AS FRIAS DE PALOMAR
PALOMAR NA PRAIA
Leitura de uma onda
O mar est levemente encrespado e pequenas ondas quebram na praia arenosa. O
senhor Palomar est de p na areia e observa uma onda. No que esteja absorto na
contemplao das ondas. No est absorto, porque sabe bem o que faz: quer observar
uma onda e a observa. No est contemplando, porque para a contemplao
preciso um temperamento conforme, um estado de nimo conforme e um concurso de
circunstncias externas conforme: e embora em princpio o senhor Palomar nada
tenha contra a contemplao, nenhuma daquelas trs condies, todavia, se verifica
para ele. Em suma, no so as ondas que ele pretende observar, mas uma simples
onda e pronto: no intuito de evitar as sensaes vagas, ele predetermina para cada um
de seus atos um objetivo limitado e preciso.
O senhor Palomar v uma onda apontar na distncia, crescer, aproximar-se, mudar
de forma e de cor, revolver-se sobre si mesma, quebrar-se, desfazer-se. A essa altura
poderia convencer-se de ter levado a cabo a operao a que se havia proposto e ir-se
embora. Contudo, isolar uma onda da que se lhe segue de imediato e que parece s
vezes suplant-la ou acrescentar-se a ela e mesmo arrast-la algo muito difcil, assim
como separ-la da onda que a precede e que parece empurr-la em direo praia,
quando no d at mesmo a impresso de voltar-se contra ela como se quisesse fech-
la. Se ento considerarmos cada onda no sentido de sua amplitude, paralelamente
costa, ser difcil estabelecer at onde a frente que avana se estende contnua e onde
se separa e se segmenta em ondas autnomas, distintas pela velocidade, a forma, a
fora, a direo.
Em suma, no se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos
complexos que concorrem para form-la e aqueles tambm complexos a que essa d
ensejo. Tais aspectos variam continuamente, decorrendo da que cada onda diferente
de outra onda; mas da mesma maneira verdade que cada onda igual a outra onda,
mesmo quando no imediatamente contgua ou sucessiva; enfim, so formas e
sequncias que se repetem, ainda que distribudas de modo irregular no espao e no
tempo. Como o que o senhor Palomar pretende fazer neste momento simplesmente
ver uma onda, ou seja, colher todos os seus componentes simultneos sem descurar de
nenhum, seu olhar se ir deter sobre o movimento da gua que bate na praia a fim de
poder registrar os aspectos que a princpio no havia captado; to logo se d conta de
que as imagens se repetem, perceber que j viu tudo o que queria ver e poder ir-se
embora.
Homem nervoso que vive num mundo frentico e congestionado, o senhor Palomar
tende a reduzir suas prprias relaes com o mundo externo e para defender-se da
neurastenia geral procura manter tanto quanto pode suas sensaes sob controle.
A crista da onda vindo para a frente ergue-se num determinado ponto mais do que
nos outros e ali que comea a se preguear de branco. Se isto acontece a certa
distncia da praia, a espuma tem tempo de revolver-se sobre si mesma e desaparecer
de novo como que tragada e no mesmo momento tornar a invadir tudo, mas desta vez
surgindo de baixo, como um tapete branco que soergue a fmbria para acolher a onda
que chega. Porm, quando se espera que a onda role sobre o tapete, damo-nos conta
de que j no existe mais a onda, mas apenas o tapete, e mesmo esse rapidamente
desaparece, torna-se uma cintilao da areia alagada que se retira veloz, como se para
cont-lo houvesse um expandir-se da areia seca e opaca avanando seu rebordo
ondulado.
Ao mesmo tempo precisa-se considerar as reentrncias da frente, em que a onda se
divide em duas alas, uma que tende em direo praia da direita para a esquerda e
outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada dessa
divergncia ou convergncia aquela ponta em negativo que segue o avanar das alas
mas sempre se mantendo um pouco atrs e sujeita ao sobrepor-se alternado delas,
para que no venha a ser alcanada por uma outra onda mais forte embora tambm
esta com o mesmo problema de divergncia-convergncia, ou talvez por outra ainda
mais forte que resolva o impasse rompendo o n.
Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia avana na gua pontas
apenas esboadas que se prolongam em bancos de areia submersos, como as
correntes os formam e desfazem a cada mar. Foi uma dessas lnguas baixas de areia
que o senhor Palomar escolheu como ponto de observao, porque as ondas nelas
batem obliquamente de uma parte e de outra, e ao cavalgarem por cima da superfcie
semissubmersa vo encontrar-se com as que chegam da outra parte. Assim, para se
compreender como uma onda feita necessrio ter-se em conta esse impulso em
direes opostas que em certa medida se contrabalanam e em certa medida se
somam, e produzem um quebrar geral de todos os impulsos e contraimpulsos no
mesmo alagar de espuma.
O senhor Palomar est procurando agora limitar seu campo de observao; se tem
presente um quadrado de, digamos, dez metros de praia por dez metros de mar, pode
levantar um inventrio de todos os movimentos de ondas que ali se repetem com
frequncia variada dentro de um dado intervalo de tempo. A dificuldade est em fixar
os limites desse quadrado, porque, por exemplo, se ele considera como o lado mais
distante de si a linha em relevo de uma onda que avana, essa linha ao aproximar-se
dele ir, erguendo-se, ocultar de sua vista tudo o que est atrs; e eis que o espao
tomado para exame se destaca e ao mesmo tempo se comprime.
Contudo, o senhor Palomar no perde o nimo e a cada momento acredita haver
conseguido observar tudo o que poderia ver de seu ponto de observao, mas sempre
ocorre alguma coisa que no tinha levado em conta. Se no fosse pela impacincia de
chegar a um resultado completo e definitivo de sua operao visiva, a observao das
ondas seria para ele um exerccio muito repousante e poderia salv-lo da neurastenia,
do infarto e da lcera gstrica. E talvez pudesse ser a chave para a padronizao da
complexidade do mundo reduzindo-a ao mecanismo mais simples.
Mas todas as tentativas de definir esse modelo devem levar em considerao uma
onda que sobrevm em direo perpendicular ao quebra-mar e paralela costa,
fazendo escorrer uma crista contnua e apenas aflorante. Os saltos das ondas que se
desgrenham para a praia no perturbam o impulso uniforme dessa crista compacta
que a corta em ngulo reto sem que se saiba para onde vai nem de onde vem. Pode
ser um fio de vento do nascente que move a superfcie do mar em sentido transversal
corrida profunda que vem das massas de gua do largo, mas essa onda que nasce do
ar recolhe de passagem tambm os impulsos oblquos que nascem da gua e os desvia
e os corrige em seu sentido levando-os consigo. Assim vai continuando a crescer e a
tomar forma para que o encontro com as ondas contrrias no a amortea aos poucos
at faz-la desaparecer, ou ento a tora at faz-la confundir-se numa das tantas
dinastias de ondas oblquas, levada praia com as outras.
Prestar ateno em um aspecto faz com que este salte para o primeiro plano,
invadindo o quadro, como em certos desenhos diante dos quais basta fecharmos os
olhos e ao reabri-los a perspectiva j mudou. Alm do mais nesse entrecruzar-se de
cristas diversamente orientadas o desenho de conjunto se torna fragmentado em
espaos quadrados que afloram e se desvanecem. Acresce que o refluxo de cada onda
tambm possui uma fora que se ope s ondas supervenientes. E se concentrarmos a
ateno nesses impulsos retroativos vai nos parecer que o verdadeiro movimento
aquele que parte da praia em direo ao largo.
Ser que o verdadeiro resultado a que o senhor Palomar est prestes a chegar o
de fazer com que as ondas corram em sentido oposto, de recuar o tempo, de discernir
a verdadeira substncia do mundo para alm dos hbitos sensoriais e mentais? No,
ele chega at a experimentar um leve sentido de reviravolta, mas tudo. A obstinao
que impulsiona as ondas em direo costa j ganhou a parada: de fato, elas
aumentaram bastante. O vento estaria mudando? pena que a imagem que o senhor
Palomar havia conseguido organizar com tanta mincia agora se desfigure, se
fragmente e se perca. S conseguindo manter presentes todos os aspectos juntos, ele
poderia iniciar a segunda fase da operao: estender esse conhecimento a todo o
universo.
Bastaria no perder a pacincia, coisa que no tarda a acontecer. O senhor Palomar
afasta-se ao longo da praia, com os nervos tensos como havia chegado e ainda mais
inseguro de tudo.
O seio nu
O senhor Palomar caminha ao longo da praia solitria. Encontra raros banhistas.
Uma jovem est estendida na areia tomando banho de sol com os seios mostra.
Palomar, homem discreto, volve o olhar para o horizonte marinho. Sabe que, em tais
circunstncias, a aproximao de um desconhecido leva no raro as mulheres a se
cobrirem depressa, e isso no lhe parece bom: porque desagradvel para a banhista
que tomava seu sol tranquila; porque o homem que passa se sente um elemento
perturbador; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; e porque as
convenes respeitadas pela metade propagam insegurana e incoerncia no
comportamento em vez de liberdade e franqueza.
Por isso que ele, mal v esboar-se ao longe o perfil brnzeo rosado de um torso
feminino nu, apressa-se em assumir com a cabea uma postura tal que a trajetria de
seu olhar permanea suspensa no vazio e garanta seu respeito civil pela fronteira
invisvel que circunda as pessoas.
Contudo, pensa, seguindo adiante e, mal o horizonte se desobstrui, readquirindo o
livre movimento do bulbo ocular, eu, assim procedendo, ostento uma recusa em ver,
ou seja, tambm acabo por reforar a conveno que torna ilcita a vista de um seio,
ou melhor, instituo uma espcie de suti mental suspenso entre os meus olhos e
aquele seio que, do deslumbramento surgido dos confins de meu campo visual,
pareceu-me jovem e agradvel vista. Em suma, o meu no olhar pressupe que eu
esteja pensando naquela nudez, que me preocupe com ela, e isto , no fundo, ainda
uma atitude indiscreta e retrgrada.
Voltando de seu passeio, Palomar passa de novo em frente banhista, e desta vez
tem o olhar fixo diante de si, de modo que este aflore com uniformidade equnime a
espuma das ondas que se retraem, os cascos dos barcos puxados para o seco, o lenol
de espuma estendido sobre a areia, a lua transbordante de pele mais clara com o halo
moreno do mamilo e o perfil da costa no embaciamento da distncia, acinzentada
contra o cu.
Muito bem, reflete, satisfeito consigo mesmo, prosseguindo o caminho, consegui
fazer com que o seio fosse absorvido completamente na paisagem, e tambm que meu
olhar no pesasse mais que o olhar de uma gaivota ou de um peixe.
