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PAIDÉIA E HISTÓRIA EM DION CRISÓSTOMO
ROSSI, Andrea L. D. O. C. (NEAM-UNESP-Assis/ NEE- UNICAMP)
O texto ora apresentado é resultante de reflexões sobre o pensamento filosófico e
mítico presentes nos Discursos Dion Crisóstomo (40-112 d.C.). Sobre a documentação de
Dion Crisóstomo (identificado postumamente com esta alcunha), conhecido em vida como
Dion de Prusa ou Dion Cocceianus, vale ressaltar que tem sido pouco estudada pela academia
contemporânea internacional.
A crítica comum presente na análise da obra de Dion de Prusa tem sido pautada na
característica da documentação e na dificuldade de interpretação de sua obra. Esta visão foi
herdada da retomada de sua análise documental oriunda no Século XV quando Francisco
Filelfo, após viajar para Constantinopla como secretário do cônsul veneziano, retornou em
1427 carregado com textos gregos, entre eles o “Discurso sobre os Troianos” do então pouco
conhecido filósofo retórico, Dion Crisóstomo. Em sua jornada marítima de retorno, Filelfo
iniciou a tradução latina deste texto que foi mais tarde reconhecida com atualizações como “a
quase extinta memória de Dion de Prusa”
As produções sobre a documentação de Dion Crisóstomo nos anos setenta e oitenta do
Século XX, como Jones, Desideri, Moles e Bowersock, se detêm no seu status como
representante da política provincial greco-romana, mais especificamente na região da Anatólia
(Ásia Menor) e na província de Ponto-Bitínia. A análise destes estudiosos reflete a visão de
um escritor engenhoso e ardil, feita mais por entender este autor em um meio político-social
que proporcionou um envolvimento levado pelas circunstâncias do que pela oportunidade. O
artigo de John Moles sobre a sua “carreira e conversão” propôs uma das mais decisivas
conclusões, mostrando que Dion Crisóstomo era um falso adepto da autobiografia já que seus
discursos, escritos a partir de alegorias e metáforas cujo principal veículo é o mito, estavam
vinculados às suas experiências como filósofo e político provinciano no Principado Romano
nos tempos de Domiciano (81 a 96 d. C.), Nerva (96 a 98 d. C.) e Trajano (98 a 117 d. C.) .
Ao se fazer a abordagem da documentação, deve-se pensar nas mudanças do
Principado no Século I d.C. e as relações entre Roma e suas províncias. O pensamento
político romano considera algum modelo tradicional de virtus como a construção de heróis
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que promovem identidades no imaginário coletivo, mas sob novos aspectos que não o ligam
necessariamente às origens mais remotas, àquele passado mitológico e heróico. Muitas vezes,
esse passado mitológico pode estar mais próximo e presente no imaginário coletivo do que
temporalmente. Têm-se presentes estes elementos do imaginário coletivo como forma de
ferramenta retórica e política nos Discursos de Dion Crisóstomo e, por meio do estudo do
vocabulário que eles contêm, é possível identificar as figuras presentes nesse imaginário.
Esses documentos têm sua origem na literatura filosófica e política dos séculos V e IV a.C. ,
que influencia as idéias filosóficas e políticas do século I d. C. Eles carregam todos os
sentidos que são demonstrados nos trabalhos dos moralistas, retóricos e filósofos que estão
freqüentemente distantes do domínio da história.
O conteúdo dos Discursos reflete a produção cultural secular do helenismo
combinando-a com a romanidade no terreno das instituições, das práticas religiosas, das
concepções filosóficas, dos costumes e da paidéia: Em todas as suas manifestações,
[permitindo e impondo] a cada um interiorizar este universo de representações na cena do
imaginário coletivo para estabelecer uma ordem comum ao grupo social .
O apego à tradição constitui uma forte contribuição. Neste sentido, a análise do mito
se mostra fundamental como instrumento de abordagem dos Discursos. Seguindo a definição
de Jean-Pierre Vernant, adota-se este caráter diante da definição de mito proposta pelo
historiador francês:
[o mito] é um relato tradicional suficientemente importante para ser conservado e
transmitido de geração em geração no interior de uma cultura, e que relata as ações de
deuses, de heróis ou seres lendários cuja ação situa-se num outro tempo que não nosso, no
"tempo antigo", um passado diferente daquele que trata a pesquisa histórica.
