. Joaquim Lúcio de Albuquerque Melo nega-se. Diante disso, a sede do jornal
sofre uma invasão militar e, em seguida, o jornal é fechado. No mesmo ano, o jornal é
vendido para a firma Mendes e Cia.
O jornal volta a circular em 1894, tendo como chefe de redação Fernando Mendes de
Almeida e como secretário Cândido Mendes de Almeida. Mas, a mudança que sofre torna-o
quase irreconhecível. Abandona as discussões políticas e assume-se ao mesmo tempo como
sustentáculo da autoridade legal e como defensor dos setores mais empobrecidos da
sociedade.
Assim o jornal passa a destacar temas populares, tais como o jogo do bicho, o
carnaval, os crimes ocorridos na cidade, assim como a denúncia das precárias condições de
vida da população. O Jornal do Brasil passa a dispor de extrema popularidade e abre uma
nova sede na Avenida Central com nova maquinaria. No entanto, essa se revela uma
empreitada pouco sensata, pois o jornal passa a sofrer dificuldades econômicas, precisando
converter-se em sociedade anônima. Ainda em função dos problemas financeiros, em 1906, a
primeira página do jornal sofre profunda reformulação gráfica, passando a ser composta quase
exclusivamente por anúncios classificados.
Em 1910 com a Revolta da Chibata, a natureza anunciada do Jornal do Brasil revela-
se em seu posicionamento. Apesar de noticiar amplamente o acontecimento, repudia-o,
mantendo-se a favor da legalidade. O jornal sofre duras críticas dos demais órgãos de
imprensa em razão da fase sensacionalista.
11
O encarecimento do papel após a Primeira Guerra Mundial agrava as dificuldades
financeiras do jornal. Em 1919, hipotecado, a firma Mendes e Cia perde-o para o Conde
Ernesto Pereira Carneiro.
O Jornal do Brasil começa a procurar recuperar o prestígio perdido a partir de uma
valorização das seções artísticas e literária, contando com membros da Academia Brasileira
de Letras e com nomes como conde Afonso Celso, Carlos de Laet, Medeiros de Albuquerque,
Benjamim Costallat e Aníbal Freire. O jornal procura cultivar um afastamento da política, em
razão das más experiências anteriores, mantendo posições e apoios sempre discretos até 1930.
Apesar do tom brando com que criticara a Aliança Liberal e a candidatura de Getúlio Vargas
em razão de sua simpatia a Washington Luís, o jornal não foi poupado por ocasião do
Movimento de 1930, e sua sede sofreu novo empastelamento, o que o obrigou a ficar fora de
circulação por quatro meses.
Procurando reabrir o jornal, Pereira Carneiro convida para a direção do jornal Jânio
Pombo Brício Filho em substituição a Aníbal Freire. O novo diretor era possuidor de boas
relações com o atual governo e deveria contornar as dificuldades políticas para o
relançamento da publicação. O jornal foi cauteloso em relação ao Governo Provisório,
embora não lhe fosse simpático. Apoiou a Constituição proveniente da Assembléia Nacional
Constituinte de 1933 por representar a volta da legalidade, não sendo favorável, contudo, à
continuidade de Getúlio Vargas no poder. Aníbal Freire, que se afastara devido ao demasiado
comprometimento com o governo anterior, regressa ao jornal. Em 1933, o Jornal do Brasil
também aceitaria Viriato Corrêa, figura em situação parecida, desde que sob pseudônimo.
3.2 Coluna “Gaveta de Sapateiro” e “Miudezas Históricas”.
Viriato escolheu o pseudônimo de Frei Caneco para escrever no Jornal do Brasil a
coluna “Gaveta de Sapateiro”, que originou 532 contos no período entre junho de 1931 e
março de 1933. A partir de então, Viriato pôde assumir a autoria da coluna, desta vez
chamada “Miudezas Históricas”, que continuou produtiva até setembro de 1935, originando
mais 728 contos, perfazendo um total de 1260. Desse total, foram levantados 578 contos
divididos em 23 temas segundo tabela abaixo:
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Temas Quantidade
Academias Literárias 9
Café 16
Cana de Açúcar 7
Constituinte de 1823 43
Descobrimento do Brasil 7
Eleições 5
Franceses 3
Golpe de Estado 10
Holandeses 72
Imprensa 3
Índios 22
Jesuítas 7
Militares 21
Mineração 6
Mulheres 5
Outros 36
Padres 16
Portugueses e colonização 6
República 174
Revoluções e Movimentos liberais 57
Teatro 5
Tiradentes e Inconfidência Mineira 39
Como a tabela evidencia, o tema “República” é o que recebe mais atenções de Viriato,
representando 30% dos contos levantados. Dos 174 contos referentes ao tema, 83 foram
analisados, objetivando a escrita do presente texto. Tais contos, 48% do total, foram divididos
em 12 temas conforme a tabela seguinte:
Total de contos analisados 83 100%
13
15 de novembro 11 13%
Governo republicano 3 4%
Movimentação de tropas
republicanas
4 5%
Reação do ministério 7 de
julho e da família imperial
11 13%
Republicanos 22 26%
Deodoro 13 16%
Benjamin 4 5%
Floriano 5 6%
Ouro Preto 10 12%
Assumiram destaque os contos cuja escrita privilegiava a caracterização de
determinados personagens históricos como Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant, Floriano
Peixoto e o Visconde de Ouro Preto. Trata-se de 32 contos ou 38% dos contos sobre a
República. Dentre esses escolhemos como objeto de análise o marechal Deodoro da Fonseca,
por um lado, por ser o mais abordado, ao lado de Ouro Preto, com 13 contos, representando
41% do total. Por outro lado, pela interessante construção do personagem como herói.