Mas ser realmente justo proceder assim?, reflete ainda, ou no passa de um
achatamento da pessoa humana ao nvel das coisas consider-la um objeto, e o que
pior, considerar objeto aquilo que na pessoa especfico do sexo feminino? No
estarei talvez perpetuando o velho hbito da supremacia masculina, endurecida com o
passar dos anos numa insolncia consuetudinria?
Volta e torna a voltar sobre seus passos. Ora, ao fazer com que seu olhar deslize
sobre a praia com objetividade imparcial, procede de maneira que, mal o seio da moa
penetre em seu campo de vista, perceba-se uma descontinuidade, um desvio, quase
um sobressalto. O olhar avana at quase aflorar a pele estendida, retrai-se, como que
avaliando com um leve estremecimento a consistncia diversa da viso e o valor
especial que essa adquire, e por um momento permanece a meia altura, descrevendo
uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distncia, elusivamente mas
tambm protetoramente, para depois retomar seu curso como se nada houvesse
acontecido.
Creio que assim minha posio se manifestar bem clara, pensa Palomar, sem
mal-entendidos possveis. Mas esse sobrevoo do olhar no poderia afinal de contas ser
compreendido como uma atitude de superioridade, uma supervalorizao daquilo que
um seio e significa, um modo de mant-lo de certa maneira parte, margem ou
entre parntesis? Eis que ento volto a relegar o seio penumbra em que o
mantiveram durante sculos a pudiccia sexomanaca e a concupiscncia como
pecado...
Essa interpretao vai contra as melhores intenes de Palomar, que embora
pertencendo a uma gerao madura, para a qual a nudez do peito feminino se
associava ideia de uma intimidade amorosa, aceita de maneira favorvel essa
mudana nos costumes, seja pelo que isso representa como reflexo de uma
mentalidade mais aberta na sociedade, seja porque tal vista lhe resulte particularmente
agradvel. esse encorajamento desinteressado que gostaria de exprimir em seu olhar.
Faz meia-volta. Em passos decisivos avana mais uma vez em direo moa
estendida ao sol. Agora o seu olhar, lambendo voluvelmente a paisagem, deter-se- no
seio com especial cuidado, mas apressando-se em envolv-lo num impulso de
benevolncia e gratido por tudo, pelo sol e o cu, pelos pinheiros recurvos e a duna
e a areia e os escolhos e as nuvens e as algas, pelo cosmo que gira em torno daquelas
cspides aureoladas.
Isso deveria bastar para tranquilizar devidamente a banhista solitria e desobstruir o
campo das ilaes desviadoras. Porm, mal ele volta a aproximar-se, eis que a moa se
levanta de um salto, cobre-se, e esbaforida afasta-se com um aborrecido sacudir de
ombros como se fugisse das insistncias molestas de um stiro.
O peso morto de uma tradio de maus costumes impede-a de apreciar em seu
justo mrito as intenes mais esclarecidas, conclui amargamente Palomar.
A espada do sol
O reflexo no mar se forma quando o sol descamba: um brilho ofuscante se estende
do horizonte at a costa, feito de uma infinidade de cintilaes que ondulam; entre
uma cintilao e outra, o azul opaco do mar escurece a sua rede. As barcas brancas
tornam-se negras contra a luz, perdem consistncia e extenso, como que consumidas
por aquele pontilhado resplendente.
a hora em que o senhor Palomar, homem tardio, pratica sua natao vespertina.
Entra na gua, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na
gua que do horizonte se prolonga at ele. O senhor Palomar nada na espada ou,
melhor dizendo, a espada permanece sempre diante dele, retraindo-se a cada uma de
suas braadas e jamais se deixando alcanar. Por todo o espao em que ele estende os
braos, o mar adquire seu opaco tom vespertino, que se alonga at a praia atrs dele.
Enquanto o sol desce para o ocaso, o reflexo branco incandescente se colore de
ouro e de cobre. E seja onde for que o senhor Palomar se coloque, o vrtice daquele
tringulo agudo e dourado ele; a espada o segue, indicando-o como um ponteiro de
relgio que tivesse por eixo o sol.
uma homenagem pessoal que o sol me presta, tentado a pensar o senhor
Palomar, ou melhor, o eu egocntrico e megalmano que nele habita. Mas o eu
depressivo e autopunitivo que coabita com o outro no mesmo contentor objeta:
Todos os que tm olhos veem o reflexo que os segue; a iluso dos sentidos e da
mente os mantm sempre prisioneiros. Um terceiro condmino intervm, um eu mais
equnime: Quer dizer que, seja como for, fao parte dos indivduos que sentem e
pensam, capazes de estabelecer uma relao com os raios solares, e de interpretar e
avaliar as percepes e as iluses.
Todo banhista que a esta hora nade em direo ao poente v a nesga de luz que se
dirige para ele e que se extingue pouco alm do ponto a que sua braada o leva: cada
um deles tem o seu reflexo, que s para ele tem aquela direo e se desloca com ele.
De ambos os lados do reflexo, o azul da gua mais escuro. Ser esse o nico dado
no ilusrio, comum a todos, a escurido?, indaga-se o senhor Palomar. Mas a espada
se impe igualmente aos olhos de cada um deles, no h como fugir dela. O que
temos em comum ser justo aquilo que dado a cada um como exclusivamente seu?
As pranchas a vela deslizam na gua, cortando com abordagens oblquas o vento de
terra que se ergue a esta hora. Figuras eretas mantm a retranca com braos esticados
como arqueiros, contendo o ar que estaleja contra a tela. Quando atravessam o reflexo
eis que, em meio ao ouro que as envolve, as cores da vela se atenuam e como se o
perfil dos corpos opacos entrasse na noite.
Tudo isso acontece no no mar, nem no sol, pensa o nadador Palomar, mas
dentro de minha cabea, nos circuitos entre os olhos e o crebro. Estou nadando em
minha mente; apenas ali que existe esta espada de luz; e o que me atrai
precisamente isto. Este o meu elemento, o nico que poderei de certa forma
conhecer.
Mas pensa tambm: No posso alcan-la, est sempre alm, no pode ser ao
mesmo tempo algo dentro de mim e algo em que eu nado, se a vejo permaneo fora
dela e ela permanece fora.
Suas braadas comeam a ficar mais difceis e incertas: dir-se-ia que todo o seu
raciocnio, em vez de aumentar-lhe o prazer de nadar no reflexo, o estivesse
deprimindo, como que o fazendo sentir nisso um limite, ou uma culpa, ou uma
condenao. E tambm uma responsabilidade a que no pode fugir: a espada existe s
porque ele est ali; se ele fosse embora, se todos os banhistas voltassem para a praia,
ou simplesmente virassem as costas ao sol, onde acabaria a espada? Do mundo que se
desfaz, o que gostaria de salvar a coisa mais frgil: aquela ponte marinha entre seus
olhos e o sol poente. O senhor Palomar j no tem vontade de nadar; est com frio.
Contudo, continua: agora tem que ficar na gua para que o sol no desaparea.
Ento pensa: Se vejo e penso e nado no reflexo, porque no outro extremo est o
sol lanando seus raios. S conta a origem do que : algo que meu olhar no pode
suster seno de forma atenuada como neste entardecer. Todo o resto reflexo entre
reflexos, inclusive eu.
Passa o fantasma de uma vela; a sombra do homem-rvore desliza entre as escamas
luminosas. Sem o vento, essa geringona que funciona graas a uns ns de plstico,
ossos e tendes humanos, escotas de nilon, no se manteria de p; o vento que faz
dela uma embarcao que parece dotada de uma finalidade prpria e de um intuito;
s o vento que sabe para onde vai a prancha e o surfista, pensa ele. Que alvio se
conseguisse anular seu eu parcial e duvidoso na certeza de um princpio do qual tudo
deriva! Um princpio nico e absoluto do qual tm origem os atos e as formas? Ou
antes um certo nmero de princpios distintos, linhas de fora que se entrecruzam
dando uma forma ao mundo tal como ele aparece, nico, instante por instante?
...o vento e tambm, est implcito, o mar, a massa de gua que sustenta os slidos
que boiam e flutuam, como eu e a prancha, pensa o senhor Palomar bancando o
morto.
Seu olhar voltado para cima contempla agora as nuvens vagantes e as colinas
nebulosas dos bosques. Seu eu tambm est ao revs nos elementos: o fogo celeste, o
ar que corre, a gua que bera e a terra que sustenta. Seria isso a natureza? Mas nada
do que v existe na natureza: o sol no se pe, o mar no tem aquela cor, as formas
no so as que a luz projeta na retina. Com movimentos inaturais das articulaes ele
flutua entre os espectros; lastros humanos em posies inaturais deslocando seu peso
desfrutam no o vento mas a abstrao geomtrica de um ngulo entre o vento e a
inclinao de um maquinismo artificial, e assim resvalam na pele lisa do mar. A
natureza no existe?
O eu flutuante do senhor Palomar est imerso num mundo desincorporado,
intersees de campos de foras, diagramas vetoriais, feixes de retas que convergem,
divergem, se refrangem. Mas dentro dele permanece um ponto onde tudo existe de
outro modo, como um n, um cogulo, um obstculo: a sensao de que est aqui mas
poderia no estar, num mundo que poderia no ser mas .
Uma onda intrusa turva o mar liso; um barco a motor irrompe e segue alm
expandindo um cheiro de combustvel e soerguendo a barriga chata. O vu de reflexos
untuosos e cambiantes do combustvel se desfaz flutuando dentro da gua; aquela
consistncia material que desaparece no ofuscamento do sol no pode ser posta em
dvida por esse trao da presena fsica do homem, que asperge sua esteira de perdas
de combustvel, resduos no assimilveis, misturando e multiplicando a vida e a morte
em torno de si.
Este o meu hbitat, pensa Palomar, e no uma questo de aceit-lo ou exclu-
lo, pois s neste meio posso existir. Mas e se a sorte da vida sobre a terra j tivesse
sido traada? Se a corrida em direo morte se tornasse mais forte do que qualquer
possibilidade de recuperao?
A onda escorre, vagalho solitrio, at no alcanar mais a praia; e o que parecia
ser apenas areia, cascalho, algas e minsculas conchas de crustceos, com a retirada
da gua agora se revela um limbo de praia constelado de frascos, caroos,
preservativos, peixes mortos, garrafas de plstico, sandlias rasgadas, seringas,
manchas negras de leo.
Arrastado tambm pela onda do barco a motor, envolvido pela mar de escrias, o
senhor Palomar de sbito se sente detrito entre os detritos, cadver rolado sobre as
praias-imundcies dos continentes-cemitrios. Se nenhum outro olhar, a no ser o olhar
vidrado dos mortos, se abrisse sobre a superfcie do globo terrestre, a espada no
tornaria mais a brilhar.
Pensando bem, tal situao no nova: j durante milhes de sculos os raios de
sol pousaram sobre a gua antes que existissem olhos capazes de recolh-los.