Uma análise do discurso político, como é o caso de alguns dos Discursos, demonstra
que a linguagem filosófica, com todo o seu processo retórico, é ela mesma uma ferramenta
ideológica que permite entender o imaginário coletivo dos habitantes do Império Romano. As
análises das metáforas e das comparações, que parecem ser particularmente significativas
sobre o discurso de Dion Crisóstomo, colocam em evidência a sua maneira de utilizar a
retórica para buscar, na tradição de várias correntes filosóficas, as identidades helênicas,
helenísticas e também, em alguns discursos, romanas. Estas são compatíveis com as novas
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estruturas sociais e políticas que permitem aos gregos das cidades ao mesmo tempo
acreditarem em si mesmos e se sentirem livres no Império Romano.
Ter consciência sobre as relações de identidade-alteridade entre romanidade e
helenismo ao se analisar um documento literário de caráter retórico, como são os Discursos de
Dion Crisóstomo, permite encontrar no texto lido toda a sua consistência. Semelhanças,
vocabulário, cadência, memória, esquecimento, vida, morte, paixões, mitos, anti-mitos,
heróis, anti-heróis são componentes indispensáveis ao texto literário retórico como o corpus
documental estudado, na medida em que ele representa igualmente, via de regra, a viagem
realizada pelo autor. A mescla “do realmente acontecido” com o que “deveria acontecer” ou
“teria acontecido” está presente na relação autor-texto quanto ao enredo. No caso de textos
produzidos na Antigüidade Clássica, é de se observar que essa viagem acontece quase sempre
da epopéia à história, envolvendo figuras heróicas, míticas, lendárias, com defeitos e virtudes
humanos, entretanto de traços semidivinizados. Há, por assim dizer, uma narrativa que se
coloca à frente do leitor e cabe a ele fazer essa identificação.
A interpretação do mito1, um dos principais elementos presentes como recurso retórico
para a construção da narrativa do documento em questão, está na razão direta de como ele
atua na sociedade e, por isso, a sua interpretação deve ser variável. O mito é uma realidade
cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas
múltiplas e complementares (ELIADE, 1991, p. 11).
W. Jaeger aborda o mito como forma excepcional:
Falamos do valor educativo dos exemplos criados pelo mito... O mito contém em si este
significado normativo, mesmo quando não é empregado expressamente como modelo ou
exemplo... O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no
seu âmago alguma coisa que tem validade universal. Não têm um caráter meramente
fictício, embora originariamente seja, sem dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos
históricos que alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição e da interpretação
enaltecedora da fantasia criadora da posteridade (JAEGER, 1986, p. 66)
Desse modo, para discutir o mito como expressão do pensamento dos homens, as
idéias propostas por Jaeger serão levadas em conta com mais atenção. O mito é aqui
1 Sobre metodologia adotada e conceitos sobre Mito, ver artigo intitulado Mitologia: abordagem metodológica para o Historiador da Antigüidade Clássica publicado pela pesquisadora na Revista História, vol.26, no.1, Franca, 2007. pp. 36-52. Disponível no Scielo.
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entendido como sendo a narrativa daquilo que se pretende que seja, enquanto expressão do
pensamento de uma dada sociedade.
Aceitando-se a análise de Roland Barthes, tem-se como posto que a palavra,
instrumento de transmissão do mito, tem seu significado relacionado com a idéia de
preservação, de conservação de algum tipo de informação, retenção nos quadros mentais de
muito do que foi produzido pela sociedade. Assim, a construção do mito na memória tem, ao
mesmo tempo, um caráter social-individual e social-coletivo, já que é o indivíduo que faz o
seu registro e a acumula e é o coletivo que a recupera (NORA, 1993, p. 9).
É na ação pedagógica que o mito é utilizado como recurso de retórica para a
argumentação e transmissão do pensamento enquanto convencimento e fixação de preceitos
históricos, éticos e morais.
Withmarsh caracteriza a Paidéia da seguinte forma:
Para possuir paideia – ou seja pepaideumenos – significa ser familiar com o conjunto de
textos canônicos, em sua maioria em prosa, predominantemente oriundos dos séculos V e
IV a. C. Isto frequentemente significava ser hábil em escrever e declamar no arcaico
dialético ático. Em um nível semiótico, isto significa ser grego, e ser um homem (1998, p.
193).
Esta idéia significa que a literatura grega era o principal veículo de transmissão dos
elementos míticos referenciados pelos gregos.
Os usos do mito lançam olhares seletivos sobre a verdade e ao longo do tempo, com a
transmissão oral ou escrita, seus componentes são comprovados ou não pela prática cultural.
