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PADRE JÚLIO MARIA, A IGREJA DO POVO E A EDUCAÇÃO NO
FINAL DO SÉCULO XIX
Marco Aurélio Corrêa Martins (UFJF-UNIRIO)
Resumo:
Esta comunicação tem como objetivo apresentar o ideário do Padre Júlio Maria de uma “Igreja
do povo” através da análise de quatro conferências proferidas por ele na década de 1890 e dois
outros textos. Além disso, procuramos compreender o “horizonte de expectativa” (RICOEUR,
2010) projetado pelo sacerdote brasileiro para a Igreja e o Brasil por meio da educação e a
união com o povo na democracia. Para este exame estabelecemos um confronto com quatro
encíclicas de Leão XIII, com a Carta Pastoral Coletiva do episcopado brasileiro de 1890, e o
documento do Concílio Plenário Latino-americano, de 1899. O Concílio Plenário Latino
Americano de 1899 propusera a criação de escolas católicas nos diversos níveis e Leão XIII
instruía o clero brasileiro a aproveitar a tese do livre ensino no Brasil para tal, fortalecendo a
tese da valorização da educação por Júlio Maria. Nossa pesquisa foi produzida em fontes
primárias documentais e análise bibliográfica sobre a temática que apresentam as vertentes
educacionais católicas na última década do XIX e algumas das questões que fizeram parte da
pauta de discussão sobre o tema no início do século XX.
Palavras-chave: Pensamento católico; Padre Júlio Maria; Educação popular; Educação católica;
Democracia cristã.
Abstract:
This communication aims to present Father Julio Maria's ideas of a "Church of the people"
through the analysis of four conferences made by himself in the 1890s and two other texts. In
addition, we seek to understand the "horizon of expectation" (RICOEUR, 2010) designed by
the Brazilian priest for the Church and for Brazil through education and union with the people
in democracy. For this test we established a confrontation with four encyclicals of Leo XIII,
with the Charter Collective Pastoral of the Brazilian episcopate of 1890, and the document of
the Latin American Plenary Council of 1899. The Latin American Plenary Council of 1899
proposed the creation of Catholic schools at various levels and Leo XIII instructed the Brazilian
clergy to take the thesis of free education in Brazil, strengthening the hypothesis of valuing
education by Julio Maria. Our research was produced in documentary primary sources and
literature review on the subject having the Catholic educational trends in the last decade of the
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nineteenth and some of the issues that were part of the discussion agenda on the topic in the
early twentieth century.
Keywords: Catholic thinking; Father Julio Maria; Popular education; Catholic education;
Christian democracy
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Introdução
Essa é uma pesquisa bibliográfica e documental na qual o principal recurso foram os
textos de conferências do Padre Júlio Maria Moraes Carneiro (Júlio César de Moraes
Carneiro), o qual viveu em Juiz de Fora entre 1891 e 1905 e foi célebre orador católico.
Utilizava o recurso das “conferências” como era voga na Europa e atraía, segundo os
periódicos da época, pessoas de todas as classes. Tornou-se sacerdote já na maturidade e após
ficar viúvo pela segunda vez. Em Minas Gerais foi promotor público e exerceu a função em
Mar de Espanha e Rio Novo.
A pesquisa buscou confrontar as ideias e o autor com o movimento político, social e
eclesial da época, sobretudo nos documentos da Igreja (Encíclicas de Leão XIII, Pastoral
Coletiva dos Bispos do Brasil de 1890 e documentos do Concílio Plenário Latino-americano,
de 1899). A exposição à filosofia da história de Paul Ricoeur (2010) exigiu que assim fosse,
uma vez que o tempo da existência é o tempo presente. Portanto, é necessário entender o
tempo em que os fatos se deram. No entanto, nossa perspectiva é hermenêutica, ou seja, de
nosso tempo presente abrimos o passado à interpretação. Desse modo, nosso tempo interroga
o passado sobre questões que nos dizem respeito, mas, ao mesmo tempo, procura entender
como lá se deu os fenômenos que buscamos interpretar.