O senhor Palomar nada embaixo da gua; emerge; eis a espada! Um dia um olho
saiu do mar, e a espada, que j estava ali sua espera, pde finalmente ostentar toda
a esbelteza de sua ponta aguda e seu fulgor cintilante. Tinham sido feitos um para o
outro, a espada e o olho: e talvez no tenha sido o nascimento do olho que tenha feito
nascer a espada, mas vice-versa, porque a espada no podia recusar um olho que a
observasse de seu vrtice.
O senhor Palomar pensa no mundo sem ele: aquele inexistente de antes de seu
nascimento, e aquele bem mais escuro de depois de sua morte; procura imaginar o
mundo antes dos olhos, de qualquer olho; e o mundo que amanh por uma catstrofe
ou lenta corroso se torne cego. O que ocorreria (ocorre, ocorrer) naquele mundo?
Pontual, um dardo de luz parte do sol, reflete-se no mar calmo, cintila no tremular da
gua, e eis que a matria se torna receptiva luz, diferencia-se dos tecidos vivos, e de
repente um olho, uma multido de olhos floresce, ou refloresce...
Agora todas as pranchas de surfe esto estiradas sobre a praia e at mesmo o
ltimo banhista tiritante de nome Palomar sai da gua. Est convencido de que a
espada existir mesmo sem ele: finalmente enxuga-se com uma toalha de banho e
volta para casa.
PALOMAR NO JARDIM
Os amores das tartarugas
H duas tartarugas no ptio: macho e fmea. Slack! Slack! As carapaas se chocam
uma contra a outra. a poca dos amores. O senhor Palomar, sem ser visto, espia.
O macho aborda a fmea pelo lado, contornando o realce do degrau. A fmea
parece resistir ao ataque, ou pelo menos lhe ope uma imobilidade um tanto inerte. O
macho menorzinho e mais ativo; dir-se-ia mais jovem. Tenta insistentemente mont-
la, mas o dorso da carapaa dela est descido e ele escorrega.
Agora parece que conseguiu colocar-se na posio correta: arremete em golpes
rtmicos, pausados; a cada investida emite um arquejo, quase um grito. A fmea est
com as patas anteriores aplacadas contra o solo, o que a leva a erguer a parte traseira.
O macho braceja com as patas dianteiras sobre a carapaa dela, esticando o pescoo
para a frente, estendendo-se com a boca aberta. O problema dessas carapaas que
no h onde agarrar-se, e alm do mais as patas no tm poder de apreenso.
Agora ela se lhe esquiva, ele a persegue. No que ela seja mais veloz nem muito
decidida a escapar: ele, para det-la, d pequenas mordidas numa das patas, sempre
na mesma. Ela no se rebela. O macho, toda vez que ela para, tenta mont-la, mas ela
d um pequeno passo para a frente e ele escorrega e bate com o membro no cho.
um membro bastante longo, em formato de gancho, com o qual se diria que ele tenta
alcan-la mesmo se a espessura das carapaas e a posio incmoda os separam.
Assim no se pode dizer quantos desses avanos chegam a bom termo, quantos
fracassam, quantos so apenas brincadeira, encenao.
vero, o ptio est deserto, s h um jasmineiro verde num canto. A corte consiste
em fazer vezes sem conta a volta ao canteirinho, com perseguies e fugas e
entreveros no com as patas mas com as carapaas, que se entrechocam com um
estalido surdo. Entre os troncos do jasmineiro que a fmea procura intrometer-se; cr
ou quer fazer crer que faz isso para esconder-se; mas na verdade essa a
maneira mais segura de ficar bloqueada pelo macho, imobilizada sem sada. possvel
que agora ele tenha conseguido introduzir o membro como se deve; mas desta vez
esto os dois paradinhos, em silncio.
Quais so as sensaes de duas tartarugas que se acasalam, algo que a
imaginao do senhor Palomar no consegue apreender. Ele as observa com fria
ateno, como se se tratasse de duas mquinas: duas tartarugas eletrnicas
programadas para se acasalarem. Como ser o eros se em lugar da pele temos lminas
de osso e escamas de chifre? Mas no ser talvez aquilo a que chamamos eros um
programa de nossas mquinas corpreas, mais complexo porque a memria recolhe as
mensagens de todas as clulas cutneas, de todas as molculas dos nossos tecidos e as
multiplica combinando-as com os impulsos transmitidos pela vista e aqueles suscitados
pela imaginao? A diferena est apenas no nmero de circuitos envolvidos: de
nossos receptores partem milhares de fios, ligados ao computador dos sentimentos,
dos condicionamentos, dos vnculos entre as pessoas... O eros um programa que se
desenvolve nos emaranhados eletrnicos da mente, mas a mente tambm pele: pele
tocada, vista, recordada. E as tartarugas, encerradas em seu estojo insensvel? A
penria de estmulos sensoriais as obriga a uma vida mental concentrada, intensa,
leva-as a um conhecimento interior cristalino... Talvez o eros das tartarugas siga leis
espirituais absolutas, enquanto ns estamos prisioneiros de um mecanismo que no
sabemos como funciona, sujeito a obstrues e a entraves, a se desencadear em
automatismos sem controle...
Ser que as tartarugas se entendem melhor que ns? Aps uns dez minutos de
acasalamento, as duas carapaas se desprendem. Ela na frente, ele atrs, voltam a
girar em redor do canteiro. Ora o macho permanece mais destacado, vez por outra
gesticula com uma patada sobre a carapaa dela, sobe-lhe um pouco em cima, mas
sem muita convico. Voltam para debaixo do jasmineiro. Ele lhe morde um pouco
uma das patas, sempre no mesmo ponto.
O assovio do melro
O senhor Palomar tem esta sorte: passa o vero num lugar onde cantam muitos
pssaros. Enquanto se estende numa espreguiadeira e trabalha (na verdade tem
ainda outra sorte: a de poder dizer que trabalha em locais e ambientes que se diriam
do mais absoluto repouso; ou, melhor dizendo, est condenado a sentir-se obrigado a
no deixar de trabalhar, mesmo quando repousa sob as rvores numa manh de
vero), os pssaros invisveis entre os ramos despejam em torno dele um repertrio
das mais variadas manifestaes sonoras, envolvem-no num espao acstico irregular
e descontnuo, anfractuoso, mas no qual o equilbrio se estabelece entre os vrios
sons, nenhum deles se elevando sobre os outros em intensidade ou frequncia, e todos
soando num intrincado homogneo, mantido em conjunto no pela harmonia mas pela
leveza e transparncia. De modo que na hora mais clida a multido feroz dos insetos
no impe seu domnio absoluto sobre as vibraes do ar ocupando sistematicamente
as dimenses do tempo e do espao com o martelar ensurdecedor e ininterrupto das
cigarras.
O canto dos pssaros ocupa uma parte varivel na ateno auditiva do senhor
Palomar: ora ele se afasta como um componente do silncio de fundo, ora se
concentra como que distinguindo-os trinado por trinado, reagrupando-os em
categorias de complexidade crescente: chilreios puntiformes, trilados de duas notas,
uma breve uma longa, trucilares curtos e vibrteis, chamarizes, cascatas de notas que
vm em escala decrescente e se interrompem, caracis de modulaes que se curvam
sobre si mesmas, e assim por diante at chegar aos gorjeios.
O senhor Palomar no chega a uma classificao menos genrica: no daqueles
que sabem, ouvindo um trinado, reconhecer a que pssaro pertence. Sente essa sua
ignorncia como se fosse uma culpa. O novo saber que o gnero humano vem
adquirindo no suplanta o saber que se propaga simplesmente pela transmisso direta
e oral e uma vez perdido no se pode mais readquiri-lo e retransmiti-lo: nenhum livro
pode ensinar aquilo que s se pode aprender na infncia ao se prestar ouvidos e
olhos atentos ao canto e ao voo dos pssaros e se houver ali algum que saiba o
nome deles. Ao culto da preciso nomenclatria e classificatria, Palomar havia
preferido a perseguio contnua de uma preciso insegura para definir a modulao,
a cambiante, o compsito: ou seja, o indefinvel. Agora faria ento a escolha oposta, e
seguindo o fio dos pensamentos despertados pelo canto dos pssaros sua vida
pareceu-lhe uma sequncia de ocasies falhadas.
Entre todos os cantos de pssaros destaca-se o assovio do melro, mais inconfundvel
que qualquer outro. Os melros chegam j com a tarde avanada: so dois, decerto um
casal, talvez o mesmo do ano passado, de todos os anos nesta mesma poca. Toda
tarde, ao ouvir um assovio de chamamento, como algum que quisesse assinalar sua
chegada, o senhor Palomar ergue a cabea para procurar em torno quem o chama:
depois se recorda de que est na hora dos melros. No tarda a avist-los: caminham
sobre o gramado como se sua verdadeira vocao fosse de bpedes terrestres e se
divertissem em estabelecer uma analogia com o homem.
O assovio dos melros tem isto de especial: idntico a um assovio humano, de
qualquer um que no seja particularmente hbil em assoviar mas que esteja diante de
um bom motivo para assoviar, uma vez ou outra ou apenas uma vez, sem intenes
de continuar, e o faa com um tom decidido mas modesto e afvel, como que para
assegurar-se da benevolncia de quem o escuta.
Pouco depois o assovio repetido pelo mesmo melro ou pelo cnjuge mas
sempre como se fosse a primeira vez que lhe viesse mente assoviar; se um dilogo,
cada toque ocorre depois de uma longa reflexo. Mas, trata-se de um dilogo, ou cada
melro canta para si e no para o outro? E, num caso ou noutro, trata-se de perguntas e
respostas (ao outro ou a si mesmo) ou de confirmar algo que sempre a mesma coisa
(a prpria presena, a atribuio espcie, ao sexo, ao territrio)? Talvez o valor
daquela nica palavra esteja no fato de ser repetida por um outro bico assoviante, de
no ser esquecida durante o intervalo de silncio.
Ou, quem sabe, todo o dilogo consiste em dizer alto estou aqui, e a extenso das
pausas acrescente frase o significado de um ainda, como se dissesse: ainda estou
aqui, sou eu mesmo que aqui estou. E se estiver na pausa e no no assovio o
significado da mensagem? Se for no silncio que os melros se falam? (O assovio seria
neste caso um sinal de pontuao, uma frmula como dito, cmbio.) Um silncio, na
aparncia igual a outro silncio, poderia exprimir cem intenes diversas; at mesmo
um assovio; falar calando-se, ou assoviando, sempre possvel; o problema
entender-se. Ou melhor, ningum pode entender ningum: cada melro acredita haver
posto no assovio um significado fundamental para ele mas que s ele entende; o outro
lhe contesta algo que no tem nenhuma relao com aquilo que ele disse; um
dilogo de surdos, uma conversa sem p nem cabea.