Assim, os acontecimentos “míticos” acabam sendo superados pelos acontecimentos
“históricos”, cujas evidências mostram-se racionais em relação ao mito.
A produção de imagens retiradas da memória coletiva, imagens essas construídas
literariamente, sugere outra reflexão: se há produtores de idéias, há o seu receptor. O grande
desafio enfrentado pelo literato é provocar a recepção de seus textos. Numa sociedade como a
analisada, esse desafio torna-se mais provocativo na medida em que o emprego de uma
determinada linguagem remete também para a inquietação intelectual inerente às
características dos textos. Utiliza-se, pois, um código, um conjunto de signos, capaz de
alcançar o público-alvo, objetivo de alcance das idéias contidas no texto literário. Neste caso,
os Discursos de Dion Crisóstomo, serve como vetor o pensamento mítico e filosófico
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helenístico sob o Império Romano, capaz de decifrar determinadas mensagens para um
público que ultrapasse os limites de um grupo produtor-receptor de idéias que, pelo seu
próprio engajamento, já lhe são lugares-comuns. Uma determinada época desenvolve certo
tipo de pensamento com formas e dimensões variadas. Há aí uma relação causa-efeito e
reflexo-realidade que situa a obra e as condições em que ela foi produzida.
A linguagem de Dion Crisóstomo é a da vida real do seu tempo, com todas as
referências históricas, míticas e mitológicas, filosóficas, citações poéticas e sententiae,
linguagem que marca a característica de uma sociedade que amou o arcaísmo (ROBERT, L.,
1940, p. 298) e que não gostava de ler ou escutar um texto que recebera certas referências
esperadas. Enquanto usa, com brio, os procedimentos retóricos, Dion Crisóstomo reclama
deste gosto do público pelas citações dos poetas, às referências a Homero e aos antigos mitos,
os exemplos retirados do passado ateniense, embora o use frequentemente na construção de
seus discursos. As referências e procedimentos retóricos utilizados por Dion Crisóstomo não
são ornamentos fáceis e superficiais, mas são significantes no sentido mais forte do termo e
permitem que a mensagem seja entendida pelos seus receptores.
É necessário mostrar que os caminhos de Dion Crisóstomo contribuem pelo uso da
linguagem para um determinado resultado: agir no imaginário coletivo com a escolha de
exemplos históricos, pela reescritura do passado glorioso dos gregos, e forjar, pelas citações
indiretas, o seu sentido utilizando o recurso das metáforas, a idéia de como “uma verdadeira
característica grega” é compatível com “os novos tempos” da dominação romana.
Agora, se me vejo a empregar ilustrações da historia grega, como é meu hábito, não
zombem de mim. Pois eu não estou mostrando desprezo pela minha pátria, nem eu
suponho que vocês sejam incapazes de compreender tais questões por vós mesmos, nem
considero a Assembléia ou Conselho ignorantes. Portanto, eu desejo mais do que tudo que
vocês tenham a característica que é grega e não sejam ingratos nem tolos, mas se isso for
pedir muito, pelo menos não é um mau plano ouvir palavras que, na minha opinião,
poderia melhorar o vosso caráter. (Discurso XLIII,3)
Mas se eu estou continuamente me referindo a espartanos e a atenienses, deixe que os
capciosos críticos me perdoem, porque eu os julgo dignos de tais comparações e porque na
abordagem dos Gregos, como eu penso ser o caso, eu não considero adequado me referir a
quaisquer outros se não aos gregos de primeira ordem. (Discurso L, 2)
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A análise dos fins alcançados na comunicação via discurso serve de suporte para
compreender o universo de referência de Dion Crisóstomo, que permite um reconhecimento
implícito, uma identificação com a linguagem universal da época. Esta linguagem utilizada é
recheada de referências de todos os tipos e mostra que estas referências são indispensáveis
para permitir o reconhecimento das imagens e das idéias transmitidas.
É necessário ressaltar a importância da paideia na constituição do universo mental do
homem grego no século I d.C. e recordar as grandes linhas da educação da qual se
beneficiaram os habitantes das cidades, que ao menos tinham aprendido a ler e a recitar com
os gramáticos. Tiveram a cabeça cheia de versos de Homero, de tragédia, de poetas gnômicos.