Qual seriam as possibilidades da educação católica na perspectiva da democracia
católica visualizada pelo Padre Júlio Maria? Como ele conjugava o direito político e a
necessidade do direito social em formação? Essas duas questões podem indicar uma
temporalidade nova esboçada para o papel da Igreja no final do século XIX e início do século
XX. Nesse sentido, o pensamento do sacerdote pode ser entendido como projeção do futuro,
ou como nos diria Ricoeur (2010) baseado em Koselleck, um “horizonte de expectativa”.
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Crítica à educação do período imperial
O catolicismo no Brasil foi profundamente marcado pelos eventos da chamada
“questão religiosa” da década de 1870, na qual se opõe o interdito à maçonaria lançado pelo
papado e a obediência às leis do Império pelos bispos do Brasil: os católicos se tornaram
críticos ao trono e ao liberalismo1 dos políticos do Império. A questão religiosa culminou com
a prisão de dois bispos (D. Antônio Macedo Costa, bispo do Pará e D. Frei Vital, bispo de
Pernambuco), após um processo que envolveu a administração do império e a justiça no
Brasil e a diplomacia brasileira em Roma.
Em 1885, Júlio Maria publicou um livro chamado Apóstrofes (JÚLIO MARIA, 1935)
no qual, dentre outras coisas, apontava o afastamento do Império da religião e, sobretudo, do
catolicismo, religião oficial do regime. Seus argumentos passavam pela crítica pós “questão
religiosa”2. Para o então leigo, as escolas do Império pregavam a impiedade e o resultado não
seria esperançoso.
A fé também se ensina. Como o fruto sai da árvore, a fé sai da educação
religiosa. Se, de preferência aos autores gregos e romanos, se desse ingresso
nas nossas escolas e colégios aos clássicos; se, de preferência a Rousseau e
Voltaire, dois malfeitores do gênero humano, cujo cérebro eles encheram de
mil princípios subversivos e anárquicos, se fizesse a mocidade ler os grandes
expositores da doutrina católicas nas suas múltiplas aplicações religiosas,
sociais e políticas, veríamos a todo o momento sair dos malfadados
laboratórios intelectuais do Brasil tantos alquimistas de nova espécie que
buscam transformar o ouro em metal, isto é, a fé que sai das entranhas da
nossa tradição no ceticismo que sai das superfícies da nossa educação?!
Veríamos tantos falsos sábios, que vão ser deputados, senadores, ministros,
lentes, magistrados, escritores; que vão de fato dominar o país, dando-lhe o
alimento do século e o vestuário das suas teorias. (JM, 1935, p. 21)
Para ele, era preciso “catolizar o Brasil” para que a herdeira do trono, Princesa Isabel,
pudesse reinar e consolar a própria dinastia. Os erros estavam em todo lado, afirmou,
inclusive na educação. O liberalismo não seria a solução: era preciso voltar à cruz! Os livres
1 Pio IX havia transformado o seu papado em combate ao liberalismo na Europa e proclamado vários princípios
liberais como erros modernos no Syllabus, anexo da Encíclica Quanta cura de 1864. 2 Para um bom resumo dessas críticas, leia-se a Carta Pastoral Coletiva dos Bispos do Brasil de 1890, logo após
a Proclamação da República, dada como redigida por D. Macedo Costa, bispo do Pará.
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pensadores falavam contra a Igreja, os padres, a religião e Júlio Maria perguntava se foram os
religiosos que corromperam a política, sensualizaram a literatura ou anarquizaram a
sociedade.
Júlio Maria repercutia algumas ideias da filosofia tradicionalista3, claramente
antirrevolucionária, notada no anátema a Voltaire e a Rousseau na citação acima e na crítica
ao positivismo que julgava a sociedade anarquizada.