4. Por que a República?
4.1 Razões para o advento da República no Brasil
Viriato identifica diversos fatores para a proclamação da República em nosso país. Um
deles é o temor de um Terceiro Reinado. Segundo ele, no conto “O Partido Republicano: A
enfermidade de Pedro II e o espantalho do Terceiro Reinado”, de 26. 9.34, o fato da saúde do
imperador vir se debilitando em razão de sua idade avançada fazia com que os
contemporâneos imaginassem a possibilidade da coroação da princesa Isabel. No entanto, os
detratores da princesa descreviam-na como leviana e até mesmo “enxovalhavam sua
dignidade como esposa”. Como governante, ela seria uma “boneca de cordéis” nas mãos do
Conde d’Eu, que além de estrangeiro, era visto como um homem ávido por dinheiro,
envolvido com negociatas. Segundo Viriato, essa idéia passou a fazer parte do arsenal de
argumentos dos republicanos, que passaram a expô-la nos espaços de difusão por excelência
de suas idéias: “nos cafés, nas palestras, nas conferências, nos clubes e nas colunas de
14
jornais”. Assim o Terceiro Reinado passou a ser visto “por toda gente”, “pelos homens de
bom senso” e até mesmo “pelos próprios monarquistas”, “como um fantasma e como uma
desgraça”.
Como explica Maria Tereza Chaves de Mello,15 no final do Império, o par antônimo
assimétrico16 que opunha Monarquia e República entrou em voga na linguagem de todos os
indivíduos pertencentes a uma cultura democrática e científica que se difundia na época.
Assim, segundo a autora, a palavra “República” passava a estar associada às idéias de
liberdade, progresso, talento, mérito, ciência, cidadania. E “Monarquia” com privilégio,
atraso, apatia, etc. Também existiria um sentimento de inadequação política ao tempo que
estava sendo vivido, e a idéia de futuro passava a ser associada cada vez mais com
“República” e não com a “Monarquia” continuada em um Terceiro Reinado. Para Viriato, na
população brasileira em geral não havia “a crença na República, mas uma descrença na
Monarquia”17.
A imagem negativa da princesa, para o autor, muda radicalmente com o evento do 13
de maio. O conto “O Partido Republicano: o 13 de maio e o Isabelismo” de 28.9.1934 dá
conta não só desse efeito da abolição, como também a trata como uma dádiva dada pelo
destino para beneficiar a República. A abolição, segundo Viriato, traz o apoio do setor que
faltava: a “aristocracia territorial” como ele chama os conservadores ex-proprietários de
escravos. No entanto, esse era o apoio que “faltava”, pois o autor caracteriza como apoiantes
da República em 1888 a mocidade das escolas, parte da intelectualidade e a maioria das
forças armadas devido à Questão Militar.
As origens desse apoio são esclarecidas em outros contos. Um deles é “O Partido
Republicano: A cisão do Partido Liberal e o Manifesto de 1870” de 19.9.1934. Nele, Viriato
conta a cisão do Partido Liberal em moderado e radical (“setor liberal histórico”). O último
propunha várias mudanças de cunho progressista, como por exemplo a abolição do poder
moderador e do elemento servil. Ele liga essa cisão ao aparecimento do Manifesto de 1870,
15 MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A modernidade republicana”. Revista Tempo, Nº26, volume 13, Janeiro
2009. 16 A autora utiliza idéias de R. Koselleck. 17 CORRÊA, Viriato. “Deodoro e a idéia republicana”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17/6/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras.
15
pois os membros do setor radical estariam cada vez menos convencidos da possibilidade de
concretizar tais reformas no interior do sistema monárquico. Assim, Viriato explica que a
República “não se deu subitamente como o estalo de um trovão em dia luminoso”.
No conto “O Partido Republicano: O impulso da mocidade das Escolas” de 20.9.1934,
Viriato explorará os efeitos do Manifesto de 1870. Ele conta que houve adesões em todo o
país que geraram a organização da propaganda republicana por meio de jornais, discursos e
fundação de clubes. No entanto, para ele, foi vital a renovação da juventude para continuar
essa tendência. Estudantes associam-se para criar jornais e difundir os princípios do
Manifesto de 1870: “A propaganda republicana foi abrindo seu caminho nos ambientes
arejados pela ideologia tais como os meios intelectuais, as academias, as rodas artísticas e
científicas”.
Essa tendência é identificada pela autora Maria Tereza Chaves de Mello: “A década de
1880 se distinguiu por uma grande atividade da inteligência: os jornais ‘independentes’ se
multiplicaram em função de um público ampliado, a produção teórica em livros e panfletos
foi intensa, as conferências – que, explícita ou inadvertidamente, divulgavam as novas idéias
– atraíam um público muito interessado, as campanhas, a abolicionista e a republicana,
enchiam, entusiasticamente, as ruas e os auditórios públicos”18. Para a autora a difusão dessas
idéias originadas em teorias materialistas, ligadas ao positivismo e ao evolucionismo,
geraram um verdadeiro culto à ciência e ao progresso. Tudo isso originou uma disposição
mental para a aceitação da idéia republicana que passou a ser debatida amplamente na
sociedade.
4.2 Por que não a Monarquia?
Além da já exposta associação da Monarquia com atraso, como apontado por Maria
Tereza Chaves de Mello, exploraremos como a idéia monárquica era entendida por Viriato,
nos anos 1930.
Viriato compartilha da idéia segundo a qual a monarquia seria uma planta exógena no
Novo Mundo, que jamais poderia criar raízes. Tal interpretação, presente nos meios
intelectuais da época em que Viriato escreve, exemplifica sua atuação como mediador. Por
18 Op. Cit.
16
outro lado, Viriato possui uma narrativa própria para explicar que a idéia de monarquia, mais
precisamente a idéia de autoridade, jamais se enraizara no país.