Aqueles que tinham seguido as lições dos gramáticos aprenderam a análise de textos e a
crítica literária dos grandes autores clássicos. Os menos numerosos, aqueles que freqüentaram
escolas retóricas, haviam aprendido as variações infinitas de um tema histórico, a utilização
de mitos, narrações legendárias, fábulas, narrações edificantes emprestadas de personagens
célebres, máximas e sententiaes, muito freqüentemente inspirados em poetas. O treinamento
da retórica era acima de tudo treinamento da arte do convencimento e argumentação com o
auxílio de testemunhos tirados de homens sábios, de poetas filósofos, com muitas palavras
históricas, exemplos, provérbios e citações que eles mesmos eram menos utilizados como
ornamentos do que como provas (Aristóteles, Retórica I, 2, 8-9, 13, 19 e II, 20, 4-6).
Estas provas são especialmente escolhidas na literatura prestigiosa e no passado
glorioso dos gregos, e os retóricos não vacilam em recorrer às compilações dos exempla.
Todos os exercícios implicam em uma leitura assídua dos belos textos como recomenda Dion
Crisóstomo em seu Discurso XVIII, Sobre o Treinamento para falar em público, onde
ressalta a necessidade de ler os autores gregos fazendo referências a Eurípedes, a Menandro, a
Homero, a Heródoto, a Tucídides, a Demóstenes e a muitos outros autores. Recomenda a
leitura que se faz em alta voz e prepara à recitação. Sobre o gosto dos gregos pela melodia da
sua linguagem e pelo seu amor às citações poéticas, Dion Crisóstomo descreve e ao mesmo
tempo critica a prática grega:
Então, falou, foi devido ao amor dos gregos pelo prazer. Contudo eles se deleitam em
ouvir qualquer boca que consideram dizer a verdade. Dão aos seus poetas plena licença
para falar quaisquer inverdades que queiram, e declaram que este é um privilégio dos
poetas. Confiam em tudo que os poetas dizem e até mesmo os citam em questões de litígio.
Entre os egípcios, contudo, é ilegal dizer qualquer coisa em verso. Na verdade eles não
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vêem poesia em tudo, porque sabem que este é o encanto com que o prazer atrai os
ouvidos. (Discurso XI, 42)
Vocês podem até mesmo, eu penso, esperar ouvir um elogio de vossa terra e das
montanhas que contém e de Cydnus, como o maior de todos os rios e o mais bonito, e
como aqueles que bebem suas águas são 'fluentes e abençoados', para usar as palavras de
Homero. (...) Vocês me parecem ter escutado freqüentemente homens maravilhosos, que
afirmam conhecer a todas as coisas, e sobre todas as coisas ser hábil em poder dizer sobre
como eles foram chamados e qual é a sua natureza, seu repertório, incluindo, não só os
seres humanos, semideuses e deuses, mas, sim, e até mesmo, a terra, o céu, o mar, o sol e a
lua e outras estrelas - de fato, o universo inteiro - e também os processos de corrupção e de
geração e dez mil outras coisas (Discurso XXXIII, 2-4).
O apego ao passado discerniu o ímpeto para o belo, discernimento que levou a
Antigüidade a aparecer em muitos outros domínios. Trata-se então de compreender a
especificação da referência de retórica passada, o lugar de representação do imaginário, como
o discurso atua e desempenha o papel de pressuposto óbvio que força os ouvintes a entrar na
problemática do locutor (QUET, 1978, p. 57). Em relação ao século I, é certo que os
consumidores da retórica não podiam ignorar este mundo de referência, sobretudo entre os
autores que procuravam manipular e agir sobre o seu público2.
Dion Crisóstomo, como os seus contemporâneos, usa assiduamente citações. No
Discurso XVIII, ressalta que é necessário se referir ao mais velho entre os homens sábios,
historiadores e poetas. Às vezes sem nomear as suas fontes, sobretudo aquelas localizadas em
Platão, nos trágicos e em Homero, mas não o faz ao acaso3.
Vejamos o exemplo de Homero, o poeta por excelência. Dion Crisóstomo o cita
pouco4, embora demonstre ter lido a Ilíada e a Odisséia como todos os gregos que tiveram
educação. Dion Crisóstomo insiste na divina inspiração do poeta, a extensão de seu renome
(Discursos XXXVI,9; LIII,7; II,1), a profundidade de sua mensagem5, a qualidade de sua
sabedoria; ele dedica um estudo a alguns dos heróis da epopéia dos quais ele cria alguns
2 Plutarco, na Moralia, define mais claramente do que Dion Crisóstomo que a retórica deve ser escrava da filosofia (48 d, 80 a, 999e-f) e do homem político (243 A, 743 d, 745 c). 3 Dion Crisóstomo se autodenomina de moralista no Discurso XII,1,2. 4 110 referências a Homero e 8 a Hesíodo. 5 Dion Crisóstomo afirma que Homero não escreve nada ao acaso, que suas narrações têm um alcance didático conforme os Discursos II,40; IV,41; LV,11 e 22; LVII,9. Se a interpretação dos poetas é um caminho cínico, Dion orienta a uma meta política.