Nem o voto indireto, nem o direto, nem o ensino leigo e livre, nem a
imunidade da imprensa, nem a prerrogativa dos cultos, nem a libertação do
ventre, nem a secularização do ensino, - nada disto tem regenerado no país
os costumes, tranquilizado a ordem civil, fortalecido a moral pública. (JM,
1935, p. 45)
A solução estava na doutrina católica! Para ele, “educação leiga, secularização da
escola, ensino livre” e outros manjares da cozinha positivista já não mais agradavam: “[...]
Secularizar a escola pode não ser satanizá-la; a liberdade do ensino tanto comporta a doutrina
de Cristo, como a de Lutero; o mestre católico, como o professor positivista.” (JM, 1935, p.
48). A educação religiosa, do sentimento, do pensamento, da ação moral, era apontada como
solução para a crise, a qual se instalou, exatamente, pela degeneração desses sentimentos,
afirmava.
Para Júlio Maria (1935, p. 57-8), faltava à política e ao parlamento o “[...] sentimento
íntimo e profundo que só a educação social católica produz e mantém na vida pública: a fé”.
O Estado, esclarecia adiante, mudava como “a serpente” em formas sedutoras e atraentes,
para aquele tempo o Estado era a ciência: “[...] Quem hoje morde o Cristo, babuja a Cruz e
insulta a Igreja não é diretamente o poder público, mas a escola que ele funda, o ensino que
ele organiza, a educação que ele prescreve. As formas são atraentes, as cores sedutoras; a
serpente é a mesma.” (JM, 1935, p. 133). Para ele, a reforma eleitoral não salvou o sistema
3 Após a Revolução Francesa algumas filosofias antirrevolucionárias surgem na Europa. A filosofia
tradicionalista sugere um apego à tradição para que haja as mudanças necessárias na sociedade sem, contudo,
transformar as relações sociais e políticas em guerra ou desordens. Como foi condenada pela Igreja, essa
filosofia vai influir no Brasil como ideologia política e corrente filosófica. Também é uma clara oposição ao
pensamento liberal. Alguns representantes do Tradicionalismo: Edmund Burke, De Maistre, De Bonald, Donoso
Cortés e outros. (PAIM, 1999). Esses três últimos foram exaustivamente citados por Júlio Maria.
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representativo, assim como a abolição, não iria salvar a sociedade se não houvesse
regeneração nos brancos (sic): “[...] Sem costumes, as melhores leis são tiras de papel; sem
educação religiosa, a melhor e mais completa instrução não passa daquela boneca que a
menina de Punch se admira de ser tão bonita e dentro só ter farelo!” (JM, 1935, p. 139).
Na década seguinte, Júlio Maria vai fazer outro tipo de crítica à ciência. Já não mais à
ciência em si, que passará a defender como cristã, mas à ciência positiva e negadora dos
valores da fé. Nas Conferências da Assunção (JM, 1986) esse tema foi bastante explorado.
Quanto ao sistema político, os tradicionalistas defendiam a monarquia. No entanto, Júlio
Maria passou posteriormente a ser um defensor da república. Essa é uma marca do
afastamento do pensador católico da filosofia tradicionalista. Isso não quer dizer que ele tenha
abandonado completamente essa vertente do pensamento político cristão, mas, atualizado suas
reflexões à medida que as amadureceu. Por exemplo, após a encíclica Au milieu des
sollicitudes de Leão XIII (1892), Júlio Maria passou a defender que não importava o sistema
político, mas as leis. Seria no combate pelas leis justas que se garantiria a liberdade da
religião. É especialmente intrigante o fato de que essa encíclica foi dedicada exclusivamente
ao clero francês e Júlio Maria se apropriou dela como orientações para a Igreja no Brasil.
As Apóstrofes (JM, 1935) apontavam na crise da sociedade, do Estado e da política, a
deficiência do sentimento religioso, o fundamento principal da vida. Assim, a crise política e
social era uma crise de civilização agravada pelo abandono da tradição dos fundadores da
nação. A defesa da tradição era o que dava nome à filosofia tradicionalista. Ensino leigo
significava ensino sem religião, e a liberdade de ensino era a liberdade de errar. Mas no erro,
não existe liberdade, ensinava.
