UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM – PPGEL
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
DÁCIO TAVARES DE FREITAS GALVÃO
O poeta Câmara Cascudo: um livro no inferno da biblioteca
Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo.
NATAL 2012
DÁCIO TAVARES DE FREITAS GALVÃO
O poeta Câmara Cascudo: um livro no inferno da biblioteca
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem-PPgEL/UFRN, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Estudos da Linguagem, com área de concentração em Literatura Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo.
NATAL-RN, 2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM – PPGEL ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
DÁCIO TAVARES DE FREITAS GALVÃO
O poeta Câmara Cascudo: um livro no inferno da biblioteca
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________ Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo – Orientador
_______________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Silva – USP
_______________________________________________________ Prof. Dr. José Luiz Ferreira – UERN
_______________________________________________________ Profa. Dra. Edna Maria Rangel de Sá - UFRN
_______________________________________________________ Prof. Dr. Tânia Maria de Araújo Lima - UFRN
________________________________________________________ Profa. Dra. Cássia de Fátima Matos dos Santos – (suplente – UERN)
________________________________________________________ Prof. Dr. Wellington Medeiros de Araújo – (suplente – UERN)
RESUMO: Estudo sobre a produção poética de Luís da Câmara Cascudo, constituindo
um corpus de nove poemas e outros textos sobre poesia, além de traduções de poemas
realizadas por ele. Para se pensar as especificidades dessa produção poética, no contexto
da moderna literatura brasileira, consideram-se os denominadores do sistema literário
apontados por Candido (1975): um conjunto de produtores mais ou menos conscientes
de seu papel, os diversos públicos, obras interligadas por linguagem ou estilo – na
situação inicial de produção da obra em questão. Considerando esses denominadores,
foi possível investigar as especificidades dos textos analisados, antes que as tendências
centralizadoras da época viessem impor as formas decisivas do cânone, uma vez que o
poeta em questão enveredou por outros gêneros da criação literária e cultural. O ponto
de partida da pesquisa foram os estudos já realizados acerca do modernismo na
literatura brasileira, com repercussão local. A leitura dos poemas estabeleceu pontos de
interesse comuns entre o poeta e outros que estavam situados historicamente em
realidades consideradas periféricas do complexo cultural ocidental, cujos sistemas
literários também podem ser estudados do ponto de vista adotado. Tais considerações
têm como princípio a leitura do texto literário como fonte primordial de
questionamentos. Neste sentido, todos os capítulos têm como eixo central a análise, dos
poemas selecionados para o corpus. O primeiro capítulo analisa poemas em que se
percebe como recorrente a tematização do espaço sertanejo e que formam um conjunto
de textos plenos de “brasilidade”, produzidos na perspectiva estética de modernidade
desencadeada àquela época, no seu aspecto de experimentação formal. O segundo
capítulo realiza uma leitura de poemas cuja temática gira em torno de aspectos da
colonização do Brasil, estabelecendo um diálogo com as vozes que construíram essa
história. No terceiro capítulo, a pesquisa analisa a perspectiva do poeta em relação à sua
contemporaneidade, quando se depara com uma modernidade em que a cultura norte-
americana exerce forte influência. No último capítulo, são analisados os exercícios
poéticos de Câmara Cascudo, seja na produção mesma de poemas, seja em torno da
questão da poesia como tema filosófico ou como atividade de tradução. Verificou-se a
contribuição do poeta ao movimento modernista brasileiro e foi demonstrada a força da
poesia como polo atrativo da percepção de mundo do intelectual que produziu uma das
mais importantes obras da cultura brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Câmara Cascudo, Poesia, Modernidade, Brasilidade, Moderno.
RÉSUMÉ: Une étude sur la production poétique de Luís da Câmara Cascudo,
constituant un corpus de neuf poèmes et d’autres textes sur la poésie, bien comme des
traductions de poèmes qu1’il a réalizé. Pour tenir comptesur des spécificités de cette
production poétique dans le contexte de la moderne littérature brésilienne, on considére
comme les dénominateurs du système littéraire mentionné par Candido (1975): un
ensemble de producteurs plus ou moins conscients de leur rôle, lesdivers publics, les
oeuvresliées par la language ou de style - dans la situation initiale de production de
l'œuvre en question. Compte tenu de ces dénominateurs, il a été possible d'étudier les
spécificités des des textes analysés avant que les tendances centralisatrices de l’époque
viennent imposer des formes décisives au canon, puisque le poète en question s’est
engagé dans d’autres genres de création littéraire et culturelle. Le point de départ de la
recherche sont des études antérieures réalisées sur la modernté dans la littérature
brésilienne, ayant une répercussion locale. La lecture de poèmes a établi des points
d'intérêt communs entre le poète et des tierces personnes qui étaient historiquement
situées dans des réalités considérées périphérique du complexe culturel occidental et
dont les systèmes littéraires porraient aussi être étudiés du point de vue adopté. Telles
considérations ont, comme principe, la lecture du texte littéraire comme source
primordiale de questionnement. En ce sens, tous les chapitres ont, comme axe central
d'analyse, les poèmes sélectionnés pour le corpus. Le premier chapitre analyse les
poèmes où est perçu, de forme récurrente, la thématisation de l'arrière-pays (sertão) et
qui forment un ensemble de textes replets de l’esprit brésilien (brasilidade), produits
dans la perspective esthétique de la modernité reinante à cette époque, dans son aspect
d'expérimentation formelle. Le deuxième chapitre procède à une lecture de poèmes dont
le thème tourne autour des aspects de la colonisation du Brésil, établissant un dialogue
avec les voix qui ont construit cette histoire. Dans le troisième chapitre, l’étude analyse
du point de vue du poète par rapport à sa contemporanéité, face à une modernité où la
culture américaine exerce une forte influence. Dans le dernier chapitre, sont analysés les
exercices poétiques de Câmara Cascudo, tant soit dans la production de poèmes, soit
autour de la question de la poésie comme thème philosophique ou d’activité de
traduction. On vérifie la contribution du poète au mouvement moderniste brésilien, et
on a demontré la puissance de la poésie comme pôle d’attraction de la perception du
monde de l’intellectuel qui a produit l'une des œuvres les plus importantes de la culture
brésilienne.
MOTS-CLEF: Câmara Cascudo, Poésie, Modernité, Esprit Brésilien, Moderne.
ABSTRACT: Study on the poetic production of Luís da Câmara Cascudo, forming a
corpus of nine poems about poetry and other texts, and translations of poems performed
by him. To have into consideration the details of this poetic production in the context of
modern Brazilian literature, we consider the denominators of the literary system
mentioned by Candido (1975): a set of producers more or less aware of their role, the
many different kinds of works linked by language or style - in the initial production of
the work in question. Considering these denominators, it was possible to investigate the
specifics of the analyzed texts, before the main time tendencies come to impose decisive
forms of the canon, since the poet in question has embarked on other genres of literary
and cultural creation. The starting point of this research were previous studies about the
Brazilian modernism in literature, with local repercussions. Reading the poems
established points of common interest between the poet and others who were
historically located in the complex realities considered peripheral western culture,
whose literary systems can also be studied from the point of view adopted. Such
considerations have as a principle the reading of literary texts as a primary source of
questions. In this sense, all chapters have, as their main concern, the analysis of the
poems selected for the corpus. The first chapter analyzes poems in what is noticed the
thematization of space and form a set of full texts of "Brasilidade", produced in the
aesthetic perspective of modernity triggered at that time, in the aspect of formal
experimentation. The second chapter conducts a reading of poems whose theme
revolves around aspects of the colonization of Brazil, establishing a dialogue with the
voices that built this story. In the third chapter, the research analyzes the perspective of
the poet in relation to his contemporary, when faced with a modernity in which
American culture has a strong influence. The last chapter analyzes Câmara Cascudo’s
poetic exercices, be it in the production of poems, also as translation activity. It is the
poet’s contribution to the Brazilian modernist movement, that we show the power of
poetry as a pole of attraction of the intellectual perception of the world that produced
one of the most important works of Brazilian culture.
KEYWORDS: Câmara Cascudo, Poetry, Modernity, Brasilidade, Modern.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 08
2. CAPÍTULO 1 – Câmara Cascudo e a poesia: imagens do sertão 14
2.1. Mais três poemas sertanejos 28
3. CAPÍTULO 2 – Imagens da colonização: leitura de “Brasil de madrugada” e “Banzo” 43
3.1. Na madrugada da colonização 46
3.2. Toada de saudade: as vozes afro-brasileiras de “Banzo” 58
3.3. Um cais para a brasilidade 69
4. CAPÍTULO 3 – Imagens da americanização: o novo na visão periférica 70
4.1. Lundu para Collen Moore 70
4.2.Shimmy digerida no sertão 82
4.2.1. A serpente e a tradição 92
5. CAPÍTULO 4 – Incursões poéticas: a poesia casual 99
5.1. “Kakemono”: exercício oriental-parnasiano 99
5.2. A voz traduzida de Whitman 113
5.3. A fortuita quinta dimensão 119 6. CONCLUSÃO 126 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 130
8
1. INTRODUÇÃO
O movimento modernista brasileiro teve articulações intensas no sudeste do país
onde residiam seus principais protagonistas destacados nas várias modalidades artísticas
e intelectuais. No campo das artes visuais, na música e na sua literatura nomes de proa
como Tarsila do Amaral, Heitor Villa-Lobos, Mário de Andrade e Oswald de Andrade
tinham uma inserção a tal ponto que elevaram suas obras a extratos imprescindíveis no
campo da teorização e estudos prospectivos do período. Passados mais de oitenta anos
de suas ativas intervenções, suas obras continuam vivas em referenciais e aportes
estéticos. A grande sede de se gerar uma identidade brasileira capaz de dialogar com a
própria cultura nacional e com o legado das conquistas no espaço da multiculturalidade
internacional sem a síndrome do colonialismo era, de fato, o ponto de partida para os
movimentos Pau-Brasil e de Antropofagia.
A abertura para a as correntes identitárias resultante do caldo grosso que se
ajuntara no decorrer de três séculos formados e forjados na mistura brasílica, a nova
absorção que o movimento modernista se propunha de abraçar a inclusão de forças
vivas da cultura contemporânea ocidental na filosofia, na literatura e nas vanguardas
artísticas europeias era o sinal da maturidade a ser deslanchada num estrepitoso
universo de articulações e comportamentos marcantes na história de conquistas.
Evidentemente, as contradições e direções várias tiradas desse período continuam em
processo de estudo e compreensão que, dentre outros aspectos, ajudam a fixar a
positividade teórica e ao mesmo tempo entender no vasto campo do contraditório a
dialética da “contribuição milionária” de erros e erros estratégicos depurados na linha
do tempo.
Em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro os grupos de artistas e intelectuais
se articulavam e irradiavam suas ideias para outros estados em outras regiões. Suas
presenças se davam desde os translados por navegação marítima ou viagens rodo-ferro-
viárias até as fundamentais remessas postais em cartas, bilhetes e telegramas que viriam,
muito dessas peças, a se constituírem em documentos históricos essenciais para a
memória e estudos elucidativos das imagens históricas construídas do movimento
modernista, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX.
O modernismo repercutiu profundamente no Nordeste, região que se inseriu no
movimento por meio da recepção e da produção de obras, ressaltando-se um saber
produtivo representado por figuras já históricas como Gilberto Freyre, Ascenso Ferreira
9
e Jorge de Lima. Em um recorte pontual, Luís da Câmara Cascudo pode ser
categorizado como um dos principais aglutinadores de interesses de produções literárias
modernas no Rio Grande do Norte. A sua atividade como intelectual atuante nos anos
1920 resultou em edição de textos, divulgação de periódicos, além da escrita de livros e
de uma vasta produção epistolográfica.
A presença de Câmara Cascudo nesse cenário local é importante para aquilo que
podemos entender como modernismo. Contatos com Mário de Andrade e tantos mais o
colocaram na trajetória poética, sendo ele, no ano de 1927, o editor de Jorge Fernandes,
poeta de um único livro de poemas determinante para a linguagem moderna em terras
potiguares. Câmara Cascudo escreveu alguns poucos poemas e examinou a
possibilidade de publicá-los em um livro autoral, Brouhaha ou Caveira em campo de
trigo. Desses resultados poéticos, ganharia elogios e observações de Mário de Andrade
e espaços jornalísticos generosos concedidos por Joaquim Inojosa em Pernambuco.
Em sua dissertação de mestrado, sobre a correspondência entre Câmara Cascudo
e Mário de Andrade, Edna Maria Rangel de Sá chama atenção para este interessante
aspecto da produção literária cascudiana, o qual foi valorizado pelo amigo paulista por
meio de incentivo à reescritura. Segundo Edna, Cascudo seria, senão um bom poeta,
como queria Mário de Andrade, ou senão um poeta moderno, mas um poeta:
[...] e de, pelo menos, um livro de poesia escrito por ele, que nunca chegou ao conhecimento público. [...] E aqui fica uma pergunta: onde está este livro? Sobreviveu ao tempo? Seria interessante uma pesquisa no sentido de resgatá-lo ou recuperá-lo, pelo menos em parte. Até mesmo para descobrir que ele não foi, também, poeta, se for este o caso. (GOMES, 1999, p. 58).
Na lida e nos mares da modernidade, Câmara Cascudo navegaria e teria sua vida
intelectual marcada por essa experiência. Sua amizade com o poeta paulista co-fundador
da Sociedade Brasileira de Etnologia, Mário de Andrade, seria um estímulo às
pesquisas e caminhos a serem percorridos. É possível enxergar na sua obra desse
período a presença dos elementos básicos como localismo, regionalismo, nacionalismo,
cosmopolitismo. Na sua reflexão concretizada em poemas, percebe-se a permeabilidade
a aspectos aparentemente díspares como o regionalismo de Gilberto Freyre e o
vanguardismo internacional futurista de Marinetti.
O Cascudo poeta e leitor de poesia, pesquisador da oralidade romancística
ibérica, das modinhas, da culinária, dos autos e danças de matizes afro-descendentes é a
10
própria modernidade entranhada para além de periodologia. O seu texto ora transcende,
ora se relaciona e se percebe tributário das ideias que giravam no antes, durante e pós
Semana de Arte Moderna de 1922. Nos últimos anos, assiste-se a uma permanente
atualização das pesquisas em torno da obra cascudiana1, fato que, no âmbito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pode ser compreendido, segundo
ARAÚJO (2007, p. 263-270), nos seguintes termos:
Uma parcela dessa atualização é decorrente do esforço interpretativo desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cuja área de concentração em Literatura Comparada apresenta resultados significativos. Do esforço interpretativo gerado no PPgEL, aliado a ações desenvolvidas em outros programas de pós-graduação da UFRN, surgiu o Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses (NCCEN).
Os resultados da pesquisa referida acima são quantificados na coletânea Câmara
Cascudo: 20 anos de encantamento (2007) como uma produção científica que reunia,
até aquele momento, vinte e três títulos, entre projetos, dissertações, artigos, livros,
comunicações em congressos científicos, etc, conjunto no qual este projeto tem a
inserção com o objetivo de colaborar já a partir do ano de 2005: no dia 30 de dezembro
daquele ano, data em que se comemorou em Natal o aniversário de nascimento de
Câmara Cascudo, lançamos o CD Brouhaha: Câmara Cascudo poeta e leitor de poesia,
fato gerador deste projeto de pesquisa junto ao NCCEN/UFRN.
A partir do CD referido, no qual exercitamos no seu encarte a referência aos
créditos dos textos vocalizados, das músicas, assim como das fontes onde foi coletado o
material apresentado, avaliamos que se gerou ali uma pesquisa – além de uma
possibilidade de fruição do material já antigo – cuja reflexão que se impõe é sobre o
significado da poesia na obra cascudiana. Questionamento a ser respondido por uma
pesquisa que leve em consideração variantes (históricas, literárias, culturais, sociais)
capazes de tornar cada vez mais complexo o modo de apreensão de obra tão vasta.
Além da possibilidade de apreensão da obra em questão, esta pesquisa se
apresenta como uma forma de colaborar com o processo de conhecimento crítico da,
cada vez mais, complexa experiência intelectual brasileira, de que faz parte a obra
cascudiana.
1 Um dos marcos nessa atualização foi a publicação do livro Dicionário crítico Câmara Cascudo (2003), organizado por Marcos Silva, como uma referência para leituras sobre o conjunto de tão vasta obra, ou mesmo para leituras pontuais.
11
Para se pensar a especificidade da produção poética de Câmara Cascudo, no
contexto da moderna literatura brasileira, consideramos os denominadores do sistema
literário apontados por Antonio Candido no livro Formação da Literatura Brasileira
(1975): um conjunto de produtores mais ou menos conscientes de seu papel, os
diversos públicos, obras interligadas por linguagem ou estilo – na situação inicial de
produção da obra em questão, ou seja, nas primeiras décadas do século XX.
Considerando esses denominadores, com especificação histórica e social, pode-se
investigar as especificidades das dinâmicas entre os modelos (estrangeiros ou nacionais)
e a matéria brasileira nos textos a serem analisados, antes que as tendências
centralizadoras da época viessem impor as formas decisivas do cânone, uma vez que o
poeta em questão enveredou por outros gêneros da criação literária e cultural.
Com tal questão, procuraremos uma resposta para o fato de querer estudar um
“poeta” que não chegou a ser reconhecido como tal, uma vez que intencionou mas não
publicou livro de poesia. Por outro lado, instiga-nos a imagem do então jovem poeta do
início do século XX que se defrontava com uma situação provinciana em nada propícia
aos seus anseios de vanguarda, conforme se verifica no seguinte trecho de crônica, cuja
perspectiva é irônica:
Dispensa comentário. Basta anunciar. Natal à noite. Estamos vendo uma cidade quieta, como se aprendesse o movimento com as múmias faraônicas. Sob a luz (quando há) das lâmpadas amarelas arrastam meia dúzia de criaturas magras, uma “pose” melancólica de Byrons papa-gerimuns. (A noite em Natal – A Imprensa, Natal, 11 maio 1924 – publicado como anexo em ARAÚJO, 2011, p. 96).
No desenvolvimento da pesquisa, tomamos como ponto de partida os estudos já
realizados acerca do modernismo na literatura brasileira, com repercussão no Nordeste,
a exemplo dos estudos de Neroaldo Pontes de Azevedo (1996) e de Humberto
Hermenegildo de Araújo (1995; 1997). Para analisar as projeções atuais do registro
literário estudado, o projeto fez conexões entre o conjunto de textos selecionados para
análise e outros que tiveram uma considerável visibilidade pela crítica no contexto da
época, tais como os textos poéticos de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e
Ascenso Ferreira, dentre outros.
Ao mesmo tempo, considera-se o acervo de estudos críticos que vêm se
realizando no âmbito dos programas de pós-graduação da área, acerca da permanência
12
dos temas em foco (por exemplo, o tema regional e o tema da modernização), fato que
impulsiona uma discussão sobre perspectivas teóricas distintas e complementares,
indispensáveis a um passo adiante nos estudos da área de Letras. No âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem e do Grupo de Pesquisa
“Estudos da Modernidade: processos de formação cultural” (CNPq/UFRN), esta
pesquisa compartilha as discussões teóricas de projetos já concluídos, como os
desenvolvidos por José Luís Ferreira (2000; 2008) e Maria Suely da Costa (2000; 2008)
que iniciaram a leitura de poemas cascudianos.
O projeto desenvolveu, assim, de modo amplo, uma leitura da produção literária
da primeira metade do século XX, no Brasil, com ênfase na produção de poesia. Na
análise da produção referida, procurou-se estabelecer uma discussão sobre a crítica da
época e com a crítica contemporânea, além de um diálogo constante com a leitura mais
diretamente relacionada à produção cultural e literária das sociedades que compartilham
problemáticas semelhantes, a saber, as sociedades da América Latina. Para isto, a leitura
dos poemas estabeleceu pontos de interesse comuns entre o poeta Câmara Cascudo e
outros que estavam situados historicamente em realidades consideradas periféricas do
complexo cultural ocidental, como aquelas denominadas por Ángel Rama (1985) como
as elites culturais das “cidades das letras”, cujos sistemas literários também podem ser
estudados do ponto de vista Antonio Candido, referido acima.
Tais considerações têm como princípio a leitura do texto literário como fonte
primordial de questionamentos, numa metodologia que se tece no entrecruzamento de
visões integrativas do fenômeno literário, com aberturas interdisciplinares. Neste
sentido, todos os capítulos desta tese têm como eixo central a análise, pode-se dizer,
exaustiva dos poemas selecionados para o corpus.
O primeiro capítulo analisa os poemas em que se percebe como recorrente a
tematização do espaço sertanejo com suas paisagens, tipologias, aves, vegetação,
ambiente natural, cultura. Esses poemas formam um conjunto de textos plenos de
“brasilidade”, produzidos na perspectiva estética de modernidade desencadeada àquela
época, no seu aspecto de experimentação formal. Destaca-se, no conjunto, o poema
“Não gosto de sertão verde” como expressão da grande fascínio que o autor tinha pela
cultura sertaneja.
O segundo capítulo realiza uma leitura de poemas cuja temática gira em torno de
aspectos da colonização e consequente formação do Brasil, estabelecendo um diálogo
com as vozes que construíram essa história, entre elas, a voz dos representantes oficias
13
(em “Brasil de madrugada”) e a voz dos oprimidos (em “Banzo”).
No terceiro capítulo, a pesquisa analisa a perspectiva do poeta em relação à sua
contemporaneidade, quando se depara com uma modernidade em que a cultura norte-
americana exerce forte influência no Brasil. Entre a sedução, a resistência e a atitude
antropofágica com relação a essa cultura, o poeta elabora “Shimmy” e “Lundu de
Collen Moore”, cujas representações da dança e do mundo do cinema ganham a marca
irônica que reflete, por meio dessas representações, o país que se modernizava.
O último capítulo da tese pode ser caracterizado como uma análise dos
exercícios poéticos de Câmara Cascudo, seja na produção mesma de poemas, seja em
torno da questão da poesia como tema filosófico ou como atividade de tradução. Para
isto, foi analisado o poema “Kakemono” e foram tecidas considerações em torno da
tradução de três poemas de Walt Whitman. Por fim, foi analisado o texto cascudiano “A
poesia é a quinta dimensão do mundo”.
O objetivo da análise é, além de verificar a contribuição do poeta ao movimento
modernista brasileiro na sua fase inicial de abrangência nacional, demonstrar a força da
poesia como polo atrativo da percepção de mundo do intelectual que produziu uma das
mais importantes obras da cultura brasileira, ao longo do século XX e de forma às vezes
assistemática. Essa atração pela poesia poderia significar uma ruptura em relação ao
comportamento científico dominante na modernidade. Ou, com outras palavras, um
modo intuitivo de perceber o mundo que se mostrava já em sua racionalidade plena.
14
2. CAPÍTULO 1 – Câmara Cascudo e a poesia: imagens do sertão
Além de se caracterizar, nos últimos 20 anos, “(...) como o ponto de partida
necessário para a realização de pesquisas em diversas áreas do conhecimento acerca do
Rio Grande do Norte” (ARAÚJO, 2007, p. 263), a obra de Câmara Cascudo tem
recebido cada vez mais leituras sobre a sua participação na vida literária brasileira.
Neste sentido, resume ARAÚJO (2007):
[...] já existe um conhecimento crítico acumulado sobre representações literárias acontecidas no Rio Grande do Norte, no contexto da moderna literatura brasileira do século XX, com participação decisiva do autor de Alma patrícia. Examina-se, através da leitura do texto cascudiano – seus livros e um conjunto de artigos esparsos, publicados na imprensa local, sobre livros, poetas e escritores potiguares –, a tentativa de Câmara Cascudo no sentido de sistematizar a produção literária local durante as primeiras décadas do século XX. O resultado é um contraponto entre a perspectiva cascudiana como leitor de literatura e a perspectiva do conhecido historiador, folclorista e etnógrafo. Busca-se, neste sentido, uma compreensão do processo literário brasileiro nas suas manifestações regionais e nas suas implicações com o processo de modernização da sociedade.
Como exemplos deste “Estado de Arte”, destacam-se os trabalhos de GICO
(1996), ARAÚJO (1998; 2006), FERREIRA (2000), GOMES (1999) e SOUSA (2006).
Dentre esses, dois – ARAÚJO (2006) e SOUSA (2006) – chamam a atenção para a
presença da poesia na produção intelectual de Câmara Cascudo. Segundo o autor do
primeiro estudo, o poeta Câmara Cascudo representou, junto ao poeta Jorge Fernandes,
a vanguarda modernista do Rio Grande do Norte ao longo de 1920. Como poeta de
vanguarda, publicou na revista paulista Terra roxa & outras terras, em 1926 (Ano I, n. 6,
6 jul 1926, p. 4)2, o poema “Não gosto de sertão verde”, o qual seria dedicado a Manuel
Bandeira:
2 Uma terça-feira, 6 de julho de 1926. Terra roxa & outras terras era periódico que se pretendia quinzenário, funcionando a redação e a administração na Av. São João, 96, 4º andar, em São Paulo. Tinha como diretores os ativistas A. C. Couto de Barros e Antônio de Alcântara Machado, cabendo a função de secretário e a de administrador a Sérgio Milliet. O poema de Câmara Cascudo foi impresso na página 4, dividindo linhas com resenhas críticas de Sérgio Buarque de Holanda e Oswald de Andrade em meio a outras matérias.
15
não gosto de sertão v e r d e
A Manuel Bandeira
Não gosto de sertão verde, Sertão de violeiro e de açude cheio, Sertão de rio descendo, l
e n
t o
largo, limpo. Sertão de sambas na latada, harmonio, bailes e algodão, Sertão de cangica e de fogueira - Capelinha de melão é de S. João, Sertão de poço da ingazeira onde a piranha rosna feito cachorro e a tainha sombreia de negro nagua quieta, onde as moças se despem
d e
v a
g a
r. Prefiro o sertão vermelho, bruto, bravo, com o couro da terra furado pelos serrotes hirtos, altos, secos, hispidos e a terra é cinza poalhando um sol de cobre e uma luz oleosa e molle
e s
c o
r r
e como o oleo amarello de lampada de igreja.
Esse poema significou, na época, uma tentativa de motivação da linguagem
poética, a exemplo do poema “Rede...”, de Jorge Fernandes. Inaugurava-se, então, a poesia
visual na então cidade provinciana que, décadas mais tarde, participaria de um dos mais
importantes movimentos de vanguarda do século XX no Brasil3.
Já no estudo Câmara Cascudo: viajante da escrita e do pensamento nômade, Ilza
3 Cf. a respeito o meu estudo sobre o Poema Processo, publicado como resultado de dissertação de mestrado defendida no âmbito do PPgEL: GALVÃO (2004).
16
Matias de Sousa (2006, p. 89) desafia: “Podemos aplicar a Câmara Cascudo o epíteto de
poeta? Por quê? Porque, conforme as sábias e belas palavras de outro poeta, Manuel de
Barros, ‘poeta é um sujeito inviável – aberto aos desentendimentos, como um rosto’”.
De forma também poética, a pesquisadora declara:
Assim, é a força poética que constrói em Câmara Cascudo uma obra singular: imaginações literárias projetadas em cartografias imaginárias. Estas suscitam um novo tratamento das representações espaciais. E um novo tratamento para a tradição do gênero cartográfico, nascido das viagens da colonização, das tecnologias de navegação, em busca do controle do espaço marítimo. Anotações, diários de bordo, rotas, cartas marítimas vão relatar o espaço conquistador e também aqueles insubmissos às bússolas e às medidas – o incomensurável mar e o infinito céu. (SOUSA, 2006, p. 89-90).
Ainda que não esteja se referindo especificamente à poesia sob a forma do poema, as
observações da estudiosa são reveladoras de um aspecto que pode ser mais aprofundado quando
se analisar a presença direta da poesia na obra cascudiana, sobretudo na sua fase inicial, ou seja,
nos primeiros anos do século XX. Vale a pena, neste sentido, citar mais uma vez o segundo
texto que nos chamou a atenção:
[...] o autor, conhecido como renomado folclorista, avizinha-se também do poeta. Um dos momentos eclatants de sua cosmovisão desloca a semântica do ensaio na direção do conceito estético, na medida em que a significação, para ele, Cascudo, urde-se numa história radicular de fontes misteriosas (p. 63), o que se pode julgar que à linguagem dos gestos pertence também o campo das metáforas, de sublimações inconscientes, de recalques obscuros e imemoriais (p. 237). A comunicação não-verbal torna-se lugar de dispersão de fantasmas. Enigma provocador da curiosidade do autor, na dimensão imaginária e na simbólica. (SOUSA, 2006, p. 102-103).
Como se percebe, no estado em que se encontram, as pesquisas apontam na
direção de uma investigação sobre o significado da poesia em tão vasta obra, razão pela
qual nos aventuramos a pensar que é necessário investir no aspecto considerado, haja
vista a nossa experiência na concepção, direção artística e de produção do CD já
referido na Introdução desta pesquisa.
No que se refere a uma poética do futurismo, especialmente no que ela tem de
indicativos sobre a representação da visualidade, do dinamismo e da simultaneidade,
aspecto determinante para muitos registros poéticos do Modernismo, Araújo (2006)
verifica que o poeta Câmara Cascudo inaugurou, com o poema “Não gosto de sertão
verde”, essa tendência no Rio Grande do Norte.
17
Como expressão da realidade de um momento fundamental da modernidade, o
futurismo participou de um movimento mais amplo de experimentalismo formal que
possibilitou ao leitor de poesia a percepção de uma nova tipografia que formava
desenhos gráficos por meio da disposição de certas palavras no branco da página. Nessa
direção, explicitavam-se tendências diversas representadas por poetas como
Appollinaire, Whitman, Gustave Kahn e Ezra Pound. Essa tendência era, nos primeiros
anos do modernismo brasileiro, uma das dominantes estilísticas presentes em Klaxon, a
mais internacional das revistas brasileiras dos anos 1920.
O mundo moderno assistia ao anúncio poético da máquina, da velocidade, da
tecnologia. Era a tentativa vanguardística de contrariar a linguagem predominante do
cânone influenciando diferentes sistemas literários, incluindo o periférico brasileiro, por
meio de publicações que se vinculavam à nascente constituição de uma tradição formal
moderna. Assim, o Futurismo português dava mostra de contaminação heterogênea
estampada em revistas, incluindo Orpheu, de 1915, onde atuavam Fernando Pessoa e
Mário Sá-Carneiro. Da mesma forma, surgiram as publicações do Dadaismo germinado
em 1917, que teve como expoente o romeno Tristan Tzara, a quem Câmara Cascudo
citaria em junho de 1934, fechando artigo sobre Mário de Andrade justificando o apelo
conceitual do método de abordagem: “Tzara diz que a ausência do método é um método
e muito mais simpático” (Bulletin de Ariel, Ano III, n. 9, p. 233-235). Reiterava-se o
discurso comportamental anarco-niilista da anti-arte.
Nessa direção, o permeável modernismo brasileiro da revista Klaxon (1922)
inaugura programação e design gráfico em sintonia com as revistas e manifestos
europeus ressalvando-se a assertiva em tom de autoproclamação “Klaxon não é
futurista”, “Klaxon é klaxista”, em clara alusão ao Futurismo ideológico de Marinetti
que, em 1919, passa a ser aliado do fascismo do ditador Benitto Mussoline.
O futurismo de Klaxon procurava uma linguagem que não fosse totalitária no
plano político e nem de coloração parnasiana no nível literário. Buscava-se a
modernidade estruturada metalinguisticamente no diálogo crítico com a tradição. A
batalha por uma literatura nacional de brasileirismos, “regional sem ser regionalista”
defendia Mário de Andrade. No Prefácio Interesantíssimo, o poeta de Paulicéia
desvairada categorizava: “não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho
pontos de contato com o futurismo”. Quando da conferência de Marinetti em São Paulo,
Mário de Andrade informava a Câmara Cascudo em carta datada em 4 de junho de
1926: “(...) espero que tenha se despedido do Mário que ele imaginava futurista e espero
18
também que nossas relações terminem para sempre”. A visita de Marinetti ao Brasil foi
polêmica e provocou a seguinte fala restritiva de Mário de Andrade: “[...] a primeira
coisa que falei pra ele é que tinha deixado de ir à conferência porque discordava dos
meios de propaganda que estava usando” (CASCUDO, 2010, p. 109).
Apesar de ser presente e ter correlações criativas dentro de uma tradição das
vanguardas históricas, o futurismo de Marinetti é ao mesmo tempo rejeitado em face das
ideias fascistas. Esses pontos e contrapontos de contatos geraram aproximação e
afastamentos de escritores que não se sentiam alinhados aos pensamentos políticos à
direita de Marinetti. Contudo, a velocidade técnica, a implosão sintática, o bombardeio
tipográfico e de inclusão de ícones musicais e matemáticos na assimilação do conceito
temático da revolução tecnológica em curso encontrava ressonância na produção de
escritores que viriam a compor quadros nos movimentos literários acontecidos
posteriormente ao Futurismo italiano. A opção a essa independência suscitou de
modernistas brasileiros a negação do rótulo “futurista”. O termo poderia ser aplicado
equivocadamente à associação ao reacionarismo, conservadorismo a adesão ao ideal
fascista.
Câmara Cascudo enviou o poema “Não gosto de sertão verde” para Mário de
Andrade, que o considerava então um dos mais representativos poetas modernistas do
Nordeste. O autor de Paulicéia desvairada reagiu negativamente ao experimentalismo
formal do amigo, conforme se pode verificar no seguinte trecho da carta escrita em 22
de julho de 1926:
[...] sim: recebi cartas versos revistas, recebi e li tudo, adorei tanto o “Não Gosto de Sertão Verde” que roubei ele por minha conta e já que você não quis mandar nada pra Terra Roxa dei o poema pros redatores que por sinal se entusiasmaram também. Aconselho apenas o escrever aquelas palavras “escorre lento” e a outra que não me lembro agora, naturalmente em horizontal. Essas ideografias em verdade são falsas e também caí nelas e errei. Na verdade não dizem nada mais que o que a imaginação do leitor inteligente bota de si no poema. (CASCUDO, 2010, p. 113. Grifos meus).
No contexto da rejeição ao experimentalismo de “Não gosto de sertão verde” e
como autor dos poemas ideográficos “São Pedro” (Klaxon, n. 4, 15 ago. 1922) e
“Momento” (A Idea Illustrada, abr. 1925), Mário de Andrade perguntava e se
expressava no deleite pela leitura do poema “Não Gosto de Sertão verde”, em carta
remetida em 22 de julho de 1926 a outro poeta não menos fora de instigações
experimentais vanguardistas na juventude e na maturidade, seu grande amigo Manuel
19
Bandeira:
Quando vai pro Norte? Mande contar e mande dizer o que achou do poema do Luís da Câmara Cascudo dedicado a você. Acho aquilo uma maravilha. Se você for pro Norte e passar por Natal quero que fique amigo dele. É batuta e meu amigo mesmo de verdade. (CORRESPONDÊNCIA, 2000, p. 300)
Provavelmente, o poeta do Prefácio Interesantíssimo referenciava seus poemas
e, certamente, em especial “Momento” publicado um ano e cinco meses antes em A
Idea Illustrada. Ali, a obliquidade do verso é a mesma num gráfico à direita, assim
como Câmara Cascudo fizera nos três versos do “Não gosto de sertão verde”. Já no
poema “São Pedro”, há ideografias verticais e somente uma com linha oblíqua4:
Sertão de rio descendo, Terra sem perspectiva. A vista é de vidro. l Silêncio. e Trilo. n t Calmaria. o largo, limpo. Mário de Andrade
Mais tarde, Manuel Bandeira indagaria: “[...] qual é o endereço do Luís da C.
Cascudo? Quero oferecer meu livro a ele. Li o poema de Terra Roxa e gostei muito”
(Rio de janeiro, 25 ago. 1926 – CORRESPONDÊNCIA, 2000, p. 304). Quando da
visita que fez a Câmara Cascudo em Natal, em 1927, Manuel Bandeira se posicionou
frente aos poemas cascudianos que lhe foram apresentados, mais uma vez em carta ao
amigo Mário de Andrade: “Cascudo [...] Está bancando o historiador, que poeta nada!
Não insulte! Vi uns poemas dele. Tenho visto que está muito generalizado por demais
os jogos de Guilherme sobre gostosas vozes negras e índias. Fica bonito mas está tudo
muito parecido” (Recife, 5 de março de 1927. – CORRESPONDÊNCIA, 2000, p. 338)5.