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personagens edificantes6. Sobre isto, Dion Crisóstomo escreve sob uma tradição de exegese
moralizante que remonta a Antístenes e faz de Homero um verdadeiro filósofo que todas as
escolas reivindicam, cínica, neo-platônica e estóica; ele mesmo transforma o poeta em um
filósofo político, à sua imagem.
É assim que descobre em Homero “quantidade de princípios que convém a um rei”
(Discurso II, 65), faz de Zeus (Discurso LIII,12) o retrato de um rei, governante virtuoso
modelo de sabedoria, de Agamêmnon (Discurso II, 66-76) um bom rei, generoso, sabendo
escutar os conselhos do sábio filósofo Nestor. Dion Crisóstomo não cansa de afirmar sobre a
necessidade de descobrir o sentido oculto das passagens que cita e comenta se render
definitivamente à moda de seu tempo, mas também é porque por intermédio dos versos e
mitos de Homero, ele se comunica com o seu público no plano imaginário (Discurso XV, 10)
e faz com que seja aceita uma representação ideal do mundo, que parece atribuir a toda a
eternidade, a todo lugar, que é a cena da estrutura política e social da sociedade de seu tempo.
Deve-se ressaltar a sua habilidade em apresentar seus discursos ao público com suas citações
de Homero e, usando a autoridade do poeta, fazer trazer aos seus ouvintes, à sua ignorância, a
sua própria problemática.
Dion Crisóstomo não vacila em falar do presente em termos claros nos discursos
dirigidos aos habitantes das cidades (Discursos XXXII, 31 e XXXVIII, 24-30). A anedota
histórica situada no passado não é para Dion Crisóstomo um lugar de fuga do presente, no
máximo um lugar de reconhecimento que permite estabelecer um vai e vem entre o presente
vivido que Dion Crisóstomo assiste lucidamente e o passado prestigioso então pano de fundo
da vida real (Discursos XXXI, 30-31 e 111). Dion Crisóstomo respeita e protege (Discurso
XXXI, 157-159) as recordações de um passado que ele conhece bem, mas se recusa em
refugiar-se, mesmo em pensamento, como tantos gregos de seu tempo, neste brilho de outrora
ou que sua cultura lhe faz viver, se recusa como muitos forjar estas suas recordações
prestigiosas como armas contra Roma. Dion Crisóstomo condena também os falsos filósofos
e os perigosos sofistas que pregam a revolta contra Roma pela exaltação do passado glorioso
dos gregos e esquecem-se da importância do momento vivido sob o domínio romano
(Discurso XXXII, 62):
6 No Discurso LVI, Agamenon; LVII, Nestor; XLIX,4, Nestor como filósofo; LVIII, Aquiles; LI, Críseis. É com as referências homéricas que Dion Crisóstomo define, nos Discursos I-IV, as qualidades do rei ideal e dos bons temas.
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Para quem poucos podem produzir uma canção ou um nobre ritmo? Mais que isso, há uma
coletânea de divindades afeminadas e uma apresentação de liras mal tocadas e de excessos
de monstros bêbados, que, tal como infames cozinheiros que anseiam por uma novidade,
juntam-se para formar as suas misturas de árias e assim excitar um ignorante e ávido
público. Vocês não os chamariam de cisnes ou rouxinóis apaixonados, mas sim, ao que
parece, comparar-nos-iam ao choramingar e ao latido de cães; embora eu saiba que
existam filósofos chamados cínicos, harpistas de raça canina que tenham produzido
sozinhos em Alexandria. Assim como Anfião acompanhava com sua melodia, de acordo
com o mito, a construção dos muros e das torres da cidade, estas criaturas estão envolvidas
com o trabalho de revirar e destruir. E como Orfeu, que com sua música domesticou as
selvagens feras e as fez sensíveis à harmonia; estes performistas transformaram os seres
humanos em selvagens e insensíveis à sua cultura.