Mas sero os dilogos humanos diferentes em algo? A senhora Palomar tambm est
no jardim, regando as plantas. E diz: L esto eles, enunciao pleonstica
(subentende-se que o marido j esteja olhando para os melros) ou de outra forma (se
ele no os houvesse visto) incompreensvel, mas mesmo assim destinada a estabelecer
a prpria prioridade na observao dos melros (porque efetivamente fora ela a
primeira a descobri-los e apontar seus hbitos ao marido) e a sublinhar a infalibilidade
de seu aparecimento, j tantas vezes registrado por ela.
Psiu, diz o senhor Palomar, aparentemente para impedir que a mulher os espante
falando em voz alta (recomendao intil porque os melros marido e mulher j esto
habituados com a sua presena e com as vozes dos senhores Palomar marido e
mulher), mas na realidade para contestar a vantagem da mulher demonstrando uma
solicitude para com os melros muito maior que a dela.
Ento a senhora Palomar diz: Reguei-o ontem e j est seco, referindo-se terra
do canteiro que est regando, comunicao em si suprflua, mas destinada a
demonstrar, enquanto ela continua falando e mudando de assunto, uma confidncia
para com os melros muito maior e mais desenvolta que a do marido. Todavia, com
essas sondagens o senhor Palomar obtm um quadro geral de tranquilidade, e graas
mulher, porque se ela lhe confirma que no h no momento nada de mais grave com
que se preocupar, ele pode manter-se absorto em seu trabalho (ou pseudotrabalho ou
hipertrabalho). Deixa passar um minuto e tambm ele lana uma mensagem
tranquilizadora, para informar a mulher de que seu trabalho (ou subtrabalho ou
ultratrabalho) avana como de hbito: com esse intuito, ele emite uma srie de
bufados e resmungos ...por engano... apesar de que... do princpio... sim, uma ova...
, enunciaes que juntas transmitem igualmente a mensagem estou muito
ocupado, no caso de a ltima interveno da mulher encerrar tambm uma
reprovao larvar do tipo: voc podia pensar tambm em me ajudar a regar a horta.
O pressuposto dessas trocas verbais a ideia de que um entendimento perfeito
entre cnjuges lhes permite compreenderem-se sem a necessidade de estarem ali
especificando tudo tim-tim por tim-tim; mas este princpio posto em prtica de
maneira muito diversa pelos dois: a senhora Palomar se exprime por meio de frases
completas mas quase sempre alusivas ou sibilinas, para pr prova a agilidade de
associaes mentais do marido e a sintonia dos pensamentos dele com os dela (coisa
que nem sempre funciona); o senhor Palomar ao contrrio deixa que das brumas de
seu monlogo interior elevem-se esparsos sons articulados, confiando que deles
resulte, se no a evidncia de um sentido completo, pelo menos o claro-escuro de um
estado de nimo.
A senhora Palomar por outro lado se recusa a receber esses balbucios como um
discurso, e para sublinhar sua no participao diz em voz baixa: Psiu...! Vai espant-
los..., devolvendo ao marido a imposio de silncio que ele se achava no direito de
impor-lhe e reconfirmando seu prprio primado relativamente ateno aos melros.
Tendo marcado esse seu ponto de vantagem, a senhora Palomar se afasta. Os
melros ficam ciscando no gramado e certamente considerando o dilogo entre os
cnjuges Palomar como o equivalente de seus prprios assovios. Dava no mesmo se
nos limitssemos a assoviar, pensa ele. Aqui se abre uma perspectiva de pensamento
muito promissora ao senhor Palomar, para quem a discrepncia entre o
comportamento humano e o resto do universo sempre foi uma fonte de angstia. O
assovio igual do homem e do melro algo que lhe parece uma ponte atirada sobre o
abismo.
Se o homem investisse no assovio tudo o que normalmente atribui palavra, e se o
melro modulasse no assovio todo o no dito de sua condio de ser natural, eis que
estaria assim realizado o primeiro passo para preencher a separao entre... entre o
que e o qu? Natureza e cultura? Silncio e palavra? O senhor Palomar espera sempre
que o silncio contenha algo alm daquilo que a linguagem pode expressar. Mas e se
a linguagem fosse na verdade o ponto de chegada a que tende tudo o que existe? Ou
se tudo o que existe fosse linguagem, j desde o princpio dos tempos? Neste ponto o
senhor Palomar tomado pela angstia.
Depois de ter ouvido com ateno o assovio do melro, tenta repeti-lo, to fielmente
quanto possvel. Segue-se um silncio perplexo, como se sua mensagem requeresse
um exame atento; depois, um assovio igual ecoa, e o senhor Palomar no sabe se
uma resposta a ele ou a prova de que seu assovio de tal forma diferente que os
melros nem se perturbaram com ele e retomaram o dilogo entre si como se nada
tivesse acontecido.
Continuam a assoviar e a interrogar-se perplexos, ele e os melros.
O gramado infinito
Em volta da casa do senhor Palomar existe um gramado. No se trata do lugar onde
normalmente deveria haver um gramado: portanto o gramado um objeto artificial,
composto de objetos naturais, ou seja, de grama. O gramado tem por finalidade
representar a natureza, e essa representao acaba por substituir a natureza prpria
do lugar por uma natureza em si natural mas artificial em relao ao lugar. Em suma:
custa; o gramado requer labutas sem termo: para seme-lo, reg-lo, adub-lo,
desinfet-lo, apar-lo.
O gramado se compe de relva, mato e trevo. Esta a mistura em partes iguais que
foi espalhada sobre o terreno no momento da semeadura. A relva, an e rastejante,
logo se imps: seu tapete de folhinhas curvas e fofas alastrou-se, agradvel aos ps e
vista. Mas a espessura do gramado determinada pelas lanas afiadas do joio, quando
no so muito ralas e quando no se deixa que cresam muito sem dar-lhes uma
aparadela. O trevo surge irregularmente, aqui um tufozinho, ali nada, l na frente um
monto; cresce vioso at afrouxar-se, pois a hlice da folha pesa em cima do raminho
tenro e o arqueia. O cortador de grama procede com um tremido ensurdecedor
tonsura; um suave odor de feno fresco inebria o ar; a grama nivelada reencontra a sua
infncia hspida; mas a mordida das lminas revela descontinuidade, clareiras peladas
aqui e acol, manchas amareladas.
Um gramado, para fazer boa figura, deve ser uma extenso verde uniforme:
resultado inatural que naturalmente conseguem os prados produzidos pela natureza.
Aqui, observando-se ponto por ponto, descobre-se aonde o esguicho giratrio de regar
no chega, e onde ao contrrio a gua incide em jatos contnuos e apodrece as razes,
e como as ervas daninhas se aproveitam dessa irrigao inadequada.
O senhor Palomar est arrancando as ervas, de ccoras no gramado. Um dente-de-
leo adere-se ao terreno com um embasamento de folhas denteadas fixamente
sobrepostas; se puxamos o caule, ele nos fica entre as mos enquanto as razes
permanecem enterradas no solo. necessrio, com um movimento ondulante da mo,
apossar-se de toda a planta e desenredar com delicadeza as barbelas da terra, s vezes
arrancando junto torres inteiros e minguados fios de grama meio sufocados pelo
vizinho invasor. Depois deve-se atirar o intruso num lugar onde no possa refazer as
razes nem espalhar as sementes. Quando se comea por erradicar uma gramnea,
logo se v apontar outra, e mais outra, e outra mais. Em suma, aquela fmbria de
tapete herboso que s parecia requerer uns poucos retoques revela-se uma selva
incontrolvel.
S restam ervas? Pior ainda: as ervas ms se misturam com tanta densidade s boas
que no se pode simplesmente meter-lhes a mo e arranc-las. Parece que um acordo
cmplice se estabeleceu entre as ervas de semeadura e as do mato, um levantamento
das barreiras impostas pela disparidade de nascimento, uma tolerncia resignada para
a degradao. Algumas ervas espontneas, em si ou por si, no tm de fato uma
aparncia malfica ou insidiosa. Por que no admiti-las no nmero daquelas que
pertencem ao gramado com pleno direito, integrando-as na comunidade das
cultivadas? este o raciocnio que leva a deixar-se de lado o gramado ingls e voltar-
se para o gramado rstico, abandonado a si mesmo. Mais cedo ou mais tarde
teremos que decidir dessa escolha, pensa o senhor Palomar, mas lhe parece no se
tratar de fato de uma questo de honra. Uma chicria, uma borragem surgem em seu
campo visual. Ele as arranca.
Certamente, arrancar uma erva daninha aqui e outra ali no resolve nada. Seria
necessrio proceder da seguinte forma, pensa ele, tomar um quadrado do gramado,
de um metro por um metro, e extirp-lo at da mais nfima presena que no seja
grama, joio ou trevo. Depois passar a outro quadrado. Ou melhor, no; ficar naquele
quadrado de amostragem. Contar quantos fios de erva existem, verificar de que
espcies so, qual sua densidade e como se distribuem. Com base nesse clculo se
chegar a um conhecimento estatstico do gramado, estabilidade que...
Mas contar os fios de erva intil, jamais se chegar a saber quantos so. Um
gramado no possui limites; h uma extremidade em que a grama deixa de crescer,
mas mesmo assim alguns fios apontam aqui e ali, depois uma gleba verde densa,
depois uma faixa mais rala: fazem parte ainda do gramado ou no? Mais alm a
vegetao rala invade o gramado: no se pode dizer o que gramado e o que moita.
Mas mesmo ali onde s h erva, no se sabe nunca em que ponto se deve parar de
contar: entre uma plantinha e outra h sempre um rebento folicular que mal aflora da
terra e cujas razes so um pelo branco que quase no se v; um minuto antes
poderamos deix-lo de lado mas logo teramos que contar tambm ele. J aqueles
dois fios que havia pouco pareciam apenas um tanto amarelados, eis que agora esto
totalmente emurchecidos, e teramos de exclu-los da contagem. Alm disso, existem as
fraes de fios de erva, truncados pela metade, ou rentes ao solo, ou lacerados ao
longo das nervuras, as folhinhas que perderam um lbulo... Os decimais somados no
formam um nmero inteiro, resta uma diminuta devastao herbcea, em parte ainda
vivente, em parte j podre, alimento de outras plantas, hmus...
O gramado um conjunto de ervas, fica assim colocado o problema, que inclui
um subconjunto de ervas cultivadas e um subconjunto de ervas espontneas ditas
daninhas; uma interseo dos dois subconjuntos constituda pelas ervas nascidas
espontaneamente mas que pertencem a espcies cultivadas e portanto indistinguveis
dessas. Os dois subconjuntos por sua vez incluem as vrias espcies, cada uma das
quais um subconjunto ou, melhor dizendo, um conjunto que inclui o subconjunto de
seus prprios componentes que pertencem, no entanto, ao gramado, e o subconjunto
dos exteriores ao gramado. Sopra o vento, voam as sementes e os polens, as relaes
entre os conjuntos se transtornam...