4 É curioso notar que anteriormente Marinetti, no poema a “Marcha futurista”, utilizava recurso visual similar. A revista Klaxon o aplicou bem ao sabor da apropriação utilizada na técnica do ready made linguístico dadaísta no anúncio-poema “Coma Lacta” e o modernista Manuel Bandeira, depois de testemunhar a produção da poesia concreta, fez recurso da obliquidade radicalizando para a margem esquerda da página todo o poema “Rosa tumultuada”. Vale lembrar que em 1927 foi publicado, com posfácio de Câmara Cascudo, e impresso na tipografia de propriedade de seu pai, o Livro de poemas de Jorge Fernandes, onde se verifica a posição de destaque do verso SUSPENSA em forma visual convexa. 5 Essa carta foi escrita em Recife, onde Bandeira dá a sua impressão sobre Natal e sobre Cascudo: “Em Natal também não tive sorte. Na ida passei lá de noite; na volta idem, mas vi a entrada ao crepúsculo, que
20
É possível que os textos mostrados por Câmara Cascudo para leitura do poeta
pernambucano tenham sido aqueles selecionados para a composição de um livro cujo
título revelou quando do envio de carta em 13 de agosto de 1925, a Joaquim Inojosa,
solicitando a publicação dos poemas “Kakemono!” e “Symmy”. Inojosa anotou em
rodapé: “no final dos versos “Symmy” anunciava o livro Bhouhaha, que na carta passa
a ser o Caveira no campo de trigo”. A carta à qual que se refere Joaquim Inojosa é
datada de 9 de setembro de 1925, onde Câmara Cascudo perguntava “Admirou-se dos
versos? Pois se lesse os outros... Pertecem a um livro que sairá para uso externo dos
amigos. Chamar-se-á Caveira no campo de trigo. Tem coisas estupendas!” (INOJOSA,
1968-1969, p. 387).
Em comentário a “Não gosto de sertão verde”, José Luiz Ferreira (2010)
relaciona-o, contudo, à grande atração que o autor tinha pela cultura sertaneja, fato
comprovado na divisão do sertão desse poema em dois pólos, sendo que aquele que
caracteriza o sertão com toda sua aspereza e adversidade é o que predomina, mesmo ele
atestando a existência de um outro sertão que, de certa forma, ameniza o clima de
adversidade referido. Afirma ainda Ferreira:
É curiosa essa opção do poeta, uma vez que a grande alegria do sertanejo se dá justamente com a chegada do inverno, momento em que tudo se transforma e a vida renasce naquelas terras áridas. Contudo, a opção feita pelo poeta reforça a idéia de que é a cultura sertaneja, constituída e mantida dentro das condições de adversidade, principalmente, do clima, que será o grande objeto de estudo e do desejo dele como “autêntico” sertanejo. Essa perspectiva parece conceber que é diante do clima hostil daquela região que o homem sertanejo se constitui e se mantém nas suas tradições. (FERREIRA, 2010, p. 136).
Já segundo Maria Suely da Costa, “Não gosto de sertão verde”:
[...] revela um jogo de elaboração e sensibilidade poética marcados por uma ruptura de paradigmas de rimas e de métrica e pelos elementos postos em foco sob o tema do sertão. Já no título em forma de oração perfeita – sujeito e predicado –, projetam-se estrategicamente dois aspectos: a opinião negativa/afirmativa (“não gosto”), espelhando a realidade negada (“sertão verde”), e esta por sua vez remetendo a uma outra realidade, a preferida (“sertão
bonito! Há um pedacinho à esquerda – uma igrejinha com um vasto renque de casinhas de operários – que parece um quadrinho de Tarsila. Tive vontade de pintar. Jantei com o Cascudo (Recebeu os seus livros). Cascudo... é engraçado. Falador, reclamista, chamador de atenção: de repente a gente faz uma pilhéria muito besta e ele cai numa gargalhada de menino tão boa, tão ingênua, que reconcilia a gente logo” CORRESPONDÊNCIA, 2000, p. 338).
21
vermelho”). De forma que o poema se divide em dois momentos, simbolicamente identificados nas cores verde e vermelho – elementos com sentidos diferentes que remetem a um mesmo objeto, o sertão, emblemáticos do atributo de ser "úmido" (sertão de inverno) e "seco" (sertão de sol), respectivamente. (COSTA, 2008, p. 90-91).
O que se nota, enfim, no poema de Câmara Cascudo é uma tentativa de romper com uma visão negativa do sertão enquanto ambiente hostil. A tensão situada entre o “não gostar” e o “preferir” acaba por estabelecer um equilíbrio na dupla verde/vermelho, num processo complementar, conforme se situa na mistura das cores, uma vez que estas se anulam e se espelham ao mesmo tempo. Eis, então, o equilíbrio entre o que mais caracteriza o sertão: as situações complementares e antagônicas, tal qual o movimento do sol no jogo cromático de brilhar sob vários tons (no verão) e escurecer (no inverno). Sendo assim, os dois quadros sobre o sertão são emblemáticos de que não há um único, mas diversos sertões, cuja identidade se constrói pela heterogeneidade. (COSTA, 2008, p. 94).
O poema “Não gosto de sertão verde” pertence a um conjunto de textos plenos
de “brasilidade”, produzidos na perspectiva estética de modernidade desencadeada
àquela época. Uma plêiade de escritores mais ligados a Mário de Andrade buscava uma
arte literária de identidade própria que fosse ungida, entre outros aspectos, da
complexidade etno-linguística formadora de uma textualidade identificada com o Brasil,
pairando em inúmeras nuances contributivas advindas de escritas e falas das regiões do
país6.
Afinado com o que se produzia de mais avançado em termos de pensamento e de
matéria prima poética, Câmara Cascudo anexava, não à toa, seus poemas em cartas
endereçadas aos protagonistas ou a uns dos principais formuladores do modernismo de
então, entre os quais estariam os nomes de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Ribeiro Couto e Joaquim Inojosa.
A diagramação de “Não gosto de sertão verde” na revista Terra Roxa e outras
terras é diferenciada, atendendo em destacado espaço da página aos apelos formais
propostos pelo autor. Entretanto, o formato do poema na revista não corresponde
6 A pesquisadora Cecília de Lara identifica na revista Terra Roxa e Outras terras a questão do brasileirismo na avaliação das obras literárias, verificando que o critério que tem primazia, representando a linha do jornal, é o do “brasileirismo”, empregado com significados variados, que assinalam as flutuações de um conceito ainda não definido, em vias de formação, no caso específico de aplicação à arte, pelo menos (LARA, 1972, p. 156). A tônica do momento era “o brasileirismo nos temas e na linguagem” (LARA, 1972, p. 203). Segundo ainda Cecília de Lara (1972, p. 159), o brasileirismo “ajuda, inclusive, a aceitar como modernistas obras que antes ofereciam dificuldades no que diz respeito a sua situação no movimento”.
22
exatamente à composição na versão caligráfica remetida para Mário de Andrade em 25
de maio de 1926. Mário gostou tanto do poema que tomou a liberdade de publicá-lo
sem combinar com o autor, deixando a diagramação final por conta dos editores
responsáveis. Essa versão manuscrita (fonte: acervo do IEB/USP) funcionou para a
edição de Terra Roxa na perspectiva de lay-out:
No trajeto contributivo que deram as discussões e divulgações de teses
modernistas, os periódicos Klaxon (1922-1923, São Paulo); Estética (1924-1925, Rio de
Janeiro); A Revista (1925-1926, Belo Horizonte); Terra Roxa e outras terras (1926, São
Paulo) e a Revista de Antropofagia (1928-1929, São Paulo), exerceram um papel
importantíssimo no embate de idéias postas em debates mediados por manifestos
artístico-literários, publicações de poesias, resenhas críticas, crônicas e artes visuais7.
7 A revista carioca Estética, de 1924, editada por Prudente de Morais, neto e Sérgio Buarque de Holanda repercutiu o Surrealismo de André Breton, Louis Aragon e Paul Eluard sincronizado na escrita automática ou automatismo psíquico, na psicanálise freudiana, no marxismo e trotskysmo, incorporando conquistas anti-literárias de DADA. Em Belo Horizonte, A Revista, de 1925, trabalhada por Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, trazia reverberações da literatura surreal sendo pontos de ligação na discussão da construção da modernidade. A Terra Roxa e outras terras de Sérgio Milliet, Antonio de Alcântara Machado mais Mário de Andrade publicou excerto do romance Serafim Ponte Grande e cartas e bilhetes de Oswald de Andrade em viagem pela Europa. Na emblemática Revista de Antropofagia, 1928-1929,
23
Câmara Cascudo participaria destacadamente na Revista de Antropofagia e
Terra Roxa e outras terras. Referindo-se a esta última, Mário de Andrade, comunica a
Câmara Cascudo na virada de ano de 1926: “Aqui em São Paulo estão cuidando de
fundar um jornalzinho quinzenal moderno. Não serei do corpo de redação embora toda
gente dele seja minha amiga”. E adiantava na mesma missiva: “sei que você vai ser
convidado pra colaborar” (Ano-Bom de 1926 – CASCUDO, 2010, p. 86). Em pelo
menos quatro cartas (3 e 19 de fevereiro; 12 de março e 21 de abril de 1926), Mário de
Andrade solicita, ao amigo, conteúdo em prosa para ser publicado.
Finalmente, passados pouco mais de três meses depois da última solicitação
feita, Câmara Cascudo noticia, em 18 de maio de 1926, a remessa que irá fazer de dois
poemas, contrariando a expectativa de Mário de Andrade, se levarmos em conta que ele
esperava um texto em prosa para a nova revista:
Pra breve mando dois ou três poemas para V. deliberar e rir. Por enquanto mando os nomes; “Feitiço” e “Não gosto de sertão verde”. Este dedicado ao poeta Manuel Bandeira, meu mata-borrão lírico. Mata-borrão no sentido de fixar coisas e ideias indecisas e fluidas. A tinta é o que às vezes escrevo. Fixá-las e torná-las nítidas. Claras. Mais possíveis à expressão. (CASCUDO, 2010, p. 105).
Somente o segundo poema viria a ser publicado ou “deliberado”, sendo
composto como de resto todo o número 6 da revista-jornal, em máquinas Linotipo
Mergenthaler e impresso na Tipografia Paulista8. Quanto ao poema “Feitiço” não se tem
notícia da sua existência, restando apenas a informação sobre o título.
A cidade do Natal, que pelo senso demográfico de 1920 contava com 36.696
habitantes (enquanto nesse mesmo período a cidade de São Paulo contava com
579.033), teve a circulação de um curioso número de jornal cultural dirigido por Renato
Wanderley, trazendo o título Nossa Terra... outras terras, evidentemente tributário do
periódico paulista. Havia nele a alusão a autores de vanguardas poéticas ligados ao
futurismo, ao dadaísmo e ao modernismo brasileiro: Marinetti, Giovanni Papini, Tristan
Tzara, Oswald de Andrade são citados no artigo “O que os deuses sugerem”, assinado
por Nunes Pereira. Contracenando com essa presença cosmopolita, destacam-se poemas
entre tantos participantes estavam Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Blaise Cendrars. Esses dois últimos vivenciaram a efervescência cultural de Paris, centro irradiador de manifestos artísticos-literários para o mundo. Desde 1912, Oswald de Andrade desembarcara no Brasil vindo de Paris trazendo o ecoar do Manifesto Futurista. 8 De JOSÉ NAPOLI & CIA. Rua Assembléia 5658- SÃO Paulo, dispondo de telefone central com o número 2192.
24
de poetas locais a exemplo de Renato Wanderley e Jorge Fernandes.
Em estudo introdutório da edição fac-símile de Terra Roxa e outras terras, a
pesquisadora Cecília de Lara (1977) informa que examinou o único exemplar enviado e
dedicado a Mário de Andrade pelo seu diretor, avaliando que a “publicação potiguar é
conservadora” talvez pela suposta incompatibilidade apontada à linha editorial de Terra
roxa e outras terras. O jornal Nossa Terra... outras terras, segundo Cecília de Lara,
“não revela nada em comum com o periódico de São Paulo”. A premente ligação entre
as duas publicações seria a titulação. O conteúdo da revista potiguar aflorava produção
poética local e de fora, aludia a escritores de vanguarda estrangeiros à exceção de
Oswald de Andrade. O juízo interpretativo que a pesquisadora faz não aprofunda nem
demonstra dados comparativos. Pautar linha editorial onde o “brasileirismo” fosse
marca dominante era o fundamental para os colaboradores de Terra Roxa e outras
terras. Na avaliação da estudiosa, que cita um artigo de Nunes Pereira, excluindo da
análise os textos poéticos em versos livres, o periódico natalense carregava o ranço de
estéticas ultrapassadas.
Como podemos depreender, esses questionamentos suscitam uma pesquisa
mais detalhada e confrontadora de textualidades, o que não é objeto deste trabalho.
Ainda assim, o periódico natalense teve uma recepção bastante positiva, com ressalvas,
do jornal-revista paulistano. Na nota de número 7, na página 2, sob o título nossa
terra... outras terras, espaçado em duas linhas horizontais, ao lado de um artigo de
Mário de Andrade sobre o escritor argentino J. Salas Subirat, que viria a ser o primeiro
tradutor de James Joyce para o castelhano, lê-se:
Já se sabe que Natal é uma cidade de gente viva. Gente viva se acomoda no tempo, é lógico não fica aí parada não fumando caximbo dos fogos fátuos em convívio de amizades com os mestres do passado. Pois agora surgiu lá mais uma revista onde uma revoada, inquieta de prosadores e troveiros busca se adptar ao Sol clarinho do dia. Quem dirige a revista é Renato Wanderley e o nome dela é ‘Nossa Terra... Outras Terras’ e a gente nota logo a prosa de Nunes Pereira os versos livres de Othoniel Meneses, do Jorge Fernandes muito bom, de Damasceno Bezerra e Jaime Wanderley.9
É nesse contexto que Mário de Andrade resolve inserir a poesia cascudiana. Um
poema, uma moeda de duas faces. Ou o sertão e duas alternâncias extremas: quando
chuvoso, verdejante, não gostoso; quando seco, brutalizado em tom avermelhado, o
9 Nesse mesmo número, na página 4, aparece a publicação de “poema” de autoria do poeta Jorge
Fernandes e dedicado a Mário de Andrade.
25
preferido. O corpus do poema sendo o sertão nordestino, um espaço físico multicultural
característico de simbologias próprias e brasileiras. A sentença de negação se coloca a
partir do título e a repetição literal no primeiro verso, até o findar do décimo quarto,
consumindo mais da metade do poema. O mote cascudiano “não gosto de...” dirigido a
vários aspectos do sertão, posto desde o principiar do poema, vai enumerando os
detalhes, “as características do ambiente poderoso e simples, bravio e natural”
descrevendo a paisagem formada pelo inverno sertanejo com sabedoria, apreensão de
quem lá morou, pesquisou e o conheceu bem, tendo sido “menino no Sertão, 1809-
1813” e bebido nas fontes das “permanentes culturas brasileiras, a colaboração sem
preço de uma informação viva, pessoal e humana” 10. O sertão com o qual Luís da
Câmara Cascudo mais se identificava estava bem definido dentro de si mesmo. Ao
escrever para Mário de Andrade tecendo comentários sobre o livro Clã do Jabuti
(1927), assevera poeticamente que é “sertanejo e amigo teimoso das cores primitivas”
(2 de fevereiro de 1928 – CASCUDO, 2010, p. 144) e em outra carta, ao se referir ao
amigo poeta Jorge Fernandes, afirmara: “Jorge é seco. Poeticamente falando. Duro. Daí
parecer-se melhor com o sertão qu’eu gosto” (17 de abril de 1927 – CASCUDO,
2010, p. 128. Grifos meus). O seu sertão, o que mais gostava era o seco, o duro e não o
invernoso.
Os traços da estação chuvosa e da estação seca trazem variadas implicações nas
demandas agrícolas e na flora silvestre quando acontece grande mudança da folhagem
seca para a verde de árvores nascidas por sobre as capoeiras, serras e serrotes. Mas o
poeta afirma o seu mote – “não gosto de sertão verde!” – mesmo diante dessa mudança
de paisagem que implica na hegemonia da verdura, com a circunstância climática
favorecedora da captação de águas das chuvas em açudes, barreiros, poços, cisternas e
potes para a subsistência da população e movimento da cadeia produtiva da agricultura
e da pecuária. O eu-lírico abdica da manutenção desse quesito em que as reservas de
águas em “açude cheio” trazem uma remodelação na cena:
Não gosto de sertão verde, Sertão de violeiro e de açude cheio
10 Esta qualificação do espaço sertanejo como ambiente poderoso e simples, bravio e natural aparece na contracapa do LP Luiz Gonzaga (1973). O texto de Cascudo é reproduzido em O rei e o baião (FONTELES, 2010), reafirmando uma tradição cultural valorizadora da imagem do sertão, o que demonstra a atualidade da perspectiva cascudiana no contexto do século XX. Sobre a construção histórica dessa imagem no referido século, cf. o estudo A invenção do Nordeste e outras artes (ALBUQUERQUE JR., 2006).
26
A representação do período chuvoso, contudo, se impõe no poema com a
manifestação do entretenimento e do lazer: nas tradições culturais populares, nos toques
e repentes de “violeiro”, nos forrós de “harmônio” em “sambas”, “bailes e algodão”. É
assim que o poeta representa a fartura das águas calmas correndo entre veios e leitos do
sertão:
Sertão de rio descendo
l
e
n
t
o
largo, limpo.
Advindo da tradição oral, aparece no poema a receita culinária de milho,
alimento indispensável nos festejos juninos (“sertão de canjica e de fogueira”).
Seguindo na mesma tendência dialética de evocar para ao mesmo tempo reafirmar,
etnologicamente, valores do sertão de que “não gosta”, o poeta invoca o testemunho
tradicionalizado da pueril brincadeira de roda animada por conhecida cantiga do povo
nordestino (“– Capelinha de melão é de S. São João/ é de cravo/ é de rosa / é de
manjericão”)11. Traduz o fenômeno do volume de águas em leito de rio tornando-o
caudaloso, desenhando-lhe o movimento, a velocidade e a limpidez de um “rio
descendo, / lento / largo, limpo” proveniente de elevado índice pluviométrico em suas
cabeceiras e nascentes.
Câmara Cascudo estrutura versos livres desistindo das ofertas de cenários
pujantes que se organizam sob seu olhar, proporcionadas pelos meses chuvosos de um
sertão alegre e fulgurante que ao menos como estratégia de negação (não esqueçamos,
como dizia o poeta português, Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor”) poeticamente
rejeita, mas guarda vivíssimo na memória:
Sertão sem rodovias, luz elétrica, gasolina. Vaqueiros, cantadores, romeiros de São Francisco de Canindé, Juazeiro, Santa Rita dos
11 Versos de canção popular de domínio público. Arranjados e fixados por Heitor Villa Lobos, constando na “Coleção Escolar”. www.museuvillalobos.org.br
27
Impossíveis. Poeira heróica das feiras e das vaquejadas. Viola do rojão de dois-por-quatro, sanfona de oito baixos, pobreza milionária na emoção irradiante. Inexplicável alegria de coisas insuficientes. (FONTELES, 2010).
É assim que – entre o “não gosto” e, mais à frente, o “prefiro” – o universo do
sertão cascudiano se revela e se complementa na dimensão genuína:
Sertão de sambas na latada, harmônio bailes e algodão, Sertão de canjica e de fogueira – Capelinha de melão é de S. João,
A estrutura ideográfica presente em três situações no poema retrata nítida
influência da escrita tipográfica de históricas vanguardas européias aportadas no Brasil,
como a do Futurismo12. Abolir o monopólio de sintaxes convencionais para nova
composição do texto poético e novas disposições gráficas e visuais da poesia no espaço
da página era um dos procedimentos formais indispensáveis para o estatuto do
Futurismo de Marinetti e Giovanni Papini (cf. Capa do Marcia Futurista e Bulletin
DADA). Não faltavam versos e interferências gráficas oblíquas.
12 Liderado pelo egípcio Felippo Tommaso Marinetti, o Manifesto futurista foi lançado no jornal italiano Gazzetta dell’ Emilia em 5 de fevereiro e, em Paris, com maior repercussão, no Le Figaro, no dia 20 de fevereiro, ambos em 1909. Neste mesmo ano foi traduzido no Nordeste do Brasil, antecipando a publicação às outras regiões do país, tendo sido difundido no periódico A República, em Natal, no dia 5 de junho, vindo a lume a tradução apenas parcial provavelmente por iniciativa do seu diretor Manoel Dantas. No Diário de Notícias, de Salvador-Ba, sairia no dia 30 de dezembro através de Almaquio Diniz, polígrafo e escritor baiano. O poeta argentino Rubén Dario, traduziria e publicaria em Buenos Aires no La Nacion em abril de 1909. (cf. TELES, 2009).
28
2.1. Mais três poemas sertanejos
O tema do sertão apresenta-se como recorrente na produção poética de Câmara
Cascudo. Dos sete poemas coletados, esta pesquisa constatou que quatro tematizam o
espaço sertanejo, com assuntos relativos ao sertão nordestino: suas paisagens,
tipologias, aves, vegetação, ambiente natural, cultura. São observações tributárias da sua
vivência e do seu interesse pelas pesquisas folclóricas realizadas em várias frentes, na
tentativa de sistematização dos saberes tradicionais do povo habitante desse espaço
geográfico que se reproduz por vezes com semelhanças, por vezes com diferenças entre
os vários sertões do Brasil.
O sertão de Câmara Cascudo era aquele que guardava as crendices populares, os
romances orais, os cantares de trabalho, as lendas, os batuques, as danças, a
alimentação, tudo decorrente do amálgama da formação étnica cultural nordestina.
Interessava o espaço ambiental, imaginário e simbólico.
O sertão já seduzia Câmara Cascudo de antes: convivendo nas férias escolares
ou em deslocamentos eventuais na sua juventude em terras do sertão, onde seu pai havia
nascido e era comerciante, haveria de demarcar prospecções. Assim, logo na primeira
correspondência enviada por Mário de Andrade à Câmara Cascudo, em 14 de agosto de
1924, o escritor paulista revela que o conhecia: “O seu nome ficou-me dum artigo lido
na Revista do Brasil” (CASCUDO, 2010, p. 33). A dedução é ser artigo relativo ao
sertão pelo fato de que os três textos de Câmara Cascudo publicados no periódico citado
enfocam: o primeiro, “Aboiador”, a figura de Joaquim do Riachão, do município de
Augusto Severo-RN, em 1921; o segundo, “Jesus Cristo no sertão”, calcado na
oralidade sertaneja, em 1922; e o terceiro “Lincantropia sertaneja”, em 1923, sobre o
mito do Lobisomem13.
O sertão do “vaqueiro legítimo”, o sertão que nasce de “um cardeiro autêntico”,
assim dizia Câmara Cascudo, provocando o interesse de Mário de Andrade em
correspondência datada de 21 de maio de 1925 (CASCUDO, 2010, p. 42), eram pistas,
dicas, mostras da reafirmação irrefutável da prioridade de uma das linhas de pesquisas
do escritor natalense e, claro, campo aberto para a poesia. Era também um chamamento
para que o amigo paulista se sentisse mais atraído e consolidasse viajem etnográfica ao
Rio Grande do Norte.
13 Os textos referidos estão disponíveis para leitura no site do Portal da Memória Literária Potiguar, do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses: www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/
29
É fato que desse universo e incitação particular chegaria às mãos de Mário de
Andrade, em 10 de junho de 1925, o poema “Shimmy”, numa perspectiva de lampejos
remetentes ao sertão. Já no início de setembro do mesmo ano, acontece o envio de mais
três poemas ao poeta da Paulicéia Desvairada. Poemas “absolutamente sertanejos” os
quais chamou de “1”, “2”, e “3” (CASCUDO, 2010, p. 60-62). E ainda no mês de julho
(12-07-1925), apareciam os informes de trabalhos relativos a um livro – Crendices e
Tradições – em cujo sumário se leem os títulos “Selenolatria sertaneja”, a “Potamolatria
sertaneja”, “Estórias tradicionais do sertão”, “Moral e técnica das estórias sertanejas”,
“Licantropia sertaneja”, e “Como se vive no sertão” (cf. CASCUDO, 2010, p. 52).
Era previsível, portanto, a inserção de Câmara Cascudo pelos versos sertânicos,
trazendo descrições observadas e compartilhadas entre “criados, vaqueiros, tangedores”
e “curador de rasto!” no meio de umas e outras baforadas de “cigarrões de palha e a
tigela de café com rapadura”. Esse foi o ambiente descrito na mesma carta em que
foram anunciados os três poemas, “absolutamente flagrantes, autênticos e fieis”, ratifica.
Assome-se à observação do autor que eles, os poemas, eram doados ao próprio Mário
de Andrade quando o autor legitimava: “São seus”. E mais, o entusiasmado Câmara
Cascudo se permitiu sugerir ao amigo destinatário, estando redigindo a carta “no meio
de vaqueiros e cantadores” e sem “luz elétrica”, que se sentisse à vontade para dar-lhes
novos “nomes pela impressão que obtiver”, atitude que, posteriormente verificada, não
viria a ocorrer. O poeta potiguar pediu perdão pela precariedade do suporte ao iniciar a
missiva: “Perdoe o papel”, sacramentando a justificativa do pedido: “Não há luz
elétrica!”. Era sua produção poeticamente construída a lamparina movida ao eterno ou à
efemeridade. Podendo ir naquele momento para uma viabilidade extrema de divulgação,
considerando a articulação editorial de Mário de Andrade, ou a outra condição que
pouco importava: a condição da possibilidade do anonimato dos poemas ou a de seus
desfazimentos pela rasgadura proposta. Assim, Câmara Cascudo exclamava: “Mando
três poemas para V. Leia-os, rasgue-os, publique-os”. Estava valendo, para o poeta, o
instantâneo da linguagem e a sua expressão.
O dar publicidade da existência das três poesias interessava, mas era secundário.
O importante era permitir ao interlocutor o acesso ao conteúdo e subjetivamente fazer a
opção por publicá-las, ou simplesmente rasgá-las, destruindo-as. Nenhuma das
alternativas aconteceria, uma vez que os poemas não seriam editados nem destruídos e
ficariam confinados ao arquivo de Mário de Andrade.
30
O poeta Câmara Cascudo estava inspirado na noite, na lua, no charuto,
envolvido pelo deleite da culinária, pelo ritmo da oração popular e pelas boas conversas
com sertanejos amigos, informantes. Em mais um trecho da carta (4/7/1925): “prato de
peixe, d’água do açude, o dono da casa rezou e aqueles homens rezaram também... E
que noitada! E as ‘prosas’”. No quase final da carta, arremata referindo-se à forma
poética obsoleta aos padrões modernistas: “Há luar e eu trouxe charutos. Um luar que o
soneto não maculou”. Eis o primeiro poema referido:
POEMA 1
Tarde morrendo em vermelho e o ouro do Sol se refletindo no espelho do açude. A estrada é branca antes que a noite a mude. Entre nuvens de poeira surge o vaqueiro vestido de couro. E o vento leva longe toda poeira. E o vaqueiro passou correndo, correndo... Há somente a tarde morrendo no vermelho espelho do açude...
Na função poética do poema “1”, o sertão é multicor em nuance sólida de tom
vermelho e amarelo quando o fenômeno é o crepúsculo, o pôr-do-sol e a imagem
reflexa em lâmina d’água da açudagem. Tudo é imagético. O poema começa se
constituindo na incidência da cor vermelha quando da caracterização do horário
vespertino migrando para o noturno (“Tarde morrendo em vermelho”) exaltando o
fenômeno do lusco-fusco. E, na pigmentação amarela, no seu encerramento, ressaltando
a luminosidade solar em transição quando da caracterização de imagens refletivas em
águas praticamente paradas sem correntezas (“e o ouro / do Sol se refletindo no espelho
/ do açude”). Na estrada compactada, o caminho tem areias claras e o solo alvo é
ameaçado pelo tingir escuro da noite parda (“A estrada é branca antes que a noite a
mude”) em período seco de pés de ventos soprando poeiras onde o vaqueiro destemido,
acostumado às agruras e intempéries sertanejas, aparece alegorizado (“Entre nuvens de
poeira / surge o vaqueiro vestido de couro. / E o vento leva longe toda poeira. / E o
vaqueiro passou correndo, correndo...”). Nessa narrativa poética, supõe-se que o
31
vaqueiro está montado em seu cavalo selado, com chapéu de couro, arreado: vestido
com seu gibão, guarda peito, perneiras, botas, esporas e ligeira na mão confeccionados
em couro curtido.
A imagem do vaqueiro que passou correndo seria reiterada em texto da década
seguinte, Vaqueiros e cantadores (1939), como se percebe no seguinte trecho:
Bruscamente, numa capoeira, saiu um boi mascarado. O pequeno tampo de couro não o deixava ver senão para baixo. Vinha tropeçando, num choto curto e áspero. Perto, encourado, orgulhoso, um vaqueiro moço, louro, a pele queimada de sol, seguia, num galope-em-cima-da-mão, aboiando. (CASCUDO, 1984, p. 109)
O trecho citado demonstra, para esta pesquisa, a função elucidadora dos
documentos manuscritos como fontes que instauram o diálogo revelador da
intertextualidade da criação14. Neste caso, o verso do poema constituinte da carta
funciona como matriz da imagem do vaqueiro que se manifesta na obra-prima publicada
sob os auspícios da poesia, não obstante o tom ensaístico do livro e a proximidade com
a prosa científica. O tom saudosista, que predomina no livro, não deixa de ser
prenunciado no poema. No seu último verso, só há a cor vermelha, melancólica. O
açude pode ser visto como um reservatório de água que simboliza boa economia para a
pecuária e sinal de fartura à vista, de produtividade na alimentação de criatórios e
consequentemente na consolidação de uma subsistência familiar abundante. No poema,
contudo, o sequestro dessas condições dá lugar à absorção de um tempo declinando
melancolia no seu espelho d’água, sobrando o acolhimento imagético de uma existência
ou experiência solitária quando o verso livre sugere desolação: “Há somente a tarde
morrendo / no vermelho / espelho / do açude”. A tarde determina a viagem poética do
sujeito lírico. É a “tarde” de transição sob o domínio do lusco-fusco, mais próxima da
noite que seduz e alimenta a descrição de fenômenos naturais, de tipologias humanas e
geografias sertanejas.
Já no texto seguinte, o “Poema 2”, há o sequenciamento do seu campo de visão
14 Segundo Telê Porto Ancona Lopez, “As matrizes são principais quando se ligam ao modo de formar; quando textos ou elementos de um texto – temas, motivos, seqüências, cenas, personagens, estilo, tratamento do tempo e do espaço etc – enraízam a (re)criação que se afirma com originalidade e autonomia ao integrar outro contexto. Desse ponto de vista, as matrizes, consolidadas ou não pela marginália de um escritor, descobertas no circuito de um diálogo intertextual, interessam também à literatura comparada. Matrizes e marginália nos conduzem, por força da intertextualidade e da dimensão documentária, à tentativa de reconstituir, no diálogo, certas instâncias do ato criador enquanto conjunção de leitura e escritura, convergência na esfera intelectual; enquanto sutil passagem da recepção à criação ou alcance maior da recepção que, segundo Daniel Ferrer, se transforma em produção e se extrema na bricolagem” (LOPEZ, 2007).
32
optando por uma dada continuidade. Se no primeiro poema o sol, o açude e o vaqueiro
são elementos centrais, no segundo poema a lagoa, o grito, o canto de trabalho e de
pássaro realçam o filtro de imagens capturadas, estabelecendo-se um pano de fundo
marcado no céu, na água, no som e na árvore, tendo ainda a “tarde” como determinante
da imaginação poética:
POEMA 2
Tardinha, tardinha serenamente cai a sombra do alto céu azul. Água quieta, água quieta, e a longa sombra do arvoredo n’ água da lagoa... E o sossego nos capoeirões. E o aboio no ar... Tardinha, tardinha no silêncio, o grito das seriemas fugindo... E no galho escuro da oiticica sinistra, solitária, branca, A Mãe-da-lua canta...
A permanência da evocação vespertina é atinente na percepção sensível da
leitura do poeta. No vastíssimo mundo de tradições e símbolos do sertão, a sazonalidade
temporal é metáfora de um clima envolto num acolhimento lírico-sentimental. Isto é
proposto de saída na primeira linha do verso livre, num diminutivo duplamente
salientado em “Tardinha, tardinha”. A imagem captada no poema, a “sombra” na
“água”, é congelada e se mobiliza em estado de equilíbrio (“Serenamente”), assimilando
a metamorfose cromática própria de um tempo fixado que se traduz na tarde.
A escritura celebra a imagem em si, e ato contínuo, o movimento que a
antecedeu e a sucedeu. Assim, é que teremos o texto nos dizendo: “Tardinha, tardinha /
serenamente / cai a sombra do alto / céu azul” na “Água quieta, água quieta”. A
insistência no fluxo visual enfeixado no reflexo de sombra de nuvens azuladas,
formando um todo fotográfico (“céu azul”), vai se re-configurar na lâmina d’água
estagnada ou “quieta” de uma “lagoa” a esmo. A quietude reside em mais uma
duplicidade, na redundância da reiteração da calmaria da “água quieta”.
Na composição desse quadro linguístico/visual figurativo sertanejo, o poeta
33
acresce outro sombreamento cênico na superfície da água, desta feita, trazendo a
diversidade inominada da vegetação do bioma caatinga, num aglomerado de árvores
projetadas, mata relativamente compacta (“arvoredo”) ressaltada num detalhe: “e a
longa sombra do arvoredo n’água / da lagoa...” flagrando a calmaria da mata
caatingueira do semi-árido supondo seus troncos verticais, folhas, frutos, espinhos,
contornos próprios, visualizados no plano horizontal da água. O canto de trabalho
monótono de vaqueiros anônimos tangendo e ou arrebanhando a gadaria, a criação,
complementa a cena trazendo a sonoridade orientadora de aboiadores: “E o sossego nos
capoeirões. / E o aboio no ar...”. Se há canto de trabalho “no ar”, “água quieta” e “o
sossego dos capoeirões” o texto manifesta o fim do dia (novamente, “Tardinha,
tardinha”) buscando agora o recolhimento e a suposta contenção noturna e soturna.
E eis que no rumo do “silencio” de matas há um corte por um “grito” a esmo
(“no silêncio, o grito / das seriemas fugindo”), afugentando aves e possibilitando em
uma delas (Nictibius griseus) o canto agourento, funesto. A “Mãe da Lua”, a coruja
branca pousada monocromática no preto da galhada arbórea. Essa árvore típica e
utilitária dessa região, a oiticica (Cariama cristata, do tupi sári ama), é utilizada no
aproveitamento de suas folhagens em coberturas de latadas ou alpendres sertanejos.
Dando sequência ao trajeto, segue o veio sombrio do pássaro: “E no galho escuro da
oiticica / sinistra, solitária, branca, / a Mãe-da-Lua canta...”.
O espaço se delimita em tipologias geográficas, físicas, ambientais relacionando
o “céu azul” (nuvens reflexas), lagoa, arvoredo, capoeirões, oiticica, vaqueiro (“aboio
no ar”, “grito”), as Seriemas e a Mãe da Lua, ave de hábitos noturnos. Vai se instalando
uma espécie de levantamento, de inventário e créditos que dizem respeito à ecologia, à
lexicografia, um vocabulário comprometido invariavelmente no embasamento localista,
uma das premissas possíveis dos modernistas.
Na construção de uma literatura brasileira era preciso ter língua e linguagem
particular, se pensarmos na já clássica dialética do geral e do particular (cf. CANDIDO,
1980). Certamente, o repertório sertânico poderia significar para Luís da Câmara
Cascudo um ganho identitário no debate que se estendia dentro do círculo modernista
abarcando polêmicas em torno do nacionalismo, do brasileirismo e do regionalismo15.
15 Não à toa, ele enviara a Mário de Andrade uma carta (de 22 ago. 1925) anexando o “programa-convite” do Congresso Regionalista do Nordeste, evento que seria organizado em Recife por Odilon Nestor e Gilberto Freyre. Mário de Andrade responde com ressalva: “Acho o programa um pouco acanhado e além de regionalista regionalizante o que é um perigo”. Mais adiante, discorrendo sobre o programa apontava para a necessidade de enxergar uma “intenção nacionalizante em oposição à regionalizante”. E antes
34
A preocupação em compor textos alicerçados no debate consciente estrutura-se
na apropriação da língua e da antiacadêmica linguagem do momento. “A poesia existe
nos fatos”; “A formação étnica rica”; “A língua sem arcaísmos, sem erudição” já
estavam no Manifesto Pau-Brasil, de 1924, timbrado por Oswald de Andrade. Mário de
Andrade, gerando expectativa, prometia em carta de 6 de setembro de 1925, como em
resposta ao programa regionalista enviado por Cascudo na carta anterior: “Vou ver se
arranjo também um exemplar de Pau-Brasil, um delicioso livro de poesia do Osvaldo
que não é meu parente”. Em outro trecho da carta, adiciona impressão sobre Oswald de
Andrade e sobre o livro: “É fantástico. Pau-Brasil que já conhecia e reli hoje de
manhãzinha é para mim o melhor livro dele. Poesia genuína no sentido do lirismo
(CASCUDO, 2010, p. 66-67).
O poema “2” tenta formular na cor local a estrutura de uma versificação fora da
forma parnasiana, adotando versos livres. Nessa estrutura, surgem os ares primitivistas
particulares tal qual a ingenuidade conscientemente descritiva do traço do desenho de
Tarsila do Amaral. Nele, veem-se traços que repertoriam léxicos próprios do
paisagismo, da fauna e da flora re-significando o conteúdo para se expandir na
“intenção nacionalizante” que se alinha à matriz de pensamento preconizada por Mário
de Andrade nas sugestões que fizera ao amigo, relativas ao Congresso Regionalista do
Nordeste.