Passado o período tradicionalista do pensamento juliomariano, o tema da liberdade de
ensino não foi abandonado. Mesmo porque a política do livre ensino, como livre oferta,
vigorou ainda até a década de 1920. Cerca de dez anos após as Apóstrofes, Júlio Maria ainda
condenava a falta de orientação religiosa nas reformas da educação.
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Quanto ao livre ensino, em 1894, o Papa Leão XIII escreveu aos bispos do Brasil
instigando-os a aproveitar da livre oferta permitida pela lei e criar escolas católicas (EGREJA
brazileira. O Pharol, Juiz de Fora, 23 set. 1894). Essa orientação foi especialmente
importante num momento em que a Igreja no Brasil se abriu, prodigamente, para a entrada de
sacerdotes e religiosos europeus e diante da perda das côngruas, pagas pelo Império aos
padres, no decreto de separação entre Igreja e Estado no Brasil.
O papel da Igreja na Educação do novo regime segundo Júlio Maria
A diagnose da situação nacional foi bem explorada por D. Macedo Costa na Carta
Pastoral Coletiva dos bispos brasileiros de 1890. Júlio Maria já havia se aproximado das
ideias do bispo anos antes quando esse publicou uma pastoral no Pará sobre a construção de
um navio-igreja chamado “Cristóforo” (ver MARTINS, 2005). Em 1897, nas Conferências da
Assunção (JM, 1988), Júlio Maria repetia as mesmas críticas à educação recebida do Império:
a educação literária e filosófica era a responsável pela revolução na França e, no Brasil, pela
péssima educação cívica e o ceticismo político. Alguns anos depois, dizia “[...] educação
racionalista, política liberalista, materialismo literário, entorpeceu o sentimento católico e
obliterou o mesmo senso religioso em tantas gerações brasileiras” (JM, 1950, p. 220). No
entanto, embora os males fossem os mesmos, Júlio Maria já propunha, em 1892, outras
soluções.
Nas conferências pronunciadas na capela de São Sebastião em Juiz de Fora, 1892,
Júlio Maria acreditava que o povo era ignorante da religião e os culpados por isso eram os
sacerdotes que não evangelizavam. O padre, afirmou, deveria ser o exemplo de amor a Jesus
Cristo, mas, em muitos casos, eles eram caso de escândalo. O desprezo pelos sacramentos era
apontado por Júlio Maria como o principal indício da falta de doutrinação do povo. O
verdadeiro sacerdote deveria se preparar para a prática religiosa (o sermão), devia ser
exemplo de santidade e dignidade cristã. O sacerdote precisava estudar e orar para sua
principal missão: pregar ao povo.
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Estudo do assunto quer dizer a conscienciosa exploração da matéria; a
conveniente adaptação do ensino às necessidades espirituais que se trata de
prover; a analogia do estilo com a qualidade do assunto; o decoro e a
conveniente dignidade da exposição; a imprescindível clareza do discurso
sagrado; o método, a concatenação e o nexo de suas partes; o plano geral do
que se vai dizer; tudo isso precedido do recolhimento, da suplica, da oração.
(JM, 1934b, p. 89)
Se no período de leigo, Júlio Maria aproximava-se da filosofia tradicionalista, nesse
período ele se voltava para o discurso ultramontano4. Exortava a que o clero se unisse em
torno de seu bispo e se respeitasse: repetia um discurso que remontava à encíclica Inscrutabili
Dei consilio, do primeiro ano do pontificado de Leão XIII, 1878. Segundo o Papa, a união do
clero em torno de seus bispos era necessária para o combate dos erros modernos.