Palomar j passou para outro curso de pensamentos: ser o gramado aquilo que
vemos ou vemos antes uma erva e mais outra e mais outra...? Aquilo que designamos
como ver o gramado apenas o efeito de nossos sentidos aproximativos e
grosseiros; um conjunto existe somente quando formado por elementos distintos. No
se trata de cont-los, o nmero no importa; o que importa fixar com um nico
golpe de vista as plantinhas individuais uma por uma, em suas particularidades e
diferenas. E no apenas v-las: pens-las. Em vez de pensar o gramado, pensar
naquela haste com duas folhas de trevo, naquela folha lanceolada um tanto curva,
naquele corimbo delicado...
Palomar distraiu-se, no arranca mais as ervas, no pensa mais no gramado: pensa
no universo. Est tentando aplicar ao universo tudo o que pensou a respeito do
gramado. O universo como cosmo regular e ordenado ou como proliferao catica. O
universo, talvez finito mas inumervel, instvel em seus limites, que abre dentro de si
outros universos. O universo, conjunto de corpos celestes, nebulosas, poeira de
estrelas, campos de fora, intersees de campos, conjuntos de conjuntos...
PALOMAR CONTEMPLA O CU
Lua do entardecer
Ningum observa a lua do entardecer, e no entanto nesse momento que o nosso
interesse por ela seria mais necessrio, j que sua existncia encontra-se ainda em
estado de expectativa. uma sombra esbranquiada que aflora do azul intenso do
cu, carregado ainda de luz solar; quem nos assegura que ainda desta vez ir adquirir
forma e luminosidade? Parece to frgil e plida e sutil; s numa parte comea a
adquirir um contorno ntido como um arco de foice, enquanto todo o resto permanece
ainda embebido no azul-celeste. como uma hstia transparente, ou uma pastilha
meio dissolvida; s que o crculo branco no est se desfazendo mas se condensando,
aglomerando a custo as manchas e sombras cinzentas azuladas que no se sabe se
pertencem geografia lunar ou so babas do cu que ainda empapam o satlite
poroso como se fosse uma espuma.
Nesta fase o cu ainda algo de muito compacto e concreto, e no se pode estar
seguro de que seja de sua superfcie tesa e ininterrupta que se esteja destacando
aquela forma redonda e alvacenta, de consistncia apenas um pouco mais slida que
as nuvens, ou se, ao contrrio, se trata de uma corroso do tecido de fundo, um
desmalhe da cpula, uma brecha que se abre sobre o nada que lhe fica por trs. A
incerteza acentuada pela irregularidade da figura que de uma parte est adquirindo
relevo (onde mais lhe chegam os raios do sol poente) e de outra se demora numa
espcie de penumbra. E como os limites entre as duas zonas no so ntidos, o efeito
que disso resulta no o de um slido visto em perspectiva mas antes o de uma
daquelas figurinhas de lua dos calendrios, em que o perfil branco se destaca dentro
de um crculo escuro. A isto nada haveria certamente que se objetar, se se tratasse de
uma lua crescente e no de uma lua toda ou quase cheia. Tal como esta na verdade
est se revelando, tanto assim que seu contraste com o cu se torna cada vez mais
forte e sua circunferncia vai adquirindo um desenho mais ntido, apenas com alguns
achatamentos na borda do nascente.
necessrio dizer que o azul do cu foi passando sucessivamente do pervinca para
o violeta (os raios do sol se tornaram rubros), depois para o acinzentado e para o
pardo, sem que a brancura da lua deixasse de receber sempre um empuxo cada vez
mais decidido para que despontasse e em seu interior a parte mais luminosa fosse
adquirindo extenso at cobrir o disco por completo. como se as fases que ela
atravessa durante o ms houvessem repercutido no interior dessa lua cheia ou
plenilnio, nas horas entre o surgir e o pr-se, com a diferena de que a forma
redonda permanece mais ou menos toda vista. No meio do crculo as manchas
continuam, e at mesmo seus claros-escuros se tornam mais contrastantes em relao
luminosidade do resto; mas agora no h dvida de que a lua que os leva consigo
como mculas ou equimoses, e j no podemos imagin-los transparncias do fundo
de cena celestial, rasges no manto de um fantasma de lua sem corpo.
Antes, o que permanece ainda incerto se este ganho de evidncia e (digamo-lo) de
esplendor se deve ao lento retraimento do cu que quanto mais se afasta mais se
aprofunda na obscuridade, ou se ao contrrio a lua que est vindo na frente
recolhendo a luz inicial dispersa em torno e dela privando o cu porque a concentra
inteira na boca redonda de seu funil.
E sobretudo essas mutaes no devem nos fazer esquecer que entrementes o
satlite caminhou deslocando-se no cu em direo ao poente e para cima. A lua o
mais mutvel dos corpos do universo visvel, e o mais regular em seus estranhos
hbitos: jamais falta aos encontros e podemos sempre esper-la de passagem, mas se
a deixamos num ponto vamos encontr-la em outro, e se lembramos de sua face
voltada de uma certa maneira, eis que iremos encontr-la mudada, um pouco ou
muito. Contudo, seguindo-a passo a passo, no nos damos conta de que
imperceptivelmente ela vai fugindo de ns. S as nuvens intervm para criar a iluso
de uma corrida e de uma metamorfose rpida, ou melhor, para dar uma vistosa
evidncia daquilo que de outra forma escaparia ao nosso olhar.
A nuvem corre, de acinzentada se torna leitosa e lcida, o cu em frente se fez
negro, noite, as estrelas se acendem, a lua um grande espelho ofuscante que voa.
Quem reconheceria nela aquela de algumas horas antes? Agora um lago de
resplandecncia que esguicha raios ao redor e do qual transborda na escurido um
halo de prata fria, inundando de luz branca as estradas dos notmbulos.
No h dvida de que uma esplndida noite de plenilnio de inverno se inicia.
Neste ponto, assegurando-se de que a lua no tem necessidade dele, o senhor Palomar
regressa a casa.
O olho e os planetas
O senhor Palomar, tendo sabido que este ano durante todo o ms de abril os trs
planetas externos visveis a olho nu (mesmo por ele, que mope e astigmtico)
estaro em oposio, portanto visveis por toda a noite, apressa-se em subir ao
terrao.
O cu est claro devido lua cheia. Marte, embora vizinho do grande espelho lunar
inundado de luz branca, pe-se frente imperioso com seu fulgor obstinado, com seu
amarelo concentrado e denso, diverso de todos os outros amarelos do firmamento, a
tal ponto que acabamos por concordar em cham-lo vermelho, e nos momentos
inspirados por v-lo realmente vermelho.
Descendo com o olhar, seguindo em direo ao nascente um arco imaginrio que
deveria conjugar Rgulo com Espiga (mas Espiga quase no se v), encontra-se
Saturno bem distinguvel, de luz branca e frgida, e ainda mais embaixo Jpiter, no
momento de seu esplendor mximo, de um amarelo vigoroso que tende para o verde.
As estrelas em torno esto todas ofuscadas, com exceo de Arcturo, que brilha com
ar de desafio um pouco mais ao alto em direo ao Oriente.
Para aproveitar ainda mais a tripla oposio planetria, indispensvel munir-se de
um telescpio. O senhor Palomar, talvez porque tenha o mesmo nome de um
observatrio famoso, goza de certa amizade entre os astrnomos, e foi-lhe permitido
aproximar o nariz da ocular de um telescpio de quinze centmetros, ou seja, bastante
insignificante para a pesquisa cientfica, mas, se comparado aos seus culos, j
encerrando uma grande diferena.
Por exemplo, Marte visto ao telescpio se revela um planeta mais perplexo do que
se afigura quando observado a olho nu: parece que tem muitas coisas para comunicar
mas s consegue pr em foco uma pequena parte delas, como num discurso
tartamudeante e tossiquento. Um halo escarlate estende-se em torno da orla; pode-se
procurar concentr-lo regulando o parafuso, para fazer ressaltar a crostazinha de gelo
do polo inferior; manchas afloram e desaparecem na superfcie como nuvens ou
rasges entre as nuvens; uma se estabiliza na forma e na posio da Austrlia, e o
senhor Palomar se convence de que quanto mais distinta vir essa Austrlia mais a
objetiva estar em foco, mas ao mesmo tempo se d conta de que est perdendo
outras sombras de coisas que lhe parecia ver ou se sentia predisposto a ver.
Em suma parece-lhe que se Marte aquele planeta sobre o qual desde Schiaparelli
andaram falando tanta coisa, provocando alternncias de iluses e desiluses, isso se
deve dificuldade de estabelecer um relacionamento com ele, como com uma pessoa
de carter difcil. (A menos que a dificuldade de carter no seja inteiramente da parte
do senhor Palomar: em vo ele procura fugir subjetividade refugiando-se entre os
corpos celestes.)
Totalmente diversa a relao que ele estabelece com Saturno, o planeta que mais
emoes d a quem o observa ao telescpio: ei-lo superntido, branqussimo, exatos os
contornos da esfera e do anel; uma leve pautao de paralelos zebra a esfera; uma
circunferncia mais escura separa a borda do anel; este telescpio quase no capta
outros detalhes e acentua a abstrao geomtrica do objeto; a sensao de uma
lonjura extrema em vez de atenuar-se ressalta mais que a olho nu.
O fato de que no cu esteja girando um objeto to diverso dos demais, uma forma
que conjuga o mximo de estranheza com o mximo de simplicidade e de regularidade
e de harmonia, alegra a vida e o pensamento.
Se o pudessem ter visto como agora o vejo, pensa o senhor Palomar, os antigos
iriam crer que estavam erguendo o olhar para o cu das ideias de Plato, ou o espao
imaterial dos postulados de Euclides; em vez disso, esta imagem, quem sabe por meio
de que desvio, chega a mim que temo seja bela demais para ser verdadeira,
demasiado grata ao meu universo imaginrio para pertencer ao mundo real. Mas
talvez seja exatamente esta desconfiana em relao aos nossos sentidos que nos
impede de nos sentirmos vontade no universo. Talvez a primeira regra que devo
estabelecer seja a seguinte: ater-me quilo que vejo.
Agora lhe parece que o anel oscila levemente, ou o planeta dentro do anel, e que
um e outro giram sobre si mesmos; na realidade, a cabea do senhor Palomar que
gira, obrigado que est a torcer o pescoo para ajustar a vista ocular do telescpio;
mas procura no desmentir para si mesmo esta iluso que coincide com sua
expectativa bem como com a verdade natural.