Na leitura poetizada que executa do sertão, Câmara Cascudo se centra no
“Poema 3” basicamente no elemento terra, de nuances geológicas, cores minerais e
vegetais. O “Sol’ é nominado no “Poema 1” sendo “ouro” e passando no “Poema 3” a
cáustico e “de chapa”. É internalizado no “Poema 2” quando do verso “Cai a sombra do
alto / Céu azul”. A presença do claro solar é determinante para o engendramento e a
tessitura do desenvolvimento dos três poemas.
A visão acurada de Câmara Cascudo sobre as paisagens sertanejas no poema “3”
vai se constituindo em sutis e diretos recortes no olhar arguto, detalhista, alcançando
descrições delicadas de quem tinha uma intensa vivência do lugar. Sem essa
possibilidade, muito provavelmente não se conseguiriam resultados de voltagem poética
perceptiva e reflexiva tão marcante. Eis o poema:
opinava taxativo: “Em tese sou contrário ao regionalismo. Acho desintegrante da idéia de nação e sobre esse ponto muito prejudicial pro Brasil já tão separado” (CASCUDO, 2010, p. 64-66).
35
POEMA 3
O chão é seco e vermelho, é vermelho o caminho entre o amarelo do panasco. As pedras brancas vão surgindo como frades de pedra-branca na vermelha estrada. Sol de chapa! No horizonte azul que doe nos olhos os cardeiros abrem as mãos verdes, verdes, verdes... Há uma transparência pelo ar Que treme, treme e, na poeira fina E cinzenta, voam folhas secas Pelo ar...
Na apreensão da ambiência, Câmara Cascudo observa por um espiar para baixo
(o chão, as pedras, estrada), e um ver para cima (horizonte azul, cardeiros, folhas secas
voando) num movimento angular de quem só enxerga onde pulula o cromo vermelho, o
amarelo, branco, o azul e o cinzento, na claridade solar estampada no dia.
São pigmentos, são tons numa captação sensória de um entrechoque de cores
que invadem as retinas do poeta focadas no solo compactado, íngreme, pedregoso,
seixoso instigado no “chão’ “seco e vermelho”. Quando então, essas retinas minuciosas
se espalham nos numerosos fragmentos geológicos enxergam as “pedras brancas”
surgindo “como frades”, na acepção de obstáculos, dispostos irregularmente “na
vermelha estrada”. O olhar do poeta se lança sobre a vegetação capineira nativa,
normalmente encontrada em campos abertos, em aceiros de acessos, gerando veredas e
“caminhos entre o amarelo do capim panasco”.
Buscando mais um momento, um olhar ereto, para cima, a escritura poética
localiza em uma das espécies pertencentes à família das cactáceas um plano de intensa
gestualidade quando o poeta, apropriando-se da anatomia vegetal, do seu desenho,
proclama a metáfora contida nos versos “os cardeiros abrem as mãos / verdes, verdes,
verdes”. A tensão detalhista é fixada no brilho solar incandescente, exclamado,
capturando o desconforto do mormaço dos raios irradiados pelo astro rei diagnosticando
o “Sol de chapa!”. Ao fundo se projeta a linha circular interminável até onde a visão
humana se limita, alcança, apontando para a união de céu e terra flagrando o sertanejo
“horizonte azul / que dói nos olhos”. E, no torpor, surge a translúcida “transparência
pelo ar / que treme, treme” restando com dose de melancolia no pó do resíduo
geológico, vegetal a “poeira fina / E cinzenta”. Com ela, voando impulsionada por força
36
dos ventos, as “folhas secas / Pelo ar”.
É nessa viagem expressional, nessa sensibilidade que Câmara Cascudo vai
imprimindo sua dicção particular. Dicção sutil, ausente de quem escreve “(...) tão
natural tão verdadeiro nestes poemas que a gente quase não escuta a dicção de você
porque ela desaparece e fica a impressão o quadro que você descreveu vibrando sozinho
desimpedido bonito” (trecho de carta de Mário de Andrade em 4 de outubro de 1925 –
CASCUDO, 2010, p. 68).
O poeta escolhe, de saída, o chão na sua materialidade física, optando por
ressaltar o seu estado de sequidão e da sua coloração entre os espaços aflorados feito
caminho, pelos tufos e touceiras de capim panasco. A visão, estendida aos pedregulhos
brancos apresentam-nos feitos imprecisos obstáculos, no sentido que é atribuído a
“frades”. O contrastante tricolor (estrada vermelha, verde do capim panasco e branco
das pedras-frades) fica por conta do encarnado da superfície estradeira insinuando uma
espacialidade territorial conjugada na feitura de caminho, de vereda para pedestre e ou
de estrada para trânsito de veículos tracionados por animais, como a carroça de bovino,
equino, muar, asinino ou mesmo, estrada para automóvel.
Nesta viagem que Câmara Cascudo fizera ao sertão, onde produzira os poemas
“1”, “2” e “3”, teria viajado em veículo de sua propriedade ferindo a cena ingênua,
primitivista, segundo relata em carta a Mário de Andrade, “Não há luz elétrica. A coisa
que me lembra, e detestavelmente, o progresso, é o meu Ford que está parado debaixo
do telheiro” (4 set. 1925 – CASCUDO, 2010, p. 60).
Nessa estrada barrenta e avermelhada, sobressalta o solarão escaldante em grau
celsius elevado e impiedoso. A vista levantada e erguida se depara com uma fortíssima
paisagem típica sertaneja que é o potencial azul do horizonte, permeado na extensão do
olhar, por cactáceas que se interpõem numa desordem natural, nascidas no solo argiloso,
piçarrento antes do traço infinito. E aí, os cardeiros, planta abundante na região do semi-
árido em sua geometria característica, são postos em nova metáfora (“os cardeiros
abrem as mãos / verdes, verdes, verdes...”), em gesto de reverência, saudação e
acolhimento da paisagem que se coloca para adiante, qual seja, o ilimitado azul semi-
circular e horizontal.
Não é incomum, em temperaturas elevadas no sertão, quando o sol é abrasante, a
visualização a uma dada distância e acima do solo, acontecer a sensação visual de um
tremor no ar incolor aquecido, numa altura aproximadamente de sessenta graus
centígrados vindo da base do chão para cima. Esse fenômeno acontece quando os solos
37
arenosos e suas poeiras, levantadas por assopros de ventos mornos, favorecem o flutuar
de folhas ressequidas soltas da caatinga comum em ciclo de renovação. O poeta não
deixa escapar esse instantâneo flagrante quando sobrecarrega no verso 5, exclamando
“sol de chapa!”
A expressão recorrente para a tradução do inclemente calor já aparecia logo na
abertura de um poema escrito anteriormente (“O sol lhe bate de chapa”, em “Shimmy”,
anexo à carta de 10 de junho de 1925 – CASCUDO, 2010, p. 45-46), marcando o
relevo, o acento que Câmara Cascudo opta por espiralar seu sertão com o astro sol e
fenômenos reativos a ele, envolvendo elementos naturais como a água, terra, fogo
(sendo entendido como sensação térmica, não combustão) e ar. Este astro é um centro
de gravitação onde orbitam vários e vários satélites metafóricos ou seja, remessas a
várias figuras de linguagens implícitas e ou explícitas em todos os poemas de Câmara
Cascudo que dizem respeito ao limite sertão.
O poema “3” foi recebido por Mário de Andrade suscitando uma série de
observações que foram expostas numa missiva para Câmara Cascudo (São Paulo, 4 out.
1925), na qual pairam dúvidas sobre o significado de algumas palavras desconhecidas e
repertoriadas no escopo do poema: “oiticica”, “cardeiro” e “panasco”. Esse
desconhecimento era agravado pela caligrafia de Câmara Cascudo que gerava dúvidas
quanto ao entendimento de algumas letras, dificultando a compreensão da palavra e por
isso Mário de Andrade apelava ao interlocutor: “Primeiro que tudo: pelo amor de Deus
quando me escrever palavras brasileiras escreva com bastante clareza para eu poder ler
certo. Fiquei na dúvida com uma porção das palavras dos poemas de você”. Em uma
das indagações, pergunta “(...) adonde que você ou antes o lirismo de você estava com a
cabeça”, assinalando mais à frente que a “versificação livre saiu bêbada duma vez”
(CASCUDO, 2010, p. 68-69)16.
Entre as anotações críticas que faz e o grau de interesse polemizador
16 Segundo o estudo “As correspondências de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade” (ARAÚJO; SÁ, 2012, p. 126-128), a forma datiloscrito aparece nessa correspondência somente em agosto de 1925, mas isso não significa que a partir de então todas as cartas seriam datilografadas, podendo a nova técnica ser vista como elemento modernizador da escrita. Mário de Andrade, para quem escrever a mão já se apresentava como um problema, reclamaria ainda ao amigo potiguar: “[...] escreva sempre uma letrinha mais amável que a da última carta, puxa! palavra que eu vou comprar uma lente só pra ver si posso entender com mais facilidade o que você escreve a duzentos quilometros por hora” (carta de 22 de julho de 1926). Segundo ainda o estudo citado, Câmara Cascudo resiste antes de aderir totalmente à novidade (“Teimo em não usar máquinas para V. ter os meus gatafunhos” – carta de 09 de dezembro de 1925) e “chega a tentar persuadir sobre a necessidade da escrita à antiga como um meio de possibilitar um maior conhecimento do amigo” (“Sua carta a lápis é um instantâneo de alma” (carta de 30 de dezembro de 1925).
38
demonstrado sobre a construção do texto poético cascudiano, Mário de Andrade indica
forte interesse na apreensão pela construção do poema: do reconhecimento elogioso
(“Seus poemas. Bons. Enérgicos retos” – Carta de 4 de Outubro de 1925) ao
oferecimento de reparos de rítmica, de substantivação qualificativa e de conceito de
verso-livre. Fala do verso arbitrário trilhado de forma inconsequente por Câmara
Cascudo “sem justificação nenhuma nem mesmo psicológica” e por extensão, do
afastamento do “verso-livre” e de suas regentes “leis psicológicas”. O poeta da Escrava
que não é Isaura discordava da posição da última palavra “vermelho” no primeiro verso
entendendo ficar “excelente” esse mesmo termo abrindo o segundo verso e perguntava:
“não acha que tenho razão?” Repetida como estava na posição original alterava o ritmo,
as leis do verso livre e o seu psicologismo. Por isso proporia a estruturação noutro
molde, consumando o resultando em excelência qualificativa e rítmica, abrindo espaço,
contudo, para Câmara Cascudo se manifestar:
“O chão é seco e vermelho
É vermelho o caminho entre o amarelo do (panasco). “
“ fica excelente. Não acha que tenho razão?”
(CASCUDO, 2010, p. 69).
No verso dois, na feitura de Câmara Cascudo, segundo Mário de Andrade há
“um desapronto bruto” por entender que o “é vermelho” do final do verso anterior vai
“mostrando que corresponde ao substantivo do verso seguinte” sem “nenhuma razão
que justifique isso nesse lugar”. Argumenta o fato de o poema se desenvolver sem “(...)
saliência pra coisa nenhuma, está falando calmo, observando verificando, sem nenhuma
ironia, sem nenhuma exacerbação de comoção de maneiras que não tem razão pra esse
corte puramente arbitrário e que vai contra as leis psicológicas que regem o verso-livre”
(CASCUDO, 2010, p. 69). Fica claro que, na rigidez do estatuto do verso livre
modernista, não comportava a arbitrariedade impetrada pelo poeta, ao lugar reservado
ao substantivo, removido do início do segundo para o final do primeiro verso.
Mário de Andrade chama a atenção para uma inversão no “quarto verso”.
Caberia nova mudança na formatação sintática, acentuando para Câmara Cascudo
alteração na construção recebida. A original, “também me inquizila”. E, dispara sua
sugestão crítica reformadora. Parecendo tentar sensibilizar Câmara Cascudo: “Ficava
39
tão bonito”:
“De pedra-branca na estrada vermelha”.
Em Câmara Cascudo encontraríamos: “De pedra-branca na vermelha estrada”.
Mário de Andrade insistia na possibilidade de o verso ficar mais natural, mais
comprometido com o “rítmico e, portanto com sotaque muito mais brasileiro” se era
justamente possível quando da edificação do verso priorizar para que o “qualificativo”
viesse sempre “depois do qualificado”.
Seguindo sua linha de raciocínio teórico, Mário de Andrade debate o poema
referindo-se e discordando no tocante ao nono, décimo, décimo primeiro verso,
concordando somente com a composição do décimo segundo, quando suprime apenas
as reticências. Articula novas acomodações. Apelativamente, o poeta chancela:
[...] “O final também tomou cachaça:”
“Há uma transparência pelo ar que treme treme e, na poeira fina e cinzenta, voam folhas secas pelo ar...” propunha: “Há uma transparência pelo ar que treme treme... Na poeira fina e cinzenta voam folhas secas pelo ar.” Ou: “Na poeira fina e cinzenta voam folhas secas pelo ar.”
(CASCUDO, 2010, p. 69-70).
Em verdade, há a proposta rítmica para o nono verso absorver ao seu final o
começo do verso seguinte (o décimo), trazendo o verbo repetido (“treme treme”)
reticenciado, para compor o final do nono verso. Carrega nessa construção a supressão
do “e” virgulado (“e,”) contido no caligráfico escrito de Câmara Cascudo. A operação
no décimo verso traz ainda seu período final (“na poeira fina”) para ser seu próprio
começo. E passa a ser finalizado aglutinando o início (“e cinzenta” sem a virgulação) do
décimo primeiro verso. Mas, uma solução é trabalhada por Mário de Andrade fundindo
40
os versos, décimo e décimo primeiro. Dessa maneira, se essa solução fosse adotada o
poema não teria doze e sim onze versos. O décimo segundo verso é mantido por Mário
de Andrade atentando ao reescrevê-lo para a retirada de reticência substituída de um
ponto final.
O autor de Losango Cáqui, apesar das observações que fizera acerca de opções e
adoções estilísticas de Luís da Câmara Cascudo, era muito aberto às proposições
construtivas do seu amigo do Norte. Deixa isso evidente, mas faz restrições quanto ao
ritmo do verso livre, de desenhos composicionais de versos por entender que essa
postura contribui com aquilo que entende significar re-atualizações ou aprimoramento
do texto construído. Após um pouco mais de um mês da publicação do poema “Não
gosto de sertão verde” em Terra roxa & outras terras, Câmara Cascudo responde de Natal
demonstrando segurança e convicção do exercício que fizera quanto à experimentação
ideográfica do poema, naquele contexto do fragor modernista:
Vou explicar porque escrevo certas palavras em letras espaçadas e oblíquas. Por ideografia pictorial (?!) V. continua a esperar a colaboração do leitor ao jeito de Baudelaire e Conrad? Eu, dentro do possível, tento despertá-lo por uma visão gráfica, uma sigla que o ajuda na associação das ideias a pensar no objeto descrito. Devagar, lento, e escorre escritos17 desta maneira traduzem o tema numa expressão quase sensível. V. não tem feito outra coisa com seu estilo tamanduá-bandeira senão “obrigar” o leitor a “ver” menos do que concordar (que é uma questão secundária). (trecho de carta de 8 ago. 1926 – CASCUDO, 2010, p. 116)
A réplica argumentativa do poeta sinaliza para uma intenção lúcida e de
resultado propositalmente fundamentado nessa inovação de convergência entre o verbal
e o icônico que, assimilada por poetas, atravessaria parte da escritura textual da poesia
do século XX, sempre sob o signo da relação da multilinguagem. Foi assim com a
cartazística da Bauhaus dos anos de 1920, da poesia concreta de 1950-1960 e do
poema-processo de 1967-1972.
Luís da Câmara Cascudo não intencionava uma imersão gratuita, diluidora e
alinhada às conquistas levadas a extremo pelo experimentalismo da linguagem gráfico-
visual que encontra paralelo desde Stéphane Mallarmé (1942-1898), passando pelo
17 Nos anexos de GOMES (1999, p. 258), a palavra “escritos” aparece como “esculpidos” (sublinhado), versão que nos parece mais próxima do sentido presente na carta.
41
cubo-futurista Vladimir Maiakóvsi (1893-1930)18. A forma experimental fora utilizada
pela cartazística da Bauhaus até a poesia concreta e suas variantes. Mesmo sem uma
obra planificada em livro – suporte convencional –, Câmara Cascudo elevou o seu
poema ao patamar construtivo na edificação da tradição do moderno registro poético
brasileiro.
Chama a atenção, na leitura do final da carta de 17 de abril de 1927
(CASCUDO, 2010, p. 128), a despedida ideográfica de Câmara Cascudo, nove meses
após “explicar” a Mário de Andrade a livre escolha pela fisionomia dos versos no seu
poema:
Abração
de
Luís.
Acaso gráfico, brincadeira, provocação, coincidência ou intencionalidade
construtiva? Mesmo sabendo que esta seria uma forma comum de despedida em cartas,
sem intencionalidade poética, mas como tradição que explicita uma intenção estética
gráfica; mesmo considerando o clichê epistolográfico, torna-se possível carrear para
esta leitura um sentido que se agrega a uma despedida que é “esculpida”, não apenas
“escrita”, como nos revelara o manuscrito da carta de 8 de agosto do ano anterior.
Em carta de 29 de abril de 1930 (CASCUDO, 2010, p. 171), seria a vez do poeta
discordante da geometria linguística de Câmara Cascudo se trair, de certa forma: a sua
despedida se espelha naquela, cascudiana, de 1927:
Ciao
Abraços pra todos
Mário.
Esta leitura partiu de dois pontos convergentes: de um lado, o exercício poético
de Câmara Cascudo no sentido de experimentar uma linguagem que motivasse a sua
representação do mundo sertanejo, de acordo com as conquistas das vanguardas
artísticas do início do século XX; do outro lado, a expressão da temática do mundo
18 No mesmo ano, o poeta russo escreveria um longo poema dedicado ao companheiro morto, após o suicídio: “A Serguéi Iessiênem”, traduzido por Augusto de Campos (MAIAKÓVSI, 1982, p. 171). O poema é montado em versos oblíquos fechando-se em um bloco de nove versos indagativos.
42
sertanejo por meio de poemas onde o poeta Câmara Cascudo trabalhou matrizes de
imagens que seriam reiteradas na sua obra posterior, em prosa.
Assiste-se, neste caso, à formação de um escritor e suas preferências temáticas,
sempre determinadas por conjunturas históricas, movimentos. Mas, sobretudo,
capacidade de individuação por meio de uma poesia que se queria presente, embora
fosse, ao fim e ao cabo, para o fundo dos arquivos.
43
3. CAPÍTULO 2 – Imagens da colonização: leitura de “Brasil de madrugada” e
“Banzo”
Também viviam milhões de papagaios. Tão abundantes e formosos que se tornaram produção
regular para o mercado europeu. Deram mesmo, num momento da cartografia quinhentista, nome ao
Brasil, julgado ilha: — INSULA PAPAGALORUM — ilha dos Papagaios!
Câmara Cascudo - Discurso
pronunciado em março de 1959, por ocasião da instalação da UFRN.
Segundo Antonio Candido (1980), o sentimento de triunfo da fase heróica do
modernismo assinala o fim da posição de inferioridade dos brasileiros no diálogo
secular com Portugal e define a originalidade própria do modernismo na dialética do
geral e do particular. Essa originalidade está bem representada nos dois manifestos mais
significativos do movimento, o Manifesto da poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto
antropófago (1928), sobretudo quando o primeiro faz referência à “Fatalidade do
primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens” e o segundo
ao “contato com o Brasil Caraíba”, à felicidade reinante no matriarcado de Pindorama,
antes de os portugueses descobrirem o Brasil.
Tal perspectiva parece ter exercido influxos na produção do poema “Brasil de
Madrugada”, de Câmara Cascudo, que assimila informes documentais e os parodia
sutilmente passando em revista crítica aspectos da relação da metrópole portuguesa com
a colônia brasileira a partir de registros históricos no melhor estilo proposto no
Manifesto da poesia Pau-Brasil e nos poemas de Pau-Brasil, de Oswald de Andrade.
As suas palavras-chave são cartografia, crônica de viagem, geografia, fauna, flora,
personalidades portuguesas e índios anônimos. Eis, a seguir, a versão publicada na
Revista Descobrimento, em Lisboa, Portugal em 193119:
19 O poema é dedicado ao jornalista e escritor modernista Ribeiro Couto (1898-1963), autor que publicara Jardim das Confidências, em 1921, trazendo capa assinada pelo artista plástico Di Cavalcanti (1897-1976).
44
Imaginar manuscritos e vários mapas expostos aos olhos de um poeta,
deflagrando caligráfica e iconograficamente terras, águas, limites, culturas inter-raciais,
palavras, frases suscitando interesses de dominação econômica e política, decerto é uma
situação ou um momento de provocação reflexiva no terreno criativo da linguagem.
Essas informações miradas nas retinas de um escritor receptivo ao vendaval de ideias
literárias instauradas no Brasil na década de 20 do século XX, quando o movimento
modernista instigava o repensar do papel da literatura e outras modalidades artísticas,
passaram a ser importantes ingredientes de revisão poética.
“Brasil de Madrugada” é escrito inspirado em arsenal cartográfico, na crônica de
viagem, na geografia, fauna e flora quando da chegada da esquadra lusa ao Brasil, em
45
21 de abril de 1500, ancorada no Monte Pascoal. Em sua construção, dispõe na
argumentação personalidades portuguesas (Pero Vaz Caminha, o Rei D. Manuel),
estimula a lenda e inscreve coletivamente indígenas anônimos.
Na perspectiva de uma tradição que reverencia “o lado doutor, o lado citações,
o lado autores conhecidos” (Manifesto da Poesia Pau-Brasil), o poema traz inseridos
fragmentos da famosa Carta de Pero Vaz Caminha, cronista da esquadra do Almirante
Pedro Álvares Cabral, para o Rei de Portugal Dom Manuel, bem como citação de
comunicação régia dando conta de tratamento e nominação de posses territoriais.
O poema de Luís da Câmara Cascudo apresenta flagrantes de invenções
poéticas em linhagem lírica valorizada por Oswald de Andrade no poema-programa
“falação”, de Pau-Brasil (“o lyrismo em folha”). Ao visualizar a terra apossada
representada em desenhos no papel por estudiosos importantes da cosmografia (Alberto
Cantino, Waldeseemuller e Kustmann) destila o melhor dos emblemas decantando o
que seus olhos focavam na nominação e no surgimento do paradisíaco:
Brasil I, Terra dos Papagaios Ínsula infixável emergindo de cosmógrafos atônitos Se estirando larga-escura na água azul.
A essa representação, em procedimento próximo da linguagem
cinematográfica, teremos correspondência anterior em versos oswaldianos, irônicos e
coloquiais, quando “contra todas as catequeses” (cf. Manifesto Antropófago) interpela o
mesmo fato historiado no segundo bloco do livro Pau Brasil. Esse segundo bloco,
“História do Brasil” contém o poema “Pero Vaz Caminha”, onde se destacam, para esta
leitura, os versos que se seguem ao subtítulo “A descoberta”:
Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Paschoa Topamos aves E houvemos vista de terra.
O desenho ilustrativo de “História do Brasil” é da artista plástica modernista
Tarsila do Amaral (1886-1973). Carregando em tinta preta a ilustração, traz traços leves
e ingênuos de palmeira, caravela com a vela-grande com símbolo da Cruz de Cristo;
barcos tripulados, linhas d’água, de terra e de horizonte; aves voando, relevos
geológicos e, em plano de maior destaque, o emblemático Monte Pascoal.
Os poemas de Câmara Cascudo e de Oswald de Andrade interagem,
46
sobretudo, no plano pictórico. As imagens iconográficas se articulam, ampliando as
possibilidades de sentidos da linguagem. Eleito o primeiro episódio histórico como
objeto, simultaneamente vem a leitura crítica subjacente e a revisão, pelo crivo da
reivindicação de autonomia cultural. O discurso oswaldiano questiona atos, fatos,
relatos e procedimentos do processo inicial da formação colonial refletidos na
estruturação da sociedade, na forma de controle, na construção ideológica do dado
histórico da descoberta como acaso20. Já o prisma cascudiano da interpretação histórica
pode ser mensurado na escalada do poético que apreende dados políticos, econômicos,
religiosos, reescrevendo a assertiva oswaldiana “a poesia emaranhada na cultura”, de
“Falação”. Os cortes históricos podem não ter influência direta, mas ganham sentidos,
nos poemas, como demandas represadas da colonização. O ponto de partida das duas
elaborações poéticas pode ser o mesmo verificado por Haroldo de Campos ao ler Pau-
Brasil:
[...] os poemas de abertura de Pau-Brasil, verdadeiros desvendamentos da espontaneidade inventiva da linguagem dos primeiros cronistas e relatores das terras e gentes do Brasil, onde, por mero expediente de recorte e remontagem, textos de Pero Vaz Caminha, de Gandavo, de Claude d’Abbeville, de Frei Vicente de Salvador, etc., se convertem em cápsulas de poesia viva, dotadas de alta voltagem lírica ou saboroso tempero irônico. (CAMPOS, 1978, p.29)
3.1. Na madrugada da colonização
Além da versão publicada na revista Revista Descobrimento, referida, a
pesquisa identificou a seguinte versão publicada no livro Viagem ao universo de
Câmara Cascudo (1969), de Américo de Oliveira Costa:
BRASIL DE MADRUGADA
Mapas de Cantino Waldeseemuller, Krunstmann. desenho velho de Canibais e feras. Brasil I Terra dos Papagaios... Ínsula infixável emergindo de cosmográfos atônitos se estirando larga-escura n’água azul...
20 “O Cabralismo. A civilização dos donatários”; “A formação étnica rica”; “Contra a fatalidade do primeiro branco aportado e dominando diplomaticamente as selvas selvagens”; “A poesia para os poetas. Alegria da ignorância que descobre. Pedr’Álvares.” (trechos de “Falação” poema-programa de Pau Brasil, livro dedicado “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”).
47
Bojo gemente de caravelas que o vento enfuna amplo velame e a Cruz de Cristo sangrando na vela-grande. Barbudos soldadões que viram Prestes João na linha interminável do Mar Longo... ...viola, cantiga, folhagem boiando... suja espuma babando a sombra do Monte ...jarretes velozes voando no dorso da areia da praia prana chã e mui fermosa. Cruzeiro de pau na terra selvagem cruzinha de chumbo no índio curvado. Brasil de madrugada com flechas, batoques, inúbias, cocares, dançando, correndo, fugindo, voltando. Papel amarelo coberto de letras: “Serenissimi Emannuelis Regis Portugaliae Algarbiorum citra et ultra mare in Africa dominus Guinae”.
Sem se preocupar com a sequência cronológica relativa a fatos poetizados,
voltando e saltando no tempo, o poeta delimita momentos e certa nova significação da
primeira etapa de posse (“Brasil I”) da metrópole sobre a colônia, no século XVI,
quando da chegada de naus em terras firmes. Podemos sequenciar o poema com olhares
nos mapas autorais e desenhos decrépitos:
Mapas de Cantino, Waldseemuller, Krunstmann.
O verso em brado ufanista, toponímico e ornitológico gerando ícones que
poderiam ser tropicalistas, caso houvesse sincronia temporal de movimentos distintos:
Brasil I, Terra dos Papagaios...
Observação do traço irregular da ilha, geografia física sobressaindo do nível
oceânico, a gerar extensão e perplexidade:
Ínsula infixável emergindo de cosmógrafos atônitos se estirando larga-escura n’água azul...
Sobre o mar abaulado, agitado, a vela da embarcação inflada por ventos e
timbrada com a Cruz ensanguentada no seu pano, cuja representação simbolizava a
cristianização da missão que deveria ser piedosa, redimida:
48
Bojo gemente de caravelas que o vento enfuna amplo velame e a Cruz de Cristo sangrando na vela-grande.
A presença dos soldados da Corte que se deleitavam ao visualizar a terra nova
após haverem, antes, experimentado em outros mares a visão de um fabulado rei:
Barbudos soldadões que viram Preste João na linha interminável do Mar Longo...
Toques e cantares ibéricos, no retinir de cordas e no entoar de vozes em meio
ao marulho no Monte Pascoal que vinha da “...viola, cantiga”; Indiada alegre
esbanjando receptividade aos aportados em eufórico corre-corre na praia idílica
mostrando os:
...jarretes velozes voando no dorso da areia da praia prana chã e mui fermosa.
Celebração da primeira missa, catequese e submissão, disseminação de poder:
Cruzeiro de pau na Terra selvagem cruzinha de chumbo no índio curvado.
Pacifismo, integração e aculturação comemorativa sem “A reação contra
assunto invasor, diverso da finalidade” (cf. Manifesto da poesia Pau-Brasil) e a
passividade pueril:
com flechas, batoques, inúbias, cocares dançando, correndo, fugindo, voltando.
Por último, a comunicação oficial dirigida em tratamento ao Rei em tom
inverso à “língua sem arcaísmos, sem erudição” (cf. Manifesto da poesia Pau-Brasil):
Serenissi Emanoellis Regis Portugaliae Algarbiorium Citra et ultra mare In África dominus Guinae.
Claro está, colado ao texto, o filtro da estética moderna trazendo o verso livre
em força motriz e tentando apreender o ufano pelo oposto, pintando o solo Pindorama
ora em tinta ironista, ora atravessando a atmosfera lúdica e o antropofágico cultural.
49
Mais do que um sintoma, a linguagem cascudiana indica um paradigma na ampliação
do leque contributivo ao movimento modernista. Tentativa mordaz de desconstrução do
discurso colonizador eurocentrista.
O poema é elaborado por meio da apropriação do relato do episódio de
chegada de Pedro Álvares Cabral ao solo brasílico. Percebe-se nele a conspiração
intrínseca no texto contra a espoliação cultural por uma dada afirmação no campo dos
saberes históricos, que já vinha ganhando fôlego no transcorrer dos tempos em que a
formação literária brasileira se estruturava e desaguava nas décadas de 20 e 30 do século
XX. A superação culmina, especialmente entre outras obras e atitudes, nos escritores
Oswald de Andrade e Mário de Andrade. As formulações expostas para se fazer
literatura de exportação se consolidam em páginas de manifestos, periódicos e livros. O
objetivo era aquele sentenciado no Manifesto da poesia Pau-Brasil: “Uma única luta – a
luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a poesia Pau-Brasil, de
exportação”.
O poema “Brasil de madrugada” se inscreve pelo tema e abordagem, no
movimento que deu passos importantes para a sedimentação de construção de uma
imagem do país, cuja tradição literária constituída até aquele momento21 foi considerada
significativa do ponto vista da iniciativa comportamental dos seus principais atores.
Revisava-se o conceito de autonomia da nação, calcada numa identidade cultural de
formação dialética, diversa e própria na qual o primitivismo era um dos principais
pilares, como fora na Europa dialogando com as vanguardas históricas, e serviu para
fazer “O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica”.
(Manifesto da poesia Pau-Brasil).
A provável receita do fazer poético, o ponto de partida de Luís Câmara
Cascudo, numa madrugada ou crepúsculo qualquer desencadeando esse poema que
significa um antidiscurso frente à temática da colonização é a pedra de toque de mais
uma janela aberta pelo escritor recebendo ares modernistas22. Não por acaso, fora
publicado na revista Descobrimento, editada em Portugal, país colocado em confronto
por políticas expansionistas e colonialistas.
A leitura poética e cosmopolita de documentos acontece no poema de Luís da
Câmara Cascudo, partindo da visão continental planificada na superfície de um
21 Considera-se a tradição constituída nos termos definidos por Antonio Candido em Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1975). 22 Sobre a presença do movimento modernista no Rio Grande do Norte, cf. os estudos de ARAÚJO (1995), COSTA (2000) e FERREIRA (2000).
50
“desenho velho”. Na verdade, evidencia-se um processo de leitura em mapas contendo
traços, legendas, artes ilustrativas cartográficas, manuscritos epistolares e,
transversalmente, o texto amalgamado à tradição oral.
O poema começa embasado literalmente nos “Mapas de Cantino,
Waldssemuller e Kunstmann”. Nessa ordem, os planisférios escolhidos foram os dos
três cartógrafos referidos no início do poema. Principia com o de Alberto Cantino,
espião diplomático na corte portuguesa a serviço do governo italiano com o objetivo de
obter informações de cartografias sigilosas. Estava em jogo a expansão comercial e
territorial de países europeus. Prosseguindo, aparece o mapa de Martin Waldessemuller,
que traz carta náutica constando o nome dado ao continente, “América”, numa
antroponímica homenagem ao navegador florentino Américo Vespúcio23.
Por último, o mapa do padre e historiador alemão Friedrich Kunstmann que
vem a ter o referencial do vocábulo “Brasil,” numa inscrição latina posta no Atlas24.
23 Em 1507 trouxe à luz o primeiro mapa em que figura o nome "América", para designar o até então denominado "Novo Mundo", de que existe um exemplar na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América. O texto que acompanha o mapa, e o globo terrestre, é o célebre "Cosmographiae introductio", que explica, entre outras coisas, a razão de ter dado o nome de América, tendo como apêndice uma tradução latina das quatro jornadas de Américo Vespúcio. O título completo do trabalho é: Cosmographiae introductio cum quibusdam geometriae ac astronomiae principiis ad eam rem necessariis. Insuper quatuor Americi Vespucii navigationes. Universalis Cosmographiae descriptio tam in solido quam plano, eis etiam insertis, quae Ptholomaeo ignota a nuperis reperta sunt. (cf. Library of Congress USA: http://www.loc.gov/search/?q=Cosmographiae+introductio+. Acesso em 16/09/2012.). 24 É geralmente conhecida como “Kunstmann III” porque a sua parte ocidental foi pela primeira vez reproduzida em 1859, num fac-símile a cores com o n. III, no célebre Atlas do sábio padre e historiador alemão Friedrich Kunstmann, que viveu alguns anos em Lisboa. O pergaminho em que esta carta estava desenhada media aproximadamente 87 x 117 cm. nas suas maiores dimensões, e representava o Mar Negro, Mediterrâneo, Europa, metade da África e Atlântico com a Groenlândia, Terra Nova e costa do Brasil. A sua característica principal é a representação da Groenlândia, Terra de Cortte Riall e Brasil. FONTE: http://www.dightonrock.com/abaiadesaojoanaterranovaatemafor.ht. Acesso em 16/09/2012.
51
Fig. No. 1--- Mapa de Kuntsmann - (1) Aponta a “Terra de Terra de Corte cortte Riall” ou Real - Foto do mapa Kunstmann feito por um cartógrafo em Lisboa em 1506 e preservado na Biblioteca de Augsburgo, na Alemanha, mostrando a terra do futuro Canadá, com o nome de “Terra de cortt.
Entre os textos e documentos descritivos utilizados transgressivamente por
Luís da Câmara Cascudo está ainda a Carta de Caminha, e o texto relativo ao simbólico
Reino do Preste João25. O primeiro, um documento oficial relativo ao reinado português
e o segundo, um texto lendário de tradição oral sem segura referência autoral e que diz
respeito a um difuso reino que nunca se alcança ou se configura. Uma estória simbólica
mesclada a fragmentos históricos que circulou de forma anônima, oral e escrita em
vários momentos, antes e dentro do ciclo de expansão marítima portuguesa. Há que se
considerar em ambos os textos os seus deslocamentos. O do caráter régio, documental, e
o de teor caracterizado por fantasias de um reino mítico oriental oferecedor de farturas e
facilidades materiais.
Arremessados para a função poética, essas bases escriturais de que se serve
Luís da Câmara Cascudo se modificam radicalmente na semântica e na excepcional
apropriação metalinguística do poeta. Na carta do escrivão Pero Vaz de Caminha, o
informe da posse, os comportamentos de indígenas e dos componentes da esquadra,
endereçada à Corte. Na dica textual ao “Preste João”, reativa informe ao já mencionado
prodigioso “Reino do Preste João”. Esse reino de riqueza fantasiosa teria sido
pertencente a um monarca afortunado no oriente e já constituía o imaginário coletivo
inclusive na Idade Média. No final do século XV e meados do XVI, a existência do
irreal e fantástico reino viria a ter re-atualizada importância para o processo de
25 Preste João: legendário rei cristão da Etiópia, conhecido em Roma em 1165. Cf. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (LOPES, 2004, p. 543).
52
crescimento de Portugal e Inglaterra26. No poema, é aferida aos soldados portugueses a
visão que eles tiveram quando avistaram o tal “Reino” numa deduzida anterior visita, no
horizonte infindo do “Mar Longo”. Essa passagem pode ser colocada em grau
comparativo com a sensação idílica ante o momento da aproximação do Monte Pascoal,
numa visão que se aproxima da imagem criada por Oswald de Andrade no Manifesto da
Poesia Pau-Brasil: “A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O
vatapá, o ouro e a dança”. O paraíso na terra.
A tessitura do poema é engendrada dentro de episódios que suscitam certa
compreensão do contexto do comércio internacional, envolvendo interesses antagônicos
e rotas de navegação entre países. Entre a verdade documental e a circunavegação
poética, ficam evidentes os espaços para a aplicação de irreverências aos tratamentos
dispensados na incorporação de textos já compostos, especialmente no emprego do
relato laudatório e cartorial dessas peças. Luís da Câmara Cascudo encontra subsídios
na linguagem modernista e consegue encaminhar a escritura no melhor estilo
oswaldiano passando-a ao largo da sua vivência,27 na máxima Pau-Brasil de que a
“poesia existe nos fatos”.