Mas era no ensino, segundo Júlio Maria, que estava a mais poderosa arma do clero ou
o “grande remédio” para os males modernos. As novenas, romarias, devoções, festividades
eram boas, mas a maior obra de caridade era o ensino: era tempo de estudar e ensinar para dar
opção da inteligência aos meninos, às donzelas, aos casados, aos pobres e aos ricos. Os padres
deviam contribuir para que o fiel tivesse uma fé esclarecida e inteligente.
Um pouco mais de uma década adiante, em 1905, Júlio Maria recupera essa tese em
novas bases. Ao discursar para os jovens da Associação dos Empregados do Comércio de Juiz
de Fora ele pretendia que os jovens se dedicassem aos estudos, pois não era possível pensar
em mudar o mundo sem se centrar nisso. Dava como exemplo o próprio Jesus recolhido em
Nazaré como carpinteiro e depois em quarentena no deserto. Segundo resumiu o Jornal do
Comércio, o caráter do homem era composto por razão esclarecida e por vontade firme e o
jovem deveria ter vontade firme de estudar e de trabalhar. Para ele, o estudo era um modo de
trabalho. Os erros ele enumerou: plágio, fraude, “crimes a sangue frio”, ou seja, com plena
4 O Ultramontanismo foi um termo utilizado para se referir ao poder do Papa (ultra montes) e se tornou
referência à política da Igreja no século XIX e grande parte do século XX. O ultramontanismo propunha uma
maior coesão da Igreja em torno do Papa e de sua ascensão sobre as igrejas locais (bispados). Uma de suas
expressões era a afirmação de um clericalismo, representado na liturgia pelos sacramentos e por isso, procurava,
também, controle sobre as práticas religiosas populares, as quais, no Brasil, estavam desvinculadas do
sacramento e mesmo da hierarquia católica.
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consciência do erro a ser cometido. (CONFERÊNCIA. Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 21
fev. 1905).
A definição do fundamento da vida é necessária para a educação:
Se a vida é apenas um gozo, a sensação animal, o apetite ou fascinação dos
sentidos, ela é para o bacanal, é para a orgia e o moço deve dizer como a
samaritana: gozemos, porque a vida é um gozo e um prazer.
Se a vida não é isso que se ensina aos moços, se ela tem uma transcendência
que vai além dos sentidos da humanidade, é ela para a virtude, para o
sacrifício, para os grandes heroísmos em prol da humanidade, da pátria e da
família; a vida é para tudo que engrandecer a humanidade, dignificando-a,
como o exemplo que nos dá o oficial mecânico de Nazaré!
(CONFERÊNCIA. Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 01 mar. 1905.
BMMM)
Não se podia encontrar esse fundamento nas ciências já que ela poderia descrever a
vida com riqueza de detalhes, mas não lhes indicar o princípio, concluiu.
Alguns anos depois, com A Igreja e o povo (JM, 1983) de 1898, é possível notar a
diferença de abordagem ultramontana de seis anos antes. Júlio Maria desvia-se da questão
institucional, para a qual a Igreja se dedicava desde a “questão religiosa” e acirrada após a
separação entre Igreja e Estado; seu foco passou a ser as questões nacionais (políticas e
sociais) como também se pode perceber nas conferências aos moços acima descrita. Aqui há
um divisor entre as perspectivas católicas ultramontanas, voltadas para suas questões
institucionais, e a visão de Júlio Maria, mais voltada para as situações sócio-políticas. A
minha tese é que o sacerdote, coerente com as perspectivas teóricas nas quais o catolicismo
possuía o argumento da civilização, conjugava as principais ideias de seu tempo na busca de
soluções aos problemas que apontava. A perspectiva política era originária de sua adesão
anterior á filosofia tradicionalista enquanto a questão social vinha da encíclica Rerum
Novarum de Leão XIII que o levava ao reencontro com a filosofia tomista também
incentivada pelo mesmo papa.