Saturno de fato assim. Aps a expedio do Voyager 2 o senhor Palomar ps-se a
acompanhar tudo o que foi escrito a respeito dos anis: que so feitos de partculas
microscpicas; que so feitos de escolhos de gelo separados por abismos; que as
divises entre os anis so sulcos nos quais giram os satlites varrendo a matria e
condensando-a nos lados, como ces de pastor que correm em redor do rebanho para
mant-lo compacto; acompanhou a descoberta dos anis entrelaados que depois se
revelaram crculos simples muito mais estreitos; e a descoberta de estrias opacas
dispostas como raios de uma roda, depois identificadas como nuvens de gelo. Mas as
novas notcias no desmentiam essa figura essencial, no diversa da que Gian
Domenico Cassini viu primeiro em 1676 ao descobrir a diviso entre os anis que traz
seu nome.
natural que, para a ocasio, uma pessoa diligente como o senhor Palomar tenha
consultado enciclopdias e manuais. Agora Saturno, objeto sempre novo, se apresenta
ao seu olhar renovando a maravilha da primeira descoberta e o faz lamentar que
Galileu com seu culo de alcance fora de foco s houvesse chegado a ter dele uma
ideia confusa, de corpo trplice ou de esfera com duas ansas, e quando j estava
prximo de compreender como era a sua forma a vista lhe fugiu e tudo se precipitou
na escurido.
Fixar muito demoradamente um corpo luminoso cansa a vista; o senhor Palomar
fecha os olhos; passa a Jpiter.
Em sua mole majestosa mas no grave, Jpiter ostenta duas estrias equatoriais como
um xale guarnecido de recamos entrelaados, de um verde celestial. Efeitos de
tempestades atmosfricas pavorosas traduzem-se num desenho ordenado e calmo, de
elaborada compostura. Mas o verdadeiro disfarce desse planeta luxuoso so os seus
satlites cintilantes, agora visveis os quatro ao longo de uma linha oblqua, como um
cetro de joias esplendentes.
Descobertos por Galileu e por ele nomeados Medicea sidera, astros dos Medici,
rebatizados pouco depois com nomes ovidianos Io, Europa, Ganimedes, Calisto
por um astrnomo holands, os pequenos planetas de Jpiter parecem irradiar um
ltimo fulgor do Renascimento neoplatnico, como se ignorassem que a ordem
impassvel das esferas celestes se desfez, exatamente por obra de seu descobridor.
Um sonho de classicismo envolve Jpiter; fixando-o ao telescpio o senhor Palomar
fica sempre na expectativa de uma transfigurao olmpica. Mas no consegue manter
a imagem ntida: necessita fechar por um momento as plpebras, deixar que a pupila
ofuscada reencontre a percepo precisa dos contornos, das cores, das sombras, mas
tambm deixar que a imaginao se livre dos embaciamentos que no lhe pertencem,
renuncie a ostentar uma sabedoria livresca.
Se justo que a imaginao venha em socorro da debilidade visual, deve ser
instantnea e direta como o olhar que acende. Qual era a primeira semelhana que
lhe viera mente e que havia descartado por incngrua? Tinha visto o planeta ondular
com os satlites em fila como bolinhas de ar que se levantam das brnquias de um
gordo peixe dos abismos, luminescente e estriado...
* * *
Na noite seguinte, o senhor Palomar volta para o seu terrao a fim de ver os
planetas a olho nu: a grande diferena que agora obrigado a levar em conta as
propores entre o planeta, o resto do firmamento esparso no espao escuro por
todos os lados e ele que olha, coisa que no ocorre se a relao entre o objeto
separado planeta posto em foco pela lente e ele sujeito, num ilusrio face a face. Ao
mesmo tempo ele recorda de cada planeta a imagem detalhada vista na noite anterior
e procura inseri-la naquela mancha minscula de luz que perfura o cu. Assim espera
haver se apropriado de fato do planeta, ou pelo menos do quanto de um planeta
pode entrar em um olho.
A contemplao das estrelas
Quando faz uma bela noite estrelada, o senhor Palomar diz: Devo ir olhar as
estrelas. Diz assim mesmo: devo, porque odeia os desperdcios e acha que no seria
justo desperdiar toda aquela quantidade de estrelas que esto sua disposio. Diz
devo tambm porque no tem muita prtica de como se observam as estrelas, e este
simples ato lhe custa sempre um certo esforo.
A primeira dificuldade a de encontrar um lugar de onde a sua vista possa se
espalhar por toda a cpula do cu sem obstculos e sem a interferncia da iluminao
eltrica: por exemplo, uma praia solitria numa costa muito baixa.
Outra condio necessria trazer consigo uma carta astronmica, sem a qual no
se saberia o que se est olhando; mas reiteradas vezes ele se esquece de como
proceder para orientar-se por ela e gasta pelo menos meia hora estudando-a. Para
poder decifrar o mapa no escuro necessrio trazer consigo tambm uma lanterna de
bolso. Os confrontos frequentes entre o cu e o mapa obrigam-no a acender e a
apagar a lanterna, e nessas passagens da luz para a escurido fica momentaneamente
cego e precisa a cada vez readaptar a vista.
Se o senhor Palomar fizesse uso de um telescpio as coisas seriam ainda mais
complicadas sob certos aspectos e simplificadas sob outros; mas, por ora, a
experincia do cu que lhe interessa a olho nu, como os antigos navegadores e os
pastores errantes. Olho nu, para ele que mope, significa de culos; e como precisa
tirar os culos para ler o mapa, as operaes se complicam com esse erguer e baixar
dos culos na fronte, e comportam a espera de alguns segundos para que seu
cristalino se reajuste ao foco das verdadeiras estrelas ou das que esto impressas. Na
carta os nomes das estrelas esto grafados em negrito sobre um fundo azul e
necessrio encostar a lanterna acesa bem junto da folha para discerni-los. Quando
erguemos o olhar para o cu, este aparece negro, salpicado de vagos clares; somente
aos poucos que as estrelas se fixam e se dispem em desenhos precisos, e quanto
mais olhamos mais as vemos aflorar.
Acrescente-se que os mapas celestes que ele precisa consultar so dois, e mesmo
quatro: um muito sinttico do cu naquele ms, que apresenta separadamente o
hemisfrio sul e o hemisfrio norte; e outro, de todo o firmamento, muito mais
detalhado, que mostra numa longa faixa as constelaes de todo o ano na parte
mediana do cu em torno ao horizonte, enquanto as da calota em torno estrela polar
esto compreendidas num mapa circular anexo. Em suma, localizar uma estrela
implica a comparao de vrios mapas com a abbada celeste, com todos os atos
relativos: tirar e pr os culos, acender e apagar a lanterna, dobrar e desdobrar o
mapa grande, perder e reencontrar os pontos de referncia.
Desde a ltima vez em que o senhor Palomar observou as estrelas j se passaram
semanas ou meses; o cu mudou inteiramente; a Ursa Maior (estamos em agosto) se
distendeu quase at deitar-se sobre a copa das rvores a noroeste; Arcturo desce a
pique sobre o perfil da colina arrastando todo o aquilo de Boote; exatamente a oeste
est Vega, alta e solitria; se Vega aquela, essa outra sobre o mar Altair, e l no
alto Deneb, que manda um raio frio do znite.
Na noite de hoje o cu parece muito mais povoado do que qualquer mapa; as
configuraes esquemticas na realidade se apresentam mais complicadas e menos
ntidas; cada cacho de estrelas poderia conter aquele tringulo ou aquela linha
quebrada que ele est procurando; e cada vez que volta a contemplar uma
constelao ela lhe parece um tanto diversa.
Para reconhecer uma constelao, a prova decisiva ver como responde quando a
chamamos. Mais convincente que a coincidncia das distncias e configuraes com
aquilo que est assinalado nos mapas, a resposta que o ponto luminoso d ao nome
pelo qual chamado, a presteza em identificar-se com aquele som tornando-se uma
coisa s. Os nomes das estrelas para ns, rfos de toda mitologia, parecem
incongruentes e arbitrrios; contudo, jamais poderemos consider-los intercambiveis.
Quando o nome que o senhor Palomar encontrou o verdadeiro, logo se apercebe
disso, pois este d estrela uma necessidade e uma evidncia que ela no tinha antes;
se ao contrrio um nome equivocado, a estrela o perde depois de poucos segundos,
como se ele lhe rolasse das costas, e no se sabe mais onde estava ou o que era.
Aps vrias tentativas o senhor Palomar decide que a Cabeleira de Berenice
(constelao que ele adora) este ou aquele enxame luminoso do lado de Ofico: mas
no torna a sentir a palpitao experimentada outras vezes ao reconhecer aquele
objeto to suntuoso e apesar disso to leve. S em seguida se apercebe de que se no
a encontra porque a Cabeleira de Berenice desta estao no est visvel.
Numa larga parte o cu atravessado por estrias e manchas claras; a Via Lctea
toma em agosto uma consistncia densa e parece extravasar de seu halo; o claro e o
escuro esto assim mesclados para impedir o efeito perspectivo de um abismo negro
sob cuja lonjura vazia campeiam, bem em relevo, as estrelas; tudo permanece no
mesmo plano: cintilaes e nuvens argnteas e trevas.
esta a geometria exata dos espaos siderais a que tantas vezes o senhor Palomar
sentiu necessidade de recorrer para desprender-se da Terra, lugar de complicaes
suprfluas e de aproximaes confusas? Encontrando-se efetivamente em presena do
cu estrelado, parece que tudo lhe foge. At mesmo ao que se acreditava mais
sensvel, pequenez de nosso mundo em relao s distncias incomensurveis, no
reage diretamente. O firmamento algo que est l em cima mas do qual no se pode
extrair nenhuma ideia de dimenses ou de distncia.
Se os corpos luminosos esto prenhes de incerteza, s resta confiar na escurido,
nas regies desertas do cu. Que pode ser mais estvel do que o nada? Contudo, no
se pode, nem mesmo do nada, estar cem por cento seguro. Palomar, onde v uma
clareira no firmamento, uma brecha oca e negra, l fixa o olhar como que se
projetando nela; e eis que tambm ali no meio toma forma um grozinho claro
qualquer ou uma pequenina mancha ou sarda; mas ele no chega a estar seguro se
elas esto naquele lugar de fato ou apenas tem a impresso de v-las. Talvez seja um
claro como aqueles que se veem rodar mantendo-se os olhos fechados (o cu escuro
sulcado de fosfenas como o reverso das plpebras); talvez seja um reflexo de seus
culos; mas poderia ser tambm uma estrela desconhecida que emerge das
profundezas mais remotas.
Esta observao das estrelas transmite um saber instvel e contraditrio, pensa
Palomar, inteiramente o contrrio do que dela sabiam extrair os antigos. Ser porque
seu relacionamento com o cu intermitente e perturbado, em vez de ser um hbito
sereno? Se ele se obrigasse a contemplar as constelaes noite aps noite e ano aps
ano, seguindo-lhes os cursos e percursos ao longo das curvas binrias da abbada
obscura, talvez chegasse por fim a conquistar tambm ele a noo de um tempo
contnuo e imutvel, separado do tempo transitrio e fragmentrio dos acontecimentos
terrestres. Mas bastaria atentar s revolues celestes para marcar nele essa imagem?
ou no ocorreria sobretudo uma revoluo interior, que ele pode supor apenas em
teoria, sem conseguir imaginar os efeitos sensveis sobre suas emoes e os ritmos da
mente?