Na situação em que o poema se apresenta à leitura, o Manifesto da Poesia
Pau-Brasil surge como um paradigma de compreensão da atitude poética frente ao
fenômeno histórico. De onde o deslocamento intertextual que galvaniza a postura
“contra o gabinetismo, a prática culta da vida”. Utilizando o “lado doutor”, de gabinete,
e ao mesmo tempo desdenhando da língua-linguagem empolada e de aspectos históricos
questionáveis, não estaria Luís da Câmara Cascudo a propor dialeticamente a “língua
sem arcaísmos ou erudição”? Ela, a linguagem, pode ultrapassar o patamar da
esterilidade formal e se transformar em metalinguagem assimiladora da ”contribuição
milionária de todos os erros”? É no sentir o jargão cartorial e bacharelesco contido na
citação da crônica epistolográfica (“Da praia prana chã e mui fermosa”), livresca e
26
Segundo OLIVEIRA [s.d; n.p.]: “A mais antiga noticia de despacho de mensagem de um soberano
cristão do Ocidente, a um negus, foi a dirigida por Henrique IV da Inglaterra ao ‘rei da Abissínia, Preste João’”; “Nessa carta, o soberano da Inglaterra diz que esteve na Terra Santa, onde soube de seu desejo, (do Preste), de libertar o Santo Sepulcro e manifesta a esperança de ele mesmo poder um dia voltar a Jerusalém”; “A Inglaterra tentaria legitimar as suas pretensões de poderio na África, com especial força no último quartel do século XV, chamando a si uma nova e revigorada busca ao reino do Preste João. A Inglaterra, através da literatura, tenta desmerecer todo o trabalho efetuado por Portugal na busca do mítico Rei, sobrepondo-lhe os feitos britânicos nesta saga da descoberta do prodigioso reino”. 27 Na sua correspondência, percebe-se a familiaridade com nomes expressivos do momento, como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Ascenso Ferreira, Gilberto Freyre e Joaquim Inojosa. Sobre a correspondência com o primeiro, cf. Cascudo (2010) e Gomes (1999).
53
latinizada no poema (“Serenissimi Emannoles Regis...”) que se pode dimensionar o
quanto de sagaz há nessa intenção que permite um procedimento de leitura às avessas da
oficialidade28.
Essa condicionante leva, na linguagem do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, “a
reação contra um assunto invasor, diverso da finalidade”. Na imagem re-escrita pelo
poeta, o quadro histórico aparece também como “uma aberração” no contexto dos
massacres de nações indígenas que o processo de dominação política e econômica
empreendeu.
A imagem dos mapas legendados, em rabiscos geômetras, a iconografia de
“canibais”, “feras” e “papagaios” e o detalhe do vocábulo “Brasil” no Atlas de Friedrich
Kunstmann encontram fortes antecedentes no poema-desenho “Pero Vaz Caminha” de
Oswald de Andrade e na respectiva ilustração de Tarsila do Amaral. Se em Luís da
Câmara Cascudo o componente visual e linguístico gera subsídios para a apreensão do
caráter inventivo do texto poético, em Oswald de Andrade o mesmo processo,
seguramente, determinou o desenho de Tarsila do Amaral. Nas duas faces da moeda os
mesmos questionamentos e interesses: “Temos a base dupla e presente – a floresta e a
escola. A raça crédula e dualista e a geometria...” (Manifesto da Poesia Pau-Brasil).
É clara a solução encontrada na quebra de assuntos áridos, sisudos, de cunho
historicista quando se percebe nitidamente a migração da abordagem testemunhal para a
literária ou a utilização da linguagem artística. O poema promove a inclusão indígena
através da imagem do homem cannibal, reportando aos seus hábitos, e das penas
multicoloridas de papagaios em um mesmo bioma. Simultaneamente, atribui à armada
portuguesa, aos “barbudos soldadões”, a experiência de terem avistado “Preste João na
linha interminável do Mar Longo”. Já haviam vivenciado um paraíso. Nesse ponto,
reativada a fabulação, o imaginário de um potentado que, em última estância,
interessava à expansão da corte portuguesa, o poema reaviva um passado (histórico ou
mítico) e o apresenta como contraponto à visão da “ínsula infixável” do Pindorama
“Brasil”, da terra que estava a acolher os “soldadões” invasores. O resultado, distinto da
28 A respeito do lustro na linguagem e do nativismo, Benedito Nunes (1972, p. 21) esclarece: “O idealismo da camada ilustrada aparece como o lado doutor com que o Manifesto (Pau-Brasil) representa o estilo importado da vida intelectual e da cultura literária e artística – estilo imitativo, que se desafogou na erudição e na eloqüência, na mentalidade bacharelesca, comum ao nosso jurista e ao nosso gramático, o primeiro imaginando o império das leis sobre a sociedade e o segundo o da gramática sobre a linguagem. O bacharelismo, o gabinetismo, as frases feitas da sabedoria nacional, a mania das citações, tudo isso servia de matéria à poesia pau-brasil, que decompõe, humoristicamente o arcabouço intelectual da sociedade brasileira, para retomar, através dele ou contra ele, no amálgama primitivo por esse arcabouço recalcado, a originalidade nativa, e para fazer desta uma arte nacional exportável”.
54
visão do cronista, é uma terra-fábula, outro reino “se estirando larga-escura na água
azul”.
Essa urdidura da poesia, da história e da estória trafega por caminhos palpáveis
fundamentalmente re-criadores. Internaliza, por exemplo, o contraditório na abordagem
da maçonaria de rígidos preceitos religiosos, a “Ordem de Cristo”, no contato indígena e
seu vínculo de incondicional organização aliada ao poder Real. A história se faz
presente, territorializada no domínio do universo poético construtivo, antiglória sem
enaltecimento laudatório. Mesmo que parta da premissa contrária, que é a contida em
relatos históricos oficiais. Faz pensar o país à luz de suas profundas contradições,
forjado que foi em sua formação, por raças e interesses difusos no âmbito de uma
trajetória (mercantil), do sistema econômico capitalista. Ao final, resolutamente o
resultado é antropófago.
Se a posse era celebrada, celebrava-se a missa cumprindo a missão preconizada
pelos religiosos do poder Real e da Ordem de Cristo. Não por menos, recebera cruzes de
tamanhos variados que seriam fixadas no solo e em corpos humanos, além do novo
nome da nova posse, Terra de Vera Cruz. A carta de Pero Vaz de Caminha é exemplar
dessa atitude colonialista:
[...] sexta-feira, primeiro de maio, pela manhã, saímos em terra corri nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz para melhor ser vista. E ali assinou o capitão onde fizessem a cova para chantar [...].
[...] acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda de outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço, pelo qual cousa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz e ali, a um e um lançava sua, atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha beijar e alevantar as mãos. (FONTE: http://carreiradaindia.net/seccao/carta-de-pero-vaz-de-caminha/)
As informações e os dados contidos na carta de Caminha, remetida ao Rei
Dom Manuel I, o Venturoso, que no campo descritivo verbal é base para a construção
do poema, permite a direção e ao mesmo instante a transgressão procurada pela
escritura poética. O texto de Câmara Cascudo afirma para negar. Ou poetizar. Edifica
novos significados, entrando e saindo deles, ou seja, dialogando com o texto fonte, mas
construindo outros tons e falas próprias inventivas. Arquiteta seu próprio texto, seu
próprio discurso. Observe-se a apropriação que faz o poeta, dando acento à escrita
55
portuguesa do período, ao declamar: “da praia prana chã e mui fermosa”. Expõe e
desloca o sentido, mantém, inverte ou perverte a semântica original usando a paisagem
tropical num apontamento da escritura original do texto missivista lusitano:
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos — terra que nos parecia muito extensa. (FONTE: http://carreiradaindia.net/seccao/carta-de-pero-vaz-de-caminha/)
A geografia física da terra, lançando seu relevo fora do nível do mar “se
estirando larga-escura n’água azul”, espraia a imagem aflorada em águas de um ser
marinho de corpo ou dorso rochoso. Na perspectiva de quem olhou os planisférios em
perspectiva bidimensional, de cima para baixo, sobrecarrega na escrita a sensação de um
transcurso surreal, quando a terra caracterizada em rabiscos técnicos salta aos olhos
“emergindo de cosmógrafos atônitos”. Enquadrando essa rotação descritiva numa
sucessão de imagens que representam fotogramas, a escrita elabora, em jogos
imagéticos, a figuração de um belo conjunto paisagístico. Todo desenrolar do
movimento se dá no espaço “Brasil I, a Terra dos Papagaios...”. Tal figuração tem boa
margem de interpretação para ser vista como a reconstituição metalinguística de parte
da iconografia em policromia contida no mapa de A. Cantino. Nesse mapa, aparecem
papagaios multicoloridos numa alusão ao fato de que essas aves eram abundantes e por
isso aparecem informando em legendas icônicas, a Terra Brasillis.
Sob um lusco-fusco, o “Brasil de madrugada” apresenta uma recepção de
índios romantizados “dançando, correndo, fugindo, voltando”. Assim, transcorrem
cenas. No entorno do Monte Pascoal, o poeta localiza “jarretes velozes voando no dorso
da areia”, representando metaforicamente a correria de índios expondo panturrilhas
possantes sobre e na areia fofa da costa marítima. Atitudes ágeis que nem equinos. As
algaravias certamente salientavam a excitação dessa gente. Movimento cenográfico,
sinestésico. O poema é alterador de simultâneas imagens. Continuamente.
Torna-se possível, na forma poemática, concretizar a sonoridade do delicado
sopro nas inúbias, as cores nas peles ou de cocares, assim como detectar a composição
56
de ossos formatados em batoques labiais e as flechas empunhadas. Os índios
“dançando, correndo, voltando”:
Brasil de madrugada com flechas, batoques, inúbias, cocares, dançando, correndo, fugindo, voltando.
Dialogando e rompendo uma dada historicidade cronológica – onde as
remessas de disputas, envolvendo pesquisas geopolíticas de nações europeias
hegemônicas daquele momento, séc. XVI, que entre outras cobiças buscavam descobrir
rotas marítimas –, o poeta nos remete à expansão colonial portuguesa na visão
monárquica e cristã, quanto à narrativa histórica. Ele projeta a partir de ingredientes da
poeticidade uma perspectiva de releitura crítica do passado para reafirmar o que de fato
o interessava: o literário. A maneira da apreensão régia no tal processo histórico não
limita o poeta à primeira metade do século XX.
As múltiplas leituras pululam nas retinas no encerramento do poema
aparecendo formalidades, comuns quando se tratava de contratos, tratados, convenções,
atos públicos e outras comunicações para o Rei. O texto poético encerra tomando rumos
hiperbólicos. Um estilo pomposo levado ao extremo de tratamento sob a mira
implacável de mais um olhar cascudiano voltado para um “papel velho coberto de
letras”. Nele, verifica-se a citação do formulário tradicional da missiva29 tanto como
atitude de respeito à tradição quanto como atitude irônica:
“Serenissimi Emannoelis Regis Portugalie Algarbiorum Citra et ultra mare in África dominus Guinae”.
Nesse fecho, o poeta assume o envio do relato metalinguístico para El Rei. Seu
relato-poema satiriza o entendimento da posse de Portugal. É ele quem assume o
comunicado da posse da terra, a autoria no meio, ainda, do rescaldo da carnavalização
modernista, em 1931. Sob sua batuta, surge o inusitado fundo musical ibérico:
...viola, cantiga, folhagem boiando... Suja espuma babando a sombra do Monte
29 Vista como um formulário, a carta participa de uma “(...) elaboração da escrituralidade, de uma concepção discursiva da distância” (Costa, 2012, p. 146), daí o gênero ser atravessado por uma série de tradições originadas na Antiga Retórica (cf. TIN, 2005).
57
Na escrita da carta de Caminha há relatos sobre a terra, recepção de seus
habitantes, fatos, impressões e procedimentos de tripulantes da esquadra comandada
pelo Almirante Pedro Álvares Cabral. Reiterava-se o valor da palavra escrita “(...) como
a única válida, em oposição à palavra falada que pertencia ao reino do inseguro e do
precário” (RAMA, 1985, p. 29). O escrivão fala de ações dos degredados tripulantes da
esquadra e menciona assim o Monte Pascoal, dando notícia do nome da nova terra:
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! a saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
O “cruzeiro”, “cruzinha” e a “Cruz” são termos que, sendo três vezes
recorrentes no fluxo textual, readquirem uma significação simbólica maior do que
quaisquer outros na estatística repertorial do poema.Vejamos na seguinte passagem:
Bojo gemente de caravelas que o vento enfuna amplo velame “e a Cruz de Cristo sangrando na vela-grande.”
Esses versos remetem ao episódio de entrega da bandeira da Cruz de Cristo,
por D. Manuel I, ao comandante-mor da esquadra, quando da sua saída da cidade de
Belém, em Portugal. Cabral era cavaleiro da Ordem de Cristo e trazia na vela de sua
caravela o símbolo da instituição religioso-militar herdeira da Ordem dos Templários. A
organização, por ordem papal, tinha autorização para ocupar territórios ocupados por
infiéis. No caso brasileiro, os índios. Era chegada a hora da colonização; estava dado o
ponto de partida para o processo de domínio da Terra Firme: “Com uma mecânica
militar, foram inicialmente os fortes que permitiram o avanço e seriam depois as
correias de transmissão da ordem imperial (RAMA, 1985, p. 34).
58
3.2. Toada de saudade: as vozes afro-brasileiras de “Banzo”.
O poema “Banzo” foi publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia
(Ano I, n.10, fev. 1929) e dois anos depois em Descobrimento, Revista de Cultura
(número de verão, 1931, p. 302-303). Nessa segunda publicação constante do periódico
português lançado em Lisboa, o poema é dedicado ao poeta, romancista e diplomata
Ribeiro Couto (1898-1963), que naquele ano passara a residir em Paris. A publicação de
1931 trouxe o mesmo conteúdo da edição de 1929, modificado apenas na adequação
ortográfica.
Banzo Para Ribeiro Couto
Subiu a toada Dos negros mocambos Saiu a mandinga De pretos retintos Vestidos de ganga Quillengue, Loanda Basuto e Marvanda fazendo munganga tentando chamego cantando a Changô. Escudos de couro, Pandeiros, ingonos, Batuques e danças Palhoças pontudas Com ferros nas lanças. Terreiros compridos De barro batido Cantigas e guerras Com sobas distantes. Caçada ao leão Caninga de choro zoada de Grilo. Campina de cana com água tranqüila... ... a voz do feitor. Mucamas cafuzas Moleques zarombos. Na noite retinta A toada subia Dos negros mocambos...
59
A alusão descritiva de práticas culturais de grupos étnicos africanos
multifacetados no imaginário religioso, em ritos de louvação ao orixá e de hábitos
tribais é a base onde se assenta Luís da Câmara Cascudo para estruturar o enredo de
“Banzo”. Na Europa e no Brasil a participação da arte negra e de temas primitivos em
conteúdos de vanguardas literárias e artísticas era ingrediente necessário. No
desenvolvimento narrativo, coube ao poeta Luís da Câmara Cascudo permear o poema
de música, sugerindo melodia em coro celebrativo, belicoso e percussivo quando no ar
“Subiu a toada” e vozes “cantando a Changô” vocalizavam “cantigas de guerra” sob o
rufar de “batuques”.
Aparecem detalhes construtivos da arquitetura primeva africana revelada na
organização de moradias dos “negros mocambos”, da “palhoça pontuda” de onde se
exorciza e ou direciona trabalho, feitiçaria ou bruxaria inimiga. É esse o lugar do
embate de manipulação de forças sobrenaturais partilhadas de onde “Saiu a mandinga”.
A coloração humana ganha realce trazendo o pigmento forte e escuro da pele
em “pretos retintos” assim como as representações de mestres indumentados “vestidos
de ganga” são referendados na hierarquia de poderes terrestres e espirituais. Os lugares,
as comunidades e as respectivas toponímicas africanas “Quilengue, Loanda, Basuto,
Marvanda” têm acento e a gestualidade cômica se fixa no comportamento de implícitas
personagens negras, “fazendo munganga”, e se entende ao ato cortês de atitude solidária
(“tentando chamego”) em contraposição ao clima de guerra instaurado. A isso, some-se
a afro-religiosidade na menção da fé explícita ao orixá iorubano “Changô”, dominador
de intempéries.
Destaca-se também, dentre os pontos etnográficos esmiuçados pelo poeta, a
nominação de armas belicosas de defesa e ataque enumerando os “escudos de couro” e
arcaicos “ferros nas lanças”. Tal nominação se dá na tipologia de solo ou espaço
tipificado de convivência e ou práticas religiosas nos “Terreiros compridos / de barro
batido” expondo o espaço e o tempo da cena tribal.
Os instrumentos musicais percussivos – os “Pandeiros, ingonos” supondo
acompanhamentos de sons invocatórios para coreografias ou movimentos corporais
relativos à divindade cultuada ou de postura guerreira, “batuques e danças” – ritualizam
o confronto, talvez, da reunificação de elementos afro-culturais dispersos no
escravismo, e depois, no processo migratório experimentado por povos de África.
A hierarquia tribal também se presentifica localizando os chefes, governantes
que são os “sobas distantes”. Os hábitos visibilizados nas “caçadas ao leão”, o
60
desconforto e impaciência na “Caninga de choro” e o ressoar de onomatopeias
melancólicas na “zoada de Grilo” sintetizam um quadro de divisão de trabalho
comunitário, pois cabe aos sobas a caça, às mulheres o cuidar de moleques que choram.
Tal quadro acontece no tempo crepuscular, tarde-noite no trinar de insetos. O ambiente
natural na “Campina de cana / com água tranqüila...” contrasta com o comportamento
repressivo, segregador da retumbante “voz do feitor”. As mulheres miscigenadas,
“Mucanas cafuzas”, e as crianças etnicamente identificadas nos “Moleques zarombos”
dão o tom de perspicácia e assimilação de contrastes, de entrechoques que passam do
componente calmo do paisagismo, do terror dominador ao incerto histórico de
adolescentes zarombos.
O poema parece soprado pelos ventos do Negrismo, “vertente tênue, mas não
por isso menos genuína” de que fora contaminador Raul Boop em seu Urucungo,
Poemas negros, livro lançado em 193330. A literatura modernista brasileira teve um
aporte heterogêneo quanto à sua produção. Nesse contexto, é pertinente ressaltar que a
abolição oficial da escravatura no Brasil havia ocorrido há apenas três décadas e o
sentimento de absorção de elementos culturais afro-ameríndios estava presente em
várias vertentes modernas. No plano literário, destacam-se Macunaíma (1928), de
Mário de Andrade; os poemas do livro Essa Negra Fulo (1928), de Jorge de Lima;
“Irene no Céu”, poema de Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira. Assim, o
negrismo surgido na Europa não teria tanta repercussão mas o tema foi combustível
para importantes escritores modernistas brasileiros.
Havia nas produções modernistas literárias certo brasileirismo não acadêmico
30 O Negrismo no Brasil não teve papel importante como em outros países notadamente França, Cuba, Uruguai e Espanha. Segundo Jorge Schwartz (2002, p. 153): “Outra vertente tênue, mas não por isso menos genuína, é a que remete ao negrismo. Parodoxalmente mesmo com o altíssimo componente negro do país, a moda negrista parisiense e Harlem Renaissance dos anos vinte não tem na literatura brasileira um papel determinante como, efetivamente na poesia afro-cubana, na afro-antilhana, inclusive a uruguaia da época. Tão pouco se deu na poesia brasileira um cruzamento entre o Surrealismo e o Negrismo como ocorreu, por exemplo, em “El Rey de Harlen”, de Federico Garcia Lorca (1929). Ao contrário, talvez por ser o elemento constitutivo do real – como caracterizava Oswald em sua conferência de 1923 na Sorbonne –, a temática negrista na poesia brasileira aponta quase sempre para um referente de nítidos contornos realistas. Inicialmente, o Modernismo produziu somente um livro dedicado ao tema: Urucungo. Poemas negros (1933), de Raul Bopp, poeta que se mantém fiel à busca de uma expressão autóctene, tal como havia feito antes em Cobra Norato (1931). Os anos trinta não tiveram na literatura negrista uma fecundidade equivalente a de um estudo como Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre que inclusive dirigiu um ano mais tarde em Pernambuco, o Primeiro Congresso de Estudos Afro-Brasileiros. Nesse sentido Leite Criôlo, jornal negro de Belo Horizonte, cujo primeiro número foi publicado em 13 de maio de 1929 constitui uma verdadeira raridade. Além dessa obra, dois livros de temática negrista destacam-se em nossa exposição: Poemas Negros, de Jorge de Lima (1947), em que aparecem vários textos de temática afro-brasileira, que inclui o famoso “Essa negra Fulô” – publicado originalmente no livro homônimo de 1928 – e foi ilustrado por Lasar Segall.
61
e o desenvolvimento de uma consciência nacional na qual o conceito de regionalismo e
primitivismo era suscitado em semânticas múltiplas que iam do Manifesto da poesia
Pau-Brasil, passando no grupo Anta (liderado por Plínio Salgado, de matiz ideológica
fascista), chegando até ao radicalismo do Manifesto Antropofágico. Posteriormente, o
próprio Oswald de Andrade reivindicaria o seu manifesto como o principal achado da
geração de 22 (cf. “Caminho Percorrido”, Ponta de Lança, 1971, p. 96).
A plêiade de frente modernista tinha na consideração usual da palavra
“antropófago”, no contexto de então, a derivação em várias direções: “ora emocional,
ora exortativo, ora referencial...”, mantendo um limiar oscilante “em duas pautas
semânticas, uma etnográfica, que nos remete às sociedades primitivas” – e é aí que se
insere “Banzo” pelo caminho afro que seguiu sendo mais “particularmente aos tupis de
antes da descoberta do Brasil” – e “outra histórica, da sociedade brasileira, a qual se
extrapola como prática da rebeldia individual, dirigida contra seus interditos e tabus, o
rito antropofágico da primeira”31.
A fase de 1929 da Revista de antropofagia, que se denominaria “segunda
dentição”, dos meses de março a agosto, sob a liderança de Oswald de Andrade,
Geraldo Ferraz e Osvaldo Costa traz a radicalização e o confronto com as outras
correntes de pensamento da época: o nacionalismo metafísico de Graça Aranha; o
verdeamarelismo (Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado, Cândido
Mota Filho, etc. ); o espiritualismo católico, ligado ao simbolismo e à filosofia de Farias
Brito (Jackson Figueiredo, Tristão de Athayde, Tasso da Silveira, Andrade Murici). Por
essa época, Oswald de Andrade se encaminharia para uma posição de extrema esquerda
“iniciando uma fase de militância política marxista” (cf. NUNES, 1972).
Nesse debate prospectivo da produção intelectual moderna, que os intelectuais
brasileiros travavam, Luís da Câmara Cascudo se inseria por meio da perquirição
folclórica e etnológica, cometendo poemas esparsos e sempre numa linha de interesses
muito próxima à de Mário de Andrade. É possível relacionar tais poemas a um
“primitivismo psicológico” cuja “depuração formal” não abdica de fatos de natureza
“folclórica (o carnaval)” e outros “étnicos”, conforme a leitura do Manifesto Pau-Brasil
estabelecida por Benedito Nunes (1972).
O poema “Banzo” emerge dentro dessa atmosfera de busca de brasilidade no
contributo de uma etnologia afro para a formação nacional, inclusive no plano
31 Esta assertiva é apresentada no prefácio de Benedito Nunes (“Antropofagia ao Alcance de Todos”) ao livro Oswald de Andrade, do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias (ANDRADE, 1972).
62
linguístico, e se arremessa contribuindo para manchar de negro a literatura moderna.
Aquele era um processo do qual faziam parte os modernistas do Nordeste, notadamente
Ascenso Ferreira e Jorge de Lima32. Este último, autor do livro de poemas Essa negra
fulo (1928) que arrebata através do picarismo, segundo Suely Reis Pinheiro (2000, p.
12), a mucama e suas relações com o seu senhor, em um deslocamento que abandona o
“verde-amarelismo político brasileiro da época modernista e se lança em busca da cor
achocolatada do social afro-brasileiro”.
Ascenso Ferreira conheceu Luís da Câmara Cascudo entre 1923-24 e 1927
Catimbó, livro que traz o poema “Maracatu”, cujos planos indiretos, seja no eixo
temático ou verbal, possibilitam abordagens comparativas com o “Banzo”:
MARACATU
Zabumbas de bombos estouros de bombas batuques de ingonos cantigas de banzo, rangir de ganzás... – Loanda, Loanda aonde estás? Loanda, Loanda aonde estás? As luas crescentes de espelhos luzentes, Colares e pentes, queixares e dentes de maracajás... – Loanda, Loanda aonde estás? Loanda, Loanda aonde estás? A balsa no rio cai no corrrupio faz passo macio Mas toma desvio que nunca sonhou... – Loanda, Loanda aonde estou? Loanda, Loanda aonde estou?
Em “Maracatu”, de Ascenso Ferreira, acontecem apropriações de palavras
originadas de étimo africano (“maracatu”, ”zabumbas”, ”bombos”, “bombas”,
32 Cf. a respeito o estudo “Poesia dos anos 20 no Nordeste” (ARAÚJO, 1997, p. 45-98).
63
“batuques”, “ingonos” ,“banzo”, “ganzás”, “Loanda”) e, obviamente, a temática se junta
aos interesses estéticos e culturais modernistas, comuns no “Banzo” de Luís da Câmara
Cascudo. Quando se confronta a utilização de vocábulos repertoriados e a apreensão
nativista negra, etimológica e etnológica trabalhada intencionalmente pelos dois poetas
percebe-se linguagem e a abordagem comum através do sentimento da diáspora
banzeira da terra mãe.
Luís da Câmara Cascudo fala de “Banzo” colocado como chamamento no
título, em referência a “Loanda” e outras localidades da África, nomeadamente
“Quilengue”, “Basuto”, “Marvanda” e de viés em “Zarombo”. Ascenso Ferreira
proclama e procura, trazendo o sentimento de re-identificação ao perguntar
lamentosamente quatro vezes: “Loanda, Loanda aonde estás?”; ou duas vezes: “Loanda,
Loanda, aonde estou?”. Lugar e sujeito sem direção na voz do poeta.
“Banzo” propõe a descrição de uma celebração de rebeldia guerreira, religiosa,
lírica, coletiva e tribal sem um claro foco libertário. Quando muito, soando apenas
implícito, ausente de panfletagem verbal. Transcorre em latitudes negras do continente
africano onde “a voz do feitor” reverbera em meio a “caninga de choro / zoada de grilo”
a esmo, na “campina de cana / com água tranquila”.
Tomando parte na busca identitária, Ascenso Ferreira levanta estandarte da
dança pernambucana chamada Maracatu. Na afirmação do folguedo, instala-se de saída
a ideia do desbarato negro. Em duas ocasiões as perguntas versejadas (“aonde estás?” e
“aonde estou?”) almejam respostas, contrapontos de localização e miragem da terra de
origem, mas também da terra de adoção, perpassando a sensação de reencontro e
unidade ancestral. O acento da negritude e o veio que leva ao primevo é fértil,
respondendo questões que se colocavam para a literatura e a produção plástica de então.
Assinalemos, de passagem, que Oswald de Andrade destacaria, em 1923, em
conferência na Sorbonne, “a presença sugestiva do tambor africano e do canto negro em
Paris, como forças étnicas que desembocavam na modernidade” (apud NUNES, 1972,
p. 18).
Com efeito, essas modernas assimilações de elementos culturais, não
necessariamente como tal, mas procurando o pueril, o estado bruto e a voltagem da
força artística inerente era um elemento que permitia lançar mão de uma peculiaridade
adequada ao modo de fazer, de proceder, de construir a literatura, o mito-poético
autêntico, objetivando avançar na consolidação da brasilidade. Importava, então,
desconstruir conceitos alienantes do que havia sido posto historicamente pela cultura
64
colonizante do europeu. Provocando-os, esses elementos nativos entrariam em oposição
com o estabelecido e balizariam o paradigma de conjunção de dados culturais
emancipatórios. Entre outros, a quebra de formalidades acadêmicas e rígidas regras
gramaticais bacharelescas que cederiam lugar a uma linguagem afro-brasileira
impregnada de coloquialismos e brasileirismos. Procedimento que estava no “ideal do
Manifesto Pau-Brasil conciliando cultura nativa e cultura intelectual renovada, a
floresta com a escola num composto híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do
povo brasileiro” (NUNES, 1972, p 23).
Na produção modernista não havia frestas para fantasias quando se pretendia
que a “universalidade da época deixaria de ser excêntrica para tornar-se concêntrica; o
mundo se regionalizara e o regional continha o universal. A preconização do momento
era ser “regional e puro em sua época”, - eis a fórmula com que o Manifesto quebra a
“aura da cultura nativa” (NUNES, 1972, p XXII) fazendo-a circular no cerne da
poeticidade contemporânea. O molho da natividade funcionando não com elemento
exótico e sim como força instintiva e transformadora. Boa parte dos vocábulos dos dois
poemas são originados de étimos bantos: a) “Banzo” – do quicongo mbanzu, ou do
quimbundo mbonzo; b) “Mandinga”, formado por duas expressões conjugadas masalu
ma- (e) dinga oriundos do quicongo e do quimbundo; c) “Ganga”, termo
multilinguístico banto procedendo de nganga; d) “Munganga”, do quicongo, moganga;
e) “Xangô”, do iorubá, Xãgo; f) “Caninga”, do quicongo kininga; g) “Ingomo” –
multilinguístico, aponta para o banto ngoma; h) “Batuque”, provável derivação da
expressão quimbunda bu-atuka; i) “Soba”, do quimbundo soba; j) “Maracatu”, dança
afro-brasileira, e, ao mesmo tempo, termo designador de gênero musical afro-
pernambucano do folguedo homônimo; onomatopéia banta de sons de tambores
praticados pelo grupo étnico Bondos; k) “Zabumba”, no quicongo e no umbumdo
mbumba, de bater33.
Os poemas dialogam entre si, direta ou sub-repticiamente. Na titulação do
poema “Banzo” e no verso “cantigas de banzo”, da poesia “Maracatu’, percebe-se que
em tais situações se assenta o nostálgico do disperso negro. Ora denunciando nos
títulos-versos a semântica que escancara o sentimento de separação de povos, ora na
proposição de decantação de vozes saudosas e batucadas das zabumbas do outro. O
cantar do primeiro é de louvação e luta. O do segundo é canto de tristeza, lembrança.
33 Significados pesquisados em Novo Dicionário Banto do Brasil (LOPES, 2003).
65
Situa-se o registro e evocação de cinco localidades-nações africanas: Quillengue,
Loanda, Basuto, Marvanda e Zarombo. A última aparece na referência ao “moleque
zarombo”. Há correspondência nos poemas a uma mesma localidade-nação mencionada
e indagada: “Loanda, Loanda onde estás?”. No ataque percussivo de “Maracatu” não
fica por menos o “Batuque de ingonos”’ e os ensurdecedores tambores de “...ingonos, /
batuques” repicam em “Banzo”. Nesse jogo cambiante de ressonâncias recíprocas, as
“cantigas de guerra” de um se refletem no contracanto das “cantigas de banzo” do outro.
Nas contraposições, os poemas convergem imagens. Em “Banzo” a noite é retinta,
escura e em “Maracatu” é menos parda (“as luas crescentes / de espelhos luzentes”). Ou,
a “água tranquila” em um, e noutro a “balsa no rio” sossegado faz volteio macio.
Observe-se o entoar e o cantar de abrição em “subiu a toada” e mais adiante a
declaração do canto devocional “cantando a Xangô”. Os poetas radicalizam o negrismo
já na titulação – “Banzo” e “Maracatu” – levando-se em conta o caráter filológico das
palavras escolhidas. As duas apontam para a África.
Os poetas não abrem mão do recurso linguístico, do canto, da dança. Da
melodia orquestral percussiva mostrando os “batuques de ingonos”, “zabumbas de
bombos”, pandeiros e ganzás presentes respectivamente nas tessituras textuais e sonoras
dos poemas. No primeiro verso, Luís da Câmara Cascudo alude ao canto (“subiu a
toada”) e, preparando o desfecho final, aquece vozes e vozes no penúltimo verso (“a
toada subia’). Assim, deslancha a musicalidade. Ascenso Ferreira musicaliza
apelativamente a partir do verso-título “Maracatu”34 e é tonitruante já do primeiro até os
quatro versos subsequentes:
Zabumbas de bombos estouros de bombas batuques de ingonos cantigas de banzo, rangir de ganzás...
É razoável pensar na lucidez da incorporação de vozes afro-brasileiras nesses
poemas dentro da perspectiva estatutária do programa modernista que as valorizou
como brasilidade, aprofundando a importância de temas dessa vertente no contexto da 34 Maria Suely da Costa também compara os dois poemas, verificando: “O som do batuque, que emerge do jogo das aliterações e assonâncias dos versos de cinco sílabas do poema “Maracatu” de Ascenso Ferreira, é marcado ritmicamente tal qual o trovejado dos bombos, ingonos e ganzás. Cadência semelhante é encontrada no poema “Banzo” de Luís da Câmara Cascudo. As seis estrofes compostas de cinco versos pentassílabos, com acento na 2ª e 5ª sílabas, traduzem o som musical de uma batucada”. (COSTA, 2008, p. 143).
66
produção dominante de outras escrituras e recepções. A propósito, escrevia Mário de
Andrade no seu livro O Turista Aprendiz (1983), no dia 25 de dezembro, 24 horas: “ –
Hoje sexta feira do ano, apesar do dia ser par, era muito propício pra coisas de feitiçaria.
Por isso resolvi ‘fechar o corpo’ no catimbó de Dona Plastina, lá no fundo de um bairro
pobre, sem iluminação, sem bonde, branquejado pelo areão das dunas”. Em, 1 de janeiro
de 1929, escreve novas linhas de crônica em Natal, no Rio Grande do Norte. Era carta
para o poeta Manuel Bandeira, no Rio de Janeiro, dando conta de suas pesquisas que
faziam parte do seu projeto etnográfico enfatizando: “Ando catimbozando...”. Seu
processo de coleta de resíduos afro-brasileiros resultaria na tentativa de sistematização
da música de feitiçaria no Brasil, acontecidas nas misturas de duas das principais raças
formadoras no nordeste: o negro e o índio.
O abatimento principiado na dispersão, desterritorialização de povos africanos
é diretamente alicerçado por discurso poético bem definido: “Banzo”, nostalgia mortal
que acometia negros africanos trazidos para o Brasil. Oriundo do quiconco mbanzu, que
quer dizer pensamento, lembrança, abatido, ou do quimbundo mbonzo, traduzindo a
saudade, a paixão, a mágoa (LOPES, 2003). São esses os significados elencados em
favor do termo banto. Mas os sentidos do texto apontam para uma complexidade que
vai além da “nostalgia”:
Contudo, ainda que preso já pelo título ao significado da tristeza, da melancolia, esse não parece ser exatamente o significado maior que emerge do poema. O grupo de negros que aparece “fazendo mandinga / tentando chamêgo / cantando a Changô”, celebram a magia, a sensualidade e a espiritualidade de uma gente cujos traços são expressivos de vida e humanidade. Sob uma estrutura basicamente descritiva, o poema tende a eleger o recurso da expressividade sonora, de tal forma que a música e a dança se inscrevem como os elementos de maior vigor no tecido poético. Abrindo e fechando o poema, a toada dos “pretos retintos” se eleva na “noite retinta”. Ambos, “noite e negros”, parecem unificados na magia do canto, que continua noite afora. Um efeito dinâmico parece reger o quadro que se apresenta no poema. A forma do pretérito perfeito cede a vez ao imperfeito — “subiu a toada / dos negros mocambos” (primeiros versos), “a toada subia dos negros mocambos...” (últimos versos). As reticências postas indicam frases que não se contêm em si mesmas, desatando-se numa sugestão de continuidade da cena que canta e conta a memória de um povo sob uma toada de muitas vozes. (COSTA, 2008, p. 144).
A louvação de negros africanos ao poderoso orixá iorubano, senhor do raio e do
trovão, participante da Criação como administrador da atmosfera, filho de Oranmíam e
neto de Ogum, nascido na cidade de Oió, da qual foi rei (LOPES, 2003) se inicia sob a
67
eclosão de cantares de dentro de habitações de tribos negras, de africanos pretos, com
feitiço pelos ares e indumentárias de guerra características dos mestres gangas:
Subiu a toada dos negros mocambos saiu a mandinga de pretos retintos vestidos de ganga.
O poema continua a se desenvolver na alusão de toponímias (Quillengue,
Loanda / Basuto, Marvanda) re-significando culturas de nações africanas
alegoricamente voltadas para uma coletiva gestualidade facial e dengo comum (fazendo
muganga / tentando chamego) envolvendo ponto devocional à divindade cultuada, o
Deus do Trovão (cantando a Xangô).
Os negros portam armamentos guerreiros (“escudos de couro’ e “ferros nas
lanças”), produzindo uma sonorização primal e encantatória, enchendo o poema de
toques evocatórios percussivos. Soam pandeiros e ingonos, sendo esses últimos
tambores encourados de um lado só, e percutido com as duas mãos. O poeta desenha os
sons de tambores e cenografa, de forma direta, danças e movimentos reverenciais. Re-
identifica os abrigos, os mocambos, as palhoças, suas formas e expressões. Cadencia o
texto:
Escudos de couro, Pandeiros, ingonos. Batuques e danças. Palhoças pontudas com ferros nas lanças.