Suas idéias em relação ao tema materializam-se na maneira como ele efetua uma re-
hierarquização dos personagens históricos ligados ao Império. Segundo Ângela de Castro
Gomes “a escrita da história que se realiza sob o impacto das lutas políticas e simbólicas do
início da República é decisiva para a constituição do campo da historiografia brasileira. Foi
nesse momento que inúmeros acontecimentos e personagens foram ‘revisados’ ou porque se
introduziram novos fatos e heróis na narrativa, ou porque a hierarquia entre os que eram
conhecidos precisava ser repensada”19.
Lembrando que Viriato Corrêa escreve os contos 44 anos após a proclamação da
República20 e que sua produção começa desde o início do século XX, trata-se de um
acontecimento que lhe foi próximo temporalmente. Em suas palavras “A República é de
ontem”21. Considerando o advento da República como “tempo presente”,22 a análise da
hierarquização também é interessante para observamos como Viriato inscreve o
acontecimento como resultado de um processo mais longo, remontando à colonização.
Para Viriato, quando os colonizadores aqui chegaram, a natureza selvagem a todos
igualou. As privações e perigos enfrentados por todos terminaram por esvaziar o sentido de
hierarquia e a “autoridade real foi-se dissipando, dissipando, até que se apagou da memória do
povo”23. As leis eram brandas na forma e na execução. Assim o brasileiro teria se acostumado
a ignorar a autoridade.
Para ele, o momento de chegada da Corte ao país, em 1808, fora um momento
decisivo para a história da relação da população brasileira com a autoridade, especialmente no
19 GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo horizonte: Argumentum, 2009. 20 Observamos que há um texto datado de 1920 onde está presente boa parte da narrativa do episódio da
proclamação da República que não sofre grande alteração nos contos analisados. Ou seja, 31 anos após o
acontecimento. CORRÊA, Viriato. “O dia da República, pelo livro de Max Fleiuss”. Correio da Manhã,
16.4.1920. Arquivo IHGB. Lata 795. Pasta 1. 21 Trecho proveniente do texto acima citado. 22 RIOUX, Jean-Pierre. “Pode-se fazer uma história do presente?” IN: CHAUVEAU, A. e TÉTARD, Ph. (orgs).
Questões para a história do tempo presente. Bauru: Edusc, 1999. 23 Corrêa, Viriato. “Pedro II – O democrata”. RIHGB. Tomo 98 – Volume 152 (2º de 1925)
p. 111 – 114.
17
entendimento do que era a Monarquia. Algo que segundo o autor até então era fluído e
longinquamente situado do outro lado do oceano.
No entanto, o que chegou ao Brasil, segundo Viriato, foi uma “Corte esbodegada pelos
azares da fuga, uma espécie de bando de saltimbancos à procura de um pedaço de terra para
armar a barraca”. A família real, composta “de um pobre rei molengo, de queixo bambo,
medroso e glutão – o Sr. D. João VI” e de uma princesa como Carlota Joaquina, “essa
escandalosamente adúltera e escandalosamente deslocada e plebéia”, em nada estimulou a
criação de uma noção de respeito à autoridade e em nada correspondeu ao que se esperava da
majestade. Dom Pedro I, “um estourado, um estrabulegas, um epilético, sem educação
política, sem educação familiar”, amante da Marquesa de Santos, também não cumprira esse
papel.
Em relação a Dom Pedro II, temos um tratamento diferente. O imperador é descrito
como democrático demais. “Talvez tivesse sido o mais simples, o mais suave, o mais doce, o
mais liberal, o mais democrata dos monarcas que tenham passado pelo planeta”24. Ele também
não transmitira a noção de respeito à autoridade, mas por agir sem diferenciar-se dos seus
súditos. Suas ações denotavam simplicidade: “Misturava-se com o povo; andava na rua como
qualquer mortal, com a sua sobrecasaca e o seu guarda-chuva debaixo do braço; dava em casa
alheia a presidência da mesa ao dono da casa; chamava inferiores para a sua mesa, ia até o
fundo da cozinha do Colégio Pedro II provar as panelas, para verificar se forneciam boa
comida aos estudantes; ia aos mercados comer frutas, como muita vez fez em Lisboa; etc.,
etc.”25
Na nova hierarquização dos personagens históricos, posta em prática por Viriato,
temos preservada a figura de Pedro II. No excesso de valores democráticos, vemos a origem
de sua atitude pouco efetiva diante da conspiração republicana. Afinal, segundo Viriato, na
ocasião de lançamento do Manifesto Republicano ele teria declarado: “Se os brasileiros não
me quiserem mais no trono, irei ser professor”26. A falta de reação na ocasião da Proclamação
da República muitas vezes é traduzida como frouxidão. “A bondade de Pedro II era tão alta e
24 Op. Cit. 25
Op. Cit. 26 Discurso proferido por Viriato Corrêa na Academia Brasileira de Letras e publicado no Jornal do Comércio.
30 de outubro de 1938.
18
tão larga que lhe prejudicava, de certo modo, a energia. Era o Pedro Banana no bom humor
trocista dos brasileiros”27.
Nos contos em que Viriato narra o processo de proclamação da República a figura de
Pedro II é respeitada por todos, pelos republicanos e principalmente pelo personagem que
sobressairá no acontecimento, Deodoro da Fonseca. A ambigüidade das atitudes em relação à
monarquia cabe a Floriano Peixoto.
5. Como se deu a proclamação da República?
No que diz respeito a origem dos acontecimentos do 15 de novembro um fator é
colocado por Viriato como essencial - a aproximação de Deodoro com os republicanos
históricos.
A aproximação viria a culminar um longo processo de convencimento de Deodoro em
prestar apoio à causa republicana, feito até então pelos republicanos militares. Segundo
Viriato, o marechal, como todo oficial de alta patente, era monarquista, e sua sensibilidade
para comandar aquele movimento revolucionário estava sendo despertada através da
exploração da Questão Militar.