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Roque Spencer Maciel de Barros (1986, p. 9-10) afirmou que houve uma
sobrevalorização da educação pelos chamados “ilustrados brasileiros”. Para esses, o país era o
que a sua educação o fazia ser e a escola era o lugar das ideias por excelência, onde através da
instrução nasceria uma mentalidade nova. Júlio Maria não enxergava no país um atraso
cultural, e propunha revigorar a tradição com um percurso novo. Para ele, como para os
católicos em geral, crise social e política do Brasil era responsabilidade dos liberais,
positivistas ou “ilustrados5”. Quando Júlio Maria propôs uma Igreja para o povo, havia
percebido aspectos perniciosos na cultura a serem enterrados, como o regalismo e o
padroado6, o liberalismo e o positivismo7, mas, também, aspectos a se manter e avivar, como
o catolicismo, as instituições cristãs, etc. Se estava propondo unir a Igreja ao povo não era
possível desvalorizar seus traços específicos. Anteriormente, Júlio Maria queria recatolizar o
Brasil, agora admitia que o povo brasileiro era tradicionalmente católico e necessitava de
ensino: era preciso que o clero lhe ensinasse a verdadeira doutrina.
O Concílio Plenário Latino Americano de 1899 propôs a criação de escolas
secundárias católicas e um currículo com estudos de letras humanas, matemática e ciências
naturais. Propunha ainda os colégios de comércio. Tais colégios deveriam ser aprovados pelos
respectivos bispos quanto aos livros e os métodos.
Dois anos após o Concílio, os padres da Congregação do Verbo Divino em Juiz de
Fora, em 1901, assumiram a Academia de Comércio e procuravam mostrar uma boa relação
com a ciência. A Academia de Comércio já existia há alguns anos, criada sob a liderança do
comerciante Batista de Oliveira que tinha forte convicção católica tendo participado de várias
iniciativas de cunho religioso na cidade. Nesse sentido, é possível indicar no Concílio Latino
Americano não a criação de novas perspectivas, mas a organização de práticas adotadas pelos
5 Barros (1986) aponta na geração da década de 1870, os quais ele chama de “ilustrados”, o embate de ideias
entre liberais, positivistas e o “catolicismo conservador”; abertos às filosofias de seu tempo, esses intelectuais
procuravam vê-las à luz das questões brasileiras. 6 O regalismo era uma fórmula derivada do padroado régio recebido pelo rei de Portugal que lhe dava poderes
para administrar a Igreja nas novas terras descobertas e conquistadas por ele. O Regalismo tornava a relação
entre Igreja e Estado como legais e a submissão da Igreja ao poder politico e à burocracia do Estado. 7 A penetração da filosofia positivista (de base comtiana) foi fortemente combatida por Júlio Maria em suas
Conferências da Assunção.
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bispos ou dentro de suas dioceses. Juiz de Fora possuía, antes do Concílio, uma escola
secundária para meninos pobres criada por D. Silvério na zona rural do município: o Colégio
do Patrocínio. Arnaldo Jansen, fundador dos verbitas, teve o cuidado de formar dois padres na
Academia de Altos Estudos Comerciais de Viena para lecionarem em Juiz de Fora. Em três
anos a Academia de Comércio de Juiz de Fora tinha um ginásio equiparado ao Ginásio
Nacional com gabinetes de física eletrônica, química e história natural, além do famoso
aparelho de Raios X. Em 1909 criaram um Instituto Politécnico além dos cursos secundários e
o superior em comércio. Esse instituto teve vida efêmera e se dedicava aos estudos de
eletricidade ou eletrotécnica, arquitetura e agrimensura. Havia na Academia padres-
professores especializados em ciências físicas (VV.AA, s/d). Conforme notou Caes (2002),
não havia oposição entre pensamento religioso e científico e sim uma composição entre eles e,
portanto, não uma negação pura e simples da modernidade. O padre Júlio Maria não só
defendeu essa relação do catolicismo com a ciência, sobretudo em suas Conferências da
Assunção, a partir de 1897, como defendeu o papel cristianizador do comércio.