A demarcação horizontal do espaço celebrativo tipificando o vão no entorno das
palhoças, área de convivência, rito religioso ou preparação espiritual para
enfrentamentos entre dominados e dominadores se espraia no “comprido”. Empreitadas
relativas à subsistência (“Caçada ao leão”) supõe a feição de mais área e ambiência sem
árvores, pradaria tomada pela monocultura da cana de açúcar bem focada na “campina
de cana”. O “terreiro” solo de barro batido, compactado é o limite ao rés do chão no
qual as solas de pés tribais tocam e se impactam no movimento dançante e preparativo
para o combate. São guerreiros crentes devotos de Xangô, trajando-se de luta,
empunhando armas, envolvidos num cerimonial supostamente libertário.
A remessa para outras nações sob o chamamento de outros governantes, outros
chefes ou sobas, universaliza para além daquelas já mencionadas (Quillengue, Loanda /
68
Basuto e Marvanda), como num arrebanhamento possível de mais e mais aliados para
vencer o inimigo opressor, o colonizador escravista e usurpador cultural. Sugere um
compartilhamento utópico, uma solidariedade simbólica, um desejo de união, de
resistência pela lembrança e inclusão dos “sobas distantes”:
Terreiros compridos de barro batido / cantigas de guerras / com sobas distantes. / Caçada ao leão... .
No andamento do poema há um recorte, uma espécie de fotograma do aperreio
de um choro redundante onde a impaciência pode ser localizada rompendo o silêncio
melancólico junto ao cricrilar de grilo comum no período noturno. A paisagem se
insurge descampada na “campina de cana” associada à hidrografia não detalhada – se a
de um veio d’água de um rio tranqüilo –, contrastando com a crueza vocálica grave da
repressão no melhor estilo escravocrata: “...a voz do feitor”. Eis a estrofe:
Caninga de choro zoada de grilo campina de cana com água tranquila ... a voz do feitor”.
Ao fim, o poema emblematiza mulheres mestiças, “mucanas cafuzas” e
crianças, confirmando o choro caningado de fome? De excitação, de desvalidos? Choro
de “moleques zarombos” da República do Chade, país sem acesso para o mar e espaço
que atualmente comporta mais de duzentas etnias, localizado no centro do continente
africano. Nesse país situa-se a localidade Zarombo. Na noite escura sem o claro da lua,
na “noite retinta”, há um fecho na cena, revestindo as ações desenvolvidas no poema e
trazendo a densa massa sonora na entonação dos toques e cantares. A “toada subia” das
cabanas reafirmadas sinestesicamente vindo à tona a presença negroide, historicamente
sobrecarregada. Como num refrão, o poema se despede:
Mucamas cafuzas moleques zarombos Na noite retinta A toada subia dos negros mocambos.
Toada que se inscreve na formação de um Brasil diverso e multicultural.
69
3.3. Um cais para a brasilidade
A intervenção poética de Luís da Câmara Cascudo é produzida no Nordeste
brasileiro, na região em que nasceu e onde residia. Passou pelos mapas do século XVI
onde a escritura poética levantou âncoras, navegou para o Monte Pascoal, até atracar no
cais estético e temático do século XX quando o modernismo antropofágico estava
consolidado.
De vento em popa, faz uma circunavegação inversa. Absorve a história e a
regurgita criativamente polemizando-a no plano da autonomia literária. É que, tendo
sido inventado no Brasil, sem mais o complexo colonizante, iria ser difundido e
disseminado justamente em terras lusitanas. Há de se perceber a extrema capacidade de
sínteses abordadas nesse espaço-tempo e suas imbricações sutis, típicas de nuances e
conceitos contidos nos manifestos Pau Brasil e Antropofágico.
O “Brasil I, Terra dos Papagaios”, de 1500, ressurge em 1931 com um olhar
sobre si mesmo, retro, atualizado, sincrônico tendo amparo nas contradições que o
geraram trazendo na medida da arquitetura poemática uma deglutição estética e
histórica. Em alguns de seus condimentos (cristianismo, culturas indígenas, bioma
tropical) lançados ou inspirados, respira o oxigênio da autonomia da sua identidade
cultural localizada em desfoques, sem maquiagens ou recalques. Neste sentido, o poeta
parece ter assimilado a complexidade da discussão desencadeada no processo de
descentralização do movimento modernista acontecido a partir do ano de 1924, quando
entrou em cena a questão da brasilidade reatualizada por meio, sobretudo, dos
manifestos citados neste trabalho.
70
4. CAPÍTULO 3 – Imagens da americanização: o novo na visão periférica 4.1. Lundu para Collen Moore
Em 1925, a comédia Smiles, o chapliniano Carlitos, a atriz Alma Rubens e o
gênero musical Foxtrote foram assimilados na poesia de Mário de Andrade. Nos seus
escritos dos anos de 1920 até os de 1940, havia preocupações relativas à arte
cinematográfica europeia e norte-americana, compreendendo a relação com a indústria,
técnicas de sonorização, pensamentos artísticos, de entretenimentos e também de
avaliação de compromissos estéticos. O texto e o cinema estavam por vezes imbricados,
vivenciados e, justamente por isso, indissociados. O poema “Fox-trot” pode ser
entendido por uma síntese que açambarca tais preocupações, cinema e poesia, onde o
diálogo crítico filmográfico é presente em versos modernistas:
FOX-TROT
Grande dança de hoje!... Cauboização da sociedade humana! O passo balançado, balançado, De quando em quando uma figura... Smiles... Carlitos anda fox-trot. Todos os homens Carlitos insinceros Na viravolta objetivando abulia. O par parou. Parou e recomeça. Smiles... Com sorrisos a América do Norte Vai vencendo a atonia universal Dollar! Forças convincentes do ouro em caixa! E a cada brasileira americanizada Valorizada É uma Alma Rubens sem alma Sem rubor... Smiles... O fim do mundo.
O cinema, a direção, a trilha sonora, a dança, a representação são pontos de
sustentação ou toques mordazes de alerta ao capital, ao dinheiro, à americanização da
produção. Nessa perspectiva, os países dependentes parecem condenados ao domínio de
http://www.whosdatedwho.com/tpx_2793698/motion-picture-magazine-united-states-7-august-1920/
71
um sistema que envolve interesses diversos. Foi assim que poeticamente se expressou o
poeta, conforme Paulo José da Silva Cunha (2010), em “Mário de Andrade: leitor e
crítico de Cinema”:
A análise das referências ao cinema no poeta Mário de Andrade e da captação de soluções cinematográficas na poesia dele vale um estudo de fôlego, no futuro. Esse estudo encontrará, por certo, um texto fundamental – o poema “fox-trot”. Encaixado em UMA
CONFERÊNCIA: CONDESCENDÊNCIA PRA DIVERTIR OS SÓCIOS DO
AUTOMÓVEL CLUBE, contribuição do modernista na Revista do Brasil de janeiro de 1925 (v. 28, a. 10, n° 109, p. 15-25, São Paulo), os versos, que também exploram a música e a dança da moda, têm a autoria revelada com humor. Mário, antes de apresentá-los, alude a si mesmo: “Mas em língua brasileira já um poeta maluco escreveu um fox-trot estilizado cujas imagens poderão interpretar os sentimentos dos músicos vivos que escrevem danças atuais artísticas”. E dá à poesia o encargo de transfigurar a comédia norte-americana Smiles, dirigida por Arvid E. Gillstrom, em 1919. Glosa, ao mesmo tempo, o nome da atriz Alma Rubens. Em sua biblioteca ficou a matriz de sua referência a Carlitos e ao fox-trot – “La Chapliniade ou Charlot poète: poéme drame film”, de Ivan Goll, na revista La Vie des Lettres, de julho, 1921, com desenhos de Léger. Em 1924, outra dança já ritmara passos, em Losango cáqui – “Por isso Cabo Machado anda maxixe.”35
É preciso perceber que o Foxtrote e o cinema americano eram linguagens
atreladas no Brasil, ao consumo de uma parcela da população que não dava conta nem
estava interessada nas batalhas travadas pelos intelectuais da irrequieta Semana de Arte
Moderna de 1922. O dia a dia paulista tem o registro da modernidade urbana, conforme
percebeu Mário da Silva Britto em uma análise36 do poema Abúlico, de Mário de
Andrade, publicado em 1923 na revista Klaxon (n. 8/9, dez. 1922/jan. 1923). O
ambiente receptivo e social da cidade e os sinais dos gostos da elite que repartia espaços
com outras atividades ganham visibilidade nos seguintes trechos da análise:
[...] a Light & Power, que vem promovendo a substituição dos velhos lampiões de gás pela claridade ofuscante da luz elétrica, o shimmy e o foxtrot, a música dos almofadinhas e melindrosas;
35 Esta citação e o poema “Fox-trot” foram transcritos de: http://www.ieb.usp.br/marioscriptor_2/escritos/mario-de-andrade-leitor-e-critico-de-cinema.html 36 Em “O alegre combate de Klaxon” – Introdução fac-símile dos 9 números da revista Klaxon: Mensário de Arte Moderna. São Paulo, 1976. Trechos da análise referida, transcritos do site: http://www.novomilenio.inf.br/santos/bondee.htm.
72
Mário de Andrade nacional os insere no clima do mundo, através de operações intelectuais que lhe trazem uma realidade e internacional em processo no plano político. (BRITO, 1976).
Nessa perspectiva de utilização da linguagem cinematográfica no escopo
poético é que Luís da Câmara Cascudo converge, no poema “Lundu de Collen Moore”,
em linha similar ao amigo Mário de Andrade, inserindo fotogramas, falas, música,
aspectos cênicos de filme norte-americano em flagrante contraponto aos elementos da
brasilidade:
Nesse ambiente textual é possível depositar a opção por atriz, mulher ou
companheira de características brasileiras relegando o estereótipo da estrangeira, Collen
Moore, num plano de adesão secundário. Em comum, os poetas exercitam uma
metacrítica, crítica entre culturas, metaforizadas, e alargadas em momento moderno
especial, não dentro de um ensaio, mas na luz difusa dos significantes e significados da
poesia. Seria a função do repensar para acima do estritamente cinematográfico ainda
que pontuada em duas atuantes atrizes americanas de sucesso, que foram Alma Rubens
e Collen Moore, somadas à idealizada e constituída tipologia dominante da mulher
brasileira, operando os contraditórios numa claríssima negação de valores neo-
colonizantes.
73
A protagonista de vários filmes produzidos nos Estados Unidos da América,
Collen Moore, comparada a uma provável atriz brasileira sem nome no poema, ficaria
refugada apesar de ser “gente de terra boa”. Traz no olhar pretas pupilas arredondadas,
“que lembra a gente espiando / e depois é se esquecendo” e só. Daí, não ultrapassa a
menina-do-olho miscigenada, nativa e permanente resultante de misturas de raças aqui
processadas em quatro séculos. É no olhar capitalista de Hollywood, no “Olho de gente
bem branca / que não mora no Brasil” que carrega indesejável dicção estrangeira e “fala
atrapalhada” gerando mensurações comparativas dos americanismos num jogo de
oposições donde quem se sobressai é o ícone da feminidade nacional.
Se em Mário de Andrade uma das saídas é o Foxtrote para Carlitos ou o
semblante melancólico decadente da famosa estrela Alma Rubens, falecida jovem por
dependência química enfrentando problemas no consumo de cocaína, em Luís Câmara
Cascudo é o afro-brasileiro “lundu” que é proposto para Collen Moore. Na guerra de
guerrilhas poéticas, a opção preferencial era para “meu-bem!”: uma dada expressão
imaterial, uma alcunha carinhosa e acolhedora de indisfarçável insígnia da femina,
sendo a imagem e configuração escolhida.
Ambos os poetas debulham produções de indústrias americanas destilando
ácidas e bem humoradas assertivas em torno das “forças convincentes do ouro em
caixa”, capazes de exercer inferências culturais no espaço periférico de recepção dessas
produções, onde “cada brasileira americanizada / valorizada / é uma Alma Rubens sem
alma / sem rubor...” e então, “Com sorrisos / A América do Norte / Vai vencendo a
atonia universal. / Dollar!”.
No poema “Fox-trot”, Mário de Andrade acentua a força da grana circulante
que pode penalizar e interferir negativamente em processo de formação cultural
gerando, entre outras possibilidades, o pastiche na literatura, na música, na dramaturgia
e no cinema. Naqueles anos, ao subscrever o Manifesto Antropófago, Oswald de
Andrade fazia blague, sarcástico, assinando e localizando sua publicação: “Em
Piratininga, Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”. Era a época de devorações
culturais, das absorções positivas e da defesa de “uma visão que bata nos cilindros dos
moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais sem
perder de vista o Museu Nacional” e ainda, o procedimento real de “como falamos.
Como somos”, conforme anunciava o Manifesto Pau-Brasil.
Assinale-se ainda que o mote da modalidade musical “lundu”, enquanto
recurso e distintivo de valor local, é utilizado por Mário de Andrade no poema “Lundu
74
do escritor difícil”, publicado na Revista de Antropofagia (n. 7, p. 3, nov. 1928):
No transcorrer do texto, emerge a expressão linguística e fonética da língua
brasileira no seu repertório etimológico diverso, até então, constituído e espalhado em
várias regiões do Brasil. Esses aspectos aparecem na evidente expressividade do
escrever, garimpar e do pronunciar palavras de modo que preconizava,
escancaradamente, o uso corrente da fala em verso, vaticinando: “fale, fala brasileira”.
Ou exacerbando em paranomásias de vogal aberta capazes de gerar rimas internas em
“Bajé, pixé, chué, oh “xavié”. Fechava o poema arrematando: “você sabe o francês
“singe” / Mas não sabe o que é guariba? / – Pois é macaco, seu mano, / Que só sabe o
que é da estranja”.
No título, o indicativo de possível marca de recolhas da tradição oral que
75
resultaram na divulgação do romance o Lundu do escravo. Essa pesquisa fora realizada
a partir de informantes e publicada com solfas no mesmo periódico (Revista de
Antropofagia. n. 5, p. 5, set. 1928). Obcecado que foi pela adoção do coloquial, declara
Mário de Andrade elevando o tom:
A fala dum povo é porventura, mais que a própria linguagem, a milhor característica, a mais íntima realidade senão da sua maneira de pensar, pelo menos da sua maneira de expressão verbal. É a luta perene entre o chamado “erro de gramática” e a verdade. (...) A língua realmente viva, a que vive pela boca e é irredutível a sinais convencionais, é o que dá sentido expressional duma nacionalidade. (ANDRADE, 1991, p. 96)
Luís Câmara Cascudo demonstrava, igualmente, vivo interesse quanto ao
modo de fala e pronúncia do povo, ficando isso externado várias vezes em
correspondências que manteve com Mário de Andrade apontando para a “(...)
gramatiquinha de falar brasileiro onde teremos registado o coleio dos modismos
regionais e a técnica de adaptações.” (22 ago. 1925 – CASCUDO, 2010, p. 55); depois,
relembrando: “Não esqueça a Gramatiquinha.” (9 mar. 1926 – CASCUDO, 2010, p.
93). Estimulando o amigo: “E a Gramatiquinha da fala brasileira? Não deixe esse título
se evaporar. Faça a gramática.” (26 jun. 1926 – CASCUDO, 2010, p. 112). Voltando à
carga, instigava alertando em agosto de 1926: “Não esqueça de ir pensando na
Gramatiquinha da fala brasileira. O Sertão está morrendo de progresso e os termos
bons e saborosos vêm à tona como náufragos teimosos.[...] A Gramatiquinha será – no
mínimo – um berro de alarme” (CASCUDO, 2010, p. 117). Como se pode depreender, a
pertinência de certos aspectos de pesquisa e proteção à língua não é coincidência nos
dois pesquisadores e não é á toa a convergência em nuances e problemáticas nos
poemas comparados.
Na verdade, é fato que tanto Mário de Andrade quanto Luís da Câmara
Cascudo estavam em campos de áreas de concentração comuns nesses momentos de
produção, quando inserem nos poemas a música e a defesa da língua brasileira no fazer
criativo envolvendo múltiplas linguagens. A inclusão da chamada “sétima arte” bem se
traduz na confrontação de ícones e alteridades advindas do universo cinematográfico.
No Brasil, o quadro era desolador pela inconsistência na produção e o oligopólio de
empresas distribuidoras estrangeiras do setor. Essa realidade levou o Estado, nos anos
de 1930, a intervir para tentar equilibrar os efeitos invasivos:
76
Mas os cineastas [...] estavam longe das preocupações modernistas e futuristas [...]. Com sua “atualização conservadora”, inspirada no cinema americano, visavam a uma inserção no mercado, e qualquer atitude de ruptura estética, essencial para os modernistas, não teria feito nenhum sentido para esses cineastas – cineastas de uma cinematografia quase inexistente [...]. Costuma-se dizer que o mercado cinematográfico interno foi conquistado pelo filme estrangeiro. [...] Mais correto seria dizer que ele foi criado por e para o filme estrangeiro, e dele a produção brasileira conquistou uma parcela. Quando os cineastas se deram conta que não tinham força para enfrentar os distribuidores estrangeiros, foram levados a solicitar apoio do estado. Pressionado pelos cineastas que começavam a se organizar – momento considerado como o nascimento da consciência cinematográfica no Brasil –, o governo baixou medidas estabelecendo reservas de mercado. Em 1932, no governo Getúlio Vargas, cria-se a exibição obrigatória de filmes de curta-metragem, o que foi posteriormente estendido aos longas. (BERNADET, 2002, p. 270).
Os dois poetas, sobretudo Mário de Andrade, enquanto produtores textuais
assistiam a filmes estrangeiros e, escudados na legitimidade da preservação de dados
nacionalistas do patrimônio cultural, se posicionam em seus poemas numa trincheira de
recusa ativa em contraste com a passividade dominante plasmada na recepção acrítica
dessa produção. Em ambos, a poesia incorporava o cinema e dela fazia parte.
Extrapolava limites de sua linguagem fílmica para assumir um discurso intertextual
defensor de identidades políticas, de realidades linguísticas. Essa visão crítica mereceu
o seguinte comentário de Francisco Alambert:
[...] o modernismo nas Américas tinha um caráter duplo. Por um lado era modernizante – para superar o caráter clássico (a cultura dos colonizadores ocupantes) –, tendo os olhos no capitalismo avançado e no socialismo, por outro lado era “primitivista” e “popular”, porque pensava as forças culturais que existiam e foram oprimidas pela colonização e seus desdobramentos. Mário de Andrade (como também Oswald de Andrade, aliás) percebia isso, e lançou a discussão. De sua pioneira “descoberta” do Aleijadinho e da cultura da “mestiçagem” até levantar a problemática da híbrida língua brasileira, esse foi seu problema central. Era esse também o peculiar “nacionalismo” de Mário de Andrade. O seu nacionalismo se define daquilo que os intelectuais da esquerda dos anos 50 (sobretudo Antonio Cândido) conceituarão como formação: um processo que “evolui” por contradições, acréscimos, etapas cumpridas e superadas buscando uma síntese que aliás, não se completou. [...] pensava o papel do povo no processo, incompleto, de substituição das elites no poder. Portanto não se tratava de um nacionalismo patrioteiro ou xenófobo. (ALAMBERT, 2006, p. 9. grifos meus).
77
Diante das questões suscitadas e considerando a hibridização de linguagens
no texto poético (imagem, fala, música, representação, coreografia, gestualidade,
inúmeros étimos) para levar a efeito uma posição quanto à contribuição ao processo
formativo, põe-se em relevo o poema “Lundu de Collen Moore”. Ele debate e rebate até
com divertimento a problemática multicultural engendrada no seu tempo e que diz
respeito à estética, tecnologia, mercado, produção artística. Vai da soberania do falar, da
hierarquização do olhar exprimindo favoritismo em resultados de etnias cruzadas e
desenvolvidas no processo histórico brasileiro, chegando à miscigenação singular.
Os dois poetas viram à distância e aplicaram o olhar de urubu-rei singularizado
em “Lundu do escritor difícil”: “Virtude de urubutinga / de enxergar tudo de longe”.
Não se sabe precisar a data da feitura do poema “Lundu de Collen Moore”, de
Luís da Câmara Cascudo, nem mesmo o modo como chegou às mãos do poeta Carlos
Drummond de Andrade. O leque de hipóteses permanece aberto: se por meio de
correspondência, se através de amigo comum ou se foi entregue a ele pelo próprio autor.
O poema foi publicado pelo poeta de Itabira em meio a crônica que escrevera para o
jornal Crítica, Política & letras, dirigido por João Calazans, em Recife, Pernambuco
(ano XVI, n. 6, ago./set. 1972). Tratava-se de uma edição comemorativa: “Câmara
Cascudo – sua vida – sua obra – sua glória”. Foi então que se teve notícia pela primeira
vez do “Lundu de Collen Moore”. O poeta mineiro declara:
[...] sabia da fase poética de Luís da Câmara Cascudo por haver recebido dele, em eras remotas, um ‘Sentimental epigrama para Prajadipock, Rei de Sião’, um reino ‘governador em francês’. Como também lhe conhecia” este ‘Lundu de Collen Moore’, que marca suas preferências nativistas sobre os mitos importados de hollywood,” [...] “é bem típico do nosso modo de dizer em 1929” (Grifos meus).
O ano de 1929 é, portanto, forte referência e não taxativa afirmação sobre a
data em que foi escrito o poema. Mas, como Carlos Drummond de Andrade o situa
nesse ano, levando em conta a linguagem e o desenvolvimento temático, é a partir dele
que nos situamos pontualmente. O poeta mineiro recebeu de Luís da Câmara Cascudo o
“Sentimental Epigrama...” e conhecia, somente lhe conhecia, sem deixar claro como
teve acesso ao conhecimento de “Lundu de Collen Moore”.
No enredo do “Lundu de Collen Moore”, verifica-se a presença de um ar de
deboche como uma das possíveis marcas caracterizadoras do lundu, gênero musical e de
78
dança tradicional do Brasil. Seria, esta presença, uma atitude de desrecalque geradora
do “contrapeso da originalidade nativa” (Manifesto Pau-Brasil) em função da negação
de valores internacionais neo-colonizantes37.
O poema põe em relação o primitivo (Lundu) e o moderno (cinematografia
estrangeira). Afloram os valores balizadores de traços femininos, linguísticos e da
indústria de entretenimento norte-americana. Assim, o olhar fugaz da atriz
cinematográfica norte-americana Collen Moore, estampado em tela num suposto filme
assistido pelo poeta, representa no filtro cascudiano a constante comparação ao olhar
anônimo e preferido da mulher nacional. Essa mulher brasileira é referida repetidamente
quando soam os versos repicados, “meu-bem!”. Aliás, há uma sutileza semântica
quando o poeta glosa “meu-bem” numa forma de tratamento respeitosa, educada, nunca
desprezando o senso de humor para com a artista americana. Já o “meu-bem!”
exclamado, enfático, aponta com ênfase para a preferência e predileção hierarquizada de
uma cumplicidade que pode ir do passional, afetivo, ao nacional cultural. Os olhos, o
mnemônico da cena, o branco da cor e o falar americano são os dotes não aceitos. Era a
“reação contra o assunto invasor”, ressaltaria a cartilha oswaldiana (Manifesto Pau-
Brasil), entrevendo a necessidade de não sobrepujar demandas de características das
“novas formas da indústria”, mas ao mesmo tempo preservar a “volta do sentido puro”
ou o ser “regional e puro em sua época”.
As questões modernizadoras nas letras e artes, passadas e repassadas no veio
modernista, recebiam variadas nuances de tratamento, fossem na linguagem poética, no
romance ou no cinema. Collen Moore tinha os olhos metaforizados na fruta nacional, a
jabuticaba preta. Esse recurso de linguagem valia para o tamanho, a forma e a cor.
Contudo, esse olhar desprezado pertencia a outras terras que não as do poeta:
O texto sugere uma sessão de cinema na qual o poeta é espectador e
37 Segundo Antonio Candido (1980, p. 119): “O nosso modernismo importa essencialmente, em sua fase heróica, na libertação de uma série de recalques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos triunfalmente à tona da consciência literária”. Trata-se, nessa perspectiva, das “componentes recalcadas da nacionalidade” que ganham expressão literária.
79
posteriormente, em ato contínuo, é conduzido a um processo criativo talvez análogo ao
que descreve Mário de Andrade no relato que faz a Manuel Bandeira sobre o processo
de criação do poema “Carnaval carioca” (incluído no livro Clã do jaboti): “Pois não é
que ontem começaram a se revelar fotografias e fotografias dentro de mim! Pois não é
que, no écran das folhas brancas, começou a desenrolar o filme moderníssimo dum
poema!” (Carta a Manuel Bandeira, fev. 1923. CORRESPONDÊNCIA, 2000, p. 85).
O cinema provocava em Mário de Andrade escritos reflexivos nos anos de
1920, quando publicou artigos na revista Klaxon, que é ilustrativa nesse sentido. Em
vários números, filmes e assuntos correlatos receberam atenção. Segundo Paulo José da
Silva Cunha (2010):
Embora no primeiro número de Klaxon, de 15 de maio de 1922, Mário defina o cinema como arte emblemática da modernidade, “a criação artística mais representativa da nossa época”, cabendo ao público “observar-lhe a lição”, as avaliações com referência ao estado de coisas do cinema, expressadas nos números subsequentes desse periódico, são bastante desfavoráveis. No sexto número, por exemplo, em 15 de outubro de 1922, condena nas fitas americanas “a complicação, que imprime a quase todas um caráter vaudevilesco muito pouco ou raramente vital”, e os “dizeres, muitas vezes pretensiosamente líricos ou cômicos”, concluindo que “a cinematografia é uma arte que possui muito poucas obras de arte”, pois as empresas produzem filmes que são “objetos de prazer mais ou menos discutível”, atraindo “o maior número de basbaques possível”.
Ainda segundo Cunha (2010), Mário de Andrade publicou três artigos no ano
de 1928, no Diário Nacional, onde “(...) problematiza a discussão ‘arte e indústria’,
questão inextrincável na avaliação de grande parte da crítica, considerando que a
produção dos filmes já envolvia mobilização de grandes somas de dinheiro”.
Na verdade, subjacente à temática do gênero musical e à postura cênica de um
dos ícones artísticos do cinema mudo e falado hollywoodiano, há no poema cascudiano
o confronto de valores exóticos americanos com valores estéticos nacionais. De pupilas,
apontando para a cor da tez indo até a “terra boa”, americana. No título do poema, a
receita já se encontra bem definida. Quando era de se esperar uma proposta de típica
vertente do jazz para Collen Moore, eis que Luís Câmara Cascudo propõe uma
brasilidade da dança e da sonoridade musical do lundu para a atriz num claro entre-
choque de culturas. O “lundu” de fulano ou beltrano – no caso em tela, o “de Colen
Moore” – era a manifestação de um chamamento instigando a enxergar na dança, nos
movimentos das meninas-dos-olhos pretas norte-americanas, e num pronunciar de
palavras estrangeiras, uma reflexão que se exigia naquele momento da literatura e da
arte brasileira: a noção inversa, ou seja, a de brasileirismo e nativismo ora discutidos
80
como base da autonomia cultural do país. Assim, “Olhos de ver no cinema” são
preteridos e vincados às tropicais jabuticabas, frutas escuras arredondadas e saborosas.
Olhos resumidos a imagens fugazes e reflexas que, ao invés de se fixarem na memória,
desaparecem no ato do olhar do espectador que não recorda o espiar da tela, da atriz, de
Collen Moore:
O que sobra é o espiar de quem olha para a tela, de quem assiste ao filme e se
desmemoria: “só lembra a gente espiando / e depois é se esquecendo”. Portanto,
imagens diluídas e rejeitadas de um irônico e ambíguo “meu-bem”. No atiçar do roteiro
do poema aludindo de pronto a um lundu para alguém que traz a representatividade e
parte do legado artístico de Hollywood, percebe-se que o poeta não o faz com nenhuma
ingenuidade ou acaso. Consciente das polêmicas envolvendo os preceitos modernistas,
os conceitos não alienados de brasileirismo, de regionalismo e primitivismo tecnizado
não lhe passariam ao largo. Cinema e mulher americana, música e mulher brasileira
estavam confrontadas e na escala de valores hierarquizadas em preferências. No
resultado poético, prevaleceria a cabocla, emblema da cultura nacional.
httpwww.whosdatedwho.comtpx_2793913motion-picture-
magazine-united-states-january-1927
81
Sabe-se que a indústria cinematográfica americana dos anos de 1920 e 1930
almejava o consumo e o divertimento. Mas a imagem em movimento da atriz padrão
transmudada no poema era algo novo que aparecia sob restrições fisionômicas e no
sotaque estrangeiro ou “estranja”, como diria Mário de Andrade no poema o “Lundu do
escritor difícil”. Não se aceitavam os atributos de “gente” residindo no exterior “que não
mora no Brasil” mesmo com “olho de terra boa”. A posição inarredável era a
preferência pela figura culta, a implícita figura morena que contraponteava nas
entrelinhas dos versos.
O “lundu” como tema e como gênero musical afro-brasileiro, contaminara
Mário de Andrade e, mais tarde Luís da Câmara Cascudo, que conhecia bem a música
popular, tocava piano, interpretava modinhas, valsas, tangos e maxixes. O espectro de
buscas e escolhas por áreas de pesquisas que se tornam pontos de intersecções na frente
evolutiva de estudos aberta por Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo é amplo e
amalgamado em uma tentativa de compreensão do Brasil. Assim, estudos folclóricos e
etnológicos participam de um movimento que se reflete na produção poética, de modo a
produzir um conhecimento profundo sobre os elementos que se manifestavam na cultura
da época.
Embora em quantidade numérica reduzida, os nove poemas de Câmara
Cascudo, em exame, revelam em intensidade qualitativa o que não seria estatisticamente
mensurável. A confluência e o diálogo desses temas da modernidade – poesia e cinema
–, as conquistas e as contradições impõem uma confrontação reflexiva para aquela etapa
importante do sistema literário brasileiro. O paradigma cinema e a arte literária,
trazendo múltiplas vozes, fazem um diferencial nos dois poemas analisados, ainda mais
quando se tem em mente a pouca anexação do tema em outros poetas modernistas38.
Nesse contexto, Mário de Andrade exercitou a crítica cinematográfica e se posicionou
38 Jean-Claude Bernardet informa que Modernismo praticamente não se relacionou com a produção cinegráfica: “O cinema dos modernistas só se realizou na literatura, o que logo foi assinalado, na prosa por A. C. Couto de Barros, ao comentar Os Condenados, romance de Oswaldo de Andrade: ‘O livro inaugurou em nosso meio técnica absolutamente nova, imprevista, cinematográfica’ e, na poesia, por Carlos Alberto de Araújo que imagina Mário de Andrade escrevendo Paulicéia desvairada: ‘Ele escreve, e, enquanto escreve, está vendo, está sentindo uma representação cinematográfica subconsciente’. Nos anos quarenta, Antonio Candido enfatizaria essa interpretação: ‘Seria mais certo dizer, como já se disse, que [Oswald de Andrade] lançou ostensivamente e em larga escala (no Brasil, pelo menos), a técnica cinematográfica. O que se observa n’Os Condenados é menos o processo do contraponto que o da descontinuidade cênica, a tentativa de simultaneidade, que obcecou o modernismo’, e a respeito de A revolução Melancólica: ‘este livro continua fielmente o cinematografismo e a síncope d’Os condenados’. Essa síntese continua até hoje. Haroldo de Campos comenta que a prosa de Oswald de Andrade “participa intimamente da sintaxe analógica do cinema (...)”. (BERNARDET, 2002, p. 269).
82
contra propostas entendidas naquela década histórica como supostas ameaças ao projeto
de modernidade brasileira, sem ignorar a produção local:
Em realidade, o modernismo não ignorou de todo a produção brasileira, pois Mário de Andrade chegou a comentar Do Rio a São Paulo para casar [Prod. Rossi Film. Direção José Medina, 1925], única crítica de filme brasileiro feita por modernistas. (...) As ressalvas dizem respeito ao fato de que os costumes dos personagens parecem mais americanos do que brasileiros (...)” (BERNARDET, 2002, p. 268).
Na crônica “Imagem de Cascudo”, o poeta de Alguma Poesia reencontra o
potiguar “nos longes de 1925, tangendo a lira nova”, reafirmando o que não era
“surpresa para mim que o sabia poeta modernista, não arrolado por Bandeira na sua
antologia (...)”. Faz-se necessário esclarecer, neste ponto, que Manuel Bandeira
conhecia o poeta Câmara Cascudo, tendo emitido a seguinte opinião sobre ele em carta
a Mário de Andrade, datada de 5 de março de 1927: “Vi uns poemas dele. Tenho visto
que está muito generalizado por demais os jogos florais do Guilherme sobre gostosas
vozes negras e índias. Fica bonito mas está muito parecido”. (CORRESPONDÊNCIA,
2000, p. 338).
Drummond guardava consigo o “Lundu de Collen Moore” que dava
publicidade pertencente a um escritor devotado às “coisas dignas de louvor, em sua
contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos
fundamente na espécie humana”, sentenciava. O vácuo detectado na quase despercebida
produção cinematográfica brasileira não escaparia da depuração da poesia de Mário de
Andrade nem da de Luís da Câmara Cascudo, salva esta por um dos que empunhavam
ideais e percepções similares aos protagonistas em foco.
4.2. Shimmy digerida no sertão
Luís Câmara Cascudo enviou para Mário de Andrade o poema “Shimmy” no
dia 10 de junho de 1925. Assinalou em carta que optou por um “tema solitário” como
observara Luis Emílio Souto, crítico argentino, a respeito do livro de livro Versos de la
calle, de 1924, do poeta comunista argentino Álvaro Yunque (1889 - 1982)
(CASCUDO, 2010, p. 44).
Em 13 de agosto de 1925, remeteu a poesia para Joaquim Inojosa, solicitando
83
a publicação em página dominical no Jornal do Commercio, de Recife, sugerindo
imodestamente a “página literária dos domingos em bom lugar”. Foi publicado naquele
periódico em 6 de setembro de 1925, e depois republicada no livro O Movimento
Modernista em Pernambuco (1968-1969), do escritor Joaquim Inojosa. Na carta
endereçada a Inojosa, no final dos versos de “Shimmy”, Câmara Cascudo anunciava o
livro autoral em nota de rodapé, assim dizendo: “do Brouhaha”. Ato contínuo, três dias
após, em 9 de setembro de 1925, indagava e afirmava no texto de outra carta para o
mesmo destinatário: “Admirou-se dos versos? Pois se lesse os outros... Pertencem a um
livro que sairá para o uso externo dos amigos. Chamar-se-á Caveira no campo de trigo.
Tem coisas estupendas!” (cf. INOJOSA, 1968-1969). Era a expressão de um desejo de
editar um livro que não se realizaria, mas provocaria a escrita de alguns poemas.
Aparentemente, ficara indefinida a titulação desejada – primeiro Brouhaha; segundo, o
informe de outra opção: Caveira em campo de trigo. A respeito de tal livro, diria Carlos
Drummond de Andrade: “se chamava “Bruaá” e em novembro passaria a intitular-se
“Caveira no Campo de Trigo”. Prosseguia o poeta itabirano na crônica “Imagem de
Cascudo” (1998, p. 15): “Nunca editou esse livro. O poeta Cascudo permaneceria
inédito, sufocado pelo folclorista e historiador”.
O pesquisador Américo de Oliveira Costa (1969) informa que a grafia correta
do título do poema seria “Shimmy” e não “Symmy” como fora divulgado no livro de
Joaquim Inojosa. Segundo ele, Luís da Câmara Cascudo confessara-lhe a opção por esse
título sabendo da alusão homônima à dança de procedência norte-americana muito
badalada na época – seu estilo era “trepidante”, aproximado e contemporâneo do
“charleston”.
Animado com a produção, Câmara Cascudo endereçara a seguinte mensagem
ao pernambucano Joaquim Inojosa, em carta (13 ago. 1925 – INOJOSA, 1968-1969):
Remeto duas poesias minhas. Não abra a boca... Minhas, sim senhor! Uma para o meu (e de V.) Mário e outra inteiramente sua. Sacuda-as na página literária dos domingos em bom lugar. E, se a tanto me ajudar o engenho, olhe carinhosamente a revisão. E mande uns dois números. Espace os versos. Um em cada domingo. Nos dois teremos tudo feito.
As duas poesias referidas são “Shimmy” e “Kakemono”. Essa última (que será
abordada no quarto capítulo deste trabalho), assim como o título do livro (Brouhaha) e
o da poesia em análise, reforça a predileção do poeta por titulações exóticas com
84
vocábulos que trazem no étimo raízes filológicas diversas. Some-se a essa
caracterização os poemas “Lundu para Collen Moore” e “Sentimental Epigrama para
Prajadipock Rei de Sião”.
Entre a versão publicada por Inojosa e a versão manuscrita enviada a Mário de
Andrade existem mudanças: supressões, acréscimos, trocas. São virgulações,
hífenização, reticências, pontuações, supressões, aglutinações e mudanças de palavras
variando em posições nos versos ou mesmo a substituição de alguns termos39.