Alguns são os personagens que animam suas parábolas como os filósofos Sócrates,
Diógenes, Pitágoras; alguns heróis da mitologia, principalmente Hércules, Nestor e
Agamemnon; personagens de caráter polêmico como Ciro, Crésus, os sete sábios, Sólon e o
herói por excelência da história grega neste momento, aquele cujo império prefigurou a
conquista romana, Alexandre, o Grande. Estes personagens intervêm freqüentemente nos
discursos de Dion Crisóstomo e, mais particularmente, este último (Alexandre) nos discursos
II e IV, “Sobre a Monarquia”. Pôr em cena um soberano (Alexandre) e um filósofo
(Diógenes), ou novamente um rei ancião (Filipe e Agamemnon) e um príncipe jovem
(Alexandre, Nestor) seria um processo crítico. No entanto, podemos ver nessas referências em
relação ao vetus e ao novus a evocação das figuras de Nerva e de Trajano, imperadores
romanos do período de Dion Crisóstomo que estão no presente, mas que têm a justificativa de
seu papel político no passado memorável dos gregos por intermédio das figuras helenísticas
que representam a unificação do mundo universal, principalmente no Discurso XI sobre a
Guerra de Tróia.
Dion Crisóstomo dispõe de um estoque de imagens que são semelhantes às trágicas, às
platônicas e às imagens da tradição das escolas filosóficas. A imagem da navegação platônica
é uma daquelas que estão constantemente presentes nos discursos de Dion Crisóstomo aos
habitantes das cidades. Ele mesmo faz uma advertência, no Discurso XXXIV, 16, e julga esta
imagem perfeitamente adaptada aos seus propósitos.
Os Discursos de Dion Crisóstomo evocam, também, a necessidade de análise sobre
a questão da retórica em seu aspecto formal e no seu aspecto aparente. A retórica tem o seu
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princípio no estudo e na prática de todo discurso com forte intenção persuasiva. Isto é, pode
falar-se de retórica sempre que alguém procura convencer outrem de alguma coisa. Os
Discursos de Dion Crisóstomo devem ser estudados a partir desta dupla identidade, pois, no
seu aspecto de convencimento imediato, aparece na forma falada e no seu aspecto perene,
apresenta-se na forma escrita.
Para Aristóteles (Retórica, livro III), a distinção estrutural entre a palavra falada e a
palavra escrita se reproduz no íntimo da palavra falada. Em uma improvisação oral, o estilo
dos discursos políticos é mais característico na forma da palavra falada enquanto o estilo
forense é mais próximo da cadência do discurso escrito. É próprio de o discurso político ser
pronunciado diante de multidões. Comparando o estilo próprio das assembléias com a pintura,
Aristóteles observa: Quanto mais numerosa a multidão, tanto mais distante o ponto de vista e,
por isso, em ambos os casos, [na pintura e nos discursos] é supérfluo, e mesmo nocivo, o
rigor dos pormenores (Ibidem). O oposto acontece no estilo forense, no qual há uma
exigência de precisão semelhante ao discurso escrito: O estilo forense é mais preciso, e ainda
mais quando dirigido a um único juiz, porque há menos oportunidade de se empregarem
artifícios retóricos. Nele, de fato, o juiz vê, mais facilmente, o que pertence à causa e o que
lhe é estranho, e falta o debate, de sorte que o julgamento é mais puro (Ibidem). Outro estilo
indicado por Aristóteles neste mesmo texto é o epidítico, que requer claramente uma prévia
redação escrita do discurso a ser pronunciado. Aristóteles ressalta que “a sua função é a
leitura” (Ibidem). Pode-se identificar este estilo na maioria dos discursos greco-latinos que
permaneceram. Os Discursos de Dion Crisóstomo têm estas características, e, claramente, em
muitos deles, nota-se a necessidade prévia de uma elaboração escrita para ser pronunciado
posteriormente.
Em relação aos gregos e aos romanos, a arte da retórica pode ser vista, portanto,
como mecanismo de elaboração do discurso e “técnica consciente de si própria”, segundo
Paul Veyne (1983, p. 97). Destarte, a retórica pode ser objeto de análise e ser identificada
deixando assim de estar a serviço apenas do enunciador, conservando a sua estratégia de
convencimento e transformando-se em instrumento de defesa em relação à manipulação
discursiva, diminuindo assim seus efeitos. Para o estudo das documentações textuais da
Antiguidade Clássica, a sua elaboração como um discurso literário, as referências históricas e
míticas caminham de mãos dadas para a construção das imagens mentais perpetuadas pela
Paidéia com fundamentos filosóficos presentes no limiar entre a romanidade e a grecidade..
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Fontes
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