O Concílio Plenário Latino Americano arregimentava os bispos no combate ao papel
educativo proposto ao Estado. Neste caso, fazia coro aos chamados “ilustrados”.
Por tanto, en aquellos lugares en que, merced a las maquinaciones y engaños
de los heterodoxos y demás enemigos de la Iglesia, se estiman y frecuentan
las escuelas llamadas neutrales, mixtas o laicas, con el fin de que los
alumnos crezcan en la más perfecta ignorancia de todo lo bueno y sin
preocuparse de la religión, debe procurarse con todo empeño persuadir a los
padres de familia que no pueden hacer peor servicio a su prole, a su patria y
al catolicismo, que el poner a sus hijos en peligro tan grande. (CPLA, 1899)
Para os bispos, a educação era função dos pais e esses deviam ensinar a doutrina tão
logo as crianças tivessem o “uso da razão”. Contra o ensino obrigatório ensinavam que os pais
deviam exigir o seu direito de educar os próprios filhos. Para combater as escolas neutras ou
laicas, os bispos sugeriam a criação de escolas católicas, inclusive as paroquiais para os
meninos pobres e colégios nas sedes de diocese. A Juiz de Fora de Júlio Maria possuía ambas.
E a questão da pobreza e dos operários foi uma das preocupações do sacerdote no período em
que viveu nessa cidade. Do mesmo modo que Júlio Maria pregava os estudos e a preparação
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para o clero atuar junto ao povo, os bispos indicavam a criação de escolas para a formação de
professores para as escolas católicas.
Acredito que a impossibilidade da universalização proposta pelos bispos latino-
americanos leva-os, a defender a volta do ensino religioso às escolas públicas. Sobretudo na
medida em que a tese da universalização da escola primária ganhava força. Era uma forma de
combater a laicização da sociedade. Júlio Maria exorbita esses aspectos por sua visão política
do papel da Igreja frente à sociedade em união com o povo. A defesa da democracia e a
identificação com a república levava Júlio Maria para a ponta oposta ao processo
ultramontano. Para o sacerdote, o clero não devia estar acima do povo, mas ao teu lado. O
padre deveria ser um membro do povo e, através da instrução religiosa, contribuir para a
participação política. Um povo católico teria líderes católicos e assim, teríamos leis e
governos católicos. Assim, a Igreja se vinculava à base do poder democrático, ou seja, o povo,
e não aos políticos.
Há vinculações a serem exploradas entre o direito social e a necessidade política de
participação. Esse aspecto ainda não foi suficientemente explorado nessa pesquisa. A base
crítica vem de Marshall (1967) em conferência na qual aponta o desdobramento do direito
político para o direito social na Inglaterra do século XIX. Júlio Maria se ocupou bastante da
situação da pobreza e foi possível fazer uma relação entre povo e pobre em algumas de suas
conferências, sendo que povo é um componente da política e pobre, numa visão teológica,
membro do corpo social. Mas na relação entre eles, é possível vislumbrar a temporalidade
nova, como apontara por Marshall na Inglaterra, na aproximação entre ambos os direitos
mencionados. Uma relação necessária entre direito social e político, a educação foi, para esse
novo tempo, transformando-se em um direito social básico.
Embora a abrangência da escolarização não fosse um direito de todos, nem tinha a
pretensão de universalidade, o final do século XIX, no Brasil, foi um tempo de mobilização
da sociedade por acesso à escola e conviveu com o nascimento de teses de uma educação
pública estatal. A democracia defendida por Júlio Maria em suas conferências se articulava
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com a ideia de uma Igreja não mais centrada em si mesma, ultramontana, mas preocupada e
engajada nas causas sociais, políticas e civis da sociedade brasileira: uma Igreja que
dialogasse com seu tempo para a solução dos problemas, não para negação e condenação
desses problemas. A perspectiva de união da Igreja com o povo invertia a situação na qual,
desde a reforma eleitoral de 1881, retirava do povo a relação entre sociedade civil e sociedade
política, conforme indicado por Rocha (2010) em sua análise sobre a legislação educacional
do mesmo período. Não é possível entender, na justificativa juliomariana de união com o
povo, a tese de “insuficiência cívica”, mas a tese pela qual, através da educação, do ensino, as
teses católicas, apreendidas pela sociedade, tornar-se-iam ação civilizatória. Júlio Maria
propôs um tornar-se cidadão em conjunto, na sociedade, na união entre a Igreja e o povo.