Na carta para Mário de Andrade, é o próprio Luís da Câmara Cascudo quem
revisa a quarta estrofe, fazendo questão de um sexto verso rasurado, tachado abaixo do
verso prevalente parecendo mais uma dúvida ou ainda, uma alternativa, na expectativa
de uma posição quanto à leitura do seu destinatário. Percebe-se uma intercalação
vocabular onde algumas palavras mudam de situação como é o caso de “vibra” e
“estala”. Outras são substituídas: “Treme” por “espicha” em outra localização no verso:
39 Diferenças entre a versão publicada por Joaquim Inojosa (que chamaremos nesta nota de versão 1) e o manuscrito enviado a Mário de Andrade (que chamaremos nesta nota de versão 2): No título, “Symmy” trocando por “Shimmy”; “Branco, negro, ouro e mel” (na versão 2, o verso é composto e sem a conjunção aditiva “e”); “A pele se arruga e agita,” (vírgula em vez de ponto final); “E treme e estorce e avança” (“treme” substitui “freme” e há a supressão pronominal da partícula “se”); “E estaca, e demora, e cansa” (acréscimo de vírgulas no meio do verso e supressão da vírgula no final do verso); “E tudo dança no pó” (substituição de “sem dó” por “no pó”); “beleza tosca” por “fosca”; “E fica tremendo só... (opção por reticências substituindo ponto final ); “Como o fio de uma mola” (inclusão de “de uma”, no lugar da aglutinação “n’uma” ); “O brilho no lombo escorre” (supressão de pontos de reticências ao final do verso); “E fica soando mal.” (inclusão de ponto ao final do verso); “Vibra, estala, espicha, desce...” (na versão caligráfica, não existem reticências e sim ponto final); “Cede a cadência da dança” (em vez de: “Para a cadência da dança”); “Para o chocalho descansa” (na versão 2, consta “Cede o surdeio, descansa”);” E tudo cessa por fim” (no lugar de: “E tudo pára por fim” ).
85
Eis o poema recebido por Mário de Andrade (fonte: acervo do IEB/USP):
Reproduzimos, a seguir, a versão publicada no livro O Movimento Modernista
em Pernambuco (INOJOSA, 1968-1969, p. 285-387):
86
Nesta leitura, elegemos como versão fonte a que foi destinada ao poeta
87
modernista Mário de Andrade. A seguir, apresentamos uma exemplificação de
modificações no poema publicado no livro O Movimento Modernista em Pernambuco
de Joaquim Inojosa: na coluna à esquerda, versos da versão 1 publicada por Inojosa; na
coluna à direita, estão os versos do manuscrito (versão 2) enviado por Luis da Câmara
Cascudo em missiva a Mário de Andrade:
Percebe-se, na perspectiva do missivista Câmara Cascudo, um posicionamento
interessado na inclusão moderna. Curiosamente, ele assinalou na carta enviada a Mário
88
de Andrade, referida, a preferência por um “tema solitário”. Esse tema permitiria a
comparação entre Versos de la calle, do argentino Yunque, e o romance Memórias
Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade: “Yunque possui aquele
‘essencial expressivo’ que V. encontrou em João Miramar”. (CASCUDO, 2010, p. 44).
Essas remessas de escrituras, da poética argentina, da prosa oswaldiana e a
inflexão por um poema produzido dentro de espectro temático “solitário”, de uma visão
não dividida ou compartilhada, revela o controle e a consciência do poeta diante do seu
tempo e do fazer produtivo no contexto modernista instaurado. Ele traz à tona a
observação de Mário de Andrade sobre o “Miramar” e já a localiza em “la calle”. O
“tema solitário” pode ser entendido como exercício de um pensar exclusivo, de uma
poesia cuja temática pode ser tomada da rua, do sentimento popular, do que daí exala,
do árido sertão, do calor acachapante eximido da produção dominante em outras
demandas modernistas. Era mais uma intercalação naquilo que seu referente,
principalmente Álvaro Yunque, no plano de uma poesia engajada já havia mergulhado e
emergido: conscientemente, o “tema solitário”. Era, segundo ele, o “verso da rua com
tinta segura e sem nuança. É o tema solitário. E a propósito do tema – receba o Shimmy
que segue junto a esta carta” (CASCUDO, 2010, p. 44).
“Shimmy” acontecia dentro dessa perspectiva de poetização de modernidade e
da tentativa de um fecho em uma circunavegação livresca que não se concluiria. O livro
de poesia nunca haveria de ser publicado, por razões que se desconhece. Inconformado
por não ter acesso a esse material, Mário de Andrade faz, em 15 de março de 1926, um
apelo contundente ao amigo, declarando o interesse intelectual baseado na leitura de
poemas que já conhecia e sugere inclusive um título abrangente cabendo uma sub-
titulação nos três poemas relativos ao sertão (o “1”, o “2” e “3” ), ausentes de títulos:
Faz favor Luís, me mande o tal livro de versos que você estava escrevendo pra eu ler. Juro que tenho interesse não só de amizade mas intelectual nisso e terá ida e volta se você mandar os originais e não cópia. Mande tudo tudo, tenho fome de ler o que você fez em poesia. Agora mesmo escrevi um artigo para Mocidade sobre as Tendências da Poesia Modernista no Brasil, só citei dois poemas e um deles é o primeiro daqueles três que você me mandou, se lembra? Acho mesmo que você devia de continuar essas impressões de agreste tão sugestivas e tão simples. Que acha você de dar a todas elas um nome genérico de Agreste? Ou fazer como eu com os meus “Momentos” e “Paisagens”: “Momento n. 1”, “Momento n. 2”, “Paisagem n. 5” e assim por diante (CASCUDO, 2010, p. 97).
Em “Shimmy”, a luta poética tem uma base localista e uma guerrilha entre
89
culturas. O poema dialoga com a música-dança norte-americana como signo da
dominação cultural, tendo na contraposição um cenário, elementos e personagens
brasileiros: cobra cascavel, sol, besouro, maracá, mola de aço...
O leitor se depara, no poema, com a atitude modernista cascudiana, que traz
para seu mundo criativo uma provável serpente metalinguística na desenvoltura feroz e
sagaz, a evoluir em trejeitos sensuais de dançarina que a tudo come: do besouro à
simbolizada cultura importada americana. Na estilização cascudiana, o ofídio captura e
come um inseto, estabelecendo etapas da digestão ao dançar em inúmeros movimentos
num background americanizado.
O paradigma é a dança urbana afro-norte-americana, Shimmy, que atingiu boa
difusão nos anos 20 do século XX associada a uma dinâmica corporal. No poema,
contudo, a dança é clarificada sob um sol tropical extenuante. Na abertura, a proposição
de uma palavra que causa estranhamento, multiplicando semânticas, por meio do uso de
estrangeirismo a modo de provocação e ao mesmo tempo possível correlação com o
programa modernista: Shimmy! Nessa mesma linha, Oswald de Andrade experimentou
a aplicação correlata nos seus poemas Pau Brasil, trazendo argumentos bilingues de
origem externa: “cow-boy”, “chauffeurs”, “The spring”, “rendez-vous”,” New-Garden”,
“film”, “Chauffage” fazendo valer a assertiva presente no Manifesto antropofágico: “Só
me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”.
Luís da Câmara Cascudo se apossa de um sentido musical para então renomear
atitudes de um ofídio sobre um besouro que depois de abocanhado sob o “sol de chapa”,
dele só sobra o reflexo multicolorido ou “o brilho”. Daí decorre o ritmo do poema
ensejado por sucessivas evoluções performáticas – o “corpo inteiro palpita / A pele se
arruga e agita” – e o comportamento digestivo metafórico do animal: “Silva, ronca, bufa
e soa / O maracá que reboa / E tudo dança sem dó”.
A poetização se localiza “no país da cobra grande” bradado no recorrente
Manifesto Antropofágico, mostrando o “dorso da cascavel” exposto, o estômago cheio
depois de abocanhar o besouro sob o som de um shimmy: “Inda, vibra, mexe e bole /o
corpo anegrado e molle / Sustém o compasso enfim. / Para a cadência da dança / Cede o
surdeio, descansa / E tudo pára por fim”. Interessado no que é brasileiro e também no
que não é desde que o protagonismo advenha do local, Luís da Câmara Cascudo
encadeia o poético-musical, a dança da cascavel sob o sol e a sonoridade estrangeira
numa celebração do digerir e do aproveitar o que pode hibridizar e resultar numa nova
situação. Assimilar sem perder a identidade.
90
Como expressão de valor cultural externo, a dança “Shimmy” ganhava espaço
no Brasil, conforme se vê no seguinte texto de Gutemberg Medeiros (2009), que
recupera para a leitura o registro do fenômeno na crônica “Baile e divertimentos
suburbanos” do escritor Lima Barreto, publicada em 7 de janeiro de 1922:
Lima morou 17 anos no subúrbio carioca, a ponto de presenciar e registrar várias de suas modificações ao longo do tempo. Esse tipo de registro traz, para os dias de hoje, um manancial de memória social muito importante. Além disto, no final da vida alcançou um patamar também ensaístico presente em várias produções. Um exemplo contundente da presença destes dois aspectos encontra-se no texto “Bailes e divertimentos suburbanos” publicado no jornal Gazeta de Notícias, em 7 de fevereiro de 1922. . É justamente nesta produção que ele fala de sua “modesta residência, que para enfezar Copacabana, denominei ‘Vila Quilombo’". Barreto inicia o texto narrando algo aparentemente sem importância, pelo menos para ser estampado na página de um dos maiores jornais diários da época. Informa que há dias, quase em frente à sua casa, observou os vários preparativos para um baile. Ele narra que dormiu às 21h, quando o baile teve início com “polcas repicadas ao piano”. Acordou às duas horas da manhã e permaneceu assim até as quatro, quando o sarau terminou. Ao café da manhã, perguntou à irmã se não tocavam algo mais do que polcas nos bailes daqueles dias e onde estariam as valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras de antes. Ela respondeu que o que tocavam eram “músicas apolcadas, tocadas à la diable, que servem para dançar o tango, foxtrot, ragtime” e shimmy. A partir desse registro preciso, Lima começa a desfiar a memória, de como o baile “não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho a certeza de era profundamente carioca, especialmente suburbano” (Idem, p. 62). Não por acaso, temos em Triste fim de Policarpo Quaresma a defesa da modinha genuinamente brasileira como um dos elementos centrais da luta do protagonista pela valorização dos costumes locais. (cf. http://www.entretextos.jor.br/page_txt.asp?smn=2&txt=101&sbmn=5)
Nesse contexto, o missivista Luís da Câmara Cascudo alerta o amigo e autor
de Losango cáqui, sobre o sertão que, passando por transformações, vai “(...) morrendo
engolido pelos açudes, pisado pelo Ford, cego pela lâmpada elétrica. A menina qu’eu vi
reparando na gente pela fricha da porta, vive na capital, usa sapatinho vermelho e está
ensinando shimmy às primas da fazenda..” (em 26 jun. 1926. CASCUDO, 2010, p.
111. Grifo meu).
Na dialética do local e do cosmopolita, Luís da Câmara Cascudo se permitia
misturar música, dança, gestualidade, coreografia... E, principalmente, a assimilação de
recepções estéticas modernas sem perder de vista o fulcro de um primitivismo
91
constituído e estruturado desde a formação da história colonial brasileira até a sua
contemporaneidade.
O diálogo com o amigo Mário de Andrade, em que era citada a dança
estrangeira, fazia sentido no contexto da disseminação de produtos culturais
estrangeiros, os quais faziam parte do cenário social paulistano. Ademais, naquele
momento o país experimentava significativo processo migratório e de transformação
industrial e cultural. O poeta, ensaísta e crítico literário Mário da Silva Brito dá uma
panorâmica nesse aspecto, ao analisar o poema “Abulico”, de Mário de Andrade, que
fora publicado na revista Klaxon (n. 8/9, dez. 1922/jan. 1923) onde aparece o modismo
do shimmy refletido em extratos da sociedade conservadora:
[...] as novidades introduzidas no panorama citadino e social de então: o automóvel, e, dentro dele, o japonês, imigrante novo num Estado em que predominam a imigração italiana, a Light & Power, que vem promovendo a substituição dos velhos lampiões de gás pela claridade ofuscante da luz elétrica, o shimmy e o foxtrot, a música dos almofadinhas e melindrosas, o box, para lembrar alguns símbolos. (BRITO, 1976. Fonte: http://www.novomilenio.inf.br/santos/bondee.htm)
A penetração de traços culturais externos, opostos no olhar do poeta aos
valores interioranos onde se dançava “fobó”, “sambas na latada”, ameaça e o mesmo
tempo se hibridiza por meio de calçados, de coreografia, de cadência sonora
contemporânea da modalidade shimmy. Esse é o viés presente numa “dança de
procedência norte-americana”, oriundo da cidade grande e atingindo aspectos e até
mesmo comportamentos de um sertão permeável e insustentável na imutabilidade
cultural.
Na metáfora da deglutição, em que a cascavel brasileira dança ao som da
música estrangeira, as evoluções corpóreas acontecem a partir dos ataques e da
digestibilidade do “besouro” engolido, ou da cultura norte-americana devorada.
Resultaria do processo a apropriação – pois somente o ”brilho” do inseto “escapa” em
profusão de cores. Sobra o “brilho”, o irrefreável, ou os componentes que atingirão
extratos culturais urbanos receptivos e ao mesmo tempo quase parados, numa semi-
imobilidade de costume rural.
92
4.2.1. A serpente e a tradição
Como parte de uma tradição mais ampla, o símbolo da serpente se faz presente
em várias formas de pensamento. Exemplo expressivo é o do escritor francês Paul
Vallery, para quem a serpente em círculo seria o símbolo contínuo do pensar o
progresso humanístico. A simbologia é a base metafórica da continuidade progressiva e
evolutiva podendo ser identificada no desenho da cobra autofágica, aquela que morde a
própria cauda indicando circularidade de pensamento em constante avanço. Ela também
está na base da pesquisa, da fórmula hexagonal do benzeno, do químico alemão
Friedrich August Kekulé (século XIX). O cientista sonhou com átomos quando
pesquisava a estrutura molecular do benzeno, e no sonho, surgia uma configuração de
um movimento de serpente mordendo seu próprio rabo. Daí veio a inspiração para
concluir que essa estrutura indicaria o circulo fechado de carbono. Essa apreensão,
como informa Jung (2008) em O Homem e seus Símbolos, estaria ligada à reminiscência
de um antigo manuscrito grego do século III a.C., onde aparece o desenho de uma
serpente mordendo o próprio rabo, conforme é demonstrado na sequência imagética a
seguir:
Ilustração para o capítulo “Chegando ao inconsciente” de Carl G. Jung, integrante do livro O
Homem e seus Símbolos (2008).
93
Desenho e notações de Paul Vallery reproduzidas do livro Paul Vallery: A serpente e o pensar (1984).
Assim, provavelmente no rastro involuntário ou inconsciente de desenhos de
serpentes como tema do pensar e da pesquisa científica, a poesia cascudiana pode
apreender com singularidade a emblematização diversa desse animal. Em outra
hipótese, verifica-se a percepção particular de uma abordagem primitivista estetizada,
visualizada e musicalizada da fauna e da flora brasileiras, como também fizeram
Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Raul Bopp, Tarsila do Amaral e Heitor Villa-
Lobos40.
O primitivismo modernista reinventava o diálogo da cultura brasileira
“primitiva” com a cultura europeia. A escolha seletiva pertencia ao selvagem. Esse
diálogo era a tradução da antropofagia, que significava a devoração de valores advindos
do colonizador europeu e a consequente mistura aos valores brasileiros. Esses processos
estão contidos nos manifestos Pau Brasil e Antropofágico, onde a dependência cultural
é rechaçada. Contra uma literatura e uma arte acadêmica que ainda nos séculos XIX e
XX fincava raízes desde a colonização impondo modelos e uma produção sem vínculo
com a nacionalidade ou identitário próprio. Ideias de Jean-Jacques Rousseau, Michel
Montaigne, Sigmund Freud, Karl Marx, André Breton, Francis Picabia, Hans Staden
são influências perceptíveis nos manifestos modernistas. Era a “revolução caraíba” do
“bárbaro tecnizado” preconizada por Oswald de Andrade, “(...) a partir da ênfase no
primitivismo como arma crítica seletiva, com a imagem do selvagem que devora e
assimila apenas o que interessa, destruindo todo o resto” (TORRES, 2010). O
primitivismo é o contraponto, a originalidade latente no combate ao domínio cultural,
onde entra o parodístico, o humor.
Essas características, apresentando elementos localistas em diálogos com
estruturas formais estrangeiras advindas de conquistas vanguardistas, eram receitas do
movimento modernista para posicionar uma caracterização brasileira no âmbito da sua
autonomia cultural. A fórmula marcante trouxe ao centro das atenções conteúdos
diferenciados em sotaques regionais e gerou com a cultura aqui aportada um produto
genuíno marcando vistas ao processo de devolução ou exportação, conforme o
programa antropófago.
40 Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago; Mário de Andrade no Macunaíma,1928; Raul Bop em Cobra Norato, 1931; Tarsila do Amaral na tela Urutu no ovo, 1928; Heitor Villa-Lobos na composição Cascavel,1922.
94
A cascavel alegórica, sob um sol escaldante, é a figura central da tessitura do
poema que numa leitura óbvia aponta para o flagrante engolir e o rito dançante da
digestão de um besouro-shimmy. Uma imaginária serpente-dançarina sendo variável
inconstante, podendo também significar a metáfora da cultura brasileira frente à norte-
americana triturando-a, armazenando-a e depois, acomodando-a na conveniência
nacional. É dessa tensão e dilema entre o que é particular o universal que o poema se
tece e se pretende. Na última estrofe, aparece a serpente em processo final de
acomodação e descanso:
VI
Inda vibra, mexe e bole. O corpo anegrado e mole Sustém o compasso enfim. Para a cadência da dança Cede o surdeio, descança E tudo pára por fim.
Somando-se a essas nuances, advém a ratificação da experiência do poeta de
vivências visuais, de oitivas e pesquisas sertanejas burilando no texto o comportamento
mimético típico do animal, na situação exposta. Aplica cabalmente a interpretação
descritiva e a habilidade predadora da cobra hábil sob o sol a pino de uma dada região
seca e árida:
I
O sol lhe bate de chapa D’um besouro o brilho escapa Branco-negro-ouro-mel Rola, recua e se atira Volta, se encolhe e se estira O dorso da cascavel.
O desencadear pode ser em algum sertão profundo, profuso em insetos
multicoloridos, tendo o pedregulho de um descampado ou um lajedo de uma aba de
serra como ambiência para esse personagem capital. O poetificar, debruçar-se nesse
cenário trazendo a captura de um inseto idealizado para decantar a sutil visão de
estonteantes movimentos angulares de um ofídio comum e popular no Brasil e em parte
da América do Sul: a conhecida cascavel (Crotalus Durissus):
95
II
O corpo inteiro palpita A pele se arruga e agita, A língua fina dardeia E freme e estorce e avança E estaca e demora e cansa Ondula, vaga, volteia.
Do “besouro” apenas refletiu a luminosidade, o brilho, nada da sua
materialidade assaltada, mas algo impalpável, imaterial visualizando-se somente o feixe
de cores (“branco-negro-ouro-mel”) que em última instância pode ser o amálgama
cultural sintetizado no exercício da poetização. O que fica de instantâneo no
entrechoque de imagens é a autonomia de lidar com o exótico em trópicos dos “filhos
do sol mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente [...] No país da cobra
grande” (Manifesto Antropófago).
Entre a movimentação da estética moderna, hibridizada na conjunção de
elementos culturais interiores e exteriores, dominada naquele momento no sentimento
de auto-afirmação e a leitura regionalista de uma cena faunística modelada na
dissonância da “cobra / besouro”, Câmara Cascudo atrai a animação de imagens
acústicas. A tensão sub-reptícia da trilha de sonoridades afro-norte-americanas (a
rítmica do shimmy, enquanto dança colada ao gênero musical) mixadas à estetização de
tons naturais do maracá córneo percutidor, ativo ao final do rabo do ofídio em momento
de ataque, de reação, perpassa o texto e a lírica da poética-musical. Perfaz caminhos de
guizos, contraponteia, erotiza e “Alonga a beleza fosca / Da pele que vai e enrosca / E
fica tremendo só”. Encadeiam-se detalhes de cenas. Elementos saindo de lampejos
lúdicos onde o “brilho no lombo escorre... / Vibra estala, espicha, desce” e migram para
componentes poetizados da produção industrial (“como um fio de uma mola”), criando
sequências gestuais de movimentos, produzindo sinestesicamente a imagem de dança
serpenteada, intensa em voluptuosidade:
IV
O dorso acurva, se enrola Como o fio de uma mola. Incha, sopra, engorda, cresce, Sobe, pára, volta e corre O brilho no lombo escorre Vibra, estala, espicha e desce...
96
A recorrência à componente fabril (“como uma mola de aço / subindo numa
espiral”), em outro eixo interpretativo, é re-identificada aflorando a preocupação em
injetar repertório que indique sintonia de produto comercial e material oriundo de uma
peculiar tecnologia tipificada no desenvolver da revolução industrial. A peça figurada é
a mola, presente em automóveis, trens, aviões, motores a explosão, a propulsão,
impressoras gráficas41, projetores de filmes e outros inúmeros produtos ou subprodutos
da escala econômica das indústrias. Cabível é que o espiralado da mola remete à dança
da cascavel no seu rito predador e de apreensão de presa. Predar os inimigos e deles nos
fazermos “fortes e vingativos como o jabuti”. Essa a dominação do invasivo que
Câmara Cascudo persegue (a cascavel = “nunca fomos catequizados”; Shimmy =
“bárbaro tecnizado” ) re-criando uma mixagem cultural singular posta na metáfora
cascavel / besouro, propugnando um novo dado, novo conceito. Em tal contexto, o
ritmo do poema parece determinado, contraditoriamente, pelo processo de
modernização representado pelo componente fabril, se assim podemos ler a estrofe
seguinte:
V
Vai parando o movimento O maracá cede ao vento E fica soando mal. De pronto sacode o laço Como uma mola de aço Subindo numa espiral.
É patente na caligrafia cascudiana42 uma clara iconização da letra “c” da
palavra “cascavel”, desenhada na sinuosidade da letra “s” ao contrário, invertida,
sugerindo o desenho de uma serpente em posição de agressão. Essa postura, a do
desenho invertido da letra ‘s’, é típica de quando a serpente fica à espreita para dar um
bote ou quando decide ficar em estado de alerta podendo sair para o ataque. Podemos
observar esse comportamento gráfico no poema em pelo menos cinco situações: na
41 Ressalte-se que o pai de Câmara Cascudo era possuidor de uma tipografia e de uma loja-armazém que corresponderia ao que hoje são as lojas de departamentos. 42 Conforme manuscritos pesquisados no IEB/USP, no acervo de Mário de Andrade, onde se encontra correspondência de Câmara Cascudo para Mário de Andrade constando os poemas “1”, “2”, “3” e “Não gosto de sertão verde”.
97
titulação do poema “Shimmy” e quando grafa as palavras “sol”, “silva”, “subindo” e
“sustem”. O ‘s’ desenhado sintetiza um ideograma próprio para a serpente-cascavel,
para a serpente-dançarina a partir de um desenho curvilíneo, arbitrário em sua função
léxica. O poeta francês Paul Vallery já utilizara o procedimento de desenhar e iconizar
seus textos durante a edificação do seu processo criativo, desenhando serpentes.
Luís da Câmara Cascudo utilizaria essa situação em outros manuscritos de
poemas (o “1”; “3” e “Não gosto de sertão verde”), o que leva a se presumir que a
possibilidade desse procedimento não é mera coincidência. Se pensarmos ao contrário,
poderemos constatar pela busca consciente do escritor no ato de iconizar a serpente
enquanto forma gráfica de recorrências e de sua marca metafórica, conforme se vê nos
seguintes detalhes:
98
Numa luta mortal, exigente, a cascavel ganha a batalha, deglute o inseto. Ou a
serpente metarfoseada em grau de antropomorfismo, representando o feminino, vem a
ser a bailarina que decompõe a dança americana. Remodelando sua linguagem e
recodificando “a consciência enlatada”, a proposta poetizada de fragmentos
heterogêneos passa em revista o entrechoque de culturas e gera um conteúdo unificado e
de particularidade sem perda identitária. Ao final dessa batalha de culturas, a estetização
se lança na imagética da cor do corpo, no vibrar, no estagnar no ar se sustentando no
silêncio do compasso musical, na rítmica dançante. Depois, a serpente muda, sem
emissão de som se acomoda e, parecendo vitoriosa, se recolhe finalizando a disputa:
Inda vibra, mexe e bole. O corpo anegrado e mole Sustém o compasso enfim. Para a cadência da dança Cede o surdeio, descansa E tudo pára por fim.
Os poemas analisados neste capítulo – “Lundu de Collen Moore” e “Shimmy” –
revelam a perspectiva do poeta em relação à sua contemporaneidade, momento em que
ele se depara, na periferia do capitalismo, com a modernidade representada na cultura
norte-americana a exercer forte influência no Brasil. Entre a sedução, a resistência e a
atitude antropofágica com relação a essa cultura, o poeta elabora os poemas, cujas
representações da dança e do mundo do cinema ganham a marca irônica que reflete, por
meio dessas representações, o país que se modernizava.
99
5. CAPÍTULO 4 – Incursões poéticas: a poesia casual 5. 1. “kakemono”: exercício oriental-parnasiano
KAKEMONO (Para Joaquim Inojosa)
Deixa, meu fino lírio japonês Que o vento ulule fora da vidraça. Tens o corpo sonoro de uma taça E o teu quimono Que envolve tua cinta esguia e fina Dá-te um ar de princesa de neblina Num castelo de outono... Bem vês Que o vento ulula fora da vidraça E a chuva passa Para ver-te, meu lírio japonês...
As palavras “kakemono”, “quimono”, “lírio japonês” contidas no poema
“Kakemono” de Luís da Câmara Cascudo fazem alusão direta à cultura nipônica que
nos anos de 1920 tinha quase nenhuma reverberação na cultura brasileira e em
especificidade na produção literária potiguar. Nos textos dos modernistas brasileiros
em prosa ou em verso, mesmo considerando a expressão de formas de haicais
tradicionais trazidos já desde o início do século XX pela presença de imigrantes
japoneses no Brasil, não houve ao que se sabe, demanda que indicasse ressonância
direta ou de relativa influência.
Em 1919, o ensaísta e crítico literário Afrânio Peixoto (1875-1947) publicou
o livro Trovas Populares Brasileiras, onde juntava produção de trovas em quadras à
técnica lírica de tercetos em haicais. Mas o fato é que a brevidade em versos como
recurso de comunicação rápida viria a se colocar na modernidade literária brasileira
pela via francesa. A poesia contida em Pau Brasil, o livro de Oswald de Andrade, de
1925, trazia a síntese da poética condensada de coloração coloquial onde o “haikai
japonês, na sua concisão lapidar”. Esse acento está contido no prefácio escrito por
Paulo Prado (1869-1943) para aquele livro.
A técnica era reconhecida pela brevidade necessária ao novo modo de
produção textual. Aplicar solução econômica de versos, dizia Paulo Prado (1978, p.
70), numa “época apressada de rápidas realizações” e onde “a tendência é toda para a
100
expressão rude e nua de sensação e do sentimento, numa sinceridade total e sintética”
era premente e inarredável, acreditava o prefaciador. A poesia-minuto ou a poesia de
comunicação rápida, direta e objetiva era importante na avaliação dos seus inventores.
Uma necessidade da época, da ascensão e inserção das máquinas, dos veículos de altas
potências e da velocidade informacional no contexto de uma sociedade industrial e
mecanizada. Foi nesse aspecto que o autor do ensaio Retratos do Brasil (1928)
interpretou a fluência de coloquialismos e não eloquências oswaldianas quando
reproduziu um terceto saído de uma revista francesa que estava inserido numa
antologia de haicais organizada por Julien Vocance43:
Le poète japonais
Essuie son couteau: Cette fois l’éloquence est morte.
Paulo Prado apontava ainda a realidade de se “obter em comprimidos, minutos
de poesia”, já em maio de 1924, no mesmíssimo prefácio que escrevera sob o título
“Poesia Pau Brasil”, no referenciado livro de Oswald de Andrade. O prefaciador tentava
localizar a possibilidade de absorção da síntese da poética oriental na poesia moderna
brasileira. Esse paradigma se estabelece pelo viés europeu, exatamente pela literatura
francesa ou pela “via europeia”. É que vem à tona pela primeira vez no cerne de um
livro capital do movimento modernista, na análise de Paulo Prado, a situação emulativa
entre o terceto não retórico em grau de reforço e afirmação pela opção coincidente ou
intencional de Oswald de Andrade por um formato que remete ao hakai.
A produção vanguardística europeia propunha dentro do espectro do fazer
hakaísta uma das saídas possíveis para se fazer construções elaborativas no terreno da
confecção do texto. Segundo Paulo Franchetti (2008):
[...] Para os que se moviam aos confins do mundo em busca de um modelo alternativo ou antagônico aos rumos da sociedade burguesa ocidental, o Japão aparecia como uma espécie de paraíso perdido pré-
43 Segundo Paulo Franchetti em “O Haicai no Brasil” (2008): “Julien Vocance (pseudônimo de Joseph Seguin, 1878-1954), que publicara, em 1916, uma coletânea de haicais de sucesso, intitulada Cent visions de guerre, publica em 1921, no auge do prestígio da nova forma, uma arte poética em tercetos, na qual sistematiza as suas ideias sobre o haicai e o seu papel de exemplo de uma nova atitude poética. Trata-se da "Art Poétique", que saiu na revista La Connaissance.” No mesmo artigo, Paulo Franchetti informa: “Foi a primeira estrofe desse poema de combate por uma poesia condensada, objetiva e afastada da tradição da eloquência francesa que Paulo Prado tomou por haicai japonês e inseriu no prefácio ao volume Pau Brasil”.
101
industrial, milagrosamente protegido do contato com os poderes destrutivos do dinheiro e da técnica ocidentais.
[...] O haicai japonês aparece, então, como ideal de coloquialidade, de registro direto da sensação e do sentimento e como forma adequada ao tempo rápido do presente. E também como modelo literário não-europeu para o projeto nacionalista brasileiro, que visava, nas suas palavras, "romper os laços que nos amarram desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada".
[...] A primeira aparição significativa do haicai nas letras brasileiras ocorreu, portanto, por via européia, em consonância com o interesse que nele tiveram as vanguardas do primeiro pós-guerra. Nesse momento, nada indica, entretanto, que houvesse no Brasil alguma repercussão do interesse pela forma nas vanguardas em língua inglesa.
É sabido que o poeta modernista e tradutor Guilherme de Almeida, de quem
Luís da Câmara Cascudo era admirador, cultivou o gênero japonês tropicalizando-o,
titulando-o, fugindo da tradicional forma de confecção da poesia oriental. Há de se
ressaltar, porém, que o poema “Kakemono” fora publicado no Jornal do Commercio,
em Recife, em 13 de setembro de 1925, a partir de uma solicitação de Luís da Câmara
Cascudo ao amigo Joaquim Inojosa, a quem o poema seria dedicado44.
Os haicais de Guilherme de Almeida aconteceriam em publicação somente na
segunda metade dos anos de 1930, o que impossibilitaria algum tipo de influência desse
autor pela opção que fizera Luís da Câmara Cascudo ao produzir “Kakemono”. É
interessante, portanto, levar ainda em conta a ordem cronológica da produção em tela
dos três poetas: Oswald de Andrade em 1924, Luís da Câmara Cascudo em 1925 e
Guilherme de Almeida em 193645. No entanto, no livro Acaso46, com poemas escritos
44 Em carta escrita em 13 de agosto de 1925, com o seguinte parágrafo referente ao assunto: “Remetto duas poesias minhas. Não abra a bocca... Minhas sim senhor! Uma para o meu (e de V.) Mário e outra inteiramente sua. Sacuda-as na pagina litteraria dos domingos em bom lugar. E, se a tanto me ajudar o engenho, olhe carinhosamente a revisão. E mande uns dois números. Espace os versos. Um em cada domingo. Nos dois teremos tudo feito. Não sei quando devo ir. Lembre-me aos nossos.” Na carta seguinte, de 9 de setembro de 1925, Câmara Cascudo pergunta: “Admirou-se dos versos? Pois se lesse os outros... Pertencem a um livro que sairá para uso externo dos amigos. Chamar-se-á Caveira no campo de trigo. Tem coisas estupendas!” Fontes: Inojosa (1968-1969, p. 385-387) e anexos (material coletado no acervo do Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro) do relatório do projeto de pesquisa Consciência moderna e movimentos: o modernismo nas cartas trocadas entre Câmara Cascudo e Joaquim Inojosa (ARAÚJO, 2012). 45 Ano em que o poeta se encontra com o cônsul japonês no Brasil, Kozo Ichige. Em 28 de fevereiro de 1937, publicou o artigo “Os meus haicais”, no Estado de São Paulo. 46 O livro Encantamento, Acaso, Você. Seguidos dos haicais completos, organizado por Suzi Frankl Sperber, reúne três livros de Guilherme de Almeida, originalmente publicados em separado (Campinas: Editora da Unicamp, 2002).
102
entre 1924 e 1928, já aparecia a tradução de três haicais do poeta Matsuo Bashô, do
século XVII. No texto do segundo haicai destaca-se a imagem tradicional do
“quimono”:
I.
O vento do inverno assopra. Acendem-se e piscam os olhos dos gatos.
II.
Quimonos secando ao sol. Ah! a manga pequena do menino morto.
III.
Ah! o antigo açude! E quando uma rã mergulha, o marulho da água.
Perguntado sobre a evidência de interesses pelas formas de escritas orientais
por escritores da América Latina e sua crença quanto ao interesse de Oswald de
Andrade pelo haicai, o poeta concreto Haroldo de Campos responde47 não ser bem esse
o caminho perquirido pelo autor de Pau Brasil. No entanto, o enlevo do modernista
Guilherme de Almeida seria bem definido:
Há o caso do poeta Juan Tablada, no México, e no Brasil temos o caso curioso de um poeta que, embora não tenha propriamente uma articulação com a poesia oriental, tem uma vocação orientalizante, de síntese, que é o Oswald de Andrade, com sua poesia Pau-Brasil. Um poema como amor/humor é um poema-minuto, um quase haikai. (...) Eu não acredito que houvesse um interesse explícito. Havia, sim, essa vocação para a síntese que acabava se aproximando da poesia oriental. Agora, naquela geração, houve um exemplo bastante curioso de um grande amigo dele, modernista moderado, que era o Guilherme de Almeida, que não apenas foi o primeiro presidente da Associação Cultural Brasil-Japão, em São Paulo, como também inventou um sistema peculiar para traduzir haikais japoneses, usando rimas, com resultados às vezes muito interessantes. Ele conseguia breves poemas, luminosamente articulados em imagens e sons, próprios de
47 Entrevista concedida a Maria Esther Maciel, publicada com o título “Pontos de confluência: América Latina em diálogo com o Oriente - conversa com Haroldo de Campos” (MACIEL; CAMPOS, 2000).
103
um grande artesão. Aliás, ele era mais interessante como tradutor do que como poeta. Como poeta, era um modernista tradicional, e como tradutor teve momentos excelentes. (...) Dessas pessoas que trabalharam com o haikai nessa primeira geração do modernismo brasileiro, creio que Guilherme de Almeida foi o mais interessante. (MACIEL; CAMPOS, 2000).
Conjeturas à parte, é possível que a tendência orientalizante tenha advindo da
isolada decisão do autor de elaborar um poema com alteridade relativa aos parâmetros
estéticos da modernidade sustentada no brasileirismo e no diálogo com as formas de
vanguarda em voga na Europa 48. Neste caso, percebe-se uma mistura, no âmbito da
moeda corrente do modernismo, da estrutura construtiva do verso livre com resquícios e
lampejos da poética do parnaso que se apresenta no caminho construtor de Luís da
Câmara Cascudo.
O parnasianismo havia se apropriado de temas orientais, no decassílabo e em
verso alexandrino. É possível também observar em “Kakemono” variações nos versos
livres em dez, doze e onze sílabas. Nesse caso, Luís da Câmara Cascudo não sofreria
uma influência direta de fórmulas de haicais japoneses tradicionais ou mesmo as que
extrapolassem o rigor nipônico como aconteceria adiante aos haicais guilherminos, para
se falar ainda de um momento de rescaldo modernista dos anos de 1930, em que essa
forma de poesia reapareceria.
É sabido que, até a primeira metade dos anos de 1920, Câmara Cascudo
transitara em Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo e nessas estadias mantinha
contatos com escritores atuantes no movimento literário em curso, trocando ideias e
informações de interesses intelectuais. Por força do fluxo migratório, São Paulo seria,
dessas cidades, a que poderia oferecer um leque aberto para um tipo de recepção mais
diversificada. Em tal situação, o poeta Cascudo não receberia influxos lineares, mas
provavelmente apreenderia detalhes de micro-estéticas que sobressaltam na confecção e
estrutura de poemas orientais. À obviedade da temática, indiscutível quanto ao campo
orientalizante, acentue-se a apropriação de elementos linguísticos como fortes
referências semânticas e simbólicas de elementos característicos daquela cultura.
A relação com o artefato poético japonês em Luís da Câmara Cascudo pode ser,
portanto, remetida a outra ordem de interesse composicional diferindo de uma
48 A tendência orientalizante não estava ausente, por exemplo, no periódico modernista Klaxon. No segundo número da revista, aparece o texto “A Poesia Japonesa Contemporânea”, de Nico Hourigotchi (Klaxon: mensário de arte moderna, São Paulo, n. 2, p. 14, jun. 1922). Fonte: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01005520#page/1/mode/1up
104
aproximação mais intuitiva e mesmo fora de um eixo posteriormente cultivado na
adesão de Guilherme de Almeida. Este poeta criou regra própria para o haicai nacional,
fato que pode ser relacionado à afinidade e intercâmbio que mantinha em São Paulo,
seja por meio da instituição nipo-brasileira, seja como reflexo da comunidade japonesa
radicada no Brasil.
O título exótico, a exemplo dos poemas parnasianos “Vaso Grego” e “Vaso
Chinês”, de Alberto de Oliveira, indicia a pintura, o desenho ou o ideograma de uma
mulher sedutora de cintura afinada e de beleza oriental, comparada a uma planta esbelta,
flor de aroma inconfundível e forma exótica que é “lírio japonês”. A relação extrapola
para outro campo de modelação sintetizada numa taça de material indefinido, tudo
fazendo supor que a estrutura seja um suporte em suspensão, dependurado. Caquemono
é uma “peça decorativa japonesa (pintura ou caligrafia ideogramática em seda ou papel)
estreita e comprida, geralmente presa em rolo de madeira e suspensa verticalmente. De
etimologia japonesa kakemono, “coisa suspensa” é a significação encontrada no verbete
do vocábulo no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001). Note-se que, na
titulação, o poeta não abriu mão da grafia do étimo japonês.
A motivação do poema cascudiano em questão pode ter surgido, por outro
lado, de uma aproximação com a forma poemática japonesa a partir do interesse de
poetas da América Latina pelas formas de escritas orientais. Em artigo publicado em
192449, sobre o argentino Ricardo Gutierrez, Câmara Cascudo exalta o domínio do
verso livre e indica, entre as influências do poeta, o “fabuloso japonês Hito Maro”
(Kakinomoto no Hitomaro, autor de tanka – gênero poético clássico japonês,
caracterizado por poemas curtos). É possível que tenha lido o poema “Kakemono”
(1892), do cubano Julián del Casal (1863-1893)50, uma vez que, se era leitor de Rubén
Darío(1867-1916)51, provavelmente leu “Para uma cubana” e Para La misma”52, dois
49 “Ricardo Gutierrez”. A Imprensa, Natal, 25 abr. 1924. Inserido como capítulo no livro Joio (1924, p. 165-167). 50 Nesse poema, Julián del Casal retrata a sua amiga María Cay trajando um quimono. Informação coletada no artigo “Falando aos vivos e aos mortos: a ‘Oda a Julián del Casal’, de Lezama Lima” (IRBY, 2010). 51 Em textos cascudianos, esparsos, coletados por José Luiz Ferreira (2000), verifica-se a citação da poesia de Ruben Darío como um parâmetro de leitura de poetas da América Latina. Cf., como exemplo, “Froylan Turcios” (A Imprensa, Natal, 30 jan. 1924) e “Salvador Alfredo Gomis” (A Imprensa, Natal, 27 abr. 1924). 52 “Para uma cubana”, do livro Prosas Profanas y otros poemas (1908): “Poesía dulce y mística, / Busca á la blanca cubana / Que se asomó á la ventana / Como una visión artística. // Misteriosa y cabalística, / Puede dar celos á Diana, / Con su faz de porcelana / De una blancura eucarística. // .Llena de un prestigio asiático, / Roja, en el rostro enigmático, / Su boca púrpura finge // .Y al sonreírse ví en Ella / El resplandor de una estrella / Que fuese alma de una esfinge”.
105
poemas que o poeta nicaraguense escreveu inspirado na fotografia da María Cay, que já
inspirara antes o “Kakemono” de Julián Del Casal. Existem, inclusive, “curiosidades”
em torno da gênese dos poemas referidos:
Son muchas las anécdotas que se le conocen. Hemos leído que tenía pocos amigos, pero o bien no era así, o eran muy interesantes sus amistades. María Cay fue una de estas personas. La señorita Cay le regaló una foto a del Casal donde ella lucía un traje de japonesa el cual usó en un baile de disfraz. Bueno, tal foto no sólo dio lugar al poema “Kakemono” de del Casal. Cuando Rubén Darío lo visitó un año más tarde, vio la foto y la pluma del nicaragüense no se pudo contener. “Para una cubana” y “Para La misma” fueron inspiradas por María Cay. Debe de haber sido muy hermosa cuando con un kimono atrapó dos inmortales. Fonte: http://www.damisela.com/literatura/pais/cuba/autores/delcasal/index.htm (Copyright © 2000-2004 by Mariano Jimenez II and Mariano G. Jiménez and its licensors)
Para um efeito de melhor compreensão, leia-se o poema de Julián Del Casal:
Kakemono
Hastiada de reinar con la hermosura que te dio el cielo, por nativo dote, pediste al arte su potente auxilio para sentir el anhelado goce de ostentar la hermosura de las hijas del país de los anchos quitasoles pintados de doradas mariposas revoloteando entre azulinas flores. Borrando de tu faz el fondo níveo hiciste que adquiriera los colores pálidos de los rayos de la luna, cuando atraviesan los sonoros bosques de flexibles bambúes. Tus mejillas pintaste con el tinte que se esconde en el rojo cinabrio. Perfumaste de almizcle conservado en negro cofre tus formas virginales. Con obscura pluma de golondrina puesta al borde de ardiente pebetero, prolongaste de tus cejas el arco. Acomodose tu cuerpo erguido en amarilla estera
“Para La misma” , do livro Prosas Profanas y otros poemas (1908): “Miré al sentarme á la mesa, / Bañado en la luz del día / El retrato de María,/ La cubana-japonesa./ / El aire acaricia y besa / Como un amante lo haría,/ La orgullosa bizarría / De la cabellera espesa. // Diera un tesoro el Mikado / Por sentirse acariciado / Por princesa tan gentil, // Digna de que un gran pintor / La pinte junto á una flor / En un vaso de marfil”.
106
y, ante el espejo oval, montado en cobre, recogiste el raudal de tus cabellos con agujas de oro y blancas flores. Ornada tu belleza primitiva por diestra mano, con extraños dones, sumergiste tus miembros en el traje de seda japonesa. Era de corte imperial. Ostentaba ante los ojos el azul de brillantes gradaciones que tiene el cielo de la hermosa Yedo, el rojo que la luz deja en los bordes del raudo Kisogawa y la blancura jaspeada de fulgentes tornasoles que, a los granos de arroz en las espigas presta el sol con sus ígneos resplandores. Recamaban tu regia vestidura cigüeñas, mariposas y dragones hechos con áureos hilos. En tu busto ajustado por anchos ceñidores de crespón, amarillos crisântemos tu sierva colocó. Cogiendo entonces el abanico de marfil calado y plumas de avestruz, a los fulgores de encendidas arañas venecianas, mostraste tu hermosura en los salones, inundando de férvida alegria el alma de los tristes soñadores. ¡Cuán seductora estabas! ¡No más bella surgió la Emperatriz de los nipones en las pagodas de la santa Kioto o en la fiesta brillante de las flores! ¡Jamás ante una imagen tan hermosa quemaron los divinos sacerdotes granos de incienso en el robusto lomo de un elefante cincelado en bronce por hábil escultor! ¡El Yoshivara en su recinto no albergó una noche belleza que pudiera disputarle el lauro a tu belleza! ¡En los jarrones, biombos, platos, estuches y abanicos no trazaron los clásicos pintores figura femenina que reuniera tal número de hermosas perfecciones! * * * * * Envío * * * * * Viendo así retratada tu hermosura mis males olvidé. Dulces acordes quise arrancar del arpa de otros dias y, al no ver retornar mis ilusiones, sintió mi corazón glacial tristeza evocando el recuerdo de esa noche, como debe sentirla el árbol seco mirando que, al volver las estaciones, no renacen jamás sobre sus ramas
107
los capullos fragantes de las flores que le arrancó de entre sus verdes hojas el soplo de otoñales aquilones.
Os poemas de Julián Del Casal e de Câmara Cascudo apresentam relações
coincidentes além da titulação. O erotismo, o orientalismo, o quimono e a figura de
mulher se apresentam também no canto sensual do simbolista da ilha.
A imagem acústica – “cuando atraviesan los sonoros bosques / de flexibles
bambúes” – presente na segunda estrofe do poema de Julián del Casal reverbera na
sonoridade do poema cascudiano por meio da metáfora que dá um sentido à forma
feminina celebrando-a: “tens o corpo sonoro de uma taça...”. O deslocamento do som
migra dos “bosques” assoprados pelos ventos nos bambuais flexíveis, para ocupar outro
lugar nos traços corpóreos da feminilidade oriental, numa singular captura cascudiana: o
agudo cristal de uma taça.
Essa perquirição eletiva da mulher vai palmilhando outros encontros entre os
dois poetas. No olhar cubano, aparece o “corpo erguido em amarilla estera”; na releitura
cascudiana, o corpo vestido traz o “quimono, que envolve tua cinta esguia e fina”.
Julián del Casal centraliza a sua leitura do quimono nos seios da mulher, no busto antes,
destacando nele a padronagem oriental impressa ou pintada na peça têxtil: “tu regia
vestidura / cingüeñas mariposas e dragones”; adiante, “tu busto / ajustado por anchos
ceñidores / de crespon, amarillos crisantemos ” e “sumergiste tus miembros em el traje /
de seda japonesa. / Era de corte imperial.” Diferentemente, o “Kakemono” brasileiro
faz a opção pela “cinta esguia e fina” – o “fino lírio japonês” se destaca na cintura,
fazendo imaginar desenhos laterais simétricos e semi-arqueados. Se a roupa da mulher
cubana “Era de corte imperial” e a musa era “Emperatriz de los nipones”, também se
respira na língua brasileira um “ar” similar: “princesa de neblina / Num castelo de
outono”. Note-se que os versos finais do poema de Julián Del Casal são marcados pelo
sentimento de recordação e nostalgia evocando a estação outonal, o que traz outra
convergência entre os dois textos. No monólogo poético, Luís da Câmara Cascudo
alegoriza a persona feminina colando o formato do seu corpo ao “lírio japonês”
compondo-a num idílico “castelo de outono”. O poeta de língua espanhola, ornando a
“belleza primitiva” da homenageada, mostra-se entristecido por não mais conseguir
reestabelecer “mis ilusiones” e, por fim, compara o sentimento do seu coração ao
arranque de flores perfumadas “entre sus verdes hojas” pelo “el soplo de otoñales
108
aquilones”. Se em um poema o vento ulula, no outro, os ventos outonais arrebatam
fragrâncias de flores numa atitude que é irrepetível.
A proposta de abertura do enredo poético é o arrefecimento, apelando para a
mulher contemplada ignorar o ulular, o uivo do vento por fora do recinto em que se
encontra. No curso interno do texto, a personagem é enaltecida e, ato contínuo, no
fechamento ao final dos dois últimos versos, é instada a perceber a mutação
antropomorfa da “chuva” compactuando o olhar tendencioso do poeta: “E a chuva passa
/ Para ver-te, meu lírio japonês...”. Assim “o vento” uivante é desprezado e a “chuva” é
identificada na mostra de um olhar adesista.
O poema pode ser parte de uma cena real de uma mulher que ocuparia o
sentimento do poeta em certo espaço-tempo, provocando a confecção do texto ou uma
leitura pictórica, ideogramática, visualizada a partir de um caquemono. Em uma
primeira leitura, tem-se a captação cenográfica projetada para um quadro, um
caquemono exposto em algum recinto. Mas é possível também supor que a idealização
do poeta adviria de uma apropriação imagética, pictural, que o faria sentir e inventar o
poema partindo do próprio caquemono exposto em algum lugar, em anônimo ambiente.
À personificação da delgada forma feminina (“meu fino lírio japonês”) reservada em
lugar não caracterizado é sugerida a tolerância quanto à ventania plangente contida
através da vidraça translúcida. E nesse sentido, para além do lugar em que se encontra, o
vento possa uivar, lamentar “fora da vidraça”. O acento corporal feminino fora
poetizado em uma rara imagem acústica de um “corpo sonoro de uma taça”, delicada e
suscitando provável remessa de frequência aguda, consequente de um possível tilintar
sonoro de cristais, contrastando com o sombrio e grave som ululante. O verbo “deixar”
do primeiro verso secundariza o movimento do soprar de vento, que se apresenta
ameaçador, para em seguida privilegiar dotes físicos corporais e a roupa típica, o
quimono, trajada pela personagem central do poema (“E o teu quimono / Que envolve
tua cinta esguia e fina”).
Na edificação do texto, Luís da Câmara Cascudo salienta formas e provoca
sensualidade entrecruzando sutilezas implícitas na construção de versos, deixando
velada e não exteriorizada ou escancarada o corpo de linhas suaves e sinuosas da real ou
imaginária musa nipônica. A “cinta” é que é “esguia”, sugerindo que o corpo recoberto
pelo quimono é na realidade a forma modeladora encoberta e anterior à veste e seus
respectivos apetrechos. A cintura fina em semi-recortes curvilíneos é revelada pela
“cinta esguia e fina” e não pela visão física em si, da exposição corporal aberta
109
materializada ou escachada. Muito pelo contrário, adquire com um toque sinestésico, a
pulsação erótica misturada ao ar nobre das arquiteturas tradicionais seculares de castelos
orientais habitados por princesas na estação outonal, refinando e concedendo um “ar de
princesa de neblina / num castelo de outono”.
O vento que assopra sombrio ao fim do poema, fora do cômodo com alguma
janela, porta ou parede de vidro translúcido, não é ouvido. É olhado, é visto. À
personagem é dito num testemunho confirmatório: “Bem vês / que o vento ulula fora da
vidraça”, pois venta no exterior da transparência por onde os olhos se fixam desde o
início do poema. E aí, relativamente ao rumor da ventania, é colocado o implícito
desdém a algo não clarificado, um toque de ilação ou ameça: “Deixa meu fino lírio
japonês / Que o vento ulule fora da vidraça”. Protegidos do vento, dentro do recinto, as
personagens se situam espacialmente de modo a permitir uma leitura que desvenda o
ponto de vista do poeta. Conquistada essa situação espacial, o poeta dá à chuva o poder
da observação (“E a chuva passa / Para ver-te, meu lírio japonês”), numa posição
inversa daquela do “vento” (que é “olhado”). Agora quem espia para a provável
nipônica é a “chuva” que passeia para captar o “ar de princesa” enevoada. Essa
configuração feminina, frágil e requerendo proteção contra o vento agitado e agourento
em contraposição à neblina que a acolhe num olhar condescendente, é linguagem
tipificada na retórica rebuscada parnasiana quando a evocação feminina brota
idealizada.
Nessa idealização, O corpo de mulher se metaforiza num “lírio” e também numa
“taça” (imagem cara à poética parnasiana). A indumentária, no detalhe a cinta, afemina
o corpo ao extremo possibilitando uma elegância, uma aura digna de realeza presente
numa projeção de construção palaciana na estação do outono. Essa imagem contrasta
com a do vento que, sob o olhar da figura feminina celebrada, ulula a esmo, “fora da
vidraça”. Percebe-se, portanto, uma tensão entre os elementos internos e os externos do
espaço descrito, o que reforça a imagem da figura feminina idealizada.
Luís da Câmara Cascudo traz em “Kakemono” várias pistas de regras possíveis
e necessárias à invenção de haicais japoneses e as adaptações à brasileira. O “kigo” (ki
= palavra e go= estação) ou palavra da estação que é um preceito básico e abrangente
para a produção do tipo do poema japonês, elenca vários fatores constitutivos na
inventividade do poema, apontando para a estação em que o poema se situa.
110
A base são as quatro estações do ano, as quais remetem, na tradição, a estâncias
relativas a época, clima, geografia, fauna, flora, celebrações e vivências53. O
“Kakemono” traz sem absolutamente nenhuma rigidez o permear de kigos referentes à
época (outono, inverno); ao clima (vento, chuva, a roupa); à geografia (castelo,
caracterizando uma ilação à milenar tradição de traço arquitetônico de suntuosidade
japonesa encravado em áreas litorâneas do oceano pacífico, de modo a compor uma
geografia urbanística); e à flora representada na planta de denominação popular “lírio
japonês”. O kigo da mulher revestida de sensorialidade no momento, no instante, é a
plataforma principal do poema, a figura decantada re-significando condições líricas para
o poeta54.
A estrutura estrófica do “Kakemono” toda em versos livres não formais se
distancia das rígidas formatações dos sonetos da escola parnasiana, assimilando a
conquista de ruptura da versificação desaguada na modernidade. Assim, essa estrutura
passa a se constituir em elemento diferenciador na condução rítmica do texto.
Entretanto, há um mínimo de convivência descomprometida junto a versos
decassílabos. No procedimento parnasiano, esses foram tratados e cultuados dentro de
uma ótica de rebuscamento característico daquela escola literária. A apreensão de Luís
da Câmara Cascudo sintoniza-o à época, ao momento estético de produção que se
operava no poema moderno. Diria outro poeta, Manuel Bandeira (2008, p. XL):
“Costuma-se falar em verso metrificado e verso livre, como se algum abismo os
separasse”. Essa dualidade de elementos variando prioritariamente no moderno, mas
trazendo alguma reverberação do passado parnasiano, não inibe a voltagem lírica ou
mito-poética no poema que é a mulher romanticamente endeusada. Esses traços de
escolas que se antagonizam não são incomuns de se encontrar, uma vez que o autor se
permite permear por dadas influências sendo flagrado nessa relação cambiante. Por isso,
é possível localizar em autores modernos reminiscências de estatutos literários que
antecederam o modernismo em suas formulações e evocações poéticas.
No caso de Câmara Cascudo, falamos especulativamente de certo vocabulário
e sentimento haurido ou de alusão e não necessariamente adesão pura e simples ao fazer
da poesia parnasiana. Reportando-se à estrutura da poesia do Paulicéia Desvairada, de
53 O coaxar de sapos significa, por exemplo, a estação inverno; as floradas abundantes, a primavera. As estações anuais têm sua lista de kigos relativas às sete estâncias referidas (cf. MASUDA & ODA, 1996). 54 Segundo Paulo Franchetti (2008): “Em muitos casos, o kigo representa o aqui e o agora, a própria sensação que originou uma dada emoção; em outros tantos, permite criar, muito economicamente, o mood característico que envolve e atribui significado a uma dada impressão sensória. Daí a importância do kigo no haicai japonês.
111
Mário de Andrade, Alfredo Bosi (1979, p. 397. Grifos meus) identifica a ironia: “O
livro se fecha com o oratório profano As Enfibraturas do Ipiranga em que se alternam
os coros dos milionários (...) apoiados pela velha guarda parnasiana (“os
orientalismos convencionais”) e as vozes dos poetas modernistas (...), com o solo do
próprio poeta (...). A parte em oposição intervêm os operários e a gente pobre (...)”. Já
em Luís da Câmara Cascudo, nos versos do “Kakemono” se afigura certo contexto
linguístico que permite aproximá-lo do Via Lactea de Olavo Bilac. A musa decantada
em diferentes sondagens situa-se em alternados graus de temperatura informacional no
texto, em semelhança e coincidência repertorial. A figura feminina idealizada é o centro
dos poemas. Na evocação do poeta parnasiano, esse fulcro é tão contundente que os
sonetos se arquitetam, se usarmos a expressão de Antonio Candido (1999, p. 60),
“formando um roteiro de uma paixão, expressa com ênfase calorosa que parece
desmentir os pressupostos dessa corrente”, na linha do estilo parnasiano.
A mulher em “Kakemono” é imersa numa planta cuja flor é singular no
desenho, no aroma que é o “lírio japonês”. A ela é creditada uma aura, pelas vestes que
utiliza, vinculada a “orientalismos convencionais” nos quais se exaltam a própria
indumentária e apetrecho, exalando o “ar de princesa” que habita e transita num “castelo
de outono”. Em Via Lactea, contrariamente ao verso livre moderno, os sonetos
persistem no culto da forma e nos ornamentos verbais. Contudo, residirá no tema, como
realização plena, a interseção entre os dois poemas. No caso específico de Olavo Bilac,
a musa inspiradora transborda galanteada em versos, o mesmo acontecendo a Luís da
Câmara Cascudo55. Acontece, então, a convergência do tema vanglorioso e passional no
qual o poeta parnasiano “encontra o seu motivo mais caro, o amor sensual, vivido numa
fugaz exaltação” (BOSI, 1979, p. 255).
O poeta parnasiano Alberto de Oliveira (1859-1937) no soneto carregado de
tradicionalismo métrico, rítmico e rimas em vogais, titulado “Vaso Grego”, possibilita
outras conexões: “A taça amiga aos dedos seus tinia”. E adiante, no mesmo poema:
“Depois... Mais o lavor da taça admira / Toca-a, e o ouvido aproximando-a as bordas /
Fina hás de lhe ouvir, canora e doce”. Em confronto comparativo com as imagens
55 Em Poesias (1888), compreendendo trinta e cinco sonetos agrupados sob o título de Via Láctea, Olavo Bilac escreve versos que encontram ressonâncias imagéticas na linguagem cascudiana. Identificamos fragmentos nos quais se percebe um jogo de relações poéticas inter-cambiantes e correspondentes: a) “ouro mais limpo vestia” e “cândida armadura” = “E o teu quimono / que envolve tua cinta esguia e fina”; b) “canção sonora” = “Tens o corpo sonoro”; c) “palpitam flores”, “perfume cálido de rosas” e “rosa do jardim” = “meu fino lírio japonês”; d) “Em teu seio mais alvo que a neblina”, “Por essas noites frias e brumosas”, “névoa cresce” e “manto das neblinas” = ”Dá-te um ar de princesa de neblina / Num castelo de outono”; e) “Lá fora a voz do vento ulule, rouca”, “o vento é um choro” = “Que o vento ulule fora da vidraça”, ”que o vento ulula fora da vidraça”.
112
sinestésicas elaboradas por Luís da Câmara Cascudo, as evidências são cabais. A taça,
elemento utilitário, presente no poema, tem som e é possível escutá-la sem esforço, pois
o poeta é direto: “A taça amiga... / “Fina hás de ouvir, canora e doce”. Em “Kakemono”
a feminilidade da taça é fato consumado e por parataxe simboliza o corpo de mulher
atestando que a musa celebrada no poema tenha o “corpo sonoro de uma taça”. Se em
Alberto de Oliveira “A taça amiga aos dedos tinia” e é “fina”, em Luís da Câmara
Cascudo seu design ou funcionalidade alimenta a delicadeza corporal vibrante, musical
e a finura de mulher materializada em cintura proporcionalmente delgada e sensual.
É factível que a opção utilizada em “Kakemono” tenha a ver também com a
assertiva do poeta, argumentada quando escreveu no posfácio do Livro de Poemas de
Jorge Fernandes, em 1927: “Modernistas confundem verso livre com livre-ritmo, alma
velha fingindo elegâncias novinhas”. (CASCUDO, 2007). Tratava-se de uma referência
à série “Meu Poema Parnasiano”, constando de seis poemas onde “A coerência de Jorge
Fernandes é incoerente”: o poeta autor do Livro de Poemas evocava o passado
atualizando-o em versos livres modernos. Esse dilema hibridizado pelo sentimento
lírico passadista e a re-escrita sintonizada na modernidade dá a liga, o amálgama, o
vértice comum entre os dois poetas.
A incursão parnasiana na tessitura do poema de Luís da Câmara Cascudo pode
ser vista no contexto das rupturas propostas pelo movimento modernista. O poema
“Kakemono” dialoga com normas, formas e repertórios de ambas as escolas,
produzindo um poema híbrido recorrente a aspectos relativos às duas. Então, o
parnasianismo de modo particular e diverso é possível ter carimbado poemas de Jorge
Fernandes, Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo. É possível pensar que não há
dilema na construção do poema e sim uma consciência da tensão que se mantém no
interior do seu corpus. Quanto a Julián del Casal, sua linguagem é correspondente, no
âmbito hispânico, ao simbolismo. A tradição parnasiana, nesses casos, teria sido
assimilada sem prejuízo à contribuição da poética modernista.
113
5.2. A voz traduzida de Whitman
Como demonstram as referências estudadas, as produções poéticas de Luís da
Câmara Cascudo aconteceram entre o final dos anos de 1920 e início dos anos de 1930,
sempre vinculadas ao espaço e ao tempo da modernidade literária do século XX. Mas a
sua relação com o gênero da poesia e com o tema da modernidade permanece ainda ao
longo dos conturbados anos 1940, como se percebe pelo seu interesse na tradução56 de
três poemas do norte-americano Walt Whitman (1819-1892), poeta de voltagem poética
referenciada inclusive pelas vanguardas históricas. Os poemas traduzidos foram
publicados no jornal natalense A República, nos dias de 18, 24 e 25 de abril de 1945,
respectivamente.
A incursão em textos whitmanianos que decodificavam aspectos
desencadeadores da modernidade literária resultaria na opção de tradução de três
poemas: “I Hear American Singing” (“Eu Ouço a América Cantando”), “The Base Of
All Metaphysics”(“A Base de Toda a Metafísica”) e “For you, Democracy” (“Para
Você, Democracia”). Eis as traduções elaboradas por Câmara Cascudo:
I HEAR AMERICA SINGING
Eu ouço a América cantar! Ouço os variados cantos, Os dos mecânicos, cada um cantando como se fosse jovial e forte! O carpinteiro cantando e medindo vigas e pranchas! O marceneiro começando ou findando sua tarefa, e cantando. O barqueiro cantando o que lhe pertence no barco, o estivador cantando Na coberta das barcas!... O sapateiro cantando, sentado no seu banco, e o chapeleiro, cantando de pé. A cantiga do lenhador, a do lavrador no seu caminho matinal! Na pausa do meio-dia ou ao entardecer... A deliciosa canção das mães, ou das moças trabalhando, os das meninas, Costurando ou lavando... Cada um cantando o que é seu, o que é alheio ou de ninguém! O dia pertence ao dia – À noite a reunião dos jovens companheiros, Fortes, afetuosamente. Cantando a plenos pulmões sua ardente canção melodiosa!
56 Na mesma década, Câmara Cascudo traduziu também Montaigne e o Índio Brasileiro (tradução e notas do capítulo “Des caniballes” do Essais, de Montaigne - São Paulo: Cadernos da Hora Presente, 1940) e Viagens ao Nordeste do Brasil, de Henry Koster (São Paulo: Editora Nacional, 1942).
114
THE BASE OF ALL METAPHYSICS
E agora, senhores, Eu deixo uma palavra para conservardes na memória e no pensamento, Como fundamento e base de todas as metafísicas. (Assim é para os estudantes o velho professor, encerrando o rigoroso curso) Tendo estudado os novos e velhos sistemas gregos e germânicos. Estudando e examinando Kant, Schelling e Hegel, Estudando a ciência de Platão e de Sócrates, maior que Platão; E mais que Sócrates pesquisou e fixou, longamente estudou o Cristo Divino. Vejo hoje as lembranças dos sistemas gregos e germânicos, Vejo todas as filosofias, vejo Igrejas Cristãs e dogmas, Ainda abaixo de Sócrates vejo claramente, e abaixo do divino Cristo vejo O devotamento do Homem pelo seu Companheiro, atração do amigo pelo amigo. Do fiel marido pela esposa, dos filhos pelos pais, Da cidade pela cidade, da terra pela terra!
FOR YOU, O DEMOCRACY
Venham! Farei o Continente indissolúvel, Farei a mais esplêndida raça que o sol já alumiou! Farei as terras divinas e magnéticas, Com o amor dos companheiros, Com o permanente amor dos companheiros! Plantarei a fraternidade como árvores ao longo dos rios d’América! Ao longo das praias dos grandes lagos, e sobre todas as campinas! Farei as Cidades inseparáveis, com seus braços enlaçados! Com o amor dos companheiros! Com o nobre amor dos companheiros! Por ti! Para servir-te, tudo isto vem de mim, ó Democracia! Ó minha esposa! Por ti, por ti eu canto esta canção!...
Fonte: Três Poemas de Walt Whitman. Cascudo, Luís da Câmara. Recife: Imprensa Oficial, Coleção Concórdia, 1957. htpp://www.cascudo.org.br.biblioteca/ obra/decascudo/poesias/?p=2
O aceno pioneiro aos poemas traduzidos teria como perspectiva uma leitura
universalizada e cosmopolita intencionada numa difusão local, lançada que fora
inicialmente em periódico natalense, de circulação relativamente restrita. Doze anos
depois, a tradução seria publicada em Recife, na Imprensa Oficial de Pernambuco
(1957), numa plaquete trazendo uma edição com caráter livresco acompanhada de
introdução autoral. Essa demanda acontece após a produção da chamada segunda fase
modernista compreendida nos anos de 1930. A importância da publicação é destacada
por Ivo Barroso:
O interesse pela obra de Whitman entre nós pode ser assinalado desde 1945, quando Luís da Câmara Cascudo publicou n´A
115
República, de Natal, três artigos que incluíam as traduções dos poemas I hear America singing, The base of all Metaphysics e For you, o Democracy. Já nessa época, o nosso grande folclorista reconhecia em Whitman “um dos mais difíceis originais para tradução. Um Whitman traduzido é uma diminuição infalível. O grande, imenso poeta, só o será em inglês, na plenitude de sua originalidade poderosa, manejando os recursos do seu gênio, acumulador de nuvens e espalhador de ritmos maravilhosos”. (BARROSO, 2011)57.
Percebemos, na leitura dos poemas, a recorrências ao “Cristo Divino”, ao
“devotamento do Homem ao seu Companheiro” e ao cantante continente “América”,
além de apontamentos de leituras da filosofia clássica. A América fraterna, a
democracia, os barqueiros, carpinteiros, Hegel, Kant, Platão, Shelling cabiam nas
muitas vozes de Walt Whitman repercutidas em versos que utopicamente supunham as
“Cidades inseparáveis”, as cidades idílicas dos devotamentos do “fiel marido pela
esposa / dos filhos pelos pais / Da cidade pela cidade / da terra pela terra”.
As traduções referidas podem ser vistas como exercícios poéticos, com o fim
de reelaborar em outro idioma as poesias do norte-americano antecipador de estéticas
novas e contemporâneas que, entre a prosa e a poesia, cantou libertariamente a
“esposa”, a “democracia, a “América” e seus subempregados (marceneiros, mecânicos,
lenhador, sapateiro) de forma associada à quebra de tabus comportamentais como o
homossexualismo (“À noite a reunião de jovens companheiros, fortes,
afetuosamente.”)58 e de temas que em outras poetagens abordam o bisexualismo, o
feminismo e o preconceito de cor.
57 Ainda segundo Ivo Barroso, o poema “The Base Of All Metaphysics” foi traduzido também por Manuel Ferreira Santos e incluído em O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos (Ediouro, s/d). Acrescenta ainda, demonstrando a importância da tradução cascudiana: “Seguindo-lhe os passos, Gilberto Freyre, em uma conferência na Sociedade dos Amigos da América, em maio de 1947, referia-se à originalidade e ao pioneirismo daquele “anglo-americano que primeiro exaltou em poema a figura de uma negra” e, analisando a atuação poético-política do vate, dizia que, “não obstante sua confiança no homem comum, Whitman enxergou sempre a necessidade, nos postos de comando – de puro comando, nunca de domínio – do homem incomum.” Toda a digressão de Freyre é focada na conceituação de Democracia e nas interpretações políticas de Whitman, para quem o “barco democrático não devia ser feito só para os ventos bons”, mas para enfrentar igualmente as tempestades (Ship of the hope of the world – Ship of Promise / Welcome the storm – welcome the trial)”. (BARROSO, 2011. Grifos meus). 58 No estudo já citado, Ivo Barroso (2011) ressalta a leitura de Gilberto Freyre sobre esse tema e afirma que o sociólogo pernambucano não se inibe de abordar a questão-chave do homossexualismo de Whitman, como neste trecho em que cita Freyre: “O que teve parece que foi principalmente a coragem de grandes amizades com outros homens (algumas – admita-se – de remoto ou imediato fundo homossexual) ao lado de entusiasmos por ‘mulheres perfeitas’. O que põe em destaque seu bi-sexualismo de atitude; e o ‘narcisismo’ de exaltar a beleza do corpo humano – a do homem tanto quanto a da mulher – e não apenas a graça e o encanto do corpo da mulher visto com olhos de homem. Um homossexual inveterado dificilmente teria escrito poema tão compreensivo do sexo oposto e, ao mesmo tempo, tão masculino em
116
As traduções publicadas em 1945 estão situadas em um contexto especial.
Além do significado de uma atualização e da retomada do contato com um texto
influenciador da escritura da poesia e da prosa modernas, a voz whitmaniana se junta a
um coro de vozes estrangeiras que ressoava nas ruas da Natal nos anos 1940, quando a
cidade se viu literalmente invadida pelas tropas americanas em combate na 2ª Guerra
Mundial. Traduzir Walt Whitman, nesse contexto, seria uma tentativa de compreensão
daquelas vozes. A esse respeito, o próprio Câmara Cascudo depõe sobre o movimento
de “Parnamirim Field”, a base aérea sob administração norte-americana:
Parnamirim, índice do tempo, tinha todas as manifestações da vida norte-americana. O correspondente de guerra Ernie Pyle, que morreria desembarcando em Okinawa, dirigiu um programa, direto para Nova Iorque, para a Columbia Broadcasting System. Estrelas de todos os tamanhos cantaram, dançaram, beberam e assobiaram para os soldados, marinheiros, aviadores e as meninas glamorosas da WAAC (Womem American Auxiliary Corp), que aprenderam o samba em Parnamirim e o nado em Ponta Negra. (CASCUDO, 1999, p. 423).
O seguinte depoimento é significativo como atualização da imagem que o poeta
tem do povo celebrado por Whitmam, em um novo contexto. A leitura se dava á luz da
teoria de Bronislaw Malinowski (Theory of Needs). Para contextualizar, Câmara
Cascudo cita o poeta El Macrizi em tradução não referida59 e inicia a reflexão com a
assertiva “A vida faz-se apagar nos seus aparentes favores. Compensações
melancólicas”, com o objetivo de compreender o que viu durante a ocupação americana
e contrapor a uma espécie de normalidade brasileira:
Durante a guerra (1942-45), trabalhando na Defesa Civil de Natal, freqüentei Parnamirim Field [...]. Atores e atrizes de primeira grandeza vinham dar shows animadores. Os mais estridentemente famosos e as mais visceralmente temperamentais. Não houve “glória” cinematográfica que eu não encontrasse em Parnamirim. Uma característica era a mobilidade, inquieta, incessante, ansiosa, numa expectativa dolorosa de má notícia e desgraça. Estavam sempre andando, falando, a fisionomia cheia de perguntas, os olhos sem pouso. [...]. Nenhum me daria a imagem fugitiva da felicidade relativa, do bem-estar físico, a tranqüila posse de notoriedade. Para
sua atitude como A woman waits for me. Apenas, a mulher por ele idealizada não era a lânguida, a frágil, a excessivamente delicada das civilizações caracterizadas por um tal domínio econômico do Homem sobre a Mulher em que esta é antes um sub-sexo do que o sexo oposto”. 59 Os versos são (provavelmente, traduzidos por Cascudo): “– Vou ao deserto, disse a Miséria. / – E eu também, falou a saúde. // – Vou para a Síria, diz a razão. / Acompanhou a Rebelião. / – Vou para o Egito, fala a abundância. / A companheira foi a Resignação”.
117
que tanta batalha? Much A do About Nothing. O riso era uma representação perfeita. Não percebiam, realmente, o que recebiam ou compravam. O cabo, chauffeur da polícia, que me levara, resumiu a impressão surpreendida: – Que gente agoniada. (CASCUDO, 1997, p. 193. Grifos meus).