O conto apropriadamente intitulado “Os primeiros passos para a conquista de
Deodoro”, de 18.6.1933, auxilia na observação da questão. O conto é centrado em uma
conversa na casa de Deodoro entre o marechal, Menna Barreto e Sebastião Bandeira. Nela,
Sebastião Bandeira conta recentes ações do governo imperial que prejudicavam os militares,
tais como a retirada da tropa de linha do Rio de Janeiro, as afirmações circulantes de que a
guarnição do Exército seria dispensada e que sua função passaria a caber à Guarda Nacional,
além da redução do Exército pela metade, em razão de economia. Para corroborar seus
argumentos, Bandeira cita a criação da Guarda Cívica e afirma que a Guarda Nacional estava
recebendo instrução superior à do Exército.
Deodoro, marechal prestigiado por sua atuação na Guerra do Paraguai, considera tudo
isso profunda ofensa ao Exército. O episódio do conto resulta em sua fúria e na satisfação dos
republicanos.
27 Corrêa, Viriato. “Pedro II – O democrata”. RIHGB. Tomo 98 – Volume 152 (2º de 1925)
p. 111 – 114.
19
Como já foi dito, o episódio que decidiria a adesão de Deodoro era o de sua reunião
com os republicanos históricos, no qual a ação diplomática de Benjamin Constant foi
decisiva. Benjamin não só atuou efetuando a aproximação, mas teria sido ele quem
efetivamente convencera Deodoro a posicionar-se a favor da causa. O que teria sido feito,
como foi frisado por Viriato, no dia 11 de novembro.
O conto “O momento em que Deodoro se decidiu pela República” é baseado em uma
citação de um depoimento de Francisco Glycerio, proveniente do livro “Pesquisas e
Depoimentos” de Tobias Monteiro. Segundo o depoimento, Benjamin estaria absolutamente
convencido da necessidade da participação de Deodoro para a vitória do movimento. Assim,
ele teria argumentado que seria necessária muita “audácia além de grande privilégio diante da
tropa para arcar com 67 anos de tradições monárquicas e quase 50 anos de reinado”. Além
disso, seria custoso que Exército e Marinha se entregassem inteiramente ao comando de um
chefe revoltado. Era indispensável uma espada em mão, como a de Deodoro, “acostumada a
comandar e vencer”.
A reação do marechal é, a princípio, lamentar que gostaria de carregar o caixão do
imperador, seu amigo. Mas sentencia “Ele assim quer: façamos a República”.
No conto “A espingarda velha”, de 25.7.1933, Deodoro comunica suas intenções a
Floriano Peixoto. Floriano até então vinha evitando a casa do marechal devido aos boatos de
conspiração. A posição de Floriano inicialmente é de oferecer-se para buscar uma conciliação
com o governo. Mas Deodoro mostra-se decidido, para ele o ponto extremo havia sido
atingido e o único caminho era a luta. Questionado sobre sua resposta, Floriano responde: “Se
a coisa, seu Manoel, é mesmo contra os ‘casacas’, tenho ainda lá em casa uma espingarda
velha”, demonstrando seu alinhamento com a causa do Exército.
O período posterior mostra-se desafortunado para os republicanos. Deodoro, que
apresentava crises de asma, piora seu estado de saúde. A revolução, anuncia Benjamin, teria
que ser adiada. A questão da espera por Deodoro ganha um caráter de espera não apenas por
uma recuperação física, mas de incerteza em relação ao seu comprometimento com a causa
republicana.
Uma figura não se conforma com a situação. Este é Sólon, homem descrito como
extremamente exaltado. Para ele esse momento não poderia ser desperdiçado. A solução que
encontra é disseminar o boato da prisão de duas das figuras mais caras ao Exército - Deodoro
20
e Benjamin. O boato tem efeito incendiário. Sua disseminação é instantânea. “À porta dos
jornais, dos cafés, das casas de moda, das confeitarias, não se falava em outra coisa”28. As
tropas efervescidas pela Questão Militar e pela idéia republicana não aceitariam algo assim do
governo. Nas cabeças dos miliatres que receberam a notícia “lavrava um incêndio”29. A
“procissão” pôs-se na rua.
Ao ficar sabendo do estado das coisas através do Tenente Adolpho Peña, Deodoro
como que se recupera magicamente da crise asmática. Bastou que ele recebesse o recado “que
seu ânimo faiscou, seu corpo tomou aprumo e sua alma ergueu-se como uma torre”30.
Segundo conta Viriato, Deodoro declara: “Pois mesmo que tenha que cair no meio da rua, eu
vou comandar as tropas.”31Ao encaminhar-se para o Campo de Santana, Deodoro é
reconhecido e aclamado com vivas à República.
No decorrer do posicionamento das tropas no Campo de Santana, uma dificuldade
ocorre. As tropas do 10º batalhão de infantaria estão posicionadas no Largo da Lapa para
impedir a passagem da Escola Militar que viria juntar-se aos revoltosos. O cadete Raymundo
Abreu é enviado para contornar essa dificuldade. Descrito como “um rapaz de inteligência
sutil”, a solução que Abreu encontra é anunciar para as tropas que a República já havia sido
proclamada por Deodoro. Qual é a reação do batalhão? Juntar-se aos revolucionários!
Paralelamente a esses acontecimentos, o governo recebia a notícia dos boatos sobre o
movimento republicano. Ouro Preto hesitava a acreditar nas cartas anônimas que recebia
sobre a conspiração, mas com a concretização dos fatos, age energicamente mobilizando
tropas e dando ordens a fim de debelar o setor insubordinado. Para ele, aquelas medidas
pareciam óbvias. Dizia que “não gostaria de entrar em seara alheia(...), mas que eram juízos
28 CORRÊA, Viriato. “O boato de Solon”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1/8/1933. Arquivo da Academia
Brasileira de Letras. 29 CORRÊA, Viriato. “A deflagração do movimento”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5/8/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 30 CORRÊA, Viriato. “A ressurreição de Deodoro”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17/8/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 31 CORRÊA, Viriato. “Marchando para o Quartel-General”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18/8/1933.
Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
21
que saltavam a sua ignorância militar”32. No entanto, seus esforços foram em vão. Floriano,
principal responsável pela defesa, “com sua impassibilidade de esfinge, cochichava as ordens
aos ouvidos dos oficiais”33, parecia que as mandava executar imediatamente. Mas não “se lhe
ouvia a voz”34.
Assim descreve Viriato o momento em que Ouro Preto dá-se conta de sua real
situação:
Não se tomava medida alguma? Não se desalojavam aqueles homens dali?
Não havia meios e força para os por para fora?
- Não, respondeu Floriano.
- Não, respondeu Maracajú.
- Não, também foi a resposta do barão.
Ouro Preto compreendeu tudo.
A revolta estava ramificada pelo quartel a dentro, pelo exército inteiro. Não
podia confiar numa só farda. Resistência não havia nenhuma possível35.
Momentos antes, Deodoro havia recebido o recado de que a metralhadora que deveria
defender o governo, estava à sua disposição. Segundo Viriato era aquilo que Deodoro estava
esperando. “Queria chegar ao fim sem derramar uma gota de sangue e sem disparar um
tiro”36. Ele então entrou no Quartel General e as tropas que estavam lá dentro saldaram-no
com gritos de vivas e confraternizaram-se com as tropas revoltosas.
Diante de Ouro Preto, Deodoro, em “surto de eloqüência”, expõe suas razões para
depor o Ministério. Ele, Deodoro, crescera em meio aos sacrifícios da batalha os quais Ouro
32 CORRÊA, Viriato. “A inércia das autoridades”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19/8/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 33 CORRÊA, Viriato. “As primeiras avançadas dos Republicanos”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 23/8/1933.
Arquivo da Academia Brasileira de Letras. 34 CORRÊA, Viriato. “O indecifrável, o misterioso”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 20/8/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 35 CORRÊA, Viriato. “O dia da República, pelo livro de Max Fleiuss”. Correio da Manhã, 16.4.1920. Arquivo
IHGB. Lata 795. Pasta 1. 36 CORRÊA, Viriato. “O Trambolho”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 3/9/1933. Arquivo da Academia
Brasileira de Letras.
22
Preto não podia calcular. Ele havia devotado toda sua vida à pátria e, por isso, não poderia
aceitar as humilhações que o Exército vinha sofrendo. “Fizera a longa campanha do
Paraguai”37. Durante três dias e três noites, combatera no meio do lodaçal, com água pelos
joelhos. Os sacrifícios de seus companheiros de farda não foram menores. “Pois ele ali estava
à frente de seus camaradas para reivindicar os direitos do Exército”38. Cravando os olhos em
Ouro Preto anunciou: “O seu ministério está deposto!”39.
Para a surpresa dos republicanos, Deodoro declara: “Eu mesmo vou me entender com
o Imperador para organizar outro gabinete”40. A declaração decepciona-os profundamente.
Uma grande polêmica surge sobre se a proclamação da República havia sido feita ou não.
Muitos temiam que o movimento caísse no ridículo. Alguns defendiam a ação de Deodoro
como um golpe de habilidade. A proclamação teria sido um choque que poderia provocar a
reação das altas patentes. Outros ainda acreditavam que: “A República estava implicitamente
proclamada pela vontade soberana das tropas revolucionárias que a tinham vindo fazer”41.
No entanto, logo no conto seguinte42, Viriato conta que o ato subsequente de Deodoro
foi ir até o Arsenal da Marinha saber sobre seu posicionamento em relação ao acontecido. A
Marinha era vista como fiel à Monarquia. A adesão foi facilmente obtida, mas o que nos
interessa ressaltar aqui são os acontecimentos do percurso das tropas lideradas por Deodoro.
Elas constituíam uma “passeata da vitória”. Ao passar pela famosa Rua do Ouvidor reboaram
em frente ao Diário de Notícias os vivas à República, a Deodoro, a Benjamin e a Quintino.
O estado de saúde de Deodoro sofre terrivelmente com as agitações anteriores. Ele
regressa à casa onde é mantido sob a guarda da esposa, D. Marianinha, que o torna inacessível
e sua casa é vigiada pelos republicanos que querem evitar contatos provenientes do Paço
imperial.
37 CORRÊA, Viriato. “A deposição do ministério”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6/9/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 38 Op. Cit. 39 Op. Cit. 40 Op. Cit. 41 CORRÊA, Viriato. “Estava ou não estava proclamada a República?”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
8/9/1933. Arquivo da Academia Brasileira de Letras. 42 CORRÊA, Viriato. “A passeata da vitória”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 9/9/1933. Arquivo da Academia
Brasileira de Letras.
23
Os republicanos reunidos em casa de Benjamin estão inquietos. “A cidade estava na
convicção de que se havia feito a República. No entanto, os chefes da conspiração sabiam que
nada havia sido feito a não ser a deposição do gabinete 7 de julho”43. Benjamin, concitado por
Jayme Benevolo, redige um manifesto de proclamação da República.
Benevolo, com dificuldade, tem acesso ao quarto de Deodoro. Deodoro acredita que
apenas a dissolução do Ministério e a constituição de um novo, junto ao imperador, seriam
suficientes para solucionar as questões existentes. Benevolo argumenta que o movimento
republicano cairia em ridículo caso a República não fosse proclamada. Mas o marechal
permanece firme em sua disposição de entender-se com D. Pedro II. Mais uma vez, é
necessária a presença de Benjamin.
Benjamin termina por trazer a notícia chocante: Silveira Martins, inimigo pessoal de
Deodoro, que tinha posicionamento idêntico ao de Ouro Preto em relação ao Exército, tinha
sido escolhido para compor o novo ministério. Uma transformação opera-se em Deodoro:
“Não é mais o doente que se estorcia nas ânsias de uma dispnéia. Tinha-se num relâmpago,
operado o milagre. Corara-se-lhe o rosto de repente, tremiam-lhe as belas barbas brancas e os
olhos ardiam em chispas furiosas. Estava agora de pé, rijo, vibrando”44.