Considerações finais
A historiografia da educação e a historiografia da Igreja católica têm-se utilizado do
modelo eclesial ultramontano para propor estudos e discussões acerca de seus temas. No
entanto, considerando a filosofia tradicionalista, é possível perceber uma vertente de
pensamento que vincula o pensamento católico às questões políticas e sociais, sobretudo
quando se trata das duas décadas finais do século XIX e vai impactar a atuação da igreja mais
adiante, a partir de D. Leme, no Rio de Janeiro. Em geral, há identificação, entre os
historiadores, entre o ultramontanismo e o tradicionalismo, postura que tentamos destacar na
tese de doutoramento na qual o presente texto se inspirou (MARTINS, 2013).
A ligação do Padre Júlio Maria com as questões políticas e teológicas as quais ele
propõe, não serão compreendidas apenas com o olhar sobre o ultramontanismo. A presença da
filosofia tradicionalista em sua trajetória torna-se fundamental para compreender sua atuação,
quando teve aspecto ultramontano, ou quando se afasta desse ultramontanismo ao propor
soluções sociais, políticas e culturais, num período no qual a Igreja estava fechando-se em si
mesma em busca de defesas contra as perdas institucionais que vinha sofrendo. No caso
brasileiro, com a separação entre igreja e Estado, buscou-se, durante boa parte do início do
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período republicano, reorganizar-se institucionalmente, inclusive na busca de reaver os
chamados “bens eclesiásticos”. Essa questão está ligada ao sustento financeiro da instituição.
Júlio Maria se referiu a isso ao propor a pobreza do clero como uma aproximação com o povo
e com o próprio pobre (aquele como representante político e esse como modelo evangélico).
A historiografia da educação prioriza os debates sobre a influência católica a partir das
escolas religiosas confessionais e o ensino religioso como forma de influenciar a sociedade.
Mas ainda há poucos estudos sobre essas instituições religiosas no século XIX. A perspectiva
de Paul Ricoeur nos levou a perceber um horizonte de expectativa distinto em Júlio Maria.
Ainda que possamos apontar como uma perspectiva “derrotada” ou uma via na qual a Igreja
não se envolveu, podemos perceber que havia uma proposta antenada com o seu próprio
tempo, na qual Júlio Maria tentou indicar um caminho para a Igreja no Brasil num período em
que o próprio episcopado carecia de liderança. Essa temporalidade projetada como
expectativa por Júlio Maria, talvez não se tenha realizado, mas impactou outros atores nos
anos subsequentes.
O papel da educação, em sentido lato, ou seja, não exclusivamente escolar, é apontado
por Júlio Maria como evangelização e pastoral. Apesar de ainda conter um projeto de
cristandade, ou seja, da grande civilização cristã, Júlio Maria tem uma visão do processo
político, vislumbrando na república um sistema democrático à semelhança do americano, no
qual a educação ligaria o povo, detentor do poder na democracia, à Igreja, via participação
política balizada pela doutrina católica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE, Antônio Luiz Porto e. Utopia e crise social no Brasil; 1871-1916; O
pensamento do Padre Júlio Maria. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1994.
15
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A ilustração Brasileira e a ideia de Universidade. São
Paulo: Convívio/Edusp, 1986.
CAES, André Luiz. As portas do inferno não prevalecerão: a espiritualidade católica como
estratégia política (1872-1916). Tese (Doutorado em história). 2002. Instituto de Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002. Disponível em:
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