Do conhecimento mtico dos astros capta apenas alguns vislumbres estanques; do
conhecimento cientfico, os ecos divulgados pelos jornais; desconfia daquilo que sabe;
o que ignora mantm seu nimo suspenso. Assoberbado, inseguro, se enerva com os
mapas celestes como com os horrios das ferrovias compulsados procura de uma
conexo.
Eis uma flecha esplendente que sulca o cu. Um meteoro? Estas so as noites nas
quais o riscar das estrelas cadentes mais frequente. Contudo, poderia muito bem ser
um avio de passageiros iluminado. A vista do senhor Palomar se mantm vigilante,
disponvel, desprendida de qualquer certeza.
J est h meia hora na praia escura, sentado numa espreguiadeira, contorcendo-se
para sul e para norte, a pouco e pouco acendendo a lanterna e aproximando do nariz
o mapa que traz esparramado sobre os joelhos; depois, com o pescoo erguido,
recomea a explorao a partir da estrela polar.
Sombras silenciosas esto se movendo na areia; um casal de namorados se destaca
de uma duna, um pescador noturno, um guarda alfandegrio, um barqueiro. O senhor
Palomar ouve um sussurro. Olha em redor: a poucos passos dele formou-se uma
pequena multido que est observando seus movimentos como as convulses de um
demente.
PALOMAR NA CIDADE
PALOMAR NO TERRAO
Do terrao
X! x! O senhor Palomar corre para o terrao a fim de espantar os pombos que
esto comendo as folhas da gaznia, crivando de bicadas as plantas carnudas,
agarrando-se com as patas cascata de campnulas, lambiscando as amoras,
perfurando uma por uma as folhinhas da salsa plantada num caixote junto cozinha,
escavando e esgaravatando os vasos derrubando a terra e deixando as razes mostra,
como se o nico objetivo de seu voo fosse a devastao. s pombas cujo voo outrora
alegrava as praas sucedeu-se uma prognie degenerada, indecorosa e infecta, nem
domstica nem selvagem mas integrada nas instituies pblicas, e como tal
inextinguvel. H tempos o cu da cidade de Roma caiu no poder das
superpopulaes desses lumpempenugentos, que tornam a vida difcil para qualquer
outra espcie de pssaros em torno e oprimem o reino outrora livre e variado do
espao com suas montonas e despenadas librs cinza-chumbo.
Comprimida entre as hordas subterrneas dos ratos e o voo pesado dos pombos, a
antiga cidade se deixa corroer por baixo e por cima sem opor maior resistncia do que
a que opunha em outros tempos s invases dos brbaros, como se nisso
reconhecesse no o assalto dos inimigos externos mas os impulsos mais obscuros e
congnitos da prpria essncia interior.
A cidade tem, contudo, uma outra alma uma entre tantas , que vive do acordo
entre as velhas pedras e a vegetao sempre nova, no dividir os favores do sol.
Secundando esta boa disposio ambiental ou genius loci, o terrao da famlia
Palomar, ilha secreta sobre os telhados, sonha concentrar sob sua prgola o luxuriar
dos jardins da Babilnia.
A viosidade do terrao responde ao desejo de cada membro da famlia, mas
enquanto a senhora Palomar considera natural dedicar s plantas a ateno que deve
s coisas simples, escolhidas e feitas de propsito para uma identificao interior e
assim destinadas a compor um conjunto de mltiplas variaes, uma coleo
emblemtica, essa dimenso de seu esprito difere da dos demais membros da famlia:
da filha porque a juventude no pode nem deve fixar-se sobre o aqui mas apenas
sobre o mais alm; do marido porque este s chegou a libertar-se tarde demais das
impacincias juvenis e a compreender (s em teoria) que a nica salvao est em se
dedicar s coisas que esto aqui.
As preocupaes do cultivador, para quem o que conta uma determinada planta,
um determinado espao de terreno exposto ao sol de tais horas a tais horas, aquela
determinada enfermidade das folhas que se pode combater mediante determinado
tratamento, so estranhas mente modelada segundo os procedimentos da indstria,
ou seja, levada a decidir sobre atitudes genricas e sobre prottipos. Quando Palomar
se deu conta do quo aproximativos e votados ao erro eram os critrios do mundo no
qual acreditava encontrar preciso e norma universal, voltou aos poucos a estabelecer
um relacionamento com o mundo limitando-o s observaes das formas visveis; mas
jamais ele era como fora feito: sua adeso s coisas permanecia intermitente e
transitria como a das pessoas que parecem sempre propensas a pensar uma outra
coisa mas essa outra coisa no existe. Com a prosperidade do terrao ele contribui
correndo vez por outra para espantar os pombos, X! x!, despertando em si o
sentimento atvico da defesa do territrio.
Se no terrao pousam outros pssaros que no os pombos, o senhor Palomar em
vez de ca-los lhes d as boas-vindas, faz vista grossa a eventuais estragos
provocados por seus bicos, considerando-os mensageiros de divindades amigas. Mas
essas aparies so raras: uma patrulha de corvos s vezes se aproxima pontilhando o
cu de manchas negras e propagando (at a linguagem dos deuses muda com os
sculos) um sentido de vida e de alegria. Tambm algum melro, gentil e arguto; certa
vez um pintarroxo; e os passarinhos no seu papel costumeiro de passantes annimos.
Outras presenas de plumgeros sobre a cidade se deixam avistar mais ao longe: as
esquadrilhas dos migradores, no outono; e as acrobacias, de vero, das andorinhas e
colibris. Vez por outra gavies brancos, remando no ar com suas longas asas, se
arremessam sobre o mar enxuto das telhas, talvez perdidos remontando desde a foz s
margens do rio, talvez entregues a um rito nupcial, e seu grito marinho silva entre os
rumores citadinos.
O terrao est disposto em dois nveis: um mirante ou belvedere sobranceia a
confuso de tetos pelos quais o senhor Palomar perpassa um olhar de pssaro.
Procura pensar o mundo como visto pelos volteis; diferena dele os pssaros tm
o vazio que se abre sob eles, mas talvez nunca olhem para baixo, veem apenas dos
lados, equilibrando-se obliquamente nas asas, e seu olhar, como o dele, para onde
quer que se dirija s encontra tetos mais altos ou mais baixos, construes mais ou
menos elevadas mas to cerradas que no lhes permitem descer mais que isto. Que l
embaixo, encaixadas, existam ruas e praas, que o verdadeiro solo seja aquele no nvel
do solo, ele o sabe com base em outras experincias; por agora, com o que v daqui
de cima, no poderia suspeit-lo.
A verdadeira forma da cidade est neste sobe e desce de tetos, telhas velhas e
novas, arqueadas ou planas, chamins estreitas ou corpulentas, latadas de cnulas e
varandas de eternit ondulado, gradis, balaustradas, pequenas pilastras amparando
vasos, reservatrios de gua metlicos, guas-furtadas, claraboias de vidro, e sobre
tudo isto se ergue a mastreao das antenas televisivas, retas ou tortas, esmaltadas ou
enferrujadas, em modelos de geraes sucessivas, variadamente ramificadas em chifres
ou esgrimas, mas todas magras como esqueletos e inquietantes como totens.
Separados por golfos de vazios irregulares e retalhados, defrontam-se terraos
proletrios com varais de secar roupa e tomateiros plantados em baldes de zinco;
terraos residenciais com espaldares de trepadeiras em trelias de madeira, mveis de
jardim em ferro batido pintados de branco, toldos enrolveis; campanrios com as
torres campanrias campanantes; frontes de prdios pblicos de frente e de perfil;
ticos e sobreticos, acrscimos abusivos e impunveis; andaimes de tubos metlicos
de construes em curso ou que ficaram pelo meio; janeles com reposteiros e
basculantes de banheiros; muros ocres e muros azuis; muros cor de mofo dos quais
crespos cspedes de ervas deixam tombar seu folhame pndulo; colunas de
elevadores; torres com bfores e trfores; zimbrios de igrejas com madonas; esttuas
de cavalos e quadrigas; manses decadentes transformadas em tugrios, tugrios
reestruturados em garonnires; e cpulas que se arredondam no cu em todas as
direes e a todas as distncias como que confirmando a essncia feminina, junonal da
cidade: cpulas brancas e rseas ou violceas conforme a hora e a luz, estriadas de
nervuras, terminadas em lanternas encimadas por altas cpulas menores.
Nada disto pode ser observado por quem move seus ps ou suas rodas sobre o
pavimento da cidade. E, inversamente, daqui de baixo tem-se a impresso de que a
verdadeira crosta terrestre esta, desigual mas compacta, mesmo quando sulcada de
fraturas no se sabe de que profundidade, gretas ou poos ou crateras, cujas bordas
em perspectiva aparecem agregadas como as escamas de uma pinha, e no nos ocorre
ao menos perguntar o que escondem em seu fundo, porque a vista j tanta e to rica
e variada na superfcie que basta e quase chega a saturar a mente de informaes e de
significados.
Assim pensam os pssaros, pelo menos assim pensa o senhor Palomar imaginando-
se pssaro. S depois de haver conhecido a superfcie das coisas, conclui, que se
pode proceder busca daquilo que est embaixo. Mas a superfcie das coisas
inexaurvel.
A barriga do camaleo
L est o camaleo no terrao, como acontece em todos os veres. Um ponto de
observao excepcional permite ao senhor Palomar v-lo no de dorso, como sempre
estamos habituados a ver os lagartos, camalees e lagartixas, mas de barriga. Na sala
de estar da casa de Palomar h uma pequena janela-vitrine que d para o terrao; nos
patamares dessa vitrine est alinhada uma coleo de vasos art nouveau; noite uma
lampadazinha de setenta e cinco watts ilumina os objetos; uma planta de plumbago do
muro do terrao faz pendular seus ramos celestes sobre o vidro externo; toda noite,
logo ao acender-se a luz, o camaleo que mora sob as folhas embaixo desse muro se
coloca sobre o vidro, no ponto onde a lampadazinha esplende, e ali permanece
imvel como uma lagartixa ao sol. Os insetos voam, tambm atrados pela luz; o rptil,
quando um inseto lhe passa ao alcance, engole-o.
O senhor Palomar e a senhora Palomar toda noite acabam deslocando as poltronas
de frente da televiso para junto da vitrine; do interior da sala contemplam a barriga
esbranquiada do rptil sobre o fundo escuro. A escolha entre a televiso e o rptil
no ocorre sem incertezas; os dois espetculos tm cada um deles informaes para
dar que o outro no transmite: a televiso se move pelos continentes recolhendo
impulsos luminosos que descrevem a face visvel das coisas; o camaleo ao contrrio
representa a concentrao imvel e o aspecto oculto, o contrrio daquilo que se
mostra vista.