Ainda no ano de 1945, Câmara Cascudo publicou as suas traduções em
“Pensamento da América”, suplemento literário pan-americano do jornal oficial do
Estado Novo, A Manhã. “Pensamento da América” foi publicado de 1941 a 1948, sendo
dirigido por Ribeiro Couto entre 1941 e 1943)60 e por Renato Almeida (musicólogo,
Chefe do Serviço de Informação do Ministério das Relações Exteriores) entre 1943 e
1945. A direção de Renato Almeida deu uma grande visibilidade aos estudos do
folclore, motivo pelo qual a colaboração cascudiana se fez relevante, segundo Ana
Luíza Beraba (2008, p. 82-84):
Não é por menos que, por essa época, começou a colaborar com o suplemento o folclorista Luís da Câmara Cascudo. Depois de aparecer como poeta no já citado número sobre negros, editado por Ribeiro Couto, ele estreou como articulista, em julho de 1943, com um curioso artigo intitulado “Plano nacional para a investigação folclórica”, onde revelava que El Salvador é o primeiro país americano a iniciar um plano sistemático de investigação folclórica. [...] E comemora, evocando lendas brasileiras, em cobrança indireta ao nosso governo: “Como o folclore vive enrolado com as fadas e os Curupiras, Juruparis e mães-d’água, pode ser que, num recanto de El Salvador, esses duendes dancem e cantem, solidários nas bênções (sic) ao Governo que se lembrou deles”. Colaborador assíduo até maio de 1945, Câmara Cascudo aparece como tradutor do dominicano Fabio Fiallo e de Walt Whitman, mas sua maior contribuição são seus artigos e apresentações de contos folclóricos latino-americanos. (p. 82-84)
Além de ganharem notoriedade nacional, as traduções de Walt Whitman
repercutiram na vida literária local, como se percebe na leitura que fez o poeta Walflan
de Queiroz (“Luís da Câmara Cascudo e Walt Whitman”. Natal, Tribuna do Norte, 24
set. 1959):
[...] A América não silenciou com Whitman. Edna. St. Vicente Millay, Carl Sandburg, Conrad Aiken aí estão cantando as praias sem costas do silencio. Walt Whitman não tinha preconceitos de cor ou de classe. Uma prostituta, um soldado ou um marinheiro serviam de
60 No suplemento de setembro de 1942, dedicado aos negros, Câmara Cascudo publica o poema “Banzo”.
118
temática poética para seu espírito de rapsodo da nova democracia. Um novo Adão. Walt Whitman foi e ainda é lido pelos comunistas do mundo inteiro e da América, como uma Bíblia. Para os idealistas da sociedade sem classes, Walt Whitman, antepõe a sociedade sem classes, o amor ao ódio, o egoísmo à repartição dos bens. Como Tostói, Walt Whitman lavrou o campo, andou pelas praias e flutuou pelas ondas do mar de Long Island. Um novo farol a orientar os navegantes perdidos na tempestade da vida. Luís da Câmara Cascudo, traduzindo Walt Whitman, prestou um grande serviço às letras do nosso Estado, e com o seu coração pode dizer: “Eu sou generoso e pletórico como a Natureza. FONTE: BEZERRA NETO, 2012, p. 353-354).
A admiração de Walflan de Queiroz é compartilhada pelo também poeta
Sanderson Negreiros, que depõe sobre o poder de sugestão lírica dos textos
cascudianos:
Pouco se tem enfatizado na obra de Luís da Câmara Cascudo o poder de sugestão lírica que está presente em grande parte do que escreveu, com mão inaugural de quem surpreende a intacta e poderosa poesia das coisas – “sut lacrimae rerum”. Não só do tradutor de Walt Whitman e do estudioso do Poeta Antônio Nobre, o tísico genial português, que arrancou de Cascudo um estudo de uma simpatia humana profunda, muito além do que permite a visão puramente crítico-literária. Quem relê, por exemplo, o prefácio de Vaqueiros e cantadores – este livro que serviu também de prefácio à extraordinária obra de etnologia do Mestre da Junqueira Aires, cuja suma teólogica é o nunca assaz louvado Cultura e civilização –, vai encontar uma prosa poética das mais inesquecíveis. A memorialística nele confunde-se com o poema em prosa, tão patente, tão vitorioso, que fácil seria publicar de Cascudo, o que seu Talvez poesia: poemas desentranhados de uma prosa em estado permanente de exaltação lírica. Certa vez, em tarde libérrima do bairro da Ribeira, ouvimo-lo falar horas inteiras, em tom menos professoral, mas de evidente didatismo empático, sobre a história da poesia no mundo, desde as antigas civilizações, a caldéia e a mesopotâmica, quando o homem olhava nas estrelas do céu, contando-as astronomicamente, seu encantório espanto diante de Deus, que se revelava, em poesia, na mecânica celeste. Até chegar os poetas modernos de sua admiração. E, ninguém, mais moderno, dentro da moldura do seu espírito, do que, por exemplo, Dante, lido e relido religiosamente, a cada ano, na época de carnaval, que o fez escrever um livro único – a presença da Divina Comédia na poesia popular. Cascudo tem a cordialidade espantosa na compreensão goetheana do mundo e do universo. Estudioso dos crepúsculos, extasiou-se quando, na África, viu o pôr-do-sol no mar, singrado pela sua imaginação, sertaneja e brasileira. Quantas vezes, acordou dona Dahlia, sua mulher, em plena madrugada, para mostrar-lhe a Estrela Dalva! (NEGREIROS, s/d)
119
5.3. A fortuita quinta dimensão
Numa panorâmica lançada ao texto poetizado por Luís da Câmara Cascudo, é
perceptível que seu fazer poético criativo se circunscreve, basicamente, entre os anos de
1925 a 1932, período no qual se inclinaria para um quase ciclo de poemas sertanejos
incluindo as poesias “1”; “2” e “3” e “Não Gosto de sertão verde”.
Carlos Drummond de Andrade revelaria, na crônica “Imagem de Cascudo”
(1998), a existência do poema “Sentimental Epigrama para Prajadipock, Rei de Sião”,
que até hoje permanece inédito e desconhecido. Sabe-se, tão somente, que esse poema
existiu, conforme o depoimento do poeta e cronista das Minas Gerais. É o que ele diz a
respeito do “Sentimental epigrama para Prajadipock, Rei de Sião” escrito pouco antes,
ou logo após os anos de 1930: “(...) Esse cronista sabia da fase poética de Luís da
Câmara Cascudo por haver recebido dele em eras remotas um “Sentimental epigrama
para Prajadipock, Rei de Sião” um “reino governador em francês” (sic). (ANDRADE,
1998, p 34). Segundo informação da pesquisadora Constância Lima Duarte (2007, p.
253), o poeta natalense chegara a estabelecer, em carta ao amigo mineiro,
provavelmente em 1930, correlações entre seu “Sentimental Epigrama para Prajadipock,
Rei de Sião” e o “Epigrama ao rei Sião” contido no livro Alguma poesia:
[...] Seu livro chegou aqui de tarde. [...] Fiquei lendo, já li tudo e vou re-ler logo que acabe de bater esta carta. Encontro em “alguma poesia” tanta coisa que penso. Remeto dois poeminhas cretinos onde V. verá como estávamos pensando. A imagem da igreja pascentando as casas e o epigrama ao rei Sião também bateram aqui e lhos mando para V. ler e achar graça neles.61
Ainda como parte da narrativa sobre os poemas desconhecidos, o autor
potiguar acentuava, em missiva enviada no ano de 1926 a Mário de Andrade, o plano de
escrever um poema de temática supostamente afro-brasileira, como nos indica o seu
título (“Feitiço”): “[...] Para breve mando dois ou três poemas para V. deliberar e rir.
Por enquanto mando os nomes; “Feitiço” e “Não gosto de sertão verde” (8 ago. 1926.
CASCUDO, 2010, p. 105).
61 Trecho de carta de Luís Câmara Cascudo a Carlos Drummond de Andrade, com data de julho de 1930, gentilmente cedida a esta pesquisa por Constância Lima Duarte, com citação da Fonte Fundação Casa de Rui Barbosa.
120
Mais de 20 anos depois da ocorrência da maioria dos poemas citados, surgia
um novo texto em circunstâncias diversas, distante do círculo modernista que
determinou aquela produção. Trata-se do poema “Maria Luiza”, do ano de 1953 e
dedicado a uma amiga da família Cascudo. Em tom encomiástico, essa poesia ficaria
restrita ao consumo íntimo, entre as famílias, e foi inspirada na figura de Maria Luiza
Souto Filgueira, personalidade da sociedade natalense a quem Luís da Câmara Cascudo
honrara oferecendo o texto, mas ressalvando antes da sua assinatura manuscrita: “com
direito a prioridade em verso ruim”. A data precisa do oferecimento é 23 de março de
195362.
O poema tem como referente certa beleza feminina, obra do acaso, do destino.
O poeta projeta na figura de “Maria Luiza” uma mulher delicada, de elã padronizado na
estética física de uma soberana, habitante de ducado imaginário e trazendo, portanto,
“ares de Duqueza” a exibir olhos de cores azuladas, verde-azulados ou verde-
amarelados. Compara-os aos pigmentos contidos em pedras características desses
matizes que são flagrados nos “Dois ollhinhos de turquesa”. Vai pintando e louvando
atributos a “Maria Luiza”, mulher poeticamente idílica no decantar da escritura que traz
no nome muito provavelmente, referência à Imperatriz Maria Luiza de Áustria, ou
Maria Luisa de França63. Na edificação do texto a titulação reticenciada (“Maria
Luíza...”) é de pronto incorporada gerando a sequência nas estrofes de quatro versos.
62 Maria Luiza Souto Filgueira nasceu em 4 de julho de 1918, na cidade de Natal-RN, e faleceu em 27 de fevereiro de 2006. Seus pais foram o Des. João Dionísio Silveira e a senhora Elisa Souto Silveira. Em 24 de dezembro de 1938, casou-se com Ciro Barreto de Paiva, filho do Des. Horácio Barreto de Paiva Cavalcanti. Desta união nasceram cinco filhos, entre eles Álvaro Alberto, empresário radicado em Natal que gentilmente cedeu à pesquisa uma cópia do poema manuscrito. 63 A estimada referência remete à lembrança da Imperatriz que se casara com Napoleão Bonaparte e fora também chamada de Imperatriz dos Franceses. Adiante, Rainha da Itália e anteriormente, Duquesa de Parma, Piacenza, Guastalla e de Lucca. Essa imponente figura era irmã da Imperatriz Maria Leopoldina de Áustria, esposa de D. Pedro I, Imperador do Brasil.
121
122
Maria Luiza... Foi o Destino quem quiz Dar-te ares de Duqueza, Dois olhinhos de turquesa E nome de Imperatriz!..
A primeira estrofe traz possibilidades paronomásticas apoiadas em vogais que
sugerem rimas internas –F(oi) /(De)st(in)o / (Dar)r-te / (Do)is; olh(in)hos /
(Im)peratr(iz); qu(iz) /(ar)(es) / F(oi) / D(oi)s – entre sintagmas que se articulam no
plano fonético para dar cadência ao ritmo poético. O desenvolver do acolhimento, da
receptividade do olhar de Maria Luíza é algo desentranhado, na visão do poeta, da
energia voraz emanada de olhos sedutores. Mesmo a não fixação desse olhar atinge, na
discrição textual hiperbólica, alguém que estaria ao seu alcance apenas transitoriamente
(“Olhar que voa cortando”). Assim, fica sugerido um encontro momentâneo e
impessoal, de relance, num átimo, em velocidade não mensurada de voo, impregnando
involuntariamente o sentimento do outro (“Um coração quando passa”), como uma
energia que captura de imediato e vorazmente esse sentimento. A musa tem o olhar
alado e contundente, marcante, que corta “coração” em movimento. Estamos diante,
portanto, da metáfora da sedução, a qual o poeta tenta apreender pelo registro da sua
marca e pelos fluxos de energias extrapoladas de uma incerta herdabilidade e boniteza
de antepassados europeus (“Bom sangue da velha Raça!”).
Seria este, enfim, um poema escrito sem compromisso formal de diálogo com
estéticas propugnadas por escolas literárias, especialmente a moderna, que Câmara
Cascudo conhecia tão bem. Transcrevemos a seguir o texto, como forma de registro
neste trabalho:
Maria Luiza...
Foi o Destino quem quiz Dar-te ares de Duqueza, Dois olhinhos de turquesa E nome de Imperatriz!.. Olhar que vôa cortando Um coração quando passa... Dentro das veias, vibrando, Bom sangue de velha Raça! P’ra explicar-te a fraze cái sem que a Razão acompanhe: se o fino encanto do Pai
123
se claro espírito da Mãe! Mas, pensando em tua graça Que ao alto céu apontou, Eu sei que nele perpassa a velha verve do Avô... Talvez a Sorte decida num bom dia que verei: tú ireis fazer a Vida De quem tem nome de Rei!..
Luís da Câmara Cascudo - com direito a prioridade em verso ruim. Natal – 23-3- 953.
Além dos dois textos desconhecidos, Câmara Cascudo escreveu nove poemas:
“Não gosto de sertão verde”; poemas “1”, “2”, e “3”; “Banzo”; “Brasil de madrugada”;
“Kakemono”; “Shimmy” e “Maria Luiza”. O final dessa narrativa é dado pelo próprio
autor de Brouhaha ou Caveira em campo de trigo ou ainda Bruaá (como diria Carlos
Drummond de Andrade): “(...) meti o livro de versos [num] envelope e sepultei-o no
‘inferno’ da biblioteca” (9 dez. 1925. CASCUDO, 2010, p. 78). Mário de Andrade
reiterou, estimuladamente, vários apelos em prol de uma articulação crítica e editorial
no sentido de publicar os poemas cascudianos:
Faz favor, Luís, me mande o tal livro de verso que você estava escrevendo pra eu ler. Juro que tenho interesse não só de amizade mas intelectual nisso e terá ida e volta se mandar os originais e não cópia. Mande tudo, tenho fome de ler tudo que você fez em poesia. Agora mesmo escrevi um artigo pra Mocidade sobre as Tendências da Poesia Modernista no Brasil, só citeis dois e um deles é o primeiro daqueles três que você me mandou, se lembra? (12 mar. 1926. CASCUDO, 2010, p. 97).
E repito o ultimatum: você está na obrigação de continuar a escrever versos e se não quiser, está de uma ou de outra maneira na obrigação de mandar ou originais ou cópias dos versos que já tem feitos. Dou minha palavra que nada publicarei sem licença de você.” (21 abr. 1926. CASCUDO, 2010, p. 99).
Além do estímulo, Mário de Andrade fizera reparos e sugestões de reescritura
aos poemas do amigo que, em tom irônico, reagiu com uma espécie de lucidez
exacerbada. O poeta natalense estava decidido a não tocar mais o projeto editorial do
seu livro planejado:
124
O que me enfureceu foi o conselho de “modificar’. Pois modificar o que não significa que um traço, um rabisco, um desenho japonês dizendo alguma coisa que seja evocação? V. ainda apresentou emendas ao projeto... E técnicas. Bandido complicado em erudito. Fiquei furioso. Aqui pelo norte nós somos furiosamente, liricamente talentosos. Apontar uma falha é desmantelar o castelinho. E o meu veio abaixo como se fosse de poeira. Estou desanuviado. Mais lépido. Com a impressão de ter vencido. E venci numa convicção às avessas. Devo a V.” Meti o livro de versos [num] envelope no “inferno’ da biblioteca. Creia que estou sinceramente grato.” (CASCUDO, 2010, p.78-79. Grifo meu).
Apostar intelectualmente na poesia sempre foi uma das marcas do escritor
Câmara Cascudo, o que se revela nas pesquisas da poesia oral incluindo os romances
ibéricos, as xácaras, as sextilhas dos cantadores violeiros, emboladores de cocos e nas
lendas que coletou. Procurou fixá-las em ensaios literários, na edição de livros de
poetas, na articulação por correspondência com outros poetas e no seu próprio fazer
produtivo.
Em 1959, publicaria artigo na revista de cultura trimestral Cactus, editada em
Natal, propondo um espaço diferenciado para o gênero, e a sua impossibilidade de
explicação e compreensão: “Porque o Poeta pode ‘recriar’ a natureza e fixar a emoção
num poema, ninguém, em época alguma da história do mundo, explicou e
compreendeu”. O espaço para a poesia é proposto em um plano impalpável, como bem
coloca no título: “A poesia é a quinta dimensão do mundo”. Propõe esse acréscimo
referindo-se às descobertas geômetras de Euclides de Alexandria, referente à primeira
dimensão (linha reta), à da segunda (superfície, medida em área), à da terceira (formas
volumétricas) e, finalmente, à quarta dimensão formulada por Albert Einstein (o tempo).
A quinta dimensão, teria a seguinte formulação:
“Três são as medidas do Mundo. Quatro, ensina Einstein. Inclúa o Tempo. Cinco! Conte com a poesia...”
O artigo vai se desdobrando em conceitos e percepções com o intuito de
definir uma linha de pensamento próprio de quem se ancora numa forma de
pensamento, a literatura, que apreendera como sendo um mecanismo de reflexão para a
vida, para a existência e de questionamentos sobre os planos diversos de compreensão,
como a filosofia, estética e a ética. Tal perspectiva teria como síntese uma visão
prismática que converge e resulta na própria produção de poesia, na absorção da poética
125
de autores diversos, com efeito sobre a reflexão do mundo circundante. Essa perspectiva
é apresentada como singular no artigo referido:
[...] No esquema de rendimentos é um assombro perguntar para que serve um poema, uma escultura fora de significação economiástica homenagiativa da vaidade terrestre. [...] Ficou-nos o poeta ouvindo e vendo o que realmente escapa ao primarismo da audição, visão e tato. É um sentido infra e ultra sonoro e uma visualidade bem distante do poder do nervo ótico, da vibração da retina e da contratibilidade da pupila. O Poeta em todas as coisas sente MÁS DE LO QUE SE ENTIENDE pelas dimensões normais. Nunca se conseguiu uma tradução dessa acuidade miraculosa que não é erudição nem dedução. [...] Ao lado do universo sensitivo e experimental o Poeta vê, ouve e sente acima e abaixo de todas as diagramas do percurso cerebral.
Dentro desse texto, amalgama-se o comprometimento irrequieto de Câmara
Cascudo sobre o fazer poético, depois de já ter ele passado por períodos revoltos de
polemizações sobre modernidade literária e da fase em que enriquecera seus poucos mas
qualificados leitores de poesia. O escritor teria, então, perpassado todo seu ativismo
intelectual comprometido com esse gênero literário, não abrindo mão de cultivá-lo ainda
que sem se autoimpor na produção desse gênero singularizado como “a quinta dimensão
do mundo”.
126
CONCLUSÃO
Na Introdução deste trabalho, recuperávamos uma indagação de Gomes (1999,
p. 58) sobre a existência de um livro de poesias escrito por Luís da Câmara Cascudo:
“[...] onde está este livro? Sobreviveu ao tempo? Seria interessante uma pesquisa no
sentido de resgatá-lo ou recuperá-lo, pelo menos em parte”, questionava a pesquisadora
da correspondência cascudiana. Ao finalizarmos este trabalho, concluímos que não se
encerra a especulação: tal objeto haveria de estar por entre inúmeros livros, periódicos,
cartas e outros papéis em seu acervo pessoal ainda em fase de catalogação e
consequente sistematização pelo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo? Haveria
mesmo esse livro? Estaria o poeta apenas emulando o seu correspondente Mário de
Andrade? Parece que não se encerra ainda a possibilidade de se localizar o livro
intitulado, na grafia drummondiana, Bruaá.
Com esta leitura, abre-se, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma publicação
reunindo os poemas esparsos identificados e analisados na sua situação de produção e
circulação em uma comunidade de leitores. Em tal processo, começamos a colaborar já
a partir do ano de 2005 – conforme anunciado ainda na Introdução –, quando lançamos
o CD Brouhaha: Câmara Cascudo poeta e leitor de poesia, fato gerador deste trabalho
de pesquisa junto ao Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses e ao
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, ambos da UFRN.
A análise dos poemas realizada no primeiro capítulo deste trabalho demonstrou
que o poeta Luís da Câmara Cascudo sinalizava nos seus procedimentos poéticos para
uma inovação pautada na convergência entre o verbal e o icônico que, assimilada por
poetas, atravessaria parte da escritura textual da poesia do século XX, sempre sob o
signo da relação com a multilinguagem. Mesmo sem uma obra planificada em livro –
suporte convencional –, Câmara Cascudo elevou o seu poema ao patamar construtivo na
edificação da tradição do moderno registro poético brasileiro.
Havia, portanto, uma intencionalidade dirigida à tradição de uma estética gráfica
em formação no ocidente. No entanto, o exercício poético examinado tinha o sentido de
encontrar uma linguagem que motivasse a sua representação no mundo sertanejo, de
acordo com as conquistas das vanguardas artísticas do início do século XX. A expressão
da temática do mundo sertanejo por meio de poemas pode ser vista também como
matrizes de imagens que seriam reiteradas na sua obra posterior, em prosa.
127
Assiste-se, neste caso, à formação de um escritor e suas preferências temáticas,
sempre determinadas por conjunturas históricas, movimentos. Mas, fica demonstrado,
sobretudo, a capacidade de individuação por meio de uma poesia que se queria presente,
embora fosse, ao fim e ao cabo, para o fundo dos arquivos.
Se os poemas analisados no primeiro capítulo sinalizam para a valorização de
um Brasil com raízes no mundo sertanejo, aqueles que foram lidos no capítulo 2
indicam, igualmente, outra preferência temática na obra do folclorista potiguar, qual
seja, o desejo de investigação de temas da colonização na cultura brasileira. Trata-se,
neste caso, da exploração colonizadora e do legado africano expoliado pelo colonizador.
A intervenção poética de Luís da Câmara Cascudo passou pelos mapas do
século XVI onde a escritura poética levantou âncoras, navegou para o Monte Pascoal,
até atracar no cais estético e temático do século XX, onde o modernismo antropofágico
estava consolidado. A análise valorizou, nesses textos, a extrema capacidade das
sínteses abordadas, típicas de nuances e conceitos contidos nos já clássicos manifestos
modernistas.
Com efeito, essas modernas assimilações de elementos culturais podem ser
vistas como colaborações no sentido de avançar na consolidação da brasilidade.
Importava, então, desconstruir conceitos alienantes do que havia sido posto
historicamente pela cultura colonizante do europeu. Esses elementos nativos,
presentificados nos textos poéticos, entrariam em oposição com o estabelecido e
balizariam o paradigma de conjunção de dados culturais emancipatórios. No nível da
expressão, a quebra de formalidades acadêmicas e rígidas regras gramaticais
bacharelescas permitiriam a assunção literária de uma linguagem afro-brasileira
impregnada de coloquialismos e brasileirismos.
Já os poemas analisados no terceiro capítulo revelam a perspectiva do poeta
em relação à sua contemporaneidade, momento em que ele se deparava, na periferia do
capitalismo, com a modernidade representada na cultura norte-americana a exercer forte
influência no Brasil. Entre a sedução, a resistência e a atitude antropofágica com relação
a essa cultura, o poeta elaborou os poemas, cujas representações da dança e do mundo
do cinema ganham a marca irônica que reflete, por meio dessas representações, o país
que se modernizava.
A chegada de traços culturais externos, da modernidade, opostos no olhar do
poeta que valorizava os ritmos interioranos, gerou a tensão que se percebe no texto: a
“dança de procedência norte-americana” ameaçava comportamentos de um sertão que
128
era visto na sua pretensa imutabilidade cultural. Contudo, talvez permeável e
insustentável no seu caráter de cultura fechada.
A solução do poeta para o impasse diante do que é representado em “Lundu de
Collen Moore” e “Shimmy” não poderia ser mais moderna: a metáfora da deglutição, ou
a devoração da cultura norte-americana. Resultaria, do processo, a atitude de
apropriação mais próxima dos componentes que atingiriam extratos culturais urbanos
receptivos e capazes de influir na semi-imobilidade do costume rural.
Após a análise de um núcleo de poemas que dialogam intensamente com o
movimento modernista brasileiro, realizamos, no quarto capítulo, a leitura de uma
incursão de Luís da Câmara Cascudo na tradição parnasiana, por meio da tessitura do
texto poético que pode ser vista, no entanto, no contexto das rupturas propostas pelo
mesmo movimento modernista. O resultado foi a produção de “Kakemono”, um poema
híbrido, sem dilema e com uma consciência da tensão que se mantém no interior do seu
corpus: a tradição parnasiana teria sido assimilada sem prejuízo à contribuição da
poética modernista.
Verificou-se ainda que a relação de Luís da Câmara Cascudo com o gênero da
poesia e com o tema da modernidade permaneceu ainda ao longo dos conturbados anos
1940, por meio da tradução de três poemas do norte-americano Walt Whitman, poeta
que tem recepção entre as vanguardas históricas. A incursão em textos whitmanianos
que decodificavam aspectos desencadeadores da modernidade literária pode ser vista
como exercício poético, com o fim de reelaborar em outro idioma as poesias do norte-
americano antecipador de estéticas novas e contemporâneas, com repercussão na vida
literária local.
Finalmente, a leitura realizada no quarto capítulo deste trabalho demonstrou
que uma das marcas do escritor Câmara Cascudo foi a abertura para a poesia na sua
escrita e na vida social: procurou apreendê-la nos ensaios literários, na edição de livros
de poetas, na articulação por correspondência com outros poetas e no seu próprio fazer
produtivo.
O quarto capítulo encerra a tese e conclui: o escritor Câmara Cascudo teria,
então, perpassado todo seu ativismo intelectual comprometido com esse gênero
literário, não abrindo mão de cultivá-lo ainda que sem se autoimpor na produção desse
gênero singularizado como “a quinta dimensão do mundo”.
Entre o perfil modernista do poeta e a sua habilidade de apreensão da força da
poesia como meio de percepção de mundo, reside uma faceta desse intelectual que
129
produziu uma das mais importantes obras da cultura brasileira. Essa atração pela poesia
pode significar uma ruptura em relação ao comportamento científico dominante na
modernidade – um modo intuitivo de perceber o mundo que se mostrava já em sua
racionalidade plena.
130
7. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
ALAMBERT, Francisco. Prefácio. In: PEREIRA, Maria Elisa. Lundu do escritor difícil: Canto nacional e fala brasileira na obra de Mário de Andrade. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 3. ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2006.
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Estabelecimento de texto, Introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
. “O movimento modernista”. In: . Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1972. (Obras completas de Mário de Andrade).
. A pronúncia cantada e o problema do nasal brasileiro através dos discos. In: . Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991, p. 95-111.
ANDRADE, Oswald de Ponta de Lança, 1971 São Paulo: Globo, 1991.
ANDRADE, Oswald de. Obras completas: VII – poesias reunidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Imagem de Cascudo. Revista Província 2. Natal, Fundação José Augusto; UFRN; Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1998, p. 15.
ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de. Jorge Fernandes: o lirismo nos quintais pobres. Natal: Fundação José Augusto, 1997.
. Modernismo anos 20 no Rio Grande do Norte. Natal, EDUFRN, 1995.
. Leituras sobre Câmara Cascudo. João Pessoa: idéia, 2006.
. O Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses. In: CASCUDO, Daliana (Org.) Câmara Cascudo: 20 anos de encantamento. Natal: EDUFRN, 2007. p. 263-270.
. Consciência moderna e movimentos: o modernismo nas cartas trocadas entre Câmara Cascudo e Joaquim Inojosa – relatório de estágio pós-doutoral. FFLCH/USP, Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, 2012.
. Asas de Sófia: ensaios cascudianos. Natal: FIERN-SESI, 1998.
. A moderna ocasião: posicionamentos cascudianos no início do século XX. Imburana: revista do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses/UFRN. v. 2, n. 3, p. 84-118, fev./jun. 2011.
ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de; SÁ, Edna Maria Rangel de. As correspondências de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade. In: MARTINS, Marco Antonio; TAVARES, Maria Alice. Projeto História do Português Brasileiro no Rio Grande do Norte: análise linguística e textual da correspondência de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade – 1924 a 1944. Natal: EDUFRN, 2012.
AZEVÊDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo: os anos 20 em Pernambuco, 2ª ed. João Pessoa/Recife: UEPB/Editora Universitária; UFPE/Editora Universitária, 1996.
131
BANDEIRA, Manuel. Ascenso Ferreira. In: FERREIRA, Ascenso. Catimbó; cana caiana : xenhenhém. Introdução, organização e fixação de texto de Valéria Torres da Costa e Silva. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p. XXXIX-XLVIII.
BARROSO, Ivo. A voz oceânica de Walt Whitman. Gaveta do Ivo. Poesia & Tradução. Acesso em 30/10/2012:
http://gavetadoivo.wordpress.com/2011/07/08/a-voz-oceanica-de-walt-whitman/
. A polifonia do corpo. Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005. (Suplemento “Mais!”).
BERABA, Ana Luíza. América aracnídea: teias culturais interamericanas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008
BERNARDET, Jean-Claude. Equilíbrio instável entre a vanguarda e a indústria cultural. In: SCHWARTZ, Jorge (org.). Da Antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950. São Paulo: FAAP; Cosac &Naify, 2002.
BEZERRA NETO, João Antônio. “Sinto uma infinita nostalgia do oculto”: vida e poesia, solidão e morte de Walflan de Queiroz. (Tese de Doutorado em Literatura Comparada) UFRN: Natal, 2012.
BRITO, Mário da Silva. análise do poema Abúlico, de Mário de Andrade, publicado em 1923 na revista Klaxon
. O alegre combate de Klaxon. Introdução fac-símile dos 9 números da Revista Klaxon – Mensário de Arte Moderna. São Paulo: Martins; Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976.
CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald de. Obras completas: VII – Poesias reunidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 9-59.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 6.ed., Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1980.
. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5. ed. São Paulo: Martins, 1975. 2 v.
. Iniciação à Literatura Brasileira: resumo para iniciantes. 3. ed. São Paulo: Humanitas / FFLCH/USP, 1999
CASCUDO, Daliana (Org.) Câmara Cascudo: 20 anos de encantamento. Natal: EDUFRN, 2007
CASCUDO, Luís da Câmara. Joio: páginas de litteratura e crítica. Natal: Off. Graph. d’A Imprensa, 1924.
. Gente viva. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1970.
. Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. Organização de Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Global, 2010.
. Universidade e civilização. 2. ed. Natal: EDUFRN, 1988. [Edição comemorativa dos 30 anos de fundação da UFRN, 25 de junho de 1958/1988].
. História da Cidade do Natal. 3. ed. Natal: IHG/RN; RN Econômico, 1999.
. O tempo e eu: confidências e proposições. Natal: EDUFRN, 1997.
132
. Depoimento de Luís da Câmara Cascudo sobre o Livro de poemas de Jorge Fernandes. In: FERNANDES, Jorge. Livro de poemas de Jorge Fernandes. 4. ed. Natal: EDUFRN, 2007.
. Vaqueiros e cantadores: folclore poético do sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. 3. ed. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1984
CD Brouhaha: Câmara Cascudo poeta e leitor de poesia
CORRESPONDÊNCIA Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org., intr. e notas de Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 2000.
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal: Fundação José Augusto, 1969.
COSTA, Maria Suely da. Produção em revista: representação do moderno e do regional na experiência potiguar anos 1920, Ano de obtenção: 2008.
. O canto de Cigarra e outros cantos: revistas literárias do Rio Grande do Norte nos anos 20. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2000.
COSTA, Alessandra Castilho da. Ação – formulação – tradição: a correspondência de Câmara Cascudo a Mário de Andrade de 1924 a 1944 entre proximidade e distância comunicativa. In: MARTINS, Marco Antonio; TAVARES, Maria Alice. Projeto História do Português Brasileiro no Rio Grande do Norte: análise linguística e textual da correspondência de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade – 1924 a 1944. Natal: EDUFRN, 2012.
CUNHA, Paulo José da Silva. Mário de Andrade: leitor e crítico de Cinema. In: ANDRADE, Mário de. No cinema. Org. Paulo José da Silva Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. Reproduzido em:
http://www.ieb.usp.br/marioscriptor_2/escritos/mario-de-andrade-leitor-e-critico-de-cinema.html
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. edição 2001 do Instituto Antônio Houaiss e a opção filológica do autor.
DUARTE, Constância Lima. [comunicação na mesa redonda] A escritura epistolar de Câmara Cascudo. Vozes e reflexões: Anais do I ENE – Encontro Natalense de Escritores [2006]. Natal: Fundação Cultural Capitania das Artes, 2007. p. 243-272.
DUARTE, Constância Lima & MACEDO, Diva Maria C. P. de. Literatura do Rio Grande do Norte: Antologia. Natal: Fundação José Augusto, 2001.
FERNANDES, Jorge. Livro de Poemas de Jorge Fernandes. Natal: Typografia d’A Imprensa, 1927.
FERREIRA, José Luís. Modernismo e Tradição: leitura da produção crítica de Câmara Cascudo nos anos 20. (Dissertação de Mestrado) UFRN: Natal, 2000.
. Gilberto Freyre e Câmara Cascudo: entre a tradição, o moderno e o regional. (Tese de Doutorado) UFRN: Natal, 2008.
. Gilberto Freyre e Câmara Cascudo: perspectivas do elemento regional. In: ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de; OLIVEIRA, Irenísia Torres de. (Org.).
133
Regionalismo, modernização e crítica social na literatura brasileira. São Paulo: Nankin, 2010, p. 111-139.
FERREIRA, Ascenso. Catimbó; cana caiana; xenhenhém. Ascenso Ferreira; introdução, organização e fixação de texto de Valéria torres da Costa e Silva - 6 ed. – São Paulo ; WMF Martins Fontes, 2008.
FONTELES, Bené (Org) . O rei e o baião. Brasília: Editora Fundação Athos Bulcão, 2010.
FRANCHETTI, Paulo. O Haicai no Brasil. Alea: estudos neolatinos, vol.10, n. 2, Rio de Janeiro, jul./dez. 2008. Acesso em 17/10/2012: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2008000200007. Acesso em 19/06/2012. Print version ISSN 1517-106X.
GALVÃO, Dácio Tavares de Freitas. Da poesia ao poema: leitura do poema-processo. (Dissertação do Mestrado em Literatura Comparada). UFRN Natal – 2003.
. Da poesia ao poema: leitura do poema-processo. Natal: Zit Gráfica e Editora, 2004.
GICO, Vânia. Luís da Câmara Cascudo: bibliografia comentada 1968/1995. Natal: EDUFRN - Editora da UFRN, 1996.
GOMES, Edna Rangel. Correspondências: leituras das cartas trocadas entre Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade. (Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada) UFRN: Natal,1999.
GURGEL, Tarcísio. Informação da Literatura Potiguar. Natal: Argos, 2001.
INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1968-1969. 3 v.
IRBY, Falando aos vivos e aos mortos: a ‘Oda a Julián del Casal’, de Lezama Lima” (2010
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
LOPEZ, Telê Ancona. A criação literária na biblioteca do escritor. Ciência Cultura, vol.59 n.1, São Paulo, Jan./Mar. 2007. Acesso em 22 ago 2012: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252007000100016&script=sci_arttext
LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Palas, 2003.
. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Summus Editorial; Selo Negro, 2004.
MACIEL, Maria Esther; CAMPOS, Haroldo de. Pontos de confulência: América Latina em diálogo com o Oriente – conversa com Haroldo de Campos. In: SANTOS, Luís A.B.; PEREIRA, Maria Antonieta. (Org.). Trocas Culturais na América Latina. Belo Horizonte: Pós-Lit / Núcleo de Estudos Latino-Americanos, 2000. p. 33-46.
MAIAKÓVSI, Vladimir. Poemas. Traduções de Boris Schnaiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, 1918-1968: bibliografia anotada. Natal: Fundação José Augusto, 1970.
134
MASUDA, Goga & ODA, Teruko. Natureza - Berço do Haicai; Kigologia e Antologia. São Paulo: Empresa Jornalística Diário Nippak, 1996.
MEDEIROS, Gutemberg. História e Jornalismo em Lima Barreto. Leituras da História, São Paulo, dez. 2009. p. 16-23.
NEGREIROS, Sanderson. Re(vi)vendo Cascudo. Acesso em 30/10/2012: http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/vida3.htm
NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. 2. ed.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. (Obras completas, 6).
OLIVEIRA, Humberto Antunes de. O imaginário português: o reino do Preste João. Artigo.doc: http://www.images.hantunes.multiply.multiplycontent.com/. Acesso em 16/09/2012.
PEREIRA, Maria Elisa Lundu do escritor difícil: Canto nacional e fala brasileira na obra de Mário de Andrade. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
PINHEIRO, Suely Reis. Vozes da sedução, do picarismo e da negritude. Hispanista (Edición Española), v. I, p. 12, 2000. Acesso em 01/10/2012: http://www.hispanista.com.br/revista/artigo12.htm
PRADO, Paulo. Poesia Pau-Brasil. In: ANDRADE, Oswald de. Obras completas: VII – poesias reunidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
RAMA, Angel. As cidades das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.
REVISTA DE ANTROPOFAGIA. Ed. Fac-Similada da revista literária publicada em São Paulo, 1 e 2 “dentições”, 1928-1929. Introdução de Augusto de Campos. São Paulo: Ed. Abril/Metal leve S.A., 1975.
SCHWARTZ, Jorge. Tupi or not tupi. O grito de Guerra na literatura do Brasil Moderno. In: SCHWARTZ, Jorge (org). Brasil 1920 - 1950: da Antropofagia à Brasília. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
SOUSA, Ilza Matias de. Câmara Cascudo: viajante da escrita e do pensamento nômade. Natal: EDUFRN, 2006;
SILVA, Marcos (Org.). Dicionário crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, Fapesp; Natal: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação crítica dos principais manifestos vanguardistas. 19ª ed.. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípisio. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.
TORRES, Fernanda Lopes. Dois momentos da antropofagia entre nós. Contemporartes: revista semanal de difusão cultural. 10 de junho de 2010. Acesso em 19/10/2012:
http://revistacontemporartes.blogspot.com.br/2010/06/dois-momentos-da-antropofagia-entre-nos.html
VALLERY, Paul. Paul Vallery: serpente e o pensar. Tradução de Augusto de Campos. São Paulo: Brasiliense, 1984.