Decepcionado pelo fato de o novo chefe de governo ter sido escolhido sem a sua
consulta e mesmo sentindo-se desafiado com aquela escolha, Deodoro resolve assinar o
manifesto, bradando sobre o Imperador: “Quer ir para o olho da rua? Pois vai! Quer a
República? Pois tem a República!”45.
“Estava feita a República”46.
No paço, D. Pedro II chegara de Petrópolis após receber a carta de demissão do antigo
ministério. Ele hesita em tomar decisões. Repete que chamaria Deodoro e tudo estaria
resolvido. Sua atitude é interpretada como falta de ação, moleza. A impressão que passava era
de uma despreocupação “de quem não tinha entendido a gravidade do momento ou o 43 CORRÊA, Viriato. “A inquietação dos republicanos”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12/9/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 44 CORRÊA, Viriato. “Uma caneta! Uma caneta!”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28/9/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 45 Op. Cit. 46 Op. Cit.
24
pessimismo de quem adivinha a irremeabilidade do destino”47. Fica a sugestão, não expressa
abertamente, de que sua espera por Deodoro seria o mais sábio a ser feito, já que, como
examinamos nos outros contos, Deodoro esperava ser consultado. Mas a atitude de Dom
Pedro não é lida assim pelos demais. Diante da energia da princesa Isabel e de Andrade
Figueira, Dom Pedro II aparece como atordoado. Adoentado, o Imperador já não era mais o
mesmo.
Pressionado, Dom Pedro II acata a sugestão do nome de Silveira Martins feita pelo ex-
ministro Ouro Preto. Os homens que enviara para comunicar-se com Deodoro não tiveram
acesso a ele por sua casa estar duplamente guardada pelos republicanos e por D. Marianinha.
A escolha logo é dada como desastrosa. Como vimos, é o que precipita a fúria de
Deodoro. O nome do conselheiro Saraiva surge como alternativa para novo chefe de governo.
O conselheiro deseja consultar Deodoro. No entanto, quando o recado imperial chega,
Deodoro responde simplesmente “Diga ao Saraiva que já é tarde”48.
Como pudemos ver, a ocorrência da proclamação da República narrada por Viriato
inclui a disseminação de boatos, de versões desencontradas dos acontecimentos, mal-
entendidos, traições e acasos. São as miudezas da História originando seus grandes
acontecimentos.
O boato de Sólon é mostrado como importante fator de desencadeamento do processo.
O “ardil” do cadete Abreu em falar que a República já havia sido proclamada provoca a
adesão da tropa que devia combater a revolução. Isso é demonstrativo na representação do
acontecimento da existência de uma disposição mental para aceitação da República, como
evidenciado por Maria Tereza Chaves de Mello, a qual já mencionamos no tópico anterior.
A autora também caracteriza a Rua do Ouvidor como o grande centro difusor da nova
cultura moderna. A rua concentrava cafés, confeitarias, livrarias e os principais jornais da
cidade. Espaços também citados por Viriato como difusores dos “boatos”, ou seja, também
47 CORRÊA, Viriato. “A moleza de Pedro II”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22/9/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 48 CORRÊA, Viriato. “O fim”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 30/9/1933. Arquivo da Academia Brasileira de
Letras.
25
são caracterizados por ele como espaço por excelência de ressonância das notícias sobre a
República. A rua é palco de comemoração do evento nos contos de Viriato.
Outro aspecto da narrativa é o de ser uma história sem grandes conflitos. Em Viriato,
os enfrentamentos são evitados essencialmente devido à articulação de importantes elementos
da defesa do governo tais como o Barão do Rio Apa, o Visconde de Maracajú e Floriano
Peixoto, com a conspiração. Por outro lado, as tropas demonstraram grande disposição em
aderir à República anunciada. A confluência desses fatores, uma vez percebido o momento
por Deodoro, seria o que teria resultado nessa revolução pacífica, verdadeiro exemplo para os
outros países.
6. Deodoro herói
Segundo Fernando Bessa Ribeiro49 a invenção dos heróis é um processo fortemente
enraizado nas lutas em torno do processo de construção da memória e da identidade nacionais.
O herói está associado aos momentos “fortes” da história nacional, aqueles que serão
considerados como marcos. O caso da República, por representar uma mudança de regime
político, e estar associado com a obtenção de liberdade e cidadania, sem dúvida pode ser
considerado um momento “forte”. O objetivo deste tópico é procurar identificar o processo de
construção da figura de Deodoro como o herói relacionado a esse momento, nos contos de
Viriato Corrêa dos anos 1930.
No entanto, ao adiantar que é Deodoro o personagem que emerge como herói do
acontecimento, não quero isentar a questão de polêmica. Segundo José Murilo de Carvalho50
o episódio de proclamação da República foi objeto de intensa disputa política. Uma disputa
para estabelecer seus símbolos e protagonistas ligada aos significados que se queria atribuir à
nova forma de governo.
Viriato identifica a disputa em relação ao acontecimento. Para ele, a razão disso é que
a República “teve a felicidade ou a infelicidade de fazer-se com muitas figuras de primeiro
plano”. As paixões impediram que a ação de cada indivíduo fosse valorada menos
49 RIBEIRO, Fernando Bessa. “A invenção dos heróis: Nação, história e discursos e identidade em
Moçambique”. Etnográfica, vol. IX, nº2, 2005. 50 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
26
parcialmente. Para ele, curiosamente, mesmo passados 43 anos desde o acontecimento, as
paixões pessoais continuavam extremamente vivas. Ele acreditava que isso só seria afastado
com um passar ainda maior de tempo, que possibilitasse um julgamento mais neutro. Para ele,
a história é caprichosa: “impõe-se pela velhice como os vinhos generosos”.
O grande número de vultos ligados à República deu início a “facções”, assim descritas
por ele:
Ora são os amigos de Deodoro (que dizem) que Benjamin não teve nenhum relevo
na revolução; ora os discípulos de Benjamin que procuram deprimir Deodoro; ora os
que afirmam a eficiência predominante de Floriano; ora, os que insistem em mostrar
que ele não passou de um inimigo da conspiração; ora, os militares querendo dar ao
Exército toda a iniciativa e toda a realização do feito; ora, os civis procurando
mostrar o papel secundário do Exército.51
Mas como a ação desses indivíduos hierarquiza-se na narrativa de Viriato?
De acordo com citação de Fernando Bessa Ribeiro de Fabre, existem três aspectos
definidores do herói: “i) a imanência (e iminência) da morte; ii) a necessidade de agir, iii) a
arbitrariedade de sentido”. Utilizaremos os dois primeiros elementos para iniciar nossa
análise. O herói é aquele que em prol de uma causa maior, muitas vezes o bem da pátria,
arrisca-se com prejuízo da própria vida. No caso de Deodoro, podemos enxergar algo próximo
em razão da sua debilidade física provocada pela velhice e pelas sucessivas crises asmáticas.
Benjamin chega a declarar na escrita de Viriato: “Era impossível que uma criatura como
aquela, às portas da morte, pudesse, mais algumas horas depois, montar a cavalo para dirigir
um movimento revolucionário”52.
O heroísmo evidencia-se, em como nos momentos-chave, Deodoro supera como por
passe de mágica suas fragilidades. Naquela “criatura excepcional” que era Deodoro “a alma
era mais forte que o corpo e a enfermidade havia sido dominada pelo dever do momento”(...)
“Assim o homem que pelo agravamento da enfermidade todos pensavam que estaria morto ao
51 CORRÊA, Viriato. “A afirmativa de Medeiros e Albuquerque”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3/10/1933.
Arquivo da Academia Brasileira de Letras. 52 CORRÊA, Viriato. “Às portas da morte”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4/8/1933. Arquivo da Academia
Brasileira de Letras.
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amanhecer, pela manhã montava a cavalo para comandar as tropas que derrubariam o
império”53.
Deodoro também é aquele que se sacrifica pela pátria por sua trajetória pregressa na
Guerra do Paraguai. Diferentemente dos civis, ele conhece as agruras dos confrontos, os
sacrifícios dos soldados. Ele é descrito como um homem que devotou a vida para a nação.
Não crescera pisando as pedras do Rio de Janeiro, crescera nos campos de batalha. Por isso,
segundo a narrativa de Viriato, a República era apenas o último e talvez o maior de uma série
de sacrifícios feitos pelo Brasil.
Sobre o segundo elemento identificador do herói, “a necessidade de agir”, em relação
a Deodoro verificamos que sua adesão era vista pelos republicanos como crucial para a vitória
do movimento. Sendo assim, a sua ação seria indispensável. Por outro lado, no que se refere
ao ato de identificar o momento de agir, esse atributo era dividido com Benjamin. Inúmeras
vezes era Benjamin que precipitava a ação de Deodoro, convencendo-o, em momentos-chave,
como o de finalmente assinar o manifesto de proclamação da República. Por outro lado, esse
atributo também se manifestou em Deodoro quando ele identificou em frente Quartel-General
o momento de invadi-lo, como já foi registrado anteriormente. Esse foi um demonstrativo de
habilidade e de nobreza ao evitar o derramamento desnecessário de sangue.
Uma característica recorrentemente atribuída ao herói é a da clarividência. O herói é
aquele que tem a capacidade de fazer um julgamento superior da situação e do momento em
que se encontra, enxergando além dos demais e, por isso, sendo capaz de liderá-los. Essa
característica está bastante relacionada à identificação do momento de agir e por isso essa
característica também pode ser vista no exemplo anterior da ação de Deodoro ao invadir o
Quartel-General. No entanto, consideramos que também é característica mais facilmente
associada a Benjamin.
Sobre a outra figura mencionada como envolvida nas polêmicas sobre quem teria tido
preeminência no advento da República está Floriano. Mas, se Benjamin e Deodoro podem,
nos contos de Viriato, dividir, em alguma medida, os atributos de herói, o mesmo não se dá
com Floriano. Floriano recebe, ainda que não nomeadamente, o desagradável estigma de
traidor. Ambíguo, dúbio, misterioso, é aquele que não fala em voz alta, cochicha. Participante
53 CORRÊA, Viriato. “A ressurreição de Deodoro”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17/8/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras.
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da conspiração, é apontado diversas vezes como leal ao governo e, em suas mãos, Ouro Preto
deposita a responsabilidade de afastar as forças que o ameaçavam. Com essa caracterização,
dificilmente os leitores poderiam atribuir a ele algum heroísmo.
Segundo Viriato, Deodoro, ao contrário, não teria sido desleal com o amigo Dom
Pedro II, pois jamais escondera as conspirações que realizava em sua casa. “Nunca houve
conspirador mais franco”54. E também não havia sido ingrato, pois todos os postos que
recebera do imperador deviam-se ao seu talento de soldado e foram incontestavelmente
merecidos.
Questão que levanta polêmica na literatura sobre a República é sobre a quem se
dirigiam os vivas após a proclamação. Viriato cita três nomes: Deodoro, Benjamin e Quintino.
A figura de Quintino dificilmente está associada ao protagonismo na proclamação da
República, mas em algumas narrativas, a sua influência é ressaltada. Seria o caso dos contos
de Viriato?
Quintino é descrito por Viriato como um aristocrata, “figura adequada para passos
régios e não para os ambientes plebeus de uma falange que pregava a democracia”55. Ele era
representante de um setor do Partido Republicano que esperava a República cair
“milagrosamente do céu”. Segundo Viriato, esse setor não descuidava da propaganda, mas “o
fazia com tal delicadeza, que a campanha mais parecia um torneio de esgrima do que
machadadas contra as raízes da monarquia”. Oposto a ele estava o setor liderado por Silva
Jardim, o dos “demolidores” que lutavam pela República com “trabalho e sacrifício”.
No 15 de novembro a aparição de Quintino, segundo Viriato, se dá em cima de um
animal pequeno demais para ele, que teria sido um homem alto e esguio. Isso lhe dá um
“aspecto grotesco” e risível. Uma das calças estava repuxada e deixava de fora um pedaço
branco da ceroula com os cadarços desamarrados. Quintino é saudado com vivas pelos
oficiais enquanto se encaminha para perto de Deodoro e Benjamin. Mas quando esfuziante,
empolga-se a gritar vivas a República, Deodoro manda que se cale e não grite viva algum.
54 CORRÊA, Viriato. “As virtudes de Deodoro”. Jornal do Brasil,Rio de Janeiro, 23/6/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras. 55 CORRÊA, Viriato. “Viva a República! Quintino e Silva Jardim”. Jornal do Brasil,Rio de Janeiro, 31/3/1934.
Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
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Não é preciso mais dizer para afirmar que Quintino, na narrativa de Viriato, não ocupa lugar
de herói.
Voltando nossa concentração para a figura de Deodoro, queremos destacar, como já
foi dito em nossa apresentação da coluna, que ele é o personagem que quantitativamente mais
foi abordado nos contos de Viriato. O marechal também é contemplado no livro “História da
Liberdade no Brasil”, publicado por em 196256 em que Deodoro aparece como um dos que
lutaram pela consecução da liberdade no Brasil ao lado de Zumbi dos Palmares, Tiradentes,
Frei Caneca e Princesa Isabel. Deodoro é o último a aparecer sendo, com isso, aquele que
obtém a liberdade a partir do estabelecimento da República no Brasil e por isso possuindo
papel chave.
Em relação a Deodoro vemos outro procedimento identificado por Renato Bessa
Ribeiro como parte do processo de construção dos heróis: a eliminação dos aspectos mais
negativos de sua personalidade acompanhada da sobrevalorização de suas características mais
positivas. Viriato elenca características contraditórias de Deodoro, ao mesmo tempo que
ressalta as mais positivas:
Das impressões que Deodoro dava ao primeiro instante uma era absolutamente
verdadeira - a da varonilidade. As outras eram falsas. Quem visse aquele velho, alto,
sempre ereto, cabeça em atitude constantemente altiva, imaginava estar ali criatura
arrogante, orgulhosa, intolerável. Era no entanto de uma doçura de criança e de uma
simplicidade de desarmar inimigos. (...) O seu olhar, ao primeiro golpe, parecia ter a
cintilação de uma lâmina de espada. Mas em pouco tempo se sentia que o que ali
cintilava eram fogos de vivos de mocidade, de alegria, de franqueza, de bravura e de
bondade57.
A figura de herói ereto, altivo no Deodoro de Viriato convive com a imagem de uma
pessoa simples e bem-humorada. “Estava sempre disposto a ouvir pilhérias e a fazê-las”. Pois
outro atributo dos heróis, presente no apontado por Renato Bessa Ribeiro, é a de serem
56 GOMES, Ângela de Castro e CAVALCANTE, Vanessa Matheus. “História da Liberdade no Brasil, ou quando
uma história acaba em samba” IN: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos, RESNIK, Luís e MAGALHÃES,
Marcelo de Souza (orgs). A História na Escola. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. 57 CORRÊA, Viriato. “As virtudes de Deodoro”. Jornal do Brasil,Rio de Janeiro, 23/6/1933. Arquivo da
Academia Brasileira de Letras.
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capazes de produzir identificação. Eles são formas de popularizar os discursos da identidade
nacional. Assim, o Deodoro que protagoniza anedotas é um herói que se aproxima do público
de Viriato, tornando-o mais acessível e atraente.
Mas como ler o caráter monarquista de Deodoro? Segundo Renato Bessa Ribeiro, os
autores não são totalmente autônomos na construção de seus personagens como heróis, eles
precisam escorar-se na ação histórica em que eles estão inseridos. Ou seja, os autores estão
presos a determinados “constrangimentos” da História. Um desses, para os republicanos,
segundo José Murilo de Carvalho, é a inegável ação militar. A escolha de Deodoro como
herói, de acordo com o autor, é atraente justamente por seu caráter corporativo. Assim, já que
a figura de Deodoro não tem o peso de possuir um projeto para a República, o autor que faz
essa opção possui mais liberdade para definir aquilo que concebe como o caráter do novo
regime.
E qual seria esse para Viriato? A República de Viriato está associada com as idéias de
progresso, ciência, mérito, talento, igualdade, com a instituição do ensino primário e com a
obtenção de liberdade. Republicano, mesmo não sendo contemporâneo à proclamação, foi
defensor da República e estudou o tema profundamente. Além da leitura dos historiadores de
seu tempo, procurava obter os testemunhos dos personagens ligados ao acontecimento que,
para ele, eram uma das fontes mais “prestigiosas” da História. No entanto, ao identificar a
confusão, o desencontro, a incoerência entre os depoimentos, Viriato aborrece-se e fica
estarrecido com o tema por não conseguir chegar a uma “verdade” dos fatos. A narrativa de
Viriato da República não é taxativa, pressentindo que ainda havia algo em jogo ao identificar
a presença de “paixões” nos envolvidos, ele deixa ao futuro o encargo de esclarecer com mais
distanciamento o episódio. Mas, abraçando-o como um dos seus assuntos diletos, ao estudá-lo
e divulgá-lo repetidamente, Viriato torna-se parte da construção de um imaginário
republicano durante a Primeira República. Seu herói, Deodoro, entra na matriz de história
ensinável constituída naquele momento como um “exemplo” de grande homem.
BIBLIOGRAFIA
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