A coisa mais extraordinria so as patas, verdadeiras mos de dedos moles, s
falanges, que premidas contra o vidro a ele se aderem com suas ventosas minsculas:
os cinco dedos se alargam como ptalas dessas florzinhas dos desenhos infantis, e
quando uma das patas se move, recolhem-se como uma flor que se fecha, para tornar
depois a se distender e a se comprimir contra o vidro, fazendo aparecer estrias
miudssimas, como as que se veem nas impresses digitais. Ao mesmo tempo delicadas
e fortes, essas mos parecem conter uma inteligncia potencial, que lhes permite, mal
se libertem da funo de se manter ali aderidas superfcie vertical, readquirir os
dotes das mos humanas, as quais segundo dizem se tornaram hbeis a partir do
momento em que no tiveram mais de se manter agarradas aos ramos ou aderidas ao
solo.
As patas contradas parecem, muito mais que joelhos, mais que cotovelos, molejos
destinados a soerguer o corpo. A cauda adere-se ao vidro apenas por uma estria
central, de onde se originam os anis que a enfeixam de um lado e de outro, dela
fazendo um instrumento robusto e bem protegido; na maior parte do tempo, pousada
indolente e preguiosa, parece no ter outra habilidade ou ambio que no seja a de
sustentculo subsidirio (nada a ver com a agilidade caligrfica da cauda das
lagartixas), mas no momento oportuno demonstra reagir bem, ser bem articulada e at
mesmo expressiva.
Da cabea so visveis a ampla goela vibrante, e dos lados os olhos saltados e sem
plpebras. A goela uma superfcie de saco frouxo que se estende da ponta do
queixo dura e toda feita de escamas como a de um jacar ao ventre branco que ali nas
partes em que se comprime contra o vidro apresenta tambm ele um mosqueado
granuloso, talvez adesivo.
Quando um mosquitinho passa prximo boca do camaleo, a lngua dispara e
engole, fulmnea e dctil e aderente, isenta de forma e capaz de assumir qualquer
forma. Contudo, Palomar nunca est seguro se j a viu ou no; o que certamente v,
agora, o inseto dentro do papo do rptil: o ventre contrado contra o vidro
iluminado se torna transparente como se estivesse exposto aos raios X; pode-se
acompanhar a sombra da presa em seu trajeto atravs das vsceras que a absorvem.
Se toda matria fosse transparente, o solo que nos sustm, o invlucro que enfaixa
os nossos corpos, tudo apareceria no como um adejar de vus impalpveis mas como
um inferno de ingestes e de trituramentos. Talvez neste exato momento um deus dos
infernos situados no centro da terra, com seu olhar que atravessa o granito, esteja nos
olhando l de baixo, seguindo o ciclo da vida e da morte, as vtimas dilaceradas que se
desfazem nos ventres dos devoradores, at que por sua vez um outro ventre tambm
o engula.
O camaleo permanece imvel por horas; com uma chicotada da lngua deglute ora
uma mosca ora um mosquitinho; todavia, parece no registrar outros insetos, idnticos
aos primeiros, que tambm lhe passam incautos a poucos centmetros da boca. Ser a
pupila vertical de seus olhos divaricados dos lados da cabea que no os avista? Ou h
motivos de escolha e de recusa que no conhecemos? Ou quem sabe aja motivado
pelo acaso ou por capricho?
A segmentao dos anis das patas e da cauda, o mosqueado das diminutas lminas
granulosas da cabea e do ventre emprestam ao camaleo uma aparncia de engenho
mecnico; uma mquina elaboradssima, estudada nos mais microscpicos detalhes, a
ponto de se poder indagar se uma tal perfeio no ser esbanjada em funo das
operaes limitadas que executa. Ou talvez seja este o seu segredo: satisfeito em ser,
reduz a sua ao ao mnimo? Ser esta a sua lio, o oposto da moral que em sua
juventude o senhor Palomar queria que fosse a sua: procurar sempre fazer algo alm
de seus prprios recursos?
Eis que lhe tomba ao alcance uma mariposinha noturna transviada. Finge que no a
v? No, agarra tambm essa. A lngua se transforma numa rede para mariposas e a
arrasta para dentro da boca. Come-a toda? Cospe-a? Estraalha-a? No, a mariposa est
na goela: palpita, esfrangalhada mas ainda viva, no tocada pela ofensiva dos dentes
mastigadores, eis que supera as angstias das fauces, uma sombra que inicia a
viagem lenta e acidentada descendo por um esfago intumescido.
O camaleo, saindo de sua impassibilidade, boqueja, agita o papo convulso,
balanceia entre as pernas e a cauda, contorce o ventre submetido a dura prova. J ter
o bastante para esta noite? Ir-se- embora? Era este o ltimo desejo que esperava
satisfazer? Era esta a prova nos limites do possvel com que desejava defrontar-se?
No, l est ele. Talvez tenha adormecido. Como o sono de quem no tem plpebras
nos olhos?
Nem mesmo o senhor Palomar consegue sair dali. Continua a observ-lo. No h
trgua com que se possa contar. Mesmo voltando a ligar a televiso no consegue
mais que estender a contemplao dos massacres. A mariposa, frgil Eurdice,
aprofunda-se lentamente no seu Hades. Eis que um mosquitinho voa, prestes a pousar
no vidro. E a lngua do camaleo se atira.
A invaso dos estorninhos
H uma coisa extraordinria para se ver em Roma neste fim de outono: o cu
apinhado de pssaros. O terrao do senhor Palomar um belo posto de observao,
de onde o olhar paira sobre os telhados num amplo crculo do horizonte. Sobre esses
pssaros, sabe apenas o que ouviu dizer por a: so estorninhos que se renem em
centenas de milhares, provenientes do Norte da Europa, esperando o momento de
partirem todos juntos para as costas da frica. noite dormem nas rvores da cidade,
e quem estaciona o carro s margens do Tibre pela manh estar obrigado a lav-lo
de cima a baixo.
Aonde vo durante o dia, que funo esta parada prolongada na cidade
desempenha na estratgia das migraes, o que significam para eles essas imensas
congregaes vespertinas, esses carrossis areos como numa grande manobra ou
num desfile, o senhor Palomar no chegou ainda a compreender. As explicaes que
do para isso so todas um tanto duvidosas, condicionadas a hipteses, oscilantes
entre vrias alternativas; e natural que seja assim, tratando-se de vozes que passam
de boca em boca, mas tem-se a impresso de que mesmo a cincia, que poderia
confirm-las ou desmenti-las, permanece incerta, aproximativa. Estando as coisas neste
p, o senhor Palomar decidiu limitar-se a observar, a fixar nos mnimos detalhes o
pouco que consegue ver, agarrando-se s ideias imediatas que lhe so sugeridas pelo
que v.
No ar violceo do crepsculo v aflorar numa parte do cu uma poeira
microscpica, uma nuvem de asas que voam. Percebe que so milhares e milhares: a
cpula do cu por elas invadida. Aquilo que at ento lhe parecera uma imensido
serena e oca agora se revela inteiramente percorrida por presenas levssimas e
ligeiras.
Viso tranquilizadora, a passagem das aves migratrias associada em nossa
memria ancestral ao harmnico suceder das estaes; mas o senhor Palomar ao
contrrio sente nisso um sinal de apreenso. Ser porque esse apinhar-se do cu nos
recorda que o equilbrio da natureza se perdeu? Ou porque o nosso senso de
insegurana projeta em tudo ameaas de catstrofes?
Quando pensamos nos pssaros migratrios imaginamos logo uma formao de voo
ordenada e compacta, que sulca o cu numa longa fileira ou falange em ngulo agudo,
quase uma forma de pssaro composta de inumerveis pssaros. Essa imagem no
vale para os estorninhos, pelo menos para esses estorninhos outonais dos cus de
Roma: trata-se de uma multido area que parece sempre pronta a rarefazer-se ou
dispersar-se, como gros de polvilho em suspenso num lquido, e em vez disso se
condensa continuamente como se de um conduto invisvel o jorro de partculas
turbilhonantes continuasse, sem nunca chegar, no entanto, a saturar a soluo.
A nuvem se dilata, negrejante de asas que se desenham mais ntidas no cu, sinal de
que esto se aproximando. No interior do bando o senhor Palomar j distingue uma
perspectiva, devido ao fato de j ver alguns volteis muito prximos em cima de sua
cabea, outros ao longe, outros mais distantes ainda, e continua a descobrir outros
cada vez mais minsculos e puntiformes, por quilmetros e quilmetros, poderamos
dizer, atribuindo s distncias entre um e outro uma medida quase igual. Mas essa
iluso de regularidade traioeira, porque nada mais difcil de avaliar que a
densidade de distribuio dos volteis em voo: onde a compacidade do bando parece
estar escurecendo o cu eis que entre um pengero e outro se escancaram voragens de
vazio.
Se se detm alguns minutos observando a disposio dos pssaros relativamente
uns aos outros, o senhor Palomar se sente preso numa trama cuja continuidade se
estende uniforme e sem lacunas, como se ele prprio tambm fizesse parte desse
corpo em movimento composto de centenas e centenas de corpos separados mas cujo
conjunto constitui um objeto unitrio, como uma nuvem ou uma coluna de fumo ou
um repuxo, algo que embora seja fluido em substncia adquire solidez na forma. Mas
basta que se ponha a seguir com o olhar um nico pssaro para que a dissociao dos
elementos se imponha e eis que a corrente em que se sentia transportado, a rede em
que se sentia suspenso se dissolvem e o efeito o de uma vertigem que o toma pela
boca do estmago.
Isto acontece, por exemplo, quando o senhor Palomar, depois de se haver
persuadido de que os estorninhos em conjunto esto voando em sua direo, volta o
olhar para um pssaro que na verdade est se distanciando, e desse para um outro
pssaro que se afasta mas em direo diversa, e em breve percebe que todos os
volteis que lhe pareciam estar se aproximando na verdade esto fugindo em todas as
direes, como se ele se encontrasse no centro de uma exploso. Mas basta-lhe voltar
os olhos para uma outra zona do cu e ei-los que se concentram alm, num vrtice
cada vez mais denso e compacto, assim como um m oculto sob um papel atrai a
limalha de ferro compondo desenhos que se tornam ora mais escuros ora mais claros e
por fim se desfazem e deixam sobre a folha branca um salpicado de fragmentos
dispersos.
Finalmente uma forma emerge do confuso bater de asas, avana, adensa-se: uma
forma circular, como uma esfera, uma bola, o balo das histrias em quadrinhos de
algum que esteja pensando num cu repleto de pssaros, uma avalanche de asas que
rodopia no ar e envolve todos os pssaros que voam em torno. Essa esfera constitui
um territrio especial no espao uniforme